livro ci 2007

314

Upload: camilla-cristina

Post on 21-Jan-2016

245 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Livro CI 2007
Page 2: Livro CI 2007

 

Page 3: Livro CI 2007

 

Comissão Organizadora: Ana Paula Canel Bluhm Andreas Betz Arnaldo Cheixas Dias Breno Teixeira Santos Bruno Blotta Baptista Eduardo Koji Tamura Renata Brandt Nunes Rodrigo Pavão Profa. Organizadora: Profa. Dra. Lucile Maria Floeter-Winter

Page 4: Livro CI 2007

 

Page 5: Livro CI 2007

 

Apresentação Uma corrida às universidades se procede nos últimos anos. A demanda por

cursos dos mais variados tipos (graduação, pós-graduações, extensão, etc) é, talvez, a conseqüência mais facilmente visível desse fenômeno.

Nesse contexto a Universidade de São Paulo olha atentamente para sua responsabilidade frente à sociedade, oferecendo espaços de extensão para a disseminação dos valores e resultados colhidos no meio acadêmico, assim como estabelecendo conexão entre a mesma e setores que não têm acesso institucional ao seu corpo docente. É nesse momento, onde há uma enorme demanda por aumento da qualificação profissional e conseqüentemente de procura às instituições capacitadas para tal, que se propõe a criação de espaços de comunicação entre universidade e sociedade. Certamente isso faz com que as atividades de extensão exijam sobremaneira uma sintonia plena com estes valores e também com as expectativas da comunidade.

No entanto, é importante lembrar que, notoriamente, a extensão universitária é uma credencial de excelência, porque somente centros com história e alto desempenho no âmbito da pesquisa e do ensino podem repassar à comunidade externa, em forma de serviços ou ensinamentos, o conhecimento acumulado. Isto faz com que a responsabilidade de uma universidade como a USP seja ainda maior.

Frente a essa realidade é que, desde o ano de 2002, um pequeno grupo de pós-graduandos do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências começou a discutir sobre a sua própria formação acadêmica, bem como a de alunos que almejavam o ingresso em cursos de pós-graduação. Nos debates ocorridos internamente, foi observado que muitos dos interesses dos alunos por vezes excedem o tema e a carga horária disponíveis nos próprios cursos de graduação. Além disso, há pouco tempo fazíamos parte de uma gama de pessoas que compunham o coro pela criação de espaços onde fossem oferecidas tais possibilidades alternativas de aprendizado complementar.

Sendo assim, neste momento de inquietude e vontade discente, a decisão foi de empenho em realizar um curso no período de férias e oferecê-lo a estudantes das áreas biológicas que almejam ingressar na pós-graduação em Fisiologia, ou mesmo para aqueles que se interessam pelo tema de uma forma geral.

Com esta iniciativa conseguimos envolver um grande número de alunos de pós-graduação do departamento, o que resultou na formação de uma Comissão Organizadora conquistando a simpatia natural dos nossos docentes, que permitiram a viabilização deste projeto. O primeiro passo para a concretização das nossas idéias foi batizar o curso de férias como “Curso de Inverno: Tópicos em Fisiologia Comparativa”, dando-se então início à organização prática do projeto, que agora começa sua quarta edição.

Esse livro e sua organização são resultado de uma nova estrutura didática aplicada ao curso. Essa estrutura didática consiste na criação de módulos que apresentam uma determinada área de estudo de forma integrada: (1) uma aula introdutória, seguida por (2) aulas apresentando tópicos específicos e, finalmente, (3) a sessão de pôsteres das pesquisas desenvolvidas pelos integrantes do módulo. O livro apresenta a mesma organização, excluindo os pôsteres.

Esse livro tem como objetivo ampliar o acesso aos conteúdos trabalhados no curso e desenvolvidos no departamento de Fisiologia. Esperamos que seja de grande utilidade aos interessados nesses temas.

São Paulo, inverno de 2007 Comissão do IV Curso de Inverno – Tópicos em Fisiologia Comparativa

Page 6: Livro CI 2007

 

Page 7: Livro CI 2007

 

Índice

PRODUTOS NATURAIS MARINHOS E MECANISMOS DE AÇÃO

Página 1 a 22 Introdução - Jeanete Lopes Naves Substâncias bioativas – Macroalgas - Andréa Lúcia Campos Natali Substâncias bioativas – Microalgas - Jeanete Lopes Naves Substâncias bioativas – anêmonas-do-mar - André Junqueira Zaharenko Substâncias bioativas - animais terrestres - Bruno Garcia Stranghetti Fisiologia da Dor - Wilson Ferreira Junior COMPLEXIDADE EM SISTEMAS BIOLÓGICOS Página 23 a 42 Aula Inagural - Breno Santos Informação - Vitor Hugo Rodrigues Sistemas dinâmicos - José Eduardo Natali ECOFISIOLOGIA

Página 43 a 88 Breve Histórico da Fisiologia Comparativa - Renata Brandt e Bruno Blotta-Baptista A vida no limite: mecanismos de adaptação bioquímica a extremos de temperatura

- Ivan Prates Ecofisiologia de insetos - Antonio Carlos da Silva e Fabiano Ricardo A. Negrini Ecofisiologia e ciclos de vida complexos - Monique Simon Fisiologia da Estivação - Isabel Cristina Pereira A importância dos mecanismos osmorregulatórios na conquista dos diferentes

ambientes: Um enfoque em Crustacea - Bruno Blotta-Baptista Efeitos de poluentes e respostas ecofisiológicas em divesos níveis tróficos diante

de estressores ambientais - Tiago Gabriel Correia Ecofisiologia de metais pesados em organismos aquáticos - Marina Granado e Sá Efeitos da disponibilidade de oxigênio na fisiologia de organismos aquáticos com

ênfase em peixes - Renato Massaaki Honji FISIOLOGIA NA ERA DA BIOLOGIA MOLECULAR

Página 89 a 120 Introdução - Biologia molecular como instrumento para o estudo de processos

fisiológicos - Lucile Maria Floeter-Winter Manipulação gênica no estudo da fisiologia - Emerson Augusto Castilho Martins A expressão de proteínas heterólogas - Maíra Natali Nassar Sistemas para diminuir ou anular a expressão gênica - Marcos Gonzaga dos

Santos PCR em tempo real - Rafaella Marino Lafraia e Natália Nour Obeid Uso de bibliotecas combinatórias para seleção de peptídeos ou oligonucleotídeos

específicos para o estudo da interação de moléculas - Maria Fernanda Laranjeira da Silva

Page 8: Livro CI 2007

 

NEUROFISIOPATOLOGIA

Página 121 a 192 Aula Inaugural - Merari de Fátima Ramires Ferrari Biologia molecular e celular aplicadas à neurofisiologia - Merari de Fátima Ramires

Ferrari Neuroanatomia - Karen Lisneiva Farizatto e Sérgio Marinho da Silva Controle neural da pressão arterial e hipertensão - João Paulo de Pontes

Matsumoto Treinamento físico aeróbio: adaptações e benefícios cardiovasculares e

parâmetros comportamentais em animais e indivíduos hipertensos - Regiane Xavier de Moraes

Neurofisiologia do abuso de drogas - Andreas Betz Fisiologia aplicada a reabilitação de doenças neurodegenerativas - Fernanda

Beatriz Monteiro Paes Gouvêa COGNIÇÃO

Página 193 a 252 Aula Inaugural - Arnaldo Cheixas-Dias e Rodrigo Pavão Fisiologia da Atenção - Arnaldo Cheixas-Dias Fisiologia do Sono - Arnaldo Cheixas-Dias e Gabriela de Matos Música e Linguagem - Felipe Rodrigues Neurofisiologia da Linguagem - Rodrigo Collino Evolução da Inteligência - Rodrigo Pavão O estudo de solução de problemas - Pedro Leite Ribeiro Neuroeconomia: a fisiologia da tomada de decisão - Luiz Eduardo Tassi CRONOBIOLOGIA

Página 253 a 306 Conceitos básicos - Cintia Etsuko Yamashita A identificação anatômica do oscilador circadiano - Gisele Akemi Oda Maquinaria molecular e controle do sistema temporizador interno - Pedro Augusto

Carlos Magno Fernandes Fototransdução e sincronização por luz - Leonardo Henrique Ribeiro Graciani de

Lima Melatonina: o hormônio do escuro - Eduardo Koji Tamura Fisiologia celular do Plasmodium durante a fase assexuada - Laura Nogueira da

Cruz

Page 9: Livro CI 2007

  1

PRODUTOS NATURAIS MARINHOS E MECANISMOS DE AÇÃO “Todas as substâncias são venenosas; não há nenhuma que não o seja. É a dose que diferencia um veneno de um remédio” - Paracelso (1493-1541) Introdução Jeanete Lopes Naves ([email protected]) - Laboratório Farmacologia de Produtos Naturais Marinhos

Em todos os níveis da escala filogenética animal encontra vários exemplos de ataque, defesa e outros comportamentos que dependem de substâncias repelentes, paralisantes ou de outras ações farmacológicas. Durante os milhões de anos de evolução os organismos desenvolveram um refinamento dessas substâncias para diversas funções, a captura de presas e as defesas químicas em geral (Freitas, 1990). A produção e a alta diversidade de toxinas têm estimulado outros animais a desenvolver técnicas de sobrevivência a estes compostos. Rápida excreção, acumular em compartimentos do corpo, tais como tecido de gordura ou cutícula estão entre os mecanismos desenvolvidos para combater o efeito letal dos compostos (Kittreldge et al, 1974).

A biodiversidade em animais, por exemplo, é resultado da grande variedade de venenos e peçonhas e assim, uma quantidade grande de toxinas. Esses organismos utilizam diversos mecanismos para prevenir predação, e nesse caso, envolve a produção de metabólitos secundários que podem ser tóxicos, desagradáveis ou ambos para consumidores em potencial (Pawlik, 1993; Hay, 1996; McClintock & Baker, 1997, Faulkner, 1998).

Para o homem se envolver em acidentes ou intoxicações por qualquer substância produzida por organismos vivos, é necessário que esta exerça alguma influência química em um ou mais constituintes das suas células a fim de produzir uma resposta farmacológica. Em outras palavras, é necessário que as moléculas dessas substâncias fiquem muito próximas das moléculas celulares para que o funcionamento destas seja alterado (Dale, 1997). Um exemplo é o acidente ocorrido na costa brasileira provocado por Physalia physalis (Freitas et al, 1995).

Popularmente chamamos de veneno toda substância química, ou mistura de substâncias químicas, que provoca intoxicação ou a morte com baixas doses, como também reservado, segundo alguns autores, especificamente para designar substâncias provenientes de animais, nos quais teriam importantes funções de autodefesa ou de predação, como é o caso de veneno de cobra, de abelha, etc (Oga, 2003). Entretanto existe diferentes terminologia para as diferentes substâncias que podem causar algum dano a um sistema biológico – veneno, peçonha, toxina.

Segundo Freyvogel e Perret (1973), no reino animal as toxinas podem ser divididas em venenos e peçonhas. Os venenos (em inglês ‘poisons’) são produtos metabólicos produzidos ou estocados em órgãos que, em condições naturais, afetam o organismo quando ingeridos e podem também atuar, de modo artificial, por via parenteral. Os organismos venenosos primários são aqueles que produzem metabolicamente os venenos como, por exemplo, o dinoflagelado tóxico, Gonyaulax catenella, produtor de uma potente toxina. Os animais venenosos secundários adquirem as toxinas através da cadeia trófica, alimentando-se de organismos venenosos primários, por exemplo, os mexilhões podem adquirir a neurotoxina dos dinoflagelados tóxicos através da cadeia alimentar. Os mexilhões passam a ser ‘transvetores’, e o envenenamento geralmente é o resultado da ingestão do animal pelo seu predador, tais como os humanos.

As peçonhas (em inglês ‘venoms’) são originadas em glândulas especializadas associadas a dutos excretores e possuindo ou não, estruturas inoculadoras; a maioria dessas substâncias contém proteínas que são facilmente inativadas pela digestão. Animais peçonhentos utilizam à peçonha para aquisição de presas, que pode incluir uma

Page 10: Livro CI 2007

 2 

pré-digestão, e como defesa contra predadores, obviamente a mais importante função de interação com os humanos. Ex: Peixe escorpião e cnidários (Freitas, 1991).

Peçonhas e venenos são compostos que são deletérios para outro organismo em certa dosagem. Eles interferem em importantes atividades fisiológicas de plantas, animais ou humanos, causando envenenamento. Peçonhas e venenos raramente são substâncias puras. Na maioria dos casos representam misturas de numerosos compostos, que podem ser tóxicos ou ter outra atividade. Peçonhas consistem principalmente de peptídeos ou proteínas. Venenos são geralmente produtos ou metabólicos secundários produzidos por microrganismos, plantas ou animais. Toxinas são sempre de origem natural, são substâncias quimicamente bem definidas, puras e homogêneas.

Apesar de serem conhecidas antes de Cristo, as toxinas começaram a ser estudadas, do ponto de vista químico e farmacológico, há apenas seis décadas atrás. São muitas as toxinas marinhas, as quais são encontradas em quase todos os Filos, distribuindo-se ao longo da cadeia alimentar e podendo, eventualmente, atingir o homem (Gleibs & Mebs, 1999).

Para que uma droga seja de algum modo útil tanto como instrumento terapêutico quanto cientifico, ela deve agir seletivamente em determinadas células e tecidos, ou seja, deve mostrar alto grau de especificidade de ligação ao sitio.

Para isso são necessários muitos estudos, principalmente de químicos e biólogos. Muitas vezes, no final, a pesquisa não leva a nenhum produto de interesse farmacológico. Diferente do que ocorreu com o Ácido okadaico que se tornou uma importante ferramenta de estudo de mecanismos moleculares. Ele foi primeiro isolado de esponjas marinhas e depois reconhecido como um constituinte da microalga Prorocentrum lima.

REFERÊNCIAS Faulkner, D.J. 1998. Marine natural products. Nat. Prod. Rep. 15: 113-158. Freitas, J.C. (1991). Nomenclatural em toxinologia. Relações com a comunicação química entre

organismos e propriedades biológicas das toxinas. Mem Inst Butantan 53 (2), 191-195. FREITAS, J.C. 1990. Biomedical Importance of Marine Natural Products. Ciência e Cultura, 42

(1): 20-24. GLEIBS, S.; MEBS, D. 1999. Distribution and sequestration of palytoxin in coral reef animal.

Toxicon, 37:1521-1527. HAY, M.E. 1996. Marine chemical ecology: what’s known and what’s next? J. Exp. Mar. Biol.

Ecol. 200:103-134. Kittreldge J.S.; Takahashi, F.T.; Lindsey, J. and Lasker, R. (1974). Chemical signals in the sea:

allelochemics and evolution. Bull Fish Wild Serv US, 72:1-12. MCCLINTOCK, J.B.; BAKER, B.J. 1997. Palatability and chemical ecology of shallow-water

Antarctic marine invertebrates. Am. Zool. 37:329-342. Oga, S. and Siqueira, M.E.P.B. (2003). Introdução à Toxicologia. In: Fundamentos de

Toxicologia. Edited by Seizi Oga. 2ª ed. São Paulo: Atheneu Editora, 474 p. PAWLIK, J.R. 1993. Marine invertebrate chemical defenses. Chem. Rev. 93:1911-1922. Rang, H.P., Dale, M.M., Ritter, J.M.(1997). Farmacologia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora

Guanabara Koogan, 692 p. Scheuer, P.J. (1991). Drugs from the sea. Chemistry and Industry 8, 276-279.

Page 11: Livro CI 2007

  3

Substâncias bioativas – Macroalgas Andréa Lúcia Campos Natali ([email protected]) - Laboratório Farmacologia de Produtos Naturais Marinhos

As macroalgas são de primordial importância, uma vez que representam uma grande fonte de alimentos, remédios, forragens e fertilizantes. Os primeiros registros do uso terapêutico, indicador empírico da presença de substâncias bioativas, estão documentados num compêndio médico chinês de 2700 anos a.C. entre os povos do leste da Ásia. A medicina popular oriental utiliza amplamente as algas como tratamentos para várias enfermidades tais quais verminoses, gota, nefrite e outras. Com a tecnologia, o avanço nas técnicas químicas proporcionou uma melhora e uma crescente identificação de substancias bioativas na área farmacológica.

Estudos realizados com intuito de reconhecer gêneros representantes de algas marinhas com substâncias bioativas foram e estão sendo muito explorados pela comunidade científica. Ragan (1984) encontrou cerca de 160 gêneros representantes de algas marinhas na região canadense do Oceano Atlântico, onde constatou a presença de vários metabólitos ativos de interesse terapêutico.

Os recentes avanços científicos na farmacologia marinha têm revelado diversos compostos bioativos, ampliando as possibilidades de aplicação das algas como fonte direta de medicamentos ou inspirando a síntese de novas substâncias a partir das estruturas moleculares descobertas.

Além dos produtos como o ágar-ágar, a carragenina, e os alginatos, as macroalgas têm numerosos constituintes que atraem progressiva atenção em muitos campos, principalmente para a finalidade farmacológica (Hoppe, 1982). Os constituintes das algas incluem ácidos, alcalóides, aminas, substâncias antibacterianas, antibióticas, anti-fúngicas, antivirais e substâncias de alta toxicidade como a saxitoxina, a tetrodotoxina e derivados (Freitas et al.,1988). As macroalgas são similares às plantas terrestres no que diz respeito à produção de terpenos, compostos aromáticos, acetogeninas, derivados de aminoácidos e polifenóis. Tais substâncias são genericamente denominadas de metabólitos secundários ou compostos secundários.

As vias metabólicas secundárias das plantas conduzem à formação de substâncias específicas e, muitas vezes, são estas que levam à caracterização de algumas famílias, gêneros e espécies entre as plantas. As algas diferem das plantas terrestres por incorporarem halogênios (bromo, cloro e principalmente iodo) nos seus metabólitos secundários, comum em muitas plantas terrestres (Hay & Fenical, 1988). Com o desenvolvimento da ecologia bioquímica, grande enfoque tem sido dirigido aos metabólitos secundários nas funções vitais, como a preservação da espécie e da sua integridade contra os ataques de seus predadores naturais (herbivoria), sejam eles fungos, bactérias, moluscos ou animais superiores (Barbosa et al, 2003). Assim, também no ambiente marinho tem sido reconhecida a importância das interações químicas entre as espécies e dos compostos presentes nas macroalgas, que devem desempenhar diversas funções nas relações entre algas e outros organismos marinhos.

Investigações recentes sugerem que a função primária dos metabólitos secundários das algas é deter a herbivoria, porém não se exclui a possibilidade de outras funções e atividades detectadas em ensaios laboratoriais. Os compostos mais conhecidos que inibem a herbivoria, agindo na defesa química das algas, são os polifenólicos encontrados nas feofíceas. Na década de 80 Ragan e Glombitza já haviam elucidade que quimicamente, essas substâncias derivam do floroglucinol (1,3,5-triidroxi-benzeno) e de seus polímeros (polifloroglucinóis) que compreendem 15-20% do peso seco do talo das algas pardas. De acordo com Steinberg (1985, 1988), tanto os polifenóis das algas pardas como os de plantas terrestres (ácido poligálico ou tânico), agem como inibidores da predação pelos herbívoros marinhos: Tegula funebralis e T. brunea (moluscos) e Strongylocentrotus purpuratus (ouriço-do-mar). Ainda em relação interações químicas que ocorrem na natureza, podemos citar a observação de alguns autores, que, mediante análise do conteúdo estomacal de alguns crustáceos decápodes braquiúros (que podem regurgitar, durante situações de defesa as secreções digestivas com atividade neurotóxica), fazem notar a presença preponderante de algas (Freitas, 1979, 1980 e Freitas & Jacobs 1983). Assim, especulou-se sobre a possibilidade de que nos crustáceos poderia estar havendo o seqüestro de toxinas de algas da dieta com finalidade defensiva,

Page 12: Livro CI 2007

 4 

um paralelo aos insetos e plantas terrestres. Alcala & Halstead (1970) já haviam indicado as algas da dieta dos crustáceos como a possível fonte de toxinas paralisantes. Mais tarde, uma espécie não identificada da alga rodofícea, do gênero Jania, foi indicada como a fonte de neurotoxinas em crustáceos e moluscos do Pacífico (Kotaki et al., 1983). A análise química realizada por estes autores indicou, nas algas, a presença de goniautoxinas I, II e III (análogas à saxitoxina) em quantidade máxima durante o período da primavera. Yasumoto et al. (1985) encontraram também tetrodotoxina no mesmo gênero de alga vermelha (Jania sp.) (figura 1). No Brasil, Freitas et al., (1988) identificaram saxitoxina, goniautoxinas e tetrodotoxina nas algas rodofíceas Jania rubens e Arthrocardia gardneri (figura 2). Posteriormente, essas mesmas neurotoxinas foram também encontradas em secreções digestivas dos crustáceos dos oceanos Atlântico e Pacífico (Freitas et al., 1991).

A presença de toxinas em diversas algas tem interesse para a saúde pública, pois as mesmas podem provocar envenenamentos em populações que utilizam algas em sua dieta. Outras espécies, porém, aparentemente não tóxicas, funcionam como complemento nutricional devido ao seu alto teor de vitaminas e iodo. O problema do bócio endêmico, que atinge determinadas populações no mundo, poderia ser grandemente diminuído pela exploração das algas, as quais são portadoras de alto teor de iodo, da ordem de 100 a 40.000 vezes maior que a quantidade existente na água do mar.

A macroalga Bryopsis pennata (figura 3 e 4) cloroficea pertencente à ordem Caulerpales, sin. Bryopsidales é uma espécie tropical encontrada em diversos oceanos. Essa espécie produz uma defesa química tóxica para organismos herbívoros, além de promover alelopatia e se reproduzir facilmente a partir de pequenos fragmentos. Possuem um potencial de se tornar invasiva e dominante em condições ambientais favoráveis como águas ricas em nutrientes (Lamouroux, 2000; Oliveira, 2002).

Estudos prévios afirmam que extratos de algumas algas provocam alterações nos potenciais de ação, e que essas alterações são decorrentes de quebra de ligações peptídica, acarretando redução da quantidade de proteínas provocada pela baixa intensidade de luz disponível em ambientes marinhos no inverno e por alguns períodos de exposição ao ar durante a baixa maré (Fenical & Sin, 1979).

Sakamoto (1993) em uma tese de doutoramento observou que as atividades farmacológicas, em diferentes épocas do ano, do extrato da B. pennata demonstraram que este provocou o aumento no tônus muscular com ação inotrópica e cronotrópica positiva em coração de anuro. Descobertas recentes demonstraram a presença de dois componentes ativos, não identificados, nas frações do extrato bruto da B. pennata, os quais possuem efeitos neurotóxicos reversível em nervo sensorial de crustáceo e inotrópico e cronotrópico positivos em coração de anuros (Rana catesbeiana).

Considerando que nos países desenvolvidos muitos indivíduos morrem de distúrbios circulatórios, mais do que de qualquer outro tipo de doença, essa seria uma forte razão para aumentarem substancialmente as pesquisas farmacológicas a respeito de substâncias de algas marinhas, com vistas a fomentar a produção de drogas antiateroscleróticas.

Figura 1: Jania sphttp:\\www.hawaii.edu/enviroment

Figura 2: Arthrocardia gardneri http://www.ib.usp.br/fisionomias/index.htm

Page 13: Livro CI 2007

  5

Já está bem estabelecida, em termos farmacológicos, a ação antibiótica de muitos extratos de algas, inclusive a atividade contra vírus, bactérias, leveduras, fungos e microalgas. Além de outras atividades: tais como, anticoagulante, antilipêmica, antitumoral, hipocolesterolêmica, hipotensiva, hemostática, hemaglutinante e antiulcerogênica. Além disso, uma grande variedade de aminas foi isolada de macroalgas, várias delas análogas a neurotransmissores que são, geralmente, derivados descarboxilados de aminoácidos (Yamamoto et al., 1982). KNEIFEL (1979) apresentou uma revisão das aminas encontradas em algas; foi isolado de Laminaria angustula um aminoácido básico capaz de prevenir a hipertensão em ratos, a laminina, ela é um derivado da lisina e provoca a redução na força dos batimentos cardíacos, sem reduzir a freqüência; induz, ainda, ao relaxamento da musculatura lisa do intestino, dos vasos capilares e da traquéia. Seu mecanismo de ação reside no bloqueio dos receptores da acetilcolina e,da histamina.

O ácido kaínico, isolado da alga rodofícea Digenea simplex (figura 5), tem sido

empregado em populações orientais como vermífugo, sendo também neuroativo; pois se liga de maneira irreversível nos receptores para glutamato, constituindo uma importante ferramenta de pesquisa neurofisiológica (Johnsson, 1980).

Tiramina e dopamina já foram isoladas de macroalgas (Monostroma, Polysiphonia, Chondrus e Laminaria – (figura 6), que são consumidas na alimentação (Baslow, 1969; Freitas & Marsiglio, 1986).

Nos Estados Unidos, a equipe do Dr. Robert S. Jacobs da Universidade da Califórnia e do Dr. John Faulkner (www.mrd.ucsd.edu/jf/) tem como principal objetivo a verificação do sítio e do mecanismo de ação de substâncias isoladas de organismos marinhos. Algumas têm origem em algas e apresentam grande interesse farmacológico, por exemplo: a Estipoldiona, isolada da alga parda Stypopodium zonale, que inativa a citocinese (inibe a polimerização de microtúbulos), aumenta a sobrevida de camundongos leucêmicos e é um poderoso agente espermatostático. Anteriormente já havia sido evidenciado que esse produto natural reage com grupos sulfidrílicos de micromoléculas, peptídeos e proteínas, inclusive da tubulina. O elatol e a elatona isoladas da alga vermelha (Laurencia sp) inibem a divisão celular, tanto de zigotos de ouriço-do-mar, como de células cancerosas humanas, em cultura (Jacobs & Wilson, 1986).

Figura 3 e 4: Bryopsis pennata http:\\www.hawaii.edu/enviroment http:\\www.botany.hawaii.edu/reefalgae

Figura 5: Digenea simplex http:\\www.botany.hawaii.edu/reefalgae

Figura 6: Laminaria digitatahttp:\\www.botany.hawaii.edu/reefalgae

Page 14: Livro CI 2007

 6 

No Brasil o programa de pesquisas sobre produtos naturais de origem vegetal, com finalidade terapêutica, desenvolve-se em duas linhas: a primeira, que consta de um "screening" farmacológico de substâncias puras ou extratos, previamente obtidos por químicos, de plantas que não possuem usos conhecidos na medicina popular. A segunda que segue orientação oposta, isto é, sabendo-se previamente do uso empírico de determinada planta na medicina folclórica, procura-se estudar o seu extrato brutos para comprovação de suas·possíveis propriedades medicinais.

Referências Alcala, A.C., Halstead, B.W. Human Fatality due to Ingestion of the Crab Demania sp. in the

Phillippines. Clin. Toxicol. 1970, 3: 609-611. Aragão, V. Métodos de análise de conteúdo estomacal. Estudo de caso: Acanthurus coerulus (Bloch and Schneider, 1801) – Teleostei, Acanthuridae – na Reserva Biológica do Atol das Rocas. Dissertação de Mestrado em Biologia Marinha, Universidade Federal Barbosa, J.P.; Teixeira, V. L; Villaça, R.; Pereira, R.C.; Abrantes, J.L., Frugulhetti, I.C.P.P. A

dolabellane diterpene from the brazilian brown alga Dictyota pfaffii. Biochemical Systematics and Ecology, 2003, 31: 1451-1453.

Baslow, M.H. 1969. Pharmacology -.A study of toxins and other biological active substances of marine origin. In: Marine Baltimore, Williams and Wilkins Co. 2003. 286p.

Fenical, W., Sun, H. H. Rhipocephalin and rhipocephanal. Toxic feeding deterrents from the tropical marine alga Rhipocephalus phoenix. Tetrahedron Lett. 1979. 00: 685-88.

Freitas, J. C. and Jacobs, R. S. Antagonism of the neurotoxic action of the betabungarotoxin on the rat phrenic-nerve hemidiaphragm by the marine natural product, manoalide. Fed. Proc. 1983. 42: 374,

Freitas, J. C. Evidências de um possível comportamento de defesa química em Crustáceos Braquiúros. Bol Fisiol. Anim. 1980., 4:153-61,

Freitas, J. C., Ogata, T., Sato, S.; Kodama, M. The occurrence of tetrodotoxin and paralytic shellfish toxins in macroalgae from the Brazilian coast. Proc. Japan. Assoc. Mycotoxicol. 1988 (Suppl.1): 29-30.

Freitas, J., C. Marsiglio, A. F. Pharmacological activity of extracts of some marine algae from Brasilian coast. Bolm. Fisiol. Anim. Univ. S. Paulo. 1986. 10, 61-68.

Freitas, J.C. Aspectos Farmacológicos e Químicos da Secreção Digestiva de Crustáceos Decápodes Braquiúros. São Paulo, 114 p. (Tese de Doutorado. Univ. de São Paulo). 1979.

Freitas, J.C. Biomedical Importance of Marine Natural Products. Ciência e Cultura 1990, 42 (1): 20-24.

Hay, M. E. and Fenical, W. Marine plant-herbivore interactions: The ecology of chemical defense. Annu. Rev. Ecol. System. 1988, 19:111-45.

Hay, M. E. Marine chemical ecology: what’s known and what’s next? J. Exp. Mar. Biol. Ecol. 1996. 200, 103-134,

Hoppe, H. A. Marine algae and their products and constituents in pharmacy In: Marine algae in pharmaceutical sciences, edited by H.A.Hoppe, T. Levring, Y. Tanaka, New York, Walter de Gruyter. 1982 p 25-.120.

http://www.mrd.ucsd.edu/jf/ Jacobs, R.S. and Wilson F. Fertilized Sea Urchin Eggs as a Model for Detecting Cell Division

Inhibitors. In: Modern Analysis of Antibiotics. Adorjan Aszalos, New York, Basel, 1986. p.481-93.

Johnsson, G. Chemical neurotoxins as denervation tools in neurobiology. Annu. Rev. Neurosc, 1980. 3: 169-87,

Kneifel, H., Schuber, F., Aleksidevic, A.; Grove, J. Occurrence of norspermine in Euglena gracilis . Biochem. Biophys. Res. Commun. 1978, 85(1): 42-6.

Kotaki, Y., Tajiri, M. Oshima, Y. & Yasumoto, T. 1983. Identification of calcareous red alga as the primary source of paralytic shellfish toxins in coral reef crabs and gastropods. Bull. Jap. Soc. Sci. Fish., v. 49(2), pp. 283-286.

Kotaki, Y.; Tajiri, M.; Oshima, Y.; Yasumoto, T. Identification of calcareous red algae as the primary source of paralytic shellfish toxins in corral reef crabs and Gastropods. Bull. Japan. Soc. Sci, Fisch. 1983, 49: 283-6.

Lamouroux, J. V. Marine algae of Hawai`i. University of Hawai`i, Botany department, Virtual Herbarioum 2000.

Michanek, G. Seaweed resources for Pharmaceutical uses. In: Marine Algae in Pharmaceutical Science. Ed. H.A. Hoppe, T Levring, Y. Tanaka. New York, Walterde Gruyter, 1979. p. 203-35.

Page 15: Livro CI 2007

  7

Oliveira, E. C. Macroalgas marinhas da costa brasileira, estado do conhecimento, usos e conservação biológica. Congresso Brasileiro de Botânica, Recife, 2002.

Oliveira-Filho, E.C. Algas marinhas bentônicas do Brasil. 1977. Tese (Livre-Docência) - Universidade de São Paulo. São Paulo. P.409

Parekh, R.G., Maru, L.V., Dave, M.J. Chemical Composition of green seaweeds of Saurashtra coast. Bot. Mar. 1977, 20:359-62.

Paul, V.J., Fenical, W. Chemical defense in tropical algae of the order. Caulerpales (Chlorophyta). In: MARINE biorganic chemistry. Edited by Scheuer, P. S. 1987, Springer-Verlag, Heidelberg.

Ragan, M.A. and Glombitza, K.W., Phlorotanins, brown algal polyphenols. Prog Phycol.Res, 1986, 4: 245-258.

Ragan, M.A. Bioactivities in marine genera of Atlantic Canada: The unexplored potential. Proc. N. S. Inst. Sei. 1984, 34: 83-132.

Sakamoto, M. M. Ações farmacológicas do extrato de alga marinha Bryopsis pennata (Chlorophyta, Caulerpales). Tese de Doutoramento, Instituto de Ciências Biomédicas, Universidade de São Paulo, 124p, 1993. Santos, M.C. & Mulle, L.D. 1997. Cap. 5.3 – Lachesis. In: Nicolella, A., Barros, E., Torres, J.B. & Marques, M.G. (eds.) Acidentes com animais peçonhentos: Consulta Rápida, pp. 100-103. Hospital das Clínicas de Porto Alegre: Porto Alegre, RS.

Villac, M.C., Cabral, V.A.P., Pinto, T.O. & Santos, D.B. 2006. Ocorrência de microalgas potencialmente nocivas no litoral do Estado de São Paulo. XI congresso Brasileiro de Ficologia & Simpósio Latino-Americano sobre algas nocivas. 26 de março a 1º de abril de 2006. Itajaí, SC. p. 68.

Yasumoto, T. Oshima, Y., Tajiri, M. & Kotaki, Y. 1983. Analysis of paralytic shellfish toxins in coral reef crabs and gastropods with identification of the primary source of toxins. Toxicon, supp. 3, pp. 513-516.

Page 16: Livro CI 2007

 8 

Substâncias bioativas – Microalgas Jeanete Lopes Naves ([email protected]) - Laboratório Farmacologia de Produtos Naturais Marinhos

Ocasionalmente, algumas microalgas proliferam rapidamente podendo formar manchas visíveis na superfície da água, provocando um fenômeno conhecido como maré vermelha, floração ou “bloom”. Essas florações podem estar associadas a espécies de microalgas que produzem toxinas que são acumuladas por organismos filtradores. Os efeitos dessas florações tóxicas têm sido revisados por Landsberg (2002). Apesar de serem fenômenos naturais, as florações efeitos negativos, causando perdas econômicas para a aquacultura, pesca, turismo e impactos na saúde humana (Richardson and Jorgensen, 1997; Hallegraeff, 2003,). Freitas 1995, As transferências dessas toxinas através da cadeia alimentar podem afetar larvas e formas adultas de muitos organismos marinhos.

O aparecimento de algas tóxicas vem aumentando não somente em número de eventos, mas também em variedades de espécies e toxinas envolvidas (Hallegraeff, 1993, 2003). Explicações para esse crescente aumento são atribuídas a uma combinação de temperatura, salinidade, luz, concentração de nutrientes, aumento da utilização das águas costeiras para aquacultura, transporte de organismos para novas áreas pela água de lastro de navios e sementes de mariscos contaminados (Holligan, 1985; Maclean 1989; Halegraeff et al., 1988, Hallegraeff, 1993, Leong and Tagushi, 2004). Além disso, há um crescente interesse pelo estudo destas toxinas mediante emprego de técnicas modernas para sua identificação e quantificação, e também os aspectos toxicocinéticos e toxicodinâmicos.

Existem pelo menos 90 espécies de microalgas marinhas conhecidas por produzirem toxinas, dessas, 70 são dinoflagelados (Dinophyceae) (Taxonomic Reference List of Toxic Plankton Algae of Intergovernmental Commission – IOC; http://ioc.unesco.org/hab/data.htm). Pertencem principalmente as ordens Peridiniales, Gymnodiniales e Dinophysales. Com relação às marés vermelhas tóxicas, quatro gêneros podem ser destacados: Alexandrium, Dinophysis, Gymnodinium e Prorocentrum (Shumway, 1990; Sournia, 1995).

O consumo de peixes ou mariscos contaminados por uma ou mais toxinas derivadas desses dinoflagelados tem sido responsabilizado por casos de intoxicação humana, com sintomas tais como diarréias, amnésias e paralisias, podendo nos casos graves levar à morte (Daranas et al. 2001). As toxinas responsáveis por esses efeitos são em geral compostos não protéicos e de baixo peso molecular (250-3500 Da), apresentando estruturas químicas, solubilidade e modos de ação bem diferenciados. Podem ser hidro ou lipofílicas, termolábeis ou não, sendo algumas altamente estáveis (Gasthwaite, 2000).

Os dinoflagelados produzem potentes compostos bioativos que podem ser extraídos e concentrados a partir de seu cultivo ou animais marinhos que deles se alimentam primaria ou secundariamente como bivalves, esponjas, peixes etc. São compostos extremamente interessantes para estudos de fisiologia celular, que auxiliam na compreensão do funcionamento de determinados mecanismos das células, devido à sua ação como inibidores específicos.

Um dos principais metabólitos produzidos por dinoflagelados é a saxitoxina (C10H17N7O4) e seus derivados, que estão envolvidos nas intoxicações paralisantes (PSP). São toxinas termoestáveis, hidrossolúveis e de alta neurotoxicidade (Shimizu, 1987), podendo ser encontradas em dinoflagelados do gênero Alexandrium, Pyrodinium e Gymnodinium (Shimizu, 1987). A saxitoxina é o representante mais conhecido das toxinas causdoras de PSP. O mecanismo de ação é comum a todos eles, exibindo diferenças na potencia e em relação à abundância na amostra (Kodama, 2000). As toxinas paralisantes bloqueiam a transmissão neural pela ligação ao canal de sódio dependente de voltagem, causando inibição do fluxo de íons Na+ e impedindo as células nervosas de produzirem potenciais de ação (Steidinger, 1983; Laycock et al., 1994; Asakawa et al., 1995).

As brevetoxinas (BTX-2, C50H70O14, BTX-9, C50H74O14), produzidas principalmente pelo dinoflagelado Gymnodinium breve, provocam intoxicações do tipo neurotóxicas (NSP). Estão envolvidas moléculas cíclicas lipossolúveis contendo vários grupamentos éteres (Nakanish, 1985). O mecanismo de ação desta toxina é aumentar a atividade condutora de canais de sódio dependentes de voltagem. Ela se liga ao sítio 5 do receptor

Page 17: Livro CI 2007

  9

de canais de sódio voltagem-dependentes causando alterações na ativação e bloqueio da inativação (Benoit et al., 1986; Cestèle e Catterall, 2000; Purkerson-Parker et al., 2000). A formação de aerosol pelas ondas do mar durante uma floração pode produzir sintomas semelhantes a asma e irritação nos olhos de banhistas (Baden et al, 1982, Fleming et al, 1995).

Nas intoxicações do tipo diarréicas (DSP) podem estar envolvidos o ácido okadaico (C44H68NO13), as dinofisistoxinas, yessotoxina (C55H80O21S2Na2) e pectenotoxinas, que apresentam estrutura molecular geral do tipo poliéter, com oxigênio e sem átomos de nitrogênio, são termo-estáveis e insolúveis em água. Os dinoflagelados que causam este tipo de intoxicação são dos gêneros Dinophysis e Prorocentrum (Murata et al., 1982, 1986, 1987). Originalmente, estudos farmacológicos demonstraram que o ácido okadaico causa prolongada contração no músculo liso de artérias humanas (Shibata et al, 1982). Como sabemos, a contração nesses músculos lisos é ativada pela fosforilação de uma subunidade de miosina, e foi proposto que o efeito do ácido okadaico é devido a inibição da fosfatase da cadeia leve da miosina (Takai et al., 1987). Considerando esta observação, o ácido okadaico foi considerado um potente inibidor da proteína fosfatase 1 (PP1) e 2 (PP2), duas das quatro principais fosfatases em células de mamíferos (Cohen and Cohen, 1989; Haystead et al, 1989; Cohen et al., 1990; Hardie et al., 1991). As proteínas fosfatases constituem um grupo de enzimas ligadas a processos metabólicos cruciais dentro de uma célula (Cohen, 1989), e conseqüentemente a inibição dessas enzimas produz estados de hiperfosforilação, resultando em uma variedade de efeitos secundários alterando vias metabólicas e eventualmente levando à morte celular.

A ciguatoxina (C60H86O19), maitotoxina (C164H256O68S2Na2), palitoxina (C129H223N3O54) e o ácido okadaico estão envolvidos na intoxicação ciguaterica, onde estão presentes os dinoflagelados Gambierdiscus toxicus e outros do gênero Prorocentrum (Yasumoto and Murata, 1993). Alguns cientistas acreditam que os sintomas causados pela ciguatera (CFP) são resultados da combinação de várias toxinas e/ou seus metabólitos, produzidos por um ou mais dinoflagelados (Tindall et al., 1984; Juranovic and Park, 1991). Entretanto, Gambierdiscus toxicus, dinoflagelado bentônico encontrado colonizando a superfície de macroalgas que servem de alimento para peixes herbívoros, é considerado o principal agente etiológico (Bagnis et al., 1980; Lewis and Holmes, 1993). As espécies bentônicas Ostreopsis siamensis, O. lenticularis, Coolia monotis, Prorocentrum lima possivelmente estão relacionadas a ciguatera (Hallegraeff, 1993). Lombet et al (1987) mostraram que a ciguatoxina age no sítio 5 de canais de sódio dependentes de voltagem. Esses canais são os elementos da membrana envolvidos na função dos nervos e músculos de gerar e propagar potenciais de ação. A conseqüência fisiológica da ligação nesses canais iônicos é o aumento da excitabilidade celular, a qual resulta em repetitivos disparos de potenciais de ação, seguido da diminuição na excitabilidade à medida que a membrana se despolariza (Lehane and Lewis, 2000; Lewis et al., 2000).

Um número recente de intoxicações humanas na Europa, pelo consumo de mariscos Irlandeses, tem sido atribuído a presença de uma nova classe de toxinas chamadas azaspiracideas (AZP), polieter altamente oxigendo (Satake et al, 1998). O estudo demonstra que esta toxina comporta-se diferentemente de outras toxinas poliéteres conhecidas. Tipicamente, toxinas poliéteres do tipo da dinofisistoxina são concentradas nas glândulas digestivas de mariscos, mas esta situação não ocorre sempre com as azaspiracideas (James et al., 2002 a,b). A administração oral em camundongos dessa toxina causou necrose no intestino e nos tecidos linfóides de órgãos, tais como o timo e o baço. Linfócitos T e B também são danificados. Essas afecções são totalmente diferentes daquelas causadas pelo ácido okadaico, responsável pelo envenenamento diarréico por ingestão de mariscos (Ito et al., 2000).

No Sul do Brasil foram encontradas espécies de dinoflagelados que produzem toxinas do tipo diarréica e paralisante (Proença et al., 1998, 1999, 2000). Ocorrências de proliferações de dinoflagelados têm sido registradas no Brasil por Freitas e Lunetta (1982), CETESB (1980, 1983) e Tommasi (1985). No Estado de São Paulo, litoral norte, o extrato do dinoflagelado Prorocentrum mexicanum apresentou efeito citotóxico em neuroblastoma atuando sobre o citoesqueleto, desorganizando os microfilamentos (Naves et al, 2006). Trabalhos anteriores demonstraram a ocorrência de toxinas paralisantes em ascídiaceos, crustáceos e micro-organismos isolados de mexilhões (Freitas et al, 1992 a, b, 1995).

Page 18: Livro CI 2007

 10 

Referências

Asakawa, M. Miyazawa, K., Takayama, H. And Nogushi, T. (1995) Dinoflagellate Alexandrium tamarense as the source of paralytic shellfish poison (PSP) contained in bivalves from Hiroshima Bay, Hiroshima Prefecture, Japan. Toxicon 33:691-697.

Baden, D.G., Mende, T.J., Bikhazi, G. And Leung, I. (1982). Bronchoconstriction caused by Florida Red Tide Toxins. Toxicon 20:929-932.

Bagnis, R.A., Chanteau, S., Chungue, E., Hurtel, J.M., Yasumoto, T., Inoue, A. (1980) Origins of ciguatera fish poisoning: a new dinoflagellate, Gambierdiscus toxicus Adachi and Fukuyo, definitely involved as a causal agent, Toxicon18:199-208.

Benoit, E., Legrand, A.M., And Doboid, J. M. (1986). Effects of ciguatoxin on current and voltage clamped frog myelinated nerve fibre. Toxicon 24:357-364.

Cestèle, S. And Catterall, W.A. (2000) Molecular mechanisms of neurotoxin action on voltage-gated sodium channels. Biochimie 82:883-892.

CETESB, São Paulo (1980). Avaliação do potencial de ocorrência de “maré vermelha” no litoral do Estado de São Paulo. CETESB, relatório técnico, 45p.

CETESB, São Paulo (1983). Relatório sobre a ocorrência de “maré vermelha” no litoral do Estado de São Paulo, em agosto de 1983. CETESB, Relatório técnico, 88p.

Cohen, P. (1989) The estructure and regulation of protein phosphatase. Ann Rev Biochem 58:453-508.

Cohen, P. And Cohen, P.T.W. (1989). Protein phosphatase come of age. J Biol Chem 264, 21435-21438.

Cohen, P., Holmes, C.F.B. And Tsukitani, Y. (1990) Okadaic acid: a new probe for the study of cellular regulation. Trends Biochem Sci 15: 89-102.

Daranas, A.H., Norte, M. And Fernandez, J.J. (2001). Toxic marine microalgae. Toxicon 39, 1101-1132.

Fleming, L.E., Bean, J.A., Baden, D.G. (1995). Epidemiology and public health. In: Manual on Harmful Marine Microalgae, IOC,Mannuals and Guides 33, edited by G.M. Hallegraeff, D.M. Anderson, A.D. Cembella. pp. 475-486.

Freitas, J. C. E Lunetta, J. E. (1982). Ocorrência de maré vermelha na costa do Estado do Rio de Janeiro. Ciência e Cultura, 34: 1059-1061.

Freitas, J.C. (1995). Toxinas de Algas Fitoplanctonicas. In: Manual de Metodos Ficológicos, edited by K. Alveal, M.E. Ferrario, E.C. Oliveira y E. Sar., Universidade de Concepción – Concepción Chile. pp. 311-327.

Freitas, J.C., Ogata, M. Kodama, M., Martinez, S.C.G., Lima, M.F. & Monteiro, C.K. (1992b). Possible microbial source of guanidine neurotoxins found in the mussel Perna perna (MOLLUSCA, BIVALVIA, MYTILIDAE). In: Recent Advances in Toxinology Research, vol.2, Edited by P. Gopalakrishnakone & C.K. Tan, Published by National University of Singapore, p.589-596.

Freitas, J.C., Ogata, T., Veit, C.H., Kodama, M. (1992a). Occurrence of guanidine neurotoxins in Ascidia Nigra (Tunicata, Ascidiacea). In: Recent Advances in Toxinology Research, Vol.2, edited by P. Gopalakrishnakone and C.K. Tan, Published by National University of Singapore, pp. 541-550.

Garthwaite, I. (2000) Keeping shellfish safe to eat: a brief review of shellfish toxins, and methods for their detection. Trends in Food Science and Technology 11: 235-244.

Hallegraeff, G.M. (2003). Harmful algal blooms: a global review. In: Manual on harmful marine microalgae. Edited by Hallegraeff, G.M., Anderson, D.M., Centella A.D. Paris: UNESCO Publishing, 2003. p. 25-49.

Hallegraeff, G.M., Steffensen, D.A. And Wetherbee, R. (1988) Three estuarine australian dinoflagellates that can produce paralytic shellfish toxins. Journal of Plankton Research, 10, 533-541.

Hardie, D.G., Haystead, T.A.J. And Sim, A.T.R. (1991) Use of okadaic acid to inhibit protein phosphatases in intact cells. Meth. Enzym., 201:469-476.

Haystead, T.A.J., Sim, A.T.R., Carling, D., Honnor, R.C., Tsukitani, Y., Cohen, P. And Hardie, D.G. (1989). Effects of the promoter okadaic acid on intracellular phosphorylation and metabolism. Nature 337: 78-81.

Holligan, P.M. (1985). Marine dinoflagellates blooms – growth strategies and environmental exploitation. In: Toxic dinoflagellates edited by D.M. Anderson, A.W. White and D.G. Baden. Elsevier, NY, pp. 133-139.

Page 19: Livro CI 2007

  11

Ito, E., Satake, M., Ofuji, K., Kurita, N., Mcmahon, T., James, K. And Yasumoto, T. (2000). Multiple organ damage caused by a new toxin azaspiracid, isolated from mussels produced in Ireland. Toxicon 38: 917-30.

James K.J., Furey, A., Lehane M., Ramstad H., Aune, T., Hovgaard P, Morris S, Higman W, Satake M, Yasumoto T. (2002) First evidence of an extensive northern European distribution of azaspiracid poisoning (AZP) toxins in shellfish. Toxicon 40: 909-15.

James K.J., Lehane M., Moroney C., Fernandez-Puente P., Satake M., Yasumoto T., Furey A. (2002) Azaspiracid shellfish poisoning: unusual toxin dynamics in shellfish and the increased risk of acute human intoxications. Food Addit Contam 19: 555-561.

Juranovic, L.R., Park, D.L. (1991) Foodborne toxins or marine origin: Ciguatera. Rev Environ Contam Toxicol 117:51-94.

Kodama, M. (2000). Seafood and Freshwaters Toxins: Pharmacology, Physiology and Detection, edited by L.M. Botana, Dekker, New York. pp 125-150.

Landsberg, J.H. The effects of harmful algal blooms on aquatic organisms. Rev Fish Sci 2002; 10:113-390.

Laycock, M.V., Thibaut, P., Ayer, S.W. And Walter, J. A. (1994) Isolation and purification procedures for the preparation of paralytic shellfish poisoning toxin standards. Nat Toxins 2: 175-183.

Leong, S.C.Y., Taguchi, S. (2004). Response of the dinoflagellate Alexandrium tamarense to a range of nitrogen sources and concentrations: growth rate, chemical carbon and nitrogen, and pigments. Hydrobiologia in press

Lewis R.J., Holmes, M.J. (1993) Origin and transfer of toxins involved in ciguatera. Comp Biochem Physiol 106C (3), 615-628.

Lewis R.J., Molgo, J., Adams, D.J. (2000) Ciguatoxins: Pharmacology of toxins involved in ciguatera and related marine poisonings. In: Seafood and Freshwater toxins: Pharmacology, Physiology and Detection, edited by L. M. Botana. Dekker, New York. pp 419-448.

Lewis, R.J., Higman, W. And Kuenstner, S. (1995) Occurrence of Alexandrium sp cysts in sediments from the North East coast of Britain. In: Harmful Marine Algal Blooms, edited by P. Lassus, G. Arzul, E. Erard, P Gentien and C. Marcaillou-LeBaut. Lavoisier Science Publishers, Paris, pp. 175-180.

Lombet, A., Bidard, J.N., Lazdunski, M. (1987) Ciguatoxin and brevetoxin share a common receptor site on the neuronal voltage-dependent Na+ channel. FEBS Letters 219: 355-359.

Maclean, J.L. (1989). Indo-Pacific red tide, 1985-1988. Marine Pollution Bulletin 20,304-310. Murata, M., Kumagai, M., Lee, J.S., Yasumoto,T., (1987). Isolation and structure of yessotoxin, a

novel polyether compound implicated in diarrhetic shellfish poisoning. Tetrahedron Lett 28, 5869-5872.

Murata, M., Sano, M., Iwashita, T., Naoki, H., Yasumoto, T., (1986). The structure of pectenotoxin-3, a new constitutent of diarrhetic shellfish toxins. Agric Biol Chem 50, 2693-2695.

Murata, M., Shimatani, M., Sugitani, H., Oshima, U., Yasumoto, T., (1982). Isolation and structure elucidation of the causative toxin of diarrhetic shellfish poisoning. Bull Jpn Soc Sci Fish 43, 549-552.

Nakanish, K. (1985). The chemistry of brevetoxins: a review. Toxicon 23 (3), 473-479. Naves, J.L, Prado, M.P., Rangel, M., Sanctis, B., Machado-Satelli, G., Freitas, J.C. Cytotoxicity

in the marine dinoflagellate Prorocentrum mexicanum from Brazil. Comparative Biochemistry and Physiology, Part C 143 (2006) 73-77.

Proença, A.L., Schimitt, F., Costa, T. & Rörig, L. (1998). Just a diarrhea? Evidence of diarrhetic shellfish poisoning in Santa Catarina, Brazil. Ciência e Cultura Journal of the Brazilian Association for the Advancement of Science. 50(6): 458-462.

Proença, L.A.O., Schimitt, F., Guimarães, S.P. And Rörig, L.R. (1999). Análise de toxinas diarréicas em duas espécies de Prorocentrum (Dinophycea) isoladas em área de cultivo de moluscos. Notas Técnicas FACIMAR, 3: 41-45.

Proença, L.A.O., Tamanaha, M.S., Souza, N.P. (2000). Paralytic toxins from Gymnodinium catenatum Graham isolated from southers Brazilian Waters. X International IUPAC Symposium on Micotoxins and Phycotoxins.

Purkerson-Parker S.l, Fieber La, Rein Ks, Podona T, Baden D.G. (2000) Brevetoxin derivatives that inhibit toxin activity. Chem Biol 7(6): 385-93.

Richardson, K. And Jorgensen B.B. (1997). Eutrophication: Definition, history and effects. In: Eutrophycation in Coastal Marine Ecosystems. Coastal and Studies, edited by B.B.

Page 20: Livro CI 2007

 12 

Jorgensen and K. Richardson. Vol 52, American Geophysical Union Washington, District of Columbia, pp 1-19.

Satake, M., Ofuji, K., Naoki, H., James, K.J., Furey, A., Mcmahon, T., Silke, J. And Yasumoto, T. (1998). Azaspiracid, a new marine toxin having unique spiro ring assemblies, isolated from Irish mussels Mytilus edulis. J Am Chem Soc120: 9967-9968.

Shibata, S., Ishida, Y., Kitano, H., Ohizumi, Y., Habon, J., Tsukitani., Y.,Kikushi, H. (1982) Contractile effects of okadaic acid, a novel ionophore-like substance from black sponge, on isolated smooth muscles under the condition of calcium deficiency. J Pharmacol Exp Ther 223: 135-143.

Shimizu, Y. (1987). Dinoflagellate toxins. In: The Biology of Dinoflagellates, edited by F.J.R. Taylor. Blackwell Scientific Publications, Oxford, pp. 282-315.

Shumway, S.E. (1990). A review of the effects of algal blooms on shellfesh and aquaculture. Journal of the world aquaculture society, 21 (2), 65-104.

Sournia, A (1995) Red-tide and toxic marine phytoplankton of the world ocean: an enquiry into biodiversity. In: Harmful Marine Algal Blooms edited by P Lassus, G. Arzul, E. Erard, P. Gentien and C. Marcaillou. Lavoisier/Intercept, Paris, France. pp. 103-112.

Steidinger, K. A (1983). A re-evalution of toxic dinoflagellate biology and ecology. In: Progress in Phycological Research, edited by F.E. Round and D.J. Chapman. Elsevier, Amsterdan, 2: 147-188.

Takai, A., Bialojan, C., Troschka, M., Ruegg, J.C. (1987) Smooth muscle myosin phophatase inhibition and force enhancement by black sponge toxin. FEBS Letters 217:81-84.

Tindall, D.R. Dickey, R.W., Carlson, R.D., And Morey-Gaines, G. (1984) Ciguatoxigenic dinoflagellates from the Caribbean Sea. In: Seafood Toxins, edited by E.P. Ragelis. American Chemical Society, Washington DC, pp 225-240.

Tommasi, L.R. (1985). Maré Vermelha. Ciência e Cultura, 37 (10): 1599-1605. Yassumoto,T., And Murata, M. (1993). Marine toxins. Chem Rev 93, 1897-1909.

Page 21: Livro CI 2007

  13

Substâncias bioativas – anêmonas-do-mar André Junqueira Zaharenko ([email protected]), Wilson Ferreira Junior ([email protected]) - Laboratório Farmacologia de Produtos Naturais Marinhos

Os cnidários são animais de estrutura radial, a maioria com tentáculos. Esses podem ocorrer em formas fixas (hidras ou pólipos) ou móveis (medusas), sendo representados por várias espécies ao longo do litoral do Brasil. As caravelas, que pertencem à classe Hidrozoa e à espécie Physalia physalis , são muitos comuns, especialmente nas regiões Norte e Nordeste e podem provocar acidentes graves. As cubomedusas, da classe Cubozoa, estão associadas a acidentes fatais em vários países e duas espécies são comuns no Brasil: a Tamoya haplonema e a Chiropsalmus quadrumanus.

Vidal Haddad Jr. notificou que em uma série de 144 acidentes provocados por animais marinhos observados no pronto-socorro de Ubatuba (SP), cerca de 25% foram causados por cnidários.

Apesar das anêmonas não estarem relacionadas entre os principais responsáveis por acidentes, sendo que são animais sésseis (algumas espécies conseguem deslocar-se por pequenas distancias) e de pequeno porte, estudos dos compostos formados na peçonha deste animal vêm contribuindo muito para avanços do conhecimento no campo da Farmacologia de Produtos Naturais e temas correlacionados.

Como todo animal peçonhento, as anêmonas do mar empregam toxinas para paralisar suas presas ou se defenderem de predadores. Todos os cnidários, filo ao qual pertencem as águas-vivas, os corais e também as anêmonas, possuem nos cnidócitos, estruturas celulares microscópicas, similares a arpões, denominadas de nematocistos, responsáveis pela inoculação de peçonha rica em potentes neurotoxinas paralisantes. Este grupo de toxinas age sobre crustáceos e peixes (Abita et al., 1977; Malpezzi et al., 1993; Lagos et al., 2001). Adicionalmente a estas neurotoxinas, foi também mostrada a presença de hemolisinas (Malpezzi and Freitas, 1991; Lagos et al., 2001; Anderluh and Macek, 2002; Oliveira et al., 2004). As hemolisinas são proteínas que formam poros em membranas celulares e causam desequilíbrio osmótico e lise celular (Lanio et al., 2001; Hong et al., 2002).

Desde a década de 70, vários estudos vêm sendo realizados com o intuito de caracterizar os mecanismos envolvidos na ação das toxinas de anêmonas. Trabalhos clássicos (Beress et al., 1975; Norton et al., 1980) elucidaram os mecanismos de ação das toxinas ATX-I, II e III da anêmona Anemonia sulcata, habitante do mar Mediterrâneo, mostrando que estas toxinas retardam a inativação dos canais de sódio dependentes de voltagem. Com o surgimento, na década de 70 e início da década de 80, da técnica de “patch-clamp”, a caracterização de peptídeos das mais diversas fontes animais, bem como de sua atividade biológica, teve um avanço considerável. Neste sentido, foi possível evidenciar que as toxinas isoladas de anêmonas do mar apresentam ações em diversos canais iônicos, mostrando grande potencial farmacológico. Assim, a toxina ShK, isolada da anêmona caribenha Stichodactyla helianthus, mostrou ser potente bloqueador de canais para K+ dependentes de voltagem, discriminando principalmente os subtipos Kv1.1 e 1.3 (Kalman et al., 1998) e Kv3.2 (Yan et al., 2005). Os canais Kv1.3 são altamente expressos em linfócitos-T, durante ativação do sistema imune. Assim, a caracterização de fármacos capazes de bloquear estes canais torna-se altamente atrativa em terapias para o controle de doenças auto-imunes (Ghanshani et al., 2000; Beeton et al., 2001; Beeton and Chandy, 2005). Desta forma, foram obtidos, por meio de mutações sítio-dirigidas, análogos da toxina ShK com maior atividade biológica, para possibilitar o desenvolvimento de imunossupressores (Beeton et al., 2001). Foram também estabelecidas metodologias teóricas para a síntese de compostos que apresentem apenas as cadeias laterais dos aminoácidos envolvidos no bloqueio destes canais (Baell and Huang, 2002).

Recentemente, foi descrita uma nova classe de toxinas peptídicas de anêmonas, cujos representantes principais são as toxinas APETx1 e APETx2 isoladas de extratos da anêmona Anthopleura elegantissima (Diochot et al., 2003; Diochot et al., 2004). A primeira toxina é um modulador de canais para potássio do tipo HERG (“Human Ether-a-gogo Related Gene) e a segunda, um bloqueador de canais do tipo ASIC (“Acid-sensing Ion Channels”). Da espécie japonesa Antheopsis maculata, Honma e colaboradores (2005) isolaram outro peptídeo com sequência primária similar a APETx1 e 2. Sugere-se que no

Page 22: Livro CI 2007

 14 

futuro, muitas toxinas dessa nova categoria sejam isoladas e, conseqüentemente, novos canais iônicos sejam caracterizados como alvos destas toxinas.

A caissarona, um composto de baixo peso molecular isolado de extratos de Bunodosoma caissarum, uma espécie endêmica do litoral brasileiro, induz poliespermia em ovos de ouriço do mar da espécie Lytechinus variegatus e aumenta a motilidade intestinal de íleo isolado de cobaia (de Freitas and Sawaya, 1990). Cooper e colaboradores (1995) mostraram que o aumento da motilidade intestinal era conseqüência da capacidade da caissarona em antagonizar receptores para adenosina.

Em 1993, foi também isolada da fração neurotóxica da peçonha de B. caissarum, a toxina BcIII, um polipeptídeo de 48 resíduos de aminoácidos que pertence às toxinas do tipo 1 de anêmonas do mar (Malpezzi et al., 1993). Posteriormente, a mesma toxina foi ensaiada em canais de sódio humanos clonados (Nav 1.1 a 1.6), os quais estão presentes no sistema nervoso central (Nav1.1, 1.2, 1.3), sistema nervoso periférico (Nav1.6), musculatura esquelética (Nav1.4) e cardíaca (Nav1.5). Os resultados mostraram que a BcIII e outras duas toxinas de anêmona (ATXII e AFTII) ligam-se a alguma outra região dos canais de sódio, além do suposto sítio 3 (Oliveira et al., 2004). Como conseqüência, há retardo na inativação desses canais e aumento do pico da corrente e da corrente persistente. Esses dados sugerem que outras regiões dos canais de sódio estão envolvidas no processo de inativação dos mesmos, abrindo a possibilidade de que os peptídeos de anêmonas sejam empregados como protótipos para o desenvolvimento de novas drogas ou como importantes ferramentas farmacológicas no estudo da biofísica de canais de sódio.

