pensadores da geopolitica classica

Upload: lehvenancio

Post on 14-Oct-2015

162 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

  • 146

    Sensos, Consensos e Dissensos:Itinerrios Geopolticos de Ratzel a Lacoste

    Sandra Rodrigues Braga85

    ResumoO presente trabalho analisa as principais escolas do pensamento geopoltico clssico, inaugurado por Ratzel. Inicia-se com o almirante Mahan e suas premissas sobre o poder martimo, que preparam as condies para a hegemonia naval dos Estados Unidos. Discorre, a seguir, sobre o gegrafo britnico Mackinder, que defende a tese do poder terrestre baseado no controle do ncleo do continente eurasitico, ento territrio da Rssia czarista. Ratzel, Mahan e Mackinder influenciam o general alemo Haushofer, que estigmatiza a geopoltica como arma do nazismo. Enquanto isso, nos Estados Unidos, a obra de Nicholas Spykman consolida a centralidade da geopoltica na elaborao da poltica externa daquele pas; e na Europa, apenas em 1976, com a publicao de La gographie, a sert, dabord, faire la guerre, que a geopoltica resgatada por Yves Lacoste, desta vez como contributo ao avano da democracia.

    Palavras-chave: Histria da Geopoltica; Escolas Geopolticas; Pensamento Geopoltico.

    ResumenEl actual trabajo analiza las principales escuelas del pensamiento geopoltico clsico, inaugurado por Ratzel. Inicia con el almirante Mahan y sus premisas en el poder martimo, que preparan las condiciones para la hegemona naval de los Estados Unidos. l diserta, adelante, acerca del gegrafo britnico Mackinder, que defiende la tesis del poder terrestre basada en el dominio sobre el ncleo del continente eurasitico, entonces territorio de la Rusia zarista. Ratzel, Mahan y Mackinder influencian el general alemn Haushofer, que estigmatiza la geopoltica como arma del nazismo. Mientras que, en los Estados Unidos, la obra de Nicholas Spykman consolida la centralidad de la geopoltica en la elaboracin de la poltica externa; y en la Europa, es solamente en 1976, con la publicacin de La gographie, a sert, dabord, faire la guerre, que la geopoltica es rescat por Yves Lacoste, de esta vez para contribuir al avance de la democracia.

    Palabras-clave: Historia de la Geopoltica; Escuelas Geopolticas; Pensamiento Geopoltico.

    Introduo: Ratzel e a geopoltica

    O neologismo geopoltica criado por Rudolf Kjelln (1846-1922). Esse jurista sueco,

    tambm professor de Cincia Poltica e Histria, escreve, em 1899, um artigo para a revista Ymer,

    denominado Studier ver Sveriges politiska grnser, no qual o termo seria usado pela primeira vez,

    segundo Paul Claval (1994).

    Jos William Vesentini (2000), entretanto, afirma que a primeira conceituao de geopoltica

    encontra-se no ensaio de Kjelln intitulado As grandes potncias (1905), designando-a como a

    anlise do Estado como agente apropriador e controlador do espao geogrfico.

    Em 1916, Kjelln publica Ltat comme forme de vie, obra em que define geopoltica como

    85 Doutora em Geografia pela UFU. Coordenadora do Programa de Pesquisa em Cincias Sociais Aplicadas e Educao do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (COSAE/CNPq). [email protected]

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 147

    a cincia do Estado, enquanto organismo geogrfico, tal qual se manifesta no espao (Kjelln,

    1916 apud CHAUPRADE, 2001, p. 29), expresso que se torna clebre. Aroldo Azevedo (1955, p.

    45) comenta essa obra:

    Comparando o Estado com um ser vivo, Kjelln multiplicouse numa srie de analogias: o territrio seria o corpo, a capital representaria o corao e os pulmes, as vias de transporte corresponderiam s artrias e s veias, os centros de produo seriam as mos e os ps. Segundo ele, o verdadeiro poderio do Estado resulta da existncia de trs condies essenciais: a) grande espao; b) ampla liberdade de movimentos; c) perfeita coeso interna.

    A teoria do Estado orgnico, no entanto, j se encontra presente em Politische Geographie

    (1897). De fato, a imagem organicista que conduz Ratzel a dar um grande espao ideia

    poltica, afirma Paul Claval (1994, p. 21). Acertadas as contas com a histria, Kjelln menos uma

    influncia que um influenciado, um tributrio direto do pensamento de Friedrich Ratzel, o pai da

    geografia humana.

    A obra desse professor de Geografia da Universidade de Leipzig, especialmente a partir de

    Antropogeografia (1882), contm a primeira tentativa explcita de um estudo geogrfico

    especificamente dedicado discusso dos problemas humanos, afirma Antonio Carlos Robert

    Moraes (1990, p. 7).

    em Politische Geographie (1897), porm, que Ratzel se revela o precursor dos futuros

    estudos em geopoltica. Essa obra divide-se em nove partes, nas quais discute, basicamente, os laos

    entre solo e Estado e o crescimento espacial dos Estados ao longo da histria humana. A Geografia

    Poltica a conceituada como a geografia dos Estados, do comrcio e da guerra (RATZEL,

    1987, p. 75).

    Como afirma Claude Raffestin (1993, p. 16), O Estado pode ser lido geograficamente, e

    Ratzel forneceu categorias para decifr-lo. J para Azevedo (1955, p. 45), Ratzel fornece um

    verdadeiro programa de governo para uma Nao imperialista, ao associar o crescimento do

    Estado expanso cultural de seu povo, de base comercial ou missionria. Aymeric Chauprade

    (2001, p. 29) considera, igualmente, que ele um dos primeiros gegrafos a propor os conceitos

    fundamentais de uma Geopolitik alem, dando-lhe uma linha de raciocnio e um mtodo.

