livro ria lemaire

44
Fonte de Informação e Conhecimento, Folclore ou Literatura? O Cordel como fenômeno multicultural Ria Lemaire

Upload: rafael-hofmeister-de-aguiar

Post on 19-Dec-2015

44 views

Category:

Documents


10 download

DESCRIPTION

livro

TRANSCRIPT

Page 1: Livro Ria Lemaire

1

Fonte de Informação e Conhecimento, Folclore

ou Literatura? •

O Cordel como fenômeno

multicultural

Ria Lemaire

Page 2: Livro Ria Lemaire
Page 3: Livro Ria Lemaire

Fonte de Informação e Conhecimento, Folclore

ou Literatura?

•O Cordel como

fenômeno multicultural

Ria Lemaire

Page 4: Livro Ria Lemaire
Page 5: Livro Ria Lemaire

5

Mestres da palavra ritmada, companheiros e testemunhas dos tempos, os poetas do mundo têm percorrido as estradas, os caminhos e as veredas que traçaram nele os seres humanos no decorrer do seu périplo através dos tempos. Nômades, muitas vezes cegos, videntes e visionários, como já foi Homero, eles le-vavam de uma comunidade para outra as palavras que diziam as novidades, as notícias, os conhecimentos, a filosofia, o saber e a sabedoria das civilizações da oralidade. Eles têm nomes que denotam a sua atividade de portadores de palavras: porte-parole em francês, woordvoerder em holandês, mouth-piece em inglês ou, nas línguas ibéricas, porta-voz, quer dizer: portadores de no-vidades, notícias e conhecimentos no seio de culturas, nas quais a única “tecnologia” que permitia transmitir o conhecimento era a da voz humana e nas quais, para o conhecimento existir, era indispensável um ajuntamento de ouvintes, uma comunidade de escuta, capaz de acolher e reconhecer a palavra do poeta, de a integrar ao saber da comunidade, de a divulgar, em seguida, em todas as ocasiões em que iam se apresentar. São as inúmeras vozes dos ouvintes que, por sua vez, vão recriar ao repeti-las, no seio das suas comunidades, as palavras do poeta do mundo, vão permitir que reviva, como presente, um passado comum, pro-jetado em direção a um futuro já presente, permitindo que se construa uma Tradição.

Para os conhecimentos das civilizações da oralidade se con-servarem, é indispensável eles se transformarem em conheci-mento comunitário, em tradição. Tradição, no sentido original da palavra, derivada do latim tradere que significa: transmitir, o que implica, num contexto oral, recriação, movência, repetição, evolução e reinvenção contínuas. Uma tradição/memória comu-nitária que é o produto daqueles ajuntamentos de ouvintes com os seus poetas, um produto que será sempre o mesmo e também

Page 6: Livro Ria Lemaire

6

cada vez outro, sendo que o poeta e o público estabelecem e de-finem juntos, durante a performance do poeta, a relação entre as novidades ocorridas, os novos conhecimentos trazidos e as inva-riantes e variantes da sua Tradição. Assim foi, naquela fase da hu-manidade, à qual Paul Zumthor deu o nome de oralidade primá-ria; fase em que a produção, a transmissão, a recepção, a repetição e a conservação do saber dependiam da voz humana, da palavra cantada ou declamada ritmicamente em verso; transmissão do conhecimento baseado em técnicas de improvisação e memori-zação que permitiam atualizá-lo de novo. Atualizar e reinventar, recriar uma tradição em movimento e evolução perpétuos.

Assim é que funcionam a transmissão e evolução dos conheci-mentos na cultura oral, em flagrante contradição com a definição que lhe atribui o discurso acadêmico convencional, scriptocên-trico, das ciências humanas e que os alunos dos cursos de Letras, até hoje em dia, aprendem a repetir: tesouro arcaico, primitivo, inculto e imutável, banalmente repetitivo e em vias de extinção. Essa significação e o discurso “científico” que a veicula foram in-ventados pelos inteletuais para criar uma dicotomia com fron-teiras intransponíveis, a saber: a que opõe o mundo inculto das tradições orais, locais e regionais – que é o mundo da cantoria e do folheto de cordel nordestinos -, ao mundo culto, erudito da cultura oficial, nacional, com o objetivo de sobressalientar a su-perioridade deste e do seu conhecimento livresco que ele trans-mite às novas gerações através do ensino formal moderno.

Colocar o folheto de cordel nordestino dentro de uma perspeti-va multicultural e historicizante, - como capítulo da história mun-dial das tecnologias da informação e da comunicação -, permitirá elaborar no Brasil do século XXI uma nova visão desse fenôme-no editorial que criaram os poetas-cantadores-violeiros, quando chegou em terras nordestinas, no final do século XIX, a tipografia com todas as suas novas possibilidades de produção, transmissão, recepção/divulgação e salvaguarda do conhecimento.

Page 7: Livro Ria Lemaire

7

I. Uma história de muitos séculos

Com a invenção de um novo alfabeto, na Antiguidade grega, no século IX a.C., a tecnologia da escrita adquiriu um suporte mara-vilhoso para a transmissão e conservação dos conhecimentos da oralidade. No mundo inteiro, no decorrer dos séculos, em épo-cas e contextos, às vezes, radicalmente diferentes, povos intro-duziram a nova tecnologia, aproveitando as suas possibilidades básicas e adaptando-as às suas condições – materiais geográfi-cas, sociais e culturais – do momento. O processo da introdução, cada vez mais, iniciará processos diferentes de invenção e rein-venção: de suportes materiais, de formatos, de estilos, de apli-cações e utilizações, de adaptações. A nova tecnologia – única – tornou-se ao mesmo tempo um fenômeno multicultural imen-samente diversificado, tanto na fase da sua introdução nas cultu-ras orais dos povos, quanto na longa evolução que percorrerá, em seguida, no seio de cada uma delas. Para poder fazer o estudo do folheto de cordel nordestino como fenômeno multicultural, é preciso conhecer a história da escrita moderna e da tipografia no continente onde elas foram inventadas: a escrita no século IX a.C. na Grécia, a tipografia em 1453, na Alemanha.

A invenção dessa nova escrita foi, claro, uma grande novida-de, mas não foi uma revolução (imediata, de choque, abrupta). Ela iniciou, na verdade, uma longa evolução nunca acabada, como o diz de maneira tão pertinente o título do livro de um dos maiores especialistas da Antiguidade grega, Eric Havelock: The Muse Learns to Write (1995), a musa – no decorrer de muitos séculos -, aprende aos poucos a escrever, quer dizer: a aproveitar todas as possibilidades da nova tecnologia. A escrita, como nova tecnologia, mudará lenta e progressivamente a cultura dos povos da oralidade e, ao mesmo tempo, – como instrumento do poder

Page 8: Livro Ria Lemaire

8

– ela iniciará e possibilitará profundas mudanças econômicas, sociais e políticas nas comunidades humanas que a introduzi-ram. A primeira “escrita” parece que foi encontrada na Mesopo-tâmia. Utilizada para registrar os bens acumulados pelos ricos da época nos seus armazéns, esses registros ilustram a função política que teve a escrita desde o início, sendo que, no referido caso, serve para registro e consequente fixação da desigualdade social entre ricos e pobres.

A história da introdução e divulgação da escrita na Europa me-dieval e, em seguida, a da invenção e divulgação da tipografia, a partir dos inícios dos tempos modernos, permite visualizar bem a lentidão e heterogeneidade da utilização dessas tecnologias e a diversidade das suas funções sociais, culturais, políticas e religio-sas. Ela mostra como novas tecnologias – cuja invenção é única e revolucionária – geram inúmeros processos de apropriação e adaptação, a curto, médio e longo termo; uma infinidade de fe-nômenos multiculturais – de usos e abusos – cujo conhecimento profundo é indispensável para compreender seus funcionamen-tos e funções. Redigir essa história dentro de uma perspetiva multicultural significa, - muito mais do que acumular e registrar fatos históricos revolucionários, apresentados como verdadeiros -, elaborar um registro infinitamente mais complexo (e mais ver-dadeiro) de processos e evoluções seculares, heterogêneos e di-versificados de uma região, de uma época para a outra.

Utilizada na primeira era medieval só para consignar textos em latim e como instrumento do poder público e eclesiástico contra os povos ainda ágrafos que falavam as suas línguas ver-náculas, a escrita começa a ser utilizada também para consignar textos em línguas vernáculas, por volta do ano mil, que marca, aproximadamente, o começo da segunda era medieval. Desde os primeiros textos conservados, em antigo alemão e francês, o uso da tecnologia da escrita associa-se ao poder político: trata-se de dois juramentos, pronunciados em 843, na cidade de Estrasbur-

Page 9: Livro Ria Lemaire

9

go (atual França), pelos herdeiros do Imperador Carlos Magno; dois irmãos que dividem o imenso império em duas áreas que da-rão globalmente, muito mais tarde, às atuais Alemanha e França.