Outra anêmona da costa brasileira que já foi estudada é a Bunodosoma cangicum, congênere de B. caissarum. Araque e colaboradores (1995) testaram a peçonha deste animal e encontraram atividade inibitória sobre canais de K+ dependentes de Ca2+. Posteriormente, Lagos e colaboradores (2001) observaram que diferentes frações da peçonha deste animal apresentavam atividade hemolítica e neurotóxica. Estas neurotoxinas atuam sobre canais de sódio dependentes de voltagem, além de inibirem canais de potássio dependentes de voltagem.

Além das neurotoxinas e das hemolisinas de anêmonas, a única menção que se faz a compostos de baixo peso molecular é o trabalho de Garateix et al. (1996). Neste artigo, os autores observaram que uma fração eluída no final da cromatografia de gel-filtração (Sephadex G-50), da peçonha da anêmona Phyllactis flosculifera, bloqueava receptores glutamatérgicos metabotrópicos em neurônios de gastrópodes. Sabe-se, por exemplo, que o neurotransmissor muscular de crustáceos e insetos é o glutamato. Desta forma, é possível que predadores desses invertebrados tenham desenvolvido, além de toxinas que atuem em canais iônicos, toxinas que possam interferir com receptores glutamatérgicos.

Recentemente foram isolados compostos bromados e de baixo peso molecular provenientes da peçonha de B. cangicum. Através da filtração em gel da peçonha destes animais, obteve-se uma fração que é eluída no final do cromatograma, denominada de fração V (FrV). Após repurificação da mesma em cromatografia líquida de fase reversa de alto desempenho (HPLC), foram obtidos vários compostos de massas moleculares variando entre 300 e 600 Da. Dentre estes compostos, a molécula majoritária da FrV apresentou atividade analgésica periférica marcante, quando administrado em ratos.

Portanto, devido ao grande “leque” de atividades das moléculas produzidas nos nematocistos das anêmonas, aqui demonstrado, torna-se claro a conclusão de que este grupo desperta um enorme interesse dentro da comunidade científica, principalmente as áreas interligadas com a farmacologia de produtos naturais.

Page 23: Livro CI 2007

  15

Substâncias bioativas - animais terrestres Bruno Garcia Stranghetti ([email protected]) – Laboratório de Farmacologia de Produtos Naturais Marinhos

Os animais terrestres, assim como os marinhos, apresentam substâncias bioativas que podem causar acidentes, alguns até fatais. Neste texto foram selecionados aqueles de maior interesse devido à composição e toxicidade da sua peçonha. Entre esses organismos estão as aranhas, escorpiões e serpentes. As aranhas do gênero Phoneutria são popularmente conhecidas como aranhas armadeiras. Sua peçonha é de natureza protéica, constituída de peptídeos básicos. Estudos demonstraram que a peçonha tem efeito modulador nos canais de sódio neuronais, o que provoca despolarização das fibras musculares favorecendo a liberação de neurotransmissores, principalmente acetilcolina e catecolaminas. Há também efeitos cardiovasculares, que em ratos parecem ser decorrentes da ativação dos canais de cálcio (Bucaretchi, 1997). A peçonha das aranhas marrons, Loxosceles, possui ação dermonecrótica, devido aos seus componentes proteolíticos e necrotóxicos. Ocorre também hemólise intravascular por interação da peçonha com a membrana do eritrócito (Torres et al., 1997). Em relação aos escorpiões, sua peçonha é uma mistura complexa composta de grande número de proteínas básicas, de baixo peso molecular, associadas a aminoácidos livres e sais. Não apresenta atividade hemolítica, proteolítica e fosfolipásica, nem contém fibrinogênio. A toxina escorpiônica provoca efeitos moduladores nos canais de sódio, produzindo despolarização das terminações nervosas pós-ganglionares dos sistemas simpáticos e parassimpáticos, o que causa grande liberação de neurotransmissores (adrenalina, noradrenalina e acetilcolina) (Hering et al., 1997). Entre as serpentes conhecidas no mundo, apenas 10% delas são peçonhentas. No Brasil a fauna ofídica de interesse médico está representada pelos gêneros Bothrops, Crotalus, Lachesis, Micrurus, Philodryas e Clelia. Os acidentes com Bothrops (jararacas) correspondem aos de maior importância epidemiológica no país, já que são responsáveis por cerca de 80 a 90% dos envenenamentos registrados pelo Ministério da Saúde (Cardoso, 1997). Segundo este mesmo autor, a peçonha dos animais deste gênero possui várias ações, tais como: ação proteolítica, devido à presença de proteases, hialuronidases e fosfolipases; ação coagulante, já que a maioria das peçonhas botrópicas ativa o fator X e a protrombina, e possuem também ação semelhante à trombina, convertendo o fibrinogênio em fibrina; ação hemorrágica, decorrente da presença de metaloproteínas ácidas, as hemorraginas, que provocam lesões na membrana basal dos capilares.

A peçonha das serpentes cascavéis, gênero Crotalus, é um complexo tóxico enzimático, cujo fracionamento tem revelado componentes peptídicos com efeitos que variam nas diferentes espécies animais. As ações tóxicas das peçonhas de crotalídeos são conhecidas por possuírem: ação neurotóxica, produzida pela crotoxina, uma neurotoxina de ação pré-sináptica, inibindo a liberação de acetilcolina, que leva a um bloqueio muscular; ação miotóxica, que produz lesões nas fibras musculares esqueléticas levando à liberação de enzimas e mioglobina para o sangue, que são excretadas pela urina; ação coagulante, produzida pela fração tipo trombina, que converte o fibrinogênio diretamente em fibrina, podendo levar à incoagulabilidade sanguínea (Azevedo-Marques et al.,1997).

Os acidentes com serpentes do gênero Lachesis, conhecidas como surucucu, surucutinga e outros, são raros em nosso país. Esta espécie possui peçonha com atividades diversas, tais como a: ação proteolítica, com enzimas que podem induzir a liberação de substâncias vasoativas, tais como histamina e bradicinina, podendo levar ao choque nos envenenamentos; ação coagulante, que resulta no consumo de fibrinogênio, que coagula e se deposita principalmente nos capilares pulmonares; e ação hemorrágica, com liberação de hemorragina que age sobre os vasos capilares destruindo a membrana basal e causando sua ruptura (Santos e Mulle, 1997).

No caso de espécies de cobras-corais, pertencentes ao gênero Micrurus, as atividades da peçonha apresentam, em humanos, efeitos neurotóxicos e miotóxicos. As peçonhas desta serpente são constituídas por neurotoxinas pré-sinápticas, com proteínas com atividade fosfolipásica, que impedem a liberação de acetilcolina na junção

Page 24: Livro CI 2007

 16 

neuromuscular; neurotoxinas pós-sinápticas, com proteínas desprovidas de atividade enzimática, que competem pela ligação nos receptores colinérgicos das membranas pós-sinápticas das junções neuromusculares. Também estão presentes miotoxinas com efeitos que podem estar associados à ação neurotóxica (Silva Jr, 1997).

Figura 1. A liberação de neurotransmissores da membrana pré-sináptica para a pós-sináptica gera nesta um potencial de ação que conduz o impulso elétrico para outro neurônio ou para um órgão efetuador. Na situação 1 há um bloqueio pré-sináptico onde substâncias impedem a liberação dos neurotransmissores. Na situação 2 há um bloqueio pós-sináptico, onde substâncias competem pela ligação dos neurotransmissores no receptores pós-sinápticos.

Referências AZEVEDO-MARQUES, M.M., CUPO, P. & HERING, S. E. 1997. Cap. 5.2 – Crotalus. In:

NICOLELLA, A., BARROS, E., TORRES, J.B. & MARQUES, M.G. (eds.) Acidentes com animais peçonhentos: Consulta Rápida, pp. 92-99. Hospital das Clínicas de Porto Alegre: Porto Alegre, RS.

BUCARETCHI, F. 1997. Cap. 6.1 – Phoneutria. In: NICOLELLA, A., BARROS, E., TORRES, J.B. & MARQUES, M.G. (eds.) Acidentes com animais peçonhentos: Consulta Rápida, pp. 117-124. Hospital das Clínicas de Porto Alegre: Porto Alegre, RS.

CARDOSO, J.L.C. 1997. Cap. 5.1 – Bothrops. Serpentes Brothrops de impotância médica. In: NICOLELLA, A., BARROS, E., TORRES, J.B. & MARQUES, M.G. (eds.) Acidentes com animais peçonhentos: Consulta Rápida, pp. 79-85. Hospital das Clínicas de Porto Alegre: Porto Alegre, RS.

HERING, S.E., AZEVEDO-MARQUES, M. & CUPO, P. 1997. Cap. 7.1 – Tityus. In: NICOLELLA, A., BARROS, E., TORRES, J.B. & MARQUES, M.G. (eds.) Acidentes com animais peçonhentos: Consulta Rápida, pp. 141-147. Hospital das Clínicas de Porto Alegre: Porto Alegre, RS.

SANTOS, M.C. & MULLE, L.D. 1997. Cap. 5.3 – Lachesis. In: NICOLELLA, A., BARROS, E., TORRES, J.B. & MARQUES, M.G. (eds.) Acidentes com animais peçonhentos: Consulta Rápida, pp. 100-103. Hospital das Clínicas de Porto Alegre: Porto Alegre, RS.

SILVA Jr., N.J. 1997. Cap. 5.4 – Micrurus. In: NICOLELLA, A., BARROS, E., TORRES, J.B. & MARQUES, M.G. (eds.) Acidentes com animais peçonhentos: Consulta Rápida, pp. 104-110. Hospital das Clínicas de Porto Alegre: Porto Alegre, RS.

TORRES, J.B., MARQUES, M.G., NICOLELLA, A. & KLUWE, L.H.S. 1997. Cap. 6.3 – Loxosceles. In: NICOLELLA, A., BARROS, E., TORRES, J.B. & MARQUES, M.G. (eds.) Acidentes com animais peçonhentos: Consulta Rápida, pp. 127-129. Hospital das Clínicas de Porto Alegre: Porto Alegre, RS.

Page 25: Livro CI 2007

  17

Fisiologia da Dor Wilson Ferreira Junior ([email protected]) - Laboratório Farmacologia de Produtos Naturais Marinhos

Dor é uma qualidade sensorial complexa, freqüentemente não relacionada ao grau de lesão tecidual. A interpretação da sensação dolorosa envolve não apenas os aspectos físico-químicos da transmissão da dor, da periferia para o sistema nervoso central (nocicepção), mas também os componentes sócio-culturais dos indivíduos e as particularidades do ambiente onde o fenômeno nociceptivo é experimentado.

A dor evoca emoções e fantasias, muitas vezes incapacitantes, que traduzem o sofrimento. Incertezas, medo da incapacidade, da desfiguração e da morte, preocupação com perdas materiais e sociais são alguns dos diferentes componentes do grande contexto dos traços que descrevem o comportamento do doente com dor. A limitação para execução das atividades da vida diária, profissionais, sociais e familiares, o comprometimento do ritmo sono, do apetite e do lazer contribuem para agravar o sofrimento dos que padecem de dor.

Apesar do grande desenvolvimento observado, nesses últimos anos, no campo do conhecimento sobre a fisiopatologia da dor, alguns estudos revelam que, em varias situações clínicas, o fenômeno doloroso não é adequadamente controlado, pois, freqüentemente, muitos dos componentes não nociceptivos do sofrimento não são enfocados e tratados.

Diversas terapias antiálgicas compreendendo associação de novos fármacos, meios físicos, bloqueios de vias sensitivas, ablação ou estimulação de sistemas sensoriais, têm sido propostas e empregadas, nos últimos anos, para o tratamento da dor. A sofisticação da tecnologia, por si só, não significa assistência adequada. Muitas vezes, procedimentos ou emprego de equipamentos complexos implicam em custos elevados e são, freqüentemente, desnecessários para minimizar o desconforto.

O maior contingente das síndromes álgicas pode ser controlado com medidas farmacológicas e físicas simples que estão ao alcance de todos os profissionais da saúde. Obviamente, o manejo sintomático correto dos quadros dolorosos pressupõe o diagnóstico etiológico da dor e a remoção prévia, sempre que possível, dos fatores implicados em sua gênese. A história e o exame clínico são, sem dúvida, os principais instrumentos para a elucidação das causas da dor.

A história da evolução do conhecimento sobre os fenômenos dolorosos remonta às sociedades antigas. Nestas, a dor, sem outra causa aparente como traumatismo, era atribuída à invasão do corpo por maus espíritos e como punição dos deuses. Acreditava-se que o coração e os vasos sanguíneos estivessem envolvidos na apreciação do fenômeno doloroso. Na Índia, a dor foi reconhecida como uma sensação e seus aspectos emocionais, realçados. Na China, a dor e as doenças eram atribuídas ao excesso ou deficiência de certos fluidos no interior do organismo. Na Grécia, nos séculos V e VI A.C., foi atribuído ao cérebro e nervos, e não ao coração, o processamento da sensação nociceptiva. No entanto, para Aristóteles, que caracterizou as cincos modalidades sensoriais, a estimulação dolorosa era conduzida pelo sangue, ao coração.

Os conceitos de Aristóteles predominaram durante a Idade Média. Somente após o Renascimento foi, definitivamente, atribuído ao sistema nervoso central (SNC) o papel fundamental no mecanismo das sensações e da nocicepção. Nos séculos XVI e XVII, Descartes introduziu os conceitos sobre a especificidade das vias nervosas envolvidas na nocicepção que se firmaram completamente no século XIX.

A Teoria das Especificidades, desenvolvida no século XIX, a partir dos trabalhos de Descartes, propôs a existência de terminações nervosas distintas para variedade de sensação cutânea. No final do século XIX, foi divulgada a Teoria do Padrão de Estímulos, segundo a qual, não existiriam estruturas especificas responsáveis pela estimulação nociceptiva no sistema nervoso periférico(SNP) e SNC. Esta teoria afirmava que o padrão temporal e espacial dos estímulos conduzidos por canais sensoriais inespecíficos é que determinaria se a sensação seria nociceptiva ou não.

Com a evolução dos conhecimentos, percebeu-se que a Teoria da Especificidade é falha, pois confunde especialização com especificidade e pelo fato de não ter sido encontrado, no sistema nervoso, estruturas específicas para a veiculação das informações nociceptivas. Conclui-se, também que a Teoria de Padrão de Estímulos é incompleta, pois

Page 26: Livro CI 2007

 18 

não reconhece a existência, no SNC, de estruturas especializadas para o processamento das informações relacionadas com as qualidades sensoriais específicas. No SNC e SNP, há certo grau de especialização funcional e a somação de estímulos também está envolvida no mecanismo de dor.

Melzack e Wall, em 1965, apresentaram a Teoria da Comporta que concilia conceitos da Teoria da Especificidade com os da Teoria do Padrão de Estímulos, firmando o principio de interação sensorial. Esta teoria propõe que o impulso conduzido pelo SNP ao SNC sofre a atuação de sistemas moduladores, antes que a percepção dolorosa seja evocada. A substância gelatinosa do corno posterior da medula espinal atua como moduladora dos estímulos aferentes e os tratos dos funículos posteriores ativam estruturas encefálicas que, por meio de fibras descendentes, alcançam o cordão medular onde ocorre a modulação.

Do balanço entre a atividade dos aferentes primários, que conduzem informação nociceptiva, e a atividade inibitória das vias segmentares e supra-segmetares resulta a sensação dolorosa. Na década de 70, Melzack apontou as várias dimensões da dor sensitivo-discriminativa, afetivo-motivacional e cognitiva. Assim, aspectos sensoriais, afetivos, culturais e emocionais compõem o fenômeno doloroso. A Teoria das Comportas teve o mérito de atrair a atenção dos investigadores sobre os processos envolvidos na modulação da dor.

Atualmente, sabe-se que o controle da dor é mais complexo do que o esquema proposto. A transmissão da dor, da periferia para o SNC, está associada à atividade elétrica das fibras nervosas aferentes primárias, as quais possuem terminações sensoriais nos tecidos periféricos e são ativadas por estímulos mecânicos, térmicos e químicos. Muitas destas fibras nervosas aferentes são denominadas nociceptores polimodais (fibras C), possuindo baixa velocidade de condução, por não apresentarem mielina. As fibras nociceptivas mielinizadas, denominadas Aδ, conduzem mais rapidamente os estímulos periféricos.

Figura 1: A velocidade de condução do impulso nervoso é diretamente relacionada ao diâmetro da fibra. A dor aguda e súbita é transmitida pelas fibras A, enquanto que a dor persistente e mais lenta é transmitida pelas fibras C.

Neurônios aferentes primários tem 3 funções principais relacionadas à nocicepção: 1- detecção do estímulo nocivo ou lesivo (transdução); 2- passagem do estímulo sensorial resultante do terminal periférico para a medula espinhal (condução); 3- transferência sináptica desses impulsos para neurônios em lâminas específicas do corno dorsal da medula espinhal (transmissão). Da medula espinhal, a informação sensorial é então enviada para estruturas supraespinhais (Kidd & Urban, 2001).

Page 27: Livro CI 2007

  19

Dor transitória é normalmente observada quando fibras nervosas primárias aferentes do tipo C e Aδ são ativadas por estímulos breves de alta intensidade, que produzem pouco ou nenhum dano tecidual. Durante o desenvolvimento de uma resposta inflamatória, as fibras nervosas, particularmente as do tipo C, são ativadas por estímulos de baixa intensidade, acarretando dor mais persistente. Neste caso, a sensibilização dos receptores da dor (nociceptores), causando hiperalgesia, é o denominador comum de todos os tipos de dor inflamatória.

O fenômeno de hiperalgesia envolve tanto a sensibilização das terminações nervosas nociceptivas periféricas, pela ação de mediadores químicos, quanto facilitação central (corno dorsal da medula espinhal e tálamo) da transmissão nervosa (Levine et al., 1993; Dray, 1994).

Além dos receptores polimodais C, um grupo adicional de nociceptores, denominados receptores "silenciosos" ou "adormecidos" (silent nociceptors/ sleeping nociceptors), são ativados durante processos inflamatórios, contribuindo para a hiperalgesia. Estas fibras aferentes são encontradas na pele, articulações e em órgãos viscerais (Schaible & Schmidt, 1988; Schemelz et al., 1994). É importante salientar que, na vigência de estímulos nociceptivos de grande intensidade, dor pode ser observada também em resposta a outros estímulos que usualmente não provocam dor (estímulos não nocivos). Este processo é denominado de alodinia (Kidd & Urban, 2001; Dworkin et al., 2003).

Várias substâncias sintetizadas e/ou liberadas durante o processo inflamatório podem interferir com a atividade de fibras nervosas sensitivas aferentes (Schaible & Richter, 2004). Estes mediadores, através da atuação em receptores específicos e geração de segundos mensageiros, agem: a) ativando diretamente os nociceptores, causando dor (bradicinina, histamina e substância P, por exemplo) ou b) induzindo hiperalgesia (eicosanóides, serotonina, dopamina). Alguns dos mediadores que ativam diretamente os nociceptores podem acarretar, também, hiperalgesia, pela liberação de agentes hiperalgésicos. A bradicinina é um exemplo deste tipo de mediador (Cunha et al., 1992; Ferreira et al., 1993; Dray, 1995, 1997).

O corno dorsal da medula espinhal é um sítio importante no processo de transmissão da informação nociceptiva da periferia para o Sistema Nervoso Central. Muitos neurotransmissores, agindo em receptores específicos, estão envolvidos na modulação da transmissão desta informação nociceptiva neste sítio medular (Aimone & Yaksh, 1989). Estes neurotransmissores incluem os aminoácidos excitatórios, como o glutamato, e neurocininas, como a Substância P, a Neurocinina A e o Peptídeo Relacionado ao Gene da Calcitonina (Kidd & Urban, 2001; Schaible & Richter, 2004). Alem disso, as células da glia (astrócitos e microglia) da medula espinhal, por meio da liberação de mediadores nociceptivos, têm papel relevante para a transmissão da informação nociceptiva no SNC.

1 = Estimulo nocivo; 2 = Ativação do nociceptor; 3 = Transmissão para o cérebro; 4 = Percepção como dor.

4

2

1= calor

3

4

Page 28: Livro CI 2007

 20 

É importante salientar que estruturas presentes no tronco encefálico, através de projeções descendentes excitatórias e inibitórias, são capazes de modular a transmissão da informação nociceptiva na medula espinhal (Schaible & Richter, 2004). Estas vias inibitórias envolvem sistemas serotoninérgicos, noradrenérgicos e opioidérgicos. Além destes sistemas, o sistema histaminérgico central, diferentemente do observado na periferia, está também envolvido no controle da dor (Thoburn et al., 1994; Paul et al., 2002).

O conhecimento sobre a dor e seu controle tem favorecido o desenvolvimento de novos fármacos analgésicos. Neste sentido, a busca por fármacos analgésicos desprovidos de efeitos adversos no SNC tem contribuído para ampliar o conhecimento dos mecanismos periféricos da dor, bem como de sua modulação, ainda no terminal nociceptivo primário.

Analgésicos com ação periférica podem atuar prevenindo a sensibilização dos nociceptores (Ferreira, 1972; Ferreira et al., 1973), como os antiinflamatórios não esteroidais, ou interferindo, direta ou indiretamente, com os receptores da dor já sensibilizados, como, por exemplo, a dipirona, os opióides ou substâncias liberadoras de opióides endógenos e o óxido nítrico (Ferreira et al., 1988; Ferreira, 1994; Ferreira & Lorenzetti, 1995).

Vários estudos sobre os mecanismos moleculares envolvidos na ação periférica dos fármacos que agem interferindo com os receptores da dor já sensibilizados têm mostrado a existência de uma via única comum para a ação destes fármacos. Assim, estes trabalhos têm evidenciado que opióides, doadores de óxido nítrico ou mesmo antiinflamatórios não esteroidais, como o ketorolac promovem analgesia via ativação da via óxido nítrico/GMPc/PKG e abertura de canais para potássio (Ferreira et al., 1991; Duarte et al., 1992; Ferreira & Lorenzetti, 1995; Lorenzetti & Ferreira, 1996; Rodrigues & Duarte, 2000; Lázaro-Ibáñez et al., 2001; Alves et al., 2004; Sachs et al., 2004).

Assim os canais de potássio têm sido considerados como um dos mediadores finais da ação analgésica periférica destes fármacos. Adicionalmente, evidências experimentais têm mostrado o envolvimento destes canais no efeito central de drogas analgésicas, como agonistas α-adrenérgicos e antihistamínicos (Galeotti et al., 1999). Estes canais têm sido caracterizados como canais de potássio sensíveis a ATP, ativados por cálcio ou dependentes de voltagem. (Galeotti et al., 1999; Santos et al., 1999; Ortiz et al., 2002).

Dessa forma, a ação de drogas sobre canais para K+, que resulte na hiperpolarização da membrana e inibição da excitabilidade da célula, tem sido explorada para se obter analgesia (Dray & Urban, 1996), favorecendo pesquisas de novos fármacos analgésicos periféricos com atividade sobres estes canais.

Referências Aimone LD, Yaksh TL. Opioid modulation of capsaicin-evoked release of substance P

from rat spinal cord in vivo. Peptides 1989 (10): 1127-1131. Alves DP, Soares AC, Francischi JN, Castro MS, Perez AC, Duarte ID. Additive

antinociceptive effect of the combination of diazoxide, an activator of ATP-sensitive K+ channels, and sodium nitroprusside and dibutyryl-cGMP. Eur J Pharmacol 1989 (489): 59-65.

Dray A. Tasting the inflammatory soup: role of pheripheral neurones. Pain Rev 1994 (1): 153-171.

Dray A. Inflammatory mediators of pain. Br J Anaesth 1994 (75): 125-131. Dray A, Urban L. New pharmacological strategies for pain relief. Annu Rev Pharmacol

Toxicol 1994 (36): 253-280. Duarte ID, dos Santos IR, Lorenzetti BB, Ferreira SH. Analgesia by direct antagonism of

nociceptor sensitization involves the arginine-nitric oxide-cGMP pathway. Eur J Pharmacol 1994 (217): 225-227.

Dworkin RH, Backonja M, Rowbotham MC, Allen RR, Argoff CR, Bennett GJ, Bushnell MC, Farrar JT, Galer BS, Haythornthwaite JA, Hewitt DJ, Loeser JD, Max MB, Saltarelli M, Schmader KE, Stein C, Thompson D, Turk DC, Wallace MS, Watkins LR, Weinstein SM. Advances in neuropathic pain: diagnosis, mechanisms, and treatment recommendations. Arch Neurol 1994 (60): 1524-1534.

Ferreira SH. Prostaglandins, aspitin-like drugs and analgesia. Nature New Biol 1994 (240): 200-203.

Page 29: Livro CI 2007

  21

Ferreira SH, Lorenzetti BB. Glutamate spinal retrograde sensitization of primary sensory neurons associated with nociception. Neuropharmacology 1994 (33): 1479.

Ferreira SH, Moncada S, Vane JR. The blockade of the local generation of prostaglandins explains the analgesic action of aspirin. Agents Actions 1973 (3): 385.

Ferreira SH, Duarte ID, Lorenzetti BB. The molecular mechanism of action of peripheral morphine analgesia: stimulation of the cGMP system via nitric oxide release. Eur J Pharmacol 1991 (201): 121-122.

Ferreira SH, Lorenzetti BB, Poole S. Bradykinm initiates cytokine-madiated inflammatory hyperalgesia. Br J Pharmacol 1993 (110): 1227-1231.

Ferreira SH, Lorenzetti BB, Bristow AF, Poole S. Interleukin-1 beta as a potent hyperalgesic agent antagonized by a tripeptide analogue. Nature 1988 (334): 698-700.

Galeotti N, Ghelardini C, Vinci MC, Bartolini A. Role of potassium channels in the antinociception induced by agonists of alpha2-adrenoceptors. Br J Pharmacol 1999 (126): 1214-1220.

Kidd BL, Urban LA. Mechanisms of inflammatory pain. Br J Anaesth 2001 (87): 3-11. Lázaro-Ibáñez G, Torres-López J, Granados-Soto V. Participation of the nitric oxide-cyclic

GMP-ATP-sensitive K+ channel pathway in the antinociceptive action of ketorolac. Eur J Pharmacol 2001 (426): 39-44.

Levine JD, Field HL, Basbaum AI. Peptides and the primary afferent nociceptor. J Neurosci 1993 (13): 2273-2286.

Lorenzetti BB, Ferreira SH. Activation of the arginine-nitric oxide pathway in primary sensory neurons contributes to dipyrone-induced spinal and peripheral analgesia. Inflamm Res 1996 (45): 308-311.

Rodrigues AR, Duarte ID. The peripheral antinociceptive effect induced by morphine is associated with ATP-sensitive K(+) channels. Br J Pharmacol 2000 (129): 110-114.

Sachs D, Cunha FQ, Ferreira SH. Peripheral analgesic blockade of hypernociception: activation of arginine/NO/cGMP/protein kinase G/ATP-sensitive K+ channel pathway. Proc Natl Acad Sci U S A 2004 (101): 3680-3685.

Schaible HG, Schmidt R. Excitation ans sensitization of the articular afferents from cat´s knee joint by prostaglandins E2. J Physiol 1988 (403): 91-104.

Schaible HG, Richter F. Pathophysiology of pain. Langenbecks Arch Surg 2004 (389): 237-243.

Schemelz M, Schmidt R, Ringkamp M, Handwerker HO, Torebjork HE. Senstitizaion of intensive branches of C nociceptors in human skin. J Physiology 1994 (480): 389-394.

Thoburn KK, Hough LB, Nalwalk JW, Mischler SA. Histamine-induced modulation of nociceptive responses. Pain 1994 (58): 29-37.

Page 30: Livro CI 2007

 22 

Page 31: Livro CI 2007

  23

COMPLEXIDADE EM SISTEMAS BIOLÓGICOS Aula Inagural Breno Santos ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia Teórica

Algumas Definições: Antes de começarmos nossa discussão sobre complexidade em sistemas biológicos

precisamos, primeiramente, estabelecer duas definições: a definição de complexidade e a definição de sistema. Vamos começar pela segunda delas. Vamos observar definições de sistema advindas de mundos (aparentemente!) muito distintos.

“A system is a combination of components that act together and perform a certain

objective. A system is not limited to physical ones. The concept of the system can be applied to abstract, dynamic phenomena such as those encountered in economics. The word system should, therefore, be interpreted to imply physical, biological, economics, and the like, systems.”

Ogata, K., Modern Control Engineering “... system is defined as a unit by the relations between its components which

realize the system as a whole, and its properties as a unity are determined by the way this unity is defined, and not by the particular properties of its components.”

Varela, F. G., Maturana, H. R. e Uribe, R., Autopoiesis: The Organization of Living

Systems, Its Characterization and a Model Podemos perceber então, que as ciências exatas e as ciências biológicas possuem

um denominador comum a respeito da definição do termo sistema; é um conjunto de partes as quais estabelecem relações entre si. Se podemos reduzi-lo à soma de suas partes constituintes, ou se apresenta as chamadas propriedades emergentes, isso é discussão para outra hora e local!

E quanto à complexidade? O senso comum chama de simples os sistemas que,

aparentemente, possuem um ou poucos objetos e ações constituintes. Imagine um mol de um gás às CNTP, em equilíbrio, encerrado em uma caixa de 1cm³. Isso é um sistema simples ou complexo? Muitos diriam que é um sistema simples, pois não percebemos nenhuma atividade coordenada ou forma de dinâmica, esse sistema “não faz nada” nem “vai para lugar algum”. Porém perceba que estamos falando de, nessas condições, 6,023 x 10²³ moléculas de gás, comportando-se individualmente (dado que a interação entre elas ocorre em escalas de angstroms), ou seja, estamos falando do que Boltzmann chamou de caos molecular. Complexo ou não? Observemos o seguinte trecho escrito pelo físico Murray Gell-Mann (grifos meus):

“As measures of something like complexity for an entity in the real world, all such

quantities are to some extent context-dependent or even subjective. They depend on the coarse graining (level of detail) of the description of the entity, on the previous knowledge and understanding of the world that is assumed, on the language employed, on the coding method used for conversion from that language into a string of bits, and on the particular ideal computer chosen as a standard.”

Gell-Mann, M., What is Complexity? O que Gell-Mann quer nos dizer é que uma medida de complexidade está

intimamente conectada a idéias sobre informação. Na teoria da informação proposta por Shannon, uma seqüência de bits aleatória é a que possui a maior quantidade de

Page 32: Livro CI 2007

 24 

informação. Ouvir o chiado (“random sequence”) de um rádio mal sintonizado lhe traz alguma informação? Não. Porém o chiado começar ou parar sim. Vejamos o que diz Russel Standish:

“Random sequences have maximum complexity, as by definition a random sequence

can have no generating algorithm shorter than simply listing the sequence. ..., this contradicts the notion that random sequences should contain no information.”

Standish, R. K., On Complexity and Emergence. No capítulo intitulado Informação será apresentado o conceito de Informação

Pragmática, que está ligado ao fato de que, se algo é informativo, é informativo para alguma entidade e deve, portanto, causar mudanças de estado nessa entidade.

Como Podemos Então Estudar Sistemas Complexos? Complexidade, caos, fractais, entropia e outros monstros são parte de um assunto

muito mais amplo chamado dinâmica. A dinâmica é a área das ciências que se ocupa de estudar a mudança; os sistemas que evoluem com o passar do tempo. Independente do sistema encontrar-se em equilíbrio, ou repetindo-se ciclicamente ou fazendo algo mais complicado, é a dinâmica que deve ser utilizada para acessa-lo. O capítulo Sistemas Dinâmicos irá abordar, entre outros assuntos, um pouco sobre a operacionalização matemática necessária para analisarmos, quantitativamente, os sistemas dinâmicos apresentados em sua maneira formal, ou seja, como conjuntos de equações diferenciais. Portanto, iremos introduzir algum formalismo referente ao estudo dos sistemas dinâmicos e observar quais características podem relacionar-se à complexidade e os outros monstros.

Classificação dos Sistemas Dinâmicos: Em relação à variável temporal Um sistema pode ser de tempo contínuo ou tempo discreto. Se o tempo é um

número inteiro positivo dizemos que o sistema é de tempo discreto e é governado por uma ou mais equações de diferenças finitas. Por outro lado, se o tempo for um número real positivo e, portanto, governado por equações diferenciais, é dito de tempo contínuo. A temperatura corpórea de um dado animal é uma variável que seria bem modelada por um sistema de tempo contínuo, já a quantidade de alimento ingerida parece ser melhor modelada por um sistema de tempo discreto, já que o animal se alimenta de maneira esporádica, intercalada por períodos sem ingestão.

Quanto aos parâmetros do modelo No que se refere aos parâmetros do modelo, este pode ser a parâmetros fixos ou

variáveis e a parâmetros concentrados ou distribuídos. Observe o neurônio esquematizado na figura 1. Lembrando que esse neurônio é responsável por integrar uma série de impulsos elétricos excitatórios ou inibitórios nas proximidades de seu corpo celular e, de acordo com o resultado dessa integração, deflagrar uma despolarização, ou seja, enviar ou não outro impulso elétrico através de seu axônio, não é de surpreender que seria possível modelar esse neurônio através de um circuito elétrico. E é exatamente isso que é feito. Observe a figura 2, a qual apresenta um modelo elétrico de uma membrana celular.

Page 33: Livro CI 2007

  25

Figura 1: Neurônio esquematizado.

Esse esquema apresenta 3 condutâncias, 3 baterias e 1 capacitância, modelando, respectivamente, a condutância da membrana aos íons sódio, potássio e cloreto (na verdade o L vem de “leakage”, mas essa corrente se deve principalmente aos íons cloreto), os potenciais devidos a cada um desses íons e a capacitância da membrana celular. As setas cortando os símbolos de condutância indicam que os valores dessas condutâncias podem ser alterados, ou seja, são parâmetros variáveis. Já a condutância a cloreto é modelada como um parâmetro constante. Perceba que esse modelo é referente a um pequeno trecho do axônio, ou seja, vários desses pequenos circuitos elétricos devem ser associados para que possamos ter um modelo completo do axônio. Estamos diante de um modelo a parâmetros distribuídos! Se Hodgkin e Huxley tivessem modelado o axônio inteiro através de apenas um circuito como o da figura 2, o modelo seria a parâmetros concentrados. O trabalho de Hodgkin e Huxley é um dos mais belos exemplos da aplicação de modelos matemáticos para o estudo de sistemas biológicos.

Figura 2: Modelo elétrico proposto por Hodgkin e Huxley de um pequeno segmento do axônio gigante de lula.

Quanto à memória Em um sistema instantâneo, sem memória, a resposta em um dado instante

depende apenas dos valores de entrada do sistema nesse mesmo instante. Caso o sistema leve em consideração valores passados de suas entradas para computar sua resposta atual, isso significa que o sistema possui memória e, portanto, é chamado de dinâmico. Voltando ao exemplo anterior, um capacitor é um sistema dinâmico, pois o valor da diferença de potencial entre suas placas depende dos valores passados dessa ddp. Já as condutâncias, uma vez definidas, irão implicar uma dada corrente iônica que depende apenas da diferença instantânea entre Vm (o potencial da membrana) e o respectivo E (força eletromotriz).

Page 34: Livro CI 2007

 26 

Quanto ao tipo de modelo Por fim, e não menos importante, um sistema pode ser linear ou não-linear. Não

iremos entrar nos detalhes matemáticos que justificam a linearidade ou não de um conjunto de equações diferenciais. Ao invés disso, vamos observar as seguintes propriedades apresentadas pelos sistemas lineares: o princípio da aditividade e o princípio da proporcionalidade entre excitação e resposta. O primeiro princípio garante que, se para uma entrada E1 a resposta do sistema é R1, e para uma entrada E2 a resposta é R2, para uma entrada E1+E2 a resposta será R1+R2. Ou seja, essa característica dos sistemas lineares nos permite “desligar” todas excitações de um sistema ao menos de uma e observar como o mesmo se comporta e, após realizar esse mesmo “protocolo” com cada uma das excitações, computar a resposta total do sistema através de uma simples superposição de efeitos. Já a segunda propriedade garante que se para a entrada E1 a resposta é R1, para uma entrada kE1, a resposta será kR1. Portanto, as respostas de sistemas lineares são proporcionais às respectivas entradas. Para sistemas não-lineares não são válidos nenhuns desses dois princípios.

Mas Todos esses Nomes Querem Dizer o Que? A imensa maioria dos sistemas complexos se apresentará na forma de sistemas

não-lineares e muitos desses serão sistemas com memória. O modelo matemático utilizado para descrever o sistema deverá levar isso em conta além das outras duas características, tempo contínuo ou discreto e formato dos parâmetros. Vejamos o que Steven Strogatz nos diz a respeito:

“... a linear system is precisely equal to the sum of the parts. But many things in

nature don’t act this way. Whenever parts of a system interfere, or cooperate, or compete, there are nonlinear interactions going on. Most of every day life is nonlinear, and the principle of superposition fails spectacularly.”

Strogatz, S. H., Nonlinear Dynamics and Chaos. Dessa maneira, se estamos interessados em modelar sistemas biológicos, teremos

que estar preparados para lidar com fenômenos não lineares como, por exemplo, saturações e crescimentos ou decaimentos exponenciais, para citar dois extremamente simples! No mesmo livro, Strogatz apresenta a tabela, figura 3, abaixo. Observe que os modelos de sistemas biológicos mais simples se inserem em sistemas lineares com muitas variáveis e sistemas não lineares com duas variáveis sendo que, a imensa maioria de fenômenos, reside após a fronteira dos sistemas não lineares com muitas variáveis!

Page 35: Livro CI 2007

  27

Figura 3: Onde os sistemas biológicos se inserem, retirado de [Strogatz, 1994].

Ruído, Caos e Fractais Toda a medida realizada em um sistema está sujeita à presença de ruído, seja ele

ruído térmico (inerente às oscilações térmicas dos elétrons que compõem a matéria) do próprio sistema, ou dos instrumentos de medida ou, ainda, o ruído de quantização quando digitalizamos dados ao passá-los para um microcomputador. Portanto, como é possível discernir entre ruído e comportamento caótico? Essa é uma pergunta bastante complicada e, ainda hoje, se procuram métodos para responder essa questão de maneira definitiva, se é que isso será possível (ao menos no que tange a medidas experimentais). Todo ruído térmico, também chamado ruído branco ou ruído Gaussiano, é definido através de uma distribuição normal de probabilidades e muitas séries temporais caóticas também. O aparecimento de caos na dinâmica de um sistema está vinculado a:

- imprevisibilidade: o conhecimento do estado do sistema durante um tempo

arbitrariamente longo não permite predizer, de maneira imediata, sua evolução posterior. - espectro contínuo de freqüências: a energia do sistema está igualmente distribuída

ao longo de diferentes freqüências. Essa característica indica comportamento aperiódico. - invariância de escala: não importa a escala em que se observe o fenômeno (pense

nisso como um zoom) a estrutura hierárquica do mesmo apresenta características de auto-similaridade.

- estacionariedade: grosso modo, embora aperiodicamente, os padrões tendem a

repetição. Todas essas características estão associadas ao que chamamos de dependência

sensitiva às condições iniciais (DCI). O caos determinístico é essencialmente devido à DCI. Essa dependência resulta das não-linearidades presentes no sistema, as quais amplificam exponencialmente pequenas diferenças nas condições iniciais do sistema. Isso foi observado por Edward Norton Lorenz, matemático e meteorologista que, quando trabalhando com previsão do tempo no exército norte americano durante a II Grande Guerra, observou que o resultado dos cálculos de seu modelo de movimentação do ar na atmosfera eram sempre diferentes a cada vez que ele os computava em seu computador analógico (sim, analógico!!!). O problema era que a impressão de seus resultados estava

Page 36: Livro CI 2007

 28 

limitada a uma determinada quantidade de casas decimais e quando ele utilizava esses dados truncados para uma nova computação (ou seja, usava-os como novas condições inicias, levemente diferentes das anteriores devido ao truncamento) o resultado era absurdamente diferente. Isso ficou então conhecido como efeito borboleta, e a figura 4, o atrator de Lorenz, ganhou o mundo.

Figura 4: O atrator de Lorenz.

Temos então ainda um novo conceito a ser esclarecido, o conceito de atrator. Imagine que uma bolinha será colocada na superfície apresentada na figura 5. Dependendo da posição inicial da bolinha e se a mesma foi apenas colocada ou foi impulsionada em alguma direção, ninguém duvidaria que a bolinha, em algum momento, irá parar dentro de algum dos poços da figura. Após ela parar seu movimento dentro de algum desses poços, ela nunca mais sairá de lá a menos que lhe seja cedida energia de alguma forma. Pois bem, os fundos dos poços são o que chamamos de atratores. Se algo estiver próximo o suficiente desse atrator e se esperarmos o tempo necessário, esse algo irá se dirigir ao atrator.

Figura 5: Poços de potencial são atratores pontuais.

Mas isso é bem diferente do que podemos observar na figura 4, isso porque o atrator apresentado lá é de outro tipo, chamado atrator estranho. Perceba que, embora o sistema

Page 37: Livro CI 2007

  29

não evolua para um determinado ponto, ele está confinado em um determinado volume e no caso de um sistema dissipativo (ou seja, um sistema no qual a energia interna do mesmo vai sendo perdida através de alguma ineficiência do processo), esse volume se tornará cada vez menor. Para que exista uma DCI é necessário um atrator estranho e, sistemas determinísticos que apresentam evolução temporal que conduz assintoticamente a atratores estranhos, apresentam dinâmica caótica. Os fundos dos poços, tendo em mente o espaço euclidiano tridimensional representado (X, Y e Z ou largura, altura e profundidade), são na verdade pontos (mais matematicamente, uma tríade (x, y, z)), portanto possuem dimensão menor (um ponto tem dimensão 0) do que a do espaço no qual estão incluídos. Serão apresentados, no capítulo Sistemas Dinâmicos, mais detalhes sobre atratores, mas um atrator sempre terá dimensão menor do que a do seu espaço, caso contrário ele seria o próprio espaço e, portanto, poderíamos “passear” livremente sem necessariamente convergir para nenhum lugar restrito do mesmo. Observando novamente o atrator de Lorenz e sem nenhum rigor matemático, percebemos que esse atrator é “maior do que um ponto, maior do que uma reta, mas menor do que uma superfície”. Estamos nos aproximando do conceito de fractal, ou melhor, dimensão fractal. Vamos a um exemplo mais simples, porém altamente elucidativo. Observe a figura 6 que mostra geometricamente a maneira de se construir um conjunto de Cantor. Para termos um conjunto de Cantor tome a barra inicial e divida-a em três partes iguais. Agora jogue fora o terço central e repita o mesmo processo para os dois terços restantes e assim por diante.

Figura 6: O conjunto de Cantor.

Para n muito grandes, teremos uma nuvem de pontos que possui dimensão maior do que a de um único ponto, porém, obviamente, menor do que a de uma reta, ou seja, o conjunto de Cantor tem dimensão maior que 0 e menor do que 1! Utilizando processos que não iremos descrever aqui (para maiores detalhes consulte nas bibliografias sugeridas o assunto: algoritmos de contagem de caixas – box counting algorithms), calculamos que a dimensão do conjunto de Cantor é 0,63! Estamos lidando com entidades que possuem dimensão não inteira e, para tanto, Benoît Mandelbrot cunhou o termo fractal que vem do latim fractus que significa quebrado, fraturado. Agora, com uma definição um pouco melhorada do que vem a ser uma dimensão fractal, podemos dizer que atratores estranho possuem dimensão fractal, como o atrator de Lorenz.

Na figura 7 temos um outro famoso fractal, o conjunto de Mandelbrot. Observe, nas miniaturas, que mostram zooms cada vez maiores, que a invariância de escala é marcante. Existem diversos exemplos de dimensão fractal na biologia, a ramificação dendrítica neural, a superfície pulmonar, a ramificação arterial, a superfície interna das cristas mitocondriais, microvilosidades intestinais e acoplamento entre osciladores (disparo de neurônios ou canto de animais, por exemplo).

Page 38: Livro CI 2007

 30 

Figura 7: Detalhes do conjunto de Mandelbrot.

Conclusões: Apesar de superficial, essa pequena introdução ao mundo dos sistemas complexos

mostrou a enorme aplicabilidade dessa teoria para o estudo dos sistemas biológicos que são, na sua maioria absoluta, sistemas regidos por dinâmicas não lineares. Durante a evolução temporal desses sistemas podemos passar por dinâmicas caóticas, sincronização, “edge of chaos”, ou seja, estudar esses sistemas com as técnicas aplicadas a sistemas lineares e, muitas vezes admitindo-os no equilíbrio (ou muito próximos deles) pode nos levar a conclusões nebulosas sobre o seu funcionamento. Cada vez mais estamos observando que a biologia não pode mais evoluir sem unir forças com outros ramos do conhecimento como matemática, física e engenharia o que pode, no futuro, culminar em teorias gerais da biologia.

Para saber mais: Fiedler-Ferrara, N. e Prado, C. P. C. 1994. Caos – Uma Introdução. Edgard Blucher. Gell-Mann, M. 1995. What is Complexity? In: Complexity, vol. 1, no. 1. John Wiley and Sons. Glass, L. e Mackey, M. C. 1997. Dos Relógios ao Caos: Os Ritmos da Vida. Edusp. Monteiro, L. H. A. 2006. Sistemas Dinâmicos. 2ª edição. Editora Livraria da Física. Ogata, K. 2001. Modern Control Engineering. 4ª edição. Pearson. Prigogine, I. 2002. As Leis do Caos. Editora Unesp. Strogatz, S. H. 1994. Nonlinear Dynamics and Chaos: With Applications in Physics, Biology, Chemistry, and

Engineering (Studies in Nonlinearity). Addison Wesley. Varela, F. G., Maturana, H. R. e Uribe, R. 1974. Autopoiesis: The Organization of Living Systems, Its Characterization

and a Model. Biosystems, 5:187-196.

Belas Figuras com Dimensões Fractais: http://local.wasp.uwa.edu.au/~pbourke/fractals/ http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_fractals_by_Hausdorff_dimension

Page 39: Livro CI 2007

  31

Informação Vitor Hugo Rodrigues ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia Teórica

Esta é uma palavra utilizada em muitos contextos, comumente citada em diversos meios, e que assume, no geral, uma gama de significados, como por exemplo:

“Conjunto de conhecimentos sobre alguém ou alguma coisa, conhecimentos obtidos

por alguém, fato ou acontecimento que é levado ao conhecimento de alguém ou de um público através de palavras, sons ou imagens, elemento de conhecimento susceptível de ser transmitido e conservado graças a um suporte e um código”.

Essa palavra descreve fenômenos que são comuns a diversos tipos de sistemas, e

não somente a nós humanos, pois o processo de comunicação se dá em diversos níveis, que vão de células, a populações inteiras, passando inclusive por sistemas inanimados. E olhando a definição de informação dada, podemos ver que na verdade, nos processos de comunicação, há transmissão de informação, pois se obtemos conhecimento sobre algo, alguém, ou algum fato, isto ocorre porque fomos comunicados de alguma forma. Quando observamos algo, procuramos de alguma forma, reduzir a incerteza que temos sobre aquilo que observamos, e, para isso, tentamos obter o máximo de informação sobre o objeto observado. Por exemplo, quando se está em uma festa, e uma pessoa nos chama a atenção, podemos logo de cara tomar duas posturas:

De alguma forma tentar se aproximar, e, se apresentar para iniciar uma conversa.

Ou não ir conversar com a pessoa, observá-la a noite inteira, e se remoer em algum canto, torcendo para ela vir falar com você (o que não vai acontecer, a não ser que você seja o Giannechinni).

Supondo que a primeira opção tenha sido escolhida, e, a abordagem tenha sido feita (seja lá de que forma for), o diálogo (que pode virar um monólogo dependendo da reação da outra pessoa) certamente vai envolver perguntas como “Você vem sempre aqui?”, “Qual é seu nome?”, entre outras. Tudo isso sempre observando o comportamento da pessoa com quem se fala, para obter o máximo de informação possível, e assim, reduzindo algumas incertezas que por ventura possam surgir, como “Será que ela vai sequer falar comigo?” ou “Vou sair sozinho desta festa hoje?”.

Então, do exemplo, podemos dizer que o ambiente fornece parte das mensagens (reação, aparência, ou se a pessoa está acompanhada), assim como a própria conversa (informações relevantes (ou não!), como nome, idade, o que gosta, etc.).

Um pouquinho de história: A história da Teoria da Informação remonta os idos de 1928, quando Ralph Hartley,

no artigo “Transmission of information”, apresenta uma formula para a quantificação de informação, onde o importante é a habilidade do receptor em selecionar símbolos em um dado vocabulário. Então, tendo W símbolos disponíveis, a quantidade de informação H, em uma dada seleção é h=logW. Hartley estava interessado em comparar a capacidade de transmissão de diversos sistemas elétricos de telecomunicação.

Durante a segunda Guerra Mundial, Claude Shannon trabalhava com criptografia e sistema de controle e automação no Bell Lab, nos Estados Unidos. Com o fim da guerra, e com muitas idéias advindas de seu trabalho com criptografia, Shannon desenvolveu a importante e controversa (ao menos na sua aplicabilidade em biologia) teoria da informação, em 1948, com a publicação de um artigo A Methematical Theory of Communication (Shannon,1948). Esse artigo foi publicado em forma de tese em 1949, com uma pequena alteração no titulo (que sinceramente faz toda a diferença), para The Methematical Theory of Communication (Shannon & Weaver, 1949).

Tá, chega de enrolação e fala logo da Teoria: Shannon logo no começo de seu artigo, inicia sua linha de raciocínio dizendo que o

principal problema da comunicação é reproduzir num ponto exatamente ou da maneira mais próxima possível, uma mensagem que foi selecionada e enviada de outro ponto, e que a verdadeira mensagem, na verdade é uma que é escolhida de um conjunto de

Page 40: Livro CI 2007

 32 

mensagens possíveis. Então, o sistema tem que operar em qualquer seleção possível, e não para a que vai realmente ser escolhida, pois esta é desconhecida, no momento em que a mensagem é preparada, ou seja, não é possível prever, quem é a mensagem que será transmitida. Isso só será conhecido no momento da transmissão (Shannon, 1948).

A partir disso, vemos que, para Shannon, comunicação é um processo probabilístico, e que para problemas de engenharia (que era com o que ele estava preocupado), o significado e veracidade das mensagens não importavam. Portanto, a teoria da informação está relacionada com a redução da incerteza do receptor, pois a mensagem tem uma probabilidade de fazer com que o receptor mude de estado, depois da transmissão da mensagem, narrando algum evento.

Então imagine um sistema como o da figura 1, onde se tem uma fonte de informação, que produz uma mensagem ou seqüência de mensagens que serão transmitidas pelo... Adivinha só? Se estiver olhando a figura e falou transmissor, acertou. Esse transmissor enviará um sinal para o receptor, por um canal, que nada mais é do que o meio pelo qual essa mensagem é enviada (sejam letras que se concatenam formando palavras, ou variação de voltagem, ou traços e pontos de código Morse, etc.). O receptor tem o papel de receber (porque isso me soa redundante?), e reconstruir a mensagem enviada, e por fim, existe o destino que é quem deve receber a mensagem (seja uma pessoa ou coisa).

Então imagine um evento que você gostaria muito que acontecesse; como ganhar na loteria e passar o resto da vida deitado numa rede tomando seu drinque favorito. Para você saber se ganhou ou não, alguém precisa comunicá-lo, e para isso é necessária uma mensagem. Imagine que H é uma medida de informação e pi é a probabilidade de ocorrência de um evento dentre vários possíveis (quantidade de números acertada) e h é a informação recebida pela transmissão de uma mensagem informando um dos possíveis eventos ocorridos (por exemplo, você acertou todos os números), temos que h= - log pi. Então, a medida informação H, que é uma somatória da quantidade de informação de

todos os h, ou na forma matemática, H= piip log∑− , sendo que H é chamado de entropia informacional.

Reanalisando tudo isso a partir do exemplo acima, podemos ver que existiu um transmissor de informação (Caixa Econômica Federal, que é quem faz os sorteios), por um meio (transmitiu o sorteio pela TV ou rádio, ou publicou o resultado no jornal). Então o receptor (seus olhos ou ouvidos, ou os dois) recebeu a mensagem, e seu cérebro atento, que é o destino da mensagem é quem vai processar a mensagem enviada e comparar com os números contidos no seu bilhete, e aí a glória celestial vai preencher seu coração, ou a frustração do “droga, perdi de novo” vai amargurá-lo mais uma vez.

Sendo assim, se quiséssemos medir a quantidade de informação presente na transmissão deste evento, faríamos:

Tomaríamos a probabilidade de cada evento que no exemplo seria não acertar nenhum número (p0), acertar um (p1), dois (p2), três (p3), quatro (p4), cinco (p5) ou o bilhete irradiar uma imensa quantidade de felicidade mostrando que você acertou os seis números (p6, sem querer ser estraga prazeres, essa é irrisória).

Então multiplicaríamos as probabilidades, pelos logaritmos das respectivas probabilidades (h0= p0 log (p0); h1=p1log(p1); e assim por diante).

E somaríamos todos os h. Fácil não? Teríamos, portanto, uma medida da informação contida na transmissão deste

evento, segundo a teoria de Shannon. Isso realmente pode parecer um tanto esquisito, pois se ele partiu do pressuposto de que comunicação é um evento probabilístico, fica fácil ver o porquê de usar a probabilidade de cada evento, mas porque usar o logaritmo da probabilidade????

Shannon explica: Alguns parâmetros em engenharia como tempo, comprimento de onda, variam

linearmente com o logaritmo do numero de possibilidades. Por exemplo, dobrando o tempo de uma série temporal, eleva ao quadrado o numero de mensagens possíveis, ou dobra o logaritmo dessas possibilidades num logaritmo de base 2.

É próximo do que intuitivamente se chamaria de medida apropriada, pois se costuma comparar coisas por comparações lineares. Por exemplo, dois DVD’s tem o dobro de capacidade de armazenar informação do que um único DVD (nota: no exemplo de

Page 41: Livro CI 2007

  33

Shannon, foi usado cartão furado. Observe o quanto os meios de armazenamento de informação, e o tamanho dos computadores mudou de lá pra cá).

É matematicamente mais apropriado, pois facilita algumas operações. Acho que entendi, mas o que isso tem a ver com Biologia? Alguns pesquisadores tentaram se utilizar da entropia informacional de Shannon

para quantificar informação biológica. Considerando que informação é uma propriedade importante dos seres vivos, pois desde alguns dos menores níveis de organização (células, tecidos) envolve comunicação, ou transmissão de informação por moléculas (DNA no processo de transcrição e replicação, por exemplo), uma medida como essa permitiria medir o nível de organização ou complexidade de um organismo.

No entanto, alguns pesquisadores faziam criticas severas ao uso desta teoria em biologia evolutiva. Primeiro que para no calculo desta complexidade, as unidades de informação são arbitrárias, sendo que diferentes quantidades de informação serão obtidas dependendo do que se chama de unidade de informação, e que um zigoto seria menos complexo que o homem, pelo simples fato dele ser menor. Quando se utiliza, por exemplo, proteínas constituintes como unidades de informação, calculou-se que a informação contida em um homem é de 5.1025 bits, no entanto outra critica curiosa e bem apontada foi que isto não pode ser levado em conta pelo fato de que um homogeneizado de homem, e um homem inteiro teriam a mesma quantidade de informação. No entanto, de todos os arranjos moleculares possíveis entre as moléculas que formam o homem, apenas alguns podem formar um homem vivo. Outra critica é que não se pode utilizar a teoria de Shannon, onde se tem emissor, receptor e decodificador, para moléculas, como o DNA, pois estes componentes não são aparentes em um sistema químico e, portanto estes processos não carregam informação, alem do que a Teoria de shannon não se preocupa com a veracidade ou com o significado da informação, e em sistemas biológicos, a qualidade da informação é tão importante quanto a quantidade de informação.

Segundo Maynard-Smith, se é possível transmitir informação por ondas elétricas, sonoras ou por eletricidade, por que não seria possível transmitir informação por meios químicos? Para ele, um dos grandes ganhos da teoria de Shannon é que a mesma informação pode ser transmitida por diferentes carreadores físicos, e que engenheiros não usaram carreadores químicos justamente pela dificuldade de colocar ou tirar informação de meios químicos, uma dificuldade que segundo ele, os sistemas vivos conseguiram superar. É realmente difícil ver todos os elementos da teoria de Shannon, no modelo de transcrição do DNA para RNA e da tradução deste RNAm para proteína. Se pensarmos na comunicação entre duas pessoas por código Morse, por exemplo, podemos identificar todos os elementos da figura 1, pois uma pessoa é a fonte da informação, existe o aparelho onde a mensagem será “digitada”, que é o transmissor, existe o meio de transmissão (eletricidade através de fios e cabos), existe o receptor, e o decodificador do código, que é o operador da maquina que recebe a mensagem. No entanto, é dificil de imaginar uma decodificação de mensagem do RNAm para proteína, uma vez q o código não foi codificado por uma proteína para RNAm.

Então, Maynard Smith argumenta que essas críticas não são suficientes para que não se possa ver os elementos da Teoria de Shannon no exemplo genético, pois para ele, o codificador, é a seleção natural. Porque? Pelo simples fato de que foi por seleção natural que selecionou as seqüências de bases, dentre muitas seqüências possíveis, que originariam proteínas funcionais e constituintes dos sistemas vivos, por meio do canal de transmissão de informação descrito pela teoria de Shannon. Como ele diz em seu artigo: “Onde um engenheiro vê design, um biólogo vê seleção natural!”.

Maaaasss...como nem tudo são flores, existem alguns pontos em que a teoria da Informação realmente peca quando aplicada em biologia. Warren Weaver, que trabalhou com Shannon no artigo que demonstra a teoria, diz que se pode medir a efetividade num processo de comunicação, observando três preceitos básicos:

1. O quão acurado os símbolos que codificam a mensagem podem ser transmitidos (o problema técnico).

2. O quão precisamente os símbolos transmitidos, transportam o significado desejado (o problema de significado).

3. A efetividade da mensagem recebida na mudança de estado do receptor. E a teoria da Informação, está apenas preocupada com o preceito 1, e em biologia,

os outros dois preceitos são muito importantes também. Então, baseado na teoria de

Page 42: Livro CI 2007

 34 

Shannon, e focando no preceito 3, Weinberger, em 2002 propôs uma medida chamada informação pragmática, com o intuito de “medir” evolução. Na verdade a informação pragmática vai medir a capacidade que uma mensagem tem de fazer com que o receptor mude de estado (e com isso quero dizer que se o sistema estava operando de uma determinada forma, vai passar, após a recepção da mensagem, a operar em outra; por exemplo, se você estiver parado, e seus olhos virem no relógio de que você está atrasado para a prova, seu coração disparará, e suas pernas se moverão loucamente...percebeu a mudança de estado?) . Se imaginarmos um conjunto M de mensagens m, que chega a um receptor que por sua vez está ligado a um “tomador de decisão”, que enviará uma alternativa a um efetor. Esse efetor, tinha um conjunto de possíveis “saídas” oi, cada uma com uma probabilidade q(oi) antes da mensagem atingir o receptor (maiores detalhes na figura 2). Até aí nenhuma novidade, a grande novidade desse modelo, é que quando o receptor capta a mensagem, as probabilidades q(oi) são revistas e as probabilidades de uma determinada “saída” se torna p(oi). Ou seja, imagine a festa do começo do capítulo, e imagine que aquela pessoa que te despertou o interesse está momentaneamente sozinha em algum canto, e deu uma olhadela sexy e uma piscadela marota pra você. Com essa mensagem, as probabilidades de uma possível postura que você pode tomar (como por exemplo, ir até a pessoa, ou ir até a pessoa com um drinque, ou ir até a pessoa chegando pelas costas; por que convenhamos, a probabilidade q(não chegar na pessoa), é quase nula nesse caso), no entanto, numa segunda observada que você dá nessa pessoa, você se depara com ela um pouco distraída, e ela enfia o dedo no nariz. Bem, depois dessa outra mensagem, as probabilidades vão ser revistas, e a probabilidade de você se aproximar se torna menor, e a de você não se aproximar, maiores.

A informação pragmática torna-se uma medida, então, onde o contexto, e a semântica são relevantes, e então é uma medida que pode ser muito mais útil para ser usada em processos biológicos, apesar de algumas dificuldades, como por exemplo, determinar os conjuntos de ações possíveis, de mensagens possíveis e suas probabilidades.

Nossa, que confusão! É, a coisa é realmente confusa. E provavelmente essa confusão ainda perdure na

cabeça das pessoas por muito tempo. Mas mesmo assim, algumas coisas bem legais estão surgindo da Teoria de Sannon. A própria informação pragmática,é uma tentativa de quantificar informação, derivada da teoria de Shannon, mas que tenta ao menos estabelecer uma aplicabilidade para questões evolutivas.

Teoria da Informação tem sido (mas não amplamente) usada em neurofisiologia, e em alguns estudos de comunicação de sapos e golfinhos para carcterização sonora dos cantos emitidos por estes animais (para maiores detalhes ver Suggs & Simmons, 2005 e Mcgowan, 1999). E pode ser uma base para projetos que tentem ver processamento no sistema nervoso central de algum animal, a partir de eventos de comunicação (como cantos, para animais que cantam). Por isso, apesar das limitações a Teoria da Informação de Shannon, ela abre precedentes para se pensar em transmissão de informação em processos de comunicação. Shannon, relembrando, se focou em problemas de comunicação na engenharia, e obviamente não se pode transpor diretamente esse tipo de teoria para a biologia. Mas tentativas de adaptação, como a de Weinberger com a Informação Pragmatica, são muito bem vindas, pois tentar entender e quantificar comunicação e informação em processos biológico, pode trazer grandes ganhos no entendimentos desses sistemas malucos, que são os sistemas vivos.

