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FUNDAMENTOS DO DIREITO ELEITORAL BRASILEIRO

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  • FUNDAMENTOS DO DIREITO

    ELEITORAL BRASILEIRO

  • Edson Jos Travassos Vidigal

    FUNDAMENTOS DO DIREITO

    ELEITORAL BRASILEIRO

    Contribuies sua hermenutica e aplicao

    Penlopeeditora

  • Fundamentos do direito eleitoral brasileiroContribuies sua hermenutica e aplicaoEdson Jos Travassos Vidigal

    1 edio 2012

    Editor: Helton RibeiroPresidente do Conselho Editorial: Jos Rossini Corra do CoutoReviso de textos: Paulo SProjeto grfico, capa e diagramao: Vania Vieira

    Nenhuma parte desta publicao pode ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prvia autorizao da Penlope Editora. A reproduo de parte da obra para fins acadmicos ser autorizada, desde que haja prvia consulta Penlope Editora. A violao dos direitos autorais crime estabelecido na Lei n 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Cdigo Penal.

    Penlope Editorawww.penelopeeditora.com.br

    [email protected]

    Braslia DF2012

    Vidigal, Edson Jos Travassos.Fundamentos do direito eleitoral brasileiro: contribuies

    sua hermenutica e aplicao / Edson Jos Travassos Vidigal Braslia: Penlope Editora, 2012.

    224 p.

    ISBN: 978-85-65627-01-6

    1.Direito Eleitoral Brasileiro. 2.Poder Poltico. 3.Estado Moderno. 4.Estado Democrtico de Direito e Fundamentos. I.Ttulo.

    V653f

    CDD 341.28 CDU 342.8(81)

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

  • Ao Ministro Jos Nri da Silveira, arqutipo do homem pblico, exemplo de honestidade, retido, integrida-de de carter, dedicao e comprometimento cvico. Trabalhador incansvel que, por duas vezes presidente do Tribunal Superior Eleitoral, varou interminveis ma-drugadas no obstinado cumprimento do dever, prestan-do mais do que exigiria a sua cota de responsabilidade, contribuindo de maneira mpar para o desenvolvimen-to da Justia Eleitoral Brasileira. Dedico este humilde opsculo como tributo sua personalidade e gesto de agradecimento pela confiana em mim depositada, pela oportunidade de aprendizado no contato com sua expe-rincia, pelas manifestaes de reconhecimento diante do meu trabalho cumprido e, sobretudo, pela forma hu-mana e crist com a qual, sempre de sorriso no rosto, devotava indiscriminada gentileza e respeito a todos os de seu convvio.

    Dedicatria

  • Agradeo, neste espao, ao Dr. Cludio Alberto Gabriel Guimares, que, com raro respeito sincero e incontest-vel conhecimento da criminologia crtica, conseguiu a proeza de, tanto na graduao quanto na ps-graduao, fazer-me entender algo de Direito Penal.

    Ao Dr. Roberto Carvalho Veloso, pela grande con-tribuio que tem dado ao Direito Eleitoral Brasileiro, seja coordenando e ministrando cursos acadmicos na rea, seja com sua participao na comisso especial do Senado Federal criada a fim de examinar propostas para a reforma poltico-eleitoral, seja em sua atuao como magistrado da Justia Federal.

    Dra. Maria do Carmo, pelo primeiro convite que, h alguns anos, proporcionou a oportunidade de me ini-ciar na atividade docente superior.

    Aos meus alunos, que representam a recompensa do esforo.

    Aos Ministros Ilmar Galvo, Maurcio Correia (in memorian) e Nri da Silveira, pelos votos de confiana a mim concedidos, que me brindaram com a oportunida-de do aprendizado profissional proporcionado pela ex-posio s suas personalidades.

    Ao Ministro Walter Costa Porto, Herdoto da his-

    Agradecimentos

  • tria poltica brasileira, por sempre deixar ao alcance sua invejvel experincia, pelas agradveis aulas de Histria e pelos sbios e inestimveis conselhos polticos que sem-pre guiaram minha atuao profissional.

    Ao professor Dr. Alxis Vargas, que em suas aulas sobre princpios de direito eleitoral, ministradas na ps-graduao em direito eleitoral promovida pela Escola Superior de Advocacia da OAB-DF, brindou-me com a inspirao necessria para a presente investigao.

    Ao Dr. Claudismar Zupiroli, advogado veterano mi-litante da Justia Eleitoral, responsvel conselheiro da OAB-DF que no hesita em sacrificar seu tempo livre em prol dos ideais ticos da categoria, pela boa vontade em compartilhar sua experincia profissional advoca-tcia em suas concorridas aulas de Teoria e Prtica de Direito Eleitoral.

    A todos os colegas da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF, pelos agradveis momentos de convivncia durante muitos finais de semana regados a produtivos debates acadmicos, ricas trocas de experincias e apai-xonantes indignaes em busca da excelncia no Direito Eleitoral Brasileiro.

    Tambm a todos os colegas do curso de ps-gradu-ao em Direito Eleitoral da Universidade Federal do Maranho, com os quais aproveitei a boa companhia em vrios outros finais de semana imersos no plenrio do Tribunal Regional Eleitoral do Maranho, em meio a jul-gados, casos e causos.

    Ao Dr. Wagner Amorin Madoz, colega no estudo do direito, da filosofia, da histria, da cincia poltica, da msica, da eletrnica, da fsica especulativa, da episte-mologia, da astronomia, da cinofilia, da luthieria e de

  • tantos outros ramos do conhecimento que compem a investigao horizontal da existncia humana, pelas cr-ticas iniciais a este trabalho, fundamentais para o seu direcionamento, bem como pela inestimvel contribui-o que deu Justia Eleitoral Brasileira, principalmente quando acumulava as funes de Diretor Geral e Chefe de Gabinete da Presidncia do TSE.

    Aos Drs. Getlio Lopes, Maurcio Neves Filho, Tlio Arantes, Roberto Freitas Filho, Adilson de Lizio e Luiz Eduardo, pela insubstituvel oportunidade de retornar ao UniCeub, instituio onde, em 1996, iniciei meus estudos jurdicos, e que uma vez mais me acolheu de braos abertos.

    Aos Drs. Gustavo Rocha, Eliane Soares Vidigal, Henrique Pontes, Rodrigo Fernandes, Daniela Macedo, Carolina Ferreira, Selma Godoy, Rodrigo Mazoni, Clucio Nunes, Luciano Alves, Ricardo Oliveira, Vetuval Vasconcelos, Hendrik Rodrigues e Ana Cludia Bittar, pela compreenso em face de meus infinitos afazeres e pe-los agradveis momentos dirios no espao acadmico.

    Aos colegas do mestrado em Direito e Polticas Pblicas do UniCeub, e em especial ao Prof. Dr. Roberto Freitas, paradigma de luta pela conscientizao da meto-dologia na pesquisa jurdica.

    Ao Dr. Rossini Corra, pelo saber enciclopdico sem-pre presente, pela eloquncia e elegncia de suas palavras que acalentam as vicissitudes e descaminhos de nossa jornada acadmica.

    A toda a minha famlia, que sempre me suportou efetivamente, afetivamente, emocionalmente, financei-ramente, espiritualmente, materialmente... enfim, que sempre me suportou.

  • minha esposa Nsia e aos meus filhos lex e Marina, que me suportam ainda mais.

    Aos meus grandes amigos e incentivadores, Des. Marco Antnio Lemos e sua esposa, Eliane Cassas do Amaral Travassos Vidigal da Silva Lemos (minha me), que continuam me suportando (e acrescentando muito a meus trabalhos acadmicos). Esta obra no existiria sem vocs dois.

    Aos meus verdadeiros amigos, que tambm sempre me suportaram.

    A todos aqueles que, de uma forma ou de outra, ainda me suportam.

    A todos aqueles que no me suportam (o pluralismo democrtico e necessrio).

    E, especialmente, ao meu irmo Erick, que, mais do que me suportar, tem me proporcionado insubstituvel suporte.

  • Mas continuamos tratando das questes de direito como se ainda acreditssemos na soberania do Estado, pensan-do em termos de direito subjetivo, de direito real, de pes-soa jurdica ou de propriedade absoluta, assimilando as noes de direito e de lei. Essa defasagem entre teoria do direito e filosofia no deveria nos surpreender em dema-sia; ela constitui uma das constantes da histria do direito, fruto da rotina dos juristas, que, por no terem de cultivar eles mesmos a filosofia, geralmente s recebem seus ensi-namentos com atraso e por canais indiretos, deformam-nos e os endurecem, e nunca os obedecem to bem como quando deixaram de ser professados pelos filsofos.

    VILLEY, 2005, p. 174

    A legitimidade dos juzes no est assentada em sua ori-gem popular, em seu carter representativo, uma vez que existem sistemas institucionais que procuram o recru-tamento constitucional, legal, concursal e burocrtico da magistratura. A legitimidade dos mesmos deve ser orientada, ento, para o grau de adequao do compor-tamento judicial e os princpios e valores que a soberania nacional considera como fundamentais. Sua legitimida-de democrtica encontra-se assentada na exclusiva sujei-o dos juzes s leis emanadas da vontade popular.

    BARACHO, 1995, p. 27

    O problema da teleologia estatal voltou, nos ltimos anos, a prender o interesse do direito e da sociologia. A obra de

  • Marcel de la Bigne, LActivit tatique, prova de que se renovam esses estudos e de que o organismo jurdico das modernas doutrinas pragmatistas, assim como o mecani-cismo antiestatal de Marx, no sepultaram, em definiti-vo, qual fora de supor, esse captulo deveras fascinante da doutrina, j pelo ngulo jurdico, j pelo aspecto sociol-gico que o mesmo comporta. Nunca alcanar o pensador risc-lo da cincia jurdica enquanto o direito for tambm filosofia. E s-lo- sempre, pois quem haver de arredar do esprito humano essa ansiosa indagao da verdade, essa eterna insatisfao perante o ser e o dever ser, as for-mas realizadas e as formas no realizadas da vida?

    BONAVIDES, 1999, p. 17

    Mas as coisas que tem um fundamento no o so por um capricho; existem porque necessariamente devem existir. O fundamento a que correspondem no per-mite serem de outro modo.

    LASSALLE, 1995, p. 28

    Nem sempre deve-se esgotar [o assunto] a ponto de nada deixar a cargo do leitor. No se trata de fazer ler, mas de fazer pensar.