Constatemos, desde já, que as palavras texto e escrever, não apresentavam naquele momento histórico, o sentido que elas têm hoje em dia para o leitor do século XXI. Trata-se de dois jura-mentos pronunciados solenemente em voz alta, ditados a alguém que sabia escrever que os “manuscreveu” ou “transcreveu”, guar-dados e copiados sob a forma de manuscrito para serem lidos so-lenemente, em voz alta em momentos futuros de crise política. O que é fundamental nesse processo, não é a palavra escrita, é a palavra falada, sagrada, declamada em voz alta, portadora da ver-dade, já o documento escrito só serve como guarda-memória.

Durante séculos ainda, o verbo ler significará: declamar ou cantar um texto ditado/escrito perante um público, antes de se tornar também, através de fases transitórias como ler em voz baixa ou com os lábios só, essa atividade silenciosa dos tempos modernos que não precisa mais da voz do ser humano, nem da boca como seu instrumento. Porém, até uma época muito re-cente, os povos da Europa, incluindo aquela parte da população que sabia ler, preferiam a leitura em voz alta, bem declamada, à leitura em silêncio.

A história do verbo escrever acompanha a evolução secular do verbo ler. Escrever, inicialmente, significa: transportar para o pa-pel a palavra cantada/declamada/ditada, manuscrever ou trans-crevê-la como suporte da memória oral, com o objetivo de poder atualizá-la mais tarde, independentemente da pessoa que, inicial-mente, a cantou, declamou ou ditou. Em todos os casos, esse ato de escrever pressupõe uma atividade mental – a da elaboração prévia, mental do texto antes de ele ser dito – diferente do ato da escrita moderna que é muito mais um compor-escrevendo.

Com a invenção da nova escrita na Grécia antiga, começa uma luta/concorrência/rivalidade secular (e até hoje nunca

Page 10: Livro Ria Lemaire

10

definitivamente concluída) entre a palavra dita, considerada verdadeira e sagrada nas comunidades tradicionais, e a nova pa-lavra escrita. Apresentada como mais verdadeira que a palavra dita, ela vem, trazida por uma nova tecnologia, monopolizada pela elite e instrumento do seu poder. No seu Preface to Plato (1963), Eric Havelock analisa aquele momento capital para a história da humanidade, a saber: o momento em que o filósofo Platão consigna por escrito e em prosa a sua filosofia, anti a arte da palavra verdadeira, dita, do diálogo. Platão apresentará a sua nova verdade/filosofia, escrita em prosa, como superior e como sendo a única verdade, acusando os poetas gregos e a sua visão de mundo cantada/declamada em linguagem rítmica (poesia) de mentirosos.

Muito mais tarde, já nos inícios dos tempos modernos, o documento escrito marcou, na França, a sua primeira grande vitória histórica com a Ordonnance de Moulins, ordenança (ou lei) promulgada pelo rei em 1566. Esta ordenança/lei mudou completamente o sistema judiciário da época, organizado até então em torno da testemunha oral e/ou auricular como prova última e principal, segundo o adágio medieval “témoins passent lettres” (o testemunho oral passa adiante o documento escrito). O rei Henrique III ordenou que a partir daquele momento o do-cumento escrito ia ser a prova última e concluinte, segundo o adágio “lettres passent témoins” (o documento escrito constitui prova mais pertinente que o testemunho oral). No entanto, até hoje, podemos constatar que a palavra escrita nunca conseguiu, nos processos jurídicos, eliminar completamente a palavra dita como garantia da verdade.

A rivalidade e concorrência entre a palavra oral e a palavra es-crita constituem um fenômeno multicultural por excelência: em muitos países do mundo, nos processos jurídicos, a palavra dita, o juramento dos testigos continua a ter, até hoje, a primazia – em vários níveis e em contextos que podem variar de um país para

Page 11: Livro Ria Lemaire

11

outro – sobre o documento escrito. Assim, em muitos contex-tos africanos, a palavra dita ainda é a única garantia da verdade, tanto na jurisdição quanto na vida econômica, onde a palavra de honra tem mais validade do que o contrato escrito e assinado, considerado um documento que pode “mentir”.

Escrever e ler têm uma história complexa, cujas etapas não são nem lineares, nem universais, nem da mesma cronologia de um país, de uma região, de uma cultura para outra, nem mesmo no seio de nossas comunidades humanas de hoje em dia. Só uma abordagem historicizante, interdisciplinar e multicultural, sutil, respeitosa da complexidade do fenômeno e que fuja às teoriza-ções rápidas e superficiais, permitirá compreender melhor as funções e funcionamentos das tecnologias da informação e co-municação; permitirá resolver mal-entendidos e conflitos, às ve-zes incompreensíveis, gerados continuamente em torno de nós, nos encontros e contatos com outras culturas.

Os poetas da oralidade medieval já utilizavam a tecnologia da escrita de duas maneiras. Como fonte de renda primeiramente: eles produziam (ou ditavam a alguém que sabia escrever) fo-lhas soltas e cadernos manuscritos que eram vendidos nas fei-ras, festas e praças públicas durante suas andanças pelo mundo. Também utilizavam manuscritos – cadernos – como suporte da memória, para registrar textos mais longos, - tais como textos épicos -, os chamados “manuscritos ou cadernos de jograis” que poetas e poetisas ambulantes levavam em suas bagagens ou, se eram também mascates, em suas maletas ou cestas. Tratava-se de cadernos/livrinhos pequenos, geralmente 11 x 16 cm (como os folhetos de cordel nordestinos), o pequeno formato se explica pelas condições e necessidades da vida nômade do vendedor: uma folha bem dobrada e não muito grande cabe e transporta--se melhor na maleta do mascate, na bagagem do jogral. Existem muitos exemplos dessa prática secular também no mundo latino--americano do século XIX. Lembremos que o mito fundador da

Page 12: Livro Ria Lemaire

12

Nação argentina, Martín Fierro, circulou durante muito tempo nb formato de folheto de cordel e que os dois manuscritos con-servados são os cadernos (11 x 15 cm) que o seu autor-payador, José Hernández, levava na mala quando percorria a Argentina.

A invenção da tipografia trouxe, por sua vez, novo capítulo de uma história secular. Desde o início, durante mais de um século e meio, até a chegada do jornal impresso, a utilização da nova tecnologia se instala em dois campos diferentes: havia o siste-ma editorial oficial, especializado em impressões de luxo, muito caras e que servia, sobretudo, para a impressão da Bíblia. Quem for estudar as listas de bens que acompanham os testamentos das grandes famílias da época pode constatar que, nos séculos XVII e XVIII, na Europa, muitas famílias que possuíam bens, só tinham um livro: a Bíblia.

A outra vertente é a da tipografia barata que, em princípio, não publicava inicialmente livros, mas que se tornara a editora das folhas soltas e dos cadernos dos poetas da oralidade. Eles utilizaram a nova tecnologia para poder ganhar mais dinheiro. As elites também, por sua vez, tornaram-se clientes do sistema editorial paralelo, através de folhas de encomenda. Contrata-vam, em situações de crise política, poetas de renome para fa-zerem versos e poemas que propagavam a ideologia política da elite, pagavam a produção dos folhetos e ao poeta para cantá-los nos lugares habituais de suas atuações. Assim ocorreu no início dos tempos modernos, durante as revoltas dos lavradores, das quais ficou uma riquíssima produção de folhetos, que recomen-da aos lavradores famintos e exaustos a paciência e a resignação.

Outro exemplo do êxito desse sistema editorial paralelo vem da Alemanha. Em 1517, o monge alemão Lutero, pendura na porta da igreja de Wittenberg, as 95 teses que denunciam os ví-cios da Igreja Católica: devassidão, libertinagem, abusos de po-der e, sobretudo, o enorme tráfico de indulgências. Publicadas em forma de folhas soltas, as teses, em quinze dias chegaram em

Page 13: Livro Ria Lemaire

13

todas as igrejas de língua alemã; em quinze dias se instalou o movimento da Reforma que ia mudar a cara da Europa.

Os nomes que recebem os novos impressos são os que já ti-nham a folha e o caderno manuscritos medievais; são os nomes do próprio suporte, a folha de papel: Blatt, blad, sheet, feuille e o caderno: Heft, schrift etc., aos quais acrescenta-se geralmente um adjetivo que sublinha a rapidez da divulgação desses pequenos impressos: volante, vlieg, Flug ... quer dizer: que “voa” de um lu-gar para o outro, velocidade comprovada no momento em que Lutero quis divulgar suas teses no mundo da época.

Mais tarde, as elites darão a esse fenômeno editorial o nome de literatura, no sentido original do termo: todas as palavras es-critas/impressas em papel barato e divulgadas por jograis e mas-cates, acresentando um complemento que indica geralmente a sua forma de comercialização: de colportage (na França), ou de cordel (na Península Ibérica).