    Membro da Liga Pangermnica (1890) e fundador do Comit Colonial, Ratzel defendeu a

    formao de um imprio colonial alemo. A fronteira colonial, para ele, constitua um instrumental

    da expanso do Estado, empenhado em absorver reas de valor poltico-econmico: plancies,

    cursos dgua, regies litorneas, produtoras de matrias primas:

    As fronteiras no so concebidas seno como a expresso de um movimento orgnico ou inorgnico; as formaes estatais elementares assemelham-se, evidentemente, a um tecido celular: em tudo se reconhece a semelhana entre as formas de vida que surgem da ligao com o solo (RATZEL, 1987, p. 59).

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 148

    Muitos autores, tal qual Azevedo (1955, p. 45), observam que fcil perceber, desde logo,

    que tais ideias serviam admiravelmente ao expansionismo prussiano, iniciado por Bismarck e

    continuado pelo imperador Guilherme II. Elas, todavia, influenciam muito mais que esses dois

    estadistas alemes, constituindo um precioso material terico, utilizado por vrios geopolticos

    contemporneos.

    Apesar do sempre lembrado papel pioneiro da obra de Ratzel, duas teses clssicas do

    pensamento geopoltico so contemporneas ou mesmo antecedem o autor alemo: a tese do poder

    martimo, proposta pelo almirante norte-americano Mahan em 1890, e a tese do poder terrestre,

    exposta pelo britnico Mackinder em 1904.

    Mahan e o poder naval

    Paul Claval (1994, p. 35) informa-nos que os primeiros grandes debates geopolticos

    referem-se ao papel do mar no progresso e na supremacia dos pases anglo-saxes. O contexto

    histrico desses debates era determinado pela expanso territorial norte-americana (Figura 1). Em

    1867, os Estados Unidos compram o Alasca, at ento pertencente Rssia. Em 1898, desenvolvem

    uma poltica imperialista acirrada, que inclui a guerra contra a Espanha pela posse de Cuba; a

    conquista de Guam e Porto Rico, Hawa e Filipinas.

    A tese do poder martimo, exposta em The influence of sea power on history, 1660-1783

    (1890), pelo almirante norte-americano Alfred T. Mahan, assume grande importncia entre fins do

    sculo XIX e incio do sculo posterior. Nessa obra, que se torna a bblia dos defensores do destino

    manifesto estadunidense e dos partidrios da poltica de expanso do poderio naval norte-

    americano, Mahan afirma que o controle das rotas martimas a chave da hegemonia mundial.

    Em 1897, Mahan publica The interest of America in sea power, obra em que define a

    doutrina que julga mais conveniente para seu pas, cujas estratgias so: a) associar-se com o

    poderio naval britnico no controle dos mares; b) conter a expanso continental e as pretenses

    martimas da Alemanha; c) pr em ao uma defesa coordenada de europeus e norte-americanos

    destinada a destruir as ambies asiticas.

    O almirante enlaa dados geogrficos e histricos dos Estados Unidos, como a ausncia de

    inimigos potenciais significativos nas fronteiras terrestres e a importncia do comrcio martimo nas

    trocas econmicas internacionais, para propor a ampliao do controle dos mares como o grande

    objetivo de sua estratgia, cujo xito expresso na Figura 1.

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 149

    Figura 1 A expanso americana a partir de 1867.

    Fonte: Chauprade (2001, p. 43).

    A ideia mater da estratgia geopoltica de Mahan, como expressa Claval (1994, p. 36), que

    O domnio dos mares construdo: ele no dado pela natureza s potncias insulares. Mas a

    vantagem que a insularidade proporciona tal que lhes vale, em longo prazo, o triunfo sobre as

    continentais.

    Essa ampliao do controle martimo processa-se no Caribe e no Pacfico e acelera-se com a

    abertura do canal do Panam (1914), que faculta a unio das frotas do Atlntico e do Pacfico e

    transforma os Estados Unidos na ilha-continente do hemisfrio ocidental:

    Protegidos ao sul pela doutrina Monroe, que lhes assegura a liderana sobre o continente americano, os Estados Unidos constituem, do ponto de vista geopoltico, uma ilha. Essa caracterstica insular fornece a segurana. Como a Inglaterra de antigamente, que fundou sua riqueza sobre o domnio dos mares e a segurana insular, os Estados Unidos dispem de todos os trunfos para tornar-se a primeira potncia mundial. A imensidade de sua marcha interior d, com efeito, aos americanos um trunfo suplementar para constituir uma economia forte, pouco dependente de cmbios internacionais (CHAUPRADE, 2001, p. 44).

    Professor do Naval War College, Mahan no s elabora, mas coloca em prtica uma

    estratgia baseada na manuteno de pontos de apoio (portos e bases militares) e slidas posies

    sobre os estreitos e rotas de comrcio, que resultou em:

    (...) uma frota marinha onipresente e capaz de se transportar rapidamente aos pontos estratgicos, de maneira a assegurar a liberdade do comrcio martimo e praticar o bloqueio martimo em torno dos pases inimigos. A marinha americana hoje essa formidvel fora de projeo sobre todos os continentes, que Mahan sonhava (idem,

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 150

    ib., p. 44).

    Mahan acreditava que o colonialismo constitui o fardo do homem branco, e que essa

    formidvel esquadra naval deveria ser usada para civilizar o mundo. Isso no impede que, como

    os demais geopolticos clssicos, seu objetivo seja defender os interesses dos pases a que

    pertencem e descobrir justificativas para sua poltica imperialista, como afirma Azevedo (1955, p.

    44). Na contracorrente do poder martimo, emerge a tese do poder terrestre.