Figura 1: Diagrama esquemático simplificado de um sistema de informação, com seus componentes (adaptado de Shannon, 1948).

Transmissor receptor destino Fonte de informação

sinal

Page 43: Livro CI 2007

  35

Figura 2: Diagrama esquemático simplificado dos componentes que aparecem na informação pragmatica, (adaptado de Weinberger, 2002).

Para saber mais (plagiando uma famosa revista): Shannon, C.E. 1948. A Mathematical theory of communication. The Bell Sys. Tech. J. 27:379-423,623-656. Monteiro, L.H.A. & Piqueira, J.R.C. 2000. O que orienta a evolução biológica? In. Auto-organização, D´Ottaviano I.M.L

& Gonzáles, M.E.Q. Coleção CLE30, Campinas. McCowan,B; Hanser, S.F; Doyle, L. R. 1999. Quantitative tools for comparing animal communication systems:

Information theory applied to bottlenose dolphin whistle repertoires. Anim. Behav. 57:409-419. Suggs, D & Simmons, A 2005. Information theory analysis of patterns of modulation in the advertisement call of the

male bullfrog, Rana catesbeiana. J. Acoust. Soc. Am. 117:2330-2337. http://en.wikipedia.org/wiki/History_of_information_theory

Page 44: Livro CI 2007

 36 

Sistemas dinâmicos José Eduardo Natali ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia Teórica

Introdução Um sistema é um conjunto de componentes agrupados por relações de interação e

interdependência, de forma a existirem relações de causa e efeito nos processos envolvendo-os. Um sistema é considerado dinâmico quando as grandezas de seus componentes variam no tempo. Um dos objetivos do estudo de um sistema dinâmico (SD) é o de prever para “onde o sistema está indo”, ou seja, o comportamento do sistema a partir de uma dada condição inicial. Os SD têm sido amplamente utilizados em estudos biológicos, desde níveis moleculares até o de comunidades, passando por estudos no nível do indivíduo e seus sistemas orgânicos componentes. O objetivo dessa aula é explicar e exemplificar como essas análises, envolvendo conceitos bem definidos e de caráter quantitativo, podem contribuir diretamente para a melhor compreensão de sistemas biológicos.

Modelo Inicial O estudo matemático de sistemas dinâmicos é dado pelo estudo de equações

diferenciais ou de diferenças, ou seja, é o estudo de grandezas x(t) em um tempo contínuo ou tempo discreto, respectivamente. Essas grandezas serão chamadas de variáveis de estado. No caso contínuo, a variação de uma grandeza x(t) no tempo é dada pela derivada

dttdx )(

. A forma geral de uma equação diferencial linear é dada por:

)()()()()(...)()()()( 11

1

10 tFtxtadt

tdxtadt

txdtadt

txdta nnn

n

n

n

=++++ −−

Para um estudo inicial vamos usar o modelo de T. R. Malthus sobre o crescimento populacional. Nesse modelo, consideramos uma população que aumenta de tamanho (número de indivíduos) com taxa de nascimentos (n) e decresce com taxa de mortes (m), ambos dependentes do tamanho populacional (x). Dessa forma a variação do número de

indivíduos é dada por:mxnx

dtdx

−=, levando em conta que n e m são constantes

podemos dizer quer mnk −= e reescrever a equação da seguinte maneira kx

dtdx

=.

Se integrarmos essa equação temos : kt

oextx =)(, que é a solução do nosso

problema. Partindo de uma população inicial x0 arbitrária podemos ver como o número de indivíduos se comporta com o passar do tempo com o auxílio dos seguintes gráficos.

Figura 1 - Número de indivíduos Figura 2 – Número de

por tempo com k>0. indivíduos por tempo com k<0.

Page 45: Livro CI 2007

  37

Com esses gráficos, é possível observar dois importantes aspectos do sistema, o seu ponto de equilíbrio e sua estabilidade. O ponto de equilíbrio (cuja notação é um asterisco sobrescrito à variável de estado) é quando o sistema para de variar, ou seja, quando a equação diferencial é igualada a 0. Nesse caso, temos o ponto de equilíbrio

0* =kx , ou seja, a população está em equilíbrio quando x (número de indivíduos) for igual a 0. A estabilidade desse ponto de equilíbrio pode ser obtida se afastarmos o sistema do ponto de equilíbrio: caso ele volte ao mesmo P.E, o sistema é assintoticamente estável, caso contrário, ele não é assintoticamente estável. No exemplo acima, quando o parâmetro k é menor que 0 o sistema é estável, pois não importando a população inicial, ele vai tender ao P.E. x = 0; caso k seja maior que 0 o sistema é instável, pois se o tirarmos do P.E. x = 0, a população tenderá ao infinito.

Esse modelo está associado a diversas situações que envolvem um crescimento ou um decaimento exponencial como, por exemplo, a eliminação exclusiva pelos rins de uma substância contida somente no sangue. O modelo de Malthus é um exemplo bem simples de como sistemas dinâmicos pode ser utilizado para melhor entender sistemas biológicos. Porém, na maioria dos casos, os modelos são mais complexos e outras ferramentas são necessárias.

Um Modelo Mais Complexo Vamos supor o seguinte sistema:

)( 22 yxbxy

dtdx

−−+−=

)( 22 yxbyx

dtdy

−−++=

Esse sistema representa duas variáveis que, de alguma forma, se relacionam.

Podemos imaginar que são substâncias químicas ou até variáveis fisiológicas. Nesse momento, o que importa mais são as conclusões que podemos tirar, a partir de algumas ferramentas gerais.

Como já foi dito, podemos encontrar o ponto de equilíbrio se igualarmos as duas equações a 0 (simultaneamente), tendo então:

))()((0 2*2*** yxbxy −−+−= ))()((0 2*2*** yxbyx −−++=

Multiplicando a primeira equação por y e a segunda por x, temos:

))()(()(0 2*2***2* yxbyxy −−+−= ))()(()(0 2*2***2* yxbyxx −−++=

Ao igualarmos as duas equações, ficamos com:

0)()( 2*2* =+ xy Com isso, chegamos ao ponto de equilíbrio desse sistema, (0,0), ou seja, o SD para

de variar quando x e y valem 0, simultaneamente. Com isso, o próximo passo é analisarmos a estabilidade desse sistema. No primeiro exemplo, isso foi feito integrando-se , analiticamente, a equação e depois analisando sua evolução com o passar do tempo. Nesse caso, o modelo é mais complicado, e integrar as equações diferenciais se torna inviável. Restam, então, soluções qualitativas e/ou numéricas. Uma das possíveis abordagens qualitativas envolve uma análise do sistema em busca de valores que nos ajudem a definir a estabilidade do mesmo, como o parâmetro k do modelo de Malthus. Numericamente, pode-se obter os valores das integrais do sistema. Nesses casos, as

Page 46: Livro CI 2007

 38 

equações diferenciais do sistema são calculadas com o auxílio do computador para uma determinada faixa de valores. O resultado é menos geral que as soluções anteriores, mas é possível tirar diversas conclusões sobre a estabilidade do sistema. Essa opção é a que utilizaremos nesse caso.

Vamos, então, resolver o sistema impondo inicialmente que 15−=b . Podemos visualizar a evolução de um caso particular do sistema através do seu retrato de fases, um espaço n-dimensional onde cada eixo corresponde a uma variável do conjunto de equações, ilustrando o “caminho” que o sistema percorre. Nesse caso, como temos duas variáveis, nosso retrato de fases é um gráfico de duas dimensões feito a partir dos dados obtidos computacionalmente. Para facilitar, vamos colocar diversas condições iniciais e observar o que acontece:

Figura 3 – Retratos de fases de 20 condições iniciais aleatórias, e com o parâmetro b = -15.

As setas indicam o tempo, ou seja, a direção que o sistema está indo. Temos que, em todos os casos simulados, o sistema foi para o ponto de equilíbrio (0,0). Isso sugere que, talvez, esse ponto de equilíbrio seja estável.

O caminho percorrido pelo sistema e sua estabilidade, por sua vez, está intimamente relacionado aos parâmetros escolhidos. Nesse caso, começamos com um valor de “b” alto e negativo, é interessante então mudar esse parâmetro para ver se a característica de estabilidade é mantida.

Quando resolvemos o sistema (da mesma maneira que feito anteriormente) com 1−=b temos o seguinte espaço de fases:

Page 47: Livro CI 2007

  39

Figura 4 - Retratos de fases de 20 condições iniciais aleatórias, e com o parâmetro b = -1. Vista geral.

A estabilidade é mantida e, aparentemente, o caminho realizado pelo sistema é o mesmo. Porém, se observarmos o comportamento na região bem próxima ao ponto de equilíbrio temos:

Figura 5 - Retratos de fases de 20 condições iniciais aleatórias, e com o parâmetro b = -1. Vista ampliada.

Já é possível observar uma mudança de comportamento: com b=-15, as variáveis de estado iam diretamente para o ponto de equilíbrio, sem cruzar os eixos do retrato de fase; com b=-1 elas vão de uma maneira espiralada. Isso caracteriza dois tipos diferentes de P.E., porém o sistema continua sendo assintoticamente estável. Por outro lado, ao colocarmos 1=b temos o seguinte espaço de fases:

Page 48: Livro CI 2007

 40 

Figura 6 - Retratos de fases de 20 condições iniciais aleatórias, e com o parâmetro b = 1. Vista geral (esquerda) e vista ampliada (direita).

Nesse caso, o sistema tende a um caminho oscilatório cujo centro é o ponto de equilíbrio, esse tipo trajetória é chamada ciclo-limite e é dita neutralmente estável (o sistema tende ao ciclo). Ciclos-limite estão associados a sistemas que possuem um comportamento oscilatório mesmo na ausência de um forçamento periódico externo. Isso pode ser observado, por exemplo, em ritmos cronobiológicos, onde diversas características fisiológicas (ex: temperatura) e comportamentais (ex: ciclo sono-vigília) oscilam mesmo com condições externas constantes (ex: ciclo luminoso, temperatura do ambiente...).

Voltando ao sistema estudado, temos então, um resultado muito interessante, pois dependendo do valor de apenas um parâmetro as variáveis podem tender a 0 ou ficar oscilando para sempre. O que tivemos foi uma mudança qualitativa do espaço de fases. Tal mudança é chamada bifurcação e pode ocorrer de diversas maneiras, como por exemplo a transição de um ponto de equilíbrio para dois, ou de um sistema estável para um instável. A bifurcação que estudamos é caracterizada pela transição de um ponto de equilíbrio assintoticamente estável para um ciclo-limite e é conhecida como bifurcação de Hopf.

Conclusões Os modelos propostos procuram mostrar alguns aspectos iniciais e fundamentais do

estudo dos sistemas dinâmicos. Temos agora um arcabouço de ferramentas que, apesar de estarem muito distantes de abranger todas as possibilidades que esse tipo de estudo permite, já podem auxiliar no estudo de fenômenos biológicos através de uma melhor quantificação dos processos de interesse, além da formalização de maneira precisa de conceitos (como equilíbrio e estabilidade) muito importantes da fisiologia.

Para saber mais: Monteiro, L. H. A. 2006. Sistemas Dinâmicos. 2ª edição. Editora Livraria da Física. São Paulo. p. 625.

Page 49: Livro CI 2007

  41

Alguns exemplos:

Chaui-Berlinck, J. G., L. H. A. Monteiro, C. A. Navas, J. E. P. W. Bicudo. 2002a. Temperature effects on energy metabolism: a dynamical system analysis. Proceedings Of The Royal Society Of London Series B Biological Sciences. 269: p.15 – 19.

Oliva, W. M. & E. M. Sallum. 1996. Periodic dynamic systems for infected hosts and mosquitoes. Revista de Saúde Publica. 3: 218-223.

Wolkenhauer, O. M. Ullah, P. Wellsteadand & K. Cho. 2005. The dynamic systems approach to control and regulation of intracellular networks. FEBS letters, v. 579, 1846-1853.

Page 50: Livro CI 2007

 42 

Page 51: Livro CI 2007

  43

ECOFISIOLOGIA Breve Histórico da Fisiologia Comparativa Renata Brandt ([email protected]) – Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva Bruno Blotta-Baptista ([email protected]) – Laboratório de Fisiologia de Crustáceos

Desde os tempos da antiga Grécia existe uma preocupação por entender a natureza da diversidade biológica e o funcionamento dos animais e do homem (fisiologia, etimologia). Essa preocupação tem por objetivo satisfazer a necessidade profunda, que é a base de toda ciência: a curiosidade do homem, o desejo de compreender o mundo natural e de explicar seus fenômenos. Entretanto, para os gregos, a curiosidade do homem sobre a constituição do seu corpo e as funções de seus órgãos é superior ao desejo de compreender os outros seres vivos. Nesse contexto, a semente da Fisiologia reside nos primeiros avanços médicos.

Hipócrates (460–377 aC) é considerado "pai da medicina" e uma das figuras mais importantes na história da saúde. Foi o primeiro a desvincular medicina de religião. Suas descrições clínicas de doenças, presentes nas obras hipocráticas, permitiram diagnosticar doenças como a malária, papeira, pneumonia e tuberculose. Além disso, seus escritos sobre anatomia contêm ótimas descrições tanto de instrumentos de dissecação como de procedimentos práticos. Hipócrates fundamentou a sua prática na teoria dos quatro humores corporais: sangue; fleuma ou pituíta; bílis amarela e bílis negra, que dependendo das quantidades relativas presentes no corpo, levariam a estados de equilíbrio (eucrasia) ou de doença e dor (discrasia).

Hipócrates fez parte da escola de Cós (550-400 aC), que foi sucedida pelo período Ateniano (400-290 aC), de grandes filósofos como Platão e Aristóteles (384-322 aC). Aristóteles foi aluno de Platão e professor de Alexandre o Grande. Foi um grande estudioso de diversos assuntos como física, biologia e zoologia, metafísica, lógica, retórica, política, governo, ética, poesia (incluindo teatro). Escreveu cinco grandes trabalhos biológicos: Historia Animalium – História dos Animais, De Partibus Animalium – Partes de Animais, De Generatione Animalium – Geração dos Animais, De Motu Animalium – Movimento dos Animais, De Incessu Animalium – Progressão dos Animais; onde são discutidos muitos problemas biológicos atuais até hoje. Ele criou as bases da doutrina da Evolução Orgânica, desenvolveu teorias coerentes de geração e hereditariedade, e fundou a Anatomia Comparativa, sem provavelmente nunca ter dissecado um corpo humano (Singer, 1996).

Do ponto de visto anatômico, Aristóteles fez ótimas descrições de alguns órgãos, algumas acompanhadas de desenhos e muito da nomenclatura que ele usou foi mantida, de forma pouco modificada, até hoje. Uma das descrições mais notórias é a do desenvolvimento placentário do tubarão Mustelus laevis. Aristóteles foi um grande estudioso da reprodução dos peixes, notou entre um grupo de elasmobrânquios um caso cujo desenvolvimento era análogo ao de mamíferos placentários. Essa descoberta permaneceu esquecida até o século XIX, quando sua redescoberta chamou a atenção dos naturalistas para as obras de Aristóteles. As obras aristotélicas contêm ainda registros de experimentos reais, como um que procura explicar perda e ganho de peso corpóreo no animal vivo.

Aristóteles também cometeu algumas grandes falhas. Uma delas foi considerar o coração como sede da inteligência. Para ele, o cérebro não estava relacionado com sensibilidade ou pensamento, seu papel era o de resfriar o coração evitando seu superaquecimento. Essa crença nasceu das suas pesquisas embriológicas, entre elas a mais importante que foi realizada com pintainhos.

Aristóteles descreveu os primeiros sinais perceptíveis do desenvolvimento destes animais, que para ele ocorriam no terceiro dia, quando o coração torna-se visível como um ponto palpitante de sangue. À medida que o embrião se desenvolve, surgem dois vasos sanguíneos que envolvem a túnicas circunvizinhas. Um pouco mais tarde, o corpo torna-se visível, com a cabeça facilmente distinguível e os olhos bem grandes. Aristóteles atribuiu grande importância ao aparecimento do coração no embrião. Ele tinha uma visão

Page 52: Livro CI 2007

 44 

gradualista da natureza, assim, julgou que os órgãos mais importantes apareceriam antes dos outros, motivo que o leva a acreditar na primazia do coração. Ele ainda acreditava que as artérias continham ar, não sangue.

A morte de Aristóteles em 322 aC, de Alexandre em 323 aC e posteriormente de Teofrasto em 287 aC, ambos alunos de Aristóteles, simbolizam o declínio da escola científica ateniense. O centro científico é transferido para Alexandria no Egito. Lá a Anatomia é reconhecida oficialmente como disciplina. Os primeiros professores de anatomia reconhecidos são Herófilo e Erasístrato (310-250 aC). Ambos foram anatomistas notáveis e os primeiros a terem permissão para dissecar humanos, ao que tudo indica indivíduos vivos, numa época em que todo conhecimento de anatomia vinha de dissecações de animais. As contribuições de Herófilo são mais anatômicas que fisiológicas.

Erasístrato, entretanto, pode ser considerado mais um fisiologista. Ele observou que todos os órgãos eram dotados de um sistema tríplice de vasos: veias, artérias e nervos. Segundo ele, esse sistema tríplice se ramifica até o limite da visão e o processo de divisão continua além desse limites. Assim, as menores divisões seriam trançadas e formariam os tecidos. Teorizou que existiam três fontes essenciais de alimentação e movimento, o sangue transportado pelas veias e mais dois tipos de pneuma. O ar é absorvido nos pulmões e transportado ao coração, onde se transforma no espírito vital, que é transportado pelas artérias. Ao chegar ao cérebro, esse espírito é transformado em espírito animal e é transportado pelos nervos, considerados como ocos.

Dessa forma se considera que Erasístrato tenha sido o primeiro a discriminar os sistemas vasculares sistêmico e pulmonar. Descreveu ainda as veias, artérias e as válvulas do coração, a tricúspide e a sigmóide e o coração como sendo a origem das artérias e veias. Concluiu que o coração funcionava como uma bomba, desmistificando-o como sendo centro das sensações. Foi ainda o primeiro a estudar o ritmo cardíaco. Fez as primeiras diferenciações entre os hemisférios cerebrais e o cerebelo e determinou ainda que o cérebro era a origem de todos os nervos. Estabeleceu a relação entre as circunvoluções cerebrais e a inteligência, notando que no homem elas eram mais complexas e traçando o paralelo com o aumento da inteligência.

Existe ainda uma teoria sobre a ação dos músculos na contração muscular cuja autoria é atribuída a Erasístrato. Segundo ele, o encurtamento dos músculos é atribuído a sua distensão pelo espírito animal (um dos pneumas). Teorias semelhantes a essa forma novamente propostas, em bases teóricas, por Descartes no século XVII (1595-1650) e Borelli (1637-1680), mas foram descartadas pelos experimentos de Swammerdam (1637-1680). Além disso, muitos pesquisadores acreditam que Erasístrato também descobriu os vasos linfáticos do mesentério.

A fisiologia como disciplina empírica é derivada da anatomia. O principal anatomista influenciador dessa corrente foi Galeno (131 d.C. – 200 d.C.) Suas teorias dominaram a ciência médica ocidental por cerca de 1300 anos. Ele gostava de estudar o corpo, mas dissecção depois da morte era proibida pela Lei Romana, e a saída era estudar porcos, macacos e outros animais o que o levou a cometer alguns erros. Ele afirmava existir um grupo de vasos sanguíneos próximos a parte de trás do cérebro, comum em animais, mas não em humanos. Foi precursor de muitas cirurgias audaciosas que não foram utilizadas por mais ninguém por quase dois milênios, incluindo cirurgia do cérebro e dos olhos. Suas inovações incluem uma experiência que iria mudar o curso da medicina: demonstrou pela primeira vez que as artérias conduzem sangue e não ar, como até então se acreditava. Foi ainda o primeiro a demonstrar, baseado em experiências, que o rim é um órgão excretor de urina. Em anatomia, Galeno distinguiu os ossos com e sem cavidade medular, descreveu a caixa craniana, o sistema muscular e diversos nervos cranianos, incluindo uma parte do sistema simpático. Apesar de todo avanço, Galeno inevitavelmente acabou cometendo erros, principalmente por causa de limitações ópticas. Não foi possível ver o que se passava no interior dos órgãos. Seu maior erro foi na teoria da circulação, pois segundo ele o sangue circulava em razão de um impulso ou de uma força atrativa, cuja origem era a parede da artéria.

O respeito pelas teorias de Galeno era tão grande que nenhum outro estudioso realizou algum avanço considerável, a investigação científica ficou paralisada durante inúmeras gerações. Para que a que a teoria das forças de Galeno fosse contestada, foram necessários aproximadamente 15 séculos. Saltando esse período de estagnação,

Page 53: Livro CI 2007

  45

chegamos ao período de Andreas Vesalius, quando a Anatomia Humana abriu as portas à pesquisa em Fisiologia.

Andreas Vesalius (1514-1564) foi um médico belga, considerado o "pai da anatomia moderna". Estudou medicina na Universidade de Paris, e lá tomou contato com as obras de Galeno. A falta de aulas práticas acabou levando-o a freqüentar cemitérios em busca de ossadas. Ao ser nomeado professor de Cirurgia e Anatomia em Pádua, realizava dissecções como ferramenta de ensino primária, ao contrário do costume até então de ensinar a partir dos textos clássicos de Galeno. Manteve registro meticulosos das dissecções, através de desenhos, e as tornou acessíveis pela publicação de Tabulae Anatomicae SexI (1538) e de Institutiones Anatomicae (1539), uma versão melhorada do livro de Galeno.

Em 1539, um juiz de Pádua se interessou pelo trabalho de Vesalius e tornou corpos de criminosos executados disponíveis para dissecção. Em 1541, Vesalius descobriu que a pesquisa de Galeno foi baseada em anatomia animal em vez de humana, em razão das dissecções terem sido banidas na Roma antiga. Galeno dissecou o macaco de Gibraltar (Macaca sylvanus), e argumentou que eles seriam anatomicamente similares aos humanos. Por essa razão, Vesalius publicou uma correção de Opera omnia, de Galeno, e começou a escrever seu próprio livro de anatomia. Em 1543, Vesalius publicou De Humani Corporis Fabrica, sua principal obra, um atlas do corpo humano ricamente ilustrado, dividida em sete partes – ossos (Livro 1), músculos (Livro 2), sistema circulatório (Livro 3), sistema nervoso (Livro 4), abdômen (Livro 5), coração e pulmões (Livro 6) e cérebro (Livro 7). Além de ser o primeiro a descrever corretamente inúmeras estruturas, foi também o primeiro a descrever a ventilação mecânica.

As primeiras grandes descobertas em Fisiologia são derivadas dos estudos anatômicos. Algumas dessas grandes descobertas foram realizadas por William Harvey (1578-1657), médico britânico considerado por muitos o fundador da fisiologia experimental. Harvey foi estudar na Universidade de Pádua, a mais avançada da época, sob a supervisão de Hieronymus Fabricius. Fabricius dizia ter descoberto as válvulas nas veias, mas não descobriu sua verdadeira função, achava que o sangue fluía por algum tipo de ação contrátil das artérias. Sua explicação não satisfazia Harvey, e por essa razão, se tornou seu desafio explicar a verdadeira função dessas válvulas, o que acabou levando-o a buscar a explicação para o movimento do sangue.

Harvey anuncia em 1616 a descoberta do sistema circulatório, ele defendia a idéia de que o sangue era bombeado pelo coração antes, retornando ao coração e sendo recirculado num circuito fechado. Isso bateu de frente com o modelo aceito na época, o de Galeno, que identificou o sangue venoso (vermelho escuro) e arterial (mais fino e brilhante), cada um com funções distintas e separadas. O sangue venoso era tido como originário do fígado e o sangue arterial do coração; o sangue fluía desses órgãos para todas as partes do corpo, onde era consumido. Em 1628, publica essa argumentação em Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus.

Harvey baseou a maioria das suas conclusões em observações cautelosas realizadas durante vivissecções de vários animais durante experimentos controlados, sendo a primeira pessoa a estudar biologia quantitativamente. Ele realizou um experimento para verificar quanto sangue passaria pelo coração a cada dia. Neste experimento usou estimativas: (1) da capacidade do coração, (2) de quanto sangue é expelido em cada bombeada do coração, e (3) da quantidade de vezes que o coração bate em meia hora. Todas essas estimativas eram propositadamente baixas, isso para que as pessoas pudessem perceber a vasta quantidade de sangue que era preciso produzir por dia no fígado. Ele estimou que a capacidade do coração era de 44 ml, e que cada vez que o coração bate são expelidos 1/8 desse sangue. Isto levou a estimativa de que 5 ml de sangue passavam pelo coração a cada batida. A próxima estimativa que ele usou foi que o coração batia 1000 vezes a cada meia hora, o que resulta 5 L de sangue em cada meia hora, e quando esse número era multiplicado por 48 meias horas em um dia, ele percebeu que o fígado teria que produzir 240 L de sangue em um dia, anulando a idéia que o sangue era consumido.

Propôs ainda que o sangue fluía através do coração em duas alças. Uma delas, a circulação pulmonar, conectava o sistema circulatório aos pulmões. A segunda alça, a circulação sistêmica, responsável pelo fluxo sanguíneo aos órgãos vitais e tecidos. Ele também observou que o sangue nas veias se movia na direção do coração, mas as veias

Page 54: Livro CI 2007

 46 

não permitiam fluxo no sentido oposto, observado em um outro experimento simples. Harvey amarrou torniquete ou garrote ao braço de uma pessoa. Isto cortaria o fluxo sanguíneo das artérias e veias. Quando isso foi feito, o braço abaixo do torniquete estava gelado e pálido, enquanto acima estava aquecido e inchado. O torniquete foi afrouxado delicadamente, o que permitiu o sangue das artérias perfundir o braço, uma vez que as artérias têm localização mais profunda que as veias. Quando isso foi feito, o efeito oposto foi observado no antebraço, estava agora aquecido e inchado. As veias ficaram também mais visíveis, porque agora estavam cheias de sangue. Harvey notou pequenas saliências nas veias, o que ele concluiu como sendo as válvulas descobertas pelo seu professor Fabricius. Ele então tentou empurrar o sangue das veias para o antebraço sem sucesso, mas ao tentar empurrar para o braço o sangue se moveu facilmente. O mesmo efeito foi observado em outras veias do corpo, exceto as do pescoço. Estas não permitiam ao sangue subir, somente descer. Harvey então concluiu que as veias permitiam o fluxo na direção do coração, e que as válvulas mantinham o fluxo unidirecional. Harvey concluiu posteriormente que o coração agia como uma bomba que forçava o sangue a se mover pelo corpo, em vez de seguir com a teoria da época que o fluxo sangüíneo era resultado por uma ação de sucção do coração e fígado.

Harvey era muito curioso sobre o corpo e em certo ponto da carreira voltou sua atenção a reprodução. Ele especulava que os humanos e outros mamíferos deveriam se reproduzir através do óvulo e do esperma. Nenhuma outra teoria fazia sentido, mas a teoria de Harvey era tão fascinante e tão conhecida que o mundo assumiu que ele estava certo mesmo 200 anos antes do primeiro óvulo mamífero ser observado. Seu livro sobre embriologia, De Generatione, foi publicado em 1651. Os estudos sobre a circulação foram importantes na consolidação da Fisiologia como ciência empírica, alguns desses estudos foram realizados por Stephen Hales (1677 - 1761), conhecido como pioneiro da fisiologia experimental, é considerado Fisiologista, químico e inventor.

Do discurso de aceite do Prêmio Nobel em Medicina feito por Werner Forssmann em 1956:

"The credit for carrying out the first catheterization of the heart of a living animal for a definite experimental purpose is due to an English parson, the Reverend Stephen Hales. This scientifically interested layman undertook in Tordington in 1710, 53 years after the death of William Harvey (1578-1657), the first precise definition of the capacity of a heart. He bled a sheep to death and then led a gun-barrel from the neck vessels into the still-beating heart. Through this, he filled the hollow chambers with molten wax and then measured from the resultant cast the volume of the heartbeat and the minute-volume of the heart, which he calculated from the pulse-beat. Besides this, Stephen Hales was also the first, in 1727, to determine arterial blood pressure, when he measured the rise in a column of blood in a glass tube bound into an artery."

"O crédito por ter realizado a primeira cateterização do coração de um animal vivo

por um propósito experimental definido é de um clérigo Inglês, o reverendo Stephen Hales. Este homem leigo interessado cientificamente, realizou em Tordington em 1710, 53 anos depois da morte de William Harvey (1578-1657), a primeira definição precisa da capacidade do coração. Ele sangoru uma ovelha até a morte para então levar um cateter, dos vasos do pescoço, até o coração que ainda batia. Através disso, ele encheu as câmaras vazias com cera derretida e então mediu o volume de cada batida do coração e o volume/minuto do coração, calculado do número de pulsações. Além disso, Stephen Hales foi também o primeiro, em 1727, a determinar a pressão arterial, quando ele mediu a altura de uma coluna de sangue em um tubo de vidro ligado a uma artéria."

Hales demonstrou que alguns reflexos são mediados pela medula espinhal. Mostrou que os princípios de circulação em animais e plantas são diferentes. Descobriu os perigos de respirar ar estagnado e inventou um ventilador, que melhorou as taxas de sobrevivência quando empregado em navios, hospitais e prisões. Estudou ainda pedras da bexiga e dos rins e sugeriu solventes que deveriam reduzi-las sem a necessidade de cirurgia. Em 1733, Hales publicou Haemastaticks, que continha experimentos sobre a "força do sangue" em vários animais, a taxa de fluxo e a capacidade de diferentes vasos.

Além da circulação, estudos pioneiros em Fisiologia muscular também foram muito importantes na consolidação da Fisiologia como ciência empírica. Luigi Galvani (1737-1798), médico e investigador italiano, foi um desses pioneiros. Ele era professor de

Page 55: Livro CI 2007

  47

Anatomia na Universidade de Bolonha. Em 1766, começou a investigar a ação da eletricidade sobre os músculos de sapos.

Inventou o arco metálico pela observação da contração nos músculos das pernas de sapos suspensos por ganchos de cobre em uma barra de ferro. O arco era feito de dois metais diferentes, tanto que quando um metal era colocado em contato com um nervo do sapo e o outro em contato com o músculo, ocorria uma contração (Fig 1),

Figura 1 – O comportamento eletroquímico de dois metais diferentes, zinco (Z) e cobre (C) num arco bimetálico, em contato com os eletrólitos do tecido, produz uma corrente elétrica que estimula a contração muscular.

Em 1783, Galvani ao dissecar uma rã numa mesa em que conduzia experimentos de eletricidade estática, um assistente tocou, com um bisturi metálico, em um nervo ciático exposto, que acumulou uma carga. Neste momento eles viram faíscas numa máquina de eletricidade e a perna da rã morta chutou. A observação fez de Galvani o primeiro cientista a investigar a relação entre eletricidade e reanimação. Esta descoberta deu início ao que chamamos de Fisiologia Experimental.

Ainda nessa época, a Fisiologia recebeu importantes contribuições teóricas, que fugiam do tradicional enfoque anatômico. Um exemplo é a famosa equação de Pierre Simon de Laplace (1749-1827), que relacionava raio e pressão nas paredes de um vaso. No contexto do desenvolvimento do método empírico e teórico na Fisiologia, toda Biologia passava pela revolução causada pela discussão evolutiva de Charles Darwin e Alfred Wallace e a teoria da Seleção Natural.

No início do século 20, surge a Fisiologia Comparativa derivada da anatomia-fisiologia humana, mas influenciada pela discussão evolutiva do momento. O grande impulsionador do enfoque Comparativo foi August Krogh (1901-1987)

Prêmio Nobel descobridor do axônio gigante de lula. Krogh fundamentou sua pesquisa num princípio que ficou depois foi batizado com seu nome, o Princípio de Krogh: “Para cada problema fisiológico existe um modelo animal adequado para seu estudo” (1929). Exemplos clássicos incluem o músculo de salto de anfíbios, o axônio gigante da lula, o rim de roedores de deserto. O modelo era escolhido segundo alguma característica exagerada dos animais, transformando o ambiente em um laboratório natural. Pouco depois, aliada à discussão paralela da Genética de Populações (consolidação do conceito de “fitness” e proposição de um mecanismo de ação da Seleção Natural, os ambientes se transformaram em agentes do aparecimento dessas características exageradas.

O enfoque da Fisiologia Comparativa se torna claramente mais ecológico, iniciando a Fisiologia Comparativa Moderna. Podemos apontar como principais fundadores dessa linha de pensamento 3 grandes fisiologistas: George Bartholomew, Per Fredrik Scholander e Knut Schmidt-Nielsen por volta da segunda metade do século 20. O princípio de Krogh deixa de ser o único fio condutor da fisiologia comparada para focalizar a relação ecologia – fisiologia - evolução. Nesse contexto, é natural que nas décadas de 60-70 o foco de estudo da fisiologia comparativa fosse nos ambientes extremos. A adaptação entra na pauta. Podemos citar pesquisas clássicas com termorregulação em Camelos, regulação hídrica e osmótica no rato canguru, adaptação ao mergulho de longa duração das focas de Weddell, hibernação, entre outros.

Page 56: Livro CI 2007

 48 

Nas décadas de 70-80, o desempenho do organismo como um todo se torna um importante objeto de estudo para a conexão mais clara de aptidão com Fisiologia, uma vez que o indivíduo, e não as suas partes, é quem é desafiado pelo ambiente. Entre os pesquisadores mais influentes podemos citar Harvey Lylliwhite, Harvey Pough, Warren Burggren, Raymond Huey e Alfred Bennett.

A partir da década de 80, perguntas como as abaixo tornam-se cada vez mais comuns para a Fisiologia Comparativa:

1. Como funcionam os animais nos diferentes ambientes? 2. Como se integram as funções fisiológicas em diferentes níveis de organização? 3. Qual a significância ecológica das características fisiológicas? 4. Porque existe variação fisiológica entre indivíduos? 5. Quais características são exageradas em ambientes extremos? Nos anos 90, cresce a demanda pela maior integração de pesquisas mecanicistas e

reducionistas (ex. vias de sinalização celular) com as organismais, caracterizando a Fisiologia como a disciplina mais integrativa das Ciências Biológicas. Com isso a Fisiologia Comparativa começa a aumentar as interações com outras áreas do conhecimento, incorporando novas abordagens tanto da Fisiologia Biomédica, Bioquímica e Biologia Molecular quanto Ecologia, Evolução, Sistemática, Comportamento. Contemporaneamente procura-se:

1. Entender o funcionamento dos seres vivos sob o princípio da “diversidade na

unidade”, e.g., a diversidade fisiológica e bioquímica que surge no contexto dos processos básicos.

2. Entender como os animais estão adaptados a diferentes estilos de vida e ambientes, particularmente no contexto de extremos comportamentais ou ecológicos.

3. Promover o entendimento das relações entre ecologia e fisiologia, incluindo a capacidade de ajuste à diversidade ambiental que acontece ao longo da vida dos animais (espacial e temporal).

4. Entender a evolução dos mecanismos fisiológicos e a origem histórica da adaptação fisiológica.

5. Entender a relação entre expressão gênica, caracteres fisiológicos e ecologia Por fim, atualmente a Fisiologia Comparativa se apresenta como ferramenta

fundamental do princípio básico que rege a Biologia, ou seja, a Evolução. Sendo o meio o principal agente da seleção natural, não é possível desvincular evolução do funcionamento dos organismos, uma vez que ele está intimamente ligado ao ambiente. Não é razoável enxergar um ser vivo como algo que não seja fruto da evolução.

Para saber mais:

Franklin, K. J. A short history of physiology. London: Staples Press, 1949. 146p. Navas, C. A. & Freire, C. A. Comparative biochemistry and physiology in Latin América over the last decade (1997-

2006). Comp. Biochem. Physiol. 2007, 147(A): 577-585. Navas, C. A.; Chauí-Berlinck, J. G.; Bicudo, J.E.P.W.; Pivello, V. R. & Martins, M. Comparative biochemistry and

physiology in Brazil: a critical appraisal. Comp. Biochem. Physiol. 2007, 147(A): 586-593. Schmidt-Nielsen, K. About curiosity and being inquisitive. Annu. Rev. Physiol. 1994, 56: 1-12. Schmidt-Nielsen, K. Fisiologia Animal: Adaptação e Meio Ambiente, São Paulo, Santos Livraria Editora, 2002. 611p. Singer, C. Uma breve história da Anatomia e Fisiologia desde os gregos até Harvey.. Campinas: Editora da Unicamp,

1996. 234p. Warren, B; Randall, D. & French K. Fisiologia Animal ( Eckert ): Mecanismos e Adaptações. Rio de Janeiro: Guanabara

Koogan, 2000, 729p. Withers, P. C. Comparative animal physiology. Saunders College Publishing, 1992, 949p.

Page 57: Livro CI 2007

  49

A vida no limite: mecanismos de adaptação bioquímica a extremos de temperatura Ivan Prates ([email protected]) – Laboratório Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva

Diversos organismos invadiram de forma surpreendentemente bem sucedida ambientes absolutamente inóspitos para nossa espécie. O estudo das adaptações que seres extremófilos desenvolveram em resposta às pressões associadas à sobrevivência em seus ambientes, além de nos impressionar, contribui para o entendimento dos processos em evolução biológica, apresenta novos modelos para o entendimento de fenômenos bioquímicos e fisiológicos, e aponta novas possibilidades práticas para a biomedicina e biotecnologia. Não por coincidência, a ecofisiologia se iniciou com o estudo de seres que vivem em ambientes extremos, já que esses nos fornecem exemplos muito ilustrativos do surgimento e operação das adaptações. Como uma forma de ilustrar o pensamento e a abordagem em fisiologia evolutiva e ecofisiologia, esse capítulo foca nos ajustes fisiológicos apresentados por organismos que vivem em extremos de temperatura, em particular nos ajustes ao nível do metabolismo celular.

Ortólogos de enzimas e a conservação filogenética das porções catalíticas Ao comparar espécies, populações ou mesmo indivíduos, chamamos ortólogos as

variedades correspondentes de uma proteína que desempenham mesma função e tem mesma origem filogenética. Quando comparamos entre espécies ortólogos de uma determinada enzima, raramente observamos diferenças na seqüência de aminoácidos que compõem a porção que corresponde ao chamado vacúolo catalítico, que é aquela na qual a reação efetivamente ocorre (Hochachka e Somero, 2002). Comparando todos os ortólogos conhecidos da LDH (lactato desidrogenase, que catalisa a reação piruvato → lactato), por exemplo, é surpreendente que a geometria que define as interações no vacúolo catalítico é virtualmente a mesma para todas as formas de vida conhecidas, desde bactérias aos vertebrados mais derivados (Deng et al. 1994). Essa semelhança se explica pelo fato de que, uma vez que a atividade catalítica de uma enzima depende inteiramente da ligação dos substratos com os resíduos de aminoácidos que determinam o vacúolo catalítico, qualquer modificação na sua seqüência pode destituir completamente a enzima de sua função. Sem dúvida, a seleção natural atua no sentido de manter em limites muito estreitos a variação possível nesse tipo de seqüência. Essas são considerações particularmente relevantes para enzimas cujo gene codificante está presente em apenas uma cópia no genoma.

Etapas limitantes da velocidade das reações mediadas por enzimas Os passos envolvidos numa reação catalisada por enzimas podem ser

representados da seguinte forma: enzima + substrato → complexo enzima-substrato → complexo ativado → complexo enzima-produtos → enzima + produtos O passo mais notável quando consideramos a operação de uma enzima é a

passagem do complexo enzima-substrato para o complexo ativado, no qual os substratos são convertidos em produtos. Entretanto, tem sido demonstrado que os passos que determinam mais pronunciadamente a velocidade de uma reação mediada por enzimas são as alterações de conformação que promovem a ligação dos substratos e a liberação dos produtos (Hochachka e Somero, 2002). De fato, a reorganização de ligações covalentes dos reagentes, que se passa no sítio catalítico de enzimas, é surpreendentemente rápida; para a LDH-A bovina, por exemplo, o tempo requerido para a conversão de piruvato em lactato no vacúolo catalítico é apenas um terço daquele necessário para as mudanças conformacionais que promovem ligação e liberação dos reagentes.

Alterações que incrementam a velocidade das reações em ambientes frios Sendo a ligação e liberação dos reagentes as etapas mais limitantes da velocidade

das reações enzimáticas, não é de surpreender que observemos, em espécies que vivem

Page 58: Livro CI 2007

 50 

em ambientes frios, alterações nas seqüências de aminoácidos que tornam as enzimas capazes de modificar suas conformações estruturais mais rapidamente. Enzimas mais “frouxas” ou “ágeis” são uma solução desenvolvida evolutivamente para compensar a redução na velocidade das reações ocasionada por baixas temperaturas. Na verdade, essa é provavelmente a única direção possível para a modificação de enzimas a fim de incrementar velocidades de reação, já que a porção cataliticamente ativa, como afirmado acima, tem sua capacidade de modificação pesadamente comprometida com a função que desempenha (Hochachka e Somero, 2002).

Para quantificar o desempenho enzimático e assim comparar os efeitos de variações na seqüência de proteínas de espécies ou populações que vivem em ambientes termicamente diferentes, podemos analisar os valores da constante de catálise (Kcat) de uma dada reação, que indica a taxa na qual o substrato é convertido em produto por unidade de tempo. A Fig. 1 (extraída de Fields e Somero, 1998) traz valores de Kcat a 0oC para ortólogos da LDH de vertebrados adaptados à vida entre -1,86oC (peixes nototenióides da Antártica) e 42oC (um réptil termófilo). O melhor desempenho dos ortólogos de espécies viventes em ambientes mais frios é evidente; paralelamente, nas espécies nas quais as enzimas normalmente operam em temperaturas mais elevadas, a LDH opera de forma progressivamente mais lenta.

Figura 1. Relação entre a constante de catalização (Kcat) de ortólogos da A4-LDH e temperatura de corporal de vertebrados de ambientes térmicos distintos. As espécies são: quatro peixes nototenióides antárticos, (1) Parachaenichthys charcoti, (2) Lepidonotothen nudifrons, (3) Champsocephalus gunnari, (4) Harpagifer antarticus; dois nototenióides sul-americanos, (5) Patagonotothen tessellata e (6) Eleginops maclovinus; (7) um peixe-pedra temperado, Sebastes mystinus; (8) Hippoglossus stenolepis; (9) uma barracuda temperada, Sphyraena argentea; (10) o peixe cão, Squalus acanthias; (11) uma barracuda subtropical, Sphyraena lucasana; (12) um peixe gobídeo temperado, Gillichthys mirabilis; (13) um atum, Thunnus thynnus; (14) uma barracuda tropical, Sphyraena ensis; (15) a vaca, Bos taurus; (16) a galinha, Gallus gallus; (17) o perú, Meleagris gallopavo; (18) o iguana do deserto, Dipsosaurus dorsalis (Fields e Somero, 1998).

Quanta modificação é necessária para surtir algum efeito biológico? As diferenças na seqüência de aminoácidos que conferem propriedades cinéticas

diferentes a espécies de ambientes distintos podem ser realmente pequenas. Uma única substituição de aminoácido na posição 8 distingue a LDH de barracudas de clima temperado (Sphyraena idiastes) e subtropical (Sphyraena lucasana), com diferenças acentuadas nas taxas catalíticas (Holland et al. 1997). Uma ou duas substituições de aminoácidos diferem a LDH-B do peixe de água doce Fundulus heteroclitus de regiões mais ao norte ou ao sul dos EUA. Nesses animais, a substituição de um resíduo de serina

Page 59: Livro CI 2007

  51

por uma alanina representa a perda de um único grupo –OH. A eliminação resultante de apenas uma ligação polar resulta em estabilidade diminuída, com aumentos nas taxas de catálise em temperaturas mais baixas (Power et al. 1993).

Alterações que aumentam a estabilidade de enzimas em ambientes quentes A situação vivida por organismos que vivem em altas temperaturas é oposta àquela

dos que vivem em ambientes frios. Enquanto a diminuição da estabilidade de uma dada enzima pode ser benéfica para antagonizar os efeitos de baixas temperaturas, organismos que vivem em ambientes excessivamente quentes têm de lidar com o risco de ter suas moléculas biológicas desnaturadas. No que se refere às enzimas, são observadas modificações nas seqüências de aminoácidos no sentido de conferir estabilidade nas espécies que vivem em temperaturas mais elevadas. A Fig. 2 (McFall-Ngai e Horwitz, 1990) apresenta a estabilidade térmica das proteínas componentes do cristalino (lentes dos olhos) para várias espécies de vertebrados. Um padrão nítido é que as proteínas de espécies submetidas naturalmente a temperaturas mais elevadas são mais estáveis termicamente, o que se expressa no fato de que perdem 50% de sua estrutura secundária em temperaturas também mais elevadas.

Figura 1. Estabilidade térmica dos cristalinos (lentes dos olhos) de vertebrados adaptados á diferentes temperaturas. A temperatura na qual ocorre 50% da perda de estrutura secundária (conforme medido através de espectroscopia CD) é dada como função da temperatura corporal máxima para cada espécie. As espécies são: (1) Pagothenia borchgrevinki (peixe antártico); (2) Coryphaenoides armatus (peixe abissal); (3) Coryphaenoides rupestris (peixe abissal); (4) Onchorynchus mykiss (truta arco-íris); (5) Cebidichthys violaceus (peixe de poças de maré); (6) Rana muscosa (rã); (7) Alticus kirkii (peixe do Mar Vermelho); (8) Rana erythraea (rã); (9) Gekko gecko (lagarto); (10) Rattus norvergicus (rato); (11) Tropidurus hispidus (lagarto); (12) Dipsosaurus dorsalis (iguana do deserto); (McFall-Ngai e Horwitz, 1990).

O estudo das proteínas de organismos hipertermofílicos, como os procariontes Archaea, que podem viver em temperaturas acima de 100oC, tem trazido elementos importantes para entender como mudanças na composição de aminoácidos tem efeitos na estabilidade de enzimas. Em linhas gerais, quando comparamos espécies mesófilas a termófilas, observamos: um incremento na freqüência de aminoácidos polares, dotados de carga, que favorecem a ocorrência de interações iônicas entre resíduos de uma mesma proteína; uma redução na proporção de aminoácidos não polares, sem carga, em favor de um incremento de aminoácidos hidrofóbicos, que favorecem interações hidrofóbicas; uma redução na freqüência de aminoácidos com radicais propensos à rotação, por exemplo substituindo glicina por alanina, e assim diminuindo o número de conformações possíveis à proteína; entre outros (Haney et al. 1999).

Page 60: Livro CI 2007

 52 

Chaperonas moleculares e a resposta de choque térmico No interior das células, onde cada molécula exerce e recebe influência de muitas

outras, uma variedade significativa de proteínas precisa de ajuda para atingir a configuração terciária correta. Esse auxílio é fornecido por uma classe especial de proteínas que, além de auxiliar o enovelamento protéico, encaminha a proteína em formação à destruição caso o dobramento correto não seja possível. São as chamadas chaperonas moleculares, que constituem uma família de grande de proteínas com função semelhante: a partir da hidrólise de ATP, as chaperonas desenovelam proteínas e possibilitam um novo enovelamento, a fim de que a proteína em dobramento atinja sua conformação terciária adequada para a função que desempenha (Feder e Hofmann, 1999).

As chaperonas são comumente designadas por proteínas de choque térmico ou hsp (do inglês heat shock proteins), já que sua descoberta ocorreu com a indução de choques térmicos em drosófila. De fato, muitas chaperonas são expressas em resposta a elevação de temperatura, além de várias outras formas de stress. Após a exposição a temperaturas elevadas, síntese de hsp é observada em um intervalo que varia entre espécies e que depende da intensidade e duração do choque (Tomanek e Somero, 2000). O mecanismo é universal, e não foi observado até o momento somente em espécies que evoluem em ambientes glaciais há milhões de anos, como certos peixes antárticos (Somero e DeVries, 1967). Além das chaperonas expressas em resposta a choques de temperatura, há também expressão constitutiva na ausência de estressores. Assim, as chaperonas assistem o dobramento de proteínas de células também em condições fisiológicas normais (Hochachka e Somero, 2002).

No que se refere às diferentes classes de proteínas de choque térmico, duas mostraram-se particularmente importantes nos eucariontes: as hsp70 e as hsp60. Com relação ao seu modo de operação, as hsp70 se ligam a seqüências hidrofóbicas expostas e mantêm a cadeia peptídica desenovelada enquanto ela assume de forma espontânea a conformação tridimensional adequada à função. Impedem que várias proteínas malformadas, com seqüências hidrofóbicas expostas, formem agregados, e são importantes no evento de desenovelamento necessário para a passagem de proteínas por membranas intracelulares (como da mitocôndria ou do retículo endoplasmático), com posterior reenovelamento (Mayer e Bukau 2005). As chaperonas do grupo hsp60, por sua vez, agem sempre sobre uma proteína já pronta que possui um erro na configuração terciária. O erro aparece sempre como uma seqüência de aminoácidos hidrofóbicos que ficam expostos e são reconhecidos pelas chaperonas. Uma vez detectado o erro, as hsp60 se ligam à proteína, aprisionando-a no interior de uma reentrância da própria chaperona. Essa reentrância constitui um ambiente separado do citossol, propício para o enovelamento adequado da proteína. Erros como os citados acima são particularmente freqüentes em situações estressantes, como por exemplo quando o organismo é exposto a temperaturas elevadas. A síntese das chaperonas como uma resposta a esses eventos assegura a estabilidade química da célula e, portanto, a sobrevivência do organismo.

Defesas celulares contra o congelamento A formação de gelo deve ser evitada e controlada por qualquer organismo que viva

em um ambiente de temperaturas abaixo do ponto de congelamento da água. A água no estado líquido é fundamental para a formação e estabilização da estrutura de moléculas biológicas; para a manutenção da bicada lipídica das membranas celulares (os lipídios protegem sua porção hidrofóbica compondo membranas!); para o transporte de materiais entre compartimentos de um organismo e entre ele e seu ambiente; e como substrato de várias das reações do metabolismo (Hochachka e Somero, 2002). Além de concorrer com esses importantes papéis da água líquida, a formação de gelo coloca as células em perigo também pelo fato que os cristais podem danificar mecanicamente a estrutura de moléculas biológicas e de membranas.

Muitos táxons distintos evitam a formação de cristais de gelo no citoplasma e em fluídos corpóreos através de sua concentração com moléculas orgânicas. O aumento da concentração dos fluídos permite seu super-resfriamento abaixo de 0oC, sem congelamento, valendo-se das propriedades coligativas das soluções. As moléculas concentradas são freqüentemente solutos orgânicos de baixa massa molecular, como a

Page 61: Livro CI 2007

  53

glicose, o glicerol, o sorbitol e a trealose (Duman, 2001). O glicerol é particularmente relevante quando tratamos de artrópodes; em peixes, a concentração de glicerol pode tornar-se tão elevada que os animais tornam-se iso-osmóticos em relação à água salgada do mar! (Raymond, 1993). Com relação aos peixes antárticos, o óxido de trimetilamina (TMAO) é o composto mais relevante em evitar a formação de cristais de gelo (Raymond e DeVries, 1998). Esse tipo de estratégia caracteriza certos animais tolerantes ao congelamento, como rãs e tartarugas, que assumem um estado de torpor durante o inverno e permitem o congelamento de fluídos extracorpóreos, garantindo a integridade das células pela acumulação de solutos (Schmidt-Nielsen, 2002).

Diante do fato de que cristais de gelo efetivamente se formam no interior de células apesar dos mecanismos que animais de clima frio possuem para evitá-los, foram selecionados mecanismos de controle do crescimento dos cristais de gelo após sua formação. Substâncias anticongelativas de caráter protéico e glicoprotéico foram descritas para pelo menos 11 famílias de peixes marinhos não aparentados filogeneticamente, incluindo formas da Antártica e Ártico. Essas moléculas atuam após a formação de cristais de gelo no interior das células, evitando seu crescimento; para tanto, complexam-se com a superfície do cristal de gelo em formação e impedem a adição de mais moléculas de água. Essa estratégia caracteriza animais não tolerantes ao congelamento, em oposição à acumulação de soluto, embora as duas possam estar presentes no mesmo animal (Schmidt-Nielsen, 2002; Hochachka e Somero, 2002).

Outras estratégias bioquímicas conferem aos animais extremófilos condições de viver e se reproduzir em seus ambientes. Dentre eles, podemos citar proteínas de choque frio (cold shock proteins) e mudanças na composição de lipídeos de membranas para aumentar sua fluidez e permeabilidade em baixas temperaturas e diminuí-las em baixas temperaturas. Referências Deng, H.; J. Zheng; A. Clarke; J.J. Holbrook; R. Callender; J.W. Burgner II. 1994. Source of catalysis in the lactate

desidrogenase system. Ground-state interactions in the enzyme-substrate complex. Bioch., 33: 2297-2305. Duman, J.G. 2001. Antifreeze and ice nucleator proteins in terrestrial arthropods. Ann. Rev. Phys., 63:327-357. Feder, M. E. e G.E. Hofmann. 1999. Heat-shock proteins, chaperones and the stress response: Evolutionary and

ecological physiology. Ann. Rev. Phys., 61:243-282. Fields, P.A.; G.A. Somero. 1998. Hot spots in cold adaptation: localized increases in conformational flexibility in lactate

desidrogenase A4 ortologs of antartic notothenioid fishes. Proc. Nat. Acad. Sci. USA, 95:11476-11481. Haney, P.J.; J.H. Badger,; G.L. Buldak; C.I. Reich; C.R.Woese; G.J. Olsen .1999. Thermal adaptation analyzed by

comparison of protein sequences from mesophilic and extremely thermophilic Methanococcus species. Proc. Nat. Acad. Sci. USA, 3578-3583.

Hochachka, P.; G.N. Somero. 2002. Biochemical adaptation: mecanisms and process in physiological evolution. Oxford University Press, Oxford.

Holland, L.Z.; M. Ann. Rev. Phys; G.N. SOMERO. 1997. Evolution of lactate dehydrogenase –A homologs of barracuda fishes (genus Sphyraena) from different thermal environments: Differences in kinetic properties and thermal stability are due to amino acid substitutions outside the active site. Bioch., 36: 3207-3215.

Mayer, M.P.; B. BUKAU. 2005. Hsp70 chaperones: cellular functions and molecular mechanism. Cell Mol. Life Sci., 62: 670-684.

McFall-Ngai, M.; J, Horwitz. 1990. A comparative study of the thermal stability of the vertebrate eye lens: Antartic fishes to the desert iguana. Exp. Eye Res., 50: 703-709.

Power, D.A.; M. Smith; I. Gonzalez-Villasenor; L. DiMichelle. D. Crawford e outros. 1993. A multidisciplinary approach to the selectionist/neutralist controversy using the model teleost Fundulus heteroclitus. In: Oxford Surveys in Evolutionary Biology, ed. D. Futuyma e J. Antonovics, 9: 43-107. Oxford: Oxford University Press.

Raymond, J.A. 1993. Gliycerol and water balance in a near-isosmotic teleost, winter-acclimatized rainbow smelt. Can. J. Zool. 71: 1849-1854.

Raymond, J.A.; A.L. DeVries. 1998. Elevated concentrations and synthetic pathways of trimethylamine oxide and urea in some teleost fishes of Mc Murdo sound, Antactica. Fish. Phys. and Bioch., 18: 387-398.

Schmidt-Nielsen, K. 2002. Fisiologia Animal: adaptação e meio ambiente. 5 edição. Editora Santos, São Paulo. Somero, G.N.; A.L. DeVries. 1967. Temperatute tolerance in some antartic fishes. Science, 156: 257-258. Tomanek, L.; G.N. Somero. 2000. Time course and magnitude of synthesis of heat-shock proteins in congeneric marine

snails (genus Tegula) from different tidal heights. Phys. and Bioch. Zool., 73: 249-256. Eur J Pharmacol. 2007 Apr 30;561(1-3):151-9.

Page 62: Livro CI 2007

 54 

Ecofisiologia de insetos Antonio Carlos da Silva ([email protected]) e Fabiano Ricardo A. Negrini ([email protected]) - Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva

Os insetos surgiram na Terra há 350 milhões de anos atrás, no período Devoniano da Era Paleozóica. Pouco se sabe sobre as primeiras formas, exceto que elas rastejavam e não voavam. A distribuição deste grupo é bem ampla no meio terrestre, estando presente inclusive em regiões desérticas. Uma das características que permitiram a estes grupo de invertebrados a grande distribuição sobre a terra é a constituição de seus corpos rica em carboidratos e quitina, a qual possibilitou a resistência a condições de dissecação do meio ambiente.

A variedade de micro-ambientes em que se encontram insetos é grande e muitas são as estratégias verificadas por estes animais para enfrentarem mudanças dos gradientes ecológicos e climáticos, tais como mecanismos de termoregulação, de absorção de água, além de estratégias comportamentais que asseguram aos indivíduos a manutenção das condições necessárias para sua sobrevivência, ou seja, permitem a manutenção da homeostase.

As adaptações encontradas com relação à alimentação estão associadas ao tipo de dieta que o animal possui: - se líquida tem que lidar com problemas de peso ou volume; já dietas sólidas requerem mecanismos que permitam a quebra do alimento facilitando a sua absorção.

A regulação fisiológica do tamanho da refeição pode incluir estímulo sensorial (positivo ou negativo), feedback volumétrico via estiramento de receptores localizados nas paredes intestinais (ileum) ou nas paredes do corpo, a composição da hemolinfa (osmolaridade ou a concentração de nutrientes individuais), reservas disponíveis e neuropeptídeos, muitos dos quais são conhecidos por atuar na atividade contrátil do intestino (Gäde, et al 1997).

As dietas também podem variar de acordo com o estágio de desenvolvimento do animal, no caso de insetos holometábolos (Fig.1) existe uma diversidade de dietas entre o estágio larval e o adulto; no estágio larval se alimentam de plantas que permitam um ganho maior de biomassa, em larvas de borboletas Poyommatus icarus há incorporação de flavonóides que são componentes secundários de açucares presentes nas plantas; já quando adultas uma dieta liquida que possibilita rápida metabolização, não prejudicando no vôo (Geuder, et al 1997).

Fig.1 Ciclo de vida da borboleta, um inseto holometábolo.

O tipo de dieta associada ao estágio de desenvolvimento em borboletas provavelmente leva em consideração a rapidez com que alimentos líquidos (sacarose) são digeridos e a capacidade de chegar até a fonte alimentar. No caso do indivíduo adulto,

Page 63: Livro CI 2007

  55

pela possibilidade de rápida locomoção pelo vôo tornam esta estratégia alimentar mais viável, além de já estar acompanhada pelas modificações sofridas durante o período de metamorfose, no qual se estabelece a peça bucal lambedor/sugador, permitindo a coleta de alimentos líquidos.

Assim os sistemas alimentares desempenham um papel essencial no fornecimento de energia por meio da digestão e da absorção de alimentos e na remoção de sustâncias indigeríveis e subprodutos tóxicos da digestão.

Os processos metabólicos exercem um papel fundamental nos mecanismos que promovem a homeostase, e para tal há mecanismos de transporte interno que asseguram a movimentação dos nutrientes obtidos.

O coração dos insetos geralmente repousa dentro de um seio pericárdio dorsal, separado por um diafragma dorsal perfurado do seio perivisceral que circunda o intestino. Pode também haver um diafragma ventral separando o cordão nervoso do seio perivisceral. O coração é tubular e, na maioria das espécies, estende-se através dos nove primeiros segmentos abdominais. Em cada segmento, um par de músculos alares se estendem lateralmente do coração para parede corporal dentro do diafragma dorsal de camada dupla. As contrações dos músculos alares fazem com que o coração se expanda e o sangue passe através dos óstios cardíacos. Essa fase de preenchimento é seguida por uma onda de contrações das células mioepiteliais da parede cardíaca, sendo o sangue empurrado para frente. O coração é fechado posteriormente, mas anteriormente é contínuo com aorta que corre para a cabeça. O sangue normalmente flui da parte posterior para a parte anterior no coração e da parte anterior para a posterior dentro dos seios perivisceral e perineural. As perfurações no diafragma dorsal permitem o retorno do sangue no interior do seio pericárdio. O fluxo sanguíneo pode ser aumentado por estruturas pulsatórias acessórias na cabeça, tórax, pernas ou asas e por contrações do diafragma dorsal. Em muitos insetos de vôo rápido, existe um “coração” torácico adicional que puxa o sangue através das asas e o descarrega no interior da aorta. O fluxo sanguíneo também é facilitado por vários movimentos corporais, tais como as contrações abdominais ventilatórias (Barnes e Ruppert, 1984).

Além de efetuarem o transporte sanguíneo, as elevações localizadas da pressão sanguínea podem servir para uma variedade de funções, tais como descarte das asas pelos cupins, o desenrolamento da probóscide nos Lepidóptera, a eversão de vários órgãos, a egestão de pelotas fecais e o inchaço do corpo durante a muda e eclosão.

O sangue dos insetos é geralmente incolor ou verde, com vários tipos de hemócitos, alguns dos quais fagocitários. Alguns insetos possuem agentes coagulantes no sangue, mas a maioria das espécies fecha ferimentos com tampa de células. Como a troca gasosa tecidual é realizada diretamente pelo sistema traqueal, o sangue exerce papel muito pequeno no transporte gasoso. A maioria dos animais conta com íons inorgânicos (tais como íons sódio e cloreto) como reguladores osmóticos do fluido corporal. Nos insetos, as moléculas orgânicas (especialmente os aminoácidos livres) são mais importantes nessa função. A hemolinfa também contém altas concentrações de ácido úrico dissolvido, fosfatos orgânicos e um açúcar não redutor – a trealose.