II. Uma variante regional de um fenô-meno universal

Para poder iniciar uma primeira tentativa de abordagem com-paratista, historicizante e intercultural da cantoria e do folheto nordestino, contarei a história daquela parte da Europa onde foi inventada a tipografia, a saber, a área onde se falam línguas germânicas: uma região extensa que compreende a atual Alema-nha, Áustria, Holanda, e parte de países – hoje estados-nações – que se chamam Bélgica, Suíça, Luxemburgo, Itália ... O obje-tivo desta apresentação não é de provar mais uma vez, de outra maneira, as origens europeias do folheto nordestino, segundo a visão convencional da dependência na relação colonizador/

Page 14: Livro Ria Lemaire

14

colonizado que permeia até hoje, de vez em quando, o nosso pensamento. Pelo contrário: pretende-se oferecer, através da história de uma área cultural já bem estudada e documentada, os instrumentos para uma outra abordagem do folheto nordes-tino, não como uma simples imitação de um modelo alheio, mas como uma “invenção”, por apropriação inteligente, competente e original, pelos poetas da oralidade nordestina, das tecnologias que lhes ofereciam como agentes, atores e promotores culturais da sua comunidade.

1453-1650

O ponto de partida vai ser a palavra alemã, Zeitung, que é, hoje em dia, equivalente a jornal em português. A história da evo-lução desta palavra, desde suas origens indo-europeias, tidan* (que significava: o que acontece, novidade, notícia), até a sua significação atual (jornal, diário), permitirá em seguida uma comparação com aspetos típicos do folheto de cordel com o objetivo de propor um esboço de uma nova visão e história do folheto no seu contexto nordestino.

Zeitung, nas línguas germânicas da Idade Média significa notí-cia, e utiliza-se comumente com o adjetivo newe em: newe zeitung: novidade. Cantadas em verso, essas zeitungen (em português: ri-mances de cousas acontecidas) e newe zeitungen constituíam o repertório básico dos poetas nômades, homens e mulheres, cha-mados de Zeitungssinger e Zeitungssingerinnen: cantadores e can-tadoras de novidades e notícias, profissão antiga cuja memória se perde na noite dos tempos. Com a invenção do papel, que ocor-reu na Península Ibérica (século XI ou XII), esses profissionais da notícia – “jornalistas” avant la lettre -, começaram a utilizar o papel para produzir manuscritos, folhas soltas e cadernos, que contavam as notícias que eles transportavam, dobrados ou enro-

Page 15: Livro Ria Lemaire

15

lados, em seus cestos e maletas. Cantados “na voz de” melodias tradicionais, esses Flugblätter e Flugschrifte (folhas e cadernos volantes) eram vendidos ao público de várias maneiras: de mão em mão, da maleta do vendedor ambulante, da mesinha onde es-tavam expostos, expostos no chão ou pendurados numa corda. Pregados na parede das casas dos compradores, eles serviam para leituras/declamações ulteriores em voz alta.

Com a invenção da tipografia (1453), os poetas vão utilizar também essa nova tecnologia para gerar mais uma fonte de ren-da; mas o folheto manuscrito não desaparece. Quem não tinha dinheiro para a impressão, continuou durante séculos venden-do textos manuscritos. A primeira menção de uma folha volante impressa data de 1488; a mais antiga conservada até hoje é de 1492. Os documentos da época confirmam que elas constituem um objeto econômico, uma fonte de renda suplementar do poe-ta nômade que, muitas vezes, era também mascate. Um cônego suiço, Johann Jacob Wick (1522-1588) coleccionou a vida toda essas Flugblätter. Reunidas e publicadas agora em 23 volumes, elas impressionam pela variedade imensa de temas, motivos, gê-neros e áreas do conhecimento, trazendo uma autêntica enciclo-pédia da época.

Contrariamente à imagem de desorganização, pobreza, pri-mitivismo e analfabetismo que os universitários dos séculos XIX e XX divulgaram mais tarde, a qual eles chamaram de “literatu-ra popular”, dos seus poetas-produtores e dos leitores, tratava--se na realidade – e na verdade! – de uma imensa e riquíssima atividade editorial, com editoras especializadas, pontos fixos de comercialização e redes extensas de divulgação. O público era o da comunidade cultural inteira, em que todas as classes sociais, sem distinção, homens e mulheres, eram compradores e leitores assíduos de folhetos. Pregados nas paredes das casas, esses fo-lhetos e cadernos serviam para leituras em voz alta, declamados ritmicamente ou cantados na voz de uma melodia tradicional,

Page 16: Livro Ria Lemaire

16

estratégia mnemotécnica por excelência para o registro mental dos conhecimentos trazidos pelos folhetos. Contrariamente ao que o discurso universitário quer que as pessoas acreditem: fo-lheto é produto de gente analfabeta e pobre, miserável e inculta; na verdade, os povos das milhares de pequenas nações europeias liam, declamavam, cantavam muito e possuíam conhecimentos extensos e variadíssimos.

1650: nasce o jornal moderno

Essa situação vai mudar no início do século XVII, quando aparece (em 1609), na Alemanha, a primeira publicação periódica hebdo-madária sob forma de folha, uma vez dobrada e redigida em prosa; nasceu o jornal moderno, que recebe o nome de ... Zeitung, o que mostra a continuidade da função (dar informação, opinião, diver-timento e conhecimento) na percepção das pessoas. Só em 1650 vai sair o primeiro jornal diário, de novo na Alemanha.

E nasce uma nova divisão do trabalho jornalístico, muito pre-judicial aos poetas cantadores de novidades e notícias. Vendedo-res de folhas volantes, eles perderam progressivamente a parte mais lucrativa de sua atividade de informação e comentário jor-nalístico, a saber: a comunicação e venda da novidade. É o jornal que, graças a sua publicação diária, vai aos poucos monopolizar a novidade, contada em prosa, no mesmo dia, e com a pretensão de contar a simples e nua verdade! Os poetas, como estratégia de sobrevivência, concentrar-se-ão na notícia, cantada/contada em versos, com comentários, entretenimento e instrução moral em prosa. Apesar de o jornal se apropriar cada vez mais do espaço, no campo da informação e comunicação, o público preferirá du-rante muito tempo ainda, até finais do século XIX, a declamação da notícia em verso à sua leitura silenciosa em prosa.

Porém, lentamente, no decorrer dos séculos XVII-XVIII-XIX,

Page 17: Livro Ria Lemaire

17

instala-se a nova divisão do trabalho jornalístico e, com ela, uma mudança sub-reptícia mas radical – do poder da informação. Aos poucos, o noticiário europeu, divulgado tradicionalmente por porta-vozes do povo passa a ser palavra escrita para o povo. Nascem uma concorrência feroz e uma luta pelo poder da palavra entre, de um lado, o jornal em prosa que, ao divulgar a novidade, divulga também a visão do mundo e os valores das elites e, do outro lado, a voz do povo que, como estratégia de sobrevivência, especializa-se na notícia narrada e cada vez mais narrativizada e moralizadora. Ao transformar a novidade em notícia, os poetas selecionam aquelas novidades das quais o povo quer guardar na memória: mortos célebres, grandes catástrofes naturais, crimes espetaculares, guerras, escândulos, inventando continuamente novas estratégias de atualização e comercialização: aumentam, inventam pormenores, embelezam o texto, “cada conto podendo acrescentar um ponto” para vender melhor. Elementos e proces-sos de ficcionalização e estetização tomaram progressivamente mais espaço no campo da informação e comunicação em verso.

Tendo seu campo de ação cada vez mais restrito pela concor-rência e divulgação crescente do jornal, acuados e marginaliza-dos pelas perseguições e restrições impostas pelas autoridades políticas e religiosas, os poetas vão se especializar cada vez mais no sensacional, espetacular, sentimental e no que foi sempre um elemento forte da sua atuação – a performance em verso –; vão elaborar o aspecto da dramatização, teatralização da sua perfor-mance cada vez mais voltada para o espetacular.

Os Zeitungssinger, homens e mulheres, transformar-se-ão aos poucos, no decorrer dos séculos, em artistas-atores, chamados de Bänkelsänger, utilizando uma grande variedade de estraté-gias audiovisuais para vender seus produtos. Ficam de pé, num banco ou escabelo (Bänkel), exibem rolos de imagens pendura-dos, utilizam varinha para indicar no rolo as imagens que cor-respondem aos versos cantados, tocam instrumentos musicais,

Page 18: Livro Ria Lemaire

18

alternam verso e prosa. Para esse tipo de performance, o Zei-tungssinger nômade de outrora, precisa de ajuda; muitas vezes os Bänkelsänger eram casais; a mulher cantava e vendia os impres-sos; o homem indicava com a varinha as imagens corresponden-tes ao texto cantado e comentava, com voz solene e em prosa, os versos cantados pela mulher.