    MONSTEQUIEU, 1982, p. 210

  • Sumrio

    Apresentao, 15Prefcio, 19Nota do autor, 35

    Introduo, 41Princpios filosficos e princpios jurdicos, 41Fundamentos do direito, 49Roteiro da pesquisa, 52

    Paradigma moderno e direito poltico, 61Paradigma moderno, 65Contexto histrico, 65Caractersticas do paradigma moderno, 70

    O antropocentrismo, 72O imperativo da razo, 81

    Direito poltico moderno, 86

    Estado moderno, estado democrtico de direito e democracia representativa, 93

    Estado moderno, 94Estado democrtico de direito e democracia represen-tativa, 107 Estado democrtico de direito, 108 Democracia representativa, 112

    Direito eleitoral brasileiro, 125Objeto do direito eleitoral e bem jurdico por ele tutelado, 126Objeto do direito eleitoral, 127Natureza dos crimes eleitorais e seu objeto jurdico, 129

    Natureza dos crimes eleitorais, 129Objeto jurdico dos crimes eleitorais, 132

    Funo da justia eleitoral brasileira, 134

  • Fundamentos do direito eleitoral brasileiro, 137Do contratualismo, 139Da legitimidade, 146Do estado democrtico de direito, 150Da soberania popular, 156Da cidadania, 162Da dignidade da pessoa humana, 165Do pluralismo poltico e do pluripartidarismo, 176Da representao, 185Do sufrgio universal, 189Da candidatura, 202

    Consideraes finais, 207

    Bibliografia, 215

  • 15

    O antes constitui o problema crucial da Metafsica, em Martin Heidegger. Mas no apenas no polmico pen-sador, desde que o do mesmo modo se encontra pode-rosamente presente no livro Fundamentos do Direito Eleitoral Brasileiro. Contribuies sua hermenutica e aplicao, de autoria de Edson Jos Travassos Vidigal, que possui vnculo visceral com a tradio de inteligncia maranhense. Da o ao mesmo tempo dos Agradecimentos e das Dedicatrias, que se entrelaa com o igualmente do mais do que honroso Prefcio, subscrito pelo Ministro Walter Costa Porto e floresce no outra vez da narrativa do jovem filsofo e jurista.

    que o antes heideggeriano perpassa a reflexo ju-rdica arquitetada por Edson Jos Travassos Vidigal, que caminha em busca dos Fundamentos, ao discutir os problemas do Direito Eleitoral Brasileiro, desejo-so de estabelecer Contribuies sua hermenutica e aplicao. Da decomposio do titulo do provocante livro, sem dvida, nasce a compreenso profunda da sua proposta, ela mesma suportada em um antes, que o sustentculo filosfico da discusso jurdica em-preendida, em dilogo com a sociologia, a histria e a cincia poltica.

    ApresentaoUm ponto de mutao doutrinria no direito eleitoral brasileiro

  • 16

    A valiosa contribuio de Edson Jos Travassos Vidigal tem suporte nesta peculiar dimenso a filos-fica em si mesma capacitada a qualificar a percepo do fenmeno jurdico, iluminando-o e conduzindo-o ultrapassagem do limite a que foi levado pela est-ril argumentao positivista. Trata-se, agora, luz da emergncia de novos pensadores do Direito, de rein-vent-lo como problema, conceito, sentido e experin-cia, em perspectiva ps-positivista, do que expresso o livro Fundamentos do Direito Eleitoral Brasileiro. Contribuies sua hermenutica e aplicao.

    Eis a razo por que a reflexo vidigaliana caminha por paragens de horizonte aberto, na amplitude multi-focal do debate filosfico e jurdico, no qual a compre-enso do Direito, revigorada e renovada, cresce como se fosse no a janela, mas a paisagem. Tem-se, em con-sequncia da leitura do presente livro, a ntida consci-ncia de que chegou ao Direito Eleitoral no Brasil um estgio diferenciado, em que no mais ser possvel encerr-lo na camisa de fora de receiturios, mode-los, esquemas, formalidades e jurisprudncias. Como chamar de Direito a exposio sem nenhuma reflexo, com a preservao da tradio dos comentaristas, qua-se sempre a repetir, de maneira literal, o enunciado da norma positiva?

    Agora, em contrapartida, formando na legio dos descontentes na qual esteve inscrito o tambm fil-sofo e jurista Graa Aranha, maranhense integrante da Escola do Recife, discpulo de Tobias Barreto e com-panheiro de Joaquim Nabuco o jovem Edson Jos Travassos Vidigal qualifica o debate nos domnios do Direito Eleitoral no Brasil. De onde o filsofo e juris-

  • 17

    ta brindar o leitor com percucientes ponderaes so-bre Estado, Democracia, Representao, Soberania, Legitimidade e Cidadania, referenciando-as com a te-mtica do pronunciamento social e da tica do consen-timento, para tornar o livro Fundamentos do Direito Eleitoral Brasileiro. Contribuies sua hermenuti-ca e aplicao o suporte de novas e vindouras conquis-tas doutrinrias, que enriquecero a literatura filosfi-ca jurdica nacional.

    Rossini Corra

    Advogado em Braslia e Professor Universitrio. Filsofo do Direito, Rossini Corra Autor, entre outros, de Saber Direito Tratado de Filosofia Jurdica, Jusfilosofia de

    Deus, Teoria da Justia do Antigo Testamento, O Liberalismo no Brasil e de Crtica da Razo Legal.

    Pertence Academia Brasilense de Letras.

  • 19

    Prefcio

    Em um de seus primeiros artigos, publicado em maro de 1880, Capistrano de Abreu falava de uma classifica-o de inteligncias feita por Spencer, em uma dessas expanses humorsticas: havia uma primeira, a das ter-rvoras ou papa-terras, que subsistem unicamente de bisbilhotices, personalidades, anedotas e novelas sem valor que se excretam sem se incorporarem ao esprito, ou incorporando-se em dose mnima. Uma segunda, a das herbvoras, exigem leituras e estudos mais s-rios, porm acompanha-nos de outros que nada tm de nutritivo, e pesam sobre o sistema, sem lhe elevarem a estrutura nem avolumarem a massa. Finalmente, as terceiras, exigem uma alimentao altamente nutriti-va, concentrada e substancial: as experincias da fsica, as investigaes da economia, as anlises da psicologia, etc. So as carnveras.1

    Pode-se bem entender que as duas primeiras, mesmo com suas carncias e a dose mnima de nutritivos, trazem alguma contribuio para a feitura das grandes obras.

    1. Histria Ptria, publicado na Gazeta de Notcias, de 9 de maro de 1880. Abreu, J. Capistrano de Abreu, Ensaios e Estudos (Crtica e Histria) 3a Srie, Rio de Janeiro, Livraria Briguet, 1938, fls. 153-9.

  • 20

    Edson Jos Travassos Vidigal dessas inteligncias carnveras, e invertendo a classificao de Spencer, bem pode assegurar, com a orientao segura que impe, o melhoramento e a boa conduo de obras menores.

    Com o exame do Estado moderno, do Estado de Direito, da democracia representativa, ele busca, segundo suas palavras, a identificao e breve explanao terica de fundamentos do Direito Eleitoral Brasileiro. E o que produz um verdadeiro guia para os estudiosos e uma introduo para os leigos num campo o dos estudos eleitorais que mais merece a censura de Capistrano:

    [...] a histria do Brasil d a ideia de uma casa edifi-cada na areia. uma pessoa encostar-se numa parede, por mais reforada que parea, e l vem abaixo toda a grampiola.2

    Para exemplo disso, basta que se abordem trs pontos: o modo como, na reforma poltica que tanto se anuncia, se esquece o quanto o voto majoritrio paras as assembleias j apenou, no passado, as parcelas menores de opinio; a no compreenso, no s pelo eleitor comum, mas mes-mo pelo eleitor culto, do modelo de eleio proporcional que adotamos; e a discusso que envolveu o que se de-nominou de fidelidade partidria, sem que a doutrina esclarecesse a lgica que infundiu a reforma, em 1935, de nosso sistema proporcional.

    2. Abreu, J. Capistrano de, carta de 17 de maio de 1920 a Joo Lucio de Aze-vedo, Correspondncia de Capistrano de Abreu, Rio de Janeiro: MEC-Instituto Nacional do Livro, 1954, p. 161.

  • 21

    II. Segundo o art. 1 de nossa Constituio, entre os fun-damentos de nosso Estado democrtico, est:

    - o pluralismo poltico.

    Poucas expresses, em nosso jargo poltico, so to ricas e instigantes. Edson Vidigal a v como adotada por nossa Constituio como qualidade de nossa sociedade essencial ao Estado democrtico.

    O que significa? O triunfo da diversidade, o acata-mento de todas as parcelas de opinio, o resguardo das minorias.

    Curioso ver que, quando se adotou, no Brasil, em 1855, o voto majoritrio para as assembleias que pas-sou, ento, a se denominar, aqui, de voto distrital o ento presidente do Conselho de Ministros, Honorio Hermeto Carneiro Leo, o Marqus do Paran, tinha em vista abrir espao s minorias nas assembleias e pr fim s to deploradas cmaras unnimes. Hoje, com a mais larga experincia dos diversos sistemas de apurao, se v como o voto distrital, com a brutalidade que Duverger enxergaria nele, desatende as parcelas menores de opinio.3

    Mas o que Paran tinha em vista era, em verdade, o atendimento s minorias localizadas.

    Em nossa primeira constituio republicana, houve uma preocupao inicial quanto s minorias. Pelo art. 28 da Carta aprovada em 24 de fevereiro de 1891, dispunha-se, com respeito eleio de deputados, que seria garan-tida a representao da minoria.

    3. Duverger, Maurice, Sociologia Poltica, Rio de Janeiro: Forense, 1966, p. 378.

  • 22

    A redao, como esclareceu Joo Barbalho, foi equi-vocada. Disse ele:

    Das minorias (e no da minoria), com mais proprieda-de e acerto dizia a emenda aditiva de que resultou esta clusula final do art. 28.4

    Mas, naquela 1a Repblica, de nada adiantou esse cui-dado. Primeiro, pelo vcio que enodoou as eleies no perodo. Basta lembrar as palavras de Assis Brasil em seu manifesto de 1925, em Montevidu:

    Ningum tem certeza de ser alistado eleitor;Ningum tem certeza de votar, se porventura for alis-tado;Ningum tem certeza de que lhe contem o voto, se por-ventura votou;Ningum tem certeza de que esse voto, mesmo depois de contado, seja respeitado, na apurao da apurao, no chamado terceiro escrutnio, que arbitrrio e des-caradamente exercido pelo dspota substantivo, ou pe-los dspotas adjetivos, conforme o caso for da represen-tao nacional ou das locais.5

    E, depois, pelo prprio sistema eleitoral empregado, o majoritrio nas eleies para o Congresso, aqui deno-minado sempre voto distrital. Cabe lembrar a queixa, no final do sculo XIX, do grande liberal ingls Walter

    4. Barbalho, Joo, Comentrios Constituio de 1891, in Roure, Agenor, A Constituinte Republicana, Brasilia; Senado Federal, 1979, p. 256.5. Brossard, Paulo, org., in Ideias Polticas de Assis Brasil, Braslia: Senado Federal/Fundao Casa de Rui Barbosa/Minc, Rio de Janeiro, 1989, p. 277.

  • 23

    Bagehot quanto ao fato de que nos distritos da Gr-Bretanha os votos da minoria eram desprezados. Na ci-dade de Londres, dizia ele, h muitos tories, mas todos os representantes so whigs. Cada tory londrino, ento, , por lei ou por princpio, no representado. Sua cidade envia ao Parlamento no aquele congressista que deseja-va ter, mas o representante que ele desejaria no ter.

    E completava:

    Em muitos distritos hoje existentes, a cassao de vo-tos da minoria sem esperana e crnica. Eu mesmo tenho votado em um condado agrcola por vinte anos e sou um liberal; mas dois tories tm sido sempre eleitos e durante toda a minha vida sero eleitos. Como as coisas esto, meu voto intil.6

    Essa cassao de votos das minorias, em nossa 1 Repblica, muito mais em razo da fraude generalizada, termina, a partir de 1930, com o saneamento das eleies, com a entrega do exame dos pleitos, no fundo e na for-ma, a uma Justia especializada e, tambm, com a adoo do sistema proporcional nas eleies para o Legislativo.

