livro- percepcao de riscos

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PERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

Presidente da Repblica Luiz Incio Lula da Silva Ministro da Educao Fernando Haddad Universidade Federal do Cear Reitor Prof. Jesualdo Pereira Farias Vice-Reitor Prof. Henry de Holanda Campos Editora UFC Editor Prof. Antnio Cladio Lima Guimares Conselho Editorial Presidente Prof. Antnio Cladio Lima Guimares Conselheiros Prof. Adelaide Maria Gonalves Pereira Prof. Angela Maria R. Mota de Gutirrez Prof. Gil de Aquino Farias Prof. talo Gurgel Prof. Jos Edmar da Silva Ribeiro Coleo Estudos Geogrcos Coordenao Editorial Presidente Prof. Eustgio Wanderley Correia Dantas Membros Prof. Ana Fani Alessandri Carlos Prof. Antnio Jeovah de Andrade Meireles Prof. Christian Dennys Oliveira Prof. Edson Vicente da Silva Prof. Francisco Mendona Prof. Hrv Thry Prof. Jordi Serra i Raventos Prof. Jos Borzacchiello da Silva Prof. Jean-Pierre Peulvast Prof. Maria Elisa Zanella

Lucas Barbosa e Souza Maria Elisa Zanella

PERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

Fortaleza 2009

Percepo de Riscos Ambientais: Teoria e Aplicaes Copyright by Lucas Barbosa, Souza e Maria Elisa Zanella. Impresso Brasil / Printed in Brazil Efetuado depsito legal na Biblioteca Nacional TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Coleo Estudos Geogrcos Edies UFC Programa de Ps-Graduao em Geograa da UFC Campus do Pici, Bloco 911, Fortaleza - Cear - Brasil CEP: 60445-760 - tel. (85) 33669855 - fax: (85) 33669864 internet: [email protected] - email: [email protected] Diviso de Editorao Coordenao Editorial Moacir Ribeiro da Silva Reviso de Texto Leonora Vale de Albuquerque MTB 320/CE-JP Normalizao Bibliogrca CRB 3-801 Perptua Socorro Tavares Guimares Capa Jlio Amadeu Programao Visual Luiz Carlos Azevedo

Catalogao na Fonte Bibliotecria Perptua Socorro T. Guimares CRB 3 80198 S 710 p Souza, Lucas Barbosa e Percepo de Riscos Ambientais:Teoria e Aplicaes./ Lucas Barbosa, Souza e Maria Elisa Zanella. Fortaleza: Edies UFC, 2009. 240 p. ilus.; Isbn: 978-85-7282-372-2 (Coleo Estudos Geogrcos, 6) 1. Geograa 2. Riscos ambientais I. Souza, Lucas Barbosa e II. Zanella, Maria Elisa III. Ttulo CDD: 910

SUMRIOINTRODUO .......................................................7 CAPTULO 1 RISCOS AMBIENTAIS: AMEAA E VULNERABILIDADE ..........................................11 CAPTULO 2 PERCEPO DOS RISCOS E PREVENO DE ACIDENTES ...................................................29 CAPTULO 3 PERCEPO DOS RISCOS DE ESCORREGAMENTOS NA VILA MELLO REIS, JUIZ DE FORA (MG) ...........71 CAPTULO 4 PERCEPO DOS RISCOS DE INUNDAO NO GENIBA II: FORTALEZA CE ............................153 ALGUMAS CONSIDERAES ..............................215 BIBLIOGRAFIA ..................................................221

INTRODUODesde o incio da civilizao, o homem tem se defrontado com oportunidades e riscos na sua relao com a natureza. As oportunidades so representadas pelos recursos naturais essenciais vida, tais como o alimento, a gua, os melhores solos, as fontes de energia. Esses recursos se tornam critrio fundamental no processo de deciso sobre a localizao espacial dos grupos humanos, inclusive motivando inmeros conflitos ao longo da histria. No entanto, ao decidir se instalar em um determinado local, com o intuito de melhor aproveitar seus recursos e sua posio, o homem tambm passa a se relacionar com determinados fenmenos naturais que podero amea-lo. Essa relao, marcada por oportunidades e riscos, no diferente da que vivemos hoje, embora novos elementos tenham sido introduzidos pela urbanizao e pela desigualdade social. Os riscos ambientais tm sido abordados segundo um ponto de vista objetivo, empregando-se os mtodos e as tcnicas tpicos das cincias naturais. Porm, diante de tantas perguntas sem respostas, tornou-se inevitvel a adoo de abordagens alternativas, que pudessem auxiliar a compreenso da controversa

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relao entre o homem e os riscos. Tal relao no se estabelece simplesmente a partir de aspectos objetivos, mas, ao contrrio, profundamente influenciada por questes subjetivas. Portanto, sem que se compreenda a percepo que temos dos riscos, pouco provvel que possamos chegar a concluses razoveis e, mais ainda, a interferir nessa relao. Os primeiros gegrafos que se preocuparam com a percepo dos riscos foram os norte-americanos. Os trabalhos mais expressivos nesse campo do conhecimento foram elaborados a partir da dcada de 1960 e, em pouco tempo, passou a existir um arcabouo terico capaz de sustentar as pesquisas em outros pases. No entanto, as principais obras de referncia nesse campo do conhecimento ainda carecem de verses em portugus, o que dificulta sua ampla divulgao entre o pblico brasileiro. Talvez por motivos como esse, poucos estudos foram realizados sobre a percepo de riscos no Brasil, sendo que a produo normalmente se restringe a teses, dissertaes, monografias e artigos publicados em peridicos cientficos. Ainda que restritos a poucas localidades, esses trabalhos tm atingido resultados bastante esclarecedores no que diz respeito relao das pessoas com os riscos, contribuindo para a formulao de estratgias voltadas preveno de acidentes. Por isso, pode-se vislumbrar uma enorme gama de possibilidades quanto a novas pesquisas, que considerem nossa realidade social e que privilegiem os tipos de riscos ambientais mais comuns no pas. Essas novas investigaes, tomadas no apenas como potencialidades, mas tambm como necessidades, constituem o principal motivador deste livro. Busca-se, pois, colaborar para a divulgao dos principais fundamentos no plano terico e oferecer algum subsdio, em lngua portuguesa, a estudantes e profissionais que busquem pesquisar novas localidades e novos

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contextos, com foco nos riscos ambientais enquanto fenmenos percebidos. Os dois primeiros captulos foram dedicados aos aspectos tericos: no Captulo 1, procurou-se tecer uma discusso preliminar a respeito da noo de risco; no Captulo 2, buscou-se enfocar a percepo de riscos de modo mais especfico, por meio das obras fundamentais j produzidas com essa orientao. J os dois ltimos captulos versam sobre duas pesquisas aplicadas, referentes tese de doutorado e pesquisas dos autores: o Captulo III se refere ao estudo de Lucas Barbosa e Souza sobre a percepo de riscos de escorregamentos em Juiz de Fora (MG) e o Captulo IV a uma pesquisa realizada em reas de risco de inundaes em Fortaleza (CE). Ainda que pesem as limitaes certamente existentes, espera-se que os leitores possam encontrar parte das orientaes terico-metodolgicas necessrias, ilustradas com estudos aplicados, sobre a percepo de riscos ambientais.

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CAPTULO 1 RISCOS AMBIENTAIS: AMEAA E VULNERABILIDADE importante considerar que as noes de risco, de ameaa e de vulnerabilidade vm sendo utilizadas em diversos campos disciplinares, o que dificulta o consenso quanto s ideias que possam representar. Desse modo, inmeras so as interpretaes e as discusses dos pesquisadores a respeito do tema. Entretanto, essa pluralidade e, em alguns casos, a falta de rigor conceitual, tm se mostrado comprometedoras no caso da investigao dos riscos ambientais, j que dificultam o dilogo entre os diferentes saberes envolvidos, sobretudo entre as cincias naturais e as cincias humanas. Kates (1978, p. 98) alerta para o fato de que the creation of taxonomies or classifications of hazard events and consequences should be approached with caution. Portanto, todo o cuidado necessrio a fim de que possveis imprecises no impli-

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quem equvocos mais graves, especialmente sob o ponto de vista do mtodo ou at mesmo no plano ideolgico. Sendo assim, o presente captulo tem como objetivo destacar as principais noes e o tipo de abordagem empregados ao longo deste livro, o que reflete o posicionamento dos autores frente questo dos riscos ambientais. No se tem o desejo de esgotar as possibilidades conceituais, o que certamente exigiria uma reviso bibliogrfica muito mais vigorosa. Tampouco seria possvel negar a contribuio de outros tipos de enfoque. Porm, a partir de uma concepo especfica, pretende-se legitimar as escolhas que guiaram a elaborao do texto e a realizao de nossas pesquisas. Entre vrios pesquisadores do campo das geocincias, a noo de risco frequentemente tratada como um produto da probabilidade de ocorrncia de um fenmeno natural indutor de acidentes pelas possveis consequncias que sero geradas (perdas econmicas ou sociais) em uma dada comunidade. Com base nessa ideia, a expresso R (risco) = P (probabilidade) x C (consequncias) e suas derivaes so difundidas por vrios autores no Brasil e no exterior, dentre os quais podemos destacar Varnes (1985), Cerri (1993), Cerri e Amaral (1998), e Fernandes e Amaral (2000). Essa concepo tambm considerada pela Poltica Nacional de Defesa Civil (BRASIL, 1994), aprovada pela Resoluo No 02 de 12 de dezembro de1994 do Conselho Nacional de Defesa Civil, que define o risco como uma medida de danos expressa em termos de probabilidade estatstica. Ainda que pese sua ampla utilizao, essa noo tem sido rejeitada por alguns autores, tais como Campos (1999), Lavell (1999) e Cardona (2001), que entendem que a situao de risco caracterizada pela presena simultnea (ou pela interao) de dois componentes: a ameaa e a vulnerabilidade. A ameaa est relacionada s condies fsico-naturais do terreno ou da reaLucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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No se puede ser vulnerable si no est amenazado y no existe una condicin de amenaza para un elemento, sujeto o sistema si no est expuesto y es vulnerable a la accin potencial que representa dicha amenaza.