    Mackinder e o poder terrestre

    Halford Mackinder (1861-1947) pe em xeque a tese mahaniana ao atribuir rea Piv um

    papel estratgico na poltica de poder das grandes potncias europeias. Ele lana essa ideia na

    conferncia intitulada The geographical pivot of history, proferida em 25 de janeiro de 1904 na Real

    Sociedade Geogrfica, e posteriormente reproduzida no Geographical Journal em edio do mesmo

    ano, em um artigo de 16 pginas, e que Karl Haushofer (s.d. apud WEIGERT, 1943, p. 129)

    classificaria como uma obra-prima geopoltica.

    Para o gegrafo britnico, o amplo ncleo do continente euro-asitico, correspondente ao

    territrio da Rssia czarista, de imensos recursos, permite ao Estado que o controlar o

    desenvolvimento de um grande poder terrestre.

    Figura 2 - O mundo segundo Mackinder (1904).

    Fonte: Mello (1999, p. 49).

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 151

    A Figura 2 reproduz o mapa apresentado por Mackinder na conferncia, onde possvel

    observar a rea Piv e seu entorno, compreendido por dois grandes arcos. O primeiro - Crescente

    Interno representa o espao natural de expanso do poder terrestre, em busca de um poder anfbio

    e, ao mesmo tempo, corresponde primeira linha de defesa do poder martimo poca; formado

    pelos imprios alemo, austro-hngaro e turco, mais ndia e China. O segundo - Crescente Externo -

    refere-se rea de domnio do poder martimo, onde se localizam suas grandes potncias:

    Inglaterra, Estados Unidos e Japo, alm dos domnios britnicos do Canad, frica do Sul e

    Austrlia.

    Leonel Itaussu Mello (1999, p. 16) afirma que, entrincheirado no corao do Velho

    Continente, esse poder terrestre auto-suficiente poderia resistir ao assdio e s presses do poder

    martimo, cujo raio de ao limitava-se s ilhas prximas e regies costeiras da Eursia.

    Em 1919, no livro Democratic ideals and reality: a study in the politics of reconstruction,

    Mackinder reelabora o conceito de rea Piv, flexibilizando os seus limites geogrficos e passando

    a denomin-la heartland, terra-corao. Mackinder defende, nessa obra, a ideia de que os

    fenmenos geopolticos podem ser explicados a partir da luta travada entre o heartland e os

    crescentes concntricos que o circundam: Quem domina a Europa Oriental controla o Heartland;

    quem domina o Heartland controla a World Island; quem domina a World Island controla o

    mundo (MACKINDER, 1919 apud MELLO, 1999, p. 56).

    Chauprade (2001, p. 49) entende que a obra de Mackinder se inscreve na linha da

    Realpolitik, inaugurada pelo presidente norte-americano Theodore Roosevelt, estabelecendo uma

    clivagem profunda entre a tradio geopoltica ligada no realismo e a tradio idealista ou

    ideolgica, reencontrada em numerosos historiadores das relaes internacionais. Entretanto,

    cabe frisar que essa contraposio, em se tratando de poltica norte-americana, apenas aparente, j

    que a poltica externa geopoltica e a poltica de comunicao ideolgica.

    Mackinder (1919) reconsidera a relao entre massas continentais e ocenicas, passando a

    defender a ideia da unicidade das guas do planeta que formariam o Midland Ocean e englobaria

    toda a bacia do Atlntico Norte, seus mares subsidirios (Caribe, Bltico e Mediterrneo), suas

    reas insulares (Inglaterra, Islndia e Groelndia) e suas regies marginais (Europa Ocidental e leste

    da Amrica do Norte):

    Dessa proposta nasce meu segundo conceito geogrfico, o de Midland Ocean - o Atlntico Norte -, com seus mares dependentes e as bacias de seus rios. Sem entrar nos pormenores dessa noo, permitam-me apresent-la em seus trs elementos: uma cabea-de-ponte, na Frana, um aerdromo protegido por fossos (os mares e canais circundantes), na Inglaterra, e uma reserva de foras bem adestradas, de recursos agrcolas e industriais, no leste dos Estados Unidos e Canad (MACKINDER, 1919, apud MELLO, 1999, p. 66).

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 152

    O pensamento geopoltico e geoestratgico de Mackinder aparentemente marcado pelo

    determinismo geogrfico. Entretanto, interessante notar, como Chauprade (2001, p. 47), que:

    (...) em Mackinder, a centralidade geopoltica do heartland no invarivel no tempo; a centralidade , ao contrrio, o resultado da histria, medida que a tcnica humana caminhos frreos, vias de comunicao, explorao de recursos energticos que d a supremacia estratgica imensido terrestre em detrimento do domnio dos oceanos.

    Para Mackinder, a permanncia do poder martimo anglo-americano se baseia no

    enfraquecimento dos poderes emergentes na Eursia. Impedir a unio entre a Alemanha e a Rssia

    bolchevique tornava-se um imperativo, que o prprio Mackinder assumiria diretamente no campo

    diplomtico ao redesenhar as fronteiras europeias aps a Primeira Guerra. Destarte, ele refora as

    aes polticas da Frana no sentido de instituir um cordo sanitrio entre esses dois pases. Disso

    deriva a criao da Polnia, Tcheco-Eslovquia, Hungria, Iugoslvia, Bulgria, Romnia e Grcia, a

    partir de territrios desmembrados dos imprios russo, alemo, austraco e turco.

    As profundas mudanas de conjuntura internacional no perodo entre guerras, no passam

    despercebidas a Mackinder. No artigo The round world and the winning of the peace (1943),

    Mackinder rev o mundo, acossado por duas grandes guerras e pelo estabelecimento de uma ordem

    bipolar. O heartland torna-se muito menor que a rea Piv, passando de 23 milhes a 13 milhes

    de km2 (Figura 3). Claval (1994) entende, porm, que Mackinder se mantm nesse opsculo fiel

    sua ideia-chave de oposio de um ncleo central a uma periferia.

    Figura 3 - O mundo de Mackinder (1943).

    Fonte: Mello (1999, p. 67).