    Quando so tantas as propostas, no Congresso, de re-torno a esse sistema distrital, ningum recorda os setenta e sete anos de crculos e distritos entre ns, com os me-canismos que se revelaram tentativas frustradas de cor-rigir a desateno s minorias: o voto limitado, pregado por Jos de Alencar e vigente a partir de 1875 e, depois, com a Lei Rosa e Silva, de 1904. E, tambm, nesta, o voto cumulativo.

    6. Bagehot, Walter, The English Constitution, 1867, 134.

  • 24

    III. Chefe do Governo Provisrio, Getlio Vargas, criara, por Decreto de 1932, vrias subcomisses para o estudo e proposio de reforma de leis. A um desses grupos se deu a tarefa de estudar e sugerir a reforma da legislao eleitoral.

    Integrada por Assis Brasil, Joo da Rocha Cabral e Mrio Pinto Serva, a subcomisso elaborou dois ante-projetos, um deles envolvendo o alistamento, outro o processo eleitoral. Os textos foram reunidos por comis-so revisora, presidida pelo ento Ministro da Justia, Maurcio Cardoso, da resultando o primeiro de nossos Cdigos eleitorais, aprovado pelo Decreto no 21.076, de 24 de fevereiro de 1932.

    Para a eleio dos deputados, dispunha o Cdigo, far-se-ia a votao em uma cdula, encimada ou no de le-genda e nela estariam impressos ou datilografados, um em cada linha, os nomes dos candidatos, em nmero que no excedesse aos dos elegendos mais um, reputando-se no escritos os excedentes.

    Considerar-se-iam eleitos, no que se denominou primeiro turno (turno de apurao, no de votao), os candidatos que obtivessem o quociente eleitoral; es-tariam eleitos, em segundo turno, os outros candidatos mais votados, at serem preenchidos os lugares que no o fossem no primeiro turno.

    Embora se afirmasse ter o Cdigo de 1932 institudo a representao proporcional, trouxera ele um sistema misto, proporcional no primeiro turno e majoritrio no segundo. O prprio Assis Brasil o reconhecia, ao in-sistir que, no segundo turno, que propunha, os candi-datos da maioria sero os nicos favorecidos.

    A resposta de outro de seus autores, Joo da Rocha

  • 25

    Cabral, foi que, na mesma cdula, reuniam-se as van-tagens da votao uninominal e em lista, da apurao por quociente, no primeiro caso, ou turno, e da maio-ria relativa, no segundo. Este corresponderia, como dito anteriormente, ao direito da maioria governar, em rela-tiva paz, dispondo de bastantes vozes, no parlamento. Aquele, ao das minorias, direito sacrossanto, de fisca-lizao do governo e colaborao nos atos legislativos.7

    Antes mesmo de realizadas as eleies de outubro de 1934 para a renovao da Cmara dos Deputados, comeou-se a discutir a reforma do Cdigo. Um dos pontos mais graves denunciados foi a demora no pro-cesso de apurao das eleies e julgamento dos recursos eleitorais. O presidente Vargas, em mensagem dirigida ao Poder Legislativo, em maio de 1935, afirmava: Basta dizer que, em sete meses, de outubro de 1934 a maio de 1935, est ainda por findar o processo das eleies gerais8. E em discurso de julho de 1935, queixava-se, no Congresso, o deputado Dorval Melchiades: [...] agora, nove meses depois das eleies de 14 de outubro, ainda no so conhecidos os seus resultados no Estado do Rio de Janeiro.9

    E deveria ser afastada a utilizao do mecanismo ma-joritrio, pois a nova Constituio, aprovada em julho de 1934, determinava, pelo seu art. 23: A Cmara de Deputados compe-se de representantes do povo, eleitos mediante sistema proporcional [...]

    7. Cabral, Joo da Rocha, Cdigo Eleitoral da Repblica dos Estados Unidos do Brasil, 3a ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1934, p. 104.8. In Anais, 1935, v. 1, p. 49.9. In Anais, 1935, v. 8, p. 406.

  • 26

    A alterao, conduzida por Comisso Especial de Reforma do Cdigo Eleitoral da qual participaram, en-tre outros, Homero Pires, Nereu Ramos e na qual tambm trabalhou o consultor tcnico do Ministrio da Justia, Sampaio Dria resultou em profunda modificao ao novo sistema de representao proporcional.

    Segundo a nova Lei, de no 48, de 4 de maio de 1935, far-se-ia a votao em uma cdula s, contendo apenas um nome, ou legenda e qualquer dos nomes da lista re-gistrada sob a mesma.

    E alcanava-se, tambm, sua maior originalidade, pe-rante o sistema proporcional dos outros pases: a escolha uninominal, pelo eleitor, com base em uma lista apresen-tada pelas organizaes partidrias.

    Tal peculiaridade foi pouco examinada pelos nos-sos analistas. E, curiosamente, foi um estrangeiro o primeiro a dar-lhe ateno: Jean Blondel, nascido em Toulon, Frana, professor das universidades inglesas de Manchester e Essex, e autor, entre outros livros, de Introduction to Comparative Governement, Thinking Politicaly e Voters, Parties and Leaders. Em introduo a uma pesquisa que realizou, em 1957, no Estado da Paraba, escreveu Blondel:

    A lei eleitoral brasileira original e merece seja des-crita minuciosamente. , com efeito, uma mistura de escrutnio uninominal e de representao proporcio-nal, da qual h poucos exemplos atravs do mundo [...] Quanto aos postos do Executivo [...] sempre utilizado o sistema majoritrio simples [...] Mas, para a Cmara Federal, para as Cmaras dos Estados e para as Cmaras Municipais, o sistema muito mais complexo. O prin-

  • 27

    cpio de base que cada eleitor vote somente num can-didato, mesmo que a circunscrio comporte vrios postos a prover; no se vota nunca por lista. Nisto o sis-tema uninominal. No entanto, ao mesmo tempo cada partido apresenta vrios candidatos, tantos quantos so os lugares de deputados, em geral, menos se estes so pequenos partidos. De algum modo, os candidatos de um mesmo partido esto relacionados, pois a diviso de cadeiras se faz por representao proporcional, pelo nmero de votos obtidos por todos os candidatos de um mesmo partido [...] Votando num candidato, de fato o eleitor indica, de uma vez, uma preferncia e um partido. Seu voto parece dizer: Desejo ser repre-sentado por um tal partido e mais especialmente pelo Sr. Fulano. Se este no for eleito, ou for de sobra, que disso aproveite todo o partido. O sistema , pois, uma forma de voto preferencial, mas condies tcnicas so tais que este modo de escrutnio uma grande melhora sobre o sistema preferencial tal qual existe em Frana.10

    Cabe a estranheza quanto sua afirmao sobre essa mistura de escrutnio uninominal e de representao proporcional, da qual h poucos exemplos atravs do mundo. Ele no aponta qualquer desses exemplos. E, em verdade, somente em 1976 que a Finlndia seguiu o mesmo modelo. E, depois, no cabe dizer que de al-gum modo, os candidatos de um mesmo partido esto relacionados, pois a relao, a, de cartilagem: vota-se verdade que sem se ter conscincia disso em uma

    10. Blondel, Jean, Condies de vida poltica no Estado da Paraba, Rio de Ja-neiro: Fundao Getlio Vargas, 1957.

  • lista, uma lista intuda, que vai vincular os candidatos irmanados em uma mesma legenda, lista no expressa, como nos outros pases.

    E a melhor doutrina, de agora, leva a que se inverta a afirmao de Blondel, de que, ao votar em um candidato, de fato o eleitor indique, de uma vez, uma preferncia e um partido. Em verdade, primeiramente um partido, depois uma preferncia por um dos candidatos. o que ensina o grande expert Jairo Nicolau: que, na realidade, o sistema eleitoral utilizado nas eleies para a Cmara prev dois movimentos. No primeiro, feita a distri-buio das cadeiras entre os partidos (ou coligaes) de acordo com o quociente eleitoral. No segundo, o eleitor indica seu preferido e os mais votados do partido so eleitos, independentemente dos votos que cada um tenha obtido. 11

    Isso estaria compreendido, j, na mudana operada, em 1935, pela Lei no 48.

    IV. Em fevereiro de 2007, o Senador Marco Maciel apre-sentou Proposta de Emenda Constitucional em que se dispunha:

    Perder automaticamente o mandato o membro do Poder Legislativo que se desligar do partido pelo qual tenha concorrido eleio salvo no caso de extino, incorporao ou fuso do partido poltico.

    Com emendas apresentadas pelo senador Antonio Carlos Valadares, que estendia a disposio a cargos eletivos do

    11. Nicolau, Jairo, in O Globo, de 12 out. 2002.

  • 29

    Poder Executivo, a proposta, aprovada pelo Senado, foi encaminhada Cmara dos Deputados.12

    Mas, ao mesmo tempo, o senador Maciel fez com que seu partido, o PFL, dirigisse consulta ao Tribunal Superior Eleitoral em que se indagava:

    Os partidos e coligaes tm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional quando houver pedido de cancelamento de filiao ou de trans-ferncia do candidato eleito por um partido para outra legenda?

    Para surpresa de muitos, a resposta foi afirmativa. Para o Relator, Ministro Cesar Asfor, no era nova a questo de se saber se o mandato eletivo de ser tido como perten-cente ao indivduo eleito, feio de um direito subjeti-vo, ou se pertencente ao grmio poltico partidrio sob o qual obteve a eleio. Mas no via ele dvidas de que o vnculo de um candidato ao partido pelo qual se regis-tra e disputa uma eleio o mais forte, se no o nico, elemento de sua identidade poltica, podendo ser afirma-do que o candidato no existe fora do partido poltico e nenhuma candidatura possvel fora de uma bandeira partidria. E conclua ele:

    No se h de permitir que seja o mandato eletivo com-preendido como algo integrante do patrimnio privado de um indivduo, de que possa ele dispor a qualquer t-tulo... porque isso a contrafao essencial da natureza

    12. A PEC tomou, na Cmara, o no 182 e se encontra, agora, na Comisso de Constituio e Justia e de Cidadania.

  • 30

    do mandato cuja justificativa a funo representativa de servir, ao invs de servir-se. 13

    Em razo dessa deciso, trs partidos na Cmara, o PPP, o PSDB e o DEM, em que se transmutara o PFL, requereram ao presidente, Arlindo Chinaglia, as vagas de deputados que haviam se transferido para partidos situacionistas. Ora, tratando-se de uma consulta, sem carter vinculante, a resposta da Presidncia s poderia ser, como foi, negativa. Os partidos, ento, impetraram Mandados de Segurana Suprema Corte.

    Em 1989, o Supremo rejeitara a tese da perda do mandato por desfiliao partidria. Tratava-se do caso de um suplente que se transferira de seu partido, mas a ele voltara e se questionava, ento, seu direito a assu-mir o cargo, ento vago. A Emenda Constitucional, de 1985, trouxera o fim da fidelidade partidria contida na Emenda Constitucional no 01/69, que punia com a perda do mandato aquele que deixasse o partido sob cuja le-genda fora eleito. Entendeu, ento, seu Relator, Ministro Moreira Alves:

    A lgica do sistema de representao proporcional e o valor que a atual Constituio empresta representa-o parlamentar federal do partido exigiam que a Carta Magna adotasse esse mnimo de fidelidade partidria que o da permanncia do partido pelo qual o candi-dato se elegeu ou obteve a suplncia, dada a importn-cia que, a mais das vezes, o voto de legenda tem para o eleito ou para o suplente. Mas, se essa lgica no

    13. TSE CTA no 1398, Res. 22.256/2007

  • 31

    seguida com relao ao empossado no cargo de depu-tado nem ao eleito diplomado, mas ainda no empos-sado e, quanto a este, no h sequer que se falar em independncia de exerccio de mandato - no h por que ter de ser observada quanto ao suplente: no se pode exigir do substituto a fidelidade que no se exige do substitudo.