Lavell (1999, p. 3) corrobora essa ideia ao comentar que:An cuando para fines analticos se suelen separar estos dos factores, estableciendo una aparente autonoma de ambos, en la realidadPERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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ocupada, indicando sua maior ou menor suscetibilidade ocorrncia de fenmenos que podem colocar o homem em situao de perigo, como os escorregamentos, as inundaes, os terremotos, os furaces etc. J a vulnerabilidade diz respeito s condies objetivas e subjetivas de existncia, historicamente determinadas, que originam ou aumentam a predisposio de uma comunidade a ser afetada pelos possveis danos decorrentes de uma ameaa (CAMPOS, 1999). Pautados nessa viso, Marandola Jr. e Hogan (2004, p.19) explicam que o risco uma situao ou uma condio. primeira vista, os conceitos de ameaa e de vulnerabilidade podem apresentar alguma similaridade com os conceitos de probabilidade e de consequncia (componentes da expresso R = P x C), mas acabam por traduzir de maneira mais fiel as situaes de risco, especialmente pela forma como so tratados, mantendo profunda dependncia entre si e com isso apresentando uma menor dose de reducionismo. Para Campos (1999), a expresso R = P x C pode causar um erro de interpretao, oferecendo uma viso distorcida de que probabilidade e consequncia podem ser multiplicadas simplesmente, segundo uma lgica matemtica. Na verdade, as relaes entre os componentes da situao de risco so muito mais complexas que uma operao aritmtica. Por isso, Cardona (2001, p. 2) justifica o entendimento do risco como resultado da existncia conjunta dos componentes ameaa e vulnerabilidade, afirmando que:

14es imposible hablar de amenaza sin la presencia de vulnerabilidad y viceversa. [...] Si no existe una propensidad de sufrir dano al encontrarse frente a un evento fsico determinado, no hay amenaza, sino solamente un evento fsico natural, social o tecnolgico sin repercusiones en la sociedad.

Em Veyret (2007), o risco, objeto social, define-se como a percepo do perigo, da catstrofe possvel e portanto, ele existe apenas em relao a um indivduo, a um grupo social, uma sociedade que o apreende e com ele convive por meio de prticas especficas. Assim, segundo a autora, no h risco sem uma populao ou indivduo que o perceba e que poderia sofrer seus efeitos. Acrescenta ainda que[...] o risco e a percepo que se tem dele no podem ser enfocados sem que se considere o contexto histrico que o produziu e, especialmente, as relaes com o espao geogrfico, os modos de ocupao do territrio e as relaes sociais caractersticas da poca. (p. 26).

De acordo com Veyret (2007), a ocorrncia da lea (acontecimento possvel e sua probabilidade de realizao), podem afetar mais ou menos fortemente o funcionamento das sociedades humanas e que fatores socioeconmicos frequentemente aumentam a vulnerabilidade das populaes ameaadas. A impreciso da terminologia empregada no conceito de risco ainda alimentada pelas diferentes tradues do ingls hazard, bastante comum na literatura norte-americana. Para Marandola Jr. e Hogan (2003, p. 5): A verdade que no h uma palavra correspondente em portugus (ou em outras lnguas latinas, como o Espanhol e o Francs) que exprima o verdadeiro significado desta palavra. Em lngua portuguesa, autores da Geografia tm interpretado o termo hazard ora como risco, ora como acidente. Xavier (1996) procurou adot-lo como sinnimo de risco, j MonteiroLucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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(1991) optou pela traduo como acidente. Na verso em portugus da obra de Gregory (1992), o termo foi traduzido como acaso. Em lngua espanhola, Castro (2000) props a traduo de hazard como perigo, traduzindo mais fielmente o sentido da expresso em ingls e fornecendo um significado similar ideia de ameaa, considerada enquanto possibilidade. No artigo em que se discute a terminologia no campo dos riscos ambientais, Castro (2000, p.6) afirma:En definitiva, se observa en todos los casos que la tendencia general es que los diccionarios geogrficos usan indistintamente los trminos riesgo, peligro y a veces catstrofe para significar el mismo fenmeno, creando as gran confusin conceptual.

Smith (2001, p.6), por sua vez, apresenta um expressivo esclarecimento sobre o significado dos termos risk e hazard:Risk is sometimes taken as synonymous with hazard, but risk has the additional implication of the chance of a particular hazard actually occurring. Hazard is best viewed as a naturally occurring or human-induced process, or event, with the potential to create loss, that is, a general source of future danger. Risk is the actual exposure of something of human value to a hazard and is often regarded as the product of probability and loss.

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Empregando outras palavras, Marandola Jr. e Hogan (2003, p.5, grifo dos autores) endossam a explicao anterior: o que estar em risco? estar suscetvel ocorrncia de um hazard. Portanto, pode-se entender o termo hazard como sinnimo de ameaa ou perigo, enquanto risk refere-se existncia conjunta de ameaa (ou perigo) e vulnerabilidade, aproximando-se da proposta de Campos (1999), Lavell (1999) e Cardona (2001). Dentro dessa linha de raciocnio, a expresso environmental hazard conceituada por Smith (2001, p.17) como:

16Extreme geophysical events, biological processes and major technological accidents, characterized by concentrated releases of energy or materials, which pose a largely unexpected threat to human life and can cause significant damage to goods and the environment.

Partindo dessa definio e conhecendo-se a diferena entre hazard e risk, podemos inferir que a expresso risco ambiental refere-se a uma situao de ameaa ambiental (de ordem fsica, tecnolgica e at mesmo social) atuando sobre uma populao reconhecidamente vulnervel. Logo, os riscos devem ser tratados como resultado da intricada relao entre ameaa e vulnerabilidade, que apresentam uma profunda dependncia entre si. A noo de risco se estabelece com base na relao conflituosa entre o homem e o seu ambiente, em um processo de mtua influncia. Portanto, devese procurar tambm rejeitar a ideia maniquesta da existncia de um evento natural agressor atuando sobre uma sociedade que, por sua vez, tida como vtima. As palavras de Gilbert (2002, p.15) reforam essa perspectiva:No domnio dito dos riscos naturais, colocam-se dificuldades cada vez maiores para defini-los em relao ao que seria imputvel natureza, considerando a relevncia dos fatores antrpicos. Revela-se especialmente problemtico apreender os riscos naturais, uma vez que no se baseiam mais principalmente, ou mesmo exclusivamente, no acaso como fora ativa e as vulnerabilidades ligadas aos fatores antrpicos no so reduzidas a simples elementos passivos, ou simples defesas.

A classificao dos diferentes tipos de riscos ambientais pode ser construda com base nos fenmenos que constituem a ameaa. Nessa perspectiva, Cerri e Amaral (1998) propem uma classificao para os riscos ambientais, apresentada na Figura 1. Tal classificao parte do princpio de que os riscos ambientais constituem a maior classe dos riscos que, por sua vez,Lucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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so subdivididos em classes e subclasses. Essa proposta encontra respaldo em Burton, Kates e White (1993), segundo os quais as ameaas ambientais podem ser agrupadas, por efeito de convenincia didtica, em trs setores: natural, tecnolgico e social. Ideia parecida tambm preconizada por Jones (1993b, p.162), que comenta que [...] in reality, hazard and it more complex product, risk, is ubiquitous and more meaningfully portioned into three elements: environmental hazards [...], technological hazards [...] and social hazards [...]. Entretanto, existem muitas outras formas de classificao dos riscos. Na Poltica Nacional de Defesa Civil (BRASIL, 1994), por exemplo, a classificao considera tambm a evoluo dos fenmenos (de natureza sbita, gradual etc.) e a intensidade ou porte do possvel acidente, adicionalmente origem da ameaa (de ordem natural, de ordem humana ou mista).

Figura 1 - Proposta de Classificao dos Riscos Ambientais. Fonte: Adaptado de Cerri e Amaral (1998, p.302).

De acordo com a proposta de Cerri e Amaral (1998), no grupo dos riscos tecnolgicos esto os vazamentos de produtosPERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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txicos, os acidentes nucleares, as exploses de material inflamvel etc. No grupo dos riscos sociais encontram-se os riscos ligados ao terrorismo, s guerras, aos sequestros, aos homicdios, dentre outros. Os riscos naturais apresentam uma maior subdiviso, envolvendo tanto os riscos fsicos quanto os riscos biolgicos. Os riscos naturais fsicos esto organizados em trs outros grupos menores: riscos atmosfricos (furaces, tornados etc.), riscos geolgicos (terremotos, escorregamentos etc.) e riscos hidrolgicos (inundaes etc.). J os riscos biolgicos so divididos em riscos ligados flora (pragas em lavouras etc.) e em riscos ligados fauna (epidemias etc.). Por sua vez, os riscos geolgicos podem ser de dois tipos: decorrentes de processos exgenos (escorregamentos, quedas, fluxos etc.) ou decorrentes de processos endgenos (terremotos, erupes vulcnicas etc.). Contudo, embora alguns processos possam estar operacionalmente inseridos no campo dos riscos naturais, muitos deles tm sua origem ou agravamento sob condies de influncia humana, especialmente quando se manifestam em reas urbanas. A esse respeito, Lavell (1999, p.5) comenta que:Existe una serie creciente de eventos fsicos que afectan a las ciudades, que aparentan ser naturales, pero en sua esencia son creados por la intervencin humana. Estos eventos se gestan en la interseccin de la sociedad con los procesos de la naturaleza, y pueden convenientemente denominarse eventos, o en su caso, amenazas socionaturales.

Jones (1993b) recomenda a utilizao do termo environmental hazards em detrimento de natural hazards, pois considera que o primeiro pode englobar tambm aqueles processos causados ou agravados pelas atividades humanas. Da mesma forma, Burton, Kates e White (1993) alertam para o fato de que, porLucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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fora de convenincia, os riscos ambientais podem ser classificados em tipos especficos, mas na verdade apresentam causas complexas. Natureza, sociedade e tecnologia se misturam para formar vulnerabilidade e tambm resilincia s ameaas. No existem riscos puramente naturais, tecnolgicos ou sociais, e suas consequncias no podem ser examinadas separadamente das respostas humanas. Os riscos de inundaes e de escorregamentos se inserem nessa perspectiva, em funo da multiplicidade dos seus elementos condicionantes. Na Geografia, o risco ambiental est diretamente vinculado possibilidade da populao ser negativamente afetada por um fenmeno geogrfico excepcional, como, por exemplo, de ordem climtica. Assim, as regies, reas e populaes vulnerveis so aquelas que podem ser atingidas por algum evento desse tipo e que, adicionalmente, no possuem condies para suport-lo. Por suas caractersticas geomorfolgicas ou por sua localizao geogrfica, certas reas so mais ameaadas por tais eventos. Exemplo disso so as reas de risco de inundaes e de escorregamentos que, por sua condio geomorfolgica e de localizao (plancie aluvial localizada junto aos rios ou encostas ngremes), aliada aos condicionantes climticos (eventos pluviomtricos concentrados) e ocupao por populaes carentes, tornam-se, no ambiente urbano, reas altamente vulnerveis (DESCHAMPS, 2004). Diante disso, o interesse pelo estudo dos riscos ambientais (ou riscos naturais, conforme alguns autores) e das suas consequncias para o homem levou a Unio Geogrfica Internacional (UGI) a criar, em 1968, a Comisso Homem e Ambiente, encarregada de promover pesquisas sobre o assunto. Os trabalhos realizados no perodo 1968-1972 foram posteriormente selecionados e editados por Gilbert White, presidente da referida comisso, em 1974: Natural Hazards (local, national, global).PERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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Tambm para White (1974), a existncia do risco entendida somente quando pessoas podem ser por ele afetadas. A atividade humana, tentando reduzir o impacto negativo do evento, denominada ajustamento e est relacionada com a percepo que os indivduos tm deste evento. Assim, foram estabelecidas algumas normas para as pesquisas nesse campo: estimar a extenso da ocupao humana nas reas sujeitas aos eventos naturais extremos; examinar como os indivduos percebem os eventos extremos e o risco decorrente dos mesmos; analisar o processo de escolha de ajustamentos pelas populaes atingidas para reduo do perigo; analisar e determinar a funcionalidade dos ajustamentos realizados pelas populaes. estimar quais seriam os efeitos das variaes das polticas pblicas sobre estas respostas humanas. O mesmo autor apresentou alguns temas para serem investigados por meio de pesquisas, formulados pela comisso da UGI: motivao da persistncia da ocupao humana em reas ameaadas por eventos extremos da natureza; caracterizao dos diferentes tipos de respostas das pessoas a referidos eventos; causa da variao na percepo e estimativa do risco; escolha das formas de ajustamento individual; tipo de avaliao da compensao econmica por indivduos; escolha do ajustamento em mbito coletivo.