Muitos insetos das regiões temperadas podem sobreviver a temperaturas congelantes acumulando compostos tais como glicerol, sorbitol e a trealose, que agem como agentes anticongelantes. Alguns insetos são capazes de super-resfriar o sangue e os fluidos celulares para -30ºC sem congelá-los; outros exibem um congelamento controlado, permitindo que se formem cristais de gelo somente nos espaços extracelulares. Proteínas especiais podem ser produzidas para agir como núcleos na formação de cristais de gelo (Barnes e Ruppert, 1984).

Trocas Gasosas As trocas gasosas nos insetos ocorrem através de um sistema de traquéias. Um par

de espiráculos se localiza geralmente acima do segundo e do terceiro pares de pernas ou somente acima do ultimo par. Os primeiros sete ou oito segmentos abdominais possuem um espiráculo em cada superfície lateral. Conseqüentemente existe um numero máximo de dez espiráculos. Os espiráculos traqueais, em sua forma mais simples, são meramente orifícios no tegumento interno, como alguns Apterygota. No entanto, na maioria dos insetos, os espiráculos se abrem em um buraco ou átrio, a partir do qual surgem traquéias. O espiráculo é geralmente provido com um mecanismo de fechamento, e em muitos

Page 64: Livro CI 2007

 56 

insetos terrestres, o átrio contém dispositivos filtradores. O mecanismo de fechamento do espiráculo reduz a perda hídrica, e as estruturas filtradoras impedem a entrada de pó e de parasitas, bem como reduzem a perda de água.

O padrão de sistema traqueal interno é variável, mas um par de troncos longitudinais com conexões transversais forma o plano fundamental da maioria das espécies. As traquéias são sustentadas por anéis espirais de cutícula espessados (os tenídios), Os anéis resistem a compressão (ou seja, evitam o colapso), mas permitem o esticamento do tubo. A epicutícula das traquéias não tem o componente céreo típico do exoesqueleto externo. As próprias traquéias raramente são uniformes em tamanho, mas se alargam em vários locais, formando sacos aéreos internos, especialmente nos insetos capazes de vôo rápido. Os sacos aéreos providenciam tanto o armazenamento de oxigênio como a ventilação.

Acreditava-se que a troca através das traquéias ocorresse primariamente por difusão; no entanto, os espiráculos encontram-se fechados a maior parte do tempo, e a troca é provavelmente um resultado tanto da difusão como da ventilação. Os estudos recentes demonstram que os espiráculos se abrem muito brevemente (200 milissegundos) e nem todos imediatamente em resposta a uma redução localizada na pressão hemocélica. O espiráculo é literalmente aspirado aberto, e engole-se um “gole” de ar. A queda da pressão resulta da contração muscular intersegmentar e encontra-se sob controle do sistema nervoso, que por sua vez pode ser regulado pela pressão de oxigênio/dióxido de carbono do sangue. A maioria dos espiráculos se encontram abertas durante o vôo em vez de quando o inseto se encontra em repouso (Barnes e Ruppert, 1984).

Como inseto deve equilibrar a exigência de oxigênio com relação ao risco de perda hídrica, o numero e a duração de espiráculos abertos são geralmente mantidos no nível mais baixo possível.

Os gradientes da pressão ventilatória resultam dos movimentos corporais, predominantemente abdominais, que acarretam a compressão dos sacos aéreos, e a extensão e a contração longitudinais da traquéias. A ventilação é facilitada pela seqüência na qual são abertos e fechados determinados espiráculos.

Insetos Sociais A organização colonial evoluiu em vários filos de animais, mas somente entre poucas

aranhas e alguns insetos e vertebrados encontram-se indivíduos funcionalmente interdependentes, ainda que morfologicamente separados. A condição é, portanto, geralmente descrita como uma organização social.

As Organizações sociais evoluíram em duas ordens de insetos: os Isopteras (que compreendem os cupins) e os Hymenoptera (que incluem formigas, abelhas e vespas). Em todos os insetos sociais, nenhum indivíduo pode existir fora da colônia, e nem pode ser membro de qualquer colônia, mas somente daquela na qual se desenvolveu. Existe um cuidado de incubação cooperativo e uma sobreposição de gerações. Todos os insetos sociais exibem certo grau de polimorfismo, e os diferentes tipos de indivíduos em uma colônia são chamados de casta. As principais castas são os machos, a fêmea (ou rainha) e os operários. Os machos funcionam para a inseminação da rainha, que produz novos indivíduos para a colônia. Os operários proporcionam a sustentação e manutenção da colônia. A determinação das castas é um fenômeno de desenvolvimento regulado pela presença ou ausência de determinadas substâncias fornecidas nos estágios imaturos por outros membros da colônia (Holldobler e Wilson, 1990).

Os cupins vivem em um cupinzeiro geralmente construído no solo e, em muitas espécies, o cupinzeiro pode ser resistente e estruturalmente complexo. Os cupins diferem dos hymenópteros sociais (formigas, abelhas e vespas) pois os operários são indivíduos estéreis de ambos os sexos e como os cupins são hemimetábolos, os operários podem ser juvenis ou adultos. O Macho reprodutor é um membro permanente da colônia. Esta é construída e mantida pelos operários e pode incluir a casta de soldados. Os soldados têm cabeças e mandíbulas grandes e defendem a colônia. Os operários e os soldados não tem asas: estas estão presentes nos macho e nas rainhas somente durante um breve vôo nupcial, durante o qual ocorrem o pareamento e a dispersão.

Exceto quanto às espécies que cultivam fungos, a maioria dos cupins depende de celulose como fonte alimentar e de flagelados simbióticos para digestão de celulose. Como

Page 65: Livro CI 2007

  57

os simbiontes são obtidos por meio de secreções anais passadas de um cupim para outro, a simbiose foi provavelmente um fator importante na evolução do comportamento social nos cupins. (Barnes e Ruppert, 1984).

Termorregulação e Ventilação em Cupinzeiros O modelo utilizado para explicar como se dá o processo de regulação da

temperatura e das quantidades de O2 e CO2 em cupinzeiros foi baseado no trabalho de Korb (2003) onde ele aborda estes aspectos no cupim Macrotermes Bellicosus (Fig.2), que ocorre na África e Ásia, tanto nas savanas como nas Florestas tropicais daqueles continentes. São animais de aproximadamente 1cm que constroem ninhos 1000 vezes maiores do que eles. Estes animais vive em relação de ectosimbiose com um fungo do gênero Termitomyces, cujo ambiente ideal para viver obrigatoriamente deve ter temperatura de 30ºC e baixo nível de concentração de CO2 (Wood and Thomas 1989, McComie and Dharajan 1990 apud Korb 2003). Logo, as necessidades do fungo são primordiais para que os animais possam alimentar-se.

Figura 2. M Bellicosus – Soldado(esquerda); Fungos do gênero Termitomyces (direita).

Existem diferenças entre os montes construídos na savana e na floresta (Fig.3), tanto em relação ao tamanho quanto em relação aos métodos utilizados para ventilar e termorregular o ninho. Esta diferença se deve ao fato das flutuações de temperaturas em cada ambiente. Nas florestas elas são mais sutis, enquanto nas savanas a amplitude térmica chega, em seu máximo, a 30ºC. Os montes construídos nas savanas são grandes, atingindo mais de 8m de altura, enquanto nas florestas, podem surgir montes médios (2m) ou pequenos.

Page 66: Livro CI 2007

 58 

Figura 3. Humano Adulto como Parâmetro de tamanho par um monte (esquerda); Tamanho do monte: a - savana; b e c- floresta.(direita; modificado de Korb 2003).

A arquitetura dos montes pode variar dos mais simples, com uma entrada e uma saída de ar até aos maiores e mais elaborados sistemas de ventilação (Fig.4), principalmente encontrados nas savanas. O tamanho do monte está intimamente ligado com sua arquitetura, tanto interna quanto externa, a fim de que o calor possa ser dissipado ou conservado, além de manter os níveis de O2 e CO2 em padrões ótimos para o fungo.

Temperatura e ventilação estão intimamente ligadas, pois a ventilação é um dos principais fatores de regulação da temperatura. A arquitetura do monte e o calor metabólico também são responsáveis pelo controle de temperatura e umidade do monte. Fatos essenciais quando estamos tratando de uma espécie que depende da produção de um fungo altamente especializado nos quesitos temperatura e concentração de CO2.

Figura 4. Exemplo de ninho com uma entrada de ar central (esquerda); Exemplo de ninho com entradas múltiplas de ar (direita).

O sistema de ventilação é estruturado em passagens de ar através de túneis onde os cupins podem transitar e efetuar correções do mesmo em relação ao vento. Estes animais utilizam a direção do vento para obter uma corrente de ar que atravessa o monte trazendo O2 e levando o CO2. Porém isto causa um problema, pois o ar frio vindo de fora abaixa a temperatura do jardim de cultivo (30°C) para 28ºC e uma variação de 2ºC pode diminuir drasticamente a produção do fungo (McComie and Dharajan 1990 apud Korb 2003). Outro fator a ser considerado é o calor metabólico produzido tanto pelos fungos quanto pelos cupins. Experimentos realizados demonstraram que um monte sem fungos e sem animais tem sua temperatura media em 28ºC. Logo temos uma diferença de 2ºC, que é compensada pelo calor metabólico dos indivíduos.

Colônias muito grandes, como as das savanas, produzem muito calor metabólico, e para perdê-lo utilizam-se da corrente de ar. Então chegamos a um ponto crucial. Colônias pequenas conseguem manter-se sem maiores problemas mantendo o calor metabólico, e as medias e grandes precisam perder um pouco deste calor. A solução encontrada pelos animais foi fazer com que o ar entrasse e saísse através da convecção, ou seja, o ar frio desde e o ar quente sobe (Fig.5). Isso fez com que os montes aumentassem a complexidade de construção de acordo com seu tamanho.

Page 67: Livro CI 2007

  59

Figura 5. Interação entre o tamanho da colônia, a estrutura do monte e o sistema de ventilação (adaptado de Korb 2003).

Como os cupins conseguem dimensionar isso é um assunto pouco conhecido, mas estudos apontam para um comportamento/conhecimento que eles já possuem, pois são capazes de modificar as condições de seu monte de acordo com as exigências do ambiente. Korb 2003 sugere que novas pesquisas devem ser realizadas para que essa questão seja respondida.

Referências Barnes,R.D. Ruppert, E. (1984) Zoologia dos Invertebrados. Roca, 6 ed. São Paulo. Gäde, G., Hoffmann, K.H., Spring, J. H. (1997) Hormonal regulation in insects: fats, gaps and future directions.

Physiological Reviews. 77: 963-1032. Geuder, M., Wray, V., Fielder, K., Proksch, P. (1997) Sequestration and Metabolism of Host- Plant Flavonoids by the

Lycaenid Butterfly. Journal of Chemical Ecology. 23 (5):1361-1372. Holldobler,B., Wilson, E.O. (1990). The Ants. Harvard University Press, Cambridge, Massachussetts. Korb,J. Linsenmair,K.E.(2001) The Causes of spatial patterning of mounds of a fungus-cultivating termite: results from

nearest-neighbour analysis and ecological studies. Oecologia. 127:324-333. Korb, J. (2003) Thermoregulation and Ventilation of termite mounds. Naturwissenschaften. 90:212-219.

Page 68: Livro CI 2007

 60 

Ecofisiologia e ciclos de vida complexos Monique Simon ([email protected]) – Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva

1. Definição de Ciclos de Vida Complexos As histórias de vida de muitos animais desenvolvem-se como fases discretas (ou

seja, não contínuas) que exibem características morfológicas, fisiológicas, comportamentais e/ou ecológicas contrastantes. Estas histórias de vida foram denominadas como ciclos de vida complexos (CVCs). Os CVCs são constituídos por algum grau de metamorfose, fenômeno que medeia a transição abrupta (em um curto período de tempo) entre as fases discretas. Os ciclos de vida constituídos por uma única fase estática ou que muda continuamente (humanos, por exemplo) são considerados como simples.

A definição exata de um CVC é complicada pois a escolha das características que devem apresentar diferenças discretas entre as fases de vida do animal depende da abordagem: se ecológica ou evolutiva (com ênfase em desenvolvimento). Os pesquisadores da área ecológica consideraram como CVCs aqueles nos quais as fases discretas ocorrem em diferentes nichos (onde vive o organismo, o que faz -como transforma energia, como se comporta e reage ao meio físico e biótico -e como se relaciona com outras espécies). Ou seja, um organismo com CVC muda de nicho simultaneamente à metamorfose. Como o conceito de nicho é muito amplo, os ecólogos deram ênfase no uso de diferentes recursos alimentares em cada fase do ciclo.

A aplicação da definição ecológica é criticada em casos nos quais a comparação entre os recursos alimentares, nas diferentes fases do ciclo, é complicada. Estes casos incluem invertebrados marinhos que apresentam larvas que não se alimentam e insetos que apresentam adultos que não se alimentam. Além destes casos, em muitos animais uma dramática mudança de uso de recursos alimentares existe em uma idade ou tamanho particular, mas seus ciclos de vida não são considerados complexos.

A definição evolutiva considera como um CVC um ciclo de vida que contenha duas ou mais fases pós-embriônicas diferindo discretamente na morfologia. Ou seja, em cada fase, o organismo possui aspectos morfológicos (como a forma do corpo) distintos. Os pesquisadores em desenvolvimento admitem, entretanto, que casos intermediários podem existir, nos quais a transição entre fases não é tão abrupta. É bastante provável que exista um gradiente entre ciclos simples e complexos na natureza, com mudanças morfológicas menos ou mais marcantes.

2. Evolução dos Ciclos de Vida Complexos Muitos pesquisadores observaram que a maioria dos animais multicelulares

(Metazoa) apresenta CVCs. Este fato é válido tanto para a definição ecológica quanto para a definição evolutiva de CVC. Dentre os metazoários, grupos de organismos marinhos, de água doce, terrestres e parasitas possuem CVCs, mostrando a independência deste fenômeno diante das condições ambientais. Os CVCs, portanto, são presentes em animais que habitam uma grande gama de habitats.

Em grupos tipicamente considerados de CVCs como anfíbios e insetos holometábolos (aqueles que possuem 4 estágios de desenvolvimento: ovo – larva – pupa – adulto), a distribuição filogenética de CVC junto de evidências fósseis indica sua existência há 200 milhões de anos atrás! Em invertebrados marinhos, os CVCs são ainda mais antigos. Possivelmente, nos metazoários como um todo, o ciclo de vida primitivo é um CVC com uma larva que sofre metamorfose para tornar-se um adulto. Dados de homologia (mesma origem embrionária) entre larvas de diferentes filos em combinação com dados paleontológicos implicam que os CVCs devem datar aproximadamente 550 milhões de anos, na época da radiação do Cambriano.

A alta proporção de espécies animais com CVCs é devida principalmente ao sucesso adaptativo (sucesso na sobrevivência e na reprodução) destas espécies e não devido a uma alta freqüência de origens de CVCs. Provavelmente a origem de larvas e adultos como fases discretas separadas por metamorfose ocorreu apenas uma única vez no ancestral de todos os Holometabola e de todos os Amphibia.

As teorias para a origem e persistência de CVCs podem ser agrupadas em três grupos. A primeira é uma perspectiva ecológica iniciada pelo pesquisador Istock em 1967:

Page 69: Livro CI 2007

  61

CVCs são mecanismos para uma mudança adaptativa entre maneiras alternativas de alocar recursos. Estes recursos são traduzidos em alimentação e fatores que influenciam a sobrevivência das espécies. Este modelo sugere que em ambientes heterogêneos ou variáveis, os organismos com CVCs teriam vantagem, pois aproveitariam como recurso alimentar o que está em maior abundância, ou maior facilidade de acesso.

Outros pesquisadores adotaram o modelo de Istock, considerando que os CVCs são adaptações para a exploração de oportunidades transientes de crescimento. Wassersug (1975) argumentou que o estágio larval (girinos) de anfíbios anuros (grupo de sapos, rãs e pererecas) é adaptado para explorar recursos alimentares transientes, particularmente em ambientes aquáticos com alta produtividade primária (poças d’água, por exemplo). Wilbur (1980) enfatiza que um ambiente de alta produtividade permite um rápido crescimento e alta densidade populacional, e que o fato de poças d’água serem efêmeras elimina a existência de predadores de grande tamanho, como peixes e alguns invertebrados.

A segunda teoria que procura explicar a origem e persistência dos CVCs também é de perspectiva ecológica e se assemelha à primeira teoria: CVCs são adaptações para a existência de fenótipos (expressão de um genótipo, de um conjunto de genes, em interação com o ambiente) discretos especializados em funções distintas. A contribuição de cada fase para a aptidão (‘fitness’ – sucesso adaptativo) do organismo envolve características reprodutivas, seleção de habitat ou dispersão, e não somente maneiras alternativas de alocação de recursos alimentares como a teoria de Istock. Segundo este modelo, existe, por exemplo, uma fase adaptada para a dispersão, e outra para crescimento. Isto ocorre com anfíbios (girinos crescem e adultos dispersam), alguns insetos (larvas crescem e adultos alados dispersam), e em alguns invertebrados marinhos (larvas dispersam e adultos sésseis crescem).

A terceira e última teoria contrasta com as duas anteriores: CVCs não são adaptativos, mas resultam de constrições (comprometimento) de desenvolvimento. Segundo esta perspectiva evolutiva, os CVCs existem não porque foram selecionados, não porque trazem vantagem adaptativa aos organismos, mas porque são necessários como parte de vias de desenvolvimento inflexíveis. Os organismos estão comprometidos com programas de desenvolvimento complexos, que envolve muitos genes e precisão na seqüência dos eventos. Estes processos interligados restringem as respostas à seleção natural, e a teoria das constrições de desenvolvimento sugere que a metamorfose diminua estas restrições por tornar alguns processos de desenvolvimento mais independentes uns dos outros, e, portanto mais responsivos à seleção natural.

3. Ecofisiologia dos Ciclos de Vida Complexos Os organismos de CVCs que mudam de nicho após a metamorfose sofrem

diferentes pressões ambientais em cada fase do ciclo. Isto porque em cada fase o organismo ocupa um habitat distinto e realiza diferentes interações com o meio e os demais organismos. A mudança de nicho provoca alteração do nível trófico ocupado na teia alimentar, do grau de competição sofrido (e portanto da densidade de competidores), do grau de predação e identidade dos predadores, além de possíveis alterações do meio físico, como do clima (temperatura, umidade, pH). Todas estas mudanças na vida do organismo trazem também novas respostas fisiológicas e comportamentais, que são selecionadas para tornar o organismo adaptado ao seu novo habitat. Sendo assim, a metamorfose provoca alterações do aparelho bucal (que se torna adaptado ao novo tipo de alimentação – herbívoro, carnívoro, filtrador, insetívoro), da maneira de locomoção (ex: larvas natantes para adultos saltadores em anfíbios, ou larvas terrestres para adultos voadores em insetos), de resistência a fatores físicos (como temperatura) e de outras características fisiológicas.

Em experimentos de tolerância térmica em anfíbios anuros foi observado que as larvas resistem a maiores temperaturas que os juvenis e adultos. Isto está relacionado às diferentes temperaturas nas quais os organismos em diferentes fases são expostos por ocuparem nichos distintos. Os girinos vivem em ambientes aquáticos mais expostos a altas temperaturas, enquanto os juvenis e adultos, que são terrestres, podem termorregular (controlar sua temperatura corpórea) através de comportamentos como se esconder em frestas de rochas ou locais sombreados.

Muitos pesquisadores de animais com CVCs estudam as alterações que ocorrem na duração do estágio larval em resposta a dicas ambientais. As taxas fisiológicas de

Page 70: Livro CI 2007

 62 

crescimento e de desenvolvimento de larvas são bastante afetadas por fatores ecológicos como temperatura, densidade, predação e pH. As larvas de alguns invertebrados marinhos tornam-se aptas à metamorfose em um certo ponto de seu desenvolvimento, significando que se tornam responsivas a dicas ambientais externas que podem desencadear a metamorfose em habitats apropriados para o crescimento e sobrevivência dos juvenis. Na ausência destas dicas, o estágio larval pode ser prolongado, e as larvas continuam a crescer, mas a taxa de desenvolvimento é desacelerada.

Entretanto, um pesquisador chamado Jan A.Pechenik observou que existem larvas de invertebrados marinhos que atrasam sua metamorfose, ou seja reduzem sua taxa de desenvolvimento, mesmo estando aptas para a transformação. Este fenômeno ocorre em ascídias, crustáceos, moluscos bivalves, poliquetos (vermes), e outros grupos. Pechenik também observou que esta habilidade de atrasar a metamorfose variava bastante entre espécies e dentro da mesma espécie. Alguns indivíduos atrasavam e outros não, em resposta ao mesmo estímulo.

As larvas de anfíbios anuros também são capazes de alterar sua taxa de desenvolvimento em resposta a fatores ambientais. Muitos exemplos são provindos de animais que habitam ambientes extremos, como desertos, nos quais o ambiente larval (aquático) é bastante efêmero. Foi observado que girinos de espécies desérticas são capazes de adiantar a metamorfose em resposta a fatores ambientais que indicam a proximidade de deterioramento do ambiente larval. Pesquisadores mostraram que a taxa de desenvolvimento pode ser acelerada em resposta ao aumento da temperatura da água e até mesmo à redução do nível da água, simulando a secagem gradual das poças. Assim como Pechenik observou para os invertebrados marinhos, algumas larvas de anfíbios não responderam à redução do nível de água.

A capacidade de acelerar ou atrasar a metamorfose demonstra uma plasticidade fenotípica, ou seja, uma capacidade de alterar a fisiologia e/ou a morfologia em decorrência de sua interação com o ambiente. Espécies com grande potencial para plasticidade em caracteres ligados à sobrevivência apresentam vantagens adaptativas em ambientes instáveis, heterogêneos ou de transição, como muitos ambientes larvais de animais com CVCs.

4. A metamorfose é um novo começo? Considerando-se as duas primeiras teorias para a existência de CVCs, de que eles

são adaptações para maneiras alternativas de alocação de recursos alimentares ou de que cada fase é adaptada para exercer uma função diferente (reprodução, crescimento, dispersão), alguns pesquisadores sugeriram a hipótese de desacoplamento entre as fases pré e pós-metamórficas. Esta hipótese considera que as diferentes fases dos CVCs são independentes quanto à sua evolução, sendo que as pressões ambientais sofridas por uma fase, e as conseqüências fisiológicas e comportamentais resultantes, não interferem na próxima fase.

A existência de uma independência entre as fases dos CVCs significa que a metamorfose representa um novo começo para os organismos ao longo de sua história de vida. Um maior sucesso adaptativo poderia ser obtido com esta independência de fases, pois cada fase teria um fenótipo somente respondendo às pressões de seu nicho, e não ao conjunto de pressões de todos os nichos que ocupar ao longo de sua vida, que podem ser pressões opostas. A independência de fases permitiria uma otimização do desempenho do organismo em cada fase.

A hipótese de desacoplamento sugere que não existam correlações genéticas entre características das fases pré e pós-metamórficas, reduzindo a possibilidade de ocorrência de ‘tradeoffs’. Tradeoff significa uma ligação entre dois ou mais caracteres, que afetam a aptidão relativa de um genótipo e portanto são suscetíveis à seleção natural, que impede a evolução independente dos mesmos. Existem vários tipos de tradeoffs que representam a ligação de diferentes caracteres. Um exemplo fácil é o tradeoff especialista-generalista, que mostra que um organismo não pode ser especializado em um ambiente e também ser um generalista. Um organismo que se torna altamente adaptado para possuir bom desempenho a altas temperaturas, não terá um bom desempenho também a temperaturas mais amenas ou baixas. Outro exemplo é no caso de seres humanos: um atleta de resistência não pode ser ao mesmo tempo um atleta de velocidade. As características musculares e cardiovasculares adaptam-se para um fenótipo ou o outro.

Page 71: Livro CI 2007

  63

Apesar das vantagens que os autores da hipótese de desacoplamento sugerem, da independência entre as fases dos CVCs, muitos estudos recentes mostram que esta hipótese não é verdadeira para diversos grupos de animais. Estes estudos demonstraram que as experiências larvais interferem nas fases seguintes, indicando uma dependência entre as fases dos CVCs. Nos últimos 25 anos, efeitos deletérios do atraso da metamorfose têm sido demonstrados para um grande número de diferentes espécies e diferentes filos, e outras experiências larvais que influenciam o sucesso das fases pós-metamórficas foram descobertas: estresse nutricional, estresse osmótico, exposição à radiação ultravioleta, além de exposição a concentrações subletais de poluentes.

A interferência de eventos larvais nas fases seguintes foi denominada de efeito latente ou efeito de alastramento (‘carryover effect’), indicando que eventos que se originam na fase larval manifestam-se apenas nos estágios juvenil ou adulto. Diversos experimentos em laboratório com invertebrados marinhos mostraram existência de efeitos latentes ou alastrantes. Larvas do briozoário Bugula stolonifera e da ascídia Diplosoma listerianum, organismos que formam colônias, foram induzidas a atrasar a metamorfose em 2 a 10 horas. Como efeito latente, a taxa de desenvolvimento das colônias foi bastante reduzida. Este efeito pode durar por semanas, nas quais o desenvolvimento é lento e a maturidade sexual é atrasada.

O estresse nutricional de larvas através de privação de alimento também produziu efeito latente no molusco gastrópoda (que produz concha) P. sibogae. A criação das larvas em água do mar filtrada resultou em menor massa corpórea juvenil, menor peso na maturidade sexual e maior tempo médio para chegada à maturidade sexual. Entretanto, a sobrevivência e longevidade dos adultos não foram afetadas, mostrando que pode ocorrer uma recuperação no estágio adulto destes efeitos deletérios.

A exposição de invertebrados marinhos a poluentes também pode gerar efeitos latentes. Larvas do briozoário Watersipora subtorquata foram expostas à concentração subletal de cobre por 6 horas e, posteriormente, as colônias resultantes destas larvas permaneceram 11 semanas em ambiente natural, sem poluentes. Mesmo após todo esse tempo em ambiente despoluído, as colônias tiveram sua sobrevivência reduzida, ou seja, o efeito latente ainda se manifestou 12 a 14 semanas mais tarde!

Interessante notar que os efeitos latentes podem explicar pelo menos uma parte da variação nos tipos de resposta existentes nos indivíduos de uma mesma espécie, por exemplo, em taxas de crescimento, na sobrevivência, em tolerâncias ao calor, à poluição e à desidratação.. As respostas diferenciadas podem surgir da variação na qualidade do ambiente de ovos e embriões em diferentes microhabitats ou nascidos em tempos diferentes.

Diversos tipos de efeitos latentes e de tradeoffs entre caracteres larvais e estágios subjacentes também foram descobertos em anfíbios anuros. Dois pesquisadores suíços, Res Altwegg e Heinz-Ulrich Reyer, manipularam a duração do estágio larval e o tamanho de larvas de rãs aquáticas na metamorfose através de sua criação em diferentes densidades, presença ou ausência de predadores (larvas de libélula) ou em diferentes regimes de secagem da água. Estes fatores do ambiente larval foram variados para produzir juvenis de diferentes tamanhos, que foram observados por três anos em ambiente natural cercado. Os juvenis foram marcados e recapturados regularmente para se determinar a sobrevivência e caracteres morfológicos como comprimento corporal e da tíbia. Os pesquisadores observaram que um maior tamanho de larva na metamorfose sempre levou a maior sobrevivência dos juvenis e que uma maior taxa de desenvolvimento sempre levou a maior taxa de crescimento dos juvenis. Altwegg e Reyer mostraram empiricamente que juvenis maiores possuem maior sobrevivência, provavelmente pela correlação positiva entre maior tíbia e melhor desempenho locomotor, um tradeoff conhecido para anfíbios anuros. Ou seja, juvenis maiores pulam mais e tem maior chance de escapar de predadores e capturar alimento.

Seguindo a hipótese de que experiências larvais afetam o desempenho de juvenis e adultos, um pesquisador americano, James R. Vonesh, examinou os efeitos de predadores de ovos e de larvas da rã africana Hyperolius spinigularis no desempenho larval, no tamanho das larvas na metamorfose e na predação de juvenis. Vonesh quis determinar o quanto que reduções na densidade larval, devida à predação de ovos, afeta a sobrevivência larval e a massa corpórea na metamorfose. Ele também quis verificar o quanto que diferenças no tamanho dos juvenis (resultantes das diferenças na massa das

Page 72: Livro CI 2007

 64 

larvas) afeta sua sobrevivência diante de seu predador, uma aranha pescadora. Vonesh percebeu que a ação de predadores em estágios iniciais afeta os subseqüentes por alterar a densidade de indivíduos destes estágios, e portanto, alterar a força de competição por alimento. A predação dos ovos reduziu a densidade larval inicial, e a predação das larvas reduziu a densidade ainda mais, resultando em um aumento da massa na metamorfose de 91%, em comparação com ambientes de maior densidade! Os juvenis maiores tiveram maior sobrevivência nos encontros com as aranhas aquáticas por conseguirem escapar mais vezes que juvenis menores. Vonesh também verificou que os juvenis menores não tiveram um crescimento compensatório para tornarem-se adultos maiores, e este resultado difere do visto em alguns invertebrados marinhos nos quais os adultos conseguiram aumentar sua taxa de crescimento.

Um outro estudo realizado em 2005 também mostrou que o tamanho de um organismo em um estágio interfere na sobrevivência dos estágios seguintes na rã Rana arvalis. Os pesquisadores observaram que um maior investimento materno, que resulta em ovos de maior tamanho (com mais substrato energético para os embriões), resulta em larvas de maior massa que sobrevivem melhor em ambientes ácidos do que larvas menores. Este estudo mostra que até mesmo carateres maternos podem interferir no desempenho de larvas, aumentando a abrangência dos efeitos latentes.

Todos estes estudos científicos realizados em invertebrados marinhos e em anfíbios anuros revelam que existe um acoplamento entre as fases pré e pós-metamórficas em organismos com CVCs, ao menos nestes grupos estudados. Portanto, a metamorfose não é um novo começo para estes animais. A descoberta de efeitos latentes ressalta para a importância de se estudar mais de uma fase dos CVCs para se compreender as respostas geradas por organismos que os possuem.

Referências

Moran, NA. 1994 Adaptation and Constraint in the Complex Life Cycles of Animals, Annu. Rev. Ecol. Syst. 25: 573-600. Wilbur, HM. 1980 Complex Life Cycles, Annu. Rev. Ecol. Syst. 11:67-93. Pechenik, JÁ. 2006 Larval Experience and Latent Effects – Metamorphosis is not a new beginning, Integrative and

Comparative Biology, 46:323-333. Sherman, E. 1979 Ontogenetic Change in Thermal Tolerance of the Toad Bufo woodhousii fowleri, Comp. Biochem.

Physiol. 65A: 227-230. Floyd, RB. 1983 Ontogenetic Change in the Temperature Tolerance of Larval Bufo marinus (Anura: Bufonidae), Comp.

Biochem. Physiol. 75A: 267-271. Thumm, K. and Mahony, M. 2006 The Effect of Water Level Reduction on Larval Duration in the Red-crowned Toadlet

Pseudophryne australis (Anura: Myobatrachidae): Bet-hedging or predictive plasticity?, Amphibia-Reptilia, 27: 11-18.

Angilleta, MJ Jr., Wilson, RS., Navas, CA. And James, RS. 2003 Tradeoffs and the Evolution of Thermal Reaction Norms, TRENDS in Ecology and Evolution, 18:234-240.

Altwegg, R. and Reyer, HU. 2003 Patterns of Natural Selection on Size at Metamorphosis in Water Frogs, Evolution, 57: 872-882.

Vonesh, JR. 2005 Sequential Predator Effects across Three Life Stages of the African Tree Frog, Hyperolius spinigularis, Oecologia, 143: 280-290.

Ficetola, GF. And Bernardi, F de. 2005 Trade-off between Larval Development Rate and Pos-metamorphic Traits in the Frog Rana Latastei, Evolutionary Ecology, 20: 143-158.

Räsänen, K., Laurila, A. and Merilä, J. 2005 Maternal Investment in Egg Size: environment- and population-specific effects on offspring performance, Oecologia, 142: 546-553.

Page 73: Livro CI 2007

  65

Fisiologia da Estivação Isabel Cristina Pereira ([email protected]) – Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva

Em certos grupos de animais a sobrevivência durante o período de estiagem está associada ao comportamento de estivação (Abe, 1995; Storey & Storey, 1990; Pinder et al., 1992). Estivação é um conjunto de estratégias adotadas para sobrevivência em condições áridas, mas também pode estar associado com a falta de alimentação e com altas temperaturas. É um fenômeno complexo que pode ser influenciado por reajustes metabólicos para otimizar as funções do organismo durante os meses de dormência. Essas mudanças incluem uma maior dependência da oxidação de reservas de lipídeos e uma baixa taxa de gluconeogênese de glicerol ou aminoácidos para manter o suplemento de glicose no organismo (Fuery et. al., 1998). Particularmente em anfíbios anuros, a estivação é também caracterizada por uma drástica redução na respiração cutânea com conseqüente redução da perda de água (Guppy & Withers 1999; Abe, 1995; Guppy, et. al., 1994; Hochachka & Guppy 1987).

A estivação também é caracterizada pela redução da taxa metabólica, processo aparentemente desencadeado em resposta a diminuição da disponibilidade de recursos tróficos, hídricos ou a exposição à altas temperaturas que acompanham a seca, e parece contribuir para manutenção do balanço energético no organismo como um todo, promovendo sua sobrevivência durante esta fase (Pinder at. al., 1992). Para certos grupos de animais, o hipometabolismo que acompanha a estivação é tipicamente caracterizado pela diminuição dos movimentos, da alimentação, dos batimentos cardíacos e da atividade cerebral, (Secor, 2005; Storey & Storey, 1990; Pinder et. al., 1992), assim como parece estar diretamente associado a importantes modificações nos processos bioquímicos em diversos tecidos (Hochachka & Somero, 1984). Um dos ajustes metabólicos mais visíveis está relacionado com o acúmulo prévio de reservas energéticas em adição à redução da taxa metabólica, o que parece sustentar não somente a fase depressiva, mas também a retomada da atividade durante a re-hidratação (Pinder et. al., 1992; Storey & Storey, 1990).

Esta depressão metabólica associada a estiagem é relatada para vários organismos, incluindo bactérias e fungos. Os esporos de bactérias podem sofrer um estado de dormência desencadeado por altas temperaturas e diminuição de recursos hídricos, e uma depressão metabólica similar é relatada para esporos de fungos (Guppy & Withers, 1999). Os anelídeos também respondem a diminuição de recursos hídricos com a diminuição da taxa metabólica e algumas espécies formam um tipo de “casulo” que mantem a umidade do microhabitat e juntamente com a formação do “casulo” diminuem o metabolismo. Entre os moluscos há casos extremos como o da Aspatharia chaiziana, um bivalve que sobrevive doze meses imerso. Para os crustáceos também são relatados longos períodos de dormência que podem atingir um ano em Streptocephalus torvicornis. Foram encontrados exemplares de Biomphalaria tenagophila estivando em dois municípios do Estado de São Paulo (Brasil): Ubatuba e Conchas. Os caramujos estavam enterrados em fendas do solo ressecados, e, em laboratório, voltaram a exibir atividade depois de colocados em água (Teles & Marques, 1989). O estado de estivação do molusco Achatina fulica caracteriza uma das principais estratégias de sucesso na sobrevivência e ocupação da espécie nos diversos ambientes, é uma espécie invasora que se adaptou a diversos ambiente utilizando essa estratégia. A razão pela qual Achatina fulica entra em estivação é a mesma que os demais gastrópodes, uma vez que as condições ambientais se tornam desfavoráveis o caramujo seleciona um local protegido, se retrai no interior da concha e a fecha com o epifragma. O epifragma vai sendo formado a partir do perístoma, sendo composto basicamente de carbonato de cálcio. Dessa forma, diminuem a exposição da área do corpo sujeita a evaporação e às atividades fisiológicas, garantindo a manutenção das reservas energéticas e da água corporal em níveis compatíveis a sua sobrevivência.

Nos insetos a estivação pode ocorrer em diferentes fases do ciclo de vida, como ovo, pulpa, larva ou mesmo nos adultos. Particularmente nos insetos o estágio de dormência desencadeado pelo calor ou até mesmo pelo frio recebe o nome de diapausa, durante esse período o crescimento é interrompido para evitar gastos energéticos. Os ovos de alguns insetos chegam a sofrer uma depressão metabólica de 50%, enquanto outros parecem não sofrer uma depressão maior que 3%.

Page 74: Livro CI 2007

 66 

A tartaruga Clemmys guttata parece em verões mais quentes enterram-se na lama dos charcos e passam por um período de estivação até que as condições estejam mais amenas. O cágado-mediterrânico Mauremys leprosa é um réptil autóctone bastante comum em terras lusitanas. Esse cágado, da família Bataguridae, habita preferencialmente charcos, albufeiras, ribeiras e rios, é um réptil de hábitos diurnos, que podem hibernar nas épocas mais frias ou apresentar períodos de estivação durante o verão intenso e neste período ele se enterra na lama próximo a onde vive.

Para entrar neste estado hipometabólico os organismos seguem sinais externos, como temperatura, umidade, pressão atmosférica e mudanças no fotoperíodo. Outros seguem ainda o nível da água, como é o caso dos peixes pulmonados, que dependendo da profundidade do corpo de água onde vivem, podem se enterrar na lama e entrarem em estivação. A taxa metabólica destes animais durante a estivação é de aproximadamente um terço da taxa metabólica durante o período de atividade. Durante a época das chuvas o peixe cresce e acumula reservas energéticas, e com a chegada da estiagem e, conseqüentemente, com a baixa das águas, deixa de se alimentar e mergulha na lama, cavando um canal de aproximadamente um metro de profundidade no lodo e esta galeria termina numa ampla câmara que varia de tamanho de acordo com as dimensões do peixe e permanece tornando-se pouco ativo, em estado hipometabolico. Normalmente os peixes pulmonados ficam menos de seis meses em estivação, mas podem permanecer neste estado até quatro anos sob condição de hipometabolismo forçado. Os lipídeos são as principais reservas, mas quando acabam, as proteínas passam a serem utilizadas, como no peixe Synbranchus marmoratus que após 15 e 45 dias de estivação artificial induzida, teve consumo de reserva lipídica substituído pelo consumo de reserva protéica. Peixes pulmonados Lepidosiren paradoxa capturados durante o período em que estão enterrados na lama (estivação) têm alta capacidade anaeróbica dos músculos esquelético e cardíaco durante este período, quando as enzimas representativas da via aeróbia mostram níveis bastante inferiores (indicando supressão metabólica) em relação aos animais ativos.

Durante o estado de atividade o principal combustível para o metabolismo é o glicogênio para o metabolismo aeróbio ou anaeróbio e o lipídeo para o metabolismo oxidativo, o glicogênio é depositado em todos os tecidos, mas nos vertebrados costuma ser encontrado em maior quantidade no fígado. Em adição ao lipídeo e ao glicogênio, os aminoácidos são utilizados. Durante a estivação de peixes pulmonados não há acúmulo de corpos cetônicos e as proteínas são mobilizadas do músculo branco.

Na rã Neobatrachus wilsmorei, o consumo de oxigênio é reduzido em 80 à 85% durante o período de inatividade quando comparado aos valores observados durante o estado normal de atividade nos meses de chuva (Hand & Hardewing, 1996). Assim, essa drástica redução do metabolismo aeróbio contribui para o balanço hídrico no organismo como um todo, especialmente nas espécies terrestres (Abe, 1995). Bufo alvarius, Ceratophrys ornata e Pyxicephalus adspersus apresentam uma redução de 20% na taxa metabólica quando induzidos à estivação (Secor, 2005). Adicionalmente, ajustes específicos sobre as vias de metabolização de substratos energéticos modulam a mobilização desses compostos em adequação a demanda dos tecidos (Guppy, et. al., 1994). Durante a estivação do sapo Scaphiopus couchii, os estoques hepáticos de glicogênio são amplamente preservados durante a fase hipometabólica, o que sugere uma baixa utilização de carboidratos durante este período (Storey & Storey, 1990). Estudos in vitro em fígado de Neobratrachus centralis, um sapo estivador do deserto australiano, indicam uma diminuição de 67% da síntese de proteínas durante a estivação. O anfíbio Dermatonotus muelleri constrói uma câmara subterrânea onde permanece em estivação durante o período de seca e imediatamente após as condições voltarem a serem favoráveis ele retorna a atividade tendo uma reprodução explosiva. A maioria das espécies que utilizam as estratégias de estivação possui reprodução explosiva, devido ao fato de aproveitarem o curto período de chuva para se reproduzirem.

Já com relação aos estoques de lipídeos, pouco é conhecido do ponto de vista energético sobre as alterações sazonais desses compostos em anuros que estivam, especialmente pela limitada capacidade de armazenamento nesses animais, muitas vezes restrita aos tecidos hepático e muscular (Duelman & Trueb, 1986), entretanto, algumas espécies de anfíbios anuros e lagartos possuem estoques de lipídeo na forma de corpos gordurosos, que podem estar localizados geralmente na parte posterior do abdômen. A ciclagem sazonal de lipídeos parece desempenhar um importante papel durante a

Page 75: Livro CI 2007

  67

reprodução, o que está associado não somente à formação das reservas para os embriões nas fêmeas, mas também com a manutenção da atividade nos machos durante o período de vocalização (Wells, 2001). Já em lagartos Tupinambis merianae, um grupo diferente, mas que também passa por um processo de dormência, estudos realizados mostram que durante a fase de dormência os lipídeos constituem o principal substrato energético para os tecidos (Carvalho et. al., 1996) e que durante este estado há uma depressão metabólica de 75 a 85%, que pode durar de três a quatro meses, período no qual o organismo é mantido aerobicamente, pelo uso de lipídeos como substrato energético, ocorrendo um aumento no depósito de glicogênio no cérebro e músculo cardíaco (Carvalho, 1999).

É provável que um dos grandes desafios para a sobrevivência em condições adversas seja, na verdade, a fase de recuperação e saída do estado inativo (Hochachka e Guppy, 1987). A fase final da estivação em condições naturais apresenta problemas fisiológicos adicionais aos animais, particularmente em locais onde as estações chuvosas são imprevisíveis (Pinder et. al., 1992). Os anfíbios estivadores dessas regiões possuem um comportamento reprodutivo oportunista, baseado na rápida saída do estado hipometabólico nos primeiros dias de precipitação de chuva, quando estes tornam-se aptos à reprodução (Pinder et. al., 1992). Essa preparação para à reprodução inclui tanto a ovogênese quanto o ciclo espermatogênico, processos estes que dependem de considerável investimento energético. Indivíduos de Rana temporaria apresentam espermatogênese normal durante a estivação, mas o prolongamento desse período pode afetar profundamente esse processo (Jorgensen, 1992). Além disso, o sucesso reprodutivo depende diretamente da manutenção dos níveis protéicos durante o período de reprodução, e o emprego de proteínas na manutenção da homeostase energética durante a fase hipometabólica pode comprometer o desempenho em condições normais (Pinder et. al., 1992; Guppy et. al., 1994). Como a síntese protéica possui um alto custo energético, esta é conseqüentemente inibida durante a estivação para evitar gastos energéticos (Hand & Hardewing, 1996), porém é amplamente ativada na fase pós-depressiva em anuros estivadores (Duellman & Trueb, 1986). Em condições adequadas de estoque de nutrientes, os organismos tendem a manter a quantidade de proteínas relativamente constante durante a estivação, como observado em moluscos da espécie Helix apersa durante a depressão metabólica (Pakay at. al., 2002). Entretanto, se a fase prévia de preparação para a entrada em dormência for prejudicada e os estoques energéticos estiverem limitados, as reservas endógenas de proteínas se tornam a mais importante fonte de energia (Hochachka & Somero, 1984). Sob condições extremas o estoque protéico pode representar uma fonte essencial de combustível para o animal (Guppy et. al., 1994; Hochachka & Somero, 1984). Assim, o conjunto dessas evidências sugere que os ajustes fisiológicos relacionados com a estivação em anuros estão intimamente relacionados com a modulação dos processos que produzem e utilizam ATP de um modo geral no organismo, a fim de garantir a sobrevivência nas espécies mais dependentes da disponibilidade de água.

Durante a estivação, o organismo deixa de receber a quantidade de oxigênio suficiente, fazendo com que os tecidos entrem em isquemia (deficiência da circulação do sangue no órgão) ou hipóxia. Depois, quando o sangue volta a oxigenar os tecidos, ocorre um processo de consumo excessivo de oxigênio – causando o estresse oxidativo e conseqüente produção de radicais livres, mas esse fenômeno fica minimizado pelo aumento do número de enzimas antioxidantes produzidas nos tecidos desses animais.

No Brasil determinadas espécies de anuros que se mantêm em atividade durante os meses de estiagem, adotam estratégias alternativas para evitar a perda excessiva de água neste período. A rã Corythomantis greening, possui a pele da cabeça co-ossificada, o que lhe confere proteção e auxilia secundariamente na economia de água, ela não se enterra, mas fica entre fendas nas rochas em estado hipometabólico (Jared, et. al., 2004). Bufo jimi mantém suas atividades mesmo durante a seca, fato que pode estar associado à camada de grânulos de cálcio (Toledo & Jared, 1993), que aparentemente, só não estão presentes na região dorsal próxima à virilha, local por onde os animais obtêm água do ambiente (NAVAS, C. manuscrito em preparação). Além disso, estes animais usualmente procuram proteção em microhabitats úmidos e são ativos apenas à noite quando a temperatura corpórea e as perdas de água são diminuídas (Abe, 1995). Alguns sapos, como os da espécie Proceratophrys cristiceps, se enterram durante o período de seca a profundidades

Page 76: Livro CI 2007

 68 

que podem muitas vezes ser maior que 1 metro (Navas, et. al., 2004), mas não se sabe se esses animais realmente estão em estado hipometabolico. Outras espécies pertencentes aos gêneros Pleurodema, Physalaemus e Ceratophrys também já foram encontradas enterradas a grandes profundidades em leitos secos de rios perenes na região da Caatinga (JARED, C. e NAVAS, C. comunicação pessoal), mas o comportamento de estivação foi verificado apenas em Ceratophrys, as outras espécies ainda estão sendo estudadas para confirmação do uso desta estratégia durante o período de estiagem. Entretanto para o sucesso dessa estratégia algumas variáveis físicas no solo são importantes como a temperatura, a quantidade de água, a concentração de gases respiratórios e o tipo de solo (Pinder et. al., 1992). Além dessas variáveis os animais enterrados no solo podem sofrer com a carência de oxigênio, levando a um estado típico de hipóxia. Estes animais precisam sofrer ajustes comportamentais, um aumento na captação da água através da pele (anfíbios não bebem água), aumento no volume da bexiga, habilidade para sobreviver sem corpos de água, formação de uma capa (casulo) para proteção contra perda de água. Rana temporaria apresenta uma redução na atividade de enzimas do metabolismo energético no músculo esquelético, mostrando uma reorganização da produção energética durante a depressão metabólica (St-Pierre & Boutlier, 2001). Em Bufo paracnemis a diminuição da temperatura corpórea e as respostas fisiológicas à hipóxia contribuem para a manutenção da homeostase do organismo durante a seca ou quando há escassez de alimento (Bicego-Nahas et al., 2001). Os anfíbios também toleram muito bem a desidratação, chegando a suportar uma taxa de até 30%, enquanto para mamíferos esta taxa chega a 12%. Para sapos do deserto que estivam, a taxa de desidratação chega a 50%. Como para os sapos do deserto do Arizona, que se alimentam por aproximadamente três meses e se enterram pelos outros nove meses do ano, e durante esse período eles precisam enfrentar altas taxas de desidratação.

As maiorias dos anfíbios estivadores passam mais tempo na terra do que na água, mas um pequeno grupo faz o contrário, e para esses animais a umidade do solo é extremamente importante durante o período de estivação. Este é o caso de animais como os anuros Xenopus da África, Ceratophrys, da América do Sul e Hyla da Austrália. Esses animais se enterram em pontos nos quais geralmente seriam encontrados durante a estação chuvosa, como leito de rios e lagos.

Apesar de todo o conhecimento existente sobre a estivação em anfíbios anuros e outros vertebrados ectotérmicos, ainda não são claros os mecanismos utilizados por estes animais para lidarem com a imprevisibilidade típica do ambiente da Caatinga, onde as chuvas podem não ocorrer, ou podem ainda chegar de forma totalmente imprevisível. Os indivíduos dessa espécie, assim como outros já vistos na Caatinga (Navas, et. al., 2004), se enterram em grandes profundidades onde, aparentemente, é mantida certa umidade relativa no microhabitat construído.

Referências Abe, A. S. (1995) “Estivation in South American amphibians and reptiles” Brazilian Journal of Medical and Biology

Recherch. 28: 1241-1247. Biego-Nahas, K. C., Gargaglioni, L. H. & Branco, L. G. S. (2001). “Seasonal changes in the preferred body temperature,

cardiovascular and respiratory responses to hipoxia in the toad Bufo paracnemis”. Journal of Experimental Zoology, 289 (6): 359-365.

Carvalho, J. E. (1999) “Controle da homeostase metabólica da dormencia sazonal em lagartos Teiú (Tupinambis merianae)” Dissertação – Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, Departamento de Fisiologia.

Carvalho, J. E., Bianconcini, M. S. C. E Souza, S. C. R. (1996) “Alterações do metabolismo de lipides associadas à dormencia sazonal do lagarto Teiú (Tupinambis teguixin)”. Livro de Resumos

Duellman, W. E., Trueb, L. (1986). Biology of amphibians. McGraw-Hill Book Company, New York. Fuery, C. J., Withers, P. C., Hobbs, A. A., Guppy, M., (1998) “The role of protein synthesis during metabolic depression

in the Australian desert frog, Neobatrachus centralis”. Comparative Biochemistry and Physiology Part A 119, 469-476.

Guppy, M. & Withers, P. (1999) “Metabolic depression in animals: physiological perpectives and biochemical generalizations”. Biol. Rev., 74, pp. 1-40.

Guppy, M., Fuery, C. J. & Flanigan, J. E. (1994) “Biochemical principles of metabolic depression” Comp. Biochem. Phisiol. Vol. 109B, nº 2/3 175:189.

Hand, S. C. & Hardewing, I. (1996) “Downregulation of cellular metabolism during environmental stress: mechanisms and implications”. An. Rev. Phisiol. 58: 539-563.

Hochachka, P. W. & Guppy (1987) Metabolic Arrest and the Control of Biological Time. Havard University Press, pp. 101-119.

Hochachka, P. H. & Somero, G. N. (1984) Biochemical Adaptation. Princeton University Press. 538 p. Jared, C. Antoniazzi, M. M. Navas, C. A. Katchburian, E. Freymuller, E. Tambourgi, D. V. and Rodrigues, M. T. (2004)

“Head, co-ossification, phragmosis anddefence in the casque-headed tree frog Corythomantis greningi”. J. Zool., Lond. 264. 1-8.

Page 77: Livro CI 2007

  69

Jogensen, C. B. (1992) “Growth and Reproduction”. In: Environmental Physiology of the Amphibians. FEDER, M. E. & BURGGREEN, W. W. (eds). Press for University of Chicago, pp. 439-466.

Navas, C. A., Antoniazzi, M. M., JaredD, C., (2004) “A preliminary assessment of anuran physiological and morphological adaptation to the Caatinga, a Brazilian semi-arid environment”. In: Morris, S., Vosloo, A. (Eds.), Animals and Environments. Proceedings of the Third International Conference of Comparative Physiology and Biochemistr, vol. 1275. Elsevier, Cambridge and Oxford, pp. 298-305.

Pakay, J. L., Withers, P. C., Hobbs. A. A. & Guppy, M. (2002) “In vivo dowregulation of protein synthesis in the snail Helix apersa durant estivation” American Journal of Physiology – regulatory integrative and comparative physiology, 283 (1): 197-204.

Pinder, A. W., Storey, K. B. & Ultsch, G. R. (1992) “Estivation and Hibernation”. In: Environmental Physiology of the Amphibians. Feder, M. E. & Burggreen, W. W. (eds). Press for University of Chicago, pp. 250-274.

Secor, S. M. (2005) “Phisiological responses to feeding, fasting and estivaton for anuros” The Journal of Experimental Biology. 208: 2595-2608.

Storey, K. B. & Storey, J. M. (1990) “Metabolic rate depression and chemical adaptation in anaerobiosis, hibernation and estivation”. The quarterly Review of Biology. 65 (2): 154-174.

St-Pierre, J. & Boutilier, R. G. (2001) “Aerobic capacity of frog skeletal muscle during hibernation”. Physiology and Biochemical Zoology, 74 (3): 390-397.

Teles, H. M. S. & Marques, C. C. A. (1989) “Estivação em Biomphalaria tenagophila (Pulmonata, Planorbidae)”. Rev. Saúde Pública vol.23 no.1

Toledo, R. C. and Jared, C. (1993) “Cultaneous adaptations to water balance in amphibians” Comparative Biochemistry and Physiology. Part A 105, 593-608.

Wells, K. D. (2001) “The Energetics of Calling in Frogs”. In: Anuran Communication Ryan, M. J. (ed). Smithsonian Inst. Press. Washington.

Page 78: Livro CI 2007

 70 

A importância dos mecanismos osmorregulatórios na conquista dos diferentes ambientes: Um enfoque em Crustacea Bruno Blotta-Baptista ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia de Crustáceos

Simplificadamente os seres vivos podem ser descritos como sistemas bioquímicos complexos que para uma atividade ótima devem possuir uma concentração de solutos e volume mantidos a limites estreitos. No entanto, as concentrações adequadas dos fluidos corpóreos dos animais diferem das concentrações encontradas no meio ambiente. Dessa forma os animais devem constantemente manter as concentrações iônicas apropriadas do meio interno em contraposição a tendência de diminuição dos gradientes entre o animal e o meio externo e ao equilíbrio entre essas concentrações (SCHMIDT-NIELSEN, 2002)

O surgimento de uma “barreira”, uma estrutura que delimitasse um meio interno e outro externo foi o primeiro passo para a existência de um gradiente. A membrana plasmática por ser seletiva, ou seja, possuir alta permeabilidade a moléculas hidrofóbicas e água (leia sobre “aquaporinas” em HARRIS & ZEIDEL, 1993; GONEN, & WALZ, 2006) e baixa permeabilidade a íons e moléculas hidrofílicas permitiu uma compartimentalização, criando um ambiente intracelular diferente do meio extracelular e externo (ALBERTS et al., 2002).

Os desafios para a manutenção do meio interno são diferentes conforme o ambiente em que o animal habita (marinho, água salobra, água doce e terrestre) e serão abordados separadamente.

1. Padrões de Regulação Osmótica (Florkin, 1960 ; PÉQUEUX, 1995) a. Regulação Isosmótica Intracelular (osmoconformação) Os mecanismos envolvidos nesse processo ajustam os níveis de osmólitos para

manter o meio intracelular isosmótico com o meio extracelular (i.e. hemolinfa) evitando a geração de gradientes osmóticos e de fluxos de água. Apesar de isosmóticos, os meios não são iso-iônicos, gerando gradientes de concentração e com isso uma diferença de potencial que permitem movimentos passivos dos íons entre os meios. Por exemplo, na maioria das células animais, os principais íons do fluido extracelular são o Na+ e o Cl-, enquanto o K+ é o principal íon intracelular. Alguns organismos quando expostos a variação na concentração do meio não são capazes de manter a concentração do líquido extracelular constante e acompanham essas variações. Com isso, as células desses animais estão diretamente expostas as variações externas e devem constantemente reajustar sua concentração osmótica com a do meio, através do influxo ou efluxo de osmólitos. Esses organismos são ditos osmoconformadores.

b. Regulação Anisosmótica Extracelular (osmorregulação) Alguns organismos possuem a capacidade de manter praticamente constante a

concentração do líquido extracelular. Com isso, suas células estão quase sempre expostas a um meio extracelular constante, o que auxilia na manutenção da concentração do meio intracelular. Esses organismos têm uma maior independência das variações do meio externo. São ditos osmorreguladores. Quando a concentração da hemolinfa é mantida acima da concentração do meio o animal é dito um hiperregulador, em oposição a concentração da hemolinfa menor que a do meio, é dito hiporregulador. Apesar dessas definições, quando submetemos um animal a variações no meio externo, podemos observar diferentes padrões de regulação. O que acontece é que muitos organismos se comportam como osmorreguladores em uma determinada faixa de salinidade, e a partir de um ponto passam a comporta-se como osmoconformadores, ou então são hiperreguladores em determinada salinidade e hiporreguladores em outra. Dessa forma, podemos encontrar num mesmo organismo todas as combinações entre hipo-hiperreguação e osmoconformação. A figura 1 ilustra essas possibilidades.

Page 79: Livro CI 2007

  71

c. Faixas de Sobrevivência Tanto animais osmorreguladores quanto osmoconformadores podem estar expostos

a variações na concentração do meio externo. Isso é mais evidente no ambiente estuarino (manguezais) conforme elucidado abaixo. Essa variação pode ser uma situação de estresse (salino) que limita a sobrevivência dos animais nos ambientes. Animais que toleram grandes variações na concentração do meio (> 600 mOsm.Kg H2O-1 ) são chamados de eurialinos. Animais que têm uma sobrevivência mais limitada em relação a concentração do meio são chamados de estenoalinos.

2. O ambiente aquático A superfície terrestre é coberta por aproximadamente 71% de água, sendo que

desses, menos de 1% é água doce. Toda a água possui solutos, e a quantidades de solutos dissolvidos é utilizada para diferenciar os ambientes aquáticos. A água do mar possui 35g de solutos por litro (salinidade 35‰, 1500 mOsm.Kg H2O-1), enquanto a água doce possui quantidades próximas a zero (salinidade 0‰, <0,5 mOsm.Kg H2O-1). A água salobra ocorre em regiões litorâneas onde a água do mar está misturada em quaisquer proporções com a água doce dos rios. É importante do ponto de vista fisiológico, pois representa uma barreira para a distribuição de animais marinhos, bem como de água doce e ao mesmo tempo constitui uma transição interessante entre esses ambientes.

a. O ambiente marinho e seus desafios A maioria das espécies marinha mantém-se isosmóticas ao meio. Dessa forma

evitam a perda/ganho de água passivos (osmose). No entanto, esses animais não são iso-

Osm

olal

idad

e d

a he

mol

infa

Osmolalidade do meio

Figura 1. Alguns padrões de regulação em crustáceos decápodas. A linha diagonal indica uma relação isosmótica (mesmas concentrações) entre a hemolinfa e o meio. (1)Osmoconformador eurialino. (2)Osmorregulador estenoalino. (3)Forte hiper-hiporregulador. (4)Isosmótico em altas salinidades, forte hiperregulador em baixas salinidades. (5)Isosmótico em altas salinidades, fraco hiperregulator em baixas salinidades. (6)Hiper-hiporregulador moderado. (MODIFICADO DE MANTEL & FARMER, 1983 – Todos os direitos reservados)

Linha isosmótica

1

2

3

4

5

6

Page 80: Livro CI 2007

 72 

iônicos, o que significa que as concentrações de alguns íons podem variar em relação as concentrações iônicas do meio. Como estão em um ambiente concentrado, a disponibilidade de íons não é problema para essas espécies. Alguns caranguejos grapsídeos, isópodos e pitus são hiposmóticos ao meio. Com isso existe uma tendência de efluxo de água, que parece ser compensada pela ingestão de água e excreção do excesso de sais pelas brânquias (como ocorre em peixes teleósteos)(ROBERTSON, 1960). Curiosamente esses animais não possuem a capacidade de eliminar íons pela urina, através da secreção pelas glândulas antenais, exceto para o Mg2+ que está cerca de 8 vezes mais concentrado na urina dos crustáceos quando comparado a hemolinfa.

b. A osmorregulação e a invasão dos ambientes de água salobra e dulcícola Os ambientes de água doce e salobra são semelhantes em relação aos seus

desafios osmóticos: representam uma diluição da água do mar, porém em graus diferentes. Enquanto a água salobra pode variar de 0,5 a 30‰, a água doce representa o extremo da diluição, com concentrações muito próximas a zero. Com isso, os mesmos mecanismos e estratégias selecionados evolutivamente são válidos para ambos ambientes.

Quando um crustáceo osmoconformador de água marinha é colocado em meio diluído há uma perda generalizada de íons pela superfície corpórea e urina, a concentração intracelular de íons é perturbada e ocorre influxo de água para as células. Se esses efeitos não forem revertidos, o animal morrerá. Dessa forma, muitos crustáceos marinhos não toleram diluições do meio superiores a 25%(água do mar a 75%) e esse limite representa os níveis nos quais espécies estritamente marinhas estão adaptadas. Considerando o número de ordens, famílias e gêneros de crustáceos que habitam a água salobra e doce, é evidente que a evolução dos mecanismos necessários que permitem a colonização desses ambientes surgiram várias vezes ao longo da escala filogenética (LOCKWOOD, 1967). O mecanismo selecionado ao longo da evolução desses organismos é a capacidade de manter constante a concentração iônica da hemolinfa frente as variações na concentração osmótica do meio (osmorregulação). Os processos envolvidos nessa regulação são: redução na permeabilidade da superfície corpórea, transporte ativo de íons, produção de urina hiposmótica(diluída) e hiperregulação.