    A obra de Mackinder no caiu no esquecimento com o fim do sculo XX, como se poderia

    supor. Para Mello (1999), Mackinder o iniciador de uma linha do pensamento geopoltico de

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 153

    extrema validade para o entendimento do mundo atual. Trs de suas formulaes so

    particularmente relevantes: a) o mundo como um sistema fechado, um enunciado pioneiro em 1904;

    b) a viso histrico-geogrfica da luta permanente entre os poderes martimo e continental, que

    influencia inmeros autores, como Raymond Aron, que analisando o universo da Guerra Fria fala

    em uma contraposio do urso (o poder terrestre cristalizado no Estado sovitico) baleia (o poder

    martimo pertencente aos Estados Unidos); e c) as conceituaes geoestratgicas que resultam na

    poltica de conteno norte-americana e nas alianas militares dos Estados Unidos no presente.

    Mackinder tem outros atributos que lhe valem a perpetuidade da memria. Ele assumiu um

    papel decisivo na introduo da geografia moderna no sistema educacional britnico. Geografia

    ele consagrar sua longa vida de professor universitrio, de poltico e de homem de ao:

    Sob sua forma moderna, a disciplina parece-lhe indispensvel formao de cidados responsveis por um grande imprio. Ele se bate ento por sua introduo no ensino primrio e secundrio. Em 1887, torna-se o primeiro gegrafo nomeado em uma universidade britnica e funda, em Oxford, a Escola de Geografia, financiada at 1924, pela Real Sociedade Geogrfica (CLAVAL, 1994, p. 37).

    A admirao de Claval (1994) pela pessoa e obra de Mackinder no foi compartilhada por

    Azevedo (1955, p. 46), que cr que sua tese da rea Piv no teve praticamente nenhuma

    repercusso no Mundo Britnico, mas foi desenvolvida e aproveitada, na dcada de 1920-1930,

    pelo Major General Karl Haushofer.

    No entanto, a histria daria a Mackinder uma relevncia bem maior do que previra Azevedo

    (1955). Os conceitos mackinderianos de world island e heartland rapidamente foram difundidos

    nos estudos geopolticos em todo o mundo; seu pensamento est presente em Nicholas Spykman,

    Zbigniew Brzezinski, Samuel Huntington, Raymond Aron e outros geopolticos contemporneos.

    Todavia, como assevera Mello (1999, p. 77), no segredo de iniciados o quanto o

    general-gegrafo alemo tributrio do gegrafo britnico, j que o prprio Haushofer por

    diversas vezes reconheceu publicamente seu dbito intelectual com Mackinder.

    Haushofer e a geopoltica do nazismo

    Haushofer (1869-1946) e sua Zeitschrift fr Geopolitik (Revista de Geopoltica) so os

    grandes responsveis pela difuso das ideias geopolticas e por sua associao ao nazismo.

    A revista publicada na Alemanha entre 1924 e 1944, tem a colaborao de militares,

    gegrafos, cientistas polticos, historiadores e economistas. Inicialmente com uma tiragem de mil

    exemplares mensais, alcana mais de cinco mil na dcada de 1930, sendo 25% de seus leitores

    estrangeiros. Entre as ideias apregoadas pela revista estariam: a de espao vital (a necessidade de

    novos territrios para a Alemanha na Europa Central), a de superioridade da raa ariana e do destino

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 154

    manifesto alemo em uma nova ordem mundial ideal:

    Sem esses personagens, que logicamente foram impulsionados por determinados aspectos do clima intelectual da Repblica de Weimar e da Alemanha nazista (Berlim como a nova Paris nos anos 20 e 30, ressentimento alemo contra os tratados de ps-Primeira Guerra Mundial, misticismo, radicalizao nacionalista, nfase na raa e na busca do seu espao justo etc.), a geopoltica provavelmente teria conhecido um destino diferente, seria to-somente mais uma das inmeras propostas malogradas para uma nova cincia (VESENTINI, 2000, p. 20).

    Haushofer esboa uma ordem mundial ideal, com quatro blocos continentais: a zona

    alem (Europa menos Rssia, a frica e o Oriente Mdio); a zona norte-americana (o continente

    americano); a zona russa (Rssia mais sul da sia); e a zona japonesa (Extremo Oriente, Sudeste

    Asitico e Oceania).

    Figura 4 O mundo segundo Haushofer.

    Fonte: Mello (1999, p. 81).

    Haushofer (1986) defendia ideias sobre a unidade geogrfica, tnica e civilizatria de uma

    comunidade humana, que permitiriam compreender os grandes choques geopolticos que

    contrapem Alemanha, Estados Unidos, Rssia e Japo. Essa ordem mundial uma adaptao das

    ideias de Mackinder aos interesses alemes, onde deveria constituir em torno da Grande Alemanha

    uma rea de domnio na Europa Central e Oriental:

    Para Haushofer, [...] a geopoltica uma reflexo sobre os aspectos espaciais da ao poltica. [...] Ela no demanda conhecimentos gerais e leis. Ela est destinada a

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 155

    formar os responsveis pela tomada de decises e a informar a opinio pblica dos problemas reais que conhecem os diferentes pases e das solues que se lhes pode propor (CLAVAL, 1994, p. 26).

    A Zeitschrift fr Geopolitik funciona como o grande frum de debates de todos aqueles que

    se apaixonam por essas questes. Hans Weigert (1943) chega a mencionar um Instituto de Munique,

    que nunca existiu de fato, tal a coerncia e a unicidade entre as ideias de Haushofer e dos

    colaboradores de sua revista:

    Haushofer e seu Instituto de Munique com seus mil cientistas, tcnicos e espies so quase desconhecidos do pblico, e at mesmo no III Reich. Porm, suas ideias, cartas geogrficas, mapas, estatsticas, informao e planos ditaram os movimentos de Hitler desde o comeo. [...]. O Instituto de Haushofer no mero instrumento a servio de Hitler. exatamente o contrrio. O Dr. Haushofer e seus homens dominam o pensamento de Hitler (THE READERS DIGEST, 1941, apud WEIGERT, 1943, p. 19-21 passim).