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Essas pesquisas, aplicadas pela Geografia do Comportamento e da Percepo, foram bastante desenvolvidas a partir da dcada de 1960. A noo de vulnerabilidade tambm tem sido abordada em diferentes reas do conhecimento. Na cincia econmica est atrelada ao desempenho macroeconmico diante dos choques externos e, mais recentemente, integrao econmica e, no contexto das famlias ou domiclios, no que se refere reduo de ingressos em crises econmicas (DESCHAMPS, 2004). No final dos anos 1990, a noo de vulnerabilidade ganhou fora nas cincias sociais, e seu conceito continua sendo discutido e aprimorado por diversos autores latino-americanos, (KA ZTMAN, 1999, 2000 e 2001; RODRIGUEZ, 2000 e 2001; PIZARRO, 2001 e BUSTAMANTE, 2000; citados por DESCHAMPS, 2004) que o vm aplicando ao tema populao e desenvolvimento. Ao analisar os referidos autores, a autora menciona que:Esses autores, em distintas abordagens, adotam a noo de vulnerabilidade vinculada pobreza (reflexo da grande quantidade de movimentos de entrada e sada dessa condio) e como componente de crescente importncia dentro do complexo de desvantagens sociais e demogrficas que se delineiam na modernidade tardia. A noo de vulnerabilidade no mbito das relaes entre populao e desenvolvimento pode igualmente ser vista como o aspecto negativo mais relevante do modelo de desenvolvimento baseado na liberalizao da economia e na abertura comercial, e tambm como a manifestao mais clara da carncia de poder que experimentam grupos especficos, mas numerosos, da humanidade. (DESCHAMPS, 2004, p.18).

De acordo com Guimares (1993), so vulnerveis aquelas pessoas cujas condies sociais, culturais, tnicas, polticas, econmicas, educacionais e de sade apresentam-se com diferenas estabelecidas entre elas e a sociedade na qual se inserem transformadas em desigualdade.PERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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Documento da CEPAL (2002) considera vulnerabilidade social como a condio de exposio a riscos, articulada com a possibilidade de controlar os efeitos da materializao do mesmo, ou seja, a capacidade de cada indivduo, famlia ou comunidade de enfrentar os riscos, mediante uma resposta interna ou por meio de um apoio externo. A incapacidade para dar respostas pode ser devido incapacidade de enfrentamento dos riscos ou pela inabilidade de adaptao a situao. Para Kaztman (2000, p. 7), vulnerabilidade a incapacidade de uma pessoa ou de um domiclio para aproveitarse das oportunidades, disponveis em distintos mbitos socioeconmicos, para melhorar sua situao de bem-estar ou impedir sua deteriorao.

Portanto, em alguns casos, o mercado, o Estado e a sociedade podem oferecer oportunidades, mas estes grupos no esto aptos a aproveit-las. Conforme aponta Cardoso (2008), a desigualdade de acesso s condies urbanas de vida se expressa tambm como desigualdade ambiental, pois as populaes com menor poder aquisitivo tendem a se localizar nas chamadas reas de risco, ou seja, reas de maior exposio a situaes insalubres (contaminao de gua, do solo, e do ar) e inseguras (riscos de acidentes de diversos tipos). Assim, a vulnerabilidade social encontra-se diretamente relacionada com grupos vulnerveis, ou seja, populaes que, por determinadas contingncias, so menos propensas a uma resposta positiva quando da ocorrncia de algum evento adverso. Nesses termos, a noo de risco torna-se fundamental para o desenvolvimento do estudo da vulnerabilidade. A sociedade moderna, caracterizada pela sua capacidade de gerar riquezas e distribu-las desigualmente, em uma proporo at ento desconhecida, ganha, na perspectiva de BeckLucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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(1986), uma outra dimenso: deixa exclusivamente de ser uma sociedade baseada no princpio da escassez e torna-se uma sociedade cada vez mais saturada, mais cheia de imponderveis e efeitos no previsveis. Ns ainda no vivemos em uma sociedade de risco, mas tambm no vivemos mais em uma sociedade de escassez caracterizada por conflitos de distribuio. (BECK, 1986, p. 27). O autor fala, na verdade, dos pases desenvolvidos, j que no possvel dizer que a grande maioria da populao global vive em sociedades que superaram o problema da escassez de bens bsicos e de sua distribuio desigual entre os diferentes grupos sociais. A noo de risco na sociedade moderna est ligada s condies de incerteza, insegurana e falta de proteo, que se manifestam nas esferas econmica, ambiental, social e cultural, e em que se misturam progresso e risco, dialtica apontada por Beck (1986). E os novos desafios a serem enfrentados so a globalizao, a individualizao, o desemprego, o subemprego, a revoluo dos gneros e os riscos globais da crise ecolgica, dentre outros. (DESCHAMPS, 2004). Giddens (1991) fala que o risco atual fabricado e depende cada vez menos das contingncias naturais e cada vez mais de intervenes sociais e culturais, que em alguns casos desencadeiam desastres naturais. Nesse sentido, o futuro altamente incerto e todos os atores, a princpio, so passveis de danos, ou seja, vulnerveis (CEPAL/CELADE, 2002). Exemplo disso so os riscos ambientais que atingem uma escala global, tais como a intensificao do aquecimento da atmosfera e todos os efeitos por ele derivados, tambm incertos. Essas incertezas colocam cientistas e polticos como intrpretes do perigo numa posiochave. Assim, o risco pode sofrer minimizao ou dramatizao. Para as metrpoles, a denominao riscos ambientais urbanos, segundo considera Jacobi (2004), pode englobar umaPERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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grande variedade de acidentes. Em seu cotidiano, a populao, principalmente a de baixa renda, est sujeita aos riscos de inundaes, escorregamentos de encostas ngremes, poluio e contaminao do solo e da gua, acidentes com cargas de material txico, convivncia perigosa com mineraes etc. Portanto, no h como negar a relao existente entre riscos ambientais e o uso e ocupao do solo nas reas urbanas. Essa relao marca [...] os problemas ambientais de maior dificuldade de enfrentamento e, contraditoriamente, onde mais se identificam competncias de mbito municipal. ( JACOBI, 2004, p.170). Ao tratar dos riscos ambientais urbanos, Mendona (2004b) direciona suas discusses para as concepes e tratamento dos problemas relacionados aos espaos dos citadinos e ao ambiente urbano. Menciona que tais problemas foram tratados por um longo perodo na perspectiva de impactos urbanos, nos quais se privilegiou um tratamento de cunho naturalista, com destaque para estudos relacionados ao verde urbano, degradao dos recursos hdricos, do ar e dos solos e s inundaes e escorregamentos, entre outros. Outros estudos utilizam para compreender os problemas ambientais urbanos, concepes relativas s diferenas no ritmo da natureza e da sociedade, tais como os de Serres (1989) e Santos (1996). Nessas anlises, o tempo da natureza lento e o da sociedade, particularmente em sua fase tecnolgica presente, rpido. Para essa concepo, Mendona faz a seguinte considerao:[...] esta perspectiva evidencia considervel generalizao, pois nem todo fenmeno natural se processa de forma lenta e nem toda dinmica social se d de forma rpida. Ritmos lentos e ritmos velozes so, sobretudo, condies relativas do estado momentneo de cada fato ou fenmeno, assim lentido e rapidez so observados tanto na natureza quanto na sociedade, afinal os eventos catastrficos da

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25primeira (natural hazards), por exemplo (um terremoto, uma chuva torrencial concentrada, uma tempestade, etc.), desenvolve-se de forma muito rpida, ao mesmo tempo em que a parcela da sociedade desprovida de tecnologia (a maioria da humanidade) vive a merc do tempo lento. (MENDONA, 2004b, p.140).

O referido autor tambm menciona que [...]a parcela da populao que vive no tempo lento muito mais vulnervel aos impactos e riscos dos fenmenos ligados ao tempo rpido da natureza. (MENDONA, 2004b, p. 141). Dessa maneira, ao se encontrar exposta a fenmenos naturais, tecnolgicos ou sociais impactantes e de ordem eventual e/ou catastrficos, uma parte da populao urbana, principalmente aquela que vivencia os problemas vinculados aos processos de excluso e injustia social, passou a evidenciar condies de risco ambiental, havendo necessidade de abordagens mais complexas dos problemas ali vivenciados. Assim, segundo Mendona (2004b), a noo de risco ambiental liga-se s cincias da natureza e s cincias da sociedade, e conduz a uma abordagem dual e de interface que concebe os riscos urbanos como produto combinado de um fenmeno aleatrio e de uma vulnerabilidade (DUBOIS-MAURY e CHALINE, 2002; apud MENDONA, 2004b). Neste sentido, Mendona faz o seguinte comentrio:Nesta abordagem as condies de vida da populao passaram a desempenhar importante papel na constituio e compreenso dos problemas ambientais urbanos e revelou, ao mesmo tempo, diferenciaes claras entre a cidade formal e a cidade informal. (MENDONA, 2004b, p.141).COLEO ESTUDOS GEOGRFICOS

Outro aspecto considerado por Mendona (2004b) que, ao se tratar de riscos ambientais urbanos, necessrio levar em conta suas diferenas em relao s eventualidades e permanncias. A populao urbana est permanentemente exposta a riscos cotidianos tais como incndios e poluio, entre outros,PERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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sendo que estes riscos no so geralmente levados em conta, ao passo que os eventos extremos, sim. Assim que Dubois-Maury e Chaline (2002), citados por Mendona (2004b), apontam a necessidade de se estabelecer escalas de gravidade e uma hierarquia dos riscos constatados ou potenciais, que demandam critrios objetivos e tambm aspectos socioeconmicos, que variam de um pas para outro. Tendo como pressuposto a concepo de impactos e riscos ambientais, e em virtude da complexidade dos problemas urbanos atuais, novas abordagens tm sido lanadas para o entendimento dos referidos problemas. A anlise socioambiental de Mendona (2002), a sustentabilidade e a vulnerabilidade socioambientais so exemplos nos quais o espao socioambiental concebido como aquele onde vive e no qual se articulam sociedade e natureza indissoluvelmente (GRA ZIA e QUEIROZ, 2001). Confalonieri (2003) menciona a importncia da noo de vulnerabilidade no estudo dos problemas ambientais urbanos e na sua concepo[...] o conceito de vulnerabilidade social [...] tem sido utilizado para a caracterizao de grupos sociais que so mais afetados por estresse de natureza ambiental, inclusive aqueles ligados ao clima. (CONFALONIERI, 2003, p.200).