Assim, o texto cantado/declamado do jornalista-Zeitungs-singer, passa no decorrer dos séculos, de fonte de informação, opinião e conhecimento, de “jornal e enciclopédia do povo” a “literatura popular”, ao trabalho dos Bänkelsänger, sendo que ficção e estética que são os dois critérios que definem hoje em dia a literatura do cânone, tomam cada vez mais espaço na sua atuação. É essa a situação, na Europa, quando nasce, no fim do século XVIII, o Romantismo e que começa o grande movimento de reabilitação da voz do povo; é esta a fase – tardia – de sua evo-lução em que os folcloristas vão conhecer a voz do povo, já longe de suas origens e já afetada por séculos de concorrência com os produtos da escrita e da tipografia.

Porém, a Zeitung, nem no seu sentido original de novidade/notícia cantada, nem nos outros sentidos que o termo já teve no decorrer de sua longa evolução, nunca morreu. Ela até renasce atualmente nos quadros do processo político e cultural de re-re-gionalização pós-nacionalista, que leva os povos das pequenas nações de outrora a uma busca de suas raízes e à reabilitação e promoção das línguas e culturas regionais que os Estados-Na-ções tentaram em vão silenciar.

A história dos poetas da oralidade na área das línguas ger-mânicas é só uma das muitas histórias, talvez a que seja melhor documentada e estudada até agora, e com a qual começa a his-tória da folha e do caderno volantes impressos, mas em todas as áreas culturais da velha Europa, mais tarde da África, do Oriente, da América Latina, ocorreu essa transição da oralidade para a escrita e impressa, com, de um lado, invariantes universais, das

Page 19: Livro Ria Lemaire

19

quais o leitor atento do folheto nordestino já terá reconhecido al-gumas e, do outro lado, uma imensa variedade de “invenções” e “reinvenções” originais que mostram a inteligência, criatividade, competência e capacidade de adaptação e gestão, a imensa po-pularidade, daqueles poetas, homens e mulheres, que o discurso convencional, universitário, sobre a literatura popular em geral e sobre o cordel nordestino em particular, teima em apresentar como incultos, analfabetos, populares e atrasados.

III. O folheto no Brasil

Um fenômeno regional

Quando nasce, por volta de 1890, o folheto de cordel no Nordeste brasileiro, depois da introdução tardia de máquinas tipográficas na região, já existem formas de utilização das tecnologias da in-formação e da comunicação, tanto da escrita quanto da tipografia.

Existia, e existe até hoje no Nordeste, uma tradição riquís-sima de folhas soltas e cadernos manuscritos, nos quais desde sempre as pessoas consignavam poesias, peças de teatro e outros textos; os poetas nômades, no passado, as levavam e vendiam no decorrer de suas andanças em terras nordestinas; os comprado-res as pregavam nas paredes das suas casas ou as guardavam, por exemplo, em velhas caixas de charutos na gaveta de um armário.

Além dessa tradição escrita/manuscrita, existia no Nordes-te uma literatura impressa, importada, de folhetos portugueses que, desde 1810, eram também reproduzidos por tipografias e editores no próprio Brasil. Sílvio Romero, em Estudos sobre a poe-sia popular do Brazil, 1879-1880, publicado no Rio de Janeiro em 1888, apresenta esses folhetos da seguinte maneira:

Page 20: Livro Ria Lemaire

20

A litteratura ambulante e de cordel no Brazil é a mesma de Portugal. Os folhetos mais vulgares nos cordéis de nossos livreiros de rua, são: A Historia da donzella Theodora, A Imperatriz Porci-na, A Formosa Magalona, O Naufrágio de João de Calais, a que juntam-se Carlos Magno e os Doze pares de França, o Testamento do Gallo e da Gallinha, e agora bem modernamente, as Poesias do Pequeno Poeta João de SantAnna de Maria sobre a guerra do Paraguay. “Nas cidades principaes do império ainda vêem-se nas portas de alguns theatros, nas estações das estradas de ferro e noutros pontos, as livrarias de cordel. O povo do interior ainda lê muito as obras de que falamos ; mas a decadência por este lado é patente: os livros de cordel vão tendo menos extracção depois da grande inundação dos jornaes”.(p. 233-234)

Podemos constatar que, com a exceção do último título, todos os folhetos mencionados são da tradição europeia medieval e que se trata de folhetos que pertencem à fase final da história do folhe-to europeu, quando os poetas, para sobreviverem, concentram-se, cada vez mais, na dramatização de narrativas ficcionais, dentro das quais prevaleciam as velhas histórias da tradição oral medieval, uma das fontes da literatura de cordel ibérica. A comercialização dessa literatura era feita pelas livrarias de cordel, situadas nos pon-tos centrais das cidades do Norte, região que, como demonstrou Durval Muniz de Albuquerque Júnior no seu estudo A Invenção do Nordeste, só a partir dos anos vinte do século passado, - e por interesses políticos – passa a ser chamada de Nordeste.

Porém, o último título mencionado por Romero, Poesias do Pequeno Poeta João de SantAnna de Maria sobre a guerra do Para-guay, levanta uma pergunta intrigante: Será que já existiam, em 1888, folhetos autenticamente brasileiros, - aqueles folhetos de acontecidos que contavam as novidades e notícias da vida bra-sileira da época? É muito provável; é só lembrar que o primeiro folheto europeu é mencionado num documento de 1488, ao pas-so que o primeiro folheto conservado data de 1492, quatro anos

Page 21: Livro Ria Lemaire

21

mais tarde. Infelizmente, não dispomos de dados suficientes para provar a existência, desde 1888, do novo tipo de folheto de cordel – autenticamente brasileiro – que, segundo a história oficial, foi publicado em 1893 – cinco anos mais tarde – por Leandro Go-mes de Barros. Nasce com Leandro uma intensa atividade edi-torial que abrange grande parte do que se chama atualmente de Nordeste, com ramificações para os grandes centros econômicos do Brasil, atividade que até hoje em dia continua viva, ativa, in-tensa e já muito bem adaptada ao ritmo alucinante e possibilida-des ofertas pela novas tecnologias.

Um outro “cordel”: fonte de informação e de conhecimento

Quem for abrir grandes jornais do mundo de hoje, pode cons-tatar que eles oferecem uma gama riquíssima e cuidadosamente estruturada de temas, tópicos e áreas de conhecimento. As pri-meiras páginas, quase sempre dedicadas às notícias e novidades (conflitos, corrupção e escândulos políticos, desastres naturais, acidentes, falecimentos de pessoas importantes), seguem numa ordem bem estabelecida às páginas ou cadernos de desportes, economia, cultura, literatura, cinema, ciência, religião ...

Quem for visitar os grandes acervos de literatura de cordel nordestina no mundo: EUA, Japão, Suíça, França, Brasil ..., vai descobrir a mesma gama de temas, motivos e conhecimentos: folhetos “de acontecidos” sobre política, mortos célebres, cor-rupção, injustiça social, acidentes, crimes, desastres naturais, desporte, economia, cultura, folhetos com temas literários, re-ligiosos, folhetos de ciência etc. etc. Esses acervos demonstram com toda a pertinência que, como o jornal em prosa de hoje, o folheto de cordel em verso servia, no Nordeste, como fonte de informação e de conhecimento, veículo de transmissão e meio

Page 22: Livro Ria Lemaire

22

de divulgação desse conhecimento; o conjunto deles oferecen-do uma enciclopédia dos conhecimentos da época. Como diz o poeta J.F. Borges no começo do folheto A mulher vampiro:

Esse fato que cada acervo permite verificar, explica por que tan-tos poetas nordestinos, no decorrer dos anos, se autodenominam de repórter ou jornalista. Como os Zeitungssinger alemães na sua cultura, os poetas cantadores eram, na cultura nordestina ainda massivamante ágrafe, os porta-vozes dos conhecimentos, do sab-er e da sabedoria da comunidade nordestina, do povo no sentido original do termo, quer dizer: de todas as classes sociais, de tudo quanto constitui, como diria Patativa do Assaré: “a nossa vida, a nossa terra, a nossa gente”. Numa entrevista com Gilmar de Car-valho, publicada com o título Patativa, poeta pássaro do Assaré, o poeta sublinha explicitamente que esse povo-público para o qual o poeta canta e declama seus versos, ainda não tem o sentido depre-ciativo e marginalizante, político de hoje: “Eu sou o poeta do en-graxate, do chapeado, do ajudante de carro, do dono do carro e do doutor, quando ele me quer. Comigo não há distinção.”(2002:115).

Cada dia que se passaVem mais uma novidadeE o poeta aproveitaPela curiosidadeContar em verso para o públicoPor mato, vila e cidade.

Os jornalistas escrevemO mundo inteiro confiaToda comunicaçãoSe reúne nesse diaMais o jornal do NordesteÉ a voz da poesia (versos 1-12)

Page 23: Livro Ria Lemaire

23

Leitores, vou descreverUma página coloridaA vida da minha vidaPara o povo ouvir e ver (...)