    Entretanto, a identificao das ideias de Haushofer com o expansionismo da Alemanha

    nazista algo controverso. No ps-guerra, criou-se uma verdadeira linha de pesquisa cujos

    trabalhos tentaram provar que Haushofer era o mentor intelectual de Hitler e co-autor da obra

    Minha luta.

    Para Azevedo (1955, p. 46), Haushofer um dos sustentculos da poltica expansionista de

    Adolf Hitler. J Mello (1999), afiana que h uma ascendncia da obra de Mackinder sobre

    Haushofer, mas no uma influncia de Haushofer sobre a poltica de Hitler.

    Claval (1994, p. 27-28), porm, parece mais sensato quando afirma que A geopoltica

    alem no se confunde com o nazismo. A reflexo geopoltica desenvolve-se antes que se comece a

    falar de Hitler. As posies estratgicas que defende a Zeitschrift fr Geopolitik tm a aprovao

    da maioria dos alemes.

    De fato, em Minha luta, Hitler (1962) assevera apenas que o inimigo mortal do povo alemo

    a Frana, no o poderio martimo britnico. Mello (1999, p. 87) cita, mesmo, as propostas de

    aproximao diplomtica feitas pelo III Reich Gr-Bretanha de W. Churchill: O projeto hitlerista

    de obteno de um espao vital alemo no Leste Europeu no s exclua a aliana com a Rssia

    como tornava inevitvel uma guerra sem quartel contra o Estado sovitico.

    Mas essa ao diplomtica alem era contrria s ideias haushoferianas, que tomam a Gr-

    Bretanha como o grande inimigo (o poder martimo), contra o qual devia se voltar uma coalizo

    entre Rssia, Japo e Alemanha, em uma aplicao germnica das proposies prtico-tericas de

    Mackinder.

    Para Vesentini (2000, p. 22), independentemente de um possvel elo entre as ideias de

    Haushofer e as aes de Hitler, isso tudo no apaga o teor expansionista da Geopolitik, que

    afirmava que a ordem mundial era injusta devido pouca presena da Alemanha, um candidato

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 156

    natural (pela engenhosidade da raa, que seria intelectualmente superior e destinada a

    comandar) a ser uma grande potncia mundial.

    O prprio Claval (1994, p. 28) apontara a cumplicidade entre a revista de Haushofer e o

    nazismo: A revista saudou a chegada ao poder dos nacionais socialistas e sustentou sem hesitao

    o regime hitleriano bem depois do incio da Segunda Guerra Mundial. Ela abriu suas colunas a

    gegrafos que defendiam posies racistas.

    Haushofer, todavia, pagaria um alto preo pela adeso poltica nacional-socialista: casado

    com uma judia, ele ter um filho morto pelos nazistas em 1944. Perseguido por eles aps a desero

    de Rudolf Hess, seu amigo pessoal, chega a ser internado em Dachau, segundo nos informa Meyer

    (1986):

    Porque elas se inscrevem no contexto de uma poca trgica, a vida e a obra de Karl Haushofer ilustram a imensa incompatibilidade entre o progresso geopoltico destinado a fundar uma Realpolitik impermevel aos desvios ideolgicos, e o avano hitleriano, produto de prejulgamentos ideolgicos do totalitarismo nazista. A geopoltica de Haushofer conduz certamente a uma viso conflituosa do mundo, mas ela permanece antes de tudo concreta, ou seja, no ideolgica e realista (CHAUPADRE, 2001, p. 38).

    A cartografia geopoltica da revista de geopoltica alem exemplificada na Figura 5, na

    qual avies e tropas estrangeiras do a impresso de um cerco Alemanha, de um pas prestes a ser

    invadido. Representaes como essa contribuem, em larga medida, para a formao da psicose do

    confinamento alemo, na expresso de Claval (1994). E, ainda,

    Assim pode-se questionar se as representaes geopolticas, construdas por Karl Haushofer e lanadas no contexto de um grande movimento patritico, antes de ser retomadas pelos nazistas no contriburam, em uma larga medida, para que o povo alemo em 1944-1945 se lanasse beira da tragdia (LACOSTE, 1993, p. 19).

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 157

    Figura 5: rea limite de ameaa por avies de pases vizinhos.

    Fonte: Vesentini (2000, p. 22).

    Para Chaupadre (2001, p. 35), Haushofer seria o principal discpulo de Ratzel e teria

    utilizado o instrumental terico-metodolgico deste para construir uma geopoltica destinada a

    libertar a Alemanha da posio subalterna que ocupa na cena internacional aps o Tratado de

    Versalhes, firmado em 28 de junho de 1919. Ela reafirmaria o sentimento de pertencimento dos

    alemes a uma comunidade civilizatria (o Deutschtum) e favoreceria a criao de um espao onde

    eles pudessem explorar livremente suas potencialidades (o Lebensraum), em uma viso pragmtica

    que rompe com o cientificismo que j domina o incio do sculo XX.

    A geopoltica de Haushofer pouco difere daquela de Mackinder, voltando-se para a

    constituio de um poder terrestre com vistas a suplantar a hegemonia do poder martimo da

    Inglaterra, algo indiferente para a poltica externa de Hitler. Apesar disso, essa problemtica alicera

    o debate sobre a prpria validade da geopoltica como ferramenta de (re)conhecimento do mundo:

    Geopoltico sob a Alemanha hitleriana, bem mais que geopoltico da Alemanha hitleriana, Haushofer contribuiu, no obstante, para desqualificar a geopoltica e torn-la infrequentvel, tanto que ela s reaparecer nos anos 1970, inicialmente nos Estados Unidos, na Frana a seguir (CHAUPADRE, 2001, p. 38).