Ao elaborar estudo sobre a Vulnerabilidade Socioambiental da Regio Metropolitana de Curitiba, Deschamps (2004) identificou reas onde coexistem riscos ambientais e populaes em situao de vulnerabilidade social (reas habitadas por propores elevadas de indivduos e famlias que no possuem recursos de qualquer natureza para responder adequadamente ocorrncia de um evento ambiental adverso). Identificou que nas reas sujeitas a inundaes, por exemplo, esto localizadasLucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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tambm as reas classificadas nos estratos superiores de vulnerabilidade social, e conclui que:H uma estreita relao entre a localizao espacial dos grupos que apresentam desvantagens sociais e aquelas reas onde h risco de ocorrer algum evento adverso, ou seja, populaes socialmente vulnerveis se localizam em reas ambientalmente vulnerveis. (DESCHAMPS, 2004, p.140).

Sendo assim, a expresso risco natural, apesar de sua forte vinculao com os fenmenos extremos da natureza, deve ser compreendida sob um ponto de vista mais amplo, que remete noo de risco ambiental. Nesse sentido, esses riscos passam a ser tratados tambm como fenmeno social, j que atingem populaes socialmente vulnerveis, como as que normalmente se instalam em reas urbanas sujeitas a inundaes e a escorregamentos. Tal perspectiva se refora quando se trata de uma abordagem perceptiva dos riscos, aspecto que se pretende demonstrar ao longo deste livro.

PERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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CAPTULO 2 PERCEPO DOS RISCOS E PREVENO DE ACIDENTESTodo o universo da cincia construdo sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a prpria cincia com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experincia do mundo da qual ela a expresso segunda. (Merleau-Ponty, 1999, p.3)

Neste captulo sero apresentados e discutidos os principais aspectos tericos acerca da percepo dos riscos, bem como as diferentes categorias por meio das quais ela se manifesta e pode ser empiricamente avaliada. Pretende-se tambm destacar que o estudo da percepo dos riscos pode auxiliar no trabalho de preveno de acidentes, por exemplo, como base para a elaborao de estratgias de comunicao, de educao ambiental e de participao popular.

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2.1 Evoluo dos Estudos Sobre Percepo dos RiscosOs primeiros estudos sobre os riscos ambientais foram realizados nos Estados Unidos, no incio do sculo XX, quando o governo daquele pas solicitou ao seu Corpo de Engenheiros que propusesse medidas para o controle das inundaes que frequentemente assolavam vrias cidades e reas rurais. Visando soluo de um problema concreto, as primeiras investigaes privilegiaram o aspecto tcnico e a anlise de custo-benefcio correspondente ocupao de reas sujeitas a inundaes. No ano de 1933, foram apresentados ao Congresso Federal estadunidense 308 informes, contendo anlises e recomendaes e constituindo o resultado final do trabalho realizado pela equipe (WHITE, 1973). No entanto, muitas questes ainda pareciam sem respostas, como por exemplo, aquelas ligadas avaliao dos riscos pelos prprios moradores e s decises que estes tomavam frente s situaes de ameaa. Diante do desafio em responder a essas perguntas, profissionais de outras reas foram convidados a participar e nesse cenrio surgiram os primeiros trabalhos sobre a percepo dos riscos. O emprego da abordagem perceptiva no estudo dos riscos tornou-se, ento, difundido principalmente a partir da dcada de 1960, sob a responsabilidade de gegrafos como Gilbert F. White, Ian Burton e Robert W. Kates. (WHITE, 1973; CASTRO, 2000; MARANDOLA Jr. e HOGAN, 2004). Segundo White (1974), por meio dessas pesquisas pioneiras, buscava-se compreender as dependncias recprocas entre os fatos humanos e os fenmenos do ambiente fsico-natural, procurando-se evitar certas concepes a priori, alm dos exageros tpicos do determinismo geogrfico.Lucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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Entre os trabalhos precursores no campo da percepo dos riscos, destaca-se o estudo elaborado por Kates (1962), tendo como objetivo comparar a viso dos cidados comuns quela dos tcnicos e pesquisadores quanto aos riscos de inundaes em diferentes cidades estadunidenses. Foi calculado o tempo de retorno das inundaes, com base em tcnicas convencionais empregadas pela hidrologia, o que serviu de parmetro para avaliar a percepo da probabilidade de acidentes por parte dos sujeitos pesquisados. Alm desse aspecto, ligado ao conhecimento e experincia dos indivduos, foram tambm estudadas suas atitudes e suas respostas em relao s situaes de perigo. Ainda na dcada de 1960, Kates (1967) levou a cabo outro importante estudo, dessa vez investigando a percepo dos riscos relacionados s tempestades tropicais que costumam atingir a costa leste dos Estados Unidos. A pesquisa demonstrou que uma parcela muito pequena dos moradores costeiros entrevistados tomava medidas mnimas para a reduo do risco, enquanto a maioria parecia aceitar passivamente a situao. Alguns moradores inclusive se opunham s medidas preventivas, como a construo de barreiras para dissipar a energia das ondas, possivelmente por julgarem que seriam prejudiciais atividade pesqueira da qual tiravam seu sustento. Os primeiros estudos realizados, dentre os quais destacam-se os exemplos de Kates (1962 e 1967), mostraram-se extremamente reveladores e foram capazes de indicar que a imagem que os habitantes de lugares perigosos tm sobre a sua situao de risco e sobre as possveis medidas de combate podem ser bastante diferentes daquela que tm os tcnicos e os polticos (CASTRO, 2000). Ficou tambm comprovado que a percepo do risco representa um componente decisivo na estruturao de respostas ao perigo, influenciando vrios aspectos da vida individual e coletiva.PERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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O pioneirismo dos gegrafos norte-americanos no estudo da percepo dos riscos culminou, na dcada de 1970, com o lanamento de importantes livros sobre o assunto, traando as linhas gerais que viriam orientar outras investigaes em diferentes partes do mundo. Entre essas obras de referncia merecem destaque as de Hewitt e Burton (1971), de White (1974), de Kates (1978) e de Burton, Kates e White (1978), esta ltima reeditada na dcada de 1990. No Brasil, apesar de haver uma significativa demanda por estudos sobre a percepo dos riscos, foram realizados poucos trabalhos at o momento. No que diz respeito percepo de riscos de escorregamentos, merece destaque a contribuio de Xavier (1996), em estudo realizado em reas de risco do municpio de Belo Horizonte (MG). Ao contrrio dos colegas norteamericanos, Xavier (1996) observou uma forte aproximao entre a viso popular e a viso tcnica sobre as possveis solues para a questo dos riscos. Todavia, vrios sujeitos pesquisados possuem a ideia de que a chuva o principal fator responsvel pelos acidentes. Diante da situao de risco, muitos moradores permanecem espera da assistncia do governo ou mesmo da ajuda de Deus. Tais informaes mostraram-se de grande utilidade para o desenvolvimento de estratgias por parte do poder pblico, a fim de combater as situaes de risco nas encostas estudadas. Outra contribuio foi oferecida por Souza (1999), que procurou avaliar em uma escola pblica de Juiz de Fora (MG) o quanto os alunos percebiam os riscos existentes no bairro (escorregamentos e inundaes). Entre os principais pontos encontrados, destaca-se o fato dos acidentes e riscos ambientais nunca terem sido abordados pelos professores, embora os alunos apresentassem certo conhecimento emprico sobre o assun-

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to, inclusive com sugestes vlidas para a melhoria das condies de vida nos arredores da escola. Em estudo mais recente, Moreira e Fratolillo (2004) detectaram um significativo descompasso entre a viso tcnica e a viso popular sobre os riscos de escorregamentos em estudo realizado nas encostas favelizadas de Vitria (ES). O desconhecimento dos processos de risco, a falta de interesse com relao ao assunto e a baixa participao dos moradores nos processos decisrios so alguns motivos pelos quais Moreira e Fratolillo (2004) recomendam a adoo da abordagem perceptiva com o intuito de orientar futuras intervenes urbansticas e programas eficazes de educao ambiental na rea estudada. Entre os trabalhos j realizados no campo da percepo dos riscos de escorregamentos, cabe ainda mencionar a contribuio de Chardon (1997), atravs de estudo realizado na cidade de Manizales (Colmbia). Entre os principais resultados, esse autor comenta que a populao mais pobre tende a ignorar os riscos, porque tem preocupaes mais imediatas, como a necessidade de alimentao, alm da falta de perspectivas de melhoria social. Por essa razo, apenas cerca de 28% da populao ameaada admite que seu bairro se encontra em uma rea de risco. Apesar de todos os problemas, mais de 75% dos entrevistados se dizem satisfeitos com o seu bairro, sendo que a questo ambiental e os riscos no constituem, a princpio, prioridades locais. J com relao s pesquisas sobre percepo de riscos de inundaes, o primeiro trabalho brasileiro que se tem notcia foi o de Paschoal (1981), que investigou a percepo dos moradores do bairro Cambuci, localizado na cidade de So Paulo e palco de constantes episdios de inundaes desde a dcada de 1960. O estudo revelou importantes aspectos, tais como a percepo sobre a rea de influncia das inundaes; os episdiosPERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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mais lembrados; a conscincia com relao aos danos e s perdas econmicas causados; a sensibilidade dos moradores com relao ao tempo meteorolgico; e os ajustamentos adotados para a convivncia com o risco. Um outro aspecto evidenciado por Paschoal (1981) foi a ausncia de organizao coletiva por parte dos moradores, o que poderia fortalecer as suas reivindicaes junto ao poder pblico municipal de So Paulo. Pomplio (1990) tambm desenvolveu pesquisa sobre a percepo dos riscos de inundaes na Bacia Hidrogrfica do Rio Itaja, no estado de Santa Catarina. Os atributos pesquisados pela autora foram: a conscincia acerca do problema das inundaes; a memria ou a reminiscncia dos episdios; os principais prejuzos decorrentes; os ajustamentos adotados pelos indivduos; e seu o juzo de valor frente situao de risco. De acordo com o resultado da pesquisa, a autora evidenciou percepes e reaes comuns entre os diferentes grupos analisados, em termos espaciais, de especializao de atividades e de suas caractersticas socioculturais. Entretanto, observou que quanto maior a homogeneidade interna dos grupos e quanto menores forem as escalas temporais e espaciais de observao, maiores so as variveis que permitem percepo e reao comuns, indicando que elas esto na razo direta de suas experincias. Conforme pode ser notado entre as pesquisas mencionadas, a investigao no campo da percepo dos riscos (seja escorregamentos, inundaes ou outros tipos de riscos) apresenta, entre seus principais objetivos, o reconhecimento das diferentes respostas humanas tipologia de eventos extremos e s situaes de perigo. Desse modo, a abordagem perceptiva sobre os riscos ambientais, por intermdio de diferentes categorias de anlise, apresenta significativo potencial para colaborar com possveis iniciativas em benefcio da sociedade.