E quem, depois da comparação do conteúdo dos acervos de folhetos de cordel com o do jornal atual, for visitar os grandes museus da Europa e ver os quadros dos grandes pintores dos séculos passados que mostram a atuação dos poetas-“jornalistas” da época, vai descobrir esse mesmo público bem diversificado – povo no sentido original de comunidade cultural – que Patativa convida para ouvir a sua poesia.

Como, ao ler os textos explicativos dos historiadores de arte, o visitante dos museus vai encontrar paralelos interculturais fasci-nantes, em todos os níveis da produção, transmissão e recepção, entre os folhetos nordestinos e os cadernos/livrinhos europeus. Esta primeira estrofe da Biografia do autor de José Costa Leite, por exemplo, que começa com uma invocação aos “leitores” que ainda não são os “leitores” da leitura silenciosa atual:

O quarto verso contém a expressão ouvir e ver que diz explicita-mente de que tipo de “leitura” se trata; o verso ecoa, como um tópico fixo, os versos seculares dos poetas da oralidade em tran-sição para a escrita: hören und sehen dos Zeitungssinger e Bän-kelsänger alemães, horen ende zien em holandês, hear and see em inglês, voir et oïr em francês ...

Resumindo, podemos concluir que, por volta do ano 1900 existiam no Nordeste dois tipos de folhetos-cadernos: 1. os velhos “cordéis” da tradição portuguesa, de diversos forma-tos, geralmente em prosa, que divulgavam no Brasil obras/histó-rias da última fase da arte dos poetas ambulantes europeus: a fase literária com temas tradicionalmente europeus. Esse cordel teve

Page 24: Livro Ria Lemaire

24

os seus pontos de venda – as livrarias de cordel – e é literatura de cordel no sentido ibérico da palavra. 2. o novo folheto da feira, em verso, formato único, inventado pe-los poetas regionais ambulantes, cantado/declamado e vendido por eles próprios; produto de sua transição da oralidade para o mundo da tipografia. Comparado às fases da história dos Zei-tungssinger alemães, ele pertence à primeira fase da transição: porta-voz das comunidades, pregoeiro de novidades e notícias, transmissor de conhecimentos e da sabedoria das comunidades. Os poetas nordestinos são agentes e atores econômicos e cultu-rais no coração de suas comunidades, ao apropriarem-se da tec-nologia para criar uma nova fonte de renda.

Porém, as diferenças também são grandes! Esses poetas can-tadores nordestinos se tornam também donos de editoras de fo-lhetos; organizando com muita inteligência e competência a sua produção e divulgação, ao criarem, ao lado das editoras oficiais (de livros e jornais), um sistema paralelo de editoras, de pontos de venda e de rotas extensas de distribuição e comercialização; sistema editorial perfeitamente adaptado ao contexto socio--econômico e cultural de sua região. Assim, eles conseguem controlar toda a cadeia de produção, transmissão e divulgação dos folhetos; são eles próprios que geram todas as etapas da vida do folheto, são eles que, apesar da chegada contemporânea dos jornais no Nordeste, saberam manter, durante muito tempo, o poder da informação divulgada pela voz do povo para o povo. Este simples exemplo mostra que uma abordagem historicizante como tentei esboçar na figura dos Zeitungssinger alemães, com-binada com uma perspectiva comparatista, multicultural, per-mite ver e estudar o folheto de cordel nordestino como um fe-nômeno ao mesmo tempo “universal” e tipicamente nordestino. Permite tornar consciente o fato de que a tese convencional das origens portuguesas do folheto nordestino faz parte de um dis-curso científico, acadêmico ainda, baseado na velha dicotomia

Page 25: Livro Ria Lemaire

25

colonizado-colonizador e no pressuposto da dependência e infe-rioridade do colonizado em relação ao colonizador.

Na verdade, quem for comparar essa história com a de muitas outras regiões, descobrirá que o Nordeste pode redigir um dos ca-pítulos mais ricos e interessantes, mais originais sobretudo, da his-tória das tecnologias da informação e da comunicação no mundo, ao contar a história de sua transição da oralidade para a escrita. Dentro dessa visão multicultural e historicizante, de repente, muda completamente aquela visão universitária convencional, dominante até hoje em dia nas universidades brasileiras, sobre o folheto e seus poetas, denominados no discurso oficial univer-sitário poetas populares (sempre incultos, toscos, pobres, coita-dinhos) e literatura popular ou para-literatura (invariavelmente inferior, atrasada e em vias de extinção); visão negativa, falsa, depreciativa e mutilante que não deveria mais existir no mundo globalizado do século XXI.

IV. Estudar cordel no século XIX e XX

Desde os pioneiros, tais como Silvio Romero, que introduziram no Brasil, em finais do século XIX, os estudos das tradições orais dos povos do Nordeste, os termos folheto, literatura de cordel, li-vro de cordel e livraria de cordel estão presentes no discurso cien-tífico. O modelo de pensamento e as teorias dos folcloristas eu-ropeus são, naquele momento, adotados por jovens estudiosos, descendentes das elites locais, vários deles formados pela Facul-dade de Direito de Recife, que era no Norte do Brasil, como diria Durval em A Invenção do Nordeste, o principal “desses locais des-tinados à formação superior, bacharelesca, das várias gerações destes filhos de abastados rurais” (1999:85). Eles são escritores,

Page 26: Livro Ria Lemaire

26

críticos e apaixonados pela cultura do povo e pelas teorias dos folcloristas europeus, dentre os quais os estudos de Teófilo Braga (1843-1924) ocupam um lugar de destaque.

Nasceu assim, no Nordeste, um discurso folclorista ambíguo, baseado num discurso teórico alheio, importado, que os folclo-ristas europeus tinham elaborado no século XIX como suporte ideológico do intensivo processo de formação dos estados-na-ções europeus. Naquele contexto altamente politizado, as tradi-ções orais dos povos europeus foram “teorizadas” e apropriadas política e ideologicamente, como sendo:

– a expressão da alma pura, autêntica do povo, alma genuína, primitiva, espontânea, ingênua;

– uma tradição anônima, coletiva, analfabeta;– um artefato sem história, nem evolução; – uma tradição sem futuro, quase morta, em vias de extinção,

a ser recolhida e salvaguardada com urgência. Esse discurso teórico foi elaborado na última fase da evolução das tradições orais europeias, - a da sua crescente ficcionalização e dramatização – em que elas já tinham uma história e evolu-ção marcadas por quase mil anos de convivência com a escrita e mais de 400 anos de convivência com a tipografia. Historica-mente fundado na realidade europeia, o discurso implantou-se no Nordeste, cujas tradições encontravam-se num contexto e fase evolutiva radicalmente diferentes. Ainda atuavam aí como porta-vozes da comunidade, os poetas nômades, “jornalistas do povo”, cantadores-contadores-violeiros-repentistas que tantos paralelos têm com os Zeitungssinger da tradição alemã da pri-meira fase da introdução da tipografia (1453-1650).

O discurso e as pesquisas dos folcloristas brasileiros vão ser afetados pelas ambiguidades e paradoxos causados pela con-frontação desse discurso teórico, com os resultados que suas pesquisas de campo no Nordeste lhes revelarão. A tarefa, ou me-lhor, a missão que o discurso folclorista europeu lhes impõe com

Page 27: Livro Ria Lemaire

27

muita convicção, eles vão cumpri-la com muito amor, dedicação e paixão: salvaguardar essas tradições, teoricamente “atrasadas e quase mortas”. Utilizarão os métodos de pesquisa baseados no pressuposto da urgência da sua missão: a recolha do maior nú-mero possível de textos, temas e motivos, da maior diversidade possível de variantes, a sua classificação, catalogação e divulga-ção, com o objetivo de salvaguardar um objeto de estudo teori-camente moribundo, atrasado, parado, pobre e inculto, e que na pesquisa de campo, muitas vezes, se averiguava ser muito vivo, riquíssimo e em movimento permanente, de uma força, popula-ridade e atualidade que não se podiam negar.

Trata-se de uma pesquisa de campo que é quase uma pesqui-sa “participante” e “de dentro”, sendo que esses folcloristas geral-mente trabalham na sua região, vivendo perto dos seus informan-tes, convivendo com eles, mas não como eles: são filhos da alta burguesia. Seus textos revelam o amor e a admiração, sempre am-bíguos, que ressentem esses pesquisadores apaixonados por seus “objetos” de pesquisa, aliando o apego ao sistema de valores (lin-guísticos, morais, políticos) de sua classe de origem, a burguesia, ao fascínio irreprimível pela voz “tosca e incorreta” do povo.