    Somente quatro dos ministros no entenderam assim. E, a respeito desses votos, o ministro Rezek, que acompa-nhou a maioria, foi proftico:

    Sei que o futuro render homenagem generosa inspi-rao cvica da tese que norteou os votos dos eminentes Ministros Celso Mello, Paulo Brossard, Carlos Madeira e Sidney Sanchez.14

    Em outubro de 2007, triunfava a inspirao cvica da tese antes vencida. Julgando-se o MS 26.602DF, dizia-se em sua ementa:

    A permanncia do parlamentar no partido poltico pelo qual se elegeu imprescindvel para a manuteno da representao partidria do prprio mandato. Da a al-terao da jurisprudncia do Tribunal, a fim de que a fidelidade do parlamentar perdure aps a posse no car-go eletivo.15

    14. MS 20.927DF, Rel. Ministro Moreira Alves, julgado em 11.10.1989, in DJ de 15.4.1994.15. MS 26.602/DF, impetrado pelo Partido Popular Socialista PPS, Rel. Min. Eros Grau, julgado em 4.10.2007, in DJ 17.10.2008.

  • 32

    E, de modo ainda mais incisivo, afirmou-se no julga-mento do MS 26.603/DF:

    O mandato representativo no constitui projeo de um direito pessoal titularizado pelo parlamentar eleito, mas representa, ao contrrio, expresso que deriva da indis-pensvel vinculao do candidato ao partido poltico, cuja titularidade sobre as vagas conquistadas no proces-so eleitoral resulta de fundamento constitucional aut-nomo, identificvel tanto no art. 14, 3o, inciso V (que define a filiao partidria como condio de elegibili-dade) quanto no art. 45, caput (que consagra o sistema proporcional), da Constituio da Repblica. 16

    Mas faltaram os nossos historiadores e cientistas polti-cos em assegurar que na lgica da reforma, trazida por aquela lei de 1935 ao nosso sistema proporcional, bastava a escolha de um nome, pelo eleitor, para que se definisse por qual lista ele optava. E que essa escolha por uma lista partidria embora no to claramente expressa, como nos outros pases , vinculando a vontade do eleitor a uma legenda, faz desta, efetivamente, a primeira destina-tria do voto.

    V. Em Plato, li que Protgoras, ao acertar o ensino ao jovem Hipcrates, se vangloriou:

    As vantagens que podes alcanar estando comigo, so que a partir do primeiro dia de nosso trato, ao retirar-se

    16. MS 26.604, impetrado pelo Partido da Social Democracia Brasileira PSDB, Rel. o Min. Celso de Mello, julgado em 4.10.2007, in DJ de 19.12.2008.

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    a descansar, possuirs muito mais habilidade que quan-do te levantaste naquela manh; o mesmo te suceder no dia seguinte e todos os dias poders te dar conta de haver feito novos progressos.

    Ao que Scrates comentou:

    uma cincia maravilhosa, se verdadeiramente a pos-suis.17

    Esta cincia, Edson Jos Travassos Vidigal verdadeira-mente a possui.

    Walter Costa PortoAdvogado

    Professor do Departamento de Direito da Universidade de Braslia

    Ministro do Tribunal Superior Eleitoral, de 1996 a 2001

    17. In Dilogos Socrticos, Madrid, Espasa-Calpe, Madrid, 1927, p. 25-27.

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    Ao comentar com um colega sobre a publicao do pre-sente livro, fui questionado sobre a natureza do mesmo se era uma obra acadmica ou um livro prtico para a atuao profissional, com coleo de jurisprudncia e co-mentrios legislao. Respondi que era ambos, s que, no entanto, no trazia nem jurisprudncia nem comen-trios legislao.

    Isso me fez pensar a respeito da condio em que se encontra a atual cultura jurdica brasileira. Parece existir um abismo entre a produo acadmica e a atuao pro-fissional do operador do direito.

    Foi-se o tempo em que as faculdades de direito forma-vam juristas preparados para criar, aprimorar e recriar o direito ptrio tendo em vista a realizao da justia e da paz social, o aperfeioamento das instituies democr-ticas e o desenvolvimento da sociedade como um todo. Atualmente a maioria das faculdades de direito, ressalva-das corajosas e honrosas excees, formam apenas mo de obra especializada em repetir o que decoraram duran-te o curso e o que leem nas ementas dos dirios de justia e compilaes de legislao anotadas.

    Em que pese o fato de que a atual valorizao da me-mria em detrimento do pensar no est sendo privil-

    Nota do autor

  • 36

    gio nico dos cursos jurdicos, acredito que, justamente nestes, que as consequncias de tal fenmeno se fazem mais nocivas sociedade.

    E mais, alm da falta de preparo tcnico e intelectual, cultiva-se entre os alunos a falta de comprometimento e a mediocridade a partir da disseminao de macetes e outros artifcios destinados apenas para que estes logrem xito em algum concurso pblico, ou na prova da OAB. So ensinados no a pensar criticamente e formar posi-cionamentos, mas a decorar os entendimentos dos tribu-nais sobre cada questo, bem como qual entendimento deve ser adotado de acordo com cada banca de avaliao.

    No se estuda mais em livros doutrinrios, estuda-se atualmente em manuais, que nada mais so do que co-lees de frases feitas, conceitos dogmticos e ementrios de jurisprudncia destitudos de qualquer argumentao ou anlise mais crtica. Isso sem falar dos onipresentes resumos jurdicos, bestsellers adorados e venerados por todos tal como o Deus google e os CDs e DVDs de mo-delos de petio completos.

    No se pode culpar (no integralmente, trata-se de responsabilidade solidria) aqueles profissionais do di-reito que atuam sob essa contingncia, haja vista que fo-ram moldados segundo tal cultura (ou falta de cultura) nos prprios bancos universitrios.

    Alis, cabe registrar que muitos coordenadores, dire-tores e professores dos cursos jurdicos (como o caso do meu colega anteriormente citado) vivem o dilema dirio de ter de agradar a gregos e troianos, vez que se contor-cem em verdadeiros malabarismos ante a necessidade de atender, por um lado, aos anseios de alunos que ali esto unicamente com o objetivo de receber o diploma de ba-

  • 37

    charel e lograr xito na famigerada prova da OAB ou nos mais diversos concursos pblicos (anseios estes co-mungados por muitos dos pais cujos alunos so depen-dentes e por muitos dos donos e reitores de faculdades), e, por outro, aos anseios dos que ali esto (bem poucos, estes) com o propsito de realmente alcanar uma slida formao como juristas. E fica a questo: um curso de bacharelado em direito realmente deve ser um cursinho preparatrio para concursos?

    Acredito ser iminente a necessidade de se mudar tal cultura jurdica, estreitando a distncia entre a reflexo acadmica e a prtica profissional, e tal esforo precisa ser conjunto, partindo dos professores, diretores e coor-denadores dos cursos jurdicos; dos magistrados, mem-bros do Ministrio Pblico, advogados e demais opera-dores do Direito. E mais, tal esforo deve contar, ainda, com o comprometimento dos responsveis por elaborar as provas e processos seletivos dos concursos pblicos na rea jurdica, bem como dos que elaboram a prova da OAB. No se pode conceber que a esta altura do campe-onato ainda estejamos presos mediocridade de proces-sos de avaliao baseados na famosa e antiga decoreba, da mera repetio ignorante de dados.

    No necessrio a nenhum profissional do Direito a memorizao da legislao ou do ementrio de jurispru-dncia. Para isso existem computadores com dispositi-vos de memria que j chegam a terabytes, com acesso a uma rede mundial infinita de informaes e dados cha-mada internet. O que se faz necessrio aos operadores do Direito, principalmente nesta era ultramoderna, a ca-pacidade de fazer uso dos infinitos dados que se encon-tram disposio de todos, a maioria apenas a distncia

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    de algumas teclas. Faz-se necessrio, sim, o cultivo de ha-bilidades ligadas ao pensar crtico, racional, responsvel e consciente. Tais habilidades que deveriam ser objeto de avaliao, tanto na academia quanto nos processos se-letivos profissionais.

    Voltando resposta que dei a meu colega, repito: este trabalho se prope a ser tanto uma obra acadmica quanto um livro prtico para a atuao profissional.

    um livro acadmico porque resultado de pesquisa bibliogrfica sria em ttulos nacionais e internacionais de autores renomados e especializados em suas reas de conhecimento (buscando contribuies no direito, na histria, na cincia poltica, nas letras e na filosofia), e da anlise crtica e metdica dos dados encontrados. aca-dmico, pois busca a promoo do debate e do desenvol-vimento doutrinrio sobre o tema, calcado em argumen-tao lgica e filosfica, sendo devidamente fundamen-tada cada uma de suas afirmaes. ainda acadmico uma vez que se prope a ser didtico, explicativo, escrito em linguagem simples e acessvel, para ser entendido pe-los estudantes em busca de explicaes.

    prtico e visa a atuao profissional, pois traz infor-maes histricas, argumentao lgica, fundamentao filosfica, explicaes e embasamento terico sobre con-ceitos jurdicos, polticos e filosficos (alguns difceis de se encontrar rotineiramente), contribuindo assim para a fundamentao de peties, sentenas, pareceres e ou-tras peas jurdicas do dia a dia do operador do direito. Por isso o subttulo da obra (contribuies sua herme-nutica e aplicao), j que se prope a oferecer subs-dios que ajudem a interpretao e a realizao do Direito Eleitoral Brasileiro.

  • 39

    Trata-se de um texto simples, mas honesto e bem intencionado. Espero sinceramente estar contribuindo com algum esforo no sentido de, pelo menos, fomentar a discusso a respeito do tema e diminuir o fosso que parece circundar os muros da academia, apartando-a do mundo prtico do operador do Direito.

    Encontro-me disposio do leitor para receber cor-rees, crticas, dvidas ou quaisquer outras considera-es, que sero, sem dvida, grandes contribuies para o aprimoramento deste pequeno trabalho.

    Edson Jos Travassos [email protected]

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    O objeto do presente estudo a identificao e breve explanao terica de alguns fundamentos do Direito Eleitoral Brasileiro, considerando-se, como tais, os prin-cpios filosficos que a este do origem, suporte e con-sequente direcionamento em seu desenvolvimento e em sua aplicao.

    Para tanto, parte-se de uma anlise prvia sobre o Direito Poltico atual e seus condicionantes herdados do paradigma moderno; passa-se por um exame propeduti-co do Estado Moderno, do Estado de Direito, da democra-cia representativa e do Direito Eleitoral Brasileiro, em suas caractersticas consideradas relevantes pesquisa em tela; e, a partir do referencial terico anterior e da leitura do texto constitucional brasileiro, procede-se apresentao da proposta pretendida, resultante do presente trabalho.

    Antes de tudo, a fim de se evitar possveis interpreta-es ou consideraes equivocadas, cabe esclarecer o que aqui se entende por princpios filosficos, at mesmo procedendo a necessria diferenciao destes em relao aos princpios jurdicos, tambm chamados de princ-pios de direito.