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2.2 Abordagem Terica Sobre a Percepo dos Riscos: Principais Categorias de AnliseAs pesquisas sobre os riscos ambientais realizadas por meio da abordagem perceptiva tm se mostrado extremamente reveladoras aos gegrafos. Contudo, antes de qualquer coisa, imprescindvel que haja ateno ao embasamento terico que dever conduzir a argumentao e aos elementos atravs dos quais a percepo dos riscos ser avaliada em termos prticos. Portanto, alguns aspectos temticos delineados pela literatura devem ser convenientemente retomados, a comear pela prpria noo de percepo dos riscos. Whyte (1985, p.115) explica o significado da expresso risk perception como the process whereby risks are subjectively, or intuitively, understood and evaluated. Para essa autora, apesar do termo risco ser abordado, pelo menos a princpio, como um aspecto objetivo da realidade, alguns estudos tm demonstrado que mesmo os cientistas tendem a estim-lo com base em uma boa dose de intuio. Burton, Kates e White (1993, p. 248) corroboram essa ideia e informam queCOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS

[...]an analysis of risk needs to take account to how it is perceived by the people directly affected, individuals and organizations involved in responding to risk, as well as the perceptions of scientific and technical analysts.

Para Kates (1978), influncias cognitivas podem atingir at os cientistas mais experientes, que so capazes de avaliar erroneamente a probabilidade de um acidente. Essas influncias seriam apenas mais dissimuladas do que as que atuam sobre o cidado comum. Desse modo, mesmo os indivduos mais informados ou instrudos podem ser influenciados, em maior ou menor grau,PERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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por fatores subjetivos e por isso deve-se considerar o papel desempenhado pela percepo tanto na avaliao leiga quanto na avaliao tcnica e cientfica dos riscos. Portanto, no h como avaliar o risco ambiental seno a partir da inter-relao entre o objetivo (operacional) e o subjetivo (percebido). Embora levando-se em considerao os prejuzos das comunidades afetadas por desastres ambientais, variaes nas percepes podem ser identificadas em grupos socioeconmicos e culturais diferenciados. Entretanto, percepes e reaes comuns tambm podem ser observadas. De acordo com Del Rio (1996, p.4), embora as percepes sejam subjetivas para cada indivduo, admite-se que existam recorrncias comuns, seja em relao s percepes e imagens, seja em relao s condutas possveis. Pomplio (1990, p.233), ao pesquisar as inundaes da Bacia do Rio Itaja, menciona em suas concluses:No obstante os diferenciados grupos de anlise, em termos espaciais, de especializao de atividades, e de caractersticas socioculturais, os mesmos revelaram algumas percepes e reaes comuns conforme observadas com base em idnticas respostas obtidas junto aos informantes. Contudo, chamamos a ateno para o fato de que, quanto maior for a homogeneidade interna dos grupos de anlises, e quanto menores forem as escalas temporais e espaciais de observaes, maiores so os nmeros de atributos que permitem identificao de percepo e reaes comuns e vice-versa. Esta constatao comprova a hiptese de que as percepes e reaes diferenciadas dependem das caractersticas prprias do indivduo, e que percepes e reaes comuns esto na razo direta de suas experincias face ao convvio com os sucessivos eventos.

Algumas caractersticas ou qualidades prprias das situaes de risco (portanto, parte da sua realidade objetiva) so especialmente capazes de influenciar a percepo, atenuando ou agravando a avaliao que se faz da realidade. Dentre essasLucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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caractersticas pode-se destacar a causa do risco, o tipo de consequncia, as vtimas envolvidas e o possvel cenrio de destruio. Whyte (1985) apresentou um conjunto de fatores, relacionados aos fenmenos climticos adversos e s suas consequncias, que normalmente interferem na percepo e nas respostas dos indivduos. O resultado pode ser averiguado no quadro 1. Por sua vez, Burton, Kates e White (1993) tambm explicam os fatores intervenientes que atuam sobre os diferentes tipos de respostas humanas aos eventos extremos da natureza: A. Magnitude: fora com que o evento ocorre, indicada pela cota de inundao, volume de material movimentado nas encostas, velocidade dos ventos, valores pluviais, pontos na escala Richter etc.; B. Frequncia: tempo mdio de retorno dos eventos extremos; C. Durao: tempo de manifestao do fenmeno minutos, horas, dias etc.; D. Extenso em rea: tamanho da rea afetada pelo evento;COLEO ESTUDOS GEOGRFICOS

E. Velocidade de deflagrao: rapidez com que o evento desencadeado, de forma sbita ou gradual; F. Disperso espacial: padro espacial da distribuio do evento, podendo ser linear, pontual etc.; G. Distribuio temporal: padro temporal da distribuio do evento, podendo ser anual, sazonal, aleatrio etc.

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38 Quadro 1 Caractersticas dos Processos Climticos Capa-

zes de Influenciar a Percepo e as Respostas dos IndivduosFORTE INFLUNCIA Alta probabilidade de ocorrncia Curto intervalo de recorrncia Expectativa de que ocorra em breve Evento extremo Evento imaginvel, de fcil denio Fortes consequncias Perdas de vidas humanas Vtimas identicveis Impactos concentrados Impacto direto sobre o bem-estar

FRACA INFLUNCIA Baixa probabilidade de ocorrncia Impactos nunca experimentados Expectativa de que ocorra no futuro Baixa variao em torno do habitual Incio e m difceis de identicar Fracas consequncias Efeitos indiretos sobre o bem-estar Sem perdas de vidas humanas Vtimas tratadas estatisticamente Impactos aleatrios Incerteza de que ir ocorrer Mecanismos e efeitos no entendidos Impactos pouco perceptveis

Razovel certeza de que ir ocorrer Mecanismos e efeitos inteligveis Impactos dramticos

Fonte: Adaptado de Whyte (1985, p.111). J para Lean (1991, p.26), a fora do evento o aspecto que mais exerce influncia sobre a percepo, porquanto afirma que public perception of events is very heavily weighted by their magnitude and very lightly weighted by their frequency. Essa caracterstica se deve aos impactos causados pelos eventos extremos, o que se explica especialmente pela sua magnitude (j que possuem baixa frequncia). Em suma, pode-se dizer que apesar do peso de todos os componentes listados anteriormente, a intensidade dos impactos continua sendo o principal parmetro no processo de avaliao subjetiva dos riscos, exatamente por estar relacionada aos prejuzos experimentados. Tais impactos tornam-se mais concretos e evidentes, por exemplo, por meio do nmero de vtimas fatais ou dos valores financeiros das perdas materiais, o que para Burton e KatesLucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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(1964) explica mais claramente as diferentes percepes e atitudes humanas em relao a um evento. Todavia, bvio que sua interpretao se reveste ainda de diferentes valores (culturais, religiosos etc.) e de outras caractersticas inerentes a cada indivduo, sem os quais no seria dotada de subjetividade. A esse respeito, Whyte (1985, p. 115) conclui:In risk perception, all ways of death cannot be assumed to be equal, nor all lives equal in value. Nor, at the same time, can events with different causes (though similar consequences) be expected to be viewed by those at risk with equal acceptance, resignation or outrage.

Nas variaes de percepes sobre os riscos ambientais, deve-se considerar, ainda, aqueles que observam o problema a partir de um ponto de vista externo, como os gestores pblicos. Esse fato tem sido notado por pesquisadores e mencionado na literatura. Por meio de dois exemplos prticos, Whyte (1977) aponta as diferenas de percepes entre grupos. Trata-se, no primeiro exemplo, dos impactos das voorocas localizadas nas encostas do Vale do Nochixtlan, no sudoeste do Mxico. Enquanto a administrao pblica procurava conter os fenmenos por meio de medidas tcnicas, os habitantes locais se ressentiam pela degradao gerada por tais medidas sobre os solos frteis para a lavoura, atividade econmica mais importante da regio. O outro exemplo refere-se remoo de habitaes precrias em algumas cidades da Inglaterra, devido s pssimas condies ambientais. Muitas vezes os indivduos se angustiam no novo local aquinhoado com melhor infraestrutura, sentindo-se solitrios pela falta dos colegas e de outros fatores que lhes eram importantes na moradia anterior. Desse modo, as solues tcnicas apresentadas para a tomada de deciso envolvem, frequentemente, anlises de custoPERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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benefcio assentadas em uma racionalidade exclusivamente econmica. Na maioria das vezes, esse modelo de otimizao racional fracassa ao materializar-se. Como possvel notar, variadas indagaes podero motivar as pesquisas sobre a percepo dos riscos. Por exemplo, procura-se compreender como diferentes indivduos ou grupos sociais percebem os riscos e se comportam diante dele, por que alguns riscos so aceitos e outros so rejeitados, quais so as medidas adotadas pelas pessoas para que possam conviver com o perigo e, em primeiro lugar, por que os indivduos vivem em reas de risco. A escolha pelo local de moradia constitui um resultado prtico da percepo, ou seja, trata-se de uma ao desencadeada a partir de um processo cognitivo. Da a afirmao de Park (1985, p.3): why people choose (often knowingly) to play Russian Roulette with natural hazards remains an elusive aspect of human behaviour. Burton, Kates e White (1993) salientam que as perdas decorrentes da moradia em local de risco podem ser compensadas pelo reduzido custo da habitao ou por outros benefcios, como a proximidade do trabalho. Whyte (1985, p. 118) comenta que it is often regarded as axiomatic that people will accept higher risks if they expect to be compensated directly or indirectly by higher benefits. Dessa forma, Whyte (1985) defende a necessidade de se avaliar a percepo das pessoas a respeito da distribuio dos benefcios associados moradia em local de risco. Essa realidade atestada por Xavier (1996, p.171), segundo o qual:Na definio das reas de risco, onde se fixam moradias, fatores como a falta de opes alegadas pela populao de baixa renda e de deficiente nvel cultural; o fato de ser proprietrio da residncia; e a vantagem da proximidade do centro da cidade ou do local de trabaLucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

41lho, interferem na avaliao social do risco e, conseqentemente, na deciso sobre continuar ou no vivendo em rea de risco.