Resumimos os grandes pressupostos que dirigiam os traba-lhos dos eruditos folcloristas:

– o de uma criação a base coletiva: os textos, por serem tão antigos, são anônimos e, por terem sido orais e transmitidos oralmente, têm uma base comum: a memória e tradição de uma comunidade;

– o da continuidade histórica de oralidade e escrita: a base dos primeiros textos escritos ainda é a oralidade; é essa tradição que se perpetua nos séculos XIX-XX nas tradições orais dos povos, como o provam as recolhas e pesquisas de campo;

– o de que a edição e divulgação dos textos por eles registrados têm que respeitar essa realidade histórica, ao levar em conta, em estudos comparativos, todos os textos orais recolhidos, tanto em

Page 28: Livro Ria Lemaire

28

nível regional e nacional, quanto internacional; o que fundamenta a teoria das origens longínquas, indo-europeias dessas tradições; tese de Câmara Cascudo que supõe uma continuidade desde os poetas da Antiguidade grega até à poesia oral nordestina.

Desprezo e rejeição pelo mundo universitário

Contra o que trouxe a ciência dos folcloristas do século XIX: comparatismo, internacionalismo, pesquisa de campo, histori-cismo e regionalismo, o século XX será, no campo dos estudos de Letras, o século do nacionalismo e positivismo: de formalis-mo, estruturalismo, scripto-, andro- e eurocentrismos, fundados e legitimados pelo pressuposto da superioridade e universalida-de da ciência e civilização burguesas. O seu elitismo exacerbado caraterizar-se-á também pelo desprezo, desacreditação e ódio das tradições orais e populares e dos seus estudiosos, os folclo-ristas. Tão glorificadas no século XIX como puras, simples, au-tênticas, no novo discurso universitário positivista as tradições orais serão declaradas superstições grosseiras, incultas, crédu-las, atrasadas e indignas de serem estudadas na Academia. Essa nova “ordem do discurso” acadêmico, no sentido em que Michel Foucault introduziu o termo em A Ordem do Discurso (1970), propagará o desprezo dos detentores dessas línguas e culturas lo-cais e regionais, criando um monopólio para a cultura nacional, divulgada através do ensino formal. A nova “ordem do discurso” cria uma dicotomia radical entre cultura culta da elite e cultura inculta do povo, negando ao povo toda e qualquer capacidade crítica e criadora; as manifestações populares só seriam imita-ções, repetições, plágios de má qualidade da cultura erudita.Como na Europa, os folcloristas, a sua ciência e os seus estudos, no Brasil também, serão excluídos da vida acadêmica e dos estudos de Letras, História, Línguas e Literaturas nacionais que começaram a

Page 29: Livro Ria Lemaire

29

florescer nas universidades da Europa no final do século XIX. Os folcloristas, rejeitados dessas formações universitárias dos futuros professores do ensino secundário, continuaram o seu caminho longe da Academia, com seus próprios encontros, congressos, se-minários, publicações, editoras e revistas, dentre as quais a exce-lentíssima e altamente científica Fellows Folclore Communications que comemorou, em 2010, seus cem anos de existência.

Em 1947, um passo importante foi dado no Brasil com a criação da Comissão Nacional de Folclore, entidade governamental fede-ral, dedicada ao estudo e fomento do folclore, cuja coordenação nacional criou em seguida as comissões estaduais. Como em mui-tos países da Europa onde os estudos sobre o folclore estão até hoje excluídos da Universidade e financiados diretamente pelo minis-tério através de instituições como a Academia Real das Ciências, no Brasil também foi preciso criar uma instituição governamental para dar um lugar oficial aos estudos das culturas regionais.

Os motivos para a exclusão tão radical dos estudos universitá-rios parecem complexos e levantam, hoje em dia, questionamen-tos e críticas graves em relação aos interesses e abusos daqueles que agiam como detentoras da ciência oficial de Letras. Na ver-dade, o folclore era objeto de pesquisa de outro tipo de ciência, baseada na observação da realidade, na pesquisa de campo e não numa ciência unicamente livresca como o serão os estudos de Letras desde o momento da sua criação. Uma ciência com mé-todos de pesquisa diferentes e um foco diferente: contra a im-posição, pelo ensino universitário, da língua, literatura, história e cultura nacionais, ela continuava defendendo e ilustrando a especificidade das culturas, línguas e tradições regionais contra a imposição da cultura nacional como superior, única e verda-deira. Neste sentido, - o que parece o pior dos seus “defeitos” -, é que os folcloristas praticavam uma ciência que trazia continua-mente, num contexto político e científico profundamente nacio-nalista, novas provas de que as culturas regionais não estavam

Page 30: Livro Ria Lemaire

30

mortas, nem pobres, nem incultas. Será que houve também a rivalidade banal, como na época

de Platão, tão ciumento da atração que exerciam sobre o povo as vozes, a linguagem métrica, rítmica e a visão do mundo dos poetas? Ou será que essa ciência livresca que ia se impor como única e verdadeira através de um ensino formal nacionalmente organizado, desde a escola primária até à universidade, se sen-tia com mal-estar, ameaçada por essa voz do povo e a visão do mundo tão diferente que ela cantava? Essa voz do povo regional que podia, a qualquer momento, questionar a nova voz nacional, recém-criada, imposta de fora?

Seja como for, os folcloristas deixaram para a posteridade um magnífico tesouro cujo imenso valor, tão desprezado no século XX, teve um primeiro momento de reabilitação e reconhecimen-to desde o início do século XXI com a criação, em 2001, pela UNESCO, do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, o que implica uma reabilitação também daqueles eruditos que, durante todo o século anterior, ridicularizados e rejeitados, continuaram corajosamente suas pesquisas e atividades. O seu interesse e valor é reconhecido e aproveitado atualmente pelos movimentos cul-turais e políticos pós-nacionalistas dos povos das pequenas “na-ções” europeias de outrora. Num mundo cada vez mais globaliza-do, eles vão à procura de suas raízes, língua e história regionais, dentro de um movimento de re-regionalização cada vez mais po-deroso (Catalunha e Galiza na Espanha, Frisia na Holanda, País de Galles e Escócia na Inglaterra, Flandres na Bélgica etc.). Grandes cearenses, cujas obras conheci na biblioteca do Acervo Raymond Cantel da Universidade de Poitiers, contribuíram para a salvaguarda da voz do povo nordestino, um patrimônio da humanidade, desde o grande pioneiro José de Alencar que pu-blicou em 1874 O Nosso Cancioneiro, através do magnífico Can-cioneiro do Norte (1903) de Rodrigues de Carvalho, a atuação e publicações de Leonardo Mota, autor dos Cantadores (1921) e

Page 31: Livro Ria Lemaire

31

Violeiros do Norte (1925), passando por Gustavo Barroso com Ao som da viola (1921) e Trovadores e Cantadores de 1952, até Cantador, Musa e Viola (1973) de Eduardo Campos.

Não mencionei todos, nem todas as suas publicações, porque o propósito foi outro, a saber: através da seleção de grandes no-mes e alguns títulos mostrar que esses grandes folcloristas têm excelentes publicações sobre cantoria, a voz do povo, mas (ao menos no Acervo Cantel!) nenhuma sobre o folheto de cordel. Na verdade, poucos são os estudos dedicados pelos folcloristas da época ao folheto de cordel. Geralmente, eles respeitavam os quadros da tradição folclorista europeia, interessando-se princi-palmente pelas artes da própria voz, como o romanceiro, a can-toria e outras tradições orais como o conto em prosa, sendo que, no contexto europeu, o folheto e o caderno escritos pertence-riam à literatura da Idade Média, o folheto impresso à literatura do começo dos tempos modernos.

De folclore regional à literatura nacional

Nos anos 1960 e com a instalação da ditadura militar, o folclore torna-se instrumento político e ideológico no decorrer do pro-cesso político autoritário e violento de integração nacional que tem muitos paralelos com os processos e estratégias da forma-ção/integração nos Estados-Nações europeus do século XIX. Como na Europa do século XIX, no Brasil do século XX, as tra-dições locais e regionais, tão desprezadas e perseguidas pelas eli-tes do país, de repente vão conhecer uma fase de reabilitação, salvaguarda, recolha e resgate. As tradições populares vão ser glorificadas como expressões da alma pura da Nação, alma au-têntica do seu povo, genuína, primitiva, espontânea, ingênua. Tratar-se-ia no Brasil, como na Europa do século XIX, de uma tradição anônima, coletiva, analfabeta, atrasada, de um tesouro

Page 32: Livro Ria Lemaire

32

a- histórico, sem futuro, quase morto, em vias de extinção, uma tradição a ser recolhida e salvaguardada com urgência.

Levado para a frente por filhos das mesmas elites que a des-prezavam e perseguiam até aquele momento, o movimento de apropriação política, inteletual e universitária do folclore em ge-ral e do folheto de cordel em particular, - através da sua promo-ção como expressão da alma pura, autêntica do Brasil inteiro -, oferecerá ao Brasil o mito das origens do qual precisava a política de integração nacional.