Absorção ativa de íons: muitos crustáceos que vivem em água salobra e todos que vivem em água doce mantêm-se hiperosmótcos em relação ao meio. Para isso, devem absorver íons contra um gradiente de concentração, o que só é possível com a participação de transportadores transmembrânicos que utilizam energia(ATP). Uma das características do transporte ativo de íons é apresentar uma cinética saturável, ou seja, atingida uma certa concentração do meio externo não existe aumento na velocidade de transporte do íon. Para esse tipo de transporte podemos definir uma constante (Km), que é utilizado como medida de afinidade do transportador pelo íon. Para o transporte de cálcio realizado por uma cálcio ATPase de membrana plasmática (PMCA), lagostins de água doce apresentam uma maior afinidade pelo íon do que lagostas marinhas (WHEATLY, 1999). Dessa forma, podemos especular que evolutivamente ocorreu um aperfeiçoamento desse mecanismo em animais de água doce, uma vez quer habitam um meio com menor disponibilidade (concentração) de íons quando comparados com animais de água do mar (LOCKWOOD, 1967).

Redução da permeabilidade: a hiperregulação é um balanço entre a tomada ativa de íons e a perda desses íons. Uma redução nessa perda ocasiona um menor gasto energético em sua tomada. A taxa de perda depende da permeabilidade da superfície corpórea aos íons e água, e do gradiente mantido entre a concentração da hemolinfa e meio. Nos animais marinhos a permeabilidade é mais alta, uma vez que as concentrações iônicas do meio e hemolinfa são semelhantes e também permitem uma obtenção de água para produção de urina. A permeabilidade corpórea de animais de água salobra é menor que de animais de água do mar, enquanto os de água doce apresentam as menores permeabilidades. Ainda não é claro como ocorre o controle da permeabilidade, mas ele parece estar relacionado a cutícula (uma camada do exoesqueleto) e com as células epiteliais. Essas últimas participariam em alterações na permeabilidade iônica através do controle dos gradientes eletroquímicos (pro exemplo, -40 mV ao longo da parede corpórea do animal dobrariam o influxo passivo de cátions monovalentes (LOCKWOOD, 1967).

Page 81: Livro CI 2007

  73

Produção de urina diluída: em espécies hiperosmóticas em relação ao meio existe um influxo passivo de água que deve ser eliminado através da urina, conseqüentemente acarretando uma perda de íons. Já nas espécies hiposmóticas existe uma tendência de influxo de íons que devem ser eliminados. No entanto, em crustáceos não é comum a produção de urina diluída (na caso dos hiperreguladores) e a concentrada (no caso dos hiporreguladores). Todos os decápodos marinhos e estuarinos produzem urina isosmótica. Alguns anfípodas estuarinos e lagostins (água doce) possuem a capacidade de produzir urina diluída: com isso, ocorre a eliminação do excesso de água e auxílio na conservação de íons. Essa capacidade parece estar associada a uma estrutura diferenciada na glândula antenal (órgão excretor) desses animais que possuem um ducto longo (canal nefridial) além da participação da bexiga na reabsorção de Na+ e Cl- (LOCKWOOD, 1967; MANTEL & FARMER, 1983).

3. O ambiente terrestre A grande vantagem fisiológica da vida terrestre é a fácil obtenção de oxigênio. A

maior desvantagem é perigo de desidratação (. Por isso alguns crustáceos são dependentes de locais úmidos, principalmente para obtenção de oxigênio, já que suas brânquias devem estar sempre úmidas. Outro fator que os torna dependentes da água é o período reprodutivo, no qual as fêmeas liberam seus ovos/prole na água (braquiúros). Os isópodes terrestres (tatuzinhos-de-jardim) são verdadeiramente terrestres, pois não dependem da água para a reprodução.

a. Desafios e adaptações A maioria dos animais que habitam o ambiente terrestre (Protozoa, Turbellaria,

Annelida, e vertebrados) parecem ter derivado de ancestrais que viveram em água doce. Em contraposição, os crustáceos terrestres parecem ter invadido esse ambiente diretamente do mar.

Quando consideramos a regulação da concentração dos fluidos corporais, os crustáceos terrestres estão expostos aos dois extremos hídricos: excesso de água (chuvas, alagamentos, etc) e desidratação. O excesso de água não é um problemas para animais derivados de água doce, pois esses devem ter herdado dos seus ancestrais a capacidade de elimina-lo. Como a maioria dos crustáceos marinhos não possue a capacidade de produzir urina hiposmótica, é provável que os crustáceos terrestres quando eliminam água pela urina, não sejam capazes de conservar íons. Em água doce/salobra esses íons seriam facilmente recuperados pela reabsorção ativa do meio e/ou urina. No entanto a perda de sais não pode ser reposta tão facilmente no ambiente terrestre e deve ser compensada pela retirada de sais do alimento, tornando-se o epitélio digestório um importante local de regulação iônica.

Crustáceos não possuem a camada de cera presente em insetos e dessa forma perdem água por evaporação. Possuem adaptações comportamentais como, por exemplo, permanecerem em locais úmidos durante o dia e são ativos durante a noite, quando a umidade relativa do ar é maior.

Existe perda de água pela eliminação de compostos nitrogenados, que primariamente é a amônia nos crustáceos aquáticos. Nos terrestres não existe uma tendência a eliminação de compostos nitrogenados que exijam menor quantidade de água (guanina, ácido úrico). Em isópodes existe uma redução na produção compostos nitrogenados. Outros crustáceos parecem armazenar ácido úrico ao invés de excretá-lo (LOCKWOOD, 1967).

Referências Alberts, B. Johnson, A.; Lewis, J.; Raff, M.; Roberts, K. & Walter, P. Molecular biology of the cell. Garland Science,

2002, p. 583-658. Florkin, 1960. Blood chemistry. In: , T. H. (ed.) Physiology of crustacea : metabolism and growth Vol 1. New York :

Academic Press, 1960, p. 141-159. Gonen, T. & Walz, T. The structure of aquaporins. Q. Rev. Biophys. 2006, 39:361-96. Harris HW, Zeidel ML. Water channels. Curr Opin Nephrol Hypertens. 1993 2:699-707. LOCKWOOD, A.P.M. Osmotic and ionic regulation. In: LOCKWOOD, A.P.M. (ed.) Aspects of the physiology of

crustacea. San Francisco : W. H. Freeman, 1967, p. 11-63. Mantel, L. H. & Farmer, L. L. Osmotic and ionic regulation. In: Bliss, D. E. & Mantel, L. H. (Eds.) The Biology of

Crustacea, vol 5. London: Academic Press, 1983. p. 54-126. Péqueux, A. Osmotic regulation in crustaceans. J. Crust. Biol. 1995, 15: 1-60. Robertson, J. D. Osmotic and ionic regulation. In: Waterman, T. H. (ed.) Physiology of crustacea : metabolism and

growth Vol 1. New York : Academic Press, 1960, p. 317-339.

Page 82: Livro CI 2007

 74 

Schmidt-Nielsen, K. Fisiologia Animal: Adaptação e Meio Ambiente, São Paulo, Santos Livraria Editora, 2002. p. 301-354

Wheatly, M. G. Calcium homeostasis in Crustacea: The evolving role of branchial, renal, digestive and hypodermal epithelia. J. Exp. Zool. 1999, 283: 620-40.

Page 83: Livro CI 2007

  75

Efeitos de poluentes e respostas ecofisiológicas em divesos níveis tróficos diante de estressores ambientais Tiago Gabriel Correia ([email protected]) - Laboratório de Metabolismo e Reprodução de Organismos Aquáticos

1. Introdução: Poluentes, organismos e ecossistemas. A presença de substâncias estranhas de origem antrópica nos ambientes aquáticos

acarretam em alterações sobre a integridade abiótica dos ecossistemas e também sobre os organismos residentes. Estas substâncias, poluentes ou estressores, podem afetar diversos níveis de organização biológica (celular, individual, populacional), entretanto, sua ação deletéria sobre os ecossistemas está relacionada à capacidade destes de autodepuração e a mecanismos de detoxificação apresentado pelos organismos.

A aplicação de ferramentas adequadas para estudos de impacto sobre os ambientes aquáticos varia de acordo com o tipo de hábitat, seja ele, estuarino, marinho ou dulcícola; além disso, uma resposta a um determinado poluente, seja ela, fisiológica, celular, bioquímica ou ecológica pode ser diferente entre os táxons, entre as espécies e até mesmo durante o ciclo de vida.

Alguns atributos inerentes aos ecossistemas aquáticos, tais como, a produção primária, os nutrientes, a diversidade de espécies, as manifestações patológicas e a estrutura da composição biótica são extremamente importantes para a detecção de modificações causadas por poluentes (Elliott, 2002); da mesma forma, considerar a reprodução, sendo este um dos mais importantes aspectos, a tolerância ao estresse, à capacidade de aclimatação e as atividades metabólicas e enzimáticas, por exemplo, são apenas alguns poucos parâmetros empregados nos estudos voltados a avaliar aos efeitos tóxicos e deletérios dos poluentes sobre o biótopo e a biocenose, e embora as agressões aos ambientes não cessem, tais estudos são importantes para que ações sejam voltadas a preservação da biodiversidade e busquem modificar as taxas de extinções.

A permanência de uma espécie em um ecossistema está em grande parte relacionada à sua capacidade reprodutiva. Em situações em que o ambiente encontra-se alterado pela presença de poluentes, todos os mecanismos de detoxificação, bem como os que forneçam tolerância são fundamentais para a sobrevivência da espécie, entretanto, a continuidade de cada espécie nos ambientes poluídos, não apenas refere-se à capacidade de permanecer no ambiente, mas também pela sua capacidade de se reproduzir na presença dos poluentes.

As respostas fisiológicas e a influência das variáveis ecológicas podem não ser às mesmas entre as diferentes espécies de organismos aquáticos presentes num mesmo hábitat, como também entre os indivíduos, pois embora dentro de uma mesma espécie, as características biológicas sejam comuns entre os membros, as respostas às variáveis ambientais são intrínsecas a cada organismo, sem considerar o fato de que as diferentes etapas do ciclo de vida possuem diferentes níveis de suscetibilidade à um determinado poluente, ou seja, cada fase de desenvolvimento possui uma (MCTA) máxima concentração de toxicidade aceitável, sendo os estágios embrionários, larvais e juvenis, geralmente os mais sensíveis.

As alterações observadas sobre a capacidade reprodutiva dos organismos aquáticos, pela presença de poluentes ou qualquer outro estressor antrópico pode resultar em variações sobre os índices de abundância de uma população, e sendo isto um fato não natural, desequilíbrios e perturbações manifestam-se ao longo de toda cadeia trófica.

Inicialmente, quanto aos problemas reprodutivos, embora sejam mais facilmente observáveis e quantificáveis sobre os indivíduos, o mesmo não se aplica sobre a estrutura populacional de uma espécie, pois os sintomas que acometem uma população quanto ao aspecto reprodutivo, nem sempre podem estar associados aos poluentes, mas também a vários fatores ambientais, tais como, temperatura, fotoperíodo, pluviosidade, variações de salinidade, eutrofização, oxigenação, disponibilidade de alimento, áreas para acasalamento e desova, presença de predadores ou demais aspectos relacionados à biologia de cada espécie.

Diante de agentes antrópicos, os distúrbios populacionais relacionados à reprodução em peixes, por exemplo, podem se manifestar através de insucessos na reprodução,

Page 84: Livro CI 2007

 76 

diminuição das taxas de fecundidade, perda de áreas de desova, distúrbios comportamentais sexuais, como o não reconhecimento ou a diminuição nos números de encontros entre machos e fêmeas para o acasalamento, produção de ovos inférteis, embriões e larvas frágeis, fracos ou inviáveis, e até mesmo, deformidades genéticas.

Peixes de água doce, da família Poeciliidae, são animais vivíparos e ovovivíparos, entre os quais muitos membros desta família constituem-se em indicadores ambientais amplamente utilizados em ensaios ecotoxicológicos. A espécie Poecilia reticulata, com ampla distribuição na região neotropical é comumente encontrada em áreas sujeitas a todo tipo de poluentes químicos e orgânicos; nestas condições, o desenvolvimento embrionário, é um eficiente indicador do efeito deletério da poluição. Estudos realizados em ensaios de toxicidade, demonstraram embriões com acentuadas deformidades físicas, saco vitelínico pequeno (baixo estoque de energia) e menor número na progênie, chegando esta a ser, cerca de 80% menor, quando comparada a populações distribuídas em áreas não poluídas.

É difícil separar os efeitos dos poluentes dos fatores ambientais naturais que influenciam a capacidade reprodutiva de uma população, sendo assim, assumir uma postura ou outra requer modelos de estudo que possuam predizer, ou avaliar os efeitos dentro de cada população.

É importante identificar os processos que conectam os diferentes níveis de organização biológica para assim tentar determinar e entender como as respostas toxicológicas no indivíduo podem ser transferidas e manifestadas para outros níveis tróficos, especialmente sobre as comunidades.

Uma vez exposto a um poluente (estressor), ou até mesmo a alterações manifestadas no ambiente, sendo que estas não necessariamente necessitam estar relacionadas à presença de uma substância de origem antrópica, as respostas biológicas podem ser detectadas em diversos níveis de organização biológica, ou seja, tais respostas podem ser perceptíveis em nível de indivíduo, sejam elas sistêmicas, celulares ou bioquímicas, como também ao longo da estrutura de uma cadeia trófica, abrangendo as populações e finalmente a comunidade como um todo (Walker et al, 1996). Todavia, investigar tais processos sobre as comunidades são extremamente complexos, devido ao grande número de variáveis naturais como também antrópicas que atuam no ecossistema (Depledge, 1993).

2. Ação dos poluentes sobre os organismos Os poluentes, de acordo com suas categorias químicas pertencem a diferentes

classes: metais, pesticidas, xenobióticos, desreguladores endócrinos, detergentes, poluentes orgânicos, derivados do petróleo, radiação, pH ácido, entre outros. Independente de sua natureza estrutural ou química, os poluentes quase sempre são letais, tóxicos, ou de alguma forma lesivos e adversos a qualquer forma de vida.

Quando a poluição ocorre na água, nem sempre os organismos conseguem escapar ou evitar o simples contato, o que impõe a co-existência; fato que culmina com sofrimento, doença ou distúrbios fisiológicos sub-letais, comportamentais, ou acarretam em morte e extinções. Todos estes eventos ocorrerão perante uma série de variáveis ambientais, ecológicas e fisiológicas, que estão sempre relacionadas à capacidade de aclimatação e adaptação dos animais.

A amplitude dos efeitos lesivos dos poluentes sobre a fisiologia dos animais é tão extensa a ponto de ser impossível uma abordagem satisfatória, contudo, apresento alguns dos efeitos que considero mais relevantes para uma compreensão inicial do assunto, sendo mais representativo neste contexto os efeitos sobre os peixes teleósteos de água doce.

Os poluentes no ambiente aquático afetam todos os organismos que nele vivem como todos os animais que destes organismos se alimentam. Os peixes absorvem compostos químicos principalmente pelas brânquias, cuja ação sobre sua fisiologia é muito extensa (Heath, 1995).

As conseqüências fisiológicas nos peixes causadas pela poluição acarretam prejuízos em todos os sistemas fisiológicos com acentuada atividade na respiração, osmorregulação e integração do sistema motor. Os poluentes afetam também os sistemas sensoriais como o olfativo e a eletrorrecepção (algumas espécies) e finalmente resultam

Page 85: Livro CI 2007

  77

em problemas reprodutivos que podem impedir a continuidade da espécie no ambiente causando o seu desaparecimento e desequilíbrios na cadeia trófica.

Alguns poluentes, ao serem absorvidos, causam nos peixes sérias perturbações endócrinas, metabólicas, ou ainda afetam a reprodução, sendo estes distúrbios, principalmente devido aos desajustes no eixo hipotálamo-hipófise-gônadas. Os compostos químicos que causam estes desajustes são conhecidos na literatura como “endocrine disruptors factors” (Sumpter, 1999).

A composição química de cada poluente encontrado no ambiente aquático determina uma conseqüência específica sobre a fisiologia dos animais.

Os poluentes orgânicos afetam os ambientes aquáticos principalmente por causarem uma redução drástica nos níveis de O2 e promoverem a liberação de gases como o metano e o sulfídrico, afetando dessa forma a respiração. Além disso, constituem uma fonte de nutrientes (fósforo e nitrogênio) que possibilitam o crescimento de microorganismos que consomem o oxigênio dissolvido, processo conhecido por eutrofização. Entre as classes de poluentes orgânicos, os compostos nitrogenados, como a amônia e o nitrito estão entre os mais tóxicos.

Muitos outros poluentes, como, por exemplo o DDT (Dicloro-Difenil-Tricloro-etano) e os metais pesados, não são biodegradáveis e constituem um grupo de agentes químicos que podem afetar não apenas a comunidade aquática, mas também, outros componentes da cadeia trófica através de bioacumulação (Bartone and Davis, 1994).

A grande maioria dos poluentes causa alterações em vários aspectos da reprodução, tais como redução no tamanho das gônadas (ovários e testículos), lesões nas células de Leydig, demonstrado em experimentos com bagres de água doce, (Heath, 1995), e alterações na incorporação de vitelo em oócitos. Na maior parte dos casos, os efeitos dos poluentes refletem com maior intensidade sobre o sistema hormonal.

Entre os efeitos dos poluentes sobre o eixo endócrino pode-se destacar modificações nas concentrações de vitelogenina e gonadotropinas com conseqüente aumento nos níveis de dopamina e diminuição dos esteróides e do colesterol (Karels et al,.1998). São relatadas também elevações nos níveis de cortisol em tilápias, (Foo and Lam, 1993) e manifestação de situações de estresse com o impedimento e/ou atraso no amadurecimento de espermatogônias em espermatócitos de Oncorhynchus mykiss, além da elevação e diminuição dos níveis de esteróides fora do período reprodutivo e inibição da síntese de gonadotropinas com simultâneo bloqueio sobre as gônadas de responderem à ação destas.

Em alguns casos específicos, com determinados tipos de poluentes, como por exemplo, os efluentes de indústrias de papel, há a masculinização de fêmeas em Gambusia affinis, (Howell et at., 1980) além da manifestação de características sexuais masculinas secundárias (Drysdale and Bortone, 1989), também nas fêmeas e ainda testículos produzindo oócitos (inviáveis) em Gambusia affinins (Bartone and Davis, 1994).

A acidez da água induz os peixes ao estresse, (aumento nos níveis de glicose e cortisol) (Waring et al., 2002) e ao aumento no consumo de oxigênio, como também declínio sobre a produção de ovos e incorporação de vitelo. Ainda sobre o efeito do pH ácido, destacam-se inibição da desova, supressão da espermatogênese, atresia de oócitos e mudanças anormais na concentração de estrógenos (Tam et al., 1996).

3. Efeitos sobre populações e comunidades A dinâmica de qualquer população estará sujeita a uma variação em resposta a

alterações causadas por poluentes, e como conseqüência atinge a sobrevivência e as taxas de reprodução. O sucesso de cada indivíduo em ambientes com perturbações antrópicas é influenciado pela sua idade ou fase do desenvolvimento devido a diferentes necessidades e suscetibilidades ao meio (Rothschild, 1986).

As respostas populacionais podem ser demonstradas através da aplicação de uma Matriz de Leslie. Desenvolvido em 1945, este modelo descreve o crescimento da parte fêmea de uma população animal dividida em faixas etárias (Usher, 1972).

Entre os efeitos da poluição sobre as populações, sem dúvida merece destaque os que marcadamente interferem sobre os processos reprodutivos. Alterações no habitat, ou mesmo os poluentes podem reduzir o sucesso reprodutivo, o que certamente afetará a densidade populacional. Entre as mudanças mais marcantes estão aquelas que afetam a

Page 86: Livro CI 2007

 78 

riqueza, as áreas de desova, biomassa, crescimento e a relação entre as taxas de nascimento e mortalidade.

A tolerância de cada indivíduo, aos efeitos adversos do meio, irão determinar a condição de preservação ou de degradação na estrutura de uma comunidade (Turnpenny, 1998).

As possíveis tendências esperadas dentro de uma comunidade em que suas populações estejam sujeitas a algum tipo de estressor poderá ser verificada sobre a ciclagem de nutrientes, estrutura e organização, dinâmica energética e processos que estejam sujeitos à variação sazonal. O turnover de nutrientes pode ser afetado, bem como o tamanho dos indivíduos, pois os processos de crescimento fatalmente estarão comprometidos ou alterados. As áreas de alimentação também podem ser impactadas devido à redução no fluxo de energia; todos estes fatores cooperam para uma alta sensibilidade ao estresse em predadores, diminuição da diversidade de espécies e aumento de parasitismo e outras relações ecológicas similares.

A competição intraespecífica e interespecífica também estão sujeitas a modificações, que indiretamente se relacionam a fatores demográficos e até mesmo a outras variáveis ecológicas.

Muitos organismos ainda podem apresentar modificações morfológicas, fisiológicas, genotípicas (resistência) e até mesmo nas características fenotípicas, mas as perturbações causadas por poluentes podem até mesmo agir como pressões seletivas do ambiente e interferir sobre a história natural das espécies e marcadamente sobre os diversos tipos de comportamento, sendo mais acentuados sobre: O comportamento migratório, alimentar, comportamento de interação intraespecífica, incluindo competição, comportamento de interação interespecífica, incluindo a relação predador-presa, mimetismo e simbioses, descanso e período de atividade, como também sobre o comportamento reprodutivo.

Ainda não há um modelo padrão de estudo dos efeitos dos poluentes sobre as espécies com uma abordagem ecológica, pois existe uma série de variáveis que sempre deverão ser consideradas para cada ecossistema; sendo assim, os estudos mais comuns são aqueles que se referem aos organismos. Em vista da dificuldade de se construir modelos de estudo que possam predizer os efeitos deletérios da poluição sobre os ecossistemas, quando estes efeitos são registrados, normalmente em ensaios conduzidos com os indivíduos, poderá ser tarde demais para reverter os impactos sobre os ecossistemas.

Referências

Bartone, S. A. and Davis, W. P. 1994. Fish intersexuality as indicator of environmental stress. Bioscience, 44: 165 p. Drysdale, D. T. and Bortone, S.A. 1989. Laboratory induction of intersexuality in the mosquito fish Gambusia affinins,

using paper mill effluent. Bulletin of Environmental Contamination and Toxicology 43: 611-617 p. Elliott, M. 2002. The role of the DSPIR approach and conceptual models in marine environmental management : an

example for offshore wind power. Marine Pollution Bulletin, 44: 6, iii- vi. Foo, J. and Lam, T. 1993. Serum cortisol response to handing stress and the effect of cortisol implantation on

testosterone level in tilapia. Oreochromis mossambicus, Aquaculture 115: 115 -145 p. Heath, A. G. 1995. Water pollution and fish physiology. Boca Raton; CRC Press, 359 p. Horrell, W.M., Black, D. A. and Bortone, S. A. 1980. Abnormal expression of secondary sex characters in a population

of mosquito fish, Gambusia affinis, holbrooki: evidence for environmentally – induced masculinization. Copeia 676-681p.

Karels, A. E., Soimasuo, M., Lappivaara, J., Leppanen, H., Aaltonen, T. Mellanen, P. and Oikari, A. O.J. 1998. Effects of ECF- bleached Kraft mill effluent on reproductive steroids and liver MFO activity in populations of perch and roach. Ecotoxicology 7: 123-132 p.

Rothschild, B. J. 1986. Dynamics of Marine Fish Populations. Harvard University Press, Cambridge, Mass. Sumpter, J. P., 1999. Endocrine disrupting chemicals in the aquatic environment. In Proceedings of the 6th

International Simposyum on Reproductive Physiology of Fish, Institute of Marine Research and University of Bergen, July 1999. 349-355 p.

Tam, W.H. and Zhang, X. 1996. The development and maturation of vitellogenic oocytes, plasma steroid hormone levels, and gonadotrope activities in acid-stressed brook trout (Salvenilus fontinalis). Canadian Journal of Zoology 74: 587-593 p.

Turnpenny, A. W. H., C. Demsmpsey, M. H. Davis & J. M. Fleming (1998). Factors limiting fish populations in the Loch Fleet system, and acidic drainage system in Southwest Scotland. Journal of Fish Biology, 32 (1), 101- 118 p.

Usher, M . B. 1972. Developments in the Leslie Matrix model. In: (ed. Jeffers, J. N. R.) Mathematical models in ecology. Blackwell Scientific Publications, Oxford, UK.

Waring. C. P., Brown, J.A., Collins, J. E. and Prunet, P. 2002. Plasma prolactin, cortisol, and thyroid responses of the brown trout (Salmo trutta) exposed to lethal and sublethal aluminium in acid soft waters. General and Comparative Endocrinology. 102: 377-385.

Walker, C. H., S. P. Hopkin, R. M. Sibly & D. B. Peakall 1996. Principals of Ecotoxicology. Taylor & Francis Ltd., Londom, 321 p.

Page 87: Livro CI 2007

  79

Ecofisiologia de metais pesados em organismos aquáticos Marina Granado e Sá ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia de Crustáceos

A poluição de ecossistemas aquáticos por metais pesados é um sério problema ambiental devido sua persistência e alta toxicidade para os muitos organismos. Ecossistemas aquáticos são usualmente monitorados através da presença de metais pesados poluidores utilizando abordagens químicas e biológicas. O critério para avaliação da qualidade da água em relação aos metais pesados considerarefeitos do ambiente e organismo relacionados com a toxicidade do metal.

O homem, desde os tempos mais remotos, tem tido contato com os metais pesados que se encontram naturalmente no solo e água e que, provavelmente provocaram os primeiros envenenamentos. Os metais presentes nos utensílios domésticos, tubulações de água entre outros, aumentam os riscos de intoxicação (Miranda, 1993). O advento da era industrial e a mineração em alta escala, possibilitaram o aparecimento de enfermidades relacionadas com os diversos metais tóxicos (Gerhardsson & Skerfving, 1996; Miranda, 1993).

O problema da contaminação do meio ambiente por estes metais, alcança hoje dimenções mundiais, sendo observado tanto em países desenvolvidos como naqueles subdesenvolvidos. A ausência de controle dos efluentes contaminados por metais pesados, alterou o solo, a água e o ar, trazendo como consequência a contaminação dos sistemas aquáticos, continentais e marinhos.

Estudos recentes têm detectado a toxidade do cádmio (Cd), que juntamente com o chumbo (Pb) e o mercúrio (Hg) são os elementos que têm concentrado a atenção dos pesquisadores devido a toxidez e a recente penetração nos ecossistemas, como resultado do desenvolvimento tecnológico. Quando introduzido no organismo via oral, o cádmio é pouco absorvido, sendo que 95% é eliminado (Gerhardsson & Skerfving, 1996). Porém, o restante é acumulado nos rins e figado, onde foi detectado que sua meia vida biológica é de 10 anos (Tavares & Carvalho, 1992). Este risco em potencial sucitou pesquisas na área de alimentos, uma vez que este contaminante tem caráter cumulativo na cadeia biológica da qual o homem faz parte (Miranda, 1993). Como resultado do fenômeno de bioacumulação, as quantidades subtóxicas presentes no meio ambiente podem atingir níveis de risco nos elos finais da cadeia trófica (Volesck, 1990a).

Vestígios de metais, incluindo os metais pesados são originados de indústrias e atividades mineiras e são descartados em águas costeiras e estuarinas de diversas localidades. Invertebrados e vertebrados presentes nesses ambientes estão potencialmente expostos às altas concentrações de diversos metais.

Crustáceos e peixes são frequentemente utilizados como bioindicadores e biomarcadores em diversos sistemas aquáticos. Uma das razões é que constituem grupos de sucesso evolutivo, distribuídos em um número grande de habitats incluindo o marinho, estuarino, dulcícola e terrestre (Rinderhagen, M et al, 2000). Os peixes são os únicos entre os vertebrados que possuem 2 rotas de aquisição de metal pesado (dieta e água) (48 a).

Um biomarcador ou bio-indicador é um organismo que não “sinaliza” apenas uma exposição química direta e o acúmulo de um metal pesado, mas também efeitos adversos ecologicamente potentes (Bryan et al, 1985). Um indicador biológico pode ser definido como variação bioquímica, celular, fisiológica ou comportamental, podendo ser medido em tecidos e fluidos celulares, ou o nível no organismo ou população que prova evidência da exposição e efeito de um ou mais poluentes (Depledge e Fossi, 1994).

Organismos marinhos são continuamente expostos à concentrações variáveis de metais na água do mar. Com isso, moluscos, crustáceos e outros invertebrados são conhecidos por acumular altos níveis de metais pesados em seus tecidos e ainda sobreviver (50 a). Tal tolerância depende da habilidade destes animais de regular a concentração dos metais pesados dentro das células e ainda acumular o excesso destes sob formas não tóxicas.

Três mecanismos de homeostase foram identificados em células de animais marinhos invertebrados: (1) através de metalotioneína (classe de proteinas de baixo peso

Page 88: Livro CI 2007

 80 

molecular e que possuem alta afinidade com os metais pesados. Detoxificam o excesso de metais que penetram nas células e sua síntese é aumentada de acordo com o aumento da concentração do metal pesado, embora hormônios e stress podem estimular a neossíntese (50 a)), (2) compartimentalização através dos lisossomos, (3) formação de precipitados insolúveis como concreções de Ca e Mg ou grânulos de Ca e S. Esses sistemas demonstram variação de níveis de eficiência nos diferentes organismos e nos diferentes tipos celulares do mesmo organismo.

As vias de absorção nos tecidos destes animais podem ser compartimentalizadas e a taxa de acúmulo pode variar amplamente entre as espécies, até mesmo em baixas concentrações do metal pesado em ambiente limpo. Adicionalmente, as concentrações de metais pesados em tecidos e no corpo do animal podem variar dependendo, desse modo, também das vias de excreção (Rainbow, 1998).

Os efeitos tóxicos podem ser vistos com o excesso acumulado de metais, tornando desestabilizados os processos celulares dos animais.

Metais pesados são captados e acumulados pelos organismos aquáticos, através da interação do meio com as fontes de alimento. Muitos metais pesados exercem funções esenciais no metabolismo, e todos eles têm grande potencial para causar efeitos tóxicos. O acúmulo de meitas traço, portanto, requerem da detoxificação fisiológica, tipicamente pela ligação de alta afinidade em grânulos inorgânicos, frequentemente com base fosfato, ou numa detoxificação protéica como por metalotioneína ou ferritina (Rainbow, 1997).

A relativa importância das diferentes rotas de tomada dos metais pode também depender de outros aspectos da fisiologia dos crustáceos, não se esquecendo de relacionar com o ciclo na muda, que estes apresentam (Rainbow, 1997).

A superfície dos crustáceos (carapaça) é coberta por uma cutícula secretada pelas células para o lado de fora do epitélio. Pequenos crustáceos são tipicamente permeáveis por si só, enquanto que malacostradas podem ter a permeabilidde restrita à regiões como as brânquias. Metais traço são “transportados” através de superfícies permeáveis dos crustáceos e cutícula permeável não é considerada uma barreira siginificativa para a captação dos metais (Rainbow, 1997).

Abaixo da cutícula, a membrana celular do epitélio atua como barreira para entrada de metais, como de fato é a entrada de químicos em qualquer célula, protegendo as vias bioquímicas derivadas do ambiente. A membrana da célula possui uma bicamada de lipídios, com grupos hidrofóbicos direcionados para o interior da membrana e grupos hidrofílicos para o exterior. A membrana celular também contém muitas proteínas e essas são a chave para a passagem através da membrana de moléculas hidrofóbicas e ions, incluindo os metais.

Têm sido descritas diversas rotas pra o transporte de metais através da membrana citoplasmática e exemplificaremos 4 mais importantes aqui (Rainbow, 1997; Tessier et al, 1994):

• Transporte mediado por cadeia onde o ion metal se ligará com a proteína da membrana e assim será transportado através desta. Já no lado citosólico, o metal é complexado em biomoléculas não difusas (geralmente proteínas) e se prendem cineticamente à célula (Williams, 1981). Os metais traço continuam entrando passivamente na célula, uma vez que a concentração interna total de metal é mais alta do que a concentração externa deste. • Transporte através de canais protéicos pelos quais os ions metalicos são transportados em baixas concentrações ligados a proteínas com essência hidrofílica. • Difusão passiva de formas metálicas lipossolúveis os quais dissolvem na membrana bi-lipídica e penetra na célula. • Endocitose quando uma região invaginada da célula engulfa a partícula metálica e transfere para uma vesícula intracelular.

Essas duas últimas rotas são, provavelmente, as de menor importância para a típica tomada de metais presentes na solução pelos organismos aquáticos.

Os canais têm a importante característica baseada na seletividade de interações entre desidratação e hidratação dos ions metais, uma vez ligados e liberados dos grupos hidrofílicos na parede do canal (Simkiss, 1996).

Ions de metais muito pequenos não atravessam a membrana porque quando hidratados são muito grandes e quando desidratados necessitam de grande

Page 89: Livro CI 2007

  81

desprendimento energético. Ions muito grandes são intrinsicamente maiores para entrar através do canal, mesmo quando desidratados (Frausto da Silva & Williams, 1991).

A determinação do gradiente de concentração minima, pela qual os metais entram pode ser alternativamente por processo passivo de ligações intracelulares de alta afinidade (essencialmente mantendo concentrações mínimas intracelularmente), ou por bombas ativas dos ions de metais fora da célula propriamente dita. Por exemplo, a NaK ATPase na membrana basal da célula dos ionócitos das brânquias dos crustáceos decápodas mantém as concentrações de Na intracelulares baixas o suficiente, permitindo que o Na entre apicalmente do meio mais concentrado para o menos, via canal de sódio. Na verdade, a ATPase ligada à membrana pode ser considerada como um dos casos de hidrólise de ATP do canal de membrana para assim prover energia para movimentar os ions de metais contra a concentração do gradiente, gerando e mantendo assim o gradiente iônico (Lippard & Berg, 1994).

A maior distinção, no entanto, é agora entre os mecanismos pelos quais a concentração do gradiente do metal é realizada através da membrana apical das células epiteliais das brânquias, como oposição para diferenças fundamentais entre proteínas carreadoras e bombas ativas situadas na membrana. Então, metais que possuem grande afinidade por sítios com S ou N, por exemplo em proteínas, entrarão passivamente pelo gradiente de concentração do ion metal livre mantido pela estreita ligação em grandes moléculas não difusas, uma vez que a concentração intracelular do metal é mais alta do que a extracelular. Por outro lado, cátions dos grupos IA e IIA como Na e Ca possuem grande afinidade por proteínas, e ao invés de entrar pelos canais, tomam caminhos diferentes. No caso do sódio em crustáceos, o gradiente estipulado é pela ação da NaK ATPase da membrana basal dos ionócitos branquiais, uma energia que requer um processo ativo.

A maior parte dos metais, entram na célula passivamente, transportados através da membrana apical da célula por sistema de carreamento (canais de membrana) os quais possuem sítios de grande afinidade. Geralmente é assumido que existam canais específicos para cada ion metal essencial, mas há potencial para a entrada de qualquer metal via outros canais de acordo com as características seletivas desses canais, o tamanho da molécula do metal e baseado se é hidratado ou desidratado, o custo da desidratação, etc. Claramente, metais não essenciais também entram nas células e assume-se que frequentemente entram via canais que predominantemente transportam metais essenciais ou de fato, ions como Ca. O ion cádmio, tem um radical iônico muito próximo do Ca, e então entra através de canais de cálcio, mas é claro que esta não é a única via de entrada do cádmio. Ions de manganês podem também atravessar pelos canais de calico, assim como canais de chumbo, mas outras vias podem ser abertas para os metais.

Fora da membrana apical da célula, o metal precisa ter composição química apropriada para entrar pelo canal de membrana ou se ligar com proteínas de transporte de membrana. Geralmente, é considerado que a forma biodisponível da maioria dos metais é a forma de íon, embora exista também a forma hidratada. Desta maneira, é a forma não complexada do metal (inicialmente hidratada) que tem características físicas e químicas apropriadas para entrar no canal, sofrendo desidratação e passando através do canal antes da reidratação.

Na água do mar, cátions do grupo IA e IIA permanecem não complexados como ions de metais livres, mas metais dissolvidos no mar como partição no equilíbrio entre (predominantemente) agentes orgânicos e inorgânicos.

A concentração do metal livre será alterada com as mudanças na concentração total do metal, correspodendo ao aumento ou diminuição da proporção de tomada pelos crustáceos.

Reduções de salinidade necessariamente reduz as concentrações de cloreto do meio com concomitantemente redução da complexação dos metais como ions zinco e cádmio, e aumenta a disponibilidade dos ions livres. Se a proporção da tomada, é determinado pela disponibilidade externa do metal, diminuição da salinidade deve produzir aumento da tomada do metal.

Mudanças na salinidade não causam somente alterações físico-químicas no meio. Também podem apresentar efeitos fisiológicos nos crustáceos. No caso de crustáceos estuarinos expostos a salinidades reduzidas, os fluidos corpóreos sã hipertônicos em

Page 90: Livro CI 2007

 82 

relação ao meio e a água entra osmoticamente. Os crustáceos respondem tipicamente ao aumento da produção de urina; a urina é isotônica em relação ao sangue e há assim o aumento da expulsão da água é associada com a perda concomitante da maioria dos ions pela urina (Na, Ca). Essa perda é balanceada pela tomada da maioria dos ions pelos ionócitos das brânquias.

Prognósticos da toxicidade dos metais que não são baseados na concentração total do metal mas na atividade do ion livre são mais adequados. Um caminho para que isso seja realizado é utilizando o BLM (modelo de ligante biótico), que expressa a toxicidade em termos da atividade do ion livre e efeitos competitivos no ligação (ligamento) do metal com os sítios do organismo. A toxicidade do metal é considerada sendo proporcional à quantidade de metal ligada nesses sítios. A vantagem da expressão da toxicidade em termos de concentração em tecidos é que os efeitos de diferentes cenários e tempo de exposição são integrados. No entanto, vários organismos têm desenvolvido diversas estratégias para lidar com os metais, incluindo estoque interno e eliminação ativa destes. A primeira estratégia talvez resulte num excesso de acúmulo de metais sem o desenvolvimento da toxicidade

A osmorregulação é a habilidade de ativamente manter as concentrações osmóticas nos fluidos extracelulares, apesar da salinidade (osmolaridade que circunda o meio) e consiste em uma adapção fisiológica fundamental dos animais que habitam os ambientes estuarinos (Rinderhagen, M et al, 2000).

Dessa maneira, mesmo com diversos estudos sobre o tema, mais pesquisas são necessárias para que haja uma interligaçao entre todos os fatores que atuam nos mecanismos de detoxificação de metais pesados dos organismos aquáticos.

Referências

Bryan, G.W.; Langston, W.J.; Hummerstone, L.g.; Burt, G.R. “A guide to the assessment of heavy metal contamination in estuarines using biological indicators”. Occup Publ Mar Biol Assac UK, 1985 v.4, p1-92.

Bury, N.R.; Walker, P.A.; Glover, C.N. “Nutritive metal uptaje in teleost fish – review”. The Journal of Environmental Biology, 2002. 206: 11-23.

Depledge, M.H.; Fossi, M.C. “The role of biomarkers in environmental assessment (2) Invertebrates”. Ecotoxicology, 1994. v.03, p161-172.

Frausto da Silva, J.J. R.; Williams, R.J.P. “The biological chemistry of the elements”. Claredon Press, Oxford, 1991. 561pp.

Gerhardsson, L.; Skerfving, S. “Concepts on biological markers and biomonitoring for metal toxicity. In: CHANG, L.W. Toxilogy of metals. Boca Raton: CRC Press, 1996. cap.6, p.81-112.

Lippard, S.J.; Berg, J.M. “Principals of bioinorganic chemistry. University Science Book, California, 1994. 411pp. Miranda, C. E. S. “Determinação de cádmio por espectrofotometria de absorção atômica com pré-concentração em

resina de troca iônica empregando sistema FIA. São Carlos. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Física e Química de São Carlos, Universidade de São Paulo. 1993. 89pp.

Rainbow, P.S. “Ecophysiology of trace metal uptake in crustaceans” Estuarine, Coastal and Shelf Science. 1997. 44: 169-175.

Rainbow, P.S. “Phylogeny of trace metal accumulation in crustaceans”. Chapman e Hall, London 1998. p285-319. Rinderhagen, M.; Ritterhoff, J.; Zauke, G.P. “Crustaceans as bioindicators”. Biomonitoring of Pollution Water – Reviews

on actual topics”. 2000. 9: 161-194. Simkiss, K. “Ecotoxicants at the cell-membrane barrier. In: Ecotoxicology. 1996. Pp 59-63. Tavares, T.M.; Carvalho, F.M. “Avaliação da exposição de populações humanas à metais pesados no ambiente:

exemplos do Reconcavo Baiano. Química Nova, 1992. v.15, n.2, p.147-154. Tessier, A.; Buffle, J.; Campbell, P.G.C. “Uptake of trace metals by aquatic organisms” In: Chemical and Biological

Regulation of Aquatic Systems. Lewis Publishers, Boca Raton, 1994. pp 197-230. Viarengo, A.; Nott, J.A. “Mechanisms of heavy metal cation homeostasis in marine invertebrates”. Comparative

Biochemistry and Physiology, 1993. 104C (3): 355-372. Volesky, B. “Removal and recovery of heavy metals by biosorption In: Biosorption of heavy metals”. Boca Raton, CRC

Press, 1990. p.7-43. Williams, R.J.P. “Physico-chemical aspects of inorganic element transfer through membranes. Phylosophical

Transactions of the Royal Society of London (Series B) 1981. 294: 57-74.

Page 91: Livro CI 2007

  83

Efeitos da disponibilidade de oxigênio na fisiologia de organismos aquáticos com ênfase em peixes Renato Massaaki Honji ([email protected]) – Laboratório de Metabolismo e Reprodução de Organismos Aquáticos

A Terra possui em torno de 510x106 Km2 de superfície terrestre, dos quais 310x106 Km2 são cobertos pelos oceanos, além disso, uma pequena fração dessa superfície (se comparado com os oceanos) é coberta por rios, lagos, calota e gelo polar. Com base nesses dados, aproximadamente 71% da superfície da Terra são cobertos por água e, neste sentido, o ambiente aquático oferece assim mais espaço habitável se comparado com o ambiente terrestre (Wooton, 1990; Moyle & Cech, 2003).

Quando nos referimos aos habitantes encontrados no ambiente aquático, lembramos rapidamente dos teleósteos (peixes ósseos), que são o mais numeroso e diverso grupo de vertebrados (Nelson, 1994; Wooton, 1990; Moyle & Cech, 2003). Os peixes representam aproximadamente 50% dos vertebrados, englobando cerca de 28.000 espécies viventes que ocupam ambientes aquáticos os mais diversos, ocorrendo desde as altas latitudes até as fossas submarinas dos oceanos (Nelson, 1994; Moyle & Cech, 2003). Em relação à sua distribuição, 58% são marinhos, 41% são dulciaqüícolas e 1% vivem entre esses dois ambientes, ou seja, essas espécies realizam migrações entre o ambiente marinho e o ambiente de água doce (Wooton, 1990). Além da importância como fonte alternativa de alimento, os peixes também constituem uma rica fonte de material biológico que podem ser utilizados como modelos para entender os controles dos processos biológicos (Blázquez et al., 1998).

Com esse enorme número de espécies existentes, a constantes descobertas de novas espécies e a distribuição mundial, esse sucesso do grupo é atribuído a uma série de adaptações fisiológicas, anatômicas, morfológicas entre outras características relacionadas aos processos de reprodução, nutrição, osmorregulação, flutuação e principalmente a respiração (Hoar, 1969; Wooton, 1990; Moyle & Cech, 2003; Zavala-Camin, 2004).

Em relação à fisiologia respiratória em peixes podemos encontrar os seguintes tipos de respiração: respiração aquática e respiração aérea (facultativa e obrigatória). A maioria das espécies de peixes apresenta respiração branquial (aquática). As brânquias são geralmente ventiladas com um fluxo unidirecional de água, sendo que, a simples abertura da boca e do opérculo, adicionado ao deslocamento do animal na água, faz com que haja um fluxo em uma única direção (mais pronunciada principalmente em peixes migradores, como os atuns e albacora), a grande parte dos peixes apresenta musculatura esquelética na cavidade bucal e opercular, que mantém o bombeamento ativo da água nas brânquias, mantendo assim um suplemento regular de O2 (figura 01) (Withers, 1992; Graham, 1997; Randall et al., 2000; Schmidt-Nielsen, 2002; Graham, 2006).

Page 92: Livro CI 2007

 84 

Figura 01: A água é bombeada sobre as brânquias de um peixe por um sistema duplo de bombeamento. Com o auxílio de válvulas adequadas, as bombas provêm um fluxo unidirecional da água sobre a superfície da brânquia (adaptado de Schmidt-Nielsen, 2002).

As brânquias dos peixes consistem geralmente de quatro arcos branquiais e desses arcos estendem-se duas fileiras de filamento branquiais, dos quais, cada filamento possui várias lamelas que são estruturas achatadas e densamente enfileiradas onde ocorrem as trocas gasosas. Conforme a água flui entre essas lamelas em uma direção, o fluxo sanguíneo flui em direção oposta, esse tipo de fluxo é denominado contracorrente (figura 02). Desta forma, quando o sangue está saindo das lamelas, o mesmo encontra a água cujo oxigênio ainda não foi removido e conforme a água passa entre as lamelas, ela encontra o sangue com uma pressão de oxigênio sempre abaixo e, portanto continua liberando mais oxigênio. Essa disposição anatômica permite que, depois de passar pelas brânquias, a água possa ter perdido mais ou menos 80 a 90% de seu conteúdo de oxigênio (Withers, 1992; Graham, 1997; Randall et al., 2000; Schmidt-Nielsen, 2002; Graham, 2006).

Page 93: Livro CI 2007

  85

Quando o ambiente aquático apresenta baixa concentração de oxigênio dissolvido (ambiente hipóxico), é possível observar que muitas espécies de peixes sobem até a superfície, com o intuito de ventilar as brânquias com a fina camada de água oxigenada. Esta fina camada de água oxigenada é obtida pela difusão do oxigênio atmosférico na água. Este comportamento apresentado pelos teleósteos é conhecido como “Aquatic Surface Respiration” (ASR).

Este comportamento (ASR) é freqüentemente observado em viveiros de cultivo de peixes (pisciculturas). A figura 03 apresenta uma espécie de peixe neotropical (Piaractus mesopotamicus) que apresenta este comportamento (ASR). Além disso, este teleósteo desenvolve uma projeção do lábio inferior da mandíbula, com o intuito de captar mais eficientemente esta fina camada de água oxigenada.

Figura 03: A-B) “Aquatic surface respiration – (ASR)” A) Duas espécies de peixes teleósteos que apresentam o comportamento (ASR) quando esses animais são expostos a condições de hipóxia. Poecilia reticulata e Piaractus mesopotamicus. B) Comportamento ASR apresentado pelo pacu (Piaractus mesopotamicus). Notar a projeção do lábio inferior da mandíbula (adaptado de Jobling, 1994).

A B

Água

150 120 90 60 30

140 110 80 50 20

Figura 02: Diagrama do fluxo contracorrente nas brânquias de peixes. Os números indicam as pressões parciais de oxigênio (Po2) na água e no sangue. O sangue entra na brânquia com uma Po2 baixa (neste exemplo, 20mmhg) e o oxigênio difunde-se da água para o sangue. À medida que o sangue flui ao longo da lamela, mais oxigênio é captado da água e, assim que sai da lamela, alcança aproximadamente a Po2 da água que entra, rica em oxigênio. A água, fluindo em direção oposta, perde gradualmente mais e mais oxigênio e deixa a brânquia depois de ter perdido a maior parte de seu conteúdo de oxigênio (adaptado de Schmidt-Nielsen, 2002).

Sangue

Page 94: Livro CI 2007

 86 

Além das brânquias, muitas espécies de peixes apresentam estruturas capazes de realizar trocas gasosas como, por exemplo: vesícula gasosa, intestino, estômago, esôfago e até pulmões, entre outras estruturas, esses animais são chamados de peixes com respiração aérea (figura 04). A maioria das espécies de peixes com respiração aérea habita ambientes aquáticos no qual em algum período do dia ou estação, a concentração de oxigênio é muito baixa ou em ambientes hipóxicos, ou seja, são locais no qual o nível de oxigênio é reduzido. Esses peixes responderão a diminuição da concentração de oxigênio na água, nadando até a superfície para sorver uma bolha de ar pela boca, o que resulta num melhoramento no suprimento de oxigênio. A respiração aérea pode ser facultativa ou obrigatória. Na respiração facultativa, se o ambiente não estiver hipóxico, o animal consegue retirar da água toda quantidade de oxigênio necessária para a sua manutenção, apenas bombeando a água através das brânquias. Quando o ambiente estiver hipóxico, essas espécies retiram uma parte do oxigênio necessário para a sua manutenção da atmosfera (Val et al., 1996; Graham, 1997; Hochachka & Somero 2002; Schmidt-Nielsen, 2002; Graham, 2006).

Os rios da Amazônia são bons exemplos de ambiente aquático, que se observa uma variação de concentração de oxigênio durante a estação de seca (Val et al., 1996). Muitos Siluriformes apresentam esse tipo de respiração aérea facultativa (figura 04b). As espécies de peixes com respiração aérea obrigatória são aquelas que necessitam subir até a superfície da água para respirar ar atmosférico, no qual, sorvem uma bolha de ar e o oxigênio é absorvido pelas estruturas relacionadas acima. Quem disse que peixe não morre afogado!!! Neste caso, se o peixe com respiração aérea obrigatória for impedido de subir até a superfície da água, ele morre afogado sim (como por exemplo, Arapaima gigas, pirarucu – figura 04a).

No que diz respeito aos aspectos relacionados às trocas gasosas realizadas pela vesícula gasosa (“bexiga natatória”) em teleósteos, poucos estudos têm sido realizados. Sabe-se que a vesícula gasosa é formada a partir de uma evaginação do trato digestório (origem embriológica) e, em teleósteos é possível identificar dois tipos de vesícula gasosa. Alguns teleósteos conhecidos como “fisóstomos”, mantêm uma conexão entre a vesícula gasosa e o esôfago, conseguindo encher a vesícula “tomando” ar na superfície. No outro tipo, conhecido como “fisóclisto”, o ducto degenera e não há conexão da vesícula gasosa com o meio externo, assim, os gases no interior da vesícula são provenientes do sangue (Wooton, 1990; Schmidt-Nielsen, 2002; Moyle & Cech, 2003; Zavala-Camin, 2004). Os mecanismos fisiológicos envolvidos na troca gasosa entre o sangue e a vesícula gasosa são discutidos na literatura especializada (Wooton, 1990; Schmidt-Nielsen, 2002; Moyle & Cech, 2003; Zavala-Camin, 2004).

Ainda em relação a respiração aérea, existem seis espécies de peixes com respiração pulmonar, uma espécie australiana, Neoceratodus forsteri (Família

A B

Figura 04: A-B) Peixes com respiração aérea (obrigatória e facultativa). A) Arapaima gigas (pirarucu), vesícula gasosa modificada para a respiração aérea (obrigatória). Foto do autor. B) Hypostomus sp. (cascudo), troca gasosa realizada também pelo intestino (facultativo). Cortesia de Renata Guimarães Moreira.

Page 95: Livro CI 2007

  87

Ceratodontidae), outra espécie sul-americana, Lepidosiren paradoxa (Família Lepidosirenidae) e quatro espécies africanas, Protopterus sp. (Família Protopteridae).

Protopterus sp. e Lepidosiren sp. vivem em águas paradas e em lagos, nos quais na falta de chuvas pode ocasionar o ressecamento total do seu habitat (Graham, 2006). Essas espécies estivam até a próxima estação chuvosa, quando elas saem dos seus casulos que estavam enterrados na lama. A espécie australiana habita rios e corpos de água lênticos, estivando também em períodos de seca (Val et al., 1996; Graham, 1997; Schmidt-Nielsen, 2002; Graham, 2006). A figura 05 apresenta a porcentagem de troca pelos pulmões e brânquias nessas espécies de peixes com respiração pulmonar (Schmidt-Nielsen, 2002).

Na figura 05 é possível observar que, apesar das três espécies de peixes apresentarem pulmões, as brânquias ainda apresentam funções nas trocas gasosas nessas espécies. Vale ressaltar, que na espécie Lepidosiren paradoxa (América do Sul) a maior porcentagem de troca gasosa é realizada através dos pulmões. Já na espécie australiana (Neoceratodus forsteri) a maior porcentagem de troca gasosa é realizada pelas brânquias.

Neste contexto, em relação à fisiologia respiratória em peixes podemos encontrar os seguintes tipos de respiração: respiração aquática e respiração aérea (facultativa e obrigatória) como mencionado anteriormente. Desta forma, levando em consideração essas informações sobre o ambiente aquático e a diversidade de peixes, enfocamos a nossa discussão na fisiologia da respiração de peixes ao longo da evolução desses

Figura 05: Funções relativas das brânquias (gráfico superior) e dos pulmões (gráfico inferior) nas trocas de gases respiratórios em três espécies de peixes pulmonados quando mantidos na água e com acesso ao ar (adaptado de Schmidt-Nielsen, 2002).

Neoceratodus (Austrália)

Protopterus (África)

Lepidosiren (América do Sul)

Page 96: Livro CI 2007

 88 

animais, além de analisar as interações e adaptações fisiológicas apresentada pelos teleósteos nos vários ambientes aquáticos (ambiente marinho, ambiente dulciaqüícola, região equatorial, regiões tropicais, regiões polares, regiões profundas e regiões de grandes altitudes); além de analisar as interações e adaptações fisiológicas apresentadas pelos teleósteos nos vários ambientes aquáticos (Prosser, 1991; Levinton, 1995; Val et al., 1996; Graham, 1997; Hochachka & Somero 2002; Schmidt-Nielsen, 2002; Graham, 2006).

Desta maneira, durante a apresentação oral, será demonstrada a importância dos estudos fisiológicos utilizando-se modelos biológicos como os peixes, que são recursos alimentares de extrema importância para os seres humanos, além da importância ecológica desses organismos para o ambiente aquático. Referências Blázquez, M.; Bosma, P. T.; Fraser, E. J.; Van Look, K. J. W. & Trudeau, V. L. 1998. Fish as models for the

neuroendocrine regulation of reproduction and growth. Comparative Biochemistry and Physiology (C) 119: 345-364.

Evans, D. H. & Claiborne, J. B. 2006. The physiology of fish. Taylor & Francis. 3ed. 601p. Graham, J. B. 1997. Air-Breathing Fishes. Evolution, Diversity and Adaptation. Academic Press.299p. Graham, J. B. 2006. Aquatic and aerial respiration. 85-118. In: Evans, D. H. & Claiborne, J. B. 2006. The physiology of

fish. Taylor & Francis. 3ed. 601p. Hoar, W. S. 1969. Reproduction. 1-72. In: Hoar, W. S. & Randall, D. J. 1969. Fish physiology. Academic Press. New

York and London. 485p. Hoar, W. S. & Randall, D. J. 1969. Fish physiology. Academic Press. New York and London. (Vários números). Hochachka, P. W. & Somero, G. N. 2002. Biochemical adaptation. Mechanism and process in physiology evolution.

Oxford University Press. 466p. Jobling, M. 1994. Fish Bioenergetics. Chapman & Hall. Fish and Fisheries. Serie 13. 309p. Levinton, J.S. 1995. Marine biology: function, biodiversity, ecology. Oxford.420p. Moyle, P. B. & Cech, J. J. 2003. Fishes. An Introduction to Ichthyology. Prentice Hall, Upper Saddle River. New Jersey.

590p. Nelson, J. S. 1994. Fishes of the world. Ed. New-York: John Wiley & Sons, INC. 3rd edition. 600p. Prosser, C. L. 1991. Environmental and metabolic animal physiology. Copyright. Wiley-Liss. 578p. Randall, D.; Burggren, W. & French, K. 2000. Fisiologia Animal. Mecanismos e Adaptações. Guanabara Koogan. 729p. Schmidt-Nielsen, K. 2002. Fisiologia Animal. Adaptação e Meio Ambiente. Santos, Livraria e Editora. São Paulo – SP.

600p. Val, A. L.; Almeida-Val, V. M. & Randall, D. J. 1996. Physiology and biochemistry of the fishes of the Amazon. Inpa-

Manaus. 402p. Withers, P. C. 1992. Comparative Animal Physiology. Fort Worth. Saunders Publ. 949p. Wootton, R. J. 1990. Ecology of teleost fishes. London – New York. Chapman and Hall. 404 p. Zavala-Camin, L. A. 2004. O planeta água e seus peixes. Edição do autor. 326p.

Page 97: Livro CI 2007

  89

FISIOLOGIA NA ERA DA BIOLOGIA MOLECULAR Introdução - Biologia molecular como instrumento para o estudo de processos fisiológicos Lucile Maria Floeter-Winter ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia de Tripanossomatídeos

Em março de 1953, dois pesquisadores comemoravam ruidosamente em um pub da Universidade de Cambridge (UK), aquilo que eles denominaram a descoberta do “segredo da vida”. A publicação em abril daquele ano, na revista Nature relatava a estrutura do DNA, descrita pelo americano James Watson e pelo britânico Francis Crick, com base na imagem de raios X obtida pela também britânica Rosalind Franklin, que trabalhava com Maurice Wilkins. A descrição faria ficar famosa a molécula em formato de dupla hélice, e daria um premio Nobel aos seus autores, alguns anos mais tarde. A estrutura da molécula de DNA mostra como a informação está organizada, como é mantida, como é transmitida e como pode ser executada.

Era o início da biologia molecular, e realmente, o elegante modelo descrito por Watson e Crick além de explicar as propriedades físico-químicas da molécula, também contemplava o entendimento do segredo da vida. Foi a primeira descoberta de uma série, que mudava o entendimento dos seres vivos e levava a um avanço fenomenal da biologia, abrindo a possibilidade da clonagem, da manipulação do conteúdo gênico ou engenharia genética, ao seqüenciamento e conhecimentos que contribuem para a sua utilização na melhoria da vida.

Em 1944, Avery, McCarthy e MacLeod haviam feito pela primeira vez uma transformação bacteriana mostrando que o DNA era a molécula informacional. Posteriormente, Chargaff mostrava que em DNA de qualquer organismo era mantida a relação na concentração de nucleotídeos [A] = [T] e [G] = [C]. Essa proporção, conhecida como regra de Chargaff e o conhecimento dos dados de cristalografia foram fundamentais para a elucidação da estrutura da molécula.

O modelo de Watson e Crick apresenta a molécula de DNA como um polímero em que os monômeros, os nucleotídeos, são ligados por uma reação fosfodiester entre o fosfato ligado ao carbono 5’ da pentose e o carbono 3’ do nucleotídeo adjacente, formando uma cadeia de nucleotídeos com sentido 5’-3’. A pentose no caso é uma desoxiribose, diferente do que acontece no RNA em que o açúcar é uma ribose (ver figura 1).

Figura 1: Açúcares presentes em ácidos nucleicos. À esquerda uma desoxiribose, com um H no carbono 2’ e à direita uma ribose com uma hidroxila no carbono 2’.

Duas cadeias interegem por ligações de pontes de hidrogênio, formadas entre as bases nitrogenadas, região hidrofóbica que fica assim voltada para dentro da molécula. A interação segue uma regra de pareamento na qual o par de bases formado é único, uma pirimidina e uma purina, um C com um G; um T com um A. Além disso, para manter a estabilidade e a homogeneidade da estrutura as fitas são anti-paralelas (ver figura 2).

Page 98: Livro CI 2007

 90 

Figura 2: Para de bases na estrutura do DNA, indicando as pontes de hidrogênio, que mantém a dupla hélice.

A longa molécula explica o comportamento viscoso de um DNA em solução e o conjunto de pontes de hidrogênio, mantendo a dupla fita, constitui uma ligação cooperativa que pode ser visualizada em ensaios de desnaturação do DNA. Dessa forma, as principais propriedades fisico-químicas também são contempladas.

O segredo da vida é a complementariedade das bases nitrogenadas nas fitas de DNA. Assim o modelo explica a propriedade biológica mais importante da molécula. Ao abrir a dupla fita, pode ocorrer a replicação da molécula, pois apenas uma base pode ser complementar à fita molde. Dessa forma fica garantida a exatidão na duplicação da informação que deve ser passada às células filhas.

A complementariedade explica ainda como a informação pode ser transcrita para uma molécula mais instável, o RNA, que também é constituído por nucleotídeos ligados covalentemente por ligação fosfodiester entre o fosfato ligado ao carbono 5’ e o carbono 3’ do açucar, que nessa molécula é uma ribose. O RNA, no entanto é uma molécula fita simples, mas sua síntese se dá pela complementariedade com a fita molde de DNA, a partir da qual a informação está sendo transcrita. O RNA por sua vez leva a informação até o local da síntese de proteína, a proteína é a expressão da informação. Sua estrutura e função, em última análise informada no DNA, vai constituir o fenótipo da célula.

Para que a síntese proteica ocorra é necessário que o RNA mensageiro se posicione no ribossomo. Dessa forma a sequência de nucleotídeos da mensagem será traduzida, utilizando o código genético, no qual cada três nucleotídeos (códon) corresponde a um aminoácido. Evidentemente, como em qualquer tradução, a necessidade da ação de um tradutor. Quem desempenha esse papel na célula é o RNA transportador. Como tradutor, essa molécula é capaz de falar as duas línguas da informação genética, nucleotídeos e aminoácidos. Novamente vemos a complementariedade em ação: o tRNA carregando um aminoácido pareia com o mRNA na região correspondente ao códon desse aminoácido, pois apresenta em sua molécula a região anti-códon, complementar ao códon do mRNA (figura 3).