No caso das reas de risco de inundaes e de escorregamentos, os benefcios oferecidos pela moradia so imediatos ocupao, enquanto o acidente apenas uma possibilidade. A situao das famlias normalmente to degradante que os riscos so ignorados. Portanto, possvel verificar que a exposio ao risco, na maioria das vezes, constitui uma escolha forada e no voluntria, j que representa a nica alternativa de sobrevivncia em um ambiente de forte excluso socioespacial. A moradia em condies precrias, nesse caso, adquire alto valor de uso e no pode ser descartada com facilidade. Em muitas ocasies, os indivduos esto conscientes de que devero lidar com perdas futuras e j tomaram ou pretendem tomar medidas para a reduo do perigo. Contudo, tais medidas quase sempre so casuais, improvisadas, ineficazes e distantes do ideal (KATES, 1962). A precariedade dessas medidas ainda mais ntida quando se trata das famlias pobres que habitam os fundos de vale e as encostas localizados em meio urbano no Brasil. Outro fator bastante afetado pela percepo diz respeito avaliao da probabilidade de ocorrncia de acidentes. Kates (1978) salienta que a estimativa do risco pode ser realizada com base na revelao (inspirao sobrenatural ou divina, sonhos, profecias astrolgicas etc.), na intuio (pressentimento ou pressgio, sem explicao aparente) ou na extrapolao (a partir da experincia acumulada pelas pessoas ao longo do tempo). Neste ltimo caso, a experincia pode ser adquirida tanto no prprio local de moradia quanto em outros locais, com caractersticas semelhantes. No entanto, tais experincias so quase sempre limitadas e a estimativa poder se distanciar consideravelmente da realidade.PERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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Whyte (1985, p.115), ao traar algumas linhas gerais sobre a percepo da probabilidade e incerteza dos eventos extremos na natureza, informa:More attention, particularly by psychologists, has been given to the perception of probability than to the perception of consequences in risk perception research. This may be because perceived probabilities are more easily quantified and compared with mortality and morbidity statistics.

Em geral, as pessoas tendem a avaliar a probabilidade de um acidente desprovidas de informaes sobre a frequncia de eventos anteriores, isto , se baseiam em amostras insuficientes para uma anlise confivel. Alm disso, so normalmente influenciadas por similaridades superficiais, coincidncias ou esteretipos que induzem a uma percepo da realidade (WHYTE, 1985). Nesses casos, a avaliao encontra-se sob forte dependncia da memria, que traz tona lembranas de eventos marcantes do passado ou, em outros casos, somente os eventos mais recentes (por isso, mais facilmente lembrados). Park (1985, p.15) refora essa perspectiva e nota que a percepo dos riscos sempre afeta a avaliao da probabilidade de novos acidentes:Human response to hazards usually fails to match the real probability of being affected by that hazard. We filter signals and stimuli from the environment throughout five senses, and the human mind then sorts, codes and stores this information. Neither our senses nor our minds are completely infallible, and so an individuals understanding of the environment is always less than perfect.

Kates (1978, p.31) tambm explica os diversos tipos de influncias que podero atuar sobre a estimativa do risco:The perceived experience of hazard is lesser than the reality: human record is biased to the recent and identified, human memoryLucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

43is biased to the recent and impressionable, cognition is biased to the ordered and determinate. It is also greater than the reality: it is possible to share in the memory of others, to experience by empathy, myth and symbol.

Tratndose de fenmenos extraordinariamente emocionales y afectivos, los desastres suscitan ciertas reacciones tpicas de negacin o excepcionalismo (eso no nos puede pasar a nosotros, aqu nunca han pasado esas cosas) y de indefensin fatalista (no podemos hacer nada).

Uma avaliao incorreta (subestimando o risco) pode representar, por um lado, um dos motivos da escolha pela moradia em local de risco ou, por outro, um subterfgio psicolgiPERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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Chardon (1997) corrobora essas ideias, ao denunciar que a probabilidade de acidentes , em geral, erroneamente avaliada pelos moradores das reas de risco, sendo que os resultados mais satisfatrios esto entre aqueles moradores que j foram vtimas de acidentes no passado ou ento entre os que residem em reas recentemente afetadas. Eventos que ocorreram h pouco tempo so mais bem conhecidos que aqueles cuja lembrana j foi atenuada pelo tempo. Coch (1995) estima que os piores desastres comeam a se apagar da memria das pessoas em mdia depois de 5 ou 10 anos de sua manifestao. Os eventos que ocorrem com maior frequncia so mais facilmente lembrados e, portanto, tm sua probabilidade melhor avaliada, em comparao queles mais espordicos. Quando os impactos afetam diretamente a vida cotidiana da comunidade, os fenmenos tambm so avaliados com maiores ndices de sucesso (KATES, 1978). Por sua vez, Campos (1999, p.30) procura explicar a avaliao que se faz dos acidentes a partir das ascendncias emotivas que atuam sobre os sujeitos:

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co visando justificativa dessa escolha. Burton, Kates e White (1993) fazem uma boa leitura acerca dessa questo e enfatizam que, quando o evento natural e de carter aleatrio, ou seja, quando no apresenta recorrncia cclica, no se pode afirmar categoricamente a sua probabilidade de manifestao. Assim, um evento extremo pode se manifestar em anos consecutivos, bem como se ausentar por longos perodos. Contudo, muitas pessoas julgam impossvel o fato desses eventos ocorrerem por mais de uma vez em um curto perodo de tempo, como de um ano para outro. H tambm a tendncia de se atribuir uma lgica temporal aos eventos, negando-se sua condio fortuita. Em alguns casos, as pessoas se mostram incrdulas com a capacidade de se prever um evento extremo com antecedncia, mesmo quando isso tecnicamente vivel. A atribuio de causalidade sobre os acidentes e de responsabilidade sobre a situao de risco tambm fator essencial compreenso da percepo dos riscos, inclusive na condio de informao til elaborao de polticas pblicas. As causas dos acidentes ainda so frequentemente imputadas a fatores abstratos, apesar dos inmeros avanos cientficos de que se tem notcia. Segundo Burton, Kates e White (1993, p. 229):An overwhelming majority of the people asked about hazard and disaster in their own localities view the occurrence as either unaccountable or as an act of nature or of God (or gods) or some their supernatural force. Rarely is it viewed as an act of people.

A tradio tem demonstrado que os acidentes em reas de risco tm suas causas relacionadas quase que exclusivamente aos fatores naturais, sendo que os fatores humanos tm sido relegados e a esperana por solues tem residido exclusivamente nas pesquisas tcnico-cientficas. Entre trinta recomendaes listadas pelo United Nations Department of Economics and Social Affairs, em 1972, visando ao combate aos desastres naturais noLucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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planeta, apenas duas faziam referncia ao comportamento humano (BURTON, KATES e WHITE, 1993). Acrescentaramos tambm o fato de que a dimenso poltica igualmente negligenciada nesses casos, isentando o prprio sistema de maiores responsabilidades. Campos (1999, p.47) salienta a importncia dos fatores sociais na conformao da vulnerabilidade de comunidades que residem em encostas ameaadas:[...] una comunidad que vive expuesta a deslizamientos en las laderas de un cerro, se encuentra ante un evidente peligro fsico, pero ste no es en s mismo un factor de vulnerabilidad, por cuanto no puede ser separado de las causas socio-econmicas e idiosincrticas que determinan el asentamiento de esas personas en el lugar. De lo contrario se estar sugiriendo, por omisin, que el uso racional y seguro del suelo es una decisin que cada grupo humano puede tomar a su libre albedro (Grifo do autor).

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Burton, Kates e White (1993, p.242) enfatizam a estreita relao entre a pobreza e os riscos ambientais, ao explicarem que [...] the vulnerabilities of people are rooted in the precariousness of everyday existance as well as in the rare and extreme event. Esse mesmo ponto de vista compartilhado por Gonalves (1992, p.223) que comenta: [...] o grau de vulnerabilidade da sociedade envolvida fator primordial para que os eventos pluviais assumam ou no caractersticas de catstrofes ou calamidades. Consoante Park (1985), o grande nmero de acidentes ocorridos nas ltimas dcadas deve-se, majoritariamente, ao agravamento da vulnerabilidade e no ao crescimento da magnitude dos fenmenos naturais, conforme muitos pensam. Assim, certamente uma melhor distribuio de renda poderia amenizar os efeitos devastadores de muitos acidentes ou at mesmo evitlos em alguns casos, devido reduo da vulnerabilidade. Mas, dependendo de como o assunto tratado, essa caracterstica poder ser facilmente disfarada.

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Cardona (2001) chama a ateno para o fato de que algumas leituras impregnadas de ideologia tratam os acidentes como produtos do destino ou atos divinos, falta de sorte. Tal ideia pode chegar ao cmulo de integrar a legislao de algumas comunidades de origem anglo-saxnica, que denominam oficialmente os desastres como atos de Deus. Tal concepo tem favorecido a manuteno de figuras jurdicas que liberam a culpa daqueles que tm agido de maneira negligente em seus deveres de proteger a sociedade e os seus bens. Quanto ao papel dos prprios cidados, Xavier (1996, p.175) salienta que[...] a maioria dos moradores da rea de risco no se culpa pela ocorrncia do deslizamento de encosta. Esta responsabilidade atribuda ao governo, a Deus, natureza ou aos outros moradores da encosta.

Esse tipo de postura ainda mais marcante quando se trata de eventos de alta magnitude e de baixa probabilidade. Assim, o que se verifica normalmente uma constante espera pela assistncia do poder pblico, reforando o hbito clientelista j bastante conhecido. Machado (1988), ao estudar a valorizao da paisagem da Serra do Mar, no litoral do Estado de So Paulo, encontrou entre vrios moradores e trabalhadores da rea de estudo a ideia de que a responsabilidade sobre sua preservao era exclusivamente das autoridades. Para Ferrara (1996, p.75), o anonimato e a irresponsabilidade do espao pblico agasalham e estimulam a ao igualmente desobrigada[...]. Dessa forma, muitas pessoas se isentam de qualquer tipo de dever no que tange s condies ambientais de seu bairro, sendo que os bens coletivos so costumeiramente tratados como algo sem dono. Todavia, sabido que no se pode generalizar esse tipo de conduta, uma vez que muitas iniciativas tm se manifestado noLucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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sentido contrrio, de valorizao e de responsabilidade comunitrias em localidades de periferia urbana, sobretudo nos ltimos anos. Mas tal conscincia no tomada rapidamente, demandando tempo de moradia, afeio pelo lugar e identidade com os vizinhos, condies que no se conquistam de forma simples. Tuan (1983, p.190) nos explica que[...] a classe operria e as pessoas pobres no vivem em casas e bairros planejados por elas [...] O sentimento, se que existe, se desenvolveu to lentamente quanto a familiaridade.