    O fato que a pretensa associao dessa revista ao expansionismo nazista determina o

    banimento da geopoltica da vida intelectual europeia. Entretanto, ela retomada, nos Estados

    Unidos, por Nicholas John Spykman.

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 158

    Spykman e a Teoria da Conteno

    Nicholas Spykman, que nasce em Amsterdam, em 1893, morre nos Estados Unidos, em

    1943. Entre 1935 e 1940, dirige o Instituto de Estudos Internacionais da Universidade de Yale, e

    seria considerado um dos pais da escola geopoltica estadunidense. Para Spykman, essa representa o

    estudo prospectivo de uma poltica de segurana, qual so indissociveis as caractersticas da

    regio em que tal segurana era tensionada. Assim, trata-se, no de uma cincia para a guerra -

    como seria a de Haushofer - mas para a paz, uma paz tutelada, por certo, pelos Estados Unidos.

    Spykman deixa apenas dois livros: Americas Strategy in World Politics, publicado em 1942,

    e The Geography of the Peace, editado em 1944, apenas um ano aps sua morte. Entretanto, sua

    obra baliza o pensamento geoestratgico norte-americano da segunda metade do sculo XX ao

    incio do sculo seguinte.

    Spykman (1942, p. 18) afirmava que "the improvement of the relative power position

    becomes the primary objective of the internal and the external policy of states" relaciona o poder

    aos objetivos "geographic, demographic, racial, ethnic, economic, social and ideological in

    nature". O estudo das inter-relaes entre espao e poder visa antecipao e racionalizao da

    estratgia dos pases para alm de suas fronteiras nacionais.

    Modificando a tese central de Mackinder, Spykman afiana que, quem tem o poder mundial

    no quem controla diretamente o heartland, mas quem capaz de cerc-lo. Tal cerco tipifica a

    poltica externa estadunidense a partir da Guerra Fria e conhecido como Teoria da Conteno.

    Para Spykman, o heartland deve ser bloqueado em suas fmbrias, de modo a impedir a expanso do

    poder terrestre. Neste contexto, a Guerra Fria pode ser entendida como zona de atrito entre a teoria

    de Spykman e a de Mackinder.

    Para conter o poder do heartland criada, em 1949, a Organizao do Tratado do Atlntico

    Norte (OTAN), que ocupa as fmbrias do oeste da Eursia. Com o objetivo de constituir uma frente

    de oposio ao bloco socialista, a OTAN tem como membros fundadores: Blgica, Canad,

    Dinamarca, Estados Unidos, Frana, Islndia, Itlia, Luxemburgo, Noruega, Pases Baixos, Portugal

    e Reino Unido. J a Organizao do Tratado Central (OTCEN, 1955-1976), aliana militar fundada

    por Ir, Iraque, Paquisto, Turquia e Reino Unido, protegia o centro-sul da Eursia; enquanto a

    Organizao do Tratado do Sudeste da sia (OTASE, 1954-1977), estabelecida em Bangkok

    (Tailndia), e formada por Austrlia, Frana, Nova Zelndia, Paquisto, Filipinas, Tailndia, Gr-

    Bretanha e Estados Unidos, visava a bloquear os avanos comunistas no sudeste da sia. Essas

    organizaes militares usam partes das foras armadas de cada pas-membro para manobras

    militares conjuntas anuais: eis o urso do heartland acuado em seu ncleo.

    Jos Lus Fiori (2008) afirma que, os acordos de Bretton Woods e a formulao da doutrina

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 159

    Churchill-Truman, materializam a aliana estratgica anglo-americana como proposta por

    Spykman, de forma a gerir o mundo no ps-guerra. No bojo dessa geopoltica est a reconstruo e

    proteo da Alemanha pelos Estados Unidos no ps-guerra, com a finalidade de conteno da Unio

    Sovitica, bem como do Japo, para enfrentar a ameaa da China.

    Fiori (2008) chama a ateno para o grande espao que esse autor dedica luta pela

    Amrica do Sul. Spykman (1942) define o continente americano, do ponto de vista geopoltico,

    como primeira e ltima linha de defesa da hegemonia mundial dos Estados Unidos, e parte de uma

    separao radical entre as Amricas Anglo-Saxnica e Latina, cujo nome comum evocaria uma

    similitude entre as duas que efetivamente no existiria.

    Spykman divide o mundo latino em duas regies do ponto de vista da estratgia norte-

    americana no subcontinente: a Amrica Mediterrnea, que inclui Mxico, Amrica Central e

    Caribe, alm de Colmbia e Venezuela; e a Amrica do Sul ao sul da Colmbia e Venezuela. A

    primeira seria uma zona de inquestionvel supremacia dos Estados Unidos, posto que Mxico,

    Colmbia e Venezuela so incapazes de se transformar em grandes potncias e ficariam sempre

    numa posio de absoluta dependncia dos Estados Unidos.

    Destarte, qualquer ameaa hegemonia americana na Amrica Latina somente poderia vir

    de Argentina, Brasil ou Chile, a regio do ABC. Para Spykman (1942), esses pases latino-

    americanos sempre considerariam os Estados Unidos como o Colosso do Norte, um perigo cujo

    poder poderiam tentar contrabalanar por intermdio de uma ao comum ou do uso de influncias

    de fora do hemisfrio.