Os estudos sobre como a informação esta armazenada, sobre como é lida e executada foram aparecendo e rendendo prêmios Nobel aos seus autores. A elucidação do código genético, feita por Khorana e Nirenberg; o mecanismo de replicação da molécula determinado por Ocha e Kornberg e a estrutura gênica e replicação de virus por Delbück, Hershey e Luria, são alguns dos estudos que podemos destacar (ver a lista ao final, do prêmio Nobel relacionados à Biologia Molecular).

Um outro marco na biologia molecular foi a descrição das enzimas de restrição, por Arber, Nathan e Smith. A possiblidade de cortar o DNA de um organismo em locais específicos e dessa forma reproduzir os fragmentos obtidos fez com que conteúdos gênicos pudessem ser melhor conhecidos. A ligação desses fragmentos à vetores de replicação independente, com vírus ou plasmídeos, permite que bactérias transformadas com esse DNA chimera, produzam o fragmento em grande quantidade. Assim surgem os métodos de análise que levam tanto à expressão do produto clonado, como a determinação da seqüência de nucleotídeos no fragmento em estudo. A técnica de seqüenciamento desenvolvida por Sanger, associada ao automatismo que foi paralelamente desenvolvido, culmina com a determinação dos conteúdos gênicos dos organismos. O genoma de Haemophylus influenza, o de Saccharomices cerevidae e

Page 99: Livro CI 2007

  91

depois o do Caenorhabditis elegans servem de treino para a determinação do genoma humano, publicado em 2000.

Figura 3: Estrutura de um tRNA e a associação com o mRNA – códon e anti-códon (retirado de Alberts e cols).

A metodologia de seqüenciamento se utiliza também da estrutura do DNA, de modo que a replicação in vitro possa ser controlada na produção de tantos fragmentos quantas bases compõem o fragmento em estudo. O “truque” utilizado por Sanger foi a utilização de um nucleotídeo modificado (didesoxirribonucleotídeo) na mistura de dNTP, que aborta o crescimento da molécula aleatoriamente. Como a posição do iniciador é conhecida, os fragmentos gerados correspondem à posição da base em que ocorreu a parada em relação ao iniciador.

Quase simultaneamente à descrição da técnica de seqüenciamento, uma outra técnica somou-se à revolucão na biologia molecular. Também baseada na reação de replicação, Mullis propõe uma reação em cadeia de polimerização. Novamente a possibilidade de automação e a utilização de DNA polimerase termo-estável, e depois ainda melhorada geneticamente, faz com que a PCR promova uma invasão da biologia molecular, tanto na produção de fragmentos de DNA, agora sem a necessidade de enzimas de restrição, que podem ser utilizados tanto para fins de clonagem e estudos de organização gênica e expressão em massa de proteínas, como na obtenção de sensibilidade de testes de identificação de DNA, que permitem encontrar material genético de um patógeno, ou detectar mutações em DNA genômico, identificar a alteração de genes em tumores, aumentando a sensiblidade de testes diagnósticos, como também em medicina forense, na identificação de indivíduos em circunstâncias várias como teste de paternidade, identificação de vítimas de acidentes e implicação de suspeitos em crimes como estupro ou mesmo assassinato.

A era pós-genômica faz com que a fisiologia retome o estudo organísmico, se utilizando agora de instrumentos moleculares. A possibilidade de manipulação gênica permite a construção de mutantes, com genes específicos alterados e assim, as funções/mecanismos fisiológicos podem ser diretamente implicadas à alteração. Ocorre então a possibilidade de abordar aspectos distintos na determinação de funções e mecanismos fisiológicos, bem como o de entender como se deram as adaptações evolutivas a determinadas condições ambientais.

Um capítulo do estudo do funcionamento dos genes é aquele relacionado à regulação de expressão, tanto ao longo do desenvolvimento e na diferenciação dos diferentes tecidos e órgãos, como em resposta a diferentes estímulos ou condições ambientais. Jacob e Monod, dois pesquisadores franceses, receberam o premio Nobel pela descrição da regulação de um conjunto de genes que permite a utilização de lactose como fonte de carbono em E.coli. A pesquisa daqueles pesquisadores definiu a existência de um repressor de transcrição, que impedia a ligação da RNA polimerase ao sítio promotor e assim impedia a produção do mRNA na ausência do açúcar no meio de cultura. Ao se adicionar lactose ao meio, o repressor se desliga do sítio repressor no DNA, ativando o promotor de RNA polimerase e permitindo a transcrição do operon lac e conseqüente utilização do açúcar. Ao se esgotar a fonte de carbono, a repressão ocorre

Page 100: Livro CI 2007

 92 

novamente pela ligação do repressor ao seu sítio no operon. Devemos enfatizar que em procariotos o processo transcrição-tradução é acoplado, uma vez que está ocorrendo num mesmo local.

A regulação da expressão em eucariotos ganha uma extensão maior uma vez que a existência do núcleo compartimentaliza a transcrição, desacoplando a tradução, que agora, para ocorrer necessita que RNA transcrito no núcleo seja transportado ao citoplasma da célula. A maturação desse pré-mRNA, por sua vez, necessita de mais reações, como a proteção das extremidades da molécula pela adição de CAP e de poli A, mas surpreendentemente, encontram-se regiões transcritas que são retiradas de dentro da molécula, por um mecanismo que se chamou “splicing”. A retirada dos introns consiste em mais um passo modulatório da regulação da expressão gênica em eucariotos, inclusive com a possibilidade de gerar diversidade pelo “splicing”alternativo, que pode ser período específico ou tecido específico.

Além da maturação do pré-mRNA, os pontos possíveis de regulação estão na própria transcrição, pela exposição dos promotores e pela existência de diferentes fatores de ligação à maquinaria de transcrição e região promotora. A estrutura da cromatina, expondo ou não os sítios promotores, ou mesmo modificações do DNA, como metilação ou acetilação de bases no promotor, ampliam as possibilidades de modulação da regulação de expressão gênica.

As descobertas mais recentes, acopladas ao desenvolvimento de novas tecnologias, residem na participação de pequenos RNAs que são capazes de regular a meia vida do mRNA a ser traduzido, regulando em outro ponto a expressão de genes.

Lista de Premios Nobel relacionados a Biologia Molecular: 2006 - Roger D. Kornberg - “for his studies of the molecular basis of eukaryotic

transcription” Química 1993 - Kary B. Mullis, Michael Smith – “for contributions to the developments of

methods within DNA-based chemistry"; KM - "for his invention of the polymerase chain reaction (PCR) method"; MS - "for his fundamental contributions to the establishment of oligonucleotide-based, site-directed mutagenesis and its development for protein studies" Química

1989 - Sidney Altman, Thomas R. Cech – “for their discovery of catalytic properties of RNA” Química

1982 - Aaron Klug – “for his development of crystallographic electron microscopy and his structural elucidation of biologically important nucleic acid-protein complexes” Química

1980 - Paul Berg - "for his fundamental studies of the biochemistry of nucleic acids, with particular regard to recombinant-DNA" and Walter Gilbert, Frederick Sanger - "for their contributions concerning the determination of base sequences in nucleic acids" Química

1958 - Frederick Sanger – “for his work on the structure of proteins, especially that of insulin" Química

2006 - Andrew Z. Fire, Craig C. Mello – “for their discovery of RNA interference - gene silencing by double-stranded RNA” Medicina e Fisiologia

2002 - Sydney Brenner, H. Robert Horvitz, John E. Sulston – “for their discoveries concerning 'genetic regulation of organ development and programmed cell death'” Medicina e Fisiologia

2001 - Leland H. Hartwell, Tim Hunt, Sir Paul Nurse – “for their discoveries of key regulators of the cell cycle” Medicina e Fisiologia

1999 - Günter Blobel – “for the discovery that proteins have intrinsic signals that govern their transport and localization in the cell” Medicina e Fisiologia

1993 - Richard J. Roberts, Phillip A. Sharp – “for their discoveries of split genes” Medicina e Fisiologia

1989 - J. Michael Bishop, Harold E. Varmus – “for their discovery of the cellular origin of retroviral oncogenes" Medicina e Fisiologia

1987 - Susumu Tonegawa – “for his discovery of the genetic principle for generation of antibody diversity” Medicina e Fisiologia

1986 - Stanley Cohen, Rita Levi-Montalcini – “for their discoveries of growth factors Medicina e Fisiologia

Page 101: Livro CI 2007

  93

1983 - Barbara McClintock - “for her discovery of mobile genetic elements” Medicina e Fisiologia

1978 - Werner Arber, Daniel Nathans, Hamilton O. Smith – “for the discovery of restriction enzymes and their application to problems of molecular genetics” Medicina e Fisiologia

1975 - David Baltimore, Renato Dulbecco, Howard M. Temin – “for their discoveries concerning the interaction between tumour viruses and the genetic material of the cell” Medicina e Fisiologia

1969 - Max Delbrück, Alfred D. Hershey, Salvador E. Luria – “for their discoveries concerning the replication mechanism and the genetic structure of viruses” Medicina e Fisiologia

1968 - Robert W. Holley, H. Gobind Khorana, Marshall W. Nirenberg – “for their interpretation of the genetic code and its function in protein synthesis” Medicina e Fisiologia

1965 - François Jacob, André Lwoff, Jacques Monod – “for their discoveries concerning genetic control of enzyme and virus synthesis” Medicina e Fisiologia

1962 - Francis Crick, James Watson, Maurice Wilkins – “for their discoveries concerning the molecular structure of nucleic acids and its significance for information transfer in living material” Medicina e Fisiologia

1959 - Severo Ochoa, Arthur Kornberg – “for their discovery of the mechanisms in the biological synthesis of ribonucleic acid and deoxyribonucleic acid” Medicina e Fisiologia

1958 - George Beadle, Edward Tatum – “for their discovery that genes act by regulating definite chemical events" and Joshua Lederberg - "for his discoveries concerning genetic recombination and the organization of the genetic material of bacteria" Medicina e Fisiologia

Referências

Alberts, B., Bray, D., Lewis, J., Raff,M., Roberts, K., Watson, J. D., Trad. Simonetti, A. B.; “Biologia Molecular da Célula”. 3a edição. Porto Alegre, 1997.

Lewin, B. Genes V. Oxford University Press. 1995, 1296p. Sambrook, J.; Fritsch, E.F.; Maniatis, T. Molecular cloning, a laboratory manual. Cold Spring Harbor (USA): Cold Spring

Harbor Laboratory Press, 1989. Watson, J.D.; Hopkins, N.H.; Roberts, J.W.; Steitz, J.A.; Weiner, A.M. Molecular biology of the gene. Menlo Park

(California, USA): The Benjamin/Cummings Publishing Company, Inc., 1987.

Page 102: Livro CI 2007

 94 

Manipulação gênica no estudo da fisiologia Emerson Augusto Castilho Martins ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia de Tripanossomatídeos

O estudo da fisiologia sempre ocupou destaque dentre os diversos ramos das ciências naturais, pois traz o conhecimento do funcionamento dos diversos sistemas de resposta dos organismos às diferentes condições do meio em que vivem, nas diferentes fases de suas vidas. A fisiologia comparativa aparece, então, procurando mecanismos comuns a diferentes organismos, esclarecendo padrões de resposta frente a condições semelhantes. No entanto, Goldstein & Pinshow (2006) levantam um paradigma: como estabelecer condições controladas em estudos em campo? Nesse sentido, a evolução das técnicas de biologia molecular aparece de maneira a acrescentar novas perspectivas no estudo da fisiologia comparativa. Através dessas técnicas foi possível, por exemplo, a descrição de mecanismos genéticos de controle de pressão arterial (Khalil 2006), detectar mecanismo de expressão gênica em peixes induzido por hipóxia (Nikinmaa & Rees 2005), compreender múltiplos fatores que levam à ingestão de alimentos (Seeley & Moran 2002) e mecanismos de transporte de íons inorgânicos (Werner & Kinne 2001), além de vários outros exemplos.

1. Clonagem A clonagem é o processo que leva à obtenção de cópias idênticas de uma molécula,

célula ou organismo. É realizada há anos nos processos de obtenção de mudas de vegetais, mas o termo ganhou destaque na mídia com o aparecimento da clonagem de um mamífero.

1.1 Clonagem Molecular Também conhecida como tecnologia do DNA recombinante, é uma técnica

desenvolvida no início dos anos 70 (Alberts 2002). Consiste basicamente em isolar um fragmento de DNA, colocá-lo em uma célula de modo a permitir sua replicação, produzindo milhões de cópias idênticas do fragmento em poucas horas. Para isso, é necessária a utilização de vetores de clonagem. Existem diversos tipos de vetores, mas a utilização de plasmídeos ou de bacteriófagos são as mais comuns.

Essas técnicas permitem não só a identificação, mas também a expressão de genes de diferentes espécies em modelos unicelulares, permitindo a descrição de sistemas de controle da homeostase. Akabane et al. (2007) mapearam um gene de aquaporina de um anfíbio anuro, e clonaram o mesmo para ser expresso em oócitos da rã Xenopus. Com isso, observaram que a presença da proteína em questão aumentou em 8 vezes a permeabilidade à água dos oócitos transfectados; Gilmour et al (2007) clonaram a proteína anidrase carbônica IV encontrada em cações-esporão Squalus acanthia e descreveram uma via auxiliar na excreção de CO2; Bewley et al. (2006) avaliaram um aumento de 10 vezes na condutibilidade de cloreto na presença de um receptor de peptídeo vasoativo intestinal clonado a partir do mesmo cação e expresso em oócitos de Xenopus.

1.1.1 Clonagem Molecular com Plasmídeos Para a utilização de plasmídeos como vetores, é necessário que os mesmos

apresentem algumas características conhecidas: a) um sítio de origem de replicação, que torna possível sua multiplicação pela célula que o recebeu; b) a presença de sítios de restrição únicos, que permitem com que a digestão utilizando-se enzimas de restrição linearize o plasmídeo, e então seja possível a ligação do gene de interesse (inserto) no vetor; c) presença de marca de seleção, como por exemplo, a resistência a antibióticos. Desta forma, é possível fazer com que somente as células que receberam o vetor cresçam no meio de cultura, sob pressão de seleção; d) presença de um gene marcador de inserção e a presença de uma região promotora. Esse gene reporter será interrompido no processo de ligação do inserto. Assim, consegue-se distinguir os clones que receberam o vetor com o inserto daqueles que o receberam sem o inserto.

1.1.2 Clonagem Molecular com Bacteriófagos Outro vetor bastante utilizado para a clonagem molecular é o bacteriófago,

comumente chamado de “fagos”. São vírus que infectam bactérias e, desta forma,

Page 103: Livro CI 2007

  95

permitem a clonagem de fragmentos maiores de DNA. Enquanto que com os plasmídeos é possível a clonagem de fragmentos com tamanho de até 5000 pares de base, com a utilização dos fagos é possível a transfecção de fragmentos de até 40000 pares de bases (Brown 1990).

1.2 Clonagem Celular Consiste em obter uma população de células idênticas a partir de uma única célula.

A técnica é muito simples para organismos unicelulares, bastando acrescentá-los a um meio de cultura adequado, com todos os fatores estimulatórios de crescimento e assim ocorrerão divisões mitóticas levando a um aumento no número de células por reprodução assexuada. No entanto, quando se deseja clonar células de organismos mais complexos, algumas características peculiares devem ser consideradas: as células normais tendem a apresentar um limitado número de divisões, parando então sua divisão ou entrando em apoptose. Isso torna difícil a manutenção desses tipos celulares para cultura de tecidos in vitro. Uma alternativa para solucionar esse problema é a utilização de células originárias de carcinomas, que não entram em apoptose.

A cultura de tecidos in vitro, além de permitir estudos de resposta celular a diferentes tipos de tratamentos também permite identificar o funcionamento das células em um sistema isolado, abrindo perspectivas para a elucidação de mecanismos fisiológicos.

1.2.3 Clonagem de Organismos É o nome dado à obtenção de cópias idênticas de indivíduos pluricelulares. Embora

a humanidade já faça isso há centenas de anos com plantas (processo de reprodução por muda), o termo ganhou enorme destaque na mídia somente após o anúncio de pesquisadores do Roslin Institute, na Escócia, terem anunciado a clonagem de uma ovelha (Wilmut et al. 1997). A clonagem em animais existe desde meados do século passado. Briggs e King (1952) transferiram núcleos de blástula para um óvulos enucleado de sapos e conseguiram obter embriões completos. Gurdon (1966) demonstrou a totipotência da informação gênica, transferindo núcleos de células de alguns tecidos para óvulos enucleados de Xenopus, conseguindo também o desenvolvimento de girinos completos.

Atualmente os processos de clonagem de animais envolvem a transferência de núcleo de célula somática para um óvulo enucleado. Hoje, 10 anos após o anúncio do nascimento da Dolly, o processo de transferência ainda apresenta obstáculos que impedem que a tecnologia seja aplicada em massa. A eficiência da obtenção de clones nascidos através desse processo não passa de 3 a 5% das tentativas, e mesmo dentre os nascidos, não se pode considerá-los completamente desenvolvidos e saudáveis (Fulka & Fulka 2007). No entanto, as perspectivas para o processo ainda são promissoras: seria possível, por exemplo, obter um tecido para transplante do próprio paciente, portanto, não passível de rejeição, se o núcleo de célula do mesmo for transferido para uma célula tronco.

Independente da utilização terapêutica da clonagem, o processo em si também facilita estudos com modelos de animais que apresentam características genéticas interessantes, que poderiam passar por reprodução in vitro em massa e, com isso, difundir o modelo para se aumentar os estudos, além da questionável aplicação na reprodução de espécies em extinção (Trounson 2006).

2. Transgênese Animais transgênicos, também conhecidos como OGM (organismos geneticamente

modificados), são animais que apresentam fragmentos de DNA estranhos ao seu genoma, ou que apresentam modificações induzidas artificialmente em seu genoma (Melo et al. 2007).

2.1 Histórico Os primeiros animais transgênicos datam da década de 70; eram camundongos

transfectados com vírus para desenvolverem leucemia (Jaenisch et al. 1975). A técnica de utilização de vírus para a inserção de material genético em células é bastante comum ainda hoje, embora ela apresente limitações como por exemplo o fato de transfecções com vírus gerarem animais quiméricos, sem capacidade reprodutiva (Melo et al. 2007). Um aperfeiçoamento desta técnica utiliza a transfeção viral em células germinativas. Essa

Page 104: Livro CI 2007

 96 

técnica consegue até 4,5% de sucesso na progênie e gera indivíduos férteis (Nagano et al. 2001).

2.2 Métodos Atuais Outros métodos de transgênese incluem o uso de biobalística, onde o DNA é

bombardeado juntamente com partículas metálicas; eletroporação, onde células recebem um pulso elétrico que desestabiliza a membrana plasmática e permite a entrada do material genético; ou o uso de vetores de transposons, que permitem a inserção do material genético em locais específicos do genoma.

Conhecendo-se a seqüência na qual o material genético deve ser introduzido, pode-se fazer uma construção que, através de recombinação homóloga, passará a ocupar aquele local. Com isso, é possível inativar a expressão de determinados genes (nocautes) ou aumentar a expressão de genes através do aumento do número de cópias do mesmo no genoma. É possível também modificar um gene existente para que o organismo produza proteínas modificadas. Com essa tecnologia é possível, por exemplo, a produção de proteínas humanas em leite, saliva, urina, sangue ou líquido seminal (Dyck et al. 2003). Assim, é possível direcionar a expressão do gene inserido adicionando-se o mesmo em promotores tecido-específicos, fazendo com que o produto seja encontrado apenas em um único local, diminuindo os riscos de alteração fisiológica letal no animal.

2.3 Aplicações dos Transgênicos Dentre algumas aplicações da transgênese animal, uma que se destaca é a

obtenção de modelos animais para o estudo de patologias genéticas humanas. Dessa forma, foi possível, por exemplo, a obtenção de porcos expressando a proteína regulatória do complemento CD54 humana. Estes animais foram analisados até os 18 meses de vida e expressaram o transgene, embora não apresentaram nenhum quadro patológico associado à presença da proteína humana (Deppenmeier et al. 2006).

Uma outra aplicação, que gera uma controvérsia ainda maior, é o uso de animais geneticamente modificados, com a intenção de substituir a população de animais vetores de doenças. Assim, mosquitos Anopheles geneticamente modificados de modo a não permitir o desenvolvimento do parasita, poderiam ser utilizados em controle de malária em áreas endêmicas (Catteruccia 2007).

3. Células-tronco São células que apresentam a capacidade de se dividir e o potencial para gerar

outros tipos de células, ditas diferenciadas. Apresentam diversos tipos, classificados de acordo com a sua capacidade de diferenciação:

Células Totipotentes, encontradas nos embriões, antes da fase de blastocisto. Nesse ponto, o embrião ainda não foi implantado, e as células apresentam a capacidade de se diferenciarem tanto em células de anexos embrionários, como a placenta, e os demais tecidos do organismo.

Células Pluripotentes, encontradas no blastocisto e que podem originar todos os tipos celulares dos tecidos, como neurônios, células do sangue, fígado, dentre outros.

Células Multipotentes, que podem dar origem a células diferentes dentro de uma mesma linhagem, como por exemplo, as células hematopoiéticas, que dão origem a diversos tipos celulares sangüíneos. São encontradas em adultos, e seu uso terapêutico está sendo comumente realizado em alguns países.

3.1 Células-tronco de indivíduos adultos São encontradas em diversos tecidos, sendo as mais comumente utilizadas as

encontradas na medula óssea, no tecido adiposo, glândulas mamárias, fígado, dentre outras descritas ou ainda não descritas.

As possibilidades e limitações na utilização para a regeneração de tecidos são controversas: enquanto alguns pesquisadores supõem que essas linhagens celulares apresentam capacidade limitada de diferenciação, trabalhos são feitos e resultados promissores são conseguidos através da indução da diferenciação destes tipos celulares em outras linhagens (Verfaillie 2005; Beltrami et al. 2007).

Embora ainda não esteja claro o potencial das células-tronco adultas, pesquisas e mesmo tratamentos com estes tipos celulares não passam por conflitos éticos muito

Page 105: Livro CI 2007

  97

grandes na maioria das culturas, já que as células podem ser obtidas do próprio indivíduo, sem a necessidade do descarte de embriões.

3.2 Células-tronco de anexos embrionários São células encontradas principalmente na placenta, cordão umbilical e, também

descobertas recentemente, no líquido amniótico (De Coppi et al. 2007). Com isso, é possível a criação de bancos de células-tronco obtidas de anexos embrionários, o que facilitaria encontrar células compatíveis com pacientes que necessitem do implante.

3.3 Células-tronco embrionárias Obtidas à partir de embriões de até 14 dias, essas células são pluripotentes e

apresentam grande perspectiva na terapia celular. Podem se diferenciar em qualquer tipo de tecido, e portanto dão esperança para a cura de doenças degenerativas, como o Mal de Alzheimer e Mal de Parkinson, ou ainda na regeneração de tecidos cardíacos pós-infarto, leucemia, distrofia muscular e acidentes com rompimento da medula espinal.

O uso de células-tronco embrionárias em pesquisas gerou uma discussão ética, já que foi levantada a questão da utilização de embriões para fins não reprodutivos. É de se estranhar que essa questão tenha sido levantada somente agora, quando surgiu uma perspectiva para a utilização de embriões rotineiramente descartados em clínicas de assistência à reprodução. No entanto, estas questões têm sua importância por nos levar a refletir sobre o papel da ciência, bem como sua relação com a sociedade.

Referências

Akabane, G., Y. Ogushi, T. Hasegawa, M. Suzuki & S. Tanaka (2007). "Gene cloning and expression of an aquaporin, AQP-h3BL, in the basolateral membrane of water-permeable epithelial cells in osmoregulatory organs of the tree frog." Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol.

Alberts, B. (2002). Molecular biology of the cell. New York, Garland Science. Beltrami, A. P., D. Cesselli, N. Bergamin, et al. (2007). "Multipotent cells can be generated in vitro from several adult

human organs (heart, liver and bone marrow)." Blood. Bewley, M. S., J. T. Pena, F. N. Plesch, et al. (2006). "Shark rectal gland vasoactive intestinal peptide receptor: cloning,

functional expression, and regulation of CFTR chloride channels." Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol 291(4): R1157-64.

Briggs, R. & T. J. King (1952). "Transplantation of Living Nuclei From Blastula Cells into Enucleated Frogs' Eggs." Proc Natl Acad Sci U S A 38(5): 455-63.

Brown, T. A. (1990). Gene cloning : an introduction. London ; New York, Chapman & Hall. Catteruccia, F. (2007). "Malaria vector control in the third millennium: progress and perspectives of molecular

approaches." Pest Manag Sci. De Coppi, P., G. Bartsch, Jr., M. M. Siddiqui, et al. (2007). "Isolation of amniotic stem cell lines with potential for

therapy." Nat Biotechnol 25(1): 100-6. Deppenmeier, S., O. Bock, M. Mengel, et al. (2006). "Health status of transgenic pigs expressing the human

complement regulatory protein CD59." Xenotransplantation 13(4): 345-56. Dyck, M. K., D. Lacroix, F. Pothier & M. A. Sirard (2003). "Making recombinant proteins in animals--different systems,

different applications." Trends Biotechnol 21(9): 394-9. Fulka, J., Jr. & H. Fulka (2007). "Somatic cell nuclear transfer (SCNT) in mammals: the cytoplast and its reprogramming

activities." Adv Exp Med Biol 591: 93-102. Gilmour, K. M., M. Bayaa, L. Kenney, B. McNeill & S. F. Perry (2007). "Type IV carbonic anhydrase is present in the

gills of spiny dogfish (Squalus acanthias)." Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol 292(1): R556-67. Goldstein, D. L. & B. Pinshow (2006). "Taking physiology to the field: using physiological approaches to answer

questions about animals in their environments." Physiol Biochem Zool 79(2): 237-41. Gurdon, J. B. (1966). Xenopus laevis, the South African Clawed Frog. In Techniques in Developmental Biology. New

York, Crowell. Jaenisch, R., H. Fan & B. Croker (1975). "Infection of preimplantation mouse embryos and of newborn mice with

leukemia virus: tissue distribution of viral DNA and RNA and leukemogenesis in the adult animal." Proc Natl Acad Sci U S A 72(10): 4008-12.

Khalil, R. A. (2006). "Dietary salt and hypertension: new molecular targets add more spice." Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol 290(3): R509-13.

Melo, E. O., A. M. Canavessi, M. M. Franco & R. Rumpf (2007). "Animal transgenesis: state of the art and applications." J Appl Genet 48(1): 47-61.

Nagano, M., C. J. Brinster, K. E. Orwig, et al. (2001). "Transgenic mice produced by retroviral transduction of male germ-line stem cells." Proc Natl Acad Sci U S A 98(23): 13090-5.

Nikinmaa, M. & B. B. Rees (2005). "Oxygen-dependent gene expression in fishes." Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol 288(5): R1079-90.

Seeley, R. J. & T. H. Moran (2002). "Principles for interpreting interactions among the multiple systems that influence food intake." Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol 283(1): R46-53.

Trounson, A. O. (2006). "Future and applications of cloning." Methods Mol Biol 348: 319-32. Verfaillie, C. (2005). "Stem cell plasticity." Hematology 10 Suppl 1: 293-6. Werner, A. & R. K. Kinne (2001). "Evolution of the Na-P(i) cotransport systems." Am J Physiol Regul Integr Comp

Physiol 280(2): R301-12. Wilmut, I., A. E. Schnieke, J. McWhir, A. J. Kind & K. H. Campbell (1997). "Viable offspring derived from fetal and adult

mammalian cells." Nature 385(6619): 810-3.

Page 106: Livro CI 2007

 98 

Page 107: Livro CI 2007

  99

A expressão de proteínas heterólogas Maíra Natali Nassar ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia de Tripanossomatídeos

O entendimento da regulação da expressão gênica permitiu, entre outras coisas, a possibilidade de manipulação gênica na qual vetores de expressão são construídos colocando genes sob o controle de um dado promotor, cuja expressão pode ser indutível ou contínua. A descoberta de diferentes promotores e repressores específicos tanto do genoma de E. coli, como de vírus de E. coli ou mesmo de células eucarióticas permitiu a que a célula hospedeira reconheça o sinal e a expressão das proteínas heterólogas ocorra. O primeiro, e mais comumente usado, sistema de expressão de proteínas heterólogas em E. coli é baseado no operon lac (Figura 1). Neste sistema, o DNA de interesse é clonado em fago (no caso de biblioteca de cDNA de expressão) ou plasmídeo contendo o lacI (repressor), lacP (promotor) e lacZ (gene estrutural transcrito para mRNA da β -galactosidase). A indução da transcrição é obtida pela adição de um análogo de lactose sintético e não degradável (isopropiltio-β-D-galactosídeo, IPTG), o qual se associa ao repressor e inibe-o, deixando o promotor livre para a interação com a RNA polimerase e conseqüente transcrição do gene (Jacob e Monod, 1961).

A célula hospedeira mais utilizada para expressão de proteínas heterólogas é a E. coli. O sistema E.coli/vetor de expressão para essa bactéria é amplamente difundido devido à facilidade e baixo custo de se cultivar E. coli, e pela reprodutibilidade e abundância de proteína que produz. Além disso, modificações nos vetores e linhagens de E. coli são freqüentemente feitas no sentido de aumentar a eficiência e versatilidade do sistema original. Com isto, e com o advento de novos sistemas de expressão em células de eucariotos (levedura, insetos, mamífero), a expressão de proteínas tornou-se uma abordagem poderosíssima que vem revolucionando os estudos de estrutura, função, purificação e identificação de novas proteínas. Nesses outros sistemas, o recombinante a ser introduzido no hospedeiro alvo pode ser facilmente construído e amplificado em E. coli. Por isso os plasmídeos de levedura, mamífero, etc. são construídos por fusão de uma porção de um plasmídeo de E. coli (origem de replicação e resistência a um antibiótico) com seqüências específicas para se obter expressão em célula eucariótica, o chamado plasmídeo “suttle” (Alberts, 2002; Berg, 2001, Griffiths, 1999; Lehninger, 1995)

Figura 1: operon de lactose em Escherichia coli. A regulação se dá por um mecanismo de repressão. Na ausência de lactose (painel de cima), o repressor LacI (azul) ocupa lacO (vermelho) e impede a transcrição dos genes estruturais Z,Y,A. Quando lactose (laranja) ou seu análogo (IPTG) estão presentes (painel de baixo), o repressor se modifica estruturalmente o que diminui a afinidade por lacO permitindo a transcrição dos genes. Gene codificador do repressor lac (LacI), P: promotor, O: seqüência operadora (lacO), Z,Y,A: genes codificadores de proteínas que utilizam lactose, Z: galactosidase, Y: permease, A: transacetilase (retirado de Mills, 2001).

Page 108: Livro CI 2007

 100 

O uso de E. coli para a obtenção de proteína em quantidade suficiente para o estudo da estrutura e função da mesma ou para aplicações clínicas ou industriais é hoje disseminado e constitui-se em um marco na história do nosso conhecimento de estrutura de proteínas.

O procedimento de clonagem de um fragmento de DNA para expressão é exatamente igual a qualquer clonagem, no entanto, deve se ter em mente que o propósito será obter a proteína correta. Para tanto, é necessário respeitar o sinal de tradução de genes procarióticos (sinal de Shine-Dalgarno), em outras palavras, o DNA deve ser clonado de maneira que sua fase de leitura correta fique em fase com o ATG iniciador (Alberts, 2002).

Além disso, um vetor para expressão em E. coli deve apresentar as seguintes características:

• Origem de replicação: seqüência de reconhecimento e ligação da DNA polimerase para o início da replicação, independente da replicação do cromossomo bacteriano.

• Marcador para seleção: gene que confere resistência a antibióticos como ampicilina, tetraciclina, cloranfenicol, neomicina. Ex. o gene da �-lactamase que confere resistência a ampicilina.

• Um promotor para transcrição: como os vetores de expressão são normalmente projetados no sentido de produzir proteína em abundância, o DNA codificador da proteína deve ser colocado sob o comando de um promotor forte (exemplos: lacZ, tac (trp+lacZ), � -pR, � -pL, p� 10 do bacteriófago T7) e regulável, isto é, contendo um repressor para manter os níveis basais de expressão do gene insignificantes até a indução, o que se faz geralmente por adição de IPTG, no caso por ex. do repressor lacI, ou choque térmico, no caso do repressor cIts857.

• Sinal de terminação da transcrição: permite a maturação do mRNA. • Seqüências para controle da tradução, como por ex., um sítio de ligação ao

ribossomo para a iniciação da tradução (Shine-Dalgarno) e um ATG iniciador. Um sinal de terminação da tradução (códon de terminação) também deve estar presente no vetor ou no inserto a ser clonado, ou deve ser adicionado.

• Um MSC (sítio múltiplo de clonagem): para facilitar a inserção do gene de interesse na orientação correta.

Uma vez construído, o vetor de expressão contendo a seqüência codificadora da proteína de interesse é introduzido em E.coli por transformação.

Ao planejar uma subclonagem para a expressão de proteína, além de se respeitar a fase de leitura correta, deve-se também tentar à medida do possível fazer a clonagem unidirecional do inserto. Na clonagem unidirecional utilizam-se duas enzimas de restrição para digerir o vetor e o DNA inserto. Na bidirecional utiliza-se uma única enzima, de modo que as pontas são iguais, permitindo a inserção do fragmento em ambas as orientações. Assim, em uma clonagem bidirecional há teoricamente, 50% de probabilidade de se obter os recombinantes na orientação correta (sense) e 50% na orientação invertida (anti-sense).

A análise de DNA plasmidial para a seleção dos subclones corretos era feita por digestão com enzimas de restrição, hoje, no entanto, a possibilidade de se desenhar iniciadores específicos permite obter o fragmento de interesse por PCR. A confirmação final da construção se dá por seqüenciamento (Alberts, 2002; Berg, 2001, Griffiths, 1999; Lehninger, 1995).

Expressão em Escherichia coli De maneira ideal, quando se pensa em expressão heteróloga, espera-se que a

proteína de interesse seja estável, não tóxica para a bactéria, solúvel, produzida em grande quantidade e possa ser facilmente purificada. Um procedimento muito utilizado é o de expressar a proteína de interesse em fusão com um "tag" específico que permita a fácil purificação da mesma através de cromatografia por afinidade em resinas às quais se encontram acopladas ligantes, aos quais o "tag" possa se ligar especificamente. Uma outra vantagem óbvia de se produzir uma proteína híbrida, ou de fusão, é no caso da expressão de polipeptídeos pequenos ou mesmo peptídeos, os quais, sem fusão, seriam instáveis e rapidamente degradados na célula.

Em geral projeta-se ainda um sítio sensível a uma determinada protease (ex: fator Xa, trombina), inserido imediatamente acima do sítio de clonagem, de maneira que a

Page 109: Livro CI 2007

  101

proteína híbrida possa ser clivada liberando a proteína clonada que pode então ser facilmente purificada utilizando-se a mesma coluna de afinidade. A coluna reterá a proteína de fusão e eliminará no "void", a proteína de interesse (Alberts, 2002; Lehninger, 1995).

O procedimento de proteólise é relativamente trabalhoso e nem sempre eficiente, por isso quando não há interferência da parte fundida, se utiliza a própria proteína híbrida, por exemplo, para experimentos funcionais, produção de anticorpos, etc. Note que neste caso pode ser estratégico ter o mesmo DNA clonado em dois sistemas de fusão diferentes. Isto permitirá que anticorpos produzidos contra uma proteína híbrida sejam purificados por afinidade contra a outra, purificando-se assim apenas anticorpos cujos epítopos localizam-se na proteína clonada.

Dentre os vetores utilizados com sucesso para a produção de proteínas híbridas podemos citar:

• pGEX: apresenta a glutationa-S-transferase de Schistosoma japonicum (26 kDa) como proteína de fusão, permitindo a purificação da proteína de fusão em coluna de agarose-glutationa

• pMAL: apresenta a proteína ligante de maltose (PLM) de bactéria (42 kDa) como fusão, permitindo a purificação da proteína de fusão em coluna com amilose acoplada

• pQE: apresenta um "tag" de 6 resíduos de histidina como fusão e permite a purificação das proteínas de fusão em colunas quelantes de Ni2+

• pUR: cuja fusão é um fragmento da � -galactosidase. • pUC, pTZ, pSK, pBluescript, pGEM: baseados no operon lac (Messing, 1993;

Norander et al., 1993; Yanish-Perron et al., 1985). A produção de proteínas híbridas é geralmente muito simples, eficiente e de baixo

custo, podendo suprir de imediato necessidades da pesquisa básica, tais como, produção de anticorpos e purificação destes por afinidade, sondas em experimentos variados e para estudos funcionais e estruturais da proteína expressa. Permite, também, a expressão em grande escala, para fins industriais ou clínicos de enzimas, hormônios, anticorpos, etc., quando a atividade da proteína é preservada. Além disto, é possível se obter, por mutagênese, proteína com a atividade de interesse potenciada e livre de efeitos adversos ou atividades indesejadas.

É importante estar alerta de que a situação ideal exposta acima nem sempre é atingida. Na realidade, na grande maioria das vezes, proteínas de eucarioto produzidas em bactéria não são solúveis; às vezes podem ser tóxicas para a célula; algumas são expressas em baixos níveis; algumas interferem com a sua fusão inibindo-a de se ligar à resina de afinidade e tornando a purificação menos eficiente; outras formam agregados extremamente insolúveis mesmo na presença de SDS/� -mercaptoetanol; algumas têm a sua atividade biológica plenamente recuperada, porém outras são inativas.

Assim, dentre os problemas mais comuns que ocorrem com a produção de proteínas heterólogas em E. coli, podemos citar:

• Proteínas tóxicas: algumas proteínas são tóxicas para a célula hospedeira. Neste caso, pode-se proceder a secreção. Uma alternativa à produção de proteína citoplasmática, é a produção de proteínas que são secretadas. Para tanto basta clonar o DNA de interesse em fusão com uma seqüência codificadora para um peptídeo sinal de procarioto. Esse peptídeo é clivado pela peptidase sinal quando a proteína é secretada para o periplasma. Embora esse método freqüentemente traga problemas com o rendimento ou a clivagem do peptídeo sinal, há vantagens em alguns casos: no caso de proteínas tóxicas para a bactéria; algumas proteínas degradadas por protease no citoplasma são estáveis no periplasma; algumas que são inativas quando produzidas intracelularmente são ativas quando secretadas; a proteína produzida já tem a sua metionina N-terminal processada. Um exemplo de sucesso é a expressão do hormônio fator de crescimento epidermal humano (hEGF) sob o comando do promotor da fosfatase alcalina (phoA) e com a seqüência sinal desta. A indução é obtida sob privação de fosfato do meio.

• Proteínas instáveis: isto pode ser resolvido reduzindo-se a temperatura de crescimento ou mudando-se para uma linhagem de bactéria deficiente em uma ou mais proteases. Mesmo assim é comum se obter algum nível de fragmentação da proteína expressa.

Page 110: Livro CI 2007

 102 

• Baixos níveis de expressão: pode ocorrer pelas razões acima dentre outras, como, por exemplo, instabilidade do mRNA, término prematuro da mensagem, tradução ineficiente.

• Proteínas insolúveis: proteínas de eucariotos produzidas em bactéria são geralmente precipitadas na forma de corpos de inclusão e requerem procedimentos adicionais de desnaturação para solubilizá-las e de renaturação para mantê-las solúveis e funcionais. Isto nem sempre é um problema, pois a formação de corpos de inclusão pode proteger a proteína contra a degradação por proteases bacterianas e também facilitar a purificação, uma vez que são corpos densos, precipitados à baixa velocidade de centrifugação, enquanto a maior parte das proteínas bacterianas permanecem no sobrenadante. Mas algumas vezes não se consegue renaturação adequada da proteína purificada. Nesse caso deve-se tentar atenuar a formação de corpos de inclusão alterando as condições de expressão, por exemplo, crescendo-se a cultura a temperatura mais baixa após a indução ou utilizando um promotor mais fraco (Alberts, 2002; Berg, 2001; Sambrook, 2001; Griffiths, 1999 Lehninger, 1995).

Expressão em células de inseto Sistemas de expressão que utilizam como vetor baculovírus, um tipo de vírus que

infecta apenas células de inseto. O Bac-to-BacTM da Life Technologies é um dos sistemas comerciais que têm sido utilizados para produção de proteínas recombinantes de interesse médico e veterinário. Nos últimos anos foram utilizados na produção de prolactina humana, leptina humana, as glicoproteínas gC e gD do envelope do Herpesvirus (Berg, 2001).

Para a produção de proteínas através desse sistema, utilizam-se células de inseto, que por serem eucariotos são capazes de executar as modificações pós-tradução, gerando proteínas estruturalmente idênticas ou muito semelhantes às encontradas in vivo nas células de mamíferos.

As células de inseto mais comumente usadas são células epiteliais do ovário da lagarta Spodoptera frugiperda, linhagens conhecidas como Sf9 e Sf21, além de células ovo de Trichoplusia ni, comercializada com o nome de High FiveTM. Para fazer com que essas células produzam a proteína de interesse, elas são transfectadas com o genoma viral recombinante de um baculovírus. A transfecção gera partículas virais recombinantes que são exportadas para o exterior das células, transformando o meio de cultura em um inóculo contendo o baculovírus recombinante que é usado para infectar novas células e produzir a proteína de interesse. As vantagens deste sistema são:

• As células de inseto processam proteínas complexas, produzindo-as do mesmo modo que são produzidas in vivo, ou de modo bastante semelhante.

• Se a proteína produzida tiver um peptídeo sinal de secreção, que seja reconhecido pelas células de inseto, será exportada para o sobrenadante da cultura. Como já existem células de inseto adaptadas ao cultivo em meio sem soro fetal bovino, a proteína secretada pode ser purificada a partir do meio de cultura com facilidade.

• Pelo fato do baculovírus ser específico para insetos, não há risco de contaminação dos seres humanos envolvidos.

• O nível de produção é elevado, se comparado com os níveis obtidos quando se utiliza outros sistemas de expressão (Sambrook, 2001).

Expressão em Saccharomyces cereviseae Entre os eucariotos, as leveduras são organismos particularmente convenientes para

engenharia genética. As razões são as mesmas para E.coli como um organismo experimental: a genética da levedura é uma disciplina bem desenvolvida; o genoma da levedura mais utilizada, Saccharomyces cereviseae, contém apenas 14x10 6 pares de bases (um genoma simples para os padrões eucarióticos); finalmente a levedura é um microorganismo que é muito fácil de manter e crescer em larga escala. Os vetores de levedura têm os mesmo princípios que os vetores de E.coli (Alberts, 2002; Lehninger, 1995).

Um dos problemas no manuseio de leveduras é a dificuldade em atravessar a parede celular para introdução do material genético. Esse problema foi contornado com métodos que acoplavam a degradação enzimática parcial da parede celular com um tratamento por polietilenoglicol-cálcio, tornando as células suficientemente poderosas para

Page 111: Livro CI 2007

  103

a captação do DNA. O sistema genético do organismo tem sido explorado em 2 caminhos importantes, nenhum dos dois requer grande produção de proteínas heterólogas: 1- devido a grande variedade de mutantes de S. cereviseae que podem ser complementados pela expressão de proteínas homólogas de mamíferos, leveduras podem ser usadas como hospedeiros para isolar cDNAs de mamíferos por complementação; 2- o poder genético de leveduras tem sido explorado para desenvolver sistemas seletivos para isolar genes que codificam proteínas interativas (Alberts, 2002; Berg, 2001, Griffiths, 1999; Lehninger, 1995).

Expressão em células de mamíferos Um certo número de vírus eucarióticos algumas vezes integra o seu material

genético em um cromossomo na célula hospedeira. Alguns deles, em particular certos retrovírus têm sido modificados para agirem como vetores virais. Os vírus possuem os seus mecanismos próprios para introduzirem ácido nucléico nas células. Quando o vírus entra na célula, o seu genoma de RNA é convertido em DNA pela transcriptase reversa e é então integrado num genoma hospedeiro numa reação mediada pela integrase viral. As seqüências terminais de repetição (LTR) são necessárias para integração do DNA retroviral no cromossomo hospedeiro e uma seqüência ψ é necessária para empacotar o RNA viral nas partículas virais. Para montar os vírus com a informação genética recombinante, o DNA deve ser introduzido nas células de cultura de tecido que estão infectadas com um vírus auxiliar que possui os genes para produzir as partículas virais, mas não possui a seqüência ψ necessária para empacotamento. Dentro das células o DNA recombinante é transcrito e o RNA empacotado. As partículas virais resultantes, portanto, contém apenas o RNA viral recombinante e podem agir como vetores para introduzir esse RNA nas células-alvo. Assim que o genoma viral construído estiver dentro da célula, essas enzimas criam uma cópia de DNA do genoma RNA viral e a integram num cromossomo hospedeiro.O DNA recombinante integrado torna-se efetivamente, uma parte permamente do cromossomo pelo fato de o vírus não possuir os genes necessários para produzir cópias de RNA do seu genoma e empacotá-las em novas partículas virais (Alberts, 2001; Lehninger, 1995).

Expressão em Bacillus subtilis B. subtilis tem um sistema secretor bastante desenvolvido, e proteínas

recombinantes podem muitas vezes ser entregues ao meio em forma ativa e solúvel. Entretanto, isto não é necessariamente uma grande vantagem desde que B. subtilis também secrete um grande número de proteases com alto poder de degradação. O alcance de vetores é bastante limitado, e há poucos exemplos de proteínas que podem ser expressas mais eficientemente em B. subtilis do que em E. coli (Sambrook, 2001).

Referências

Alberts, B.; Johson, A.; Lewis, J.; Raff, M.; Roberts, K.; Walter, P. (2002) Molecular Biology of the cell. 4th ed. Garland Science. New York.

Berg, J.M.; Tymoczko, J. L.; Stryer, L.; Clarke, N. D. (2001) Biochemistry.5th ed. Library of Congress Cataloging. New York.

Griffiths, A. J. F.; Gelbart, W. M.; Miller, J. H.; Lewontin, R. C. (1999) Modern Genetic Analysis. 7th ed. New York. Library of Congress Cataloging.

Jacob, F.; Monod, J. (1961) Genetic regulatory mechanisms in the synthesis of proteins. J. Mol. Biol. 3: 318-56. Lehninger, A. L.; Nelson, D.L.; Cox, M.M. (1995) Principios de Bioquimica. 2ª ed. Editora Sarvier. São Paulo. Messing, J. (1983). New M13 vectors for cloning. Methods Enzymol. 101: 20-78 Mills, A.A. (2001).Changing colors in mice: an inducible system that delivers. Genes & Dev.15: 1461-1467. Norrander, J.; Kempe, T., Messing, J. (1983) Construction of improved M13 vectors using oligodeoxynucleotide-directed

mutagenesis.Gene 26: 101-106. Sambrook, J.; Russell D.W. (2001) Molecular Cloning- a laboratory manual.3th ed. Cold Spring Harbor. New York. Yanish-Perron, C.; Vieira, J.; Messing, J. (1985) Improved M13 phage cloning cloning vectors and host strains:

Nucleotide sequences of M13mp18 and pUC vectors. Gene 33: 103-119.

Page 112: Livro CI 2007

 104 

Sistemas para diminuir ou anular a expressão gênica Marcos Gonzaga dos Santos ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia de Tripanossomatídeos

A análise de mutantes é uma abordagem comumente utilizada para se entender o funcionamento de genes in vivo, particularmente, quando amutação provoca a diminuição ou anula a expressão do gene de interesse. O paralelo que pode ser feito à essa abordagem é a de um engenheiro tentando entender como funciona um mecanismo complexo. Esse engenheiro poderia então ir retirando, uma a uma, as peças da máquina, e analisando como essa se comporta na ausência da peça retirada. Dependendo do comportamento observado, ele pode chegar a uma conclusão sobre a função e a importância da peça no funcionamento correto da máquina. A análise de organismos mutantes segue o mesmo raciocínio, só que ao invés de se analisar uma máquina, analisa-se um organismo vivo, enquanto ao invés de peças existem os genes que codificam os produtos funcionais.

Antes de se desenvolverem as técnicas de interrupção de um gene específico, a análise de mutantes se restringia a mutações que acontecem espontaneamente na natureza, e que apresentam fenótipos facilmente detectáveis. Essas mutações também podem ser induzidas aleatoriamente através de fatores externos como compostos químicos mutagênicos ou radiação. Mesmo com essas limitações, foi possível a identificação da função de diversos genes em um grande espectro de organismos. Um exemplo clássico é o gene Antennapedia, em Drosophila melanogaster, gene que quando mutado, faz com que as moscas adultas tenham patas no lugar de antenas (Lewis 1978). Essa observação levou a apontar o gene como um regulador, gene que controla a expressão de um conjunto de outros genes. Muitos genes responsáveis por doenças genéticas também foram determinados através da análise de mutantes espontâneos, assim como o gene da anemia falciforme e da leucemia mielogênica crônica.

O surgimento de técnicas para interrupção gênica e mutação sítio dirigida facilitou o estudo da função fisiológica dos genes in vivo, e pôde ser imediatamente utilizada para interferir no genoma de organismos unicelulares, como leveduras. Essa técnica permite que um alvo seja modificado no genoma do organismo, interrompendo-o ou substituindo-o, e assim impedindo sua expressão. Nessa abordagem, uma vez que o gene deixa de existir em sua forma selvagem no genoma do organismo, esse não pode mais ser transcrito normalmente, o que impede sua expressão.

Para tanto, insere-se na célula a ser modificada um fragmento de DNA sintetizado in vitro, sendo esse uma construção que possui porções do gene alvo que se deseja modificar e que irão guiar a recombinação homóloga. Também é inserida na construção uma marca de seleção, que permite acessar rapidamente as células que receberam a inserção (Dorin, Inglis et al. 1989). Esse DNA inserido na célula sofre recombinação homóloga com o genoma da célula, guiada pelas seqüências do gene alvo presentes na construção. Dependendo da ordem das seqüências utilizadas na construção, pode ocorrer uma substituição, na qual a célula perde um fragmento de seu genoma, ou uma inserção, onde a construção é inserida no gene interrompendo-o, conforme mostrado na figura 1.

Essa técnica foi inicialmente empregada em diversos organismos unicelulares como levedura (Rothstein 1983) e leishmania (Cruz, Coburn et al. 1991), e que não necessitam de um passo para a seleção de mutantes com linhagens germinativas modificadas.

Page 113: Livro CI 2007

  105

Figura 1 – Construções utilizadas na interrupção gênica. Em A, construção que irá levar a uma interrupção do gene alvo. Em B, construção que irá levar a uma inserção no gene alvo. Figura retirada de (Thomas and Capecchi 1987).

Em mamíferos, a interrupção gene específica foi possível atacando-se o gene alvo no genoma de células tronco embrionárias (Thomas and Capecchi 1987). Células retiradas de embriões em estágios iniciais do desenvolvimento, e que mantém a pluripotência, são modificadas geneticamente por recombinação homóloga, conforme desejado, e reinseridas em um embrião em estágio inicial do desenvolvimento. Por manter a pluripotência, essas células participam na formação das linhagens de células do organismo, podendo inclusive participar da formação linhagem germinativa. Os organismos que possuem suas células reprodutivas modificadas são selecionados e utilizados em cruzamentos para a obtenção de mutantes que possuem todas as células de seu corpo modificadas.

Para a obtenção da célula que possui o gene alvo modificado, é necessária a utilização de condições estringentes para a seleção do mutante, uma vez que a freqüência de recombinação é muito baixa. Essa estringência pode ser conseguida com a utilização de uma marca de seleção, normalmente um gene que confere resistência a um antibiótico, assim como feito com organismos mais simples. Uma vez que para a seleção das células se faz necessária a expressão desse gene de resistência, deve-se sempre levar em consideração que a presença do mesmo pode alterar o fenótipo das células de maneira imprevisível. Esse problema é particularmente sério quando se está investigando a função de regiões reguladoras do genoma, como promotores, repressores e “enhancers”, uma vez

Page 114: Livro CI 2007

 106 

que a marca de seleção normalmente carrega seu próprio promotor e sinais para o amadurecimento do mRNA.

A utilização de um sistema de recombinação derivado de bacteriófago permite que a marca de seleção seja removida do genoma após a seleção das células que sofreram recombinação. Esse sistema se baseia na utilização da enzima Cre, uma recombinase de bacteriófago que reconhece uma seqüência de 34 nucleotídeos chamada loxP (Sauer and Henderson 1988). Se uma seqüência de DNA é flanqueada por dois sítios loxP na mesma orientação, a enzima Cre retira essa seqüência do DNA, deixando um único sítio loxP em seu lugar. Se esse sítio for considerado como inerte, dessa maneira é possível se realizar remoções “limpas” de seqüências do genoma da célula (revisado em (Rajewsky, Gu et al. 1996)).

Figura 2 – Estratégia para se conseguir um exon flanqueado por seqüências loxP. Em 1, construção a ser inserida na célula, possuindo uma marca de seleção (neo) flanqueada por duas seqüências loxP (pontas de setas), que por sua vez são flanqueadas por dois exons que irão direcionar a recombinação homóloga e à montante dessa construção, um terceiro sítio de loxP. Essa construção é inserida na célula (2) para que haja recombinação homóloga, resultando na inserção da construção no genoma da célula (3). Após a seleção das células modificadas, é feita uma expressão transiente da recombinase Cre, que pode resultar em um cromossomo sem o exon a montante, ou em um cromossomo sem a marca de seleção, no qual o exon a montante encontra-se flanqueado por sítios loxP (4). Figura retirada de (Rajewsky, Gu et al. 1996).

Embora inicialmente idealizada com o objetivo de realizar remoções que não expressassem uma marca de seleção, o sistema Cre-loxP possui um aspecto ainda mais importante que remoções limpas de fragmentos de DNA: as recombinações controladas. Recombinações controladas são interessantes, pois permitem a supressão de genes que seriam essenciais nos estágios iniciais do desenvolvimento, e possibilitam a análise de genes expressos em grupos específicos de células, que pelo nocaute clássico geram mutantes com fenótipo complexo demais para ser analisado. Recombinações controladas também permitem a simulação de doenças genéticas adquiridas, como descrito em (Alisky 2006), onde os autores descrevem um modelo para a doença de Alzheimer.

A estratégia para se conseguir um nocaute condicional, consiste em inserir sítios loxP flanqueando um gene ou segmento do gene no genoma do organismo, através do protocolo clássico de recombinação em células tronco embrionárias e posterior deleção da marca de seleção através da expressão transiente da recombinase Cre. O nocaute condicional é então conseguido ao se cruzar esse animal com outro que expresse a recombinase Cre da maneira desejada. A primeira possibilidade é a da recombinase ser expressa em todas as células do animal gerado, resultando em um fenótipo igual ao conseguido através do nocaute clássico, onde todas as células do organismo estão nocauteadas. Outra possibilidade é a da recombinase Cre ser expressa em um tipo

Page 115: Livro CI 2007

  107

específico de célula, resultando em um fenótipo em que somente esse tipo de célula possui o gene modificado. Também é possível se utilizar um promotor indutível para a expressão da recombinase, o que permite o controle no tempo, de quando as células serão modificadas. Assim, esse sistema é tão flexível quanto se pode controlar a expressão da recombinase. Outras formas de aplicação da técnica podem ser encontradas em (Rajewsky, Gu et al. 1996) e (Tronche, Casanova et al. 2002).

Outra técnica utilizada no silenciamento gênico é a interferência de RNA, que permite o silenciamento pós transcricional do gene a ser estudado, não sendo necessário nesse caso, interferir diretamente em seu genoma. Esse fenomeno foi inicialmente descrito no organismo Caenorhabditis elegans, quando a injeção de RNA dupla fita (dsRNA) nesses organismos, inesperadamente levaram a um silenciamento gene específico, resultando em um fenótipo igual ao encontrado em mutantes nocauteados pelo protocolo clássico (Fire, Xu et al. 1998). Surpreendentemente, esse silenciamento se espalhou por quase todas as células do organismo, e podia ser transmitida às gerações seguintes. Após a descrição em C.elegans, seguiu-se a descrição do fenômeno de interferência de RNA em diversos outros organismos, como Drosophila, Planaria e Hydra (revisado em (Sharp 1999)).

O fenômeno de RNAi parece estar envolvido com uma defesa natural das células contra virus e mobilização de transposons (Tijsterman, Ketting et al. 2002). O mecanismo pode ser dividido em duas etapas. Na primeira etapa, o dsRNA é reconhecido pela maquinaria de RNAi da célula e clivado em pequenos RNAs dupla fita (siRNA) de aproximadamente 21 pares de nucleotídeos (Elbashir, Lendeckel et al. 2001). Esses siRNAs, participam na segunda etapa do processo servindo como guia na degradação de RNAs simples fita que possuam a mesma seqüência. Dessa maneira o mecanismo leva ao silenciamento do gene alvo através da degradação de seu mRNA, o que impede sua tradução.

A descoberta do fenômeno trouxe a para a comunidade científica uma arma poderosa para a determinação da função de genes de maneiras simples e rápida. Particularmente, C. elegans se mostrou um modelo extremamente bom para se aplicar essa técnica, pois o RNAi nesses organismos pode ser induzido em praticamente todas as suas células, simplesmente colocando-os em uma solução de RNA dupla fita (Tabara, Grishok et al. 1998), ou alimentando-os com bactérias que expressam o RNA dupla fita (Timmons and Fire 1998), e o silenciamento possui uma longa durabilidade (Fire, Xu et al. 1998). No entanto, em outros organismos nos quais o RNAi foi descrito, sua utilização é mais trabalhosa e envolve a injeção ou eletroporação do dsRNA, ou a transfecção de vetores que levem à expressão do dsRNA nas células.

Particularmente em mamíferos, a utilização de RNAi é mais trabalhosa pela impossibilidade de se utilizar dsRNAs com mais de 70 pares de bases. Quando um dsRNA muito longo é introduzido em células de mamíferos, esse ativa uma via de degradação inespecífica de RNA, ativada por interferon-γ, que acaba levando à morte da célula. Essa limitação foi contornada utilizando-se diretamente siRNAs no silenciamento gênico, que entram na segunda etapa da via de silencimento, evitando assim a ativação da via de interferon-γ.

O silenciamento pode ser prolongado em mamíferos através da utilização de vetores com promotores de RNA polimerase III, que expressam pequenos grampos de RNA (shRNA). Esses grampos são processados pela maquinaria de RNAi em siRNAs, que levam à degradação do mRNA do gene alvo.

Hoje, RNAi é amplamente utilizado no estudo da função fisiológica de genes in vivo. A facilidade de utilização da técnica combinada com a determinação do genoma, permitiu a análise funcional de genes em escala cromossômica e até mesmo genômica, como feito com C. elegans (revisado em (Barstead 2001)) e Trypanosoma brucei (Subramaniam, Veazey et al. 2006). Com isso, a utilização de RNAi permite uma primeira abordagem rápida e fácil à função do gene in vivo, e embora as comparações feitas entre mutantes por RNAi com mutantes clássicos não demonstrem diferenças, o nocaute clássico não deixará de existir, pois permite a análise mais detalhada de mutações em diferentes alelos, e obtem-se realmente uma supressão total da expressão do gene, que não ocorre no RNAi.

Referências

Alisky, J. M. (2006). "Neurotransmitter depletion may be a cause of dementia pathology rather than an effect." Med

Page 116: Livro CI 2007

 108 

Hypotheses 67(3): 556-60. Barstead, R. (2001). "Genome-wide RNAi." Curr Opin Chem Biol 5(1): 63-6. Cruz, A., C. M. Coburn, et al. (1991). "Double targeted gene replacement for creating null mutants." Proc Natl Acad Sci

U S A 88(16): 7170-4. Dorin, J. R., J. D. Inglis, et al. (1989). "Selection for precise chromosomal targeting of a dominant marker by

homologous recombination." Science 243(4896): 1357-60. Elbashir, S. M., W. Lendeckel, et al. (2001). "RNA interference is mediated by 21- and 22-nucleotide RNAs." Genes Dev

15(2): 188-200. Fire, A., S. Xu, et al. (1998). "Potent and specific genetic interference by double-stranded RNA in Caenorhabditis

elegans." Nature 391(6669): 806-11. Lewis, E. B. (1978). "A gene complex controlling segmentation in Drosophila." Nature 276(5688): 565-70. Rajewsky, K., H. Gu, et al. (1996). "Conditional gene targeting." J Clin Invest 98(3): 600-3. Rothstein, R. J. (1983). "One-step gene disruption in yeast." Methods Enzymol 101: 202-11. Sauer, B. and N. Henderson (1988). "Site-specific DNA recombination in mammalian cells by the Cre recombinase of

bacteriophage P1." Proc Natl Acad Sci U S A 85(14): 5166-70. Sharp, P. A. (1999). "RNAi and double-strand RNA." Genes Dev 13(2): 139-41. Subramaniam, C., P. Veazey, et al. (2006). "Chromosome-wide analysis of gene function by RNA interference in the

african trypanosome." Eukaryot Cell 5(9): 1539-49. Tabara, H., A. Grishok, et al. (1998). "RNAi in C. elegans: soaking in the genome sequence." Science 282(5388): 430-1. Thomas, K. R. and M. R. Capecchi (1987). "Site-directed mutagenesis by gene targeting in mouse embryo-derived stem

cells." Cell 51(3): 503-12. Tijsterman, M., R. F. Ketting, et al. (2002). "The genetics of RNA silencing." Annu Rev Genet 36: 489-519. Timmons, L. and A. Fire (1998). "Specific interference by ingested dsRNA." Nature 395(6705): 854. Tronche, F., E. Casanova, et al. (2002). "When reverse genetics meets physiology: the use of site-specific

recombinases in mice." FEBS Lett 529(1): 116-21.