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Como possvel constatar, a atribuio de causalidade sobre os acidentes e de responsabilidade sobre os riscos se relaciona com uma srie de outros fatores e implica ora posturas ativas, ora posturas passivas frente ao problema, gerando consequncias de ordem prtica no combate ou na aceitao dos riscos. A ao efetiva de um indivduo no intuito de combater o risco demanda, portanto, que haja um estado prvio de sensibilidade e de desejo por mudana, geralmente atingido aps certo grau de incmodo, medo ou em alguns casos, induzido atravs da construo de novos valores. Whyte (1977) chama de eficcia a capacidade de se transformar o pensamento em realidade, isto , em atitude, em comportamento, em uma busca verdadeira por aquilo que desejado. A ao somente desencadeada a partir do momento em que atingido um determinado limiar, que pode variar sensivelmente em cada caso, dependendo de fatores como, por exemplo, a severidade do risco e o grau de exposio s suas consequncias, o valor dos bens materiais passveis de perda, traos da personalidade do indivduo (autocontrole, responsabilidade, medo etc.). Com base nas obras de Burton, Kates e White (1993) e de Park (1985) podem ser identificados quatro modelos diferentes de comportamento frente s situaes de risco:

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A. O risco no percebido: nesse caso, os indivduos no tm conscincia da ameaa, pois julgam sua manifestao ou seus efeitos pouco provveis. Geralmente, ainda no ocorreram perdas ou, se ocorreram, foram insignificantes e os seus impactos absorvidos com facilidade. Por isso, o risco no se converte em uma preocupao e a comunidade se mantm merc das circunstncias. Comportamento tpico em reas ameaadas por fenmenos com longos intervalos de recorrncia (como as erupes vulcnicas) ou com evoluo lenta e gradual (como a poluio atmosfrica); B. O risco percebido, mas aceito de forma passiva: as ameaas so reconhecidas e toleradas, pois so consideradas uma espcie de preo pela moradia. O limiar da conscincia foi atingido em decorrncia da experincia com as situaes perigosas, por isso os indivduos sabem do risco, porm aceitam passivamente suas consequncias, j que no encontram solues para o problema. A resposta mais comum nesses casos a evacuao da rea e a busca por socorro, como em algumas situaes de enchentes ou de escorregamentos envolvendo comunidades pobres; C. O risco reduzido mediante uma atitude positiva: esforos so realizados no intuito de reduzir as perdas, ou seja, diminuir a vulnerabilidade frente ao fenmeno, pois j foi atingido o limiar da ao. Os moradores tomaram conscincia do risco e da importncia das perdas, adotando ajustamentos mais efetivos para preveno e controle. Comportamento tpico de regies mais desenvolvidas, cujos prejuzos econmicos so altos em casos de acidentes e a comunidade dispe dos meios necessrios para se ajustar (embora nem sempre tais medidas sejam ideais); D. O risco leva mudana (migrao) ou a uma transformao no uso do solo: nesse tipo de situao, o limiar da intolernciaLucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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foi atingido e o risco impe a modificao do uso do solo (por exemplo, troca de uma cultura agrcola por outra atividade econmica ou reverso de uma antiga rea residencial para atividades de lazer ou preservao ambiental), a mudana do local de moradia, ou uma combinao de ambos. Os diferentes modelos de comportamento citados, juntamente com seus respectivos limiares, foram sintetizados na figura 1. A aceitao dos riscos parece tambm estar vinculada ao carter voluntrio ou involuntrio das atividades humanas. Nos casos em que os prprios moradores escolheram o local de moradia, devido a algum possvel benefcio (embora esta seja uma situao menos comum), o risco torna-se mais aceitvel. J nos casos em que o local de moradia foi definido por meio de uma imposio, como nos casos de transferncia pelo poder pblico, o risco no aceito de maneira to passiva, gerando indignao e at mesmo conflitos. Whyte (1985, p.118) nos fornece outros exemplos, ao comentar que:In a climate context, we may infer that we will probably willingly tolerate higher levels of the risk of skin cancer from voluntarily sunning ourselves on the beach than we will from involuntary exposure to increased radiation because of our occupation or anthropogenic changes in the Earths atmosphere.

A reduo da vulnerabilidade ou da ameaa, enquanto atitude positiva para uma melhor convivncia com os riscos, realizada mediante os diferentes tipos de ajustamentos, que so respostas de curto prazo, adotadas de forma incidental ou de forma proposital (KATES, 1978). As melhorias urbansticas e a existncia de servios e equipamentos urbanos bsicos podem ser entendidas como formas de ajustamento incidental, uma vez que podem surtir efeitos sobre a reduo da vulnerabilidadePERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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frente aos acidentes, embora esta no seja a sua funo primordial. Tais medidas visam originalmente ao bem-estar da populao ou at mesmo melhoria dos ganhos econmicos. Um avano no sistema de estocagem de alimentos e de gua, a existncia de linhas telefnicas ou uma melhoria viria que permita a chegada rpida de socorro, por exemplo, podem representar a salvao de muitas pessoas em casos de acidentes.

Figura 2 Comportamentos Frente ao Risco e Respectivos Limiares. Fonte: Extrado de Park (1985, p.31), verso em portugus de Lucas B. Souza, 2006.

Outros ajustamentos so planejados e possuem propsitos especficos de combate aos riscos, apresentando efeitos diretos. Podem apresentar carter preventivo, somente funcionarem na iminncia de acidentes ou at mesmo aps a manifestao do problema; podem atuar sobre a ameaa ou sobre a vulnerabilidade, podem ser realizados individualmente, no mbito exclusivo da moradia, ou de forma coletiva, envolvendo a vizinhana,Lucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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a comunidade do bairro, o municpio etc. No caso de escorregamentos, a construo de moradias mais reforadas, a manuteno de vegetao nas encostas e a drenagem da gua pluvial constituem exemplos de ajustamentos preventivos s condies de risco. Outras medidas possuem caractersticas mais imediatas e so comuns em perodos chuvosos, sob a iminncia de acidentes, tais como ficar atento aos meios de comunicao para eventuais instrues da Defesa Civil, proteger os bens materiais contra a gua da chuva, manter lanternas ou velas sempre mo, remover temporariamente os moradores da casa etc. Dessa forma, diversos so os tipos de ajustamentos possveis e a sua eficcia pode variar sensivelmente em cada caso. Em geral, os ajustamentos integram um conjunto de posturas e de medidas prticas das quais no se pode prescindir nos casos de residncia em local de risco. Park (1985, p. 26) explica que adjustment to hazard threats is thus a basic feature of human survival and prosperity. Pode-se afirmar, ento, que praticamente todos os moradores de reas de risco promovem ajustamentos, em maior ou em menor grau, para que possam permanecer no local onde esto instalados. Infelizmente, os ajustamentos mais comuns so aqueles que auxiliam os moradores a suportar os efeitos dos acidentes, aceitando as perdas decorrentes. Medidas mais efetivas, como as que reduzem a vulnerabilidade ou levam mudana da famlia, so menos observadas. A motivao para se empenhar esforos e recursos financeiros com ajustamentos mais facilmente detectada entre aqueles que j tiveram perdas considerveis no passado e que vislumbram possibilidades de novos prejuzos no futuro prximo ou distante. No entanto, se os eventos diminuem a frequncia e passam a se manifestar de modo mais espordico, existe a tendncia das medidas se atrofiarem com o tempo, tornando-se frouxas ou inexistentes (KATES, 1962).PERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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De fato, existe uma forte relao entre a frequncia dos fenmenos naturais e a escolha dos ajustamentos que sero adotados, conforme explicitado por Park (1985, p.30):When the frequency of hazard events is low, and most people think that an event will not occur, adjustments are adopted by very few people. When the probability is high, and there is general certainty that an event will occur, a large number of people will adopt some form of adjustment, and most will favour similar adjustments (which offer optimum protection). Where there is an intermediate probability of occurrence, however, there is greater uncertainty in peoples minds about future events. This uncertainty is reflected in high variability in the adoption of adjustments by people in similar circumstances.

Mas, alm da frequncia dos fenmenos, diversos outros fatores podero interferir na deciso sobre os ajustamentos. A figura 2 apresenta um modelo para esse processo de escolha, que as palavras de Park (1985, p.28) conseguem sintetizar bem:The selection of an appropriate adjustment for a particular hazard is based on evaluating the pros and cons of each adjustment for which information is available. This choice is affected by what we think, what we know, what we would like, what we can afford, what we think is necessary, and how we rationalize these often incompatible issues.

Mas o fato de determinados ajustamentos no serem adotados no quer dizer que no sejam conhecidos. Quando indagados a respeito das possibilidades de ajustamento, muitos moradores de reas de risco apresentam um rol considervel de opes. Em alguns casos, as medidas no so adotadas pelos prprios moradores por serem consideradas desnecessrias. No entanto, como se trata de comunidades pobres, a barreira tambm pode ser a falta de recursos. Portanto, alguns grupos se expem aos riscos de maneira irresponsvel, no adotando ajustamentosLucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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ou promovendo ajustamentos insuficientes ou inadequados, influenciados pela percepo que tm do risco. Em outros casos, a no adoo de ajustamentos pode ser uma situao imposta por suas condies de vida, principalmente no caso de ajustamentos com custos mais altos.

Figura 3 Diferentes Fatores que Interferem no Processo de Escolha por Ajustamentos Fonte: Extrado de Park (1985, p.29), verso em portugus de Lucas B. Souza, 2006.