    Tal diferenciao necessria, sobretudo, em face da fora com a qual vem sobressaindo atualmente no meio

    Introduo

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    filosfico-jurdico nacional, discusses acerca da nature-za e da aplicao dos princpios jurdicos, muito em de-corrncia do inusitado18 apelo conquistado pelas teorias dos princpios de Dworkin e Alexy19, e pelo movimento por muitos chamado de neoconstitucionalismo.20

    Como se explica a seguir, tais discusses, polmicas e teorias sobre os princpios jurdicos no se constituem objeto do presente trabalho, e nem a ele apresentam re-levncia, tendo em vista a delimitao do tema em uma esfera que habita momento lgico anterior de tal assun-to. Sem embargo, qualquer referncia a tal matria, alm da presente, de carter exclusivo21, extrapolaria os limites deste estudo.

    Princpios filosficos e princpios jurdicos

    Mesmo sem entrar nas discusses citadas, olhando-as de fora, percebe-se que, no obstante a falta de consenso e a diversidade conceitual da doutrina, parece ser ponto

    18. Inusitado, haja vista que se tratam de teorias estranhas ao civil law, forjadas a partir de sistema jurdico totalmente diverso ao nosso.19. Sobre o tema, tratam as obras Levando os direitos a srio, Uma questo de princpio, O imprio do direito, Teoria dos direitos fundamentais e Teoria da argumentao jurdica, todas publicadas em nosso idioma, sendo as trs pri-meiras de autoria de Dworkin, e as demais de autoria de Alexy.20. Na esfera do Direito Eleitoral, o professor Alxis Vargas (2009), em sua obra Princpios constitucionais de direito eleitoral tese de concluso de doutorado apresentada PUC-SP faz uso de tais teorias, aplicando-as ao Direito Eleitoral Brasileiro. Aquele trabalho, ao contrrio deste, trata de princpios jurdicos do Direito Eleitoral Brasileiro. 21. Necessria identificao, por excluso, do objeto de nossa pesquisa.

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    pacfico o carter normativo dos princpios jurdicos22. Segundo o professor Roberto Freitas, tais princpios, via de regra, so tomados como espcie do gnero norma23, restando controvrsias entre os autores mais no que diz respeito a outros aspectos, tais como os relativos a con-tedo, origem, classificao, aplicao, validade, eficcia jurdica e, principalmente, acerca dos critrios de distin-o destes em relao s regras.

    Por se tratar de norma, um princpio jurdico tem ca-rter imperativo24. Ele imposto. Ou se aceita, ou no.

    22. A ttulo de ilustrao:Para Robert Alexy, princpios so normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possvel dentro das possibilidades jurdicas e fticas existentes. Princpios so, por conseguinte, mandamentos de otimizao, que so caracteri-zados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfao no depende somente das possibilidades fticas, mas tambm das possibilidades jurdicas. O mbito das possibilidades jurdicas determinado pelos princpios e regras colidentes. (ALEXY, 2008, p. 90.)Para Humberto vila, os princpios so definidos como normas imediata-mente finalsticas, primariamente prospectivas e com pretenso de comple-mentariedade e de parcialidade, para cuja aplicao demandam uma avaliao de correlao entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessria sua promoo. (VILA, 2003, p.119.) [grifo nosso]23. A doutrina classifica, em geral, as normas jurdicas em princpios e re-gras. Princpio, assim como regra, espcie do gnero norma. A doutrina constitucional classifica, de forma praticamente unnime, as normas sob o seu chamado aspecto estrutural em princpios e regras. Autores como Paulo Bonavides, Eros Roberto Grau, Lus Roberto Barroso, Inocncio Mrtires Coelho, Willis Santiago Guerra Filho, dentre os brasileiros, assim entendem. (FREITAS FILHO, 2009, p. 189.)24. Segundo Kant (2003, p. 65): Um imperativo uma regra pela qual uma ao em si mesma contingente tomada necessria. Um imperativo difere de uma lei prtica em que uma lei efetivamente representa uma ao como neces-sria, mas no considera se essa ao j inerente por fora de uma necessidade interna ao sujeito agente (como um ser santo) ou se contingente (como no ser humano), pois quando ocorre o primeiro desses casos no h imperativo. Por conseguinte, um imperativo uma regra cuja representao torna necessria

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    No h como se perguntar se verdadeiro ou falso. Ele no uma afirmao, simplesmente um comando. Um princpio jurdico no um ser, um dever ser, e como tal, no cabe o questionamento a respeito de sua veracidade. Os princpios jurdicos so imposies que devem ser seguidas e, como tais, no esto sujei-tas a juzo de valor de verdade. Os princpios jurdicos, em si, so vazios de justificao25, so apenas enunciados normativos que sintetizam um determinado contedo jurdico. So, nesse papel, axiomticos, no sentido de serem evidentes, manifestos e incontestveis (em suas disposies). 26

    J um princpio filosfico tem carter explicativo. uma afirmao que se justifica na forma de um argu-

    uma ao que subjetivamente contingente e assim representa o sujeito como aquele que tem que ser constrangido (compelido) a conformar-se regra.25. Sua justificao ser dada, como veremos adiante, por um princpio filo-sfico, que, inclusive, condicionar o seu contedo jurdico.26. A ttulo de curiosidade, podemos perceber que, mesmo no se podendo questionar valorativamente os princpios jurdicos, podem ser questionados valorativamente os fundamentos de sua existncia, quer sejam os jurdicos (a interpretao da lei), quer sejam os filosficos (os princpios filosficos). Pode-se afirmar, por exemplo, que falso o fundamento jurdico (uma determinada interpretao da lei) de um determinado princpio jurdico. Assim, tal princ-pio, falta de amparo legal (fundamentao jurdica), restaria inexistente. Se determinado princpio jurdico no tem fundamento jurdico que o ampare, ento ele no chega nem a existir, pois, como veremos adiante, qualquer prin-cpio jurdico, necessariamente, deriva de um ordenamento jurdico. Porm, estando um princpio expresso na constituio de forma clara e inequvoca, no h o que ser questionado. Se a constituio diz que tal enunciado um princpio jurdico, ele j existe como tal. No pode ser desconsiderado. Percebe-se que qualquer questionamento a ser feito a um princpio jurdico s far sentido no plano da existncia, pois ou ele procede de um fundamento que lhe atribua existncia e, assim, existe, ou ele no procede e no existe. A sua prpria existncia condicionada pelo seu fundamento jurdico.

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    mento27, em um encadeamento lgico entre premissas. Assim, pode ser questionado sob o ponto de vista de sua validade28. No h que se contestar a sua existncia, pois ela independe de fundamento anterior que a confira29. Porm, sua validade sempre poder ser arguida, pois, por se constituir de um argumento, est sujeito anlise for-mal, sendo invalidado a partir da identificao de erros em seu encadeamento lgico.

    Um princpio filosfico pode ser um axioma, que se basta, e a partir do qual se ergue toda uma construo filosfica, ou, tambm, um princpio que no se basta, e depende de outro princpio filosfico anterior (ou ou-tros). A validade de um princpio filosfico lhe atribu-da na medida em que, sendo decorrente de princpio an-terior, guarde o necessrio encadeamento lgico com o mesmo. Por sua caracterstica filosfica, necessariamente um argumento lgico30, e, como tal, sujeito aferio de validade lgica formal.

    27. No caso geral, um argumento pode ser definido como um conjunto (no-vazio e finito) de sentenas, das quais uma chamada de concluso, as outras de premissas, e pretende-se que as premissas justifiquem, garantam ou dem evidncia para a concluso. (MORTARI, 2001, p. 9.)28. Um argumento vlido pode ser informalmente definido como aquele cuja concluso consequncia lgica de suas premissas, ou seja, se todas as circunstncias que tornam as premissas verdadeiras tornam igualmente a con-cluso verdadeira. Dito de outra maneira, se as premissas forem verdadeiras, no possvel que a concluso seja falsa...Um argumento vlido se qualquer circunstncia que torna suas premissas verdadeiras faz com que sua concluso seja automaticamente verdadeira. (MORTARI, 2001, p. 19.) 29. Ao contrrio dos princpios jurdicos, que, como dito, dependem de fun-damentao jurdica para existir.30. O discurso filosfico se distingue dos demais tipos de discurso (senso-comum, discurso religioso, mito e discurso cientfico) justamente por se utilizar de argumentao lgica e encontrar a sua prova na razo.

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    Por outro lado, no seria necessrio entrar no mrito acima tratado para perceber que os princpios jurdicos, pelo simples fato de serem jurdicos, procedem logica-mente de um ordenamento jurdico, seja ele qual for. Se no tivessem, de alguma forma, uma ordem jurdica como referncia, no seriam jurdicos, pois a juridicida-de qualidade atribuda pelo ordenamento jurdico. Ou seja, eles existem em um momento lgico posterior po-sitivao das normas, evento que as torna jurdicas31.

    J os princpios filosficos precedem (logicamente) qualquer ordenamento jurdico, isto , existem em um momento lgico anterior positivao das normas jurdi-cas. Tais princpios servem de fundamentao terica, tan-to para cada lei em particular, quanto para o ordenamento jurdico como um todo, visto como sistema jurdico32.

    Como se pode perceber, os princpios jurdicos ser-vem de meios para a interpretao do ordenamento jur-dico e aplicao do Direito de forma a se garantir efetivi-dade33 aos valores aceitos pela sociedade e materializados

    31. H quem sustente que a fundamentalidade dos princpios estaria na sua origem como parte do Direito Natural, sendo a essncia da Cincia Jurdica, as suas normas bsicas e mais relevantes e possuindo contedo moral supra-positivo. (FREITAS FILHO, 2009, p. 201). Mesmo em tal viso jusnaturalista relatada pelo professor Roberto Freitas Filho, os princpios jurdicos decorrem do ordenamento jurdico. Pois, antes dele, no seriam jurdicos, mas apenas princpios filosficos, como o prprio Direito Natural parece ser.32. Serviro, inclusive, de fundamento para os princpios jurdicos.33. Adotamos o entendimento de Pontes de Miranda no sentido de que, dife-rentemente da eficcia, que diz respeito produo de efeitos no mundo jur-dico (criao, modificao ou extino de direitos), a efetividade diz respeito produo de efeitos no mundo real, a partir do uso do direito e do aparato estatal para determinados fins. Ou seja, ela surge na medida em que os valores considerados relevantes pela sociedade, e positivados do ordenamento jurdico, so, por meio do direito, implementados no mundo real, modificando-o.

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    na forma de lei. Eles efetuam a ponte entre os princpios filosficos valorados em suas razes e adotados pela sociedade e a efetivao dos mesmos por intermdio do Direito. Enquanto os princpios jurdicos regram a aplicao do Direito por meio de comandos, os princ-pios filosficos os fundam, ou seja, criam o arcabouo terico que, avaliado e legitimado pela sociedade, dar legitimidade e validade34 ao ordenamento jurdico.

    Percebe-se que princpios filosficos e princpios jur-dicos ocupam funes e momentos (lgicos) distintos em relao ao ordenamento jurdico. Em um encadeamento lgico formal, aqueles so anteriores a estes. Os princ-pios jurdicos so enunciados estabelecidos como con-sequncia lgica dos valores acatados pelo ordenamento jurdico, que, por sua vez, estabelecido em consequncia lgica dos princpios filosficos aceitos pela sociedade, que o moldam e o legitimam. Isso porque os princpios filosficos so a fundamentao necessria que d causa35 ao ordenamento jurdico. E, por sua vez, o ordenamento jurdico quem d causa aos princpios jurdicos.