Page 117: Livro CI 2007

  109

PCR EM TEMPO REAL Rafaella Marino Lafraia ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia de Tripanossomatídeos Natália Nour Obeid ([email protected]) - Laboratório de Pigmentação

Reação Em Cadeia Da Polimerase (PCR) A reação em cadeia da polimerase (PCR) é um método rápido e sensível que

permite amplificar uma seqüência alvo-específica de DNA ou cDNA, utilizando os elementos básicos da replicação natural, sendo uma forma de obter-se cópias in vitro de DNA (BRUCE 1999). Para que tal reação ocorra é necessário a presença dos seguintes reagentes: o DNA molde, iniciadores (primers), a enzima Taq DNA polimerase, cofator da enzima (MgCl2) e desoxinucleotídeos trifosfato (dNTPs). Devido à grande variação térmica que ocorre na PCR, é inevitável a utilização da enzima Taq DNA polimerase, pois essa é termoestável. Para o funcionamento dessa enzima faz-se necessário a presença do seu cofator (magnésio em solução).

A amplificação do DNA molde ocorre através de ciclos múltiplos de alternância de temperatura conforme a seguintes etapas: desnaturação (varia de 94° a 96° C, sendo que tais valores são ideais para a separação da dupla-hélice), associação dos iniciadores (temperatura entre 37° a 65°C, definida pelo T’m, para que os “primers” se liguem por complementariedade às fitas simples de DNA) e polimerização (72°C, ocasionando a extensão das novas fitas no sentido 5’ para 3’utilizando os dNTPs presentes na reação).

Para aumentar a especificidade da reação de PCR, tanto convencional quanto em tempo real, realiza-se uma modificação química na molécula da Taq polimerase de modo que essa só inicie a replicação da fita de DNA complementar à da seqüência em que o “primer” parear em uma temperatura elevada, denominada “hot start”. Desta forma, dificulta-se a formação de produtos inespecíficos, que são gerados pelo pareamento incorreto do “primer” e extensão da fita complementar pela polimerase antes do inicio da reação(RUSSELL 2001).

Analisando essa técnica é possível verificar fases distintas, que se baseiam no aumento da quantidade do número de cópias presentes em determinado ciclo, que pode variar de reação para reação, e que se denominam: inicial, que é determinada por apresentar uma maior quantidade de “primers” em relação ao DNA molde; intermediária, representada pelo acúmulo exponencial de fitas de DNA e platô, quando há limitação dos reagentes e há competição dos produtos gerados com os “primers” ainda existentes (Kainz 2000). Após a quantidade pré-estabelecida de ciclos, obtém-se um aumento exponencial do DNA produto. Devido à ampla eficiente da técnica de PCR, essa apresenta uma gama extensa de aplicações, das quais serão citadas somente duas.

FORMATOS DA PCR Multiplex PCR É a mesma técnica de PCR descrita a cima, mas é uma forma mais econômica, pois

permite a utilização de vários iniciadores, possibilitando a amplificação de seqüências distintas do mesmo DNA molde e, a partir da análise dos seus produtos em gel de agarose visualiza-se bandas de tamanhos diferentes (Persson, Hamby et al. 2005). Esses conjuntos de “primers” devem possuir um T’m parecido.

No PCR em tempo real essas reações são permitidas quando os espectros de emissão de fluorescência são devidamente combinados, utilizando diferentes marcadores (de seqüência-específica) para a molécula alvo e controle, possibilitando, assim, quantificar ambos simultaneamente numa única reação e num mesmo tubo, podendo identificar mais de uma seqüência alvo ao mesmo tempo (Holland, Abramson et al. 1991).

Uma grande desvantagem dessa técnica é a limitação das concentrações da seqüência alvo e controle (numa proporção 1000 vezes uma em relação à outra), na qual é atribuída, em parte, à sobreposição de espectro dos marcadores repórteres disponíveis, sendo aconselhável, então, utilizar marcadores com a mínima sobreposição do espectro de fluorescência nessas reações. Devido tal característica, sua utilização é recomendada para: detecção de polimorfismo na espécie humana (paternidade), pesquisa de doenças genéticas, pesquisa de mutações que levam ao câncer, detecção e tipagem de HPV, etc.

Page 118: Livro CI 2007

 110 

RT-PCR É a utilização de dois tipos de reações distintas em seqüência, de forma a obter uma

amplificação da expressão de algum gene. A primeira reação consiste na transcrição reversa (RT), se baseia na obtenção de fitas simples de DNA, complementares ao RNA utilizado nessa reação, conseguindo-se desta forma, o cDNA (Freeman, Walker et al. 1999). Segue-se a amplificação desse primeiro produto, empregando então a PCR, sendo que não se pode fazer essa em primeira instância porque a DNA polimerase não utiliza RNA como “template”, mas sendo utilizada posteriormente essa reação se procede como já descrita.

A reação de transcrição reversa utiliza como reagente as seguintes substâncias: Oligo dT (primer composto por 18 nucleotídeos T sendo usado para RNA mensageiro, pois pareia na cauda poliA, característica típica do mRNA) (Lakey, Zhang et al. 2002) , Enzima transcriptase reversa (responsável pela formação das fitas simples de cDNA), dNTP (nucleotídeos que serão utilizados na extensão das novas fitas), tampão da enzima, variação de temperatura (inicialmente eleva-se à temperatura para desnaturação do RNA, em seguida esfria-se para manter o RNA desnaturado, depois se eleva à temperatura para a ótima da enzima e, posteriormente eleva-se mais para desnaturar a enzima) e RNA total (para servir de molde).

PCR EM TEMPO REAL É a técnica similar à PCR convencional, porém permite a quantificação do produto

amplificado em cada ciclo pelo aumento da emissão fluorescente dos fluoróforos utilizados. A PCR em tempo real requer uma plataforma de instrumentação que contém um termociclador para a reação que monitora as variações de intensidade do comprimento de onda emitido pelo fluoróforo marcador em cada replicação da molécula alvo (http://www.dbc.uem.br/ docentes/cida/Sem1PCRtemporeal.pdf, 2007). Existe um canhão que emite raios laser direcionados, por fibras ópticas, para cada um dos 96 poços presentes na placa, onde estarão as amostras de interesse. O comprimento de onda dos raios laser excitará o fluoróforo(s) marcador (es) da amplificação, fazendo com que este(s) emita(m) seu(s) comprimento(s) de onda(s). Assim, essa intensidade luminosa seguirá o caminho inverso do laser até chegar a câmara CCD, que analisará a quantidade de fótons recebida e plotará os dados em um gráfico exponencial.

O gráfico resultante da quantificação, obtido pelo computador acoplado ao termociclador, apresenta quatro fases distintas:

1) linha basal, fase em que não se detecta fluorescência, devido a maior quantidade de “primers” em relação ao DNA;

2) fase exponencial ou intermediária, marcada pelo acúmulo exponencial do produto em cada ciclo. Permite a quantificação do número inicial de moléculas devido à fórmula: Nf = No (1+Y)n, sendo que Nf é o número final de cópias de dupla fita da seqüência alvo, No, o número inicial de cópias em dupla fita de “template”, Y, a eficiência da extensão do “primer” por ciclo e n, o número de ciclos;

3) fase linear, na qual se inicia o esgotamento dos reagentes; 4) fase platô, estabilização e término da produção de cópias do DNA molde, na qual

ocorre a limitação dos reagentes. A curva padrão é um passo essencial para utilização da PCR em tempo real. Essa é

obtida utilizando na reação, concentrações distintas e conhecida de DNA molde. Na análise dos resultados obtidos no gráfico, no qual as diferentes curvas devem apresentam uma proporcionalidade por causa da diferença de concentração utilizada, será possível a determinação dos Cts de cada curva. Esse Ct é o ponto de fluorescência, dado pelo computador, em que todas as amostras estejam na fase exponencial. Esse valor é importante, pois é a partir dele que, nas reações com as amostras de interesse, se poderá determinar o número de cópias inicial, ou seja, a partir desse valor poderá ser feita a quantificação relativa e absoluta (Heid, Wessels et al. 2004; Gibson, Heid et al. 1996).

A alta especificidade, a ausência de uma manipulação posterior do produto da reação, a sensibilidade em detectar e amplificar amostras contendo quantidades baixas, rapidez, alta eficiência, e a possibilidade de conhecimento do número inicial de moléculas tornam-se as principais vantagens do uso do PCR em tempo real. Porém isto só é possível através do emprego de diversos tipos de marcadores fluorescentes, sendo que os que possuem sondas são seqüência-específica, as quais são utilizadas nas reações multiplex.

Page 119: Livro CI 2007

  111

Vários são os fluoróforos marcadores disponíveis para análises por Real-time PCR:

• Syber green (2 oligonucleotídeos iniciadores) • TaqMan (2 oligonucleotídeos iniciadores e 1 sonda) • FRET (2 oligonucleotídeos iniciadores e 2 sondas) • Beacons (2 oligonucleotídeos iniciadores e 1 sonda) • Scorpions (1 oligonucleotídeo iniciador e 1 oligo/sonda) • Sunrise primers (2 oligonucleotídeos iniciadores) • LUX primers (2 oligonucleotídeos iniciadores). 1. SISTEMA TaqMan Essa técnica baseia-se na amplificação de uma seqüência alvo utilizando uma

sonda, que consiste em um oligonucleotídeo seqüência-específico, de hibridização não extensível. A sonda, ainda intacta, apresenta em sua estrutura química duas partes distintas: um REPORTER, na extremidade 5’ e um INIBIDOR, na extremidade 3’. Assim, a emissão de fluorescência é inibida pela proximidade física entre eles. Quando ocorre a degradação da sonda de hibridização pela atividade exonucleásica da polimerase (5’->3’), durante a fase de extensão dos ciclos, as partes são liberadas e o sinal luminoso do repórter é detectado. Essa emissão luminosa tem um aumento exponencial durante o processo de amplificação da seqüência alvo específica (Heid, Stevens et al. 1996).

O uso de marcador passivo de fluorescência (ROX) é essencial neste ensaio, pois ele é quem mede as flutuações de florescência não relacionadas ao PCR, estas são excluídas para determinar a linha de base.

Esse sistema apresenta um alto custo e a necessidade de uma sonda para cada produto analisado. Em contra partida, é mais especifico para determina a presença ou ausência de seqüências específicas (Holland, Abramson et al. 1991) e permite a análise de mais de um produto por amostra.

2. Syber green Esta substância possui uma importante característica, a de se intercalar na dupla fita

de DNA, e assim, portanto, quando há aumento do número de fitas duplas de DNA (produto) há um aumento proporcional da intensidade de fluorescência emitida por ciclo (Vitzthum, Geiger et al. 1999).

Suas principais vantagens são: o baixo custo, facilidade no uso, sensibilidade e a possibilidade de aplicação em qualquer produto. Contudo há a possibilidade de se detectar uma reação inespecífica (Ririe, Rasmussen et al. 1997) e apenas um único produto pode ser analisado por vez.

O sucesso do PCR em tempo real possibilitou as seguintes aplicações: - Grande potencial na Medicina Forense. - Quantificação da expressão gênica e do padrão de expressão gênica por RNA

total; - Detecção e quantificação de organismos geneticamente modificados em alimentos

e ingredientes alimentares; - Detecção e quantificação de microorganismos patógenos no hospedeiro; - Detecção e tipagem de HPV; Referências

BRUCE, A., BRAY, D., JOHNSON, A., LEWIS, J., RASS, M., ROBERTS, K & WALTER, P. (1999). Fundamentos da Biologia Celular: Uma introdução à biologia molecular da célula. Porto Alegre.

Freeman, W. M., S. J. Walker, et al. (1999). "Quantitative RT-PCR: pitfalls and potential." Biotechniques 26(1): 112-22, 124-5.

Gibson, U. E., C. A. Heid, et al. (1996). "A novel method for real time quantitative RT-PCR." Genome Res 6(10): 995-1001.

Heid, C. A., J. Stevens, et al. (1996). "Real time quantitative PCR." Genome Res 6(10): 986-94. Heid, P. J., D. Wessels, et al. (2004). "The role of myosin heavy chain phosphorylation in Dictyostelium motility,

chemotaxis and F-actin localization." J Cell Sci 117(Pt 20): 4819-35. Holland, P. M., R. D. Abramson, et al. (1991). "Detection of specific polymerase chain reaction product by utilizing the

5'----3' exonuclease activity of Thermus aquaticus DNA polymerase." Proc Natl Acad Sci U S A 88(16): 7276-80. Kainz, P. (2000). "The PCR plateau phase - towards an understanding of its limitations." Biochim Biophys Acta 1494(1-

2): 23-7. Lakey, D. L., Y. Zhang, et al. (2002). "Priming reverse transcription with oligo(dT) does not yield representative samples

of Mycobacterium tuberculosis cDNA." Microbiology 148(Pt 8): 2567-72. Persson, K., K. Hamby, et al. (2005). "Four-color multiplex reverse transcription polymerase chain reaction--overcoming

its limitations." Anal Biochem 344(1): 33-42.

Page 120: Livro CI 2007

 112 

Ririe, K. M., R. P. Rasmussen, et al. (1997). "Product differentiation by analysis of DNA melting curves during the polymerase chain reaction." Anal Biochem 245(2): 154-60.

RUSSELL, D. W., SAMBROOK, J., (2001). Molecular Cloning A laboratory manual. New York. Vitzthum, F., G. Geiger, et al. (1999). "A quantitative fluorescence-based microplate assay for the determination of

double-stranded DNA using SYBR Green I and a standard ultraviolet transilluminator gel imaging system." Anal Biochem 276(1): 59-64.

Page 121: Livro CI 2007

  113

Uso de bibliotecas combinatórias para seleção de peptídeos ou oligonucleotídeos específicos para o estudo da interação de moléculas Maria Fernanda Laranjeira da Silva ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia de Tripanossomatídeos

Bibliotecas combinatórias têm sido amplamente utilizadas em estudos envolvendo interações de moléculas, a fim de identificar ligantes específicos para o desenvolvimento de quimioterápicos alternativos e a caracterização de relações intermoleculares em estudos fisiológicos. O desenvolvimento de aptâmeros e Phage Display são duas das técnicas amplamente utilizadas na identificação desses ligantes específicos, sendo que a primeira utiliza bibliotecas de ácidos nucléicos e a segunda de peptídeos ou proteínas.

Essas duas técnicas, apesar de relativamente recentes, já foram bastante desenvolvidas, estabelecendo-se como alternativas potentes para estudos em diferentes áreas biotecnológicas. Algumas das aplicações desses métodos são: a descoberta de moléculas terapêuticas com alta especificidade e afinidade pelo alvo, o desenvolvimento de vetores para terapêuticos, o desenvolvimento de técnicas para diagnósticos, o uso em separação ou purificação de moléculas por afinidade, em estudos de doenças infecciosas e, de forma mais geral, em estudos de interações moleculares.

Phage Display Em 1985, Smith (Smith 1985) estabeleceu um método para a apresentação de

polipeptídeos na superfície de fagos filamentosos – um vírus que infecta Escherichia coli – originando a técnica conhecida como Phage Display, que tem sido eleita para responder a um amplo espectro de questões com abordagens distintas. Após mais de duas décadas de buscas em bibliotecas de fagos, essa tecnologia consagrou-se como uma técnica poderosa para selecionar polipeptídeos com propriedades biológicas e fisicoquímicas específicas (Paschke 2006).

Phage display é um sistema em que um peptídeo ou proteína é apresentado na superfície de um fago fundido a uma proteína da cápsula desse vírus, sem que a proteína do vírus perca sua função, para isso o DNA exógeno que codifica esse peptídeo ou proteína é inserido no virion (http://www.cf.ac.uk/phrmy/PCB/Page PhageDisplay.htm).

Os fagos filamentosos de E. coli mais usados são da classe Ff, as linhagens M13, fd e f1. Esses fagos são constituídos por uma única molécula de DNA circular simples-fita que é encapsulada em um longo tubo composto por milhares de cópias de uma proteína principal de superfície (pVIII), com mais quatro proteínas minoritárias nas pontas desse capsídeo (Figura 1). As cinco proteínas da cápsula já foram usadas na técnica de Phage Display para apresentar peptídeos/proteínas fundidos a elas, mas as mais usadas são as proteínas pVIII e pIII (Mullen, Nair et al. 2006).

Figura 1 – Dimensões e arquitetura de um bacteriófago filamentoso fd. O número de cópias de cada proteína está entre parênteses (Mullen, Nair et al. 2006).

As bibliotecas combinatórias de peptídeos podem ser completamente ou parcialmente aleatórias. Entre essas parcialmente aleatórias, as mais comumente utilizadas têm como estrutura geral CXNC, expressando N aminoácidos randômicos

Page 122: Livro CI 2007

 114 

flanqueados por duas cisteínas, o que gera peptídeos cíclicos apresentados na superfície dos fagos da biblioteca (Sergeeva, Kolonin et al. 2006).

Geralmente, as bibliotecas usadas são compostas por aproximadamente 109 clones, sendo que cada clone está representado por 100 partículas, podendo ser amplificada para milhões de cópias infectando novas bactérias hospedeiras (Smith and Petrenko 1997). As bibliotecas Phage Display são construídas usando vetores baseados na seqüência natural do fago Ff (vetores de fago) ou usando fagomídeos. Os fagomídeos são híbridos de vetores de fago e plasmídeos, possuem uma origem de replicação do fago Ff, uma origem de replicação plasmidial de E. coli, o gene III e/ou VIII para a formação da fusão, um sítio de clonagem e um gene de resistência a antibiótico. Esses fagomídeos não têm todos os outros genes de fago necessários para produzir um fago completo, no entanto fornecem tudo o que é necessário para a formação de um fago, podem se multiplicar como plasmídeos em E. coli e empacotar como um fago Ff de DNA recombinante com a ajuda de um “helper phage” (Russel, Lowman et al. 2004).

Os peptídeos que podem ser expressos nos fagos vão desde pequenas seqüências de aminoácidos a fragmentos de anticorpos, proteínas, hormônios, enzimas e outros (http://www.cf.ac. uk/phrmy/PCB/Page PhageDisplay.htm).

Clonando-se um grande número de seqüências de DNA nos fagos, produz-se bibliotecas com um repertório de muitos bilhões de proteínas únicas apresentadas pelos fagos. Posteriormente, selecionam-se os clones que apresentam peptídeos/proteínas capazes de se ligar especificamente à molécula alvo através de um processo denominado “biopanning” (http://www.cf.ac.uk/phrmy/PCB/PagePhage Display.htm) (Figura 2).

Figura 2 – Um ciclo de seleção por afinidade de uma biblioteca de Phage Display (Mullen, Nair et al. 2006).

No processo de “biopanning”, os fagos são selecionados de acordo com a afinidade ao alvo imobilizado, capturando os fagos que se ligaram ao alvo e lavando os que não se ligaram; em seguida, os fagos ligantes são eluídos, explorando a estabilidade dos fagos a pH extremos, força iônica, desnaturantes e até a maioria das proteases (Russel, Lowman et al. 2004). A etapa seguinte é a de amplificação na qual os fagos selecionados se multiplicam quando reinfectados em células de E. coli. A população de fagos amplificada é então submetida a diversos passos de “panning” consecutivos (geralmente 3), possibilitando o enriquecimento e a amplificação seletiva de fagos, e então finalmente esses fagos selecionados poderão ser individualmente analisados (Paschke 2006), inclusive a fim de determinar a seqüência de aminoácidos do peptídeo selecionado através do genoma dos fagos.

Além disso, pode-se realizar a seleção in vivo, dessa forma a biblioteca de fagos e administrada intravenosamente no animal de interesse que após um período de repouso é submetido a uma perfusão para remover os fagos que não se ligaram, e posteriormente o tecido de interesse é cirurgicamente removido para eluição dos fagos que se ligaram ao alvo (Sergeeva, Kolonin et al. 2006).

Duas das grandes vantagens desse método são: a possibilidade em manter uma ligação física entre o peptídeo/proteína exibido e a sequência de DNA que o codifica, ou seja, a ligação fenótipo-genótipo; e a disponibilidade de usar bibliotecas contendo bilhões

Page 123: Livro CI 2007

  115

de peptídeos/proteínas únicos. Mas, inicialmente, a técnica parecia ter algumas limitações quanto à conformação de algumas proteínas apresentadas pelos fagos, mas esses problemas foram superados com a evolução do método (Mullen, Nair et al. 2006). No entanto, ainda existem alguns obstáculos, por exemplo, alguns peptídeos/proteínas podem ser recalcitrantes para serem apresentados devido a propriedades individuais, podendo, por exemplo, apresentar toxicidade a E. coli ou interferir com a produção do fago (Russel, Lowman et al. 2004).

Quanto as aplicações, originalmente a técnica de Phage Display foi inventada para a seleção por afinidade de fragmentos de proteínas expressos por fragmentos de cDNA (Smith 1985; Parmley and Smith 1988). Subseqüentemente, bibliotecas de Phage Display foram construídas para a seleção por afinidade de peptídeos e anticorpos (Devlin, Panganiban et al. 1990; McCafferty, Griffiths et al. 1990; Scott and Smith 1990; Barbas, Kang et al. 1991; Breitling, Dubel et al. 1991; Hoogenboom, Griffiths et al. 1991; Marks, Hoogenboom et al. 1991). A partir daí, a tecnologia de Phage Display conquistou novas e inumeráveis aplicações.

Uma das aplicações de Phage Display bastante explorada atualmente é em estudos de interações proteínas-ligantes. Essa abordagem é interessante no estudo das relações pátogeno-hospedeiro em doenças infecciosas (Mullen, Nair et al. 2006), na identificação de peptídeos agonistas e antagonistas de receptores (Pillutla, Hsiao et al. 2002; Magdesian, Nery et al. 2005), entre outros. Um exemplo em estudo de parasitoses é o trabalho com Plasmodium de Gosh em 2001 (Ghosh, Ribolla et al. 2001), neste trabalho identifica-se um peptídeo capaz de se ligar ao mesmo receptor que o parasita se liga no tubo digestivo e nas glândulas salivares do inseto vetor da malária, Anopheles, comprometendo o desenvolvimento do Plasmodium no vetor e, conseqüentemente, a transmissão da doença.

Além disso, outra possibilidade bastante utilizada é a identificação de peptídeos e proteínas com funções específicas. Essa aplicação permite o desenvolvimento de novas drogas e veículos terapêuticos (Sergeeva, Kolonin et al. 2006), vacinas (Wang and Yu 2004), a produção e manipulação de anticorpos recombinantes, o mapeamento de epítopos (Azzazy and Highsmith 2002; Ladner, Sato et al. 2004; Mullen, Nair et al. 2006) e outros.

Uma estratégia bastante interessante, unindo as idéias de peptídeo endereçador e peptídeo ativo, foi descrita em 2004 por Kolonin e colaboradores (Kolonin, Saha et al. 2004) e consiste na formação de um peptídeo quimera. Os autores produziram um peptídeo químera com propriedades capazes de reverter obesidade em camundongos. Inicialmente, selecionou-se um peptídeo capaz de se ligar a vasculatura subcutânea e peritoneal da gordura branca, esse peptídeo foi então ligado a um peptídeo já descrito anteriormente (Ellerby, Arap et al. 1999) capaz de induzir apoptose. A químera resultante foi capaz de induzir a morte celular dos vasos sanguíneos do tecido adiposo, levando à reabsorção da gordura e perda de peso pelos camundongos.

Atualmente muitos laboratórios estão usando Phage Display na tentativa de achar novos marcadores, alvos e/ou tratamentos para cancêr. Nesse sentido, muitos estudos mostram que na superfície de células tumorais ou células associadas a tumores há diversos receptores superexpressos que poderiam servir para diagnóstico e tratamento da doença (Sergeeva, Kolonin et al. 2006).

As possibilidades de utilização desse método são inúmeras e crescentes. Inclusive, pretende-se futuramente usar esse método também para a costrução de “interactomes”, usando o mesmo conceito de genomas e proteomas, esses seriam mapeamentos de interações proteícas nas células; essa abordagem poderia auxiliar a comunidade científica indicando novos alvos terapêuticos (Sergeeva, Kolonin et al. 2006).

Aptâmeros de DNA e RNA Na década de 90, três grupos separadamente usaram diferentes enfoques de

seleção in vitro para isolar moléculas de DNA e RNA capazes de se ligar a diversas proteínas e corantes orgânicos (Bunka and Stockley 2006); um laboratório usou o termo SELEX (“systematic evolution of ligands by exponential enrichment”) para o processo de seleção de RNAs ligantes à T4 DNA polimerase (Tuerk and Gold 1990), o outro usou o termo seleção in vitro para o mesmo processo contra diversos corantes orgânicos e, além disso, também criou o termo “aptamer” (do Latim, aptus, significando “to fit”) para esses

Page 124: Livro CI 2007

 116 

ácidos nucléicos ligantes (Ellington and Szostak 1990); dois anos depois, esse segundo laboratório e um terceiro grupo, Gilead Sciences, utilizaram esses mesmos esquemas de seleção in vitro para selecionar moléculas de DNA simples fita que se ligavam a corantes orgânicos e a trombina, respectivamente (http://en.wikipedia.org/wiki/Aptamer).

Provavelmente, essas descobertas foram possíveis graças ao novo entendimento da estrutura e função do RNA que, no início dos anos 80, provou-se como um participante ativo de catálises nas células vivas e não simplesmente um carregador passivo da informação genética (Bunka and Stockley 2006).

Apesar de serem produzidos em laboratórios de biotecnologia, a existência de aptâmeros naturais só foi descoberta em 2002, quando Ronald Breaker e colaboradores descobriram um elemento composto por ácidos nucléicos para regulação genética chamado “riboswith”. Esse elemento possue propriedades de reconhecimento similar aos aptâmeros produzidos artificialmente e adicionou evidências a noção de um mundo de RNA nos tempos da origem da vida na Terra (Bunka and Stockley 2006).

Logo, aptâmeros são oligonucleotídeos específicos de DNA ou RNA, com estrutura terciária definida, e graças a essa estrutura, os aptâmeros podem ser produzidos para se ligarem à determinada molécula alvo. Como diversas formas estruturais dessas moléculas podem existir, devido às inúmeras combinações diferentes de nucleotídeos possíveis, pode-se obter aptâmeros capazes de se ligar a um vasto espectro de moléculas alvos: proteínas, carboidratos, lipídeos, nucleotídeos e outras moléculas, até pequenas moléculas, ou complexos como vírus (http://www.people.cornell.edu/ pages/yc224/aptamer.htm).

Os aptâmeros são selecionados a partir de bibliotecas de ácidos nucléicos sintéticos através de um processo repetitivo de adsorção, recuperação e reamplificação, processo esse chamado SELEX (Tuerk and Gold 1990) (Figura 3). O processo de SELEX começa com uma biblioteca com seqüências aleatórias obtida por síntese química combinatória, é importante notar que nessa biblioteca cada membro é um oligômero linear com seqüência única. A complexidade, ou diversidade molecular, da biblioteca é dependente do número de posições para inserção aleatória dos nucleotídeos. Tipicamente, a complexidade de uma biblioteca aleatória de oligonucleotídeos é limitada a 1014 a 1015 seqüências individuais (Jayasena 1999).

Na maioria dos casos, as bibliotecas são parcialmente randômicas, pois as construções com as seqüências aleatórias são flanqueadas por regiões constantes que serão usadas posteriormente para ligação de primers, inclusive facilitando a etapa final de análise das seqüências selecionadas. A região da seqüência aleatória classicamente é composta por 15 - 75 nucleotídeos; essa região é dita aleatória, pois as quatro bases podem ser incorporadas com mesma probabilidade (Jayasena 1999; Ulrich, Alves et al. 2001).

Para a construção de bibliotecas de oligonucleotídeos de RNA o “pool” de uma biblioteca de DNA é transcrito para formação de RNAs usando a T7 RNA polimerase. Nesse caso, é necessário um locus promotor de T7 na extremidade 5’ do “pool” molde de DNA (Ulrich, Alves et al. 2001).

Na etapa de seleção do processo, a biblioteca de oligos aleatória é incubada com o alvo de interesse e a pequena fração de seqüências individuais que interagem com o alvo são separadas do resto da biblioteca por meio de técnicas de separação física. No caso de alvos protéicos usam-se filtros de nitrocelulose; já quando o alvo é composto por moléculas pequenas, essas podem ser imobilizadas em um suporte sólido para gerar uma matriz de afinidade na qual as seqüências que não interagirem com o alvo não se ligarão sendo removidas facilmente em uma etapa de lavagem (Jayasena 1999). No processo de seleção, a cada passo aumenta-se a estringência com o intuito de aumentar a especificidade dos ligantes selecionados (Ulrich, Alves et al. 2001).

Então, a população de seqüências selecionada é isolada e amplificada para obtenção de uma biblioteca enriquecida para ser utilizada em um próximo ciclo de seleção/amplificação. Após vários passos de seleção/amplificação, geralmente de 8 a 15, atinge-se a saturação de afinidade, a biblioteca enriquecida então é clonada e seqüenciada para as moléculas serem caracterizadas individualmente quanto à habilidade de se ligar ao alvo (Jayasena 1999).

Page 125: Livro CI 2007

  117

Figura 3 – Esquema de um ciclo único de SELEX (Bunka and Stockley 2006).

Os aptâmeros são altamente específicos às moléculas contra as quais foram selecionados; podem discriminar diferenças estruturais sutís entre as moléculas para as quais são expostos, como presença ou ausência de grupos metil ou hidroxilas, e enantiomeros D- e L-. Devido à alta especificidade dos aptâmeros, criou-se o processo de “counter-SELEX”, para aproveitar essa característica e usá-la para efetivamente descartar ligantes que se ligam ao alvo tão bem quanto análogos estruturais relacionados ao alvo. A diferença desse processo é que se adiciona um passo de eluição com os análogos estruturais do alvo. Essa variante do processo original é importante para casos em que, por exemplo, objetiva-se identificar aptâmeros contra um único alvo de uma mistura complexa, como um epítopo exclusivo da superfície de células cancerosas e não presente em células saudáveis; nesse caso, as células do tecido sadio seriam usadas para remover as seqüências que poderiam gerar inespecificidade (Jayasena 1999).

Uma das potencialidades dos aptâmeros é o uso dessas moléculas como agentes terapêuticos, para isso, são essenciais algumas modificações químicas que tornem os aptâmeros resistentes as nucleases presentes no organismo. As modificações mais usadas para conferir estabilidade à molécula são a adição de fosforotioatos ou a substituição dos grupos 2´-OH das pirimidinas da molécula por 2´-F, 2´-NH2, ou 2´-OMe (Ulrich, Alves et al. 2001). Outras alternativas para melhorar a estabilidade dos aptâmeros são: o uso de 4´-tiol pirimidinas, nucleotídeos compostos por L-riboses, “caps” dinucleotídicos com ligação 3´-3´, a circularização ou adição de ligações dissulfídicas das moléculas (Bunka and Stockley 2006; Fattal and Bochot 2006).

Além disso, aptâmeros são moléculas pequenas (5-25 kDa), rapidamente eliminadas pelo organismo; portanto, também com o objetivo terapêutico em vista, pode-se ligar ao aptâmero moléculas de polietilenoglicol ou colesterol, por exemplo, que funcionam como grupos ancora melhorado a disponibilidade e os parâmetros farmacocinéticos dessas moléculas no organismo (Fattal and Bochot 2006).

Recentemente, os aptâmeros foram colocados como rivais dos anticorpos devido a diversas vantagens que apresentam, tais como: são produzidos in vitro não dependendo de animais, células ou outras condições in vivo; os parâmetros de seleção podem ser manipulados de acordo com as propriedades desejadas; por ser um processo de síntese química é extremamente preciso e reprodutível; sofrem desnaturação reversível, são estáveis por longos períodos e podem ser transportados a temperatura ambiente (Jayasena 1999); outra possibilidade, é a adição de grupos repórter ao aptâmero no nucleotídeo desejado do aptâmero (Jayasena 1999; Ulrich, Alves et al. 2001). Os

Page 126: Livro CI 2007

 118 

aptâmeros ainda podem ser modificados fundindo-os a ribozimas, a seqüências de endereçamento, marcadores fluorescentes e outros.

Outra aplicação desse método é o desenvolvimento de aptâmeros que funcionem como sensores moleculares, para isso o desafio é transformar a ligação alvo-aptâmero em um evento detectável. Nesse sentido diversas técnicas foram desenvolvidas, sendo que o principal é a detecção via fluorescência. Algumas estratégias de detecção são: conjugar um repórter ao aptâmero; conjugar uma molécula que catalise uma reação fluorogênica; o uso de polímeros que quando conjugados ao aptâmero formam complexos que mudam de cor dependentemente da presença do alvo (Jayasena 1999; Liu and Lu 2005) e outros. Com esse tipo de estratégia, foi desenvolvido um aptâmero anti-cocaína que quando se liga a essa muda de conformação e emite fluorescência (Stojanovic, de Prada et al. 2001).

Além disso, é realmente significativa a colaboração de aptâmeros no estudo de patologias que envolvem interações celulares, como câncer e doenças que requerem a invasão celular do hospedeiro por parasitas, tais como: Trypanosoma cruzi (Ulrich, Alves et al. 2001; Ulrich, Magdesian et al. 2002). Com essa abordagem, em 2002 Ulrich selecionou aptâmeros de RNA que se ligavam a receptores de adesão celular do T. cruzi da célula hospedeira, levando a inibição da invasão celular (Ulrich, Magdesian et al. 2002).

Concluindo, a versatilidade dessa tecnologia é refletida no fato de que há poucas áreas da pesquisa em que aptâmeros não seja aplicável. O desenvolvimento de aptâmeros pode ser usado como técnica alternativa para: purificação de proteínas; produção de biosensores para novas técnicas de diagnóstico; descoberta de novos terapêuticos, inclusive no combate de doenças infecciosas ou que envolvam interações celulares, como câncer; e outros. Todos os resultados com o uso de aptâmeros mostram que essa tecnologia não é simplesmente uma ferramenta de pesquisa, mas que também tem um enorme potencial comercial (Bunka and Stockley 2006). Além disso, o uso dessas bibliotecas combinatórias pode ser vantajoso no desenvolvimento de drogas terapêuticas contra patógenos, quando comparadas à abordagem com o desenho racional de drogas, pois a seleção de aptâmeros não requer a compreensão de todo o processo de infecção pelo patógeno (Ulrich, Magdesian et al. 2002).

Referências

Azzazy, H. M. and W. E. Highsmith, Jr. (2002). "Phage display technology: clinical applications and recent innovations." Clin Biochem 35(6): 425-45.

Barbas, C. F., 3rd, A. S. Kang, et al. (1991). "Assembly of combinatorial antibody libraries on phage surfaces: the gene III site." Proc Natl Acad Sci U S A 88(18): 7978-82.

Breitling, F., S. Dubel, et al. (1991). "A surface expression vector for antibody screening." Gene 104(2): 147-53. Bunka, D. H. and P. G. Stockley (2006). "Aptamers come of age - at last." Nat Rev Microbiol 4(8): 588-96. Devlin, J. J., L. C. Panganiban, et al. (1990). "Random peptide libraries: a source of specific protein binding molecules."

Science 249(4967): 404-6. Ellerby, H. M., W. Arap, et al. (1999). "Anti-cancer activity of targeted pro-apoptotic peptides." Nat Med 5(9): 1032-8. Ellington, A. D. and J. W. Szostak (1990). "In vitro selection of RNA molecules that bind specific ligands." Nature

346(6287): 818-22. Fattal, E. and A. Bochot (2006). "Ocular delivery of nucleic acids: antisense oligonucleotides, aptamers and siRNA." Adv

Drug Deliv Rev 58(11): 1203-23. Ghosh, A. K., P. E. Ribolla, et al. (2001). "Targeting Plasmodium ligands on mosquito salivary glands and midgut with a

phage display peptide library." Proc Natl Acad Sci U S A 98(23): 13278-81. Hoogenboom, H. R., A. D. Griffiths, et al. (1991). "Multi-subunit proteins on the surface of filamentous phage:

methodologies for displaying antibody (Fab) heavy and light chains." Nucleic Acids Res 19(15): 4133-7. Jayasena, S. D. (1999). "Aptamers: an emerging class of molecules that rival antibodies in diagnostics." Clin Chem

45(9): 1628-50. Kolonin, M. G., P. K. Saha, et al. (2004). "Reversal of obesity by targeted ablation of adipose tissue." Nat Med 10(6):

625-32. Ladner, R. C., A. K. Sato, et al. (2004). "Phage display-derived peptides as therapeutic alternatives to antibodies." Drug

Discov Today 9(12): 525-9. Liu, J. and Y. Lu (2005). "Fast colorimetric sensing of adenosine and cocaine based on a general sensor design

involving aptamers and nanoparticles." Angew Chem Int Ed Engl 45(1): 90-4. Magdesian, M. H., A. A. Nery, et al. (2005). "Peptide blockers of the inhibition of neuronal nicotinic acetylcholine

receptors by amyloid beta." J Biol Chem 280(35): 31085-90. Marks, J. D., H. R. Hoogenboom, et al. (1991). "By-passing immunization. Human antibodies from V-gene libraries

displayed on phage." J Mol Biol 222(3): 581-97. McCafferty, J., A. D. Griffiths, et al. (1990). "Phage antibodies: filamentous phage displaying antibody variable

domains." Nature 348(6301): 552-4. Mullen, L. M., S. P. Nair, et al. (2006). "Phage display in the study of infectious diseases." Trends Microbiol 14(3): 141-

7. Parmley, S. F. and G. P. Smith (1988). "Antibody-selectable filamentous fd phage vectors: affinity purification of target

genes." Gene 73(2): 305-18. Paschke, M. (2006). "Phage display systems and their applications." Appl Microbiol Biotechnol 70(1): 2-11.

Page 127: Livro CI 2007

  119

Pillutla, R. C., K. C. Hsiao, et al. (2002). "Peptides identify the critical hotspots involved in the biological activation of the insulin receptor." J Biol Chem 277(25): 22590-4.

Russel, M., H. B. Lowman, et al. (2004). Introduction to phage biology and phage display. Phage Display: A Practical Approach. T. Clackson and H. B. Lowman, Oxford University Press: 1-26.

Scott, J. K. and G. P. Smith (1990). "Searching for peptide ligands with an epitope library." Science 249(4967): 386-90. Sergeeva, A., M. G. Kolonin, et al. (2006). "Display technologies: application for the discovery of drug and gene delivery

agents." Adv Drug Deliv Rev 58(15): 1622-54. Smith, G. P. (1985). "Filamentous fusion phage: novel expression vectors that display cloned antigens on the virion

surface." Science 228(4705): 1315-7. Smith, G. P. and V. A. Petrenko (1997). "Phage Display." Chem Rev 97(2): 391-410. Stojanovic, M. N., P. de Prada, et al. (2001). "Aptamer-based folding fluorescent sensor for cocaine." J Am Chem Soc

123(21): 4928-31. Tuerk, C. and L. Gold (1990). "Systematic evolution of ligands by exponential enrichment: RNA ligands to

bacteriophage T4 DNA polymerase." Science 249(4968): 505-10. Ulrich, H., M. J. Alves, et al. (2001). "RNA and DNA aptamers as potential tools to prevent cell adhesion in disease."

Braz J Med Biol Res 34(3): 295-300. Ulrich, H., M. H. Magdesian, et al. (2002). "In vitro selection of RNA aptamers that bind to cell adhesion receptors of

Trypanosoma cruzi and inhibit cell invasion." J Biol Chem 277(23): 20756-62. Wang, L. F. and M. Yu (2004). "Epitope identification and discovery using phage display libraries: applications in

vaccine development and diagnostics." Curr Drug Targets 5(1): 1-15. http://www.people.cornell.edu/pages/yc224/aptamer.htm, May 30, 2007. http://www.cf.ac.uk/phrmy/PCB/PagePhageDisplay.htm, May 30, 2007. http://en.wikipedia.org/wiki/Aptamer, May 30, 2007.

Page 128: Livro CI 2007

 120 

Page 129: Livro CI 2007

  121

NEUROFISIOPATOLOGIA

Aula Inaugural Merari de Fátima Ramires Ferrari ([email protected]) - Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial

O funcionamento do sistema nervoso central (SNC) é fascinante e misterioso tanto para os mais leigos quanto para os estudiosos do assunto. O SNC é composto por células neuronais e gliais que interagem entre si para seu correto funcionamento, estas células são morfológica e fisiologicamente diferentes, mas complementares. Com os avanços na tecnologia está sendo possível desvendar os mistérios do SNC através dos estudos destes tipos celulares e de sua relação com comportamentos e funções vegetativas.

Os comportamentos e as funções vegetativas são regulados por grupamentos celulares distribuídos por todo o encéfalo. Dependendo da região onde estes núcleos se encontram, a função será predominantemente vegetativa, comportamental ou mista. A posição anatômica ou mesmo a presença ou ausência de determinado grupamento celular pode ser modificado de acordo com a classe animal, por isso a neuroanatomia comparada nos dá dicas sobre os possíveis papéis dos diversos núcleos encefálicos para a manutenção do equilíbrio fisiológico do organismo.

Uma das principais funções do SNC é fazer com que o organismo responda coerentemente aos estímulos do meio ambiente, seja através de ajustes vegetativos ou através de comportamentos. Um ajuste bastante importante é o da pressão arterial, que ao ser danificado pode desencadear a hipertensão.

O SNC pode sofrer outros transtornos como a neurodegeneração, por exemplo, e enquanto não há cura para este tipo de doença, diversos profissionais desenvolvem abordagens terapêuticas para a reabilitação dos indivíduos acometidos pela neurodegeneração.

Drogas psicoativas como os opióides, o álcool, a nicotina, dentre diversas outras que interagem sobre núcleos específicos do SNC geram sensações prazerosas, alucinações, depressão, etc... Algumas destas drogas agem no circuito de reforço o que desencadeia comportamento de busca freqüente pelo entorpecente podendo caracterizar o vício.

Page 130: Livro CI 2007

 122 

Biologia molecular e celular aplicadas à neurofisiologia Merari de Fátima Ramires Ferrari ([email protected]) - Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial

No início do século XVII o pesquisador inglês Robert Hook descreveu o que chamou de “célula”. Muito embora o que Hook tivesse observado não fosse uma célula como a conhecemos hoje, seu achado deu base para a evolução da pesquisa celular. Schleiden e Schwann, em 1839, propuseram a teoria celular que tinha como princípio o fato de a célula ser a unidade básica de constituição dos organismos. A descoberta dos experimentos genéticos de Mendel, em 1900, e a elucidação da molécula de DNA por Watson e Crick (1953) tornaram possível desvendar do código genético e evidenciar sua importância nas respostas e reações do organismo em relação ao meio.

A partir destas descobertas e anseios pela busca de respostas mais específicas quanto ao funcionamento da célula, que de modo geral geram a resposta final do organismo, houve o desenvolvimento da série de experimentos que culminou com o que conhecemos hoje como biologia celular e molecular.

O Sistema Nervoso Central (SNC) apresenta grande fascínio devido aos mistérios que a ele, ainda hoje, são atribuídos. É realidade que o SNC ainda não é completamente entendido, mas a biologia celular e a molecular podem nos auxiliar a entender a neurofisiologia.

O SNC é composto por células gliais e neuronais que interagem entre si e comandam o funcionamento encefálico, e possuem características distintas, o que será discutido rapidamente.

Os neurônios antigamente eram reconhecidos como principais células do Sistema Nervoso. No entanto, esta visão vem se modificando à medida que se conhecem melhor as demais células que compõem o SNC. Atualmente tem-se que todas as células do SNC são igualmente importantes para seu correto funcionamento.

Os neurônios são, de longe, as células mais estudadas, pois o interesse por seu estudo vem anteriormente ao das células gliais (desde Santiago Ramón y Cajal em 1888). Os neurônios são células eletricamente excitáveis responsáveis pela transmissão da informação em cadeia, integração do estímulo e elaboração da resposta.

As células gliais compreendem a maioria das células presentes no sistema nervoso e dividem-se em 5 categorias: astrócitos, oligodendrócitos, microglia, células de Schwann e células ependimárias.

Os astrócitos, antes designados como meras células de sustentação do sistema nervoso central, hoje são reconhecidos como sendo os grandes colaboradores dos neurônios no que diz respeito à neurotransmissão. Estas células participam da síntese e metabolismo de diversos neurotransmissores como é o caso, por exemplo, do glutamato. Além disso, os astrócitos são os grandes responsáveis pela barreira hemato-encefálica, pois envolvem vasos sanguíneos com seus prolongamentos e permitem a entrada seletiva de moléculas do sangue para o Sistema Nervoso Central.

Os oligodendrócitos e as células de Schwann são responsáveis pela formação da bainha de mielina, que envolve os axônios neuronais do encéfalo e coluna espinal, respectivamente, a fim de aumentar a velocidade da transmissão elétrica dos neurônios.

A microglia possui papel importante na manutenção da estabilidade imunológica do Sistema Nervoso Central. Estas células migram do sangue para o SNC durante os primeiros estágios do desenvolvimento encefálico e estão envolvidas em uma série de doenças neurodegenerativas como, por exemplo, a Esclerose Lateral Amiotrófica.

As células ependimárias localizam-se principalmente na borda dos ventrículos encefálicos e do canal central, na medula espinal. São células ciliadas que parecem ter função de células-tronco podendo originar outras células gliais e neurônios, especificamente em casos de danos celulares.

A Figura 1.1 exemplifica os diversos tipos celulares encontrados no SNC (com exceção das células de Schwann), assim como a relação entre elas.

Page 131: Livro CI 2007

  123

FIGURA 1.1: Demonstração da morfologia, localização e interação entre os neurônios e os diferentes tipos de células gliais no sistema nervoso central (retirado de http://academic.kellogg.cc.mi.us/herbrandsonc/bio20 1_McKinley/Nervous%20System.htm).

Alguns sistemas de neurotransmisão são bastante didáticos no que diz respeito à ilustração da função de cada tipo celular, colaborando para o entendimento da importância da relação neurono-glial. O sistema glutamatérgico, por exemplo, necessita da participação ativa dos astrócitos para que o glutamato liberado na fenda sináptica não se torne tóxico, já que estas células gliais recaptam o neurotransmissor na sinapse. Além disso, os astrócitos fazem a transformação do glutamato em seu precursor, glutamina, disponibilizando-a para o neurônio voltar a sintetizar glutamato (Figura 1.2).

O sistema angiotensinérgico também é um bom exemplo da cooperação entre estes dois tipos celulares (neurônios e astrócitos) já que muito provavelmente os neurônios não produzem todos os componentes para a formação das angiotensinas (neurotransmissores) (Figura 1.3).

Page 132: Livro CI 2007

 124 

Com o advento da biologia molecular, tornou-se mais fácil o entendimento da contribuição dos diferentes tipos celulares nas situações de normalidade e patologia. É através deste conjunto de ferramentas da biologia molecular que os passos de determinada cadeia de eventos podem ser desvendados, para então interferir especificamente no ponto de interesse e, com isso, alterar a resposta final. Entre as técnicas mais conhecidas e avançadas em biologia molecular, este curso abordará especialmente a hibridização in situ, o western blotting, o PCR (reação em cadeia de polimerase), a terapia gênica, microarrays, e RNA de interferência aplicados à neurofisiologia.

Gln

NH3 capilar

Glu

Glu

Gln

astrócito

Neurônio pré-sinápticoNeurônio pós-sináptico

Glutaminase

Glutamina sintase

GluReceptor de Glutamato

FIGURA 1.2: Esquema da síntese e degradação do glutamato ilustrando a compartimentalização do sistema. Glu: glutamato; Gln: glutamina; NH3: grupo amina. Modificado de Daikhin e Yudkoff (2000).

ECA 2

ECA

REN

AAOOGGEENN

AANNGG II

AANNGG IIII ((?? PPAA))

AANNGG 11--77 ((?? PPAA))

AAOOGGEENN

AANNGG II

AANNGG IIII ECA

REN

AANNGG 11--77

ECA 2

AAOOGGEENN

AT1R

astrócito neurônio

MasECA 2

ECA

FIGURA 1.3: Esquema do sistema renina-angiotensina no sistema nervoso central. A explicação detalhada encontra-se no texto. As interrogações indicam incerteza sobre a etapa. Abreviaturas: AOGEN: angiotensinogênio; ANG: angiotensina; AT1R: receptor tipo 1

Page 133: Livro CI 2007

  125

de angiotensina II; ECA: enzima conversora de angiotensina, Mas: receptor de angiotensina 1-7. Baseado em Lavoie e Sigmund (2003), McKinley e colaboradores (2003), Santos e colaboradores (2003) e Warner e colaboradores (2004). Referências Daikhin Y, Yudkoff M. (2000) Compartmentation of brain glutamate metabolism in neurons and glia. J Nutr,

130:1026S-31S. Färber K, Kettenmann H. (2005) Physiology of microglial cells. Brain Research Reviews, 48:133-143. Lavoie JL, Sigmund CD. (2003) Minireview: overview of the renin-angiotensin system--an endocrine and paracrine

system. Endocrinology, 144:2179-83. McKinley MJ, Albiston AL, Allen AM, Mathai ML, May CN, McAllen RM, Oldfield BJ, Mendelsohn FA, Chai SY.

(2003) The brain renin-angiotensin system: location and physiological roles. Int J Biochem Cell Biol, 35: 901-18.

Santos RA, Simoes e Silva AC, Maric C, Silva DM, Machado RP, de Buhr I, Heringer- Walther S, Pinheiro SV, Lopes MT, Bader M, Mendes EP, Lemos VS, Campagnole-Santos MJ, Schultheiss HP, Speth R, Walther T. (2003) Angiotensin- (1-7) is an endogenous ligand for the G protein-coupled receptor Mas. Proc Natl Acad Sci USA, 100:8258-63.

Sargsyan SA, Monk PN, Shaw PJ. (2005) Microglia as potential contributors to motor neuron injury in amyotrophic lateral sclerosis. Glia, 51(4):241-53.

Volterra A, Meldolesi J. (2005) Astrocytes, from brain glue to communication elements: the revolution continues. Nature rev. neurosci., 6:626-640.

Warner FJ, Smith AI, Hooper NM, Turner AJ. (2004) Angiotensin-converting enzyme-2: a molecular and cellular perspective. Cell Mol Life Sci, 61: 2704-13.

Weiss S, Dunne C, Hewson J, Wohl C. Wheatley, M.; Peterson, A.C. & Reynolds, B.A. (1996) Multipotent CNS Stem Cells Are Present in the Adult Mammalian Spinal Cord and Ventricular Neuroaxis. J. Neurosci., 16(23):7599–7609.

Page 134: Livro CI 2007

 126 

Neuroanatomia Karen Lisneiva Farizatto ([email protected]) e Sérgio Marinho da Silva ([email protected]) - Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial

Sistema nervoso O sistema nervoso é o responsável pela interação do organismo com o ambiente,

sendo quem interpreta e produz respostas para estímulos gerados pelo próprio organismo e pelo meio. Este pode ser dividido em Sistema Nervoso Central – composto pelo encéfalo e medula espinal – e Sistema Nervoso Periférico – composto por nervos e gânglios difundidos por todo o organismo.

Qual é a unidade estrutural básica do sistema nervoso? Assim como qualquer outro órgão do corpo, o encéfalo é composto de células que

têm diferentes formatos e tamanhos, os neurônios e as glias, responsáveis pelos processos que conduzem impulsos nervosos para o corpo e do corpo para a célula nervosa.

Os impulsos nervosos são reações físicoquímicas verificadas nas superfícies dos neurônios e seus processos. Podemos chamá-lo de comunicação celular, que consiste em: envio de informações, sua integração e resposta. Reações semelhantes ocorrem em muitos outros tipos de células, mas são mais notáveis nos neurônios, cujos caracteres estruturais se destinam a facilitar a transmissão dos impulsos ao longo de grandes distâncias. O neurônio é constituído por corpo celular, dendrito, axônio e telodendro (Figura 2.1).

Não só os neurônios fazem parte do tecido nervoso, mas também as células gliais e ependimárias, cujas funções básicas são é de preenchimento, nutrição e sustentação do Sistema Nervoso.

A maioria das conexões do encéfalo com o resto do corpo ocorre através da medula espinal - situada dentro do canal vertebral – derivada do tubo neural, estrutura embrionária que também origina o encéfalo.

Figura 2.1: Principais estruturas de um neurônio. Fonte: www.afh.bio.br.

Desenvolvimento do Sistema Nervoso O tubo neural consiste em um longo tubo com um canal central, composto

basicamente por neurônios e células gliais. Durante o desenvolvimento embrionário, este canal (canal do epêndima) é cercado por três tipos de tecidos, denominados camadas

Page 135: Livro CI 2007

  127

ependimária (canal do epêndima), do manto e marginal (que envolve externamente o tubo neural).

No final do estágio embrionário, no momento em que surge o tecido que originará o sistema nervoso, a região ventral do canal espinal começa a se diferenciar, sendo possível notar o espessamento de três regiões: o prosencéfalo, o mesencéfalo e o rombencéfalo (Figura 2.2).

A primeira região espessada da coluna espinal, o prosencéfalo, dará origem ao telencéfalo – o cérebro propriamente dito – e ao diencéfalo – região que engloba o tálamo, hipotálamo, glândula pineal, e outras estruturas.

A segunda região espessada, o mesencéfalo – encéfalo médio –, continuará indiferenciada e igualmente denominada.

A terceira região espessada, rombencéfalo, se diferenciará em metencéfalo - parte que se transformará em cerebelo - e mielencéfalo, que se tornará o bulbo encefálico.

Como o encéfalo está organizado? Podemos classificar as estruturas que revestem o encéfalo de fora para dentro da

seguinte forma; crânio (proteção mecânica), meninges: dura-máter (camada mais externa), aracnóide (camada média), e a pia-máter (mais interna). Entre a aracnóide e a pia-máter há o líquido cerebroespinal, que nutre o encéfalo, além de fornecer proteção mecânica.

Figura 2.2: Estruturas do encéfalo durante a embriogênese. 1- Prosencéfalo, 2- mesencéfalo, 3- robencéfalo, 4 – futura medula espinal, 5- Diencéfalo, 6- Telencéfalo, 7- Mielencéfalo (futuro bulbo), 8- Medula Espinal, 9- Hemisfério cerebral, 10- Lóbulo Olfatório, 11- Nervo Óptico, 12- Cerebelo, 13- Metencéfalo. Fonte:www.afh.bio.br.

O encéfalo corresponde ao telencéfalo (cérebro), diencéfalo, cerebelo, e tronco encefálico, que se divide em: bulbo (situado caudalmente), mesencéfalo (situado cranialmente) e ponte (situada entre ambos) (Figura 2.3).

Page 136: Livro CI 2007

 128 

Figura 2.3: Divisões do encéfalo humano em corte sagital. Fonte:www.afh.bio.br.

O telencéfalo ou cérebro é dividido em dois hemisférios, bastante desenvolvidos nos mamíferos, nos quais situam-se as sedes da memória e dos nervos (sensitivos e motores). O líquido cerebroespinal circula entre os hemisférios e Sistema Nervoso Central através de canais e reservatórios (os ventrículos). Ao todo, são dois ventrículos laterais, o terceiro e o quarto ventrículos, localizados no encéfalo e tronco encefálico.

A camada externa do cérebro é conhecida como córtex, formada pela substância cinzenta. O nome córtex, que significa casca em latim, lhe foi dado por sua aparência rugosa e também pelo fato de recobrir a maior parte do restante do cérebro.

O córtex de cada hemisfério é dividido em quatro lobos, denominados a partir dos ossos cranianos localizados acima deles. O lobo temporal está localizado nas partes laterais do crânio, é relacionado primariamente com o sentido de audição, possibilitando o reconhecimento de tons específicos e intensidade do som. O lobo frontal, que se localiza na frente do encéfalo, abaixo do osso frontal do crânio, é responsável pela elaboração do pensamento, planejamento, programação de necessidades individuais e emoção. O lobo parietal, localizado dorsalmente, atrás do lobo frontal, é responsável pela sensação de dor, tato, gustação, temperatura, pressão. Também está relacionado com a lógica matemática. O lobo occipital, localizado na região da nuca, é responsável pelo processamento da informação visual (Figura 2.4).

Em meio a substância branca, sob o telencéfalo, há grupos de corpos celulares neuronais que formam os núcleos da base, relacionados com o controle do movimento.

Page 137: Livro CI 2007

  129

Figura 2.4: Divisão anatômica do encéfalo. Fonte: www.afh.bio.br

O diencéfalo localiza-se sob o telencéfalo. Nele encontramos importantes estruturas, como o hipotálamo - constituído por substância cinzenta - o principal centro integrador das atividades dos órgãos viscerais, sendo um dos principais responsáveis pela homeostase corporal. Ele faz ligação entre o sistema nervoso e o sistema endócrino, atuando na ativação de diversas glândulas. É o hipotálamo que controla a temperatura corporal, regula o apetite, o balanço de água no corpo e o sono, além de estar envolvido na emoção e no comportamento sexual. Tem amplas conexões com as demais áreas do prosencéfalo e com o mesencéfalo. Aceita-se que o hipotálamo desempenhe, ainda, papel nas emoções: especificamente as partes laterais parecem envolvidas com o prazer e a raiva, enquanto a porção mediana parece mais ligada à aversão, ao desprazer e à tendência ao riso (gargalhada) incontrolável. De modo geral, contudo, a participação do hipotálamo é menor na gênese (“criação”) do que na expressão (manifestações sintomáticas) dos estados emocionais.

Todas as mensagens sensoriais, com exceção das provenientes dos receptores do olfato, passam pelo tálamo antes de atingir o córtex cerebral. Esta é uma região de substância cinzenta localizada entre o tronco encefálico e o cérebro. O tálamo atua como estação retransmissora de impulsos nervosos para o córtex cerebral. Ele é responsável pela condução dos impulsos às regiões apropriadas do cérebro onde devem ser processados. O tálamo também está relacionado com alterações no comportamento emocional que decorrem, não só da própria atividade, mas também de conexões com outras estruturas do sistema límbico (que regula as emoções).

Situado atrás do cérebro está o cerebelo (Figura 2.5), que é primariamente um centro para o controle dos movimentos iniciados pelo córtex motor (possui extensivas conexões com o cérebro e a medula espinal). Como o cérebro, também está dividido em dois hemisférios. Porém, ao contrário dos hemisférios cerebrais – que controlam o lavo inverso do corpo (contralateral) – os hemisférios cerebelares estão relacionados aos movimentos do mesmo lado do corpo (ipsilateral).

O cerebelo recebe informações do córtex motor e dos núcleos da base sobre todos os estímulos enviados aos músculos. A partir das informações do córtex motor sobre os movimentos musculares pretendidos e de informações proprioceptivas - que recebe diretamente do corpo (articulações, músculos, áreas de pressão do corpo, aparelho vestibular e olhos) – o cerebelo avalia o movimento realmente executado. Após a comparação entre desempenho e aquilo que se teve em vista realizar, estímulos corretivos são enviados de volta ao córtex para que o desempenho real seja igual ao pretendido. Dessa forma, o cerebelo relaciona-se com os ajustes dos movimentos, equilíbrio, postura e tônus muscular a cada instante.

O tronco encefálico (Figura 2.6) interpõe-se entre a medula e o diencéfalo, situando-se ventralmente ao cerebelo. Possui três funções gerais; (1) receber informações sensitivas de estruturas cranianas e controla os músculos da cabeça; (2) contém circuitos nervosos que transmitem informações da medula espinal até outras regiões encefálicas e, em direção contrária, do encéfalo para a medula espinhal (lado esquerdo do cérebro controla os movimentos do lado direito do corpo; lado direito de cérebro controla os movimentos do lado esquerdo do corpo); (3) regular a atenção, função esta que é mediada pela formação reticular. Além destas 3 funções gerais, as várias divisões do tronco encefálico desempenham funções motoras e sensitivas específicas.

Na constituição do tronco encefálico entram corpos de neurônios que se agrupam em núcleos e fibras nervosas. Muitos dos núcleos do tronco encefálico recebem ou emitem fibras nervosas que participam da constituição dos nervos cranianos, que emergem diretamente do encéfalo.

Page 138: Livro CI 2007

 130 

Figura 2.5: Estruturas do cerebelo. Fonte: www.afh.bio.br

Figura 2.6: Estruturas do tronco encefálico. Fonte: www.afh.bio.br

Medula espinal A medula espinal é um tecido de formato cilíndrico, ocupando a maior parte do canal

vertebral. Em corte transversal, observa-se uma região interna mais escura, em formato de H. Esta é a região denominada substância cinzenta. A região em sua volta, mais clara, é denominada substância branca. A substância cinzenta é originária do canal do manto e de células da camada ependimária, enquanto as células da substância branca são originárias da camada marginal.

A substância cinzenta é formada por neurônios não-mielinizados, encontrando-se nela principalmente corpos celulares de neurônios, seus dendritos e células gliais. Já a substância branca é formada por células mielinizadas e é onde encontramos os axônios em conjunto formando tratos.

Na região dorsal da substância cinzenta, nos chamados cornos dorsais, encontramos neurônios principalmente sensoriais – aferentes, encaminham o estímulo ao

Page 139: Livro CI 2007

  131

encéfalo - enquanto nos cornos ventrais encontramos neurônios principalmente motores – eferentes, encaminham o estímulo ao órgão efetor.

Na região dorsal da substância branca, os tratos que existem correm em direção ao encéfalo, enquanto na região ventral os tratos correm em direção ao corpo. Já a região lateral possui tratos em direção aos dois sentidos.

Na medula espinal, os corpos celulares das células nervosas agrupam-se nas colunas cinzentas dorsais e ventrais, que são contínuas por toda sua extensão. No encéfalo, ao contrário, os corpos celulares funcionalmente relacionados aglomeram-se na superfície do cérebro e cerebelo onde formam o córtex desses órgãos ou juntam-se em massas descontínuas no interior do encéfalo. Um conjunto desse tipo é denominado núcleo, mas também pode receber o nome de centro ou corpo.