A maior parte dos ajustamentos apresenta carter individual, ou seja, cada morador tenta resolver o problema na sua prpria habitao. Os ajustamentos coletivos so mais raros, poisPERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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dependem de decises comunitrias, do consenso entre os moradores e da unio para a execuo de tarefas prticas, como os mutires. De acordo com Burton, Kates e White (1993, p. 126), the choice of action taken by individuals and by collectivities, including governments, is strongly affected by their mutual sense of responsibility and their expectations of each other. Por conseguinte, os ajustamentos coletivos so influenciados pela rgida noo do que pblico e do que privado, o que em determinadas ocasies torna mais complexa a sua implementao. Porm, independentemente da postura dos moradores, algumas medidas excedem a capacidade individual para a sua implementao e somente podem ser levadas a cabo se o poder pblico assumir a responsabilidade. Dessa forma, especialmente quando se trata de comunidades pobres, boa parte dos ajustamentos permanece a cargo exclusivo do poder pblico. Mas isso no representa nenhuma garantia de que sero executados, j que os governos tambm se mostram incapazes de solucionar o problema. Essa caracterstica contribui ainda mais para a adoo de medidas paliativas e pouco eficientes contra os riscos. A atuao do poder pblico no combate aos riscos dificilmente igual em todas as partes de um pas ou mesmo de uma cidade. A interveno tende a ser mais bem-sucedida em determinados locais, bem como a disponibilizao de recursos. Por exemplo, a opinio pblica em Nova Orleans, cidade norte-americana destruda pela passagem do furaco Katrina, atribuiu a ineficincia do trabalho preventivo ao fato da maioria da populao ser de afrodescendentes, invocando um componente discriminatrio. No se pode comprovar tal afirmao, mas notrio que existe seletividade social e espacial quando se trata de empenhar recursos pblicos para a segurana e bem-estar da populao.

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2.3 Comunicao, Educao Ambiental e Participao Popular possvel notar que os estudos sobre a percepo dos riscos podem revelar importantes aspectos acerca das relaes estabelecidas entre as pessoas e os ambientes ameaados por aciPERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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Burton, Kates e White (1993) apontam ainda que uma ao coletiva de ajustamento poderia estimular adaptaes na prpria legislao e nas polticas pblicas locais. Nesse caso, trata-se de medidas de longo prazo, incorporadas com o tempo aos hbitos da comunidade e que podem representar um passo concreto rumo segurana dos moradores. Infelizmente, a experincia tem mostrado que tais adaptaes somente acontecem aps a ocorrncia de desastres ou da instalao de alguma crise. Nos Estados Unidos, boa parte da legislao que diz respeito s inundaes foi precedida por grandes acidentes. As adaptaes sob a forma de leis tm o papel de estimular aes individuais positivas e de inibir aes individuais negativas. Para isso, a legislao pode prever instrumentos estimuladores como, por exemplo, subsdios para a reforma das moradias, no sentido de torn-las mais seguras, e tambm instrumentos inibidores, como a aplicao de sanes para aqueles que infringirem as normas de ocupao e de construo. O sucesso da preveno de acidentes depende, portanto, da sinergia entre os diferentes tipos de ajustamentos e adaptaes utilizados, a fim de que possam colaborar entre si. As estratgias no plano coletivo produzem efeitos no plano individual e vice-versa. Por isso, as decises devem ser tomadas com cautela, j que suas implicaes podero tomar rumos inesperados, inclusive agravando a situao preexistente.

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dentes, revestindo-se, portanto, de forte pragmatismo. Podem fornecer tambm subsdios valiosos ao planejamento e gesto urbanos, j que se concentram em responder questes que esto fora da rea de alcance dos mtodos convencionais empregados pelas cincias naturais. Lynch (1999, p.331), justifica o emprego da percepo no campo do planejamento urbano, ao afirmar que:Talvez o mais difcil de tudo, e que se encontra exatamente no centro da experincia da cidade, seja encontrar um modo objetivo de registrar o que os residentes pensam acerca do local onde vivem: seus modos de o organizar e de o sentir. Sem que se verifique alguma espcie de conhecimento destes aspectos extremamente difcil fazer uma avaliao, uma vez que os locais no so apenas o que so, mas a percepo que temos deles.

A abordagem perceptiva capaz de esclarecer as formas como os recursos naturais so utilizados por um povo, ou ainda como as pessoas se conduzem diante de um risco ambiental ou de um acidente. Whyte (1985) explica que [...] some of the most useful perception research has revealed to policy-makers both the value of folk environmental knowledge and the need to incorporate lay peoples values into scientific and policy models. Burton, Kates e White (1993) denunciam que grande parte do conhecimento a respeito dos julgamentos e das escolhas realizados por comunidades expostas aos riscos ambientais tem sido objeto de especulao, o que torna complicada a elaborao de estratgias eficazes para a reduo da vulnerabilidade. No Brasil, Bley (1990) salienta que so despendidos recursos vultosos nos projetos urbansticos sem que haja preocupao com a forma pela qual os moradores e usurios do local sero atingidos e respondero nova situao. Por sua vez, Marandola Jr. (2004) tambm procurou demonstrar sua inquietao com a necessidade de se incorporar a dimenso existencial/Lucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

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fenomenolgica dos riscos no processo de elaborao de polticas pblicas. Portanto, consenso que no se pode tratar de planejamento urbano e de gesto de reas de risco sem que anteriormente seja investigada a percepo dos moradores sobre a situao e o lugar onde vivem. Alm do mais, indispensvel averiguar o seu conhecimento acerca dos fenmenos que compem a ameaa (escorregamentos, inundaes, tornados, terremotos etc.) para, posteriormente, compreender as consequncias advindas dessa percepo. Valendo-se da crtica de Goodey e Gold (1986), o gegrafo deveria contribuir mais efetivamente com o planejamento e a gesto das cidades j que, em muitas ocasies, mostra-se inseguro quanto ao seu papel e tmido ao tecer recomendaes. Burton, Kates e White (1993, p.251) fortalecem o coro, denunciando que in general, studies of differential vulnerability to natural hazards have been strong on societal critique and weak on practicable prescription. Por intermdio dos estudos de percepo dos riscos, a Geografia pode auxiliar na elaborao de estratgias de preveno de acidentes, levando em considerao o conhecimento, os anseios e os valores da comunidade local. Para tanto, possvel apontar trs pontos fundamentais com os quais os estudos de percepo dos riscos poderiam contribuir de modo efetivo. O primeiro deles reside nas estratgias de comunicao, parte essencial nas campanhas pblicas de combate aos riscos e na execuo dos Planos Preventivos de Defesa Civil (PPDCs). Vargas (2004), ao tratar da gesto de reas urbanas deterioradas, enfatiza o papel da comunicao social, listando os seus objetivos, dentre os quais pode-se destacar: reforar ou mudar comportamentos, estimular respostas, informar usurios e consumidores, levantar a moral do grupo, resgatar a identidadePERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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urbana etc. Para Kates (1962), uma informao vlida deve auxiliar no combate iluso de que os indivduos podem se proteger por conta prpria, sem orientao tcnica, e demonstrar quais as reais oportunidades para permanecerem seguros. Os programas de comunicao, alm de servirem para a difuso de informao, podem auxiliar na tarefa de tornar a comunidade mais sensvel ou consciente de um determinado fato, estimulando-a a participar das discusses e das decises que dizem respeito ao bairro ou cidade. Porm, cada tipo de local ou de grupo social requer uma estratgia especfica de comunicao sobre os riscos. Tal estratgia s pode ser traada aps o reconhecimento das caractersticas objetivas do prprio risco, bem como da percepo, dos valores e das atitudes da comunidade afetada. Burton, Kates e White (1993, p.248) explicam:Risk communication differs by the nature of the message, the channels used to communicate it, and the varied circumstances of age, gender, income, education, and experience in which people subject to risk find themselves.

Diante disso, entender quais so os problemas e as prioridades locais, as experincias anteriores dos moradores com as situaes de risco, suas alternativas de sobrevivncia econmica, de habitao definitiva e de abrigo temporrio so algumas das necessidades prvias elaborao das estratgias de comunicao. A aceitabilidade e interpretao das informaes dependem de como realizada a comunicao e de quem o portador da mensagem (cientistas, mdia, ONGs, agncias pblicas, vizinhos etc.). Logo, a percepo do risco poder ser amenizada ou agravada, em funo de aspectos subjetivos. Campos (1999, p.10) exemplifica essa afirmao:Lucas Barbosa e Souza/ Maria Elisa Zanella

59[...] en muchos lugares las predicciones meteorolgicas son caricaturizadas a priori como falsas, o los pobladores pueden sentirse poco dispuestos a aceptar consejos procedentes de personas consideradas extraas por tener un distinto modo de vida.

Por esse motivo, para Chardon (1997), a eficcia de um sistema de informaes sobre os riscos depende de alguns fatores, tais como: linguagem facilitada ao grande pblico; funcionamento constante, com nfase nos momentos de maior probabilidade de acidentes; divulgao realizada por pessoas ou entidades de confiana da comunidade; referncia a fatos e a lugares conhecidos dos moradores. A gravidade da questo tem justificado inclusive a presena de psiclogos nas equipes de Defesa Civil, j que muitas barreiras emocionais devem ser transpostas no contato com moradores das reas de risco. Por exemplo, a evacuao de moradias ameaadas por acidentes normalmente dificultada devido ao apego dos moradores aos bens materiais e incerteza quanto ao seu futuro. Nesse caso, uma comunicao persuasiva essencial. Outro agente que exerce grande influncia sobre a percepo dos riscos a mdia. Whyte (1985) fornece um exemplo bastante rico: se as mortes decorrentes de acidentes de trnsito so amplamente divulgadas na TV, a populao tende a superestimar os riscos no trnsito e o nmero de mortes decorrentes dos acidentes com veculos. Ao contrrio, se as mortes por cncer no so divulgadas, seu risco ser subestimado pela populao. O papel desempenhado pela mdia poder, dessa maneira, contribuir para a preveno de acidentes ou, em alguns casos, at mesmo dificultar esse trabalho. Kates (1978) argumenta que, a partir da dcada de 1960, quando a mdia passou a noticiar os riscos ambientais de modo mais incisivo e a divulgar avisos populao, a opinio pblica passou a se mostrar mais sensvel, revelando melhor conheciPERCEPO DE RISCOS AMBIENTAIS: Teoria e Aplicaes

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mento sobre as ameaas existentes. Lean (1991) acredita que a mdia pode auxiliar na preveno de acidentes de dois modos: levando informaes teis s pessoas e pressionando o poder pblico a exercer bem a sua funo. De fato, em alguns pases, a mdia parece ter mais credibilidade para a populao do que o prprio poder pblico, sobretudo quando este j apresentou alguma falha em passado recente. A mdia tambm poder exercer uma interferncia negativa sobre a percepo dos riscos, produzindo entraves ao trabalho de preveno de acidentes. Em uma pesquisa realizada nos Estados Unidos na dcada de 1980, 81% do pblico questionado dizia acreditar que a mdia era seletiva e sensacionalista ao divulgar questes ambientais, a fim de ampliar a sua audincia (LEAN, 1991). s vezes, alguns riscos so divulgados sob uma atmosfera de exagero e dramaticidade, o que gera a possibilidade de pnico. Nesses casos, o risco avaliado pelas pess