    Assim, podemos concluir que, em ltima anlise, os princpios filosficos do causa aos princpios jurdicos

    34. Nas palavras de Simone Goyard-Fabre (2002, p. 500), Toda legislao repousa em princpios imutveis e categricos cuja autoridade suprema tem a elevao e a universalidade das exigncias prticas expressas pelo imperativo categrico da razo. Se, portanto, a evoluo dos conceitos do direito poltico indispensvel ao longo dos desenvolvimentos da histria e da cultura, a ideali-dade pura na qual se enrazam os princpios da modernidade jurdica autono-mia do direito, ordem pblica, soberania, autoridade, legalidade, legitimidade, equilbrio e moderao dos poderes, igualdade e liberdade constitui, no plano do universal, o ncleo inabalvel de sua validade normativa. [grifos nossos]35. Causa formal, tomada aqui como a condio pelo que alguma coisa determinada. (FERREIRA, 1999)

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    (no sem antes passarem pelo processo de positivao concretizada no ordenamento jurdico)36. Mesmo os princpios jurdicos implcitos, que no se encontram li-teralmente no ordenamento jurdico, so consequncia dos princpios filosficos, sem os quais no haveria par-metros para a sua correta inferncia.

    A fim de ilustrar o que aqui se diz, tomemos como exemplo prtico o princpio jurdico da igualdade. Tal princpio se consubstancia no enunciado normativo to-dos so iguais perante a lei. Tal enunciado no repre-senta uma constatao a partir da observao da reali-dade, ele no tem contedo cognitivo. Ele no descreve a realidade e por isso sua veracidade no h como ser questionada. No se pode alegar que possvel observar muitas desigualdades sociais, e por isso este enunciado falso. Seu objetivo no descrever a realidade social, e sim impor, a ela, uma forma de ser. Tal enunciado se constitui em uma imposio, tem contedo volitivo. Ele prescreve algo que no pode ser questionado, em virtu-de de seu carter de obrigatoriedade, caracterstico das normas jurdicas.

    O enunciado todos so iguais perante a lei, apesar de axiomtico, depende de complementao, pois dele so possveis infinitas interpretaes. Tal complemen-tao o seu contedo jurdico. Segundo Mello (2010, p.10), a complementao necessria ao enunciado deste princpio, isto , o seu contedo jurdico, seria a de que a lei no deve ser fonte de privilgios ou perseguies,

    36. Sobre a aplicao prtica de tal afirmao, ver a obra anteriormente citada Princpios Constitucionais de Direito Eleitoral, onde o autor trabalha cada prin-cpio jurdico apontado a partir de fundamentos filosficos, fundamentos jurdicos e contedo jurdico.

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    mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidados. Melo, inclusi-ve, acrescenta que Este o contedo poltico-ideolgico absorvido pelo princpio da isonomia e juridicizado pe-los textos constitucionais em geral, ou de todo modo as-similado pelos sistemas normativos vigentes.

    Traduzindo para nossos termos, contedo poltico-ideolgico seria a justificao argumentativa do prin-cpio da isonomia, princpio este que filosfico. Tal jus-tificao argumentativa, condensada em um princpio filosfico (o princpio da isonomia), a partir da valorao social, juridicizada, ou seja, positivada, transforma-da em parte do ordenamento jurdico, dando origem a um princpio jurdico: o princpio da igualdade. Assim, o princpio jurdico da igualdade decorre de uma funda-mentao filosfica (o princpio filosfico, que, inclusive, condicionar o seu contedo jurdico) e de uma funda-mentao jurdica (a sua previso legal).

    Fundamentos do Direito

    Ultrapassando a breve, mas necessria, diferenciao entre princpios filosficos e princpios jurdicos, proce-deremos agora uma definio daqueles. Neste trabalho, para os fins que aqui se buscam, entenderemos37 os prin-

    37. Trata-se de proposta, nossa, de utilizao do termo, a fim de se possibilitar o entendimento de nossa explanao, livrando o leitor de dvidas quanto acepo utilizada, haja vista no se tratar de termo tcnico especfico que goze de significao notria consolidada em alguma rea do conhecimento. No se trata de afirmao de carter etimolgico, nem de apropriao do termo, mas apenas de mera conveno para os fins pretendidos.

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    cpios filosficos como os conceitos, categorias ou ideias filosficas que apresentam uma justificativa terica para a legitimao do ordenamento jurdico e, consequente-mente, do Estado38. Trata-se da justificativa racional para a forma de ser do direito positivo. Em outras palavras, trata-se do discurso axiolgico necessrio aceitao so-cial e consequente legitimao do sistema pelo qual ser exercido o poder de coao estatal, elemento fundamen-tal ao Direito em sua acepo normativa.

    A partir de tal referencial terico, dizemos, en-to, que os princpios filosficos so fundamentos do Estado e do Direito, ou seja, eles do as bases necess-rias sua construo e sua manuteno. So os alicer-ces do mundo jurdico.

    Mora (2001, v. 4, p. 1159) inicia o verbete Fundamento com a seguinte explicao:

    FUNDAMENTO. O termo fundamento utilizado em vrios sentidos. s vezes equivale a princpio; s vezes, a

    38. Entes que, na viso de Kelsen, no so distintos, mas mesmo se confundem, haja vista considerar ser o Estado unicamente a personificao do ordenamento jurdico: Justamente como a teoria pura do Direito elimina o dualismo de Di-reito e Justia e o dualismo de Direito objetivo e subjetivo, ela abole o dualismo de Direito e Estado. Ao faz-lo, ela estabelece uma teoria do Estado como parte intrnseca da teoria do Direito e postula a unidade do Direito nacional e do internacional dentro de um sistema que compreende todas as ordens jurdicas positivas. A teoria pura do Direito uma teoria monista. Ela demonstra que o Estado imaginado como ser pessoal , na melhor das hipteses, nada mais que a personificao da ordem jurdica, e, mais frequentemente, uma mera hipostatizao de certos postulados poltico-morais.(KELSEN, 1992, p. 4.). No obstante o fato de que o presente trabalho no se baliza pela teoria pura do direito de Kelsen (inclusive pelo fato de que, nos parmetros nela adotados, restaria este excludo da esfera objeto da cincia jurdica), concordamos, neste ponto, com o entendimento de Kelsen sobre a identificao entre Estado e ordenamento jurdico.

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    razo; s vezes a origem; podendo ser usado, por sua vez, nos distintos sentidos em que empregado cada um dos vocbulos citados. Exemplos de uso do vocbu-lo fundamento so: Deus o fundamento do mun-do; Eis aqui os fundamentos da filosofia; Conheo o fundamento de minha crena. Pode-se ver facilmente que o uso do termo em questo muito variado e, na maior parte dos casos, nada preciso. Embora fundamento possa designar tambm o prin-cpio no sentido de origem, mais habitual descartar toda questo relativa a origens (no tempo) quando se fala de fundamento. [grifos nossos]

    A tempo, vejamos como Marcondes e Japiass (1996, p. 113) definem o termo:

    Fundamento (lat. Fundamentum, de fundare: fundar) 1. Na linguagem corrente, designa aquilo sobre o qual re-pousa alguma coisa: outrora se falava dos fundamentos de uma casa, mas hoje se fala de suas fundaes. A filosofia utiliza esse termo para designar aquilo sobre o qual repousa, de direito, certo conhecimento. Assim, o fundamento de um conjunto de proposies a primei-ra verdade sobre a qual elas so deduzidas.2. Princpio explicativo que denota a existncia de uma ordem de fenmenos ou de uma base do pensamento. Aquilo que Descartes censura nas disciplinas que lhe foram ensinadas , antes de tudo, o fato de no repou-sarem em fundamentos slidos, ou seja, em princpios construdos sobre fundaes seguras. Ex.: a axiomtica como fundamento da matemtica, o princpio da gravi-dade como fundamento da mecnica celeste.

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    3. Aquilo que fornece a alguma coisa sua razo de ser ou que confere a uma ordem de conhecimento uma ga-rantia de valor e de uma justificativa racional.

    A partir de tais verbetes, podemos, neste escopo, definir fundamentos como os princpios explicativos que do causa e razo de ser a alguma coisa, suportando-a e con-ferindo-lhe garantia de valor e de uma justificativa racio-nal, constituindo-se na primeira verdade de um sistema de proposies, a partir da qual as demais sero deduzidas.

    Diante de tais consideraes, ao invs de princpios filosficos, optamos por utilizar a palavra fundamen-tos, na acepo acima definida, para designar os prota-gonistas de nosso trabalho. Tal opo se justifica por dois fatores relevantes. O primeiro a vantagem de afastar confuses e erros que possam ser causados pela equivo-cada associao entre princpios filosficos e princpios jurdicos. O segundo que a palavra fundamento se apli-ca questo com maior propriedade. Seu leque de sig-nificados abarca vrios aspectos preciosos de tais entes, envolvendo-os de maneira mpar, tanto explicando-os quanto lhes dando vida e movimento, vez que os anima, tal como o oxignio em nosso sangue, em um processo dinmico necessrio ao nascimento, desenvolvimento e funcionamento de todo o corpo jurdico.

    Roteiro da pesquisa

    Este estudo dividido em seis partes: (1) Introduo; (2) Paradigma moderno e Direito Poltico; (3) Estado Moderno, Estado Democrtico de Direito e demo-

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    cracia representativa (4) Direito Eleitoral Brasileiro; (5) Fundamentos do Direito Eleitoral Brasileiro e (6) Consideraes finais; sendo cada uma dessas unidades composta por dois ou mais tpicos que, por vezes, so desmembrados em subtpicos. Procurou-se demarcar ao mximo cada tpico do raciocnio aqui pretendido, ten-do em vista dois fins: facilitar o entendimento de seu en-cadeamento lgico e propiciar um acesso rpido a cada premissa de maneira a fomentar o exerccio de correla-o entre elas.

    Na presente parte (Introduo), delineamos o objeto de nossa pesquisa; explicamos e desenvolvemos a nos-sa noo de princpio filosfico primordial ao enten-dimento de nosso escopo inclusive distinguindo-a da noo de princpio jurdico; definimos o conceito de fundamento a ser utilizado no decorrer deste opsculo; expomos a metodologia aqui adotada; e, por fim, traa-mos (neste ato) o mapa do caminho que percorreremos rumo nossa meta.

    Na segunda parte (Direito Poltico e paradigma mo-derno), analisaremos tais entes, bem como algumas ca-ractersticas do paradigma39 moderno que, de uma forma ou de outra, condicionaram (e ainda condicionam) a es-

    39. Neste trabalho, sempre utilizaremos o termo paradigma em uma ou outra das duas concepes, adiante expostas, utilizadas por Tomas Kuhn para expli-car o conceito (Acreditamos no se constituir em bice, a partir do contexto, a aplicao da acepo pertinente): Percebe-se rapidamente que na maior parte do livro o termo paradigma usado em dois sentidos diferentes. De um lado, indica toda a constelao de crenas, valores, tcnicas etc., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelao: as solues concretas de quebra-cabeas que empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explcitas como base para a soluo dos restantes quebra-cabeas da cincia normal. (KHUN, 2006, p. 220.)

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    trutura e o funcionamento do Direito Poltico moderno. Buscaremos, ainda, demonstrar a repercusso gerada no Direito Poltico por tais caractersticas, a fim de que seja percebido o surgimento das sementes necessrias ao nas-cimento do Estado Moderno.