À frente do movimento de apropriação nacional e nacionalista do folheto, da “literatura de cordel”, - a parte considerada “escrita” no conjunto do folclore material e oral – estará a Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) no Rio de Janeiro, cuja missão será a de reabi-litação, resgate, pesquisa, fomento e promoção nacional do folhe-to de cordel “nacionalizado”, como declara o presidente da FCRB, Thiers Martins Moreira, no prefácio do primeiro volume da An-tologia de folhetos de cordel, “esse riquíssimo fenômeno literário do nosso povo.” (1964:VII), confirmada, doze anos mais tarde, no segundo volume da Antologia pelo historiador paraibano Horácio de Almeida: “tudo que é popular há de ser nacional” (1976:12).

Essa instituição teve bem na fase inicial da ditadura, em 1966, seus estatutos, poderes e atribuições radicalmente modificados e ampliados a favor da nova missão nacional que lhe é confiada, no mesmo ano em que se funda o Conselho Federal de Cultura (1966-1990), cujo papel Renato Ortiz analisa em Cultura brasi-leira e identidade nacional (1998). Raymond Cantel, em 1973, numa comunicação apresentada ao Congresso Internacional de Filologia Portuguesa na UFF de Niterói, em que ele defende a necessidade de estudos universitários do cordel, resume bem os objetivos do governo federal: “a casa de Rui Barbosa que tudo designa para ser alma e coordenador da tarefa de preservação e divulgação da literatura popular em verso do Nordeste”.

Uma política editorial com etapas bem marcadas vai tentar

Page 33: Livro Ria Lemaire

33

impor um novo nome, literatura popular em verso, e uma nova visão – nacional – do folheto de cordel: a de ela ser uma literatura escrita. Publicam-se com o título de Literatura popular em ver-so, um Catálogo (1961) e o primeiro volume de uma Antologia em 1964. Com os Estudos (1973) e o segundo Catálogo (1976), o novo nome e discurso científico, elaborados lentamente a partir de 1960, instalam-se definitivamente nos anos 1970, nas publica-ções da FCRB e nas universidades que até esse momento tinham menosprezado e excluído da Academia o estudo do folheto. O livro-apostilha, Literatura de cordel, publicado em 1971, pela Es-cola de Comunicação e Artes da USP, é um dos primeiros sinais dos novos tempos que começaram para o folheto/literatura de cordel. Este livro-apostilha começa com a re-publicação da In-trodução programática que redigiu Cavalcanti Proença, colabo-rador da FCRB, para a Antologia de 1964.

A transformação – teórica – do folheto, fonte de informação da atualidade e de conhecimento regional, em “literatura nacio-nal” arcaica, constitui a base do discurso universitário. Para in-dicar os autores dos folhetos, privilegia-se o nome de trovador, uma palavra medieval. Trata-se de uma estratégia discursiva que permite, pela aproximação com a literatura da Idade Média europeia e com o tipo de poeta que era o trovador medieval, - membro da nobreza - sugerir a ideia de uma poesia antiga, de autoria exclusivamente masculina, com origens alheias e escri-tas, em vez de sublinhar a sua atualidade, a sua especificidade regional, a sua base oral, cantada.

O estudo da linguagem métrica, rítmica e rimada dos folhetos, os seus “desvios” da norma escrita oficial, não é feito sob a ótica da especificidade linguística regional, mas sob a do erro e do arcaís-mo: comparações pormenorizadas vão detectar as origens escritas desses “erros” modernos na obra dos grandes escritores portugue-ses de outrora: Camões, Gil Vicente, Bernardim Ribeiro ...

A tese das origens ibéricas reforça, neste sentido, a tendência de

Page 34: Livro Ria Lemaire

34

des-regionalizar, des-territorializar, des-atualizar/arcaizar e des--caracterizar o cordel, sendo que suas verdadeiras e “autênticas” raízes nem nordestinas serão mas portuguesas! Cria-se implicita-mente, no mesmo movimento, uma distinção ou separação (que se transformará no discurso universitário em abismo), entre a can-toria, ela reconhecidamente nordestina e com origens longínquas gregas orais, e o folheto diretamente português e escrito.

A proclamação da morte iminente do folheto faz parte in-tegrante do novo discurso acadêmico. Baseia-se teoricamente numa concepção, na época já ultrapassada e considerada obso-leta, da Tradição como imutável, arcaica e atrasada, quase morta, teoria mantida contra e apesar de todas as provas e evidências do contrário que forneciam aos ilustres pesquisadores universitá-rios as suas incursões em terras nordestinas.

Teoricamente, o pressuposto de que poesia é automaticamen-te literatura, ignora categoricamente os estudos linguísticos e an-tropólogos que provaram que o verso das tradições da oralidade é na verdade uma linguagem métrica, rítmica multifuncional e mnemotécnica, a linguagem por excelência das tradições orais. No caso do cordel, o termo de literatura traz um complemen-to de definição, sendo ela classificada como popular, quer dizer: para, infra, ou sub-literatura. O que parece reabilitação, na ver-dade, torna-se uma estratégia de exclusão do folheto de cordel do campo da Literatura do cânone, ao sublinhar implicitamente a inferioridade daquele, a superioridade desta.

Fomento da cultura popular tornou-se, nos quadros da pes-quisa acadêmica brasileira, o que já tinha sido em outros paí-ses, ou em outros momentos históricos, a saber: apropriação e mutilação pelos inteletuais. Na mesma época, em 1974, Michel de Certeau publica, na França, seu estudo La culture au pluriel que denuncia com pertinência esses processos e estratégias de apropriação perversa no campo dos estudos franceses da cultura popular francesa. Como na França, no Brasil: “Os estudos des-

Page 35: Livro Ria Lemaire

35

de então consagrados a essa literatura tornaram-se possíveis pelo gesto que a retira do povo e a reserva aos letrados e aos amadores”.

Longe do seu berço nordestino, salvaguardado, estudado e divulgado a partir da ex-capital e das grandes universidades do Sul, o folheto da feira tornou-se literatura popular em verso, sem história, sem evolução, sem raízes, sem vida, nem futuro. Deu--se no Brasil, com a apropriação do cordel pelos universitários, aquele processo de invenção do cordel, que Michel de Certeau, desde 1974, denunciou na Europa: os universitários brasileiros inventaram um discurso sobre o folheto e abordagens (literárias) que não nos ensinam o que é cultura popular, mas revelam o que os universitários querem que pensemos que seja cultura popular; um discurso que trai os interesses financeiros, políticos e outros, as ânsias, os preconceitos e desejos daqueles inteletuais. Trata-se de um discurso de poder, fundado em estereótipos que carica-turam o Nordeste, o folheto e os seus poetas. No Brasil, esse discurso estereotipado que Durval em A invenção do Nordeste carateriza como sendo o discurso sobre o Nordeste como região, tornou-se também o que os inteletuais criaram sobre o folheto de cordel como suporte da política de integração nacional levada para a frente pela ditadura : “um discurso assertivo, repetitivo, uma fala arrogante, uma linguagem que leva à estabilidade acrí-tica, fruto de uma voz segura e autossuficiente que se arroga o direito de dizer o que é o outro em poucas palavras.”(1999:30).

O mais chocante de tudo isso talvez seja o fato de a divulgação deste discurso acadêmico ter ocorrido, no Brasil, no momento em que no mundo acadêmico internacional viu que esses estereótipos já estavam ultrapassados ou, ao menos, radicalmente questiona-dos. Ao estudo já mencionado de Michel de Certeau corresponde um grande debate nos países anglófonos, onde tinha começado, desde os anos 1960, um grande debate interdisciplinar sobre o scriptocentrismo das ciências humanas em geral e das de Letras em particular, o orality-literacy debate, cujas repercussões já ti-

Page 36: Livro Ria Lemaire

36

nham chegado aos quatro cantos do mundo. Ao impor, no mesmo momento, no Brasil, um novo nome, literatura popular em verso, os peritos brasileiros ignoraram magistralmente os grandes deba-tes internacionais sobre as relações entre o mundo da oralidade e o da escrita, cujas teses lhes teriam permitido corrigir as teorias e práticas obsoletas e contra-produtivas que iam impor.

Perdeu-se, assim, nos anos 1970, uma chance excepcional: a de colocar a literatura popular brasileira no palco internacional como um dos capítulos mais interessantes e ricos da história das tecnologias da informação e da comunicação e da transição da oralidade para essas tecnologias, desde a escrita até as novas tec-nologias de hoje em dia. Só mais tarde, quando o debate já estava instalado e as grandes sínteses como a de Walter Ong em Orality and Literacy – the Technologizing of the Word (1982), publicadas, é que um estrangeiro, o medievista Paul Zumthor, tentara tardia-mente e sem sucesso, integrar o folheto de cordel brasileiro no debate internacional.