    Para impedir que a quebra de hegemonia se conformasse, os Estados Unidos, a partir da

    dcada de 1960, semearam ditaduras militares por toda a regio do ABC e alhures. Onde, de fato,

    em toda a Amrica Latina, apenas Cuba, a partir de 1959, coloca-se como entrave completa

    supremacia norte-americana na regio, crime para o qual no h perdo, como nos informa Fiori

    (2008, p. 4):

    No auge da crise econmica provocada pelo fim de suas relaes preferenciais com a economia sovitica, entre 1989 e 1993, os governos de George Bush e Bill Clinton tentaram um xeque-mate contra Cuba, proibindo as empresas transnacionais norte-americanas, instaladas no exterior, de negociarem com os cubanos e, depois, impondo penalidades s empresas estrangeiras que tivessem negcios com a ilha, atravs da Lei Helms-Burton, de 1996. Essa posio permanente dos Estados Unidos no autoriza grandes iluses, neste momento, de mudanas nos dois pases. Do ponto de vista americano, Cuba lhes pertence e est includa na sua zona de segurana. Por isto, o objetivo principal dos Estados Unidos, em qualquer negociao futura, ser sempre o de fragilizar e destruir o ncleo duro do poder cubano.

    Os Estados Unidos, ancorados na Teoria da Conteno de Spykman, atribuem-se direitos de

    interveno em caso de ameaa externa; de desordem econmica e de ameaa democracia.

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 160

    Para tanto, continuam a armar-se apesar da ameaa comunista o grande mote do

    contencionismo estadunidense - no mais existir, bem como o Pacto de Varsvia (1955-1991) que a

    sustentava. Entretanto, a OTAN continua em franco processo de expanso, no qual dos 12 membros

    iniciais, hoje tem quase 40.

    Assim, qualquer anlise criteriosa da poltica externa estadunidense no ltimo sculo

    desvela a atualidade e valor explicativo da obra de Spykman. Tal revival da geopoltica no ps-

    guerra no tem correspondente na Europa que a viu nascer.

    Yves Lacoste et la nouvelle gopolitique

    Pari passu, na Europa, rancor e desconfiana perpassam a histria da geopoltica no ps-

    guerra, estigmatizada pela associao poltica expansionista do nacional-socialismo. Jos William

    Vesentini (1992, p. 61) assim caracteriza essa geopoltica:

    Em resumo, a geopoltica o discurso, indissocivel de propostas de ao do poder poltico, que procura representar o ponto de vista de um Estado nacional sobre a construo do espao, tanto no nvel dos interesses desse Estado na ordem internacional como ao nvel dos arranjos espaciais no interior do pas. Ao assumir, por princpio, a perspectiva do Estado nacional e ao obliterar a diviso do social, considerando o Estado acima dos interesses particulares, esse discurso mostra-se como instrumento da dominao, como saber e tcnica de ao poltica apropriada ao exerccio do poder (via espao) dos grupos ou da classe que detm a hegemonia no conjunto do Estado.

    Uma nova perspectiva geopoltica surge em 1976 com o lanamento de La gographie, a

    sert, dabord, faire la guerre (A Geografia - isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra),

    por Yves Lacoste e com o lanamento da revista trimestral Hrodote, todos na Frana.

    Os primeiros nmeros da Hrodote atm-se s questes internacionais, mormente quelas

    envolvendo fronteiras e conflitos intertnicos, preocupaes clssicas da Geografia Poltica.

    Entretanto, a partir de Dautres gopolitiques (edio n. 25), afirma-se a geopoltica como

    instrumental adequado s lutas emancipatrias dos povos coloniais ou para a independncia

    regional.

    De incio, a revista de Lacoste mantm as preocupaes clssicas da Geografia Poltica, de

    resto inauguradas por Ratzel: as questes internacionais, mormente aquelas envolvendo fronteiras e

    conflitos intertnicos. Mas, ao contrrio da matriz estatista do pensamento ratzeliano, Lacoste

    (1993, p. 18-27 passim) assevera que h outras representaes geopolticas que desencadeiam

    mudanas nos territrios:

    O Estado-nao no mais a nica representao geopoltica e se sofre a concorrncia de outras representaes muito mais vastas e mais fludas ou ao contrrio mais restritas e mais precisas, mais elas tambm carregadas de valores. [...] As relaes poder-territrio no so mais somente obra de chefes de Estados e de

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 161

    seus conselheiros, mas tambm dos militantes que, por meio de movimentos locais ou de associaes, animam pequenos grupos de homens e mulheres, para a defesa do progresso, a salvaguarda do patrimnio ou o controle da populao de certos guetos que se proclamam autnomos.

    Nesse sentido, Lacoste (1976, p. 261) desvela que

    (...) o raciocnio geopoltico no por essncia, de direita ou de esquerda. um instrumento conceitual que permite apreender toda uma margem da realidade. Evidentemente, como o raciocnio histrico, ele utilizado por homens que no so espritos puros; eles tm, cada um, sua preferncia ideolgica e sustentam, mais ou menos conscientemente, certas causas. Sem dvida, os nazistas deram grande destaque geopoltica, por causa de uma certa argumentao geopoltica, mas eles utilizaram, da mesma forma, argumentos histricos ou biolgicos para fundamentar suas pretenses. No se desqualificou a histria ou a biologia por causa disso, mas proscreveu-se a geopoltica.

    A geopoltica relida num novo contexto de maior liberdade de expresso, o que significa

    entender o Estado no mais como nico poder a controlar o espao geogrfico, mas as rivalidades

    territoriais entre diferentes tipos de poderes, redesenhando esses territrios. A possibilidade de

    debater as disputas entre os Estados e aquelas internas ao territrio nacional modifica os territrios:

    Mostrar os recortes existentes entre o desenvolvimento da democracia e o aparecimento de fenmenos especificamente geopolticos no deve deixar crer que esses ltimos evoluem necessariamente como a opinio pblica americana durante a guerra do Vietn. Ao contrrio, rivalidades territoriais podem ser terrivelmente exacerbadas, se suas representaes - ao menos em um dos campos que se enfrentam - so construdas de forma particularmente impressionante e se, em um certo contexto poltico, elas so difundidas pelas mdias e pelos dirigentes de forma to forte e profunda no interior de um grupo ou de um povo que esse grupo ou esse povo as integre como valores supremos (LACOSTE, 1994, p. 19).