    A terceira parte, composta por dois tpicos Estado Moderno, Estado Democrtico de Direito e democracia representativa , tem por objetivo estabelecer a ligao entre o Estado moderno e o Direito Eleitoral, mostran-do o vnculo de necessariedade que se estabelece entre o primeiro e o segundo, a partir do surgimento do Estado Democrtico de Direito e, consequentemente, da demo-cracia representativa. Ser apresentado o encadeamento lgico de causalidade necessria entre todos estes entes, de forma a se perceber: (1) que sem o Estado moderno no existiria Estado Democrtico de Direito; (2) que sem o Estado Democrtico de Direito, no existiria a demo-cracia representativa; e (3) que sem a democracia repre-sentativa no existiria o Direito Eleitoral. Tal encadea-mento no meramente histrico. , sobretudo, causal.

    Pretende-se neste escopo salientar as caractersticas que so herdadas por cada etapa posterior do processo da etapa anterior. Isso feito de modo a identificar o encadeamento de validao existente, por meio da razo, entre tais objetos, de forma a se concluir que, ainda, mais do que histrico ou causal, este encadeamento condi-cional, submetendo-se a vnculos de necessariedade, sob pena de completa runa diante da sua incoerncia.

    At este ponto, a pesquisa se ocupa de aspectos gerais, comuns ao mundo ocidental, que podem ser aplicados a qualquer ordenamento jurdico baseado no Estado Democrtico de Direito. Isso porque se trata de matria

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    anterior40 a eles, ligada justamente fundamentao filo-sfica do Direito Poltico moderno e, consequentemen-te, de suas instituies jurdicas e polticas. Entretanto, a partir desse momento, em funo de nosso objetivo, pas-saremos a uma anlise particular especfica de elementos que no necessariamente podem ser considerados gerais, pois dependem de um ordenamento jurdico especfico. Assim, podem, ou no, ser aplicados a realidades estru-turadas em outros ordenamentos.

    Para se alcanar o escopo de identificar alguns fun-damentos do Direito Eleitoral Brasileiro41, obviamente se faz necessria a anlise do prprio, a fim de que sejam expostos elementos que possibilitem tal mister. Eis a fun-o da quarta parte de nosso trabalho (Direito Eleitoral Brasileiro), que subdividida em dois tpicos (1) Objeto do Direito Eleitoral e bem jurdico por ele tutelado e (2) Funo da Justia Eleitoral Brasileira buscar cumprir sua misso tendo como suporte a doutrina e a legislao eleitoral nacional.

    Finalmente, aps o amadurecimento das noes ne-cessrias, feito no decorrer de nossa jornada por uma estrada que, pavimentada pela histria do pensamento, parte do surgimento do paradigma moderno e chega existncia do Direito Eleitoral, atingimos o pice de nos-sa pesquisa: a identificao e breve explanao terica de alguns fundamentos do Direito Eleitoral Brasileiro.

    O objetivo da quinta parte de nosso estudo , confor-me todo o arcabouo terico desenvolvido anteriormen-

    40. Do ponto de vista lgico.41. Ou seja, alguns discursos filosficos, pertinentes ao Direito Eleitoral, que foram valorados pela sociedade brasileira como dignos de aceitao legal, consequentemente legitimados por meio de sua converso em lei.

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    te, propor, como hiptese heurstica, um rol de funda-mentos que possam ser identificados no Direito Eleitoral Brasileiro como pressupostos sua existncia e ao seu funcionamento. Essa lista de fundamentos no preten-de ser definitiva, absoluta ou exaustiva. No se pretende aqui esgotar o tema, at mesmo pelo fato de que tanto o ordenamento jurdico quanto sua fundamentao so entes dinmicos, que se encontram em eterna mutao. Assim, podem (e provavelmente devem) existir outros fundamentos que, de uma forma ou de outra, contribu-am para a vida de nosso Direito Eleitoral. Com essa ideia em mente, optamos por buscar os fundamentos por trs dos preceitos constitucionais que, a nosso ver, condicio-nam de maneira necessria o nosso Direito Poltico42, e consequentemente o nosso Direito Eleitoral, que ramo especial daquele.

    A delimitao do rol de fundamentos a serem aqui trabalhados procedeu da aplicao de um mtodo hipo-ttico dedutivo, consubstanciado nos seguintes passos: primeiro, de maneira intuitiva, elencou-se possveis institutos. Segundo, por meio da avaliao de sua per-tinncia ao critrio adotado, procurou-se tentar false-los, um a um.

    A seguinte lista dos fundamentos que sero aqui trabalhados, inferida do texto constitucional e deli-mitada j de antemo, composta pelos que passaram inclumes por esse processo de falseamento. So estes: (1) do contratualismo; (2) da legitimidade (ambos in-

    42. Optamos aqui por utilizar o termo direito poltico, ao invs do usualmente adotado, no Brasil, direito pblico. Isto porque consideramos o termo mais pertinente e significativo ao assunto tratado neste estudo.

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    feridos do prembulo da Constituio Federal); (3) do Estado Democrtico de Direito; (4) da soberania po-pular; (5) da cidadania; (6) da dignidade da pessoa hu-mana; (7) do pluralismo poltico; (8) da representao (todos inferidos do art. 1o); e (9) do sufrgio universal (inferido do art. 14). Procedemos, ainda, exposio de uma proposta nossa de fundamento que, no obs-tante a polmica que possa gerar, em nosso entendi-mento se apresentaria em meio aos demais: (10) o fun-damento da candidatura (tambm inferido do art. 14). Sobre este, podemos, de antemo, adiantar que se trata da exigncia da valorao de determinados requisitos imprescindveis participao passiva no processo re-presentativo democrtico.

    Percebe-se, j neste ponto, que este trabalho analisa o Direito Eleitoral a partir da via filosfica. E aqui se apli-cam as sbias palavras de Simone Goyard-Fabre (2002, p. 48 e 49), em seu estudo sobre o Direito Poltico moderno:

    A tarefa do filsofo no descrever uma ordem de di-reito positivo existente aqui e agora, nem sequer expli-car a forma e o contedo do ordenamento jurdico de certo Estado ou de certo organismo internacional. A filosofia no um trabalho de conhecimento, mas um exerccio infindvel de reflexo compreensiva e crtica. Perguntado-se sobre o direito poltico tal como se ma-nifestou desde o advento da modernidade, isto : so-bre o conjunto das regras do direito positivo que formam a base institucional das sociedades polticas tal como existiram nos sculos da modernidade ocidental, o fi-lsofo, hoje, se atribui como tarefa, no, como o filsofo clssico, julg-las pela medida da idealidade pura de

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    um arqutipo inteligvel, mas aprofundar o significado dessas regras a fim de descobrir nelas as razes desse sen-tido e de sua legitimidade. [grifos nossos]

    V-se que o presente estudo parte de uma abordagem, infelizmente, rara no meio jurdico brasileiro de nossos dias. Nossos cursos jurdicos que atualmente bro-tam como dentes-de-leo em cada esquina ou pedao de terra abandonado com raras e honrosas excees, parecem ter se convertido em (nas palavras de um sbio professor) comrcio de diplomas em 60 prestaes, ou, na melhor das hipteses, cursinhos preparatrios para concurso. Tal fato facilmente aferido a partir de um breve contato com a estrutura de suas grades cur-riculares, com suas polticas de fomento pesquisa (ou falta delas), e at a partir de uma conversa informal sobre algum tema jurdico relevante com os alunos ou mesmo com alguns professores. To precria a situa-o em que se encontra a maioria esmagadora de nos-sos cursos jurdicos, que parece ter sido esquecido, na academia jurdica nacional, que a funo de um bacha-rel a pesquisa e o desenvolvimento do Direito, visan-do ao constante aprimoramento de nossas instituies jurdicas e a consequente realizao da justia.

    Deste ambiente rido e hostil que surgem a urgn-cia e a necessidade -do tipo de exerccio a que se refere Goyard-Fabre: o que se atreve a pensar, questionar e pro-por solues. O que corre riscos e oferece a cara a tapa.

    Talvez o maior problema enfrentado atualmente pelo Direito Brasileiro seja a questo relativa sua herme-nutica e aplicao. Parte do judicirio tem se portado frequentemente de maneira questionvel, a partir de jul-

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    gados que nascem sem a necessria fundamentao ra-cional lgica, com uma grave falta de critrios ou, no m-nimo, com impercia e incoerncia no uso dos mesmos.

    Ativismo judicial tem se confundido com abuso de discricionariedade, subjetivismo e, em certos casos, com perigosa usurpao de funes dos outros pode-res, criando precedentes danosos ao sistema de Checks and balances adotado em nosso Estado. Neste cenrio insalubre que a Justia Eleitoral at pela natureza e importncia de sua matria parece estar particular-mente vulnervel.

    importante a discusso acerca do problema, a busca por solues, a proposio de ideias. A partir de tal an-gstia nasceu a idia do presente trabalho que se pro-pe a buscar fundamentos que possam auxiliar a atuao da Justia Eleitoral, bem como a aplicao de seu direito em um esforo de tentar contribuir para a mudana deste quadro, com o mnimo que seja, na medida de nos-sas limitaes, sempre tendo como norte o exemplo de nomes como os de Rui Barbosa, Tobias Barreto, Clvis Bevilaqua e Pontes de Miranda, dentre outros, que apesar de atualmente esquecidos por meio do estudo, da pesquisa, da formao humanstica e consequente vi-so multidisciplinar, ousaram realizar o aperfeioamen-to de nosso direito ptrio com atos de disposio, risco, dedicao e coragem.

    A expectativa de arraigar impulsos, antes de preten-der esgotar o assunto, que nos provoca a anlise.

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    A fim de que possamos compreender a interao entre o paradigma moderno e o Direito Poltico, faz-se necess-ria uma prvia compreenso sobre os entes relacionados.

    O termo paradigma aqui utilizado como um arca-bouo de valores, tcnicas, crenas, instrumental e solu-es aceito pelos membros de uma determinada comu-nidade43. Assim, tomaremos por paradigma moderno um conjunto de caractersticas condicionantes ou ine-rentes a um perodo histrico especfico: a Era Moderna.

    Haja vista que uma era se constitui justamente da aglutinao de determinadas caractersticas a ela ine-rentes, relevantes sua identidade, percebe-se que a sua delimitao temporal se constitui em tarefa pratica-mente impossvel, pois observa-se que no so simul-tneos os nascimentos de todas as suas diversas e he-terogneas caractersticas, bem como no se percebe simultnea a morte das mesmas, a ensejar o nascimento de outras futuras. Assim, pode parecer leviana e teme-rria a eleio de um momento especfico que defina a morte da Era Medieval e concomitante nascimento da nova Era Moderna.

    43. Conforme anterior nota de rodap (no 39).

    Paradigma moderno e direito poltico

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    At porque tais caractersticas so as mais diversas, permeando o campo de estudo da histria, da filosofia, da cincia poltica, da cincia econmica, das artes, das letras, do direito e de muitas outras atividades cogniti-vas ou criativas, tendo em vista o objeto de interesse de cada uma delas. Essa diversidade de objetos de interesse cognitivo se traduz em pontos de vista distintos sobre a mesma realidade, que por vezes se imbricam, por vezes se separam. Assim sendo, difcil especificar marcos de convergncia ou divergncia entre eles. O movimento ar-tstico tem um ritmo, que no necessariamente o mes-mo que o do filosfico, que por sua vez no necessaria-mente o mesmo que o do cientfico ou o do poltico etc.