Podemos concluir que no Brasil, muito mais ainda do que os próprios folcloristas, cujo impacto negativo Durval sublinha na Invenção do Nordeste, no caso do folheto de cordel, foram os uni-versitários que se tornaram “os seus maiores inimigos e detrato-res, ao marginalizá-lo, impedindo a criatividade em seu interior, cobrando a sua permanência ao longo do tempo, o que significa reivindicar sua obsolescência.” (1999:91). Ou, com uma variante sobre o que Nestor Canclini escreveu, em Culturas híbridas, a res-peito dos estudos universitários sobre o povo, podemos afirmar para o folheto também que, a partir dos anos setenta, “o (povo) folheto de cordel será resgatado mas não conhecido.” (2000-210).

Com Canclini, podemos concluir que urge mais do que nunca antes “desfazer as operações científicas e políticas que levaram o popular à cena” (2000-206), sendo que elas determinam até hoje, na maioria das universidades brasileiras, a triste realidade dos estudos de cordel.

Page 37: Livro Ria Lemaire

37

V. Estudar cordel no século XXI

Podemos voltar, agora, à pergunta do título: Literatura, Folclore ou Fonte de Informação e Conhecimento?

No lugar da teoria convencional dos estudos universitários, a das origens escritas, portuguesas do folheto de cordel que apre-senta o folheto nordestino como uma imitação linear de um mo-delo escrito alheio e os seus poetas como seus meros imitadores – trazemos uma proposta diferente para os futuros estudos de cordel. Baseada no pressuposto de que, como se pode verificar em muitas outras partes do mundo, uma nova tecnologia da in-formação, uma vez introduzida, gera inúmeras possibilidades de aproveitamento e reinvenção, um estudo comparativo, mul-ticultural permitirá ver melhor a originalidade e a criatividade dos poetas cantadores nordestinos, reconhecê-los como agentes e atores econômicos e culturais de um fenômeno editorial que se baseia num aproveitamento original e inteligente das novas tec-nologias que se ofereciam a eles. Como outras poetas da oralida-de, em outras partes do mundo, eles foram agentes e atores cul-turais de primeira; poderemos passar do imaginário acadêmico convencional, o do pobre poeta “nordestinado” (Durval) ao do homem nordestino que definiu Euclides da Cunha: “O sertanejo é antes de tudo um forte.”

A proposta implica a desconstrução e o abandono do discur-so acadêmico nacionalista do século XX, como sendo obsoleto e contra produtivo no mundo globalizado do século XXI. Os seus pressupostos, - que são na verdade preconceitos - baseiam--se numa estrutura mental e discursiva dicotômica que cons-trói uma desigualdade radical entre seus dois polos: colonizado versus colonizador, oral versus escrita, povo versus elite, inculto versus culto regional versus nacional e assim por diante. Essa

Page 38: Livro Ria Lemaire

38

estrutura discursiva traz sempre implicitamente a noção da in-ferioridade daquele, da superioridade deste, como legitimação das práticas de marginalização e exclusão daqueles que são assim qualificados e desprezados como “outros”.

A noção de multiculturalidade, bem pelo contrário, pressupõe e impõe uma atitude – humana, social e científica – radicalmente diferente, a saber: a do respeito fundamental daqueles “Outros”, da vontade firme de tratá-los em pé de igualdade, da consciência de que a nossa educação mutilou a nossa capacidade de vê-los como eles são e de conviver com eles, com o respeito que eles têm. A noção de multiculturalidade impõe a necessidade de criar um novo discurso e novas formas de pesquisa científica, baseados na vontade de se encontrar com esses “outros”, até agora inferiori-zados e desprezados, de dialogar com eles num pé de igualdade e com uma vontade firme de aprender e crescer com eles.

Na nova abordagem – historicizante e multicultural – do fo-lheto de cordel nordestino, a tese de doutoramento de Márcia Abreu, Histórias de cordéis e folhetos, publicada em Campinas, em 1999, constitui a publicação que trouxe, já no limiar do sécu-lo XXI, essa visão radicalmente inovadora do folheto e de seus poetas, ao apresentar o folheto como produto de uma apropria-ção consciente e original, pelos poetas cantadores, da tecnologia da tipografia para a criação de uma nova fonte de renda. Vítima inicialmente de uma rejeição e exclusão violentas e agressivas da parte dos detentores do discurso acadêmico oficial sobre o fo-lheto de cordel, a tese é hoje em dia considerada como o estudo que marcou o começo da nova visão, mais científica, positiva e verdadeira do folheto e dos seus poetas-cantadores.

Dentro de uma perspectiva historicizante e multicultural, a primeira “operação científica” parece ser o “desfazer” do discur-so acadêmico baseado no termo de literatura. Associado, auto-maticamente, na sociedade e ciência atuais, aos dois termos que a definem na Teoria da Literatura: – ficção e estética –, o

Page 39: Livro Ria Lemaire

39

termo oblitera o que era o folheto originalmente e continua a ser até hoje: a voz do povo, de uma cultura, de uma comunidade; e oculta a possibilidade de ver e estudar a história e a evolução do fenômeno editorial do folheto como um processo permanente de novas inovações, adaptações e estratégias de informação, co-municação e venda.

E folclore? É esta a categoria de classificação que permite consultar nas bibliotecas do mundo um imenso tesouro de co-nhecimentos que os folcloristas reuniram e estudaram e para o qual, em 1848, eles introduziram o termo que naquela altura ain-da tinha um sentido radicalmente positivo: sabedoria do povo. Porém, hoje em dia, aprendemos a questionar as suas práticas, métodos e discurso, sendo que eles nos legaram, da voz do povo, uma representação que a transformou – idealizada e a-histórica – num tesouro do passado, morto ou em vias de extinção; como constata Durval em A Invenção do Nordeste, ao focar a obra do maior folclorista brasileiro:

Com a exceção do termo cosmopolita que parece um pouco fora do lugar, sendo que o século XX que perseguia com tanta violên-cia os folcloristas era profunda e mesquinhamente nacionalista, - o contrário de cosmopolita - podemos concordar com a análise de Durval que mostra bem a necessidade de estudar o folclore em ge-ral e o folheto em particular com outros pressupostos, não como um tesouro morto, mas como um patrimônio vivo da humanidade.

A obra de Luís Câmara Cascudo se destaca quanto a essa idealização do elemento popular. Câmara Cascudo, em seus trabalhos, adota a visão es-tética, museológica do elemento folclórico. Seus estudos, longe de fazer uma análise histórica ou sociológica do dado folclórico, se constituem em verdadeiras coletâneas de materiais referentes à sociedade rural, pa-triarcal e pré-capitalista do Nordeste, vendo o folclore como um elemen-to decisivo na defesa da autenticidade regional, contra os fluxos culturais cosmopolitas. (p. 91).

Page 40: Livro Ria Lemaire

40

E, sendo que, o ato de “dar nome”, - como nos ensinam a his-tória da invenção do (termo) Nordeste e a aplicação do termo literatura ao folheto -, é antes de mais nada um ato político, é pre-ciso questionar com muita precaução, no processo da descons-trução e reconstrução do discurso, o uso de termos que parecem objetivos e unívocos ao leitor do século XXI: literatura, popular, cordel, povo, tradição, invenção, simples, social... cuja utilização e interpretação superficiais podem, a qualquer momento, causar novos mal-entendidos.

Porém, com a circunspeção geral que se impõe na consulta do tesouro - ou banco de dados em termos mais modernos - dei-xado pelos folcloristas, poderemos, num certo sentido, retomar o foco regional, próprio do seu discurso, quer dizer: “re-regio-nalizar” o folheto, devolvê-lo depois de tantos anos de morte nacional, a sua vida regional. “Re-regionalizar” o folheto, como aqueles movimentos pós-nacionalistas da atualidade que no mundo cada vez mais globalizado do século XXI, estão voltando às suas raízes regionais e locais. Movimentos heterogêneos ainda dos povos das pequenas “nações” de outrora, à procura das suas origens linguísticas, culturais e sociais. Movimentos às vezes até transfronteiriços, tais como o da Eurorregião Galiza-Norte de Portugal que reaproxima os povos da antiga Aquém e Além Mi-nho na procura de suas raízes galego-portuguesas, das quais a literatura galego-portuguesa medieval, a da fase da transição da oralidade para a escrita no norte da Península Ibérica, guarda as reminiscências manuscritas.

A re-regionalização do folheto de cordel – historicizante e com uma visão multicultural – , como reação contra o discurso na-cionalista, esterotipado e caricatural que os universitários divul-gam sobre ele – permitiria compreender de um lado o que há de “universal” humano e tecnológico no fenômeno estudado e, do outro lado, podia atuar para que nasçam um novo conhecimento, respeito e admiração pela originalidade e força daquela cultura e

Page 41: Livro Ria Lemaire

41

expressão poética que são a fonte do folheto de cordel, podia con-tribuir para que se reinvente, mais uma vez, esse mundo fascinan-te que Patativa do Assaré, em Patativa, poeta pássaro do Assaré, evoca como “a nossa vida, a nossa terra, a nossa gente.”

Page 42: Livro Ria Lemaire
Page 43: Livro Ria Lemaire
Page 44: Livro Ria Lemaire