    Essa nova geopoltica se desenvolveu nos debates abertos aos cidados (por vezes

    propostos por eles) de uma cidade, regio ou de um Estado-nao acerca de problemas (ligados ao

    territrio de uma forma ou de outra) que afetam seu cotidiano, como lembra Vnia Vlach (1997,

    p. 762).

    O crescente respaldo das contribuies analticas dessa revista de geografia e de geopoltica

    faculta a abertura do programa de doutoramento em Geopoltica da Universidade de Paris VIII e a

    fundao do Centre de Recherches et d'Analyses Gopolitiques (CRAG), em 1989, a partir dos

    quais novas concepes se consolidam.

    Consideraes finais

    As geopolticas clssicas so muitas, havendo por certo ao menos uma para cada Estado

    imperialista. Os geopolticos clssicos, usualmente, desempenham o papel de conselheiros do

    prncipe, exercendo forte influncia sobre a poltica externa dos Estados centrais.

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 162

    Assim, as premissas de Mahan preparam os Estados Unidos para a conquista de Porto Rico e

    das Filipinas (1898), a instaurao do protetorado sobre Cuba e a abertura do canal do Panam

    (1914) que faculta a unio das frotas do Atlntico e do Pacfico.

    Mackinder consegue nas negociaes de paz da Primeira Guerra criar o cordo sanitrio

    para isolar Alemanha e Unio Sovitica, mas que termina no aps Segunda Guerra por se constituir

    em um caminho para a expanso da Unio Sovitica que, ultrapassando os novos Estados-tampes

    (Polnia, Tcheco- Eslovquia, Hungria, Iugoslvia, Bulgria e Romnia), agrega inclusive parte da

    Alemanha.

    Paradoxalmente, Haushofer, aquele que estigmatizou a geopoltica como arma do fascismo,

    foi quem exerceu menor influncia sobre a poltica externa de seu pas. O expansionismo nazista se

    d em clara oposio quilo que julgava mais conveniente para seu pas: unir-se Rssia para

    dominar o heartland e se opor ao poder martimo anglo-americano.

    Foram quatro geopolticos no-germnicos - Ratzel, Kjelln, Mahan, Mackinder que

    influenciaram o general alemo Karl Haushofer e os demais colaboradores da Zeitschrift fr

    Geopolitik. Essa revista, que perdurou por duas dcadas, abordou temas como o espao vital, o

    destino nacional diante da humanidade e a ordem mundial ideal. A (questionvel) associao dessa

    revista ao projeto expansionismo nazista determina o banimento da geopoltica da vida intelectual

    europeia, mas tal no a situao dos Estados Unidos, onde Nicholas Spykman, conquanto terico

    da Estratgia de Conteno, proporcionou uma nova baliza para a poltica externa daquele pas e

    que prossegue, de certa forma, at os dias atuais.

    J na Europa, durante os trinta anos dourados que se seguem Segunda Guerra, a

    geopoltica permaneceu nas trevas. apenas em meados da dcada de 1970 que resgatada por

    Yves Lacoste, desta vez como instrumental para o avano da democracia.

    Referncias

    AZEVEDO, Aroldo. Geografia a servio da poltica. In Boletim Paulista de Geografia. So Paulo, n. 21, out. 1955, p. 42-68.

    CHAUPRADE, Aymeric. Gopolitique: constantes et changements dans lhistoire. Paris: Ellipses, 2001.

    CLAVAL, Paul. Gopolitique et gostratgie: la pense politique, lespace et le territoire au XXe sicle. Paris: Nathan, 1994 (Col. Gographie).

    FIORI, Jos Lus. Sistema Mundial, Amrica do Sul, Brasil e Estados Unidos: seis pontos para uma breve discusso. Exposio realizada no Ciclo de Seminrios Polticas Pblicas em Debate em 28 de maio de 2008. Disponvel em: . Acesso em 20 set. 2010.

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.

  • 163

    HAUSHOFER, Karl. De la gopolitique. Traduo de Andr Meynier. Paris: Fayard, 1986.

    HITLER, Adolf. Minha luta. So Paulo: Mestre Jou, 1962.

    LACOSTE, Yves. Dictionnaire de gopolitique. Paris: Flammarion, 1993.

    ______. A Geografia - isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. 6. ed. Campinas: Papirus, 2002.

    MELLO, Leonel Itaussu. Quem tem medo da geopoltica? So Paulo: Edusp; Hucitec, 1999. (Col. Geografia: teoria e realidade, 45)

    MEYNIER, Andr. Karl Haushofer: une esquisse biographique (introduction). In De la gopolitique. Paris: Fayard, 1986. p. 43-93.

    MORAES, Antonio Carlos Robert (Org.). Ratzel. So Paulo: tica, 1990. (Col. Grandes cientistas sociais, 59)

    RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. So Paulo: tica, 1993.

    RATZEL, Friedrich. La gographie politique: les concepts fondamentaux. Paris: Fayard, 1987. (Col. Gopolitiques et stratgies)

    SPYKMAN, Nicholas John. Americas Strategy in World Politics. New York: Harcourt, Brace and Company, 1942.

    SPYKMAN, Nicholas John. The Geography of the Peace. New York: Harcourt, Brace and Company 1944.

    VESENTINI, Jos William. Novas geopolticas. So Paulo: Contexto, 2000.VLACH, Vania Rbia Farias. La formation d'un grand Etat et la construction de l'unit nationale du Brsil. 796 f. Tese (Doutorado em Geopoltica). Universidade de Paris VIII, Paris, 1997.

    WEIGERT, Hans. Geopoltica: generales y gegrafos. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1943.

    Revista de Geopoltica, Ponta Grossa - PR, v. 2, n 1, p. 146 163, jan./jun. 2011.