    O emaranhado histrico de diversas vises sobre a mesma realidade comporta infinitas relaes em uma teia de conhecimento que no tem ponto de partida, nem ponto de chegada, mas apenas um eterno processo de inter-relao entre seus entes.

    A esse respeito, somamos o testemunho de Simone Goyard-Fabre (2002, p. 4 e 5):

    Desenhar os contornos do mundo moderno , tanto para o filsofo como para o historiador, uma tarefa in-cmoda. Se os historiadores geralmente esto de acor-do em situar na primeira dcada do sculo XVII, at mesmo com o assassinato de Henrique IV em 1610, o nascimento dos Tempos modernos, os filsofos so muito mais indecisos. verdade que so menos cio-sos do que os historiadores de uma datao precisa e que buscam sobretudo os sinais que, iniciando uma ruptura com o cosmologismo do pensamento antigo e o teologismo do pensamento medieval, anunciam

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    preocupaes ou uma sensibilidade intelectual novas. Esses sinais s se deixam decifrar ao longo de uma progresso histrico-filosfica cujo percurso devemos refazer em etapas sucessivas.

    De fato, as afirmaes sobre o tema so as mais divergen-tes possveis. Assim, temos que deixar claro que, ao nos referirmos neste trabalho a paradigma moderno, faze-mos sob um ponto de vista especfico, qual seja, o jurdi-co-filosfico, que se caracterizaria pela anlise das ideias, argumentos e discursos relevantes construo dogm-tica poltica e jurdica em seu desenvolvimento histrico.

    Resumindo, podemos dizer que, ao aqui se tratar do paradigma moderno, estaremos tratando de um con-junto de ideias, argumentos, discursos, linguagens, ter-mos, institutos e quaisquer outros instrumentos de cons-truo filosfica que tenham relevncia construo poltico-jurdica da Era Moderna.

    J sobre Direito Poltico, consideramos irretocveis as consideraes de Goyard-Fabre (2002, p. 2), motivo pelo qual tornam-se preciosas suas palavras:

    O direito poltico ou pblico o conjunto de regras que estrutura o aparelho da potncia dos Estados, tanto no plano interno como no trato jurdico internacional. A existncia do direito poltico significa que a poltica no se reduz a simples relaes de fora e que potn-cia no poder. A potncia apenas um dado fac-tual que se expressa de maneira emprica e contingen-te. O Poder poltico Potestas e no potentia uma construo jurdica, tanto que seu exerccio obedece a princpios e a regras que lhe impem restries e limi-

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    tes. Se a potncia fora e, s vezes, violncia, o Poder poltico implica a ordem de direito erigida por um con-junto de vnculos institucionais. O direito poltico precisamente constitudo pelas normas que regem a or-ganizao institucional da poltica e seu funcionamento no mbito por ela determinado e delimitado.

    Como dito em nossa introduo, preferimos a designa-o direito poltico a direito pblico. Aquela mais especfica que esta. No que o Direito Poltico seja es-pcie do gnero Direito Pblico, pois, de fato, podem at se confundir em suas matrias. A diferena, em nosso entender, est na maneira de olhar, na acepo que se toma o fenmeno jurdico como relevante ao estudo. Sem embargo, podemos investigar o pblico pelo ponto de vista do funcionamento administrativo do Estado, da forma como este exerce sua prestao ju-risdicional, do tratamento dado ao direito de punir etc. Porm, o que aqui nos interessa descobri-lo em sua dinmica relativa ao poder. O poder, aqui, eixo em torno do qual gravitam as possveis interpretaes do fenmeno jurdico.

    A partir das palavras de Goyard-Fabre, tendo em vis-ta o escopo do presente trabalho, optamos por definir o Direito Poltico como o conjunto de normas que regem a organizao e o funcionamento do poder poltico, to-mando como tal uma construo jurdica destinada a transformar os embates de fora fsica em embates de ideias, a partir da institucionalizao do poder e das for-mas pelas quais este exercido.

    Por meio do Direito Poltico que devem, em um Estado moderno, ocorrer os embates necessrios ao

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    exerccio do poder estatal. E o Direito Eleitoral, foco de nossa pesquisa, cerne desta dinmica entre os agentes polticos, proporcionando um sistema tal que regula-mente talvez o mais importante papel do Direito Poltico em uma democracia representativa: o processo eleitoral.

    Determinados os conceitos, podemos especificar, en-to, o objetivo do presente tpico, qual seja, analisar al-gumas caractersticas do paradigma moderno relevantes estruturao de seu respectivo Direito Poltico e, ao fi-nal, apontar caractersticas relevantes deste que venham a condicionar o surgimento do Estado Moderno.

    Paradigma moderno

    A fim de melhor compreendermos as caractersticas aqui buscadas do paradigma moderno, faremos uma breve contextualizao histrica do momento precedente ao seu nascimento44. Visualizando as mudanas ocorridas neste perodo de transio, ser mais fcil a percepo e o entendimento de tais caractersticas, at pelo contraste destas com as do paradigma anterior.

    Contexto histrico

    Chama-se de Era Medieval o perodo anterior Era Moderna. Tal tempo histrico se caracterizou, princi-palmente, pelo regime feudal e pelo domnio da Igreja Catlica.

    44. A respeito de todo o contexto histrico que ser apresentado, ver a obra de Sevcenko (1994).

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    Politicamente, a Era Medieval se caracterizava pelo regime feudal, com o poder descentralizado, diludo em relaes de suserania e vassalagem em razo do feudo, que era a terra nobre, de propriedade do suserano, con-cedida pelo senhor a um vassalo com a obrigao de f, de homenagem, de prestao de certos servios e paga-mento de tributo. Nesse sistema, o poder se disseminava em uma complexa teia de inter-relaes.

    Economicamente, vivia-se em um regime de produo de subsistncia, no existindo excedentes e, consequente-mente, quase no existindo comrcio. A descentralizao do poder o desestimulava, haja vista a falta de homoge-neidade na moeda, nos pesos e medidas; a falta de se-gurana nas estradas; a falta de uma legislao comum e ainda outros problemas de mesma natureza. A cultura de produo de subsistncia desestimulava o avano das tcnicas de produo e o acmulo de riquezas.

    Filosoficamente, o perodo foi determinado por duas fases: a Patrstica e a Escolstica. A primeira foi marcada pela filosofia dos padres do incio da Idade Mdia e preo-cupou-se, sobretudo, em justificar a f contra o pensamen-to pago. A segunda preocupou-se principalmente com a conciliao entre f e razo. Seus principais expoentes fo-ram Santo Agostinho, de inspirao neo-platnica, e So Toms de Aquino, de influncia aristotlica. O primeiro dava primazia f em detrimento da razo, que deveria quela se subordinar. O segundo adotava uma postura mais conciliadora, defendendo a autonomia da razo para a obteno de respostas a certo tipo de questes.

    A manuteno do feudalismo e a hegemonia da Igreja Catlica perduraram at o perodo entre os sculos XI e XIV, conhecido como Baixa Idade Mdia, quando a

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    Europa ocidental vivenciou o incio de uma verdadeira revoluo em sua estrutura, que teria repercusso para mudanas radicais na sociedade ocidental.

    Dentre os fatores que geraram tal revoluo, so espe-cialmente relevantes o aumento do contato com o orien-te (surgido em decorrncia das cruzadas, que acabaram por criar uma ponte entre Ocidente e Oriente que favore-ceu o desenvolvimento do comrcio) e o alto crescimen-to demogrfico experimentado no perodo. Tais fatores levaram a certo desenvolvimento das tcnicas agrcolas e a um consequente aumento da produo. A partir deles se percebe o desenrolar de uma mudana de valores que viria, posteriormente, a pr fim ao feudalismo.

    A economia, que era basicamente de subsistncia e de trocas, foi se transformando gradativamente em eco-nomia monetria, propiciando o acmulo de riquezas. Surgiram os burgos, centros de comrcio e de produo artesanal, e com eles uma nova classe social, os burgue-ses. Os burgos passaram a prevalecer sobre os campos, e j era possvel vislumbrar o destino de uma classe social que controlava a produo e o comrcio em uma inci-piente sociedade baseada na desvalorizao da terra e na valorizao do acmulo de riquezas. A burguesia come-ou ento a aspirar ao poder poltico e ao prestgio social condizentes com sua condio material.

    Por volta do sculo XIV, a Europa entrou em colap-so. Os fatores apontados pelos historiadores, para tanto, seriam a peste negra, a Guerra dos Cem Anos, entre a Frana e a Inglaterra, e as constantes revoltas populares.

    De fato, pelo que se sabe, as condies de vida da po-pulao eram cada vez piores. O acmulo de multides aglomeradas nos burgos, que no tinham infraestrutura

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    para tanto, acabou transformando-os em focos epidmi-cos de doenas. O contgio, muito em virtude da igno-rncia da populao e das precrias condies de higie-ne, alastrou-se rapidamente, dizimando quase um tero da populao europeia. E mais: a disputa entre os sobera-nos da Frana e da Inglaterra, durante a Guerra dos Cem Anos, ampliou tal estatstica. A mortalidade causada por esses dois eventos levou a uma completa desestruturao da produo e consequente escassez de alimentos. Os senhores feudais ento passaram a aumentar a carga de trabalho dos camponeses, bem como sua carga tribut-ria, a fim de preservar seus rendimentos. Tudo isso levou exploso de inmeras revoltas populares, que, como visto, colaboraram para o declnio da fase de expanso comercial europeia do perodo.

    Tais problemas, por outro lado, propiciaram a melho-ria das tcnicas de produo, o predomnio das atividades agrocomerciais e a mudana dos critrios de propriedade da terra, pois os produtores passaram a exigir proprieda-de exclusiva da terra em que investiam suas riquezas. E tudo isso contribuiu para o fim do regime feudal.

    Concomitantemente, a nobreza enfrentava problemas financeiros em decorrncia das guerras e da escassez de mo de obra, o que a levou a um progressivo endivida-mento com os burgueses.

    Disso tudo, acabaram saindo fortalecidos do sculo XIV a burguesia, o comrcio, a atividade manufatureira e os progressos tcnicos, que proporcionaram o aprimo-ramento da produo, principalmente da blica, da de roupas e tecidos e da construo naval (esta ltima viria a propiciar as grandes navegaes, impulsoras do mer-cantilismo e da modernidade).

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    Outro ente que saiu favorecido do sculo XIV foi a monarquia. O enfraquecimento da nobreza feudal levou expanso das atribuies, poderes e influncias dos monarcas, que tiveram papel decisivo na conduo da guerra e pacificao das revoltas populares.

    Alm disso, os burgueses viram nos monarcas um recurso legtimo contra as arbitrariedades da nobreza e um conveniente defensor de seus mercados. A incipiente unificao poltica era importantssima para o progresso do comrcio, haja vista que dela provinham a unificao de moedas, de pesos, de medidas, de impostos e de leis, bem como o aumento da segurana das rotas comerciais.

    Desse ambiente nasceu, aos poucos, a Era Moderna, impondo-se a partir do chamado Renascimento45, que foi tomando corpo na sociedade medieval, muito em decor-rncia do surgimento do pensamento humanista.

    O humanismo, embora tenha alcanado notoriedade no sculo XV, iniciou-se no sculo anterior, a partir de um conjunto de indivduos que conce