Sistema nervoso autônomo O Sistema Nervoso Central está conectado ao resto do corpo por meio de fibras

nervosas. Estas fibras se conectam aos receptores sensoriais, a órgãos internos e músculos. Todas essas fibras nervosas que irradiam do encéfalo e da medula espinal são denominadas Sistema Nervoso Periférico.

Dentro do Sistema Nervoso (Figura 2.7), temos o Sistema Nervoso Autônomo. Este é a parte relacionada ao controle da vida vegetativa, ou seja, controla funções como a respiração, circulação do sangue, controle de temperatura e digestão. No entanto, ele não se restringe a isto. Ele é o principal responsável pelo controle automático do corpo frente às diversidades do ambiente. Dessa maneira, pode-se perceber que o organismo possui um mecanismo que permite ajustes corporais mantendo assim o equilíbrio do corpo, também chamado homeostase. Apesar de se chamar Sistema Nervoso Autônomo ele não é independente do restante do Sistema Nervoso.

Sabe-se que o Sistema Nervoso Autônomo é constituído por um conjunto de neurônios que se encontram na medula e no tronco encefálico. Estes, através de gânglios periféricos, coordenam a atividade da musculatura lisa, da musculatura cardíaca e de inúmeras glândulas exócrinas. O Sistema Nervoso Autônomo divide-se em Simpático e Parassimpático. Os neurônios pré-ganglionares do sistema Simpático emergem dos segmentos toracolombares (da região do tórax e logo abaixo), ao passo que os do sistema parassimpático emergem dos segmentos encefálicos e sacrais (da região da cabeça e logo acima dos glúteos).

Figura 2.7: Divisão básica do sistema nervoso.

Características do sistema nervoso por classes: O encéfalo dos peixes varia muito, devido ao grande número de gêneros de peixes

existentes. De modo geral, o telencéfalo não é dividido, havendo apenas um canal, ao invés de canais laterais como nos mamíferos.

O encéfalo dos anfíbios é notavelmente não especializado. Os hemisférios cerebrais são mais separados entre si que nos peixes, de modo que quase não possuem um ventrículo comum. O corpo estriado é pequeno e os lobos ópticos apresentam dimensões pequenas a moderadas. O cerebelo ainda é rudimentar.

O encéfalo dos répteis é estreito, alongado e quase reto. Os bulbos olfativos tendem a ser menores que os dos peixes. Os tratos olfativos são longos e o cerebelo é grande em função da expansão.

Page 140: Livro CI 2007

 132 

O encéfalo das aves são relativamente grandes, uniformes e peculiares. Os bulbos e tratos olfativos são, de modo geral, menores do que nos outros vertebrados. O hemisfério cerebral das aves é superado em tamanho apenas pelo de alguns mamíferos, devido ao enorme desenvolvimento do corpo estriado com seu neocórtex. Os nervos, tratos e quiasmas ópticos são grandes. Nas aves e mamíferos, o cerebelo é muito volumoso, lobulado e convoluto, formando giros e sulcos. As porções superficiais do córtex são delgadas e a substância cinzenta tornou-se externa. Nas aves, o cerebelo é maior do que nos outros vertebrados, salvo alguns mamíferos.

Nos mamíferos, os bulbos e tractos olfativos variam de imensos a muito pequenos. Embora menor que nos répteis e aves, o corpo estriado é bem desenvolvido. O amplo neocórtex representa a característica dos mamíferos, dominando o encéfalo estruturalmente e funcionalmente. Estes são lisos em mamíferos pequenos e convolutos na maioria dos de grande porte. Uma nova comissura, corpo caloso, liga os hemisférios.

A cobertura dorsal do mesencéfalo, denominada teto, é o local onde encontramos em todos os vertebrados, exceto nos mamíferos, o centro primário de percepção da visão. Nos mamíferos, a percepção visual é migrada, em grande parte, para o cérebro, apesar do teto do mesencéfalo ainda ser funcional na visão. Referências Bear MF, Connors BW, Paradiso MA. Neurociências: desvendando o sistema nervoso. 2ª ed. Porto Alegre: ArtMed,

2002. Carlson NR. Physiology of behaviour. Boston: Allyn & Bacon, 2000. Guyton AC. Hall JE. Tratado de fisiologia médica. 9º ed. Guanabara, Rio de Janeiro, 1996. Hildebrand M. Análise da estrutura dos vertebrados. São Paulo, Atheneu, 700p, 1995. Kandel ER, Schwartz JH, Jessell TM. Principles of Neural Science, 4th ed., New York: McGraw-Hill, 2000. Lent R. Cem Bilhões de Neurônios. Rio de Janeiro, Atheneu, 2001. Machado A. Neuroanatomia funcional. São Paulo: Atheneu. 363p, 1993. www.afh.bio.br

Page 141: Livro CI 2007

  133

Controle neural da pressão arterial e hipertensão João Paulo de Pontes Matsumoto ([email protected]) - Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial

A manutenção dos níveis pressóricos dentro de uma faixa de normalidade depende de variações do débito cardíaco ou da resistência periférica ou de ambos. Diferentes mecanismos de controle estão envolvidos não só na manutenção como na variação da pressão arterial (PA), regulando o calibre e a reatividade vascular, a distribuição de fluido dentro e fora dos vasos e o débito cardíaco. O estudo dos mecanismos de controle da PA tem indicado grande número de substâncias e sistemas fisiológicos que interagem de maneira complexa para garantir a PA em níveis adequados nas mais diversas situações.

Desta forma, a dinâmica da PA é efetuada por mecanismos neuro-humorais que corrigem prontamente os desvios dos níveis basais da PA, para mais ou para menos (Michelini, 2007). Sendo assim, estes mecanismos reguladores da PA agem como em um arco-reflexo: envolve receptores, aferências, centro de integração, eferências e efetores cardiovasculares, além das alças hormonais (id).

Entre os componentes que controlam a PA, os mecanorreceptores ou barorreceptores são os principais responsáveis pela momentânea da PA. Localizados na crossa da aorta e no seio carotídeo (Figura 3.1), são constituídos por terminações nervosas livres situadas na adventícea, próximas à borda média – adventicial, que são extensamente ramificadas e apresentam varicosidades e convoluções a espaços irregulares (Krauhs, 1979; Chapleau et al., 2001), (Figura 3.2). Mecanorreceptores são sensíveis a distensão ou deformação da parede vascular, deformações estas que são geradas pela passagem do pulso de pressão. Os barorreceptores transduzem esse sinal mecânico em sinal elétrico através de canais iônicos sensíveis a deformações, pertencentes à família das degerinas/canais epiteliais de Na+ (DEG/EnaC) e presentes nos terminais nervosos. Estes, durante a sístole, permitem o influxo de Na+ e Ca++ que despolarizam os terminais na proporção direta da deformação, ou seja, quanto maior a deformação, maior o influxo de íons, maior a despolarização e vice-versa (Figura 3.2c). Esses sinais são transmitidos ao longo das fibras aferentes mielinizadas e não-mielinizadas.

As fibras barorreceptoras aórticas (Nervo Depressor Aórtico ou de Cyon) caminham pelo nervo vago, enquanto as carotídeas (Nervo Sinusal ou de Hering) incorporam-se ao nervo glossofaríngeo. Há diferenças interespécies quanto à distribuição anatômica do nervo depressor aórtico, como exemplos no cão onde a região cervical é praticamente inseparável do tronco vagal (que contém, igualmente, o simpático cervical) ou no coelho em que este nervo corre isoladamente.

Page 142: Livro CI 2007

 134 

Figura 3.1: A- barorreceptores no seio carotídeo / B- barorreceptores no arco aórtico Modificado de Boron & Boulpaep, 2007.

Na pressão basal, o nível de descarga dos mecanorreceptores é intermediário entre as situações extremas (limiar e saturação); a atividade aferente é intermitente e sincrônica com a expansão da aorta verificada durante o período sistólico (Irigoyen et al., 2005) e a deformação diastólica não é suficiente para gerar uma descarga de potenciais de ação. O nível de atividade das fibras aferentes carotídeas e aórticas são, portanto, função direta das variações instantâneas da deformação e tensão vasculares induzidas pela PA. As informações sobre os níveis de PA, fornecidas pela frequência de descarga dos receptores, são conduzidas ao bulbo, ou mais especificamente ao núcleo do trato solitário (NTS) (Dampney, 1994).

O NTS desempenha papel fundamental na regulação cardiovascular, não só por ser o local de convergência das aferências periféricas (barorreceptores, quimioreceptores, receptores cardiopulmonares), como de aferências suprabulbares (hipotalâmicas) em sua primeira estação sináptica, mas também por distribuir as informações aferentes em tais núcleos bulbares de integração primária (Michelini, 2007). Desta forma, estes núcleos recebem informação do NTS (o núcleo dorsal motor do vago (DMV), o núcleo ambíguo (NA) e o bulbo ventro lateral caudal (BVLc)). Entretanto, o BVLc, constituído por neurônios inibitórios gabaérgicos (Figura 3.3), projeta-se para a mais importante fonte de estimulação simpática, o bulbo ventro lateral rostral (BVLr).

Page 143: Livro CI 2007

  135

Figura 3.2: Reconstrução tridimensional dos barorreceptores. Modificado de Michelini, (2007).

A resposta neural comandada pelos barorreceptores é sumarizada da seguinte maneira: quando há elevação da PA os barorreceptores são estimulados e promovem aumento da geração de potenciais de ação, conduzidos pelas aferências (carotídeas e aórticas) até o NTS, excitando-o, através da liberação do neurotransmissor glutamato (Sved & Gordon, 1994). Por sua vez, o NTS através da liberação do neurotransmissor glutamato, ativa os neurônios do NA e DMV que, via nervo vago, promove bradicardia reflexa e redução do débito cardíaco. Concomitantemente à ativação do NA e DMV, os neurônios inibitórios do BVLc são ativados, inibindo, via liberação do neurotransmissor ácido γ-aminobutírico (GABA) no BVLr, a atividade simpática.

Em situação de hipotensão os efeitos são inversos à situação de alta pressão, ou seja, diminuição da atividade vagal e aumento da atividade simpática. Porém, no NTS há uma grande quantidade de neurotransmissores, neuromoduladores e receptores, cada um com sua especificidade, como a angiotensina II, adenosina, vasopressina, ocitocina, óxido nítrico entre outros; montando uma rede complexa de aferências, que aumenta sua complexidade, plasticidade e acurácia na regulação momento a momento da pressão arterial.

Page 144: Livro CI 2007

 136 

Figura 3.3: Visão esquemática sagital do bulbo de rato: ▲ neurônios excitatórios, ∆ neurônios inibitórios. Retirado de Colombari, (2001).

Estima-se que a parcela de hipertensos no Brasil seja da ordem de 15% a 20% da população adulta, chegando a ser de aproximadamente 50% nos idosos (Sociedade Brasileira de Hipertensão, 2001). Na hipertensão há aumento no padrão de disparos dos barorreceptores causado pela elevação da PA. Este aumento causa saturação dos barorreceptores, diminuindo a resposta reflexa em situações de mudanças abruptas da PA. Porém, muitos anos atrás, Krieger e colaboradores (1982) demonstraram que os barorreceptores, após dois dias de hipertensão, conseguem se adaptar ajustando seu padrão de disparo, mesmo com a PA elevada, ou seja, nessa situação o novo regime de pressão é reconhecido como “normal”, de forma que as mudanças abruptas da PA serão corrigidas. Isso é possível porque os elementos elásticos na parede do vaso à qual os barorreceptores estão ligados sofrem uma deformação devida suas propriedades elásticas, diminuindo a tensão exercida nos barorreceptores, estes então, voltando à conformação de níveis normais de PA (Figura 3.4).

Page 145: Livro CI 2007

  137

Figura 3.4: Registro da ativação dos barorreceptores. Retirado de Michelini (2007).

Reis e colaboradores (1984) propuseram que a hipertensão arterial sistêmica deve ser resultado de um desbalanço entre a rede neural central que ativa os neurônios simpáticos vasomotores e aqueles que os inibem, favorecendo uma alta descarga simpática, que acarreta em elevação dos níveis pressóricos. Ainda hoje os mecanismos envolvidos na gênese da hipertensão arterial sistêmica não estão completamente desvendados. Porém, houve muita evolução nos conceitos e no seu tratamento, mas há ainda muito que pesquisar nesta área tão promissora.

Referências

Boron FW, Boulpaep EL. Medical Physiology, 11º ed; Elsevier, 2007. Chapleau MW, Li Z, Meyrelles SS, Ma X, Abboud FM. Mechanisms determining sensitivity of baroreceptor

afferents in health and disease. Ann N Y Acad Sci. 2001; 940: 1-19. Colombari E, Sato MA, Cravo SL, Bergamaschi CT, Campos RRJr, Lopes OU. Role of the medulla oblongata in

hypertension. Hypertension, 2001; 38(3 Pt 2): 549-54. Dampney RA. Functional organization of central pathways regulating the cardiovascular system. Physiol. Rev. 1994;

74(2): 323-64. Krauhs JM. Structure of rat aortic baroreceptors and their relationship to connective tissue. J. Neurocytol. 1979;

8(4): 401-14. Krieger EM, Salgado HC, Michelini LC. Resetting of the baroreceptors. In: Guyton AC, Hall JE (eds).

Cardiovascular Physiology IV. International Review of Physiology, 1982; vol.26. Baltimore, University Park Press, pp. 119-146.

Irigoyen MC, Consolin-Colombo FM, Krieger EM. Controle cardiovascular: regulação e papel do sistema nervoso simpático. Revista Brasileira de Hipertensão; 2001; 8: 55-62.

Michelini LC. Regulação da pressão arterial: mecanismos neuro-hormonais. In: Aires M. M., 3º ed, Cap. 36. Guanabara Koogan, 2007.

Reis DJ, Talman WT. Brain lesions and hypertension. In: De Jong W, ed. Experimental and Genetic Models of Hypertension. Elsevier; 451-73. Brrkenhãger WH, Reid JL, eds. Handbook of Hypertension, vol 4, 1984.

Sociedade Brasileira de Hipertensão, Cartilha do Hipertenso Nº 1, Disponível na rede mundial de computadores no endereço: http://www.sbh.gov.br, 2001.

Sved AF, Gordon FJ. Amino acids as central neurotransmitters in the baroreceptor reflex pathway. News Physiol. Sci. 1994, 9: 243-6.

Page 146: Livro CI 2007

 138 

Treinamento físico aeróbio: adaptações e benefícios cardiovasculares e parâmetros comportamentais em animais e indivíduos hipertensos Regiane Xavier de Moraes ([email protected]) - Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial

Durante a maior parte da história escrita pelos homens, sempre houve demonstrações de interesse em entender como o corpo funciona. Antigos escritos egípcios, indianos e chineses descrevem tentativas realizadas por médicos para tratar várias doenças e restaurar a saúde. Esterco de camelo e pó de chifre de carneiro podem parecer terapias bizarras atualmente, mas devemos vê-las sob a perspectiva do que se sabia sobre o corpo humano desde os primórdios.

A fisiologia (do grego physis, natureza e logos, palavra ou estudo) é o ramo da biologia que estuda as múltiplas funções mecânicas, físicas e bioquímicas nos seres vivos. De uma forma mais sintética, a fisiologia estuda o funcionamento do organismo. Aristóteles (384 – 322 a.C.) usou a palavra, com o sentido amplo, para descrever o funcionamento de todos os organismos vivos e não apenas do corpo humano. Entretanto, Hipócrates (460 – 377 a.C.), considerado o pai da medicina, usou a palavra para descrever “o poder curativo da natureza” e, assim, este campo de estudo tornou-se intimamente associado à medicina. No século XVI, na Europa, a fisiologia foi considerada como o estudo das funções vitais do corpo humano, embora, hoje em dia, o termo seja aplicado também ao estudo das funções dos animais e das plantas.

Dentre as subdivisões independentes da fisiologia (ecofisiologia, fisiologia vegetal, fisiologia animal, eletrofisiologia) está a neurofisiologia, que estuda a fisiologia do sistema nervoso e a fisiologia do exercício, que se aplica aos estudos voltados aos efeitos do exercício físico sobre o organismo.

Para tratarmos ferimentos e doenças de forma apropriada, devemos conhecer o funcionamento do corpo humano no seu estado saudável. Desta forma, quanto maior a compreensão dos mecanismos que guiam as funções fisiológicas dos organismos vivos, com as suas peculiaridades e a ampla gama de detalhes e variáveis, com mais precisão serão descobertos e efetuados os tratamentos e, concomitantemente, novas terapias surgirão.

Neste tópico será abordada a relação do exercício físico com a hipertensão arterial, além de atualidades e tendências em pesquisa na área da fisiologia do exercício e doenças cardiovasculares. Além disso, será também elucidada a importância do treinamento físico na alteração de características e hábitos comportamentais.

O sedentarismo é o principal fator de risco de mortes em função de doenças cardiovasculares e pode contribuir para o aparecimento e/ou agravamento de doenças cardiovasculares como a hipertensão arterial. A hipertensão arterial é uma das doenças de maior prevalência na população brasileira e mundial. No Brasil, a Sociedade Brasileira de Hipertensão (SBH) estima que haja 30 milhões de hipertensos, cerca de 30% da população adulta. Entre as pessoas com mais de 60 anos, mais de 60% são acometidos. No mundo são 600 milhões de hipertensos, segundo a Organização Mundial de Saúde. Não se deve desprezar também a prevalência desta patologia em crianças e adolescentes. A SBH estima que 5% da população com até 18 anos seja hipertensa, o que corresponde a 3,5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros. Diversos estudos levantaram a prevalência da hipertensão juvenil. No Rio de Janeiro, por exemplo, ela está em torno de 7%. Em Belo Horizonte e Florianópolis, 12% e em Salvador, 4% das crianças e adolescentes são acometidas. Assim, é interessante analisarmos o fato de que como ainda não há cura para a hipertensão arterial, a detecção precoce e o controle adequado para a vida inteira são desafios para a saúde pública.

Durante os últimos tempos, o exercício físico, bem como as suas implicações e conseqüências, tem sido extensamente estudado por cientistas de todo o mundo. Usualmente, os exercícios aeróbicos e/ou de resistência mais recomendados e utilizados são a caminhada, a corrida, a natação, a musculação e o ciclismo. Em animais, as metodologias normalmente utilizadas são a roda de corrida espontânea, além da corrida induzida em esteiras rolantes adaptadas e a natação forçada. No entanto, rodas de corrida espontânea é o método de treinamento animal mais indicado para o estudo de parâmetros

Page 147: Livro CI 2007

  139

fisiológicos por não causar estresse e injúria aos animais. As pesquisas buscam compreender as ações do exercício no organismo, quais os mecanismos centrais e periféricos que as norteiam e, principalmente, quais os benefícios que poucas horas de mudança na rotina diária podem causar, tanto para uma pessoa ou animal saudável como para os acometidos por patologias.

A realização do exercício físico provoca uma série de respostas fisiológicas nos diversos sistemas corporais, em particular no cardiovascular e nervoso. Objetivando manter a homeostasia celular, diante do aumento das necessidades metabólicas, há incremento do débito cardíaco, redistribuição do fluxo e aumento da perfusão sanguínea para a musculatura em atividade.

Sabe-se que exercícios físicos regulares, quando são adequadamente prescritos, e de baixa intensidade podem provocar alterações autonômicas importantes que influenciam o sistema cardiovascular. Entre estas, a atenuação da hipertensão arterial tanto em humanos quanto em ratos espontaneamente hipertensos. A atividade física contribui para a melhora do controle barorreflexo e para a redução de aproximadamente 8 e 11 mmHg das pressões arteriais sistólica e diastólica, respectivamente, em indivíduos hipertensos (Hagberg et al., 2000). Estudos mostram que a diminuição da pressão arterial deve-se à diminuição do débito cardíaco que está associado à diminuição da freqüência cardíaca pós-exercício (bradicardia de repouso) (Véras-Silva et al., 1997). Entretanto, alguns autores propõem que exercícios crônicos provocam queda na resistência vascular sistêmica e, consequentemente, redução da pressão arterial (Nelson et al.,1986). O treinamento físico normaliza o tônus simpático, que controla a freqüência cardíaca em ratos espontaneamente hipertensos (Gava et al.,1995) e diminui a atividade nervosa simpática em humanos, ou seja, estes resultados sugerem que a atividade física pode modular a atividade nervosa simpática para o coração e vasos periféricos explicando, em partes, a queda pressórica.

específicas da freqüência cardíaca durante o exercício constituem um mecanismo muito preciso de manutenção do suprimento do fluxo sanguíneo para o cérebro, coração, pele e músculos em atividade.

Alguns neurotransmissores possuem importantes funções que garantem condições necessárias para a realização da atividade física. Entre estes estão a vasopressina e a ocitocina. A vasopressina e a ocitocina são produzidas em neurônios magnocelulares do núcleo paraventricular do hipotálamo, que envia e recebe projeções do núcleo do trato solitário. Ambos os núcleos são importantes centros de controle cardiovascular (Michelini e Morris, 1999).

A vasopressina facilita a resposta taquicárdica durante a atividade física. Contraditoriamente, a ocitocina diminui a taquicardia e contribui para a bradicardia. Desta forma, estes neurotransmissores possuem efeitos específicos e opostos no controle da freqüência cardíaca. Este balanço entre o estímulo excitatório (vasopressinérgico) e inibitório (ocitocinérgico) provê a eficiência do ajuste fisiológico requerido momentaneamente, já que a taquicardia é necessária para suprir a maior demanda de fluxo sanguíneo e a maior taxa metabólica da musculatura em atividade durante o exercício físico. Assim, no núcleo do trato solitário de animais treinados, a vasopressina e a ocitocina atuam como moduladores da freqüência cardíaca durante a atividade física por potencializar ou moderar, respectivamente, a taquicardia (Michelini, 2001).

É importante enfatizar que as vias vasopressinérgicas e ocitocinérgicas do tronco encefálico não são os únicos mecanismos centrais envolvidos na gênese da taquicardia. Assim, projeções descendentes vasopressinérgicas e ocitocinérgicas do núcleo paraventricular do hipotálamo para o núcleo do trato solitário são parte do mecanismo central de modulação do reflexo barorreceptor no controle da freqüência cardíaca durante o exercício e outras condições ambientais (Michelini, 2001).

Podem ser observadas ainda outras alterações cardiovasculares decorrentes do treinamento físico, tais como a hipertrofia cardíaca. Exercícios aeróbicos, por meio do aumento de volume sanguíneo, podem estimular adaptações na morfologia cardíaca, metabolismo energético e funções. Estes podem produzir hipertrofia cardíaca excêntrica, na qual o aumento da massa ventricular é proporcional ao aumento da câmara cardíaca (Frohlic et al., 1992). Trata-se de uma resposta fisiológica e compensatória fundamental para suportar o aumento da carga de trabalho. Estas alterações estruturais, morfo-

Page 148: Livro CI 2007

 140 

funcionais e metabólicas do coração, induzidas pelo exercício, resultam em maior volume de ejeção sistólica (que se torna mais vigorosa) e em maior esvaziamento ventricular.

Entretanto, a hipertrofia cardíaca pode se instalar em resposta a certos estados patológicos crônicos como e hipertensão arterial. Na hipertrofia concêntrica o aumento da massa ventricular não é proporcional ao aumento da câmara cardíaca. Desta forma, o trabalho cardíaco é feito contra uma excessiva resistência ao fluxo sanguíneo. O coração hipertrofiado pode falhar e tornar-se incapaz, em casos mais graves, de prover o fluxo sanguíneo normal para o indivíduo hipertenso.

Vários são os fatores desencadeantes da hipertensão arterial. Entre eles, o excesso de peso, a alimentação rica em gordura e sal e pobre em frutas, verduras e legumes, o tabagismo, o alcoolismo e os fatores genéticos. Outros fatores importantes são os relacionados aos comportamentos e à capacidade de reação em diversas situações cotidianas. Assim, os comportamentos que atualmente acometem quase a totalidade das pessoas entre crianças e adultos, como o estresse e a ansiedade, podem desencadear ou acentuar o estado hipertensivo. A ansiedade, o estresse e a hiperatividade são acentuadas características comportamentais de ratos espontaneamente hipertensos. Desta forma, surgiu a necessidade de verificar as ações do exercício físico espontâneo (em rodas de corrida) sobre parâmetros fisiológicos cardiovasculares e sobre parâmetros comportamentais, na ânsia de analisar como o treinamento físico pode ajudar e colaborar para a melhora da qualidade de vida de animais e indivíduos acometidos pela hipertensão arterial. Interessantemente, foi observado em 2005 (Moraes, R.X. in dissertação de mestrado) que ratos espontaneamente hipertensos efetivamente treinados em rodas de corrida espontânea apresentam diminuição do medo/ansiedade, estresse e hiperatividade. Para este fim, neste mesmo estudo foi padronizado um protocolo de treinamento físico em rodas de corrida espontânea, um dado até então ausente na literatura, para que fosse possível verificar as ações do treinamento físico espontâneo sobre tais parâmetros.

Desde os primórdios, o estudo da psicopatologia experimental tem se ocupado com os transtornos de ansiedade e depressão através de modelos animais de tais patologias.

Considera-se que a ansiedade e a depressão são exacerbações não adaptativas da reação de defesa (Graeff, 1994). A reação de defesa é o conjunto de diversas estratégias comportamentais selecionadas ao longo da evolução que amplia as possibilidades de sobrevivência em situação de perigo. Entre mamíferos, os padrões de resposta a estas situações são parecidos em sua topografia e aparentados em seus mecanismos fisiológicos de deflagração (Blanchard et al., 1993).

A reação de defesa apresenta-se como uma seqüência de passos na qual a proximidade do estímulo aversivo ambiental determina variações topográficas e fisiológicas observáveis e que podem ser classificadas em três níveis, relacionados com substratos neurais diferenciados, que podem caracterizar as seguintes emoções: apreensão ou ansiedade generalizada no nível um, medo no nível dois e pânico no nível três (Blanchard e Blanchard, 1988). Estes níveis relacionam-se com quatro estratégias: imobilização (freezing), fuga, agressão defensiva ou submissão (Zangrossi Jr, 1996; Blanchard e Blanchard, 1988).

O primeiro nível de defesa ocorre quando o perigo é incerto, como em situações de novidade do ambiente ou quando estímulos potencialmente perigosos ocorreram anteriormente no ambiente. Neste nível, o comportamento comum do animal é uma aproximação lenta, receosa e tímida do estímulo aversivo. No segundo nível de defesa, um estímulo aversivo e potencialmente danoso é identificado e está a uma distância crítica do animal. Entre os comportamentos observados inclui-se o congelamento, que é a inibição de comportamentos coerentes e a fuga ou esquiva do ambiente. O terceiro nível implica em contato estrito do animal com o estímulo aversivo. O principal comportamento observado neste nível é o de fuga desabalada ou agressão defensiva (Blanchard et al., 1986).

A manutenção destes mecanismos básicos em praticamente todas as espécies de mamíferos indica o seu alto valor adaptativo. A expressão destes mecanismos, no entanto, pode ser moldada por situações ambientais diversas, tais como, fatores ligados ao desenvolvimento, familiaridade com o estímulo ou ainda por ações de variáveis fisiológicas, como níveis de hormônios ou drogas, lesões, fatores genéticos, etc. (Blanchard e Blanchard, 1988). Isto dá a estes comportamentos a capacidade de serem

Page 149: Livro CI 2007

  141

extremamente plásticos, podendo ser modulados de acordo com situações vivenciadas pelos animais ou com estímulos como o treinamento físico, por exemplo.

Para abordar experimentalmente aspectos que representem mecanismos ou sintomas ansiosos em animais de laboratório, que correspondam ao que é encontrado na ansiedade humana, foram desenvolvidos inúmeros modelos animais comportamentais. Estes modelos, geralmente, têm como objetivo enfocar aspectos comuns de ansiedade/medo e defesa encontrados em seres humanos e animais, tais como alteração na defecação e micção, reações de sobressalto, alterações na resposta de latência, piloereção, tremores, aumento da PA, entre outros (Wise e Taylor, 1990).

Em animais de laboratório, o estado de ansiedade eliciado pelos modelos experimentais é avaliado com base nos mesmos parâmetros utilizados na avaliação da ansiedade humana, ou seja, na intensidade, duração, freqüência e/ou padrão das respostas defensivas.

Entre os modelos animais de ansiedade mais utilizados estão o labirinto em cruz elevado e o labirinto em T elevado.

O labirinto em T elevado, validado farmacologicamente por Graeff e colaboradores (1998), representa um derivado do labirinto em cruz elevado, que foi modificado a fim de testar simultaneamente o medo condicionado e incondicionado no mesmo aparelho (Graeff et al., 1993). Os resultados são obtidos separadamente em cada um dos braços do aparato.

Trata-se de um modelo etologicamente fundamentado, no qual o pressuposto teórico é a manipulação do medo incondicionado, ou seja, de medos inatos. Esses medos estão relacionados com a sobrevivência do indivíduo como, por exemplo, no confronto com o predador (Blanchard et al., 1986). É bem demonstrado que o fator motivacional crítico, no qual este modelo etológico se baseia é a natureza aversiva aos braços abertos (Zangrossi e Graeff, 1997).

Este modelo experimental foi desenvolvido para investigar os efeitos de drogas ansiolíticas e analisar diferentes tipos de ansiedade e, ao mesmo tempo, verificar a memória (Viana et al.,1994). Também permite mensurar respostas relacionadas com medos condicionados ou inatos no mesmo animal, além de permitir simultânea verificação da memória para estes comportamentos (Conde et al.,1999).

Com este teste é possível analisar a esquiva inibitória no braço fechado, que representa o medo condicionado, e a fuga, nos braços abertos, que representa o medo inato ou incondicionado. Colocar o animal várias vezes no braço fechado proporciona a exploração do labirinto e o aprendizado da esquiva inibitória dos braços abertos. Por outro lado, colocar o animal no final do braço aberto proporciona uma resposta de fuga para o braço fechado. A re-exposição dos animais a estas situações após um intervalo de tempo, permite verificar a memória para estes comportamentos emocionais (Conde et al. 1999).

Estudos em humanos e animais têm revelado alterações comportamentais e neuropsicológicas associadas aos exercícios físicos regulares. O treinamento físico melhora o humor e tem efeitos ansiolíticos e antidepressivos sobre as fobias e a depressão de pacientes (Simons e Birkimer, 1988; Dimeo et al., 2001). Estes resultados são de grande valia, sobretudo pelo fato de que a depressão e a ansiedade são desordens comportamentais que atingem a sociedade como um todo. Nos últimos anos, o avanço tecnológico, assim como as pressões sociais, políticas e econômicas, têm contribuído para o aumento de problemas mentais de ordem emocional. Em situações emocionais, o ser humano pode experimentar basicamente três emoções principais, em resposta a uma situação ameaçadora; raiva dirigida para fora (equivalente à cólera), raiva dirigida contra si mesmo (depressão) e ansiedade ou medo (McGauch et al., 1977). Encontrando-se em um estado de alerta, o organismo exibe uma resposta de luta ou fuga ao agente estressante. Ocorre que a prática de exercícios físicos aeróbios pode produzir efeitos antidepressivos, ansiolíticos e proteger o organismo dos efeitos deletérios do estresse na saúde física e mental (Salmon, 2001).

Exercícios voluntários em rodas de corrida por quatro semanas alteraram o perfil comportamental de camundongos levando a uma diminuição da ansiedade e impulsividade de forma a proteger o organismo dos efeitos deletérios do estresse (Binder et al., 2004).

Ainda sobre os aspectos psicobiológicos, a literatura relata forte correlação entre a melhora da capacidade aeróbia e a melhora das funções cognitivas, como melhor tempo

Page 150: Livro CI 2007

 142 

de reação, maior força muscular, agilidade motora, melhora do humor e memória, especialmente em idosos (Williams e Lord, 1997).

Por fim, o exercício físico crônico de intensidade baixa a moderada possui implicações clínicas importantes já que pode reduzir ou mesmo abolir a necessidade de uso de medicamentos anti-hipertensivos, diminuindo, desta forma, o custo do tratamento, extinguindo efeitos colaterais e, principalmente, promovendo melhora do quadro clínico de indivíduos hipertensos. Assim, pode ser tido como uma importante conduta não farmacológica no tratamento e controle da hipertensão arterial. Somam-se a estas descobertas o fato de que o treinamento físico colabora não só para a manutenção e conquista da saúde cardiovascular mas também para a saúde mental, já que atua beneficamente na redução de comportamentos maléficos e deletérios, que prejudicam os sistemas corporais e podem levar à graves patologias psicossomáticas. Finalmente, uma mudança na rotina diária para o desenvolvimento da prática de esportes, além de ser prazeroso e desestressante, colabora para a melhora na qualidade de vida bem como para a manutenção e ganho da saúde física e mental de indivíduos hipertensos e saudáveis.

Referências

Binder E, Droste SK, Ohl S, Reul JM. Regular voluntary exercise reduces anxiety-related behaviour and impulsiveness in mice. Behav Brain Res. 2004 Dez 6-155(2): 197-206.

Blanchard DC, Blanchard RJ. Ethoexperimental approaches to the biology of emotions. Annual Review of Psychology, 1988; 39: 43-68.

Blanchard RJ, Yudko EB, Rodgers RJ, Blanchard DC. Defense system psychopharmacology: an ethological approach to the pharmacology of fear and anxiety. Behav Brain Res. 1993; Dec 58(1-2): 155-65.

Blanchard RJ, Flanelly KJ, Blanchard DC. Defensive reactions of laboratory and wild Rattus novergicus. Journal of Comparative Physiological Psychology. 1986; 100: 101-107.

Conde CA, Costa V, Tomaz C. Measuring emotional memory in the elevated T-maze using a training-to-criterion procedure. Pharmacol Biochem Behav. 1999 Mai 63(1): 63-69.

Dimeo F, Bauer M, Varahram I, Proest G, Halter U. Benefits from aerobic exercise in patients with major depression: a pilot study. Br J Sports Med. 2001 Apr 35(2): 114-117.

Frohlich ED, Apstein C, Chobanian AV, et al. The heart in hypertension. N Engl J Med, 1992; 327:998-1008. Gava NS, Véras-Silva AS, Negrao CE, Krieger EM. Low-intensity exercise training attenuates cardiac β-adrenergic tone

during exercise in spontaneously hypertensive rats. Hypertension. 1995; 26 (2): 1129-33. Graeff FG, Netto CF, Zangrossi HJr. The elevated T-maze as an experimental model of anxiety. Neurosci Biobehav

Rev. 1998; 23(2): 237-246. Graeff FG, Viana MB, Tomaz C. The elevated T maze, a new experimental model of anxiety and memory: effect of

diazepam. Braz J Med Biol Res. 1993; 26(1) 67-70. Graeff FG. Neuroanatomy and neurotransmitter regulation of defensive behaviors and related emotions in mammals.

Braz J Med Biol Res. 1994; 27(4): 811-829. Hagberg JM, Park JJ, Brown MD. The role of exercise training in the treatment of hypertension: an update. Sports Med.

2000; 30: 193–206. McGauch JL, Weinberger NM, Whalen RE. Psicobiologia - as bases biológicas do comportamento. RJ: livros técnicos e

científicos, 1977. Michelini LC, Morris M. Endogenous vasopressin modulates the cardiovascular responses to exercise. Annals New

York Acad. Sci. 1999; 897:198-221. Michelini LC. Oxytocin in the NTS - A new modulator of cardiovascular control during exercise. Annals New York Acad.

Sci. 2001; 940: 206-20. Moraes RX. Análise da Expressão Gênica da Tirosina Hidroxilase e Vasopressina em Áreas do Sistema Nervoso

Central de Ratos Espontaneamente Hipertensos Submetidos a Treinamento Físico Espontâneo. Dissertação de mestrado, 2005. Biblioteca da Biologia: LC: QP 361.5.

Nelson L, Jennings GL, Esler MD, Korner PI. Effect of changing levels of physical activity on blood-pressure and haemodynamics in essential hypertension. Lancet. 1986; 2: 473–76.

Salmon P. Effects of physical exercise on anxiety, depression and sensitivity to stress: a unifying theory. Clinl Psychol Rev. 2001; 21(1): 33-61.

Simons CW, Birkimer JC. An exploration of factors predicting the effects of aerobic conditioning on mood state. J Psychosom Res. 1988; 32(1): 63-75.

Sociedade Brasileira de Hipertensão Arterial. São Paulo. Disponível em: www.sbh.org.br Acesso em: 05 mai 2007. Véras-Silva AS, Mattos KC, Gava NS, Brum PC, Negrao CE, Krieger EM. Low-intensity exercise training decreases

cardiac output and hypertension in spontaneously hypertensive rats. Am J Physiol: Heart Circ Physiol. 1997; 273(6 Pt2): H2627-H2631.

Viana MB, Tomaz C, Graeff FG. The Elevated T Maze: a new animal model of anxiety and memory. Pharmacol Biochem Behav. 1994; 49 (3): 549-54.

Williams P, Lord SR. Effects of group exercise on cognitive functioning and mood in older women. Aust N Z J Public Health. 1997; 21: 45-52.

Wise MG, Taylor SE. Anxiety and mood disorders in medically III patients. Journal of Clinical Psychiatry. 1990; 51(1): 27-32.

Zangrossi H Jr, Graeff FG. Behavioral validation of the elevated T-maze, a new animal model of anxiety. Brain Res Bull. 1997; 44(1): 1-5.

Page 151: Livro CI 2007

  143

Neurofisiologia do abuso de drogas Andreas Betz ([email protected]) - Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial

O que são drogas? Parece uma resposta fácil. Porém, para definir que substância é considerada droga, ela precisa ter pelo menos algumas características. Você pode dizer que é considerada droga a substância que altera a fisiologia de um organismo. Porém, só isso não basta, já que vitaminas, por exemplo, possuem esta propriedade. Pode-se dizer também que drogas são substâncias tóxicas, mas também esta definição não basta. A melhor maneira de definir uma substância como droga seria, portanto, a soma de algumas propriedades e também usar a intuição para taxar uma substância como tal.

Todas drogas tem nomes químico, genérico e comercial. Como exemplo, irei usar uma droga tranqüilizante bem conhecida: o diazepam. Diazepam é o nome genérico do 7-cloro-1-metil-5-fenil-1,3-dihidro-2H-1,4-benzodiazepin-2-ona (nome químico) ou Valium® (nome comercial). A mesma droga pode ter alguns nomes comerciais, por causa da presença de várias empresas vendendo o mesmo produto.

As drogas possuem várias vias de administração. Através da via oral, a droga é ingerida e absorvida pelo sistema digestório. Na via subcutânea, a droga é administrada sob a pele ou embaixo do tecido cutâneo. Na via intramuscular, a droga é administrada através da inserção de uma agulha no músculo esquelético, geralmente escolhidos como alvo o deltóide ou o glúteo máximo. Na via intraperitoneal, a droga é administrada através de uma agulha inserida na região abdominal onde se localizam os órgãos viscerais. Na via intravenosa, a droga é administrada através da veia do indivíduo, diretamente na corrente sanguínea. Ainda podemos citar a administração de drogas via inalação, onde a droga é absorvida diretamente pelos pulmões; injeções intracerebroventriculares, nas quais a droga é injetada diretamente nos ventrículos cerebrais e também injeções intracerebrais, na qual a droga é administrada diretamente em alguma área do cérebro.

A maioria das drogas é metabolizada no fígado, podendo se transformar em subprodutos que podem ou não serem ativos. A maioria delas também é excretada pelo corpo através dos rins, fezes, suor e saliva.

Quando uma droga é desenvolvida, ela passa por vários testes até ser aprovada para o consumo humano, se for considerada funcional e segura. Um método muito usado para verificar as propriedades terapêuticas das drogas é a utilização de animais experimentais e vários protocolos diferenciados. Através destes protocolos pode-se verificar, por exemplo, alterações no comportamento e em estruturas cerebrais que podem levar a um entendimento maior sobre a substância a ser analisada.

As drogas podem gerar estados de tolerância, sensibilização e abstinência. A tolerância é um fenômeno que ocorre através da administração, que faz com que o indivíduo necessite de maior quantidade de substância para conseguir o efeito esperado da droga. Ainda não se sabe qual o mecanismo responsável por este fenômeno, porém, sabe-se que após a descontinuidade do uso, a tolerância desaparece.

A sensibilização é uma situação na qual a repetida administração da droga leva a um aumento nos efeitos dela, ou seja, uma ação inversa à descrita na tolerância. Sua ocorrência não é muito comum. Como na tolerância, a sensibilização desaparece após a descontinuidade do uso.

A abstinência se dá através da descontinuidade ou diminuição do uso de drogas que levam à mudanças na fisiologia do indivíduo. Ela pode ocorrer alguns minutos depois da última administração da droga ou após algum tempo sem a utilização da mesma. Um dos mais conhecidos sintomas da abstinência é a “ressaca”.

Como as drogas agem? As drogas atuam principalmente na neurotransmissão encefálica. Elas alteram e modulam a comunicação entre os neurônios, através de interações com os neurotransmissores e seus receptores. Neurotransmissores são substâncias como monoaminas e peptídeos, entre outros, que são os responsáveis pela comunicação entre as células do sistema nervoso. A maioria dos neurotransmissores se encontra em vesículas sinápticas, presentes em terminais axônicos, próximos da fenda sináptica (Tabela 5.1).

Page 152: Livro CI 2007

 144 

Tabela 5.1 – Alguns neurotransmissores do Sistema Nervoso Central

As drogas podem atuar de várias maneiras agindo, por exemplo, como agonistas de neurotransmissores, mimetizando a ação de neurotransmissores endógenos (nicotina); inibindo a recaptação de neurotransmissores, ou seja, fazendo com quem eles permaneçam por mais tempo nas fendas sinápticas (cocaína); bloqueando receptores e, consequentemente, inibindo a ação dos neurotransmissores (Prozac) entre outras formas.

A maioria das drogas causa o vício. O vício é uma é uma síndrome comportamental na qual a procura pela droga e o seu uso dominam o comportamento do indivíduo. A droga de abuso (droga usada sem fim terapêutico) possui um grande poder motivacional, pelo prazer e euforia que pode proporcionar, porém suas conseqüências podem ser danosas aos seus usuários e familiares.

A principal via relacionada com o vício de drogas é a mesolímbica de reforço. Ela é composta por dois núcleos principais: a área tegmental ventral e o nucleus accumbens. A área tegmental ventral possui neurônios dopaminérgicos que se projetam para o nucleus accumbens, liberando dopamina neste núcleo, o que inicia o processo de adição (Figura 5.1).

Acetilcolina Monoaminas Adrenalina Noradrenalina Dopamina Serotonina Histamina Aminoácidos Glicina Glutamato Prolina Ácido gama-aminobutírico (GABA) Peptídeos Substância P Fatores neurotróficos Outros Encefalinas Endorfinas Vasopressina Insulina Prolactina Hormônio do crescimento (GH)

Page 153: Livro CI 2007

  145

Figura 5.1: Via mesocorticolímbica de reforço. Fonte: www.humanillnesses.com/.../Addiction.html

Após a ativação deste sistema, há a interação de vários outros núcleos encefálicos que vão interpretar e modular uma resposta ao estímulo apresentado. Entre os principais núcleos, destacam-se a amígdala (relacionada com aprendizado associativo) e o córtex pré-frontal (relacionado com o comportamento motivacional). A interação destes núcleos leva ao comportamento de busca e abuso de drogas.

Há uma gama enorme de drogas que são utilizadas tanto para abuso quanto para fins terapêuticos e, muitas vezes, a diferença entre um e outro se deve apenas à quantidade da droga ingerida.

Estimulantes Psicomotores Os estimulantes psicomotores são drogas que agem principalmente sobre sinapses

adrenérgicas, noradrenérgicas, dopaminérgicas e serotoninérgicas. Entre eles, os mais conhecidos são: metilfenidato (Ritalina®), cocaína, anfetamina, metanfetamina e efedrina (Franol®). Cocaína e efedrina são encontradas na natureza, enquanto o metilfenidato é sintetizado em laboratório.

Estas drogas são administradas via injeção intravenosa e intramuscular, inalação ou via oral. Elas atravessam rapidamente a barreira hemato-encefálica alterando a neurotransmissão do indivíduo. A anfetamina, metanfetamina e efedrina atuam inibindo a recaptação de dopamina pelos neurônios e também aumentando a liberação de neurotransmissores. A cocaína atua somente inibindo a recaptação de dopamina pelos neurônios. Elas são muitas vezes consumidas com outras drogas, o que leva a um aumento do seu efeito prazeroso.

As drogas estimulantes causam sensação de bem-estar e excitação, e levam à mudanças fisiológicas como vaso e broncodilatação, taquicardia, insônia, irritabilidade, perda de apetite, agressividade, psicose, entre outros sintomas. Elas podem levar à morte por depressão de núcleos respiratórios centrais, causando parada cardio-respiratória.

Álcool O álcool é uma das drogas mais usadas no mundo. Foram encontradas evidências

de sua fabricação na China há mais ou menos 9.000 anos (McGovern et. al., 2004). O álcool é produzido por fermentação ou destilação, sendo que as bebidas destiladas possuem maior teor alcoólico (em torno de 40%). Ele é administrado oralmente e sua absorção é feita através do sistema digestório. A maioria das moléculas de álcool é metabolizada no fígado e o restante é eliminado pelo organismo junto com o suor, urina e fezes, entre outros.

O álcool altera vários sistemas de neurotransmissão como o serotoninérgico (receptor 5-HT3), GABAérgico, glutamatérgico e opióide (Froehlich & Li, 1993).

Page 154: Livro CI 2007

 146 

Alguns efeitos do álcool são: vasodilatação periférica, euforia, desinibição, diurese e letargia; atua como sedativo, levando indivíduos a terem mais sono (porém diminui o tempo de sono REM), altera a visão e o tempo de reação, além de também causar perda de memória.

Opióides São drogas derivadas da papoula. Possui dois ingredientes ativos: a morfina e a

codeína. A heroína é uma droga derivada da morfina e tem capacidade de chegar ao cérebro mais rápido e em maior concentração do que a morfina. Hoje em dia existe uma enorme quantidade de opióides sintéticos, geralmente utilizados por hospitais, como potentes anestésicos.

A heroína foi produzida pela primeira vez em 1898. Após a sua administração, que pode ser nasal, intravenosa e por vapor de fumaça (broncoaspiração), ela atua no cérebro, principalmente em áreas relacionadas com a dor e necessidades básicas do indivíduo, agindo em receptores opióides, que se ligam normalmente à endorfinas e encefalinas.

Os opióides causam sensação de bem estar, acompanhada de vários efeitos colaterais como náusea, vômito, constipação, alterações na visão e audição, alucinações, além de deprimir núcleos bulbares responsáveis pelo controle respiratório e cardíaco, podendo levar o individuo a morte.

Nicotina A nicotina é um alcalóide encontrado nas folhas de tabaco e é um dos maiores

responsáveis por mortes de causas não naturais e em todo o mundo. Ela causa aumento da pressão arterial, da frequência cardíaca, da atividade motora,

vasoconstrição, náusea, diminuição do apetite, entre outros sintomas (McBride et. al., 1998).

A nicotina atua como agonista de receptores nicotínicos de acetilcolina, alterando a maquinaria cerebral. Ela atravessa a barreira hemato-encefálica e chega ao cérebro em torno de dez segundos após sua administração. Uma única exposição à nicotina aumenta a liberação de dopamina no nucleus accumbens por mais de uma hora (DiChiara & Imperato, 1998) através da estimulação, via receptores nicotínicos de acetilcolina, de neurônios dopaminérgicos da área tegmental ventral (circuito de recompensa).

Esta droga também causa alterações na concentração, memória e humor. A nicotina pode causar aterosclerose, câncer de pulmão, boca e garganta, entre

outros sintomas que, normalmente, só aparecem após longo período de uso. Maconha A maconha é utilizada há muito tempo (em torno de 6.000 anos). O ingrediente ativo

da maconha é o delta-9-tetrahidrocanabinol. Ela é encontrada em três espécies de plantas: Cannabis sativa, Cannabis indiana e Cannabis ruderalis (Grinspoon & Bakalar, 1997).

A maconha pode ser administrada oralmente (o que resulta em um efeito mais lento) ou fumada (que causa um efeito rápido). Ela age no sistema canabinóide cerebral, que responde pelos canabinóides endógenos anandamida e 2-araquidonilglicerol. Porém é muito mais potente que os canabinóides endógenos.

A maconha causa euforia, alteração na sensibilidade auditiva, visual e tátil (R. T. Jones, 1978), perda da percepção de tempo e alteração na criatividade. Seus efeitos adversos podem ser: olhos vermelhos, boca seca, fome, aumento da freqüência cardíaca e temperatura corporal, náusea, insônia e dores de cabeça, déficit de atenção e até reações psicóticas.

Contudo, pode ter efeitos terapêuticos em casos clínicos como glaucoma (Grinspoon & Bakalar, 1997) bem como em problemas motores e espasticidade (Braude & Szara, 1979, vol 2).

Alucinógenos Os mais conhecidos membros deste grupo de drogas são o LSD (dietilamida do

ácido lisérgico), a mescalina (derivada de cactos) e o ecstasy. Estas drogas agem no sistema nervoso central, na neurotransmissão serotoninérgica e dopaminérgica. Elas podem ser administradas por via oral, sublingual, injetadas ou inaladas, e praticamente não produzem efeitos físicos.

Page 155: Livro CI 2007

  147

O LSD geralmente é consumido na dose de 100 a 300µg. Cerca de 1% da dose chega ao cérebro. É degradado pelo fígado e eliminado pelas fezes. Os efeitos variam bastante, podendo provocar ilusões, alucinações, grande sensibilidade sensorial (cores mais brilhantes, percepção de sons imperceptíveis), “flashbacks”, paranóia, alteração da noção temporal e espacial, confusão, sentimento de bem-estar, experiências de êxtase, psicose por “má viagem” entre outros.

Estas drogas possuem uma grande tolerância quando administradas repetidamente. Porém, não apresentam abstinência, já que raramente são administradas por muito tempo.

Drogas psicoterápicas Entre as drogas psicoterápicas, há três grupos principais: os tranqüilizantes-

sedativos, os antidepressivos e os antipsicóticos. Tranqüilizantes-sedativos: existem dois grupos principais – os barbitúricos e os

benzodiazepínicos. Os barbitúricos foram as primeiras drogas tranqüilizantes desenvolvidas, porém, apresentavam alguns efeitos não desejáveis e tinham uma potente ação depressora em núcleos bulbares que, com uma dose mais elevada, poderia levar o individuo à morte. Com o desenvolvimento dos benzodiazepínicos, os barbitúricos foram praticamente deixados de lado. Os benzodiazepínicos mais conhecidos são o diazepam (Valium®), clonazepam (Rivotril®) e um de grande interesse é o flunitrazepam (Rohypnol® ou “boa noite Cinderela”) por seu uso não medicinal.

Estas drogas agem no sistema nervoso central potencializando as sinapses GABAérgicas, ou seja, inibindo a comunicação do sistema nervoso podendo também, em alguns casos, alterar a recaptação de adenosina, outro receptor inibitório. Seus efeitos incluem diminuição da atenção, perda de memória e de habilidades motoras em geral.

Antidepressivos: existem vários tipos de antidepressivos. Entre eles destacam-se os inibidores de monoamina-oxidase (MAOis), os tricíclicos (ATCs), os inibidores de recaptação de serotonina (SSRIs) e os inibidores de recaptação de noradrenalina (SNRIs). Todos eles agem de acordo com a teoria de depressão das monoaminas, na qual a depressão seria o resultado de uma menor ativação dos sistemas monoaminérgicos no cérebro. Entre esses vários tipos, os mais conhecidos e difundidos no mercado são a sertralina (Zoloft®) e a fluoxetina (Prozac®). Além destes, o lítio é usado no tratamento de transtornos bipolares. A fluoxetina pode também ser usada em tratamento de personalidade obsessivo-compulsiva (Gitlin, 1993).

A taxa de absorção destas drogas varia bastante e a maior parte delas é degradada pelo fígado.

Os efeitos reportados mais comuns do uso de antidepressivos são: boca seca, constipação, tontura, arritmia cardíaca, náusea, dor de cabeça, redução do sono REM e suor excessivo. Alguns pacientes reportaram sintomas extrapiramidais.

Alguns SSRIs parecem ser eficientes no tratamento do vício em outras drogas, inclusive o alcoolismo.

Antipsicóticos: existem várias hipóteses sobre a psicose, porém, a mais aceita é a dopaminérgica, a qual preconiza que a esquizofrenia é o resultado do excesso da atividade da dopamina no cérebro.

Os antipsicóticos são drogas chamadas, às vezes, de grandes tranqüilizantes. Existem dois grupos de antipsicóticos – os típicos (ex: chlorpromazina; haloperidol), que atuam bloqueando os receptores D2 de dopamina e os atípicos (ex: clozapina; risperidona; quetiapina), que atuam bloqueando os receptores D3 e D4 de dopamina além do receptor 5-HT2A de serotonina.

A esquizofrenia (transtorno psicótico) é caracterizada pela falta de contato com a realidade. A pessoa parece ficar em um mundo à parte, não consegue interpretar eventos, e é acometida por alucinações.

Os efeitos dos antipsicóticos variam muito. Entre eles podemos citar os sintomas da doença de Parkinson (efeitos extrapiramidais) causados em 40% dos pacientes que usam medicamentos típicos, os movimentos constantes compulsivos (acatesia) e os distúrbios de movimento (discinesia); além de alterações na frequência cardíaca, pressão arterial e possíveis ataques epiléticos, entre outros. A clozapina está relacionada com uma doença fatal chamada agranulocitose. Porém, os antipsicóticos não são drogas letais, sendo praticamente impossível obter uma overdose.

Page 156: Livro CI 2007

 148 

Referências Braude MC, Szara, S. Pharmacology of marijuana (2 vols.). Orlando: Academic press, 1976. Di Chiara G, Imperato A. Drugs abused by humans preferentially increase synaptic dopamine concentrations in the

mesolimbic system of freely moving rats. Proc Natl Acad Sci U S A. 1988 Jul;85(14):5274-8. Gitlin MJ. Pharmacotherapy of personality disorders: conceptual framework and clinical strategies. J Clin

Psychopharmacol. 1993 Oct;13(5):343-53. Review. Graeff FG, Guimarães FS. Fundamentos de psicofarmacologia, Atheneu, 2000. Grinspoon L, Bakalar JB. Marijuana, the forbidden medicine. (Rev. and Exp. Ed.) New Haven , CT: Yale University

Press, 1997. Hardman JG, Limbind LE. The pharmacological basis of therapeutics, 11th Edition, New York: McGraw Hill, 2005. Jones RT. Marijuana: human effects. In L. L. Iverson, S. D. Iverson & S. H. Snyder (Eds), Handbook of

psychopharmacology (Vol. 12), pp. 373-412. New York: Plenum Press, 1978. McBride JS, Altman DG, Klein M, White W. Green tobacco sickness. Tob Control. 1998 Autumn; 7(3):294-8. Review. McGovern PE, Zhang J, Tang J, Zhang Z, Hall GR, Moreau RA, Nunez A, Butrym ED, Richards MP, Wang CS,

Cheng G, Zhao Z, Wang C. Fermented beverages of pre- and proto-historic China. Proc Natl Acad Sci U S A. 2004 Dec 21;101(51):17593-8. Epub 2004 Dec 8.

Froehlich JC, Li TK. Recent developments in alcoholism: opioid peptides. Recent Dev Alcohol. 1993; 11:187-205. Review.

McKim W. Drugs and Behavior: An Introduction to Behavioral Pharmacology (6th Edition), New Jersey: Prentice Hall, 2006.

Page 157: Livro CI 2007

  149

Fisiologia aplicada a reabilitação de doenças neurodegenerativas Fernanda Beatriz Monteiro Paes Gouvêa ([email protected]) - Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial; Colaboração do Prof. Dr. Leandro Cortoni Calia – Professor titular da disciplina de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Santo Amaro.

6.1. Introdução ao Sistema Nervoso O Sistema Nervoso é dividido funcionalmente em Somático e Visceral. O Sistema

Nervoso Somático pode ser aferente ou eferente, enquanto o Visceral pode ser aferente, eferente simpático e eferente parassimpático. O Sistema Nervoso também é dividido em Periférico e Central, como mostra a figura 6.1:

Figura 6.1: Divisão funcional do Sistema Nervoso

O sistema Nervoso Somático relaciona o organismo com o ambiente. A parte aferente leva impulsos dos receptores periféricos aos centros nervosos. O componente eferente leva a informação dos centros nervosos aos músculos estriados esqueléticos, gerando movimentos. Por sua vez, o componente Visceral, através da parte aferente, leva informações das vísceras para áreas específicas do Sistema Nervoso, e a eferente transmite impulsos gerados em centros nervosos até as vísceras (Figura 6.2).

Page 158: Livro CI 2007

 150 

Figura 6.2: Sistema Nervoso Somático.

Os nervos unem o Sistema Nervoso Central aos órgãos. Quando a união é feita com o encéfalo, chamamos nervos cranianos; se a ligação é feita com a medula, chamamos nervos espinais. Gânglios são células nervosas agrupadas, localizadas nas proximidades do Sistema Nervoso Central, ou próximo/dentro das paredes das vísceras. Muitas fibras têm origem em neurônios ganglionares. Os nervos espinais são originados em neurônios medulares ou ganglionares. Podem ser sensitivos (gânglios das raízes dorsais) ou motores (raízes ventrais). Já os nervos cranianos são originados em núcleos encefálicos ou em gânglios próximos do crânio (Figura 6.3).

O Sistema Nervoso Central manda informação para músculo esquelético, músculo cardíaco, músculos das paredes das vísceras e glândulas. No alvo, o impulso é transformado em ações que liberam energia: contração muscular ou secreção glandular.

O Sistema Nervoso Central possui envoltórios que protegem mecanicamente contra choques e nutrem, além de propiciar meio ótimo para o funcionamento neural: são as chamadas meninges (Figura 6.5).

Page 159: Livro CI 2007

  151

Figura 6.3: Nervos cranianos. Fonte: http://www.afh.bio.br/nervoso/nervoso4.asp#medula

Figura 6.4: Sistema Nervoso Autônomo. Fonte: LOPES, SÔNIA. Bio 2. São Paulo, Ed. Saraiva, 2002 in www.afh.bio.br/nervoso/nervoso4.asp#medula

Page 160: Livro CI 2007

 152 

Figura 6.5: Meninges. Fonte: www.nenosolar.com.br/escolademediuns/caixacran.jpg

No Sistema Nervoso existem dois tipos de fibras e também dois tipos de áreas: a chamada substância branca, com maior concentração de fibras nervosas envoltas por gordura e a substância cinzenta que possui maior concentração de fibras nervosas sem envoltório gorduroso.

Figura 6.6: Segmento da medula espinal. Fontes: http://pt.wikipedia.org/wiki/Nervos_raquidianos e http://thalamus.wustl.edu/course/spinal.html

No córtex cerebral e cerebelar a substância cinzenta é exterior à branca. Em outras regiões é o oposto.

6.1.1. Unidades estruturais e funcionais do Sistema Nervoso. 6.1.1.1. Neurônios O neurônio produz e veicula sinais capazes de codificar tudo o que sentimos dentro

e fora do organismo e tudo o que pensamos. Operam em grandes conjuntos (circuitos) nos quais cada neurônio faz uma coisa e todos realizam juntos uma função.

As informações aferentes saem por axônios e vão para outras células do circuito neural. Por isso, o axônio tem modificações que se ligam aos dendritos de outros neurônios. Os axônios de neurônios semelhantes por vezes se juntam em tratos ou feixes no Sistema Nervoso Central ou nervos no Sistema Nervoso Periférico.

Cada neurônio possui vários prolongamentos que recebem informações, mas apenas um que as manda. Sua membrana plasmática é especializada em produzir e propagar impulsos elétricos. Possui diferentes tipos de canais iônicos (macromoléculas embutidas na membrana, capazes de filtrar seletivamente a passagem de íons para dentro e para fora da célula).

Page 161: Livro CI 2007

  153

Figura 6.7: Neurônio. Fonte:www.geocities.com/malaghini/neuron2.gif

Durante um potencial de repouso, o interior da célula tem carga elétrica negativa em relação ao meio extracelular e esta diferença é mantida pelo fluxo constante de íons. Quando ocorre inversão da polaridade da membrana, através da abertura de canais de sódio, seguida pela abertura dos canais de potássio, que se propaga ao longo do axônio, temos um potencial de ação – sinal elétrico utilizado como unidade de informação.

Figura 6.8: Membrana celular e canais iônicos. Fonte:www.cerebromente.org.br/n10/fundamentos/pele2b.gif

Os neurônios são formados pelo soma, axônios e dendritos. O soma é formado por citoplasma e membrana citoplasmática. O citoplasma possui meio denso (citosol) e proteínas que formam o citoesqueleto. O Citoesqueleto mantém a forma, permite a mobilidade de neurônios jovens durante o desenvolvimento; emite e retrai prolongamentos neuronais e transporta moléculas sinalizadoras, nutrientes, fatores tróficos e vesículas membranosas. É formado por três estruturas principais: microtúbulos (tubulina e MAP), neurofilamentos (diferentes proteínas enroladas em trança) e microfilamentos (actina) responsáveis pelos movimentos celulares.

Como possuem intensa atividade protéica, o retículo endoplasmático rugoso é bem pronunciado nos neurônios. O DNA nuclear de neurônios adultos fica disperso no núcleo e não se agrupa. No núcleo ocorre a síntese do RNAm, que forma réplicas do DNA para a síntese de proteínas. O RNAm sai do núcleo para o citoplasma e se junta aos ribossomos. Alguns desses ribossomos se ligam à superfície externa do retículo endoplasmático rugoso enquanto outros se associam ao RNAm. Essa união entre RNAm e ribossomo é chamada polissomo, e é onde ocorre a síntese de proteínas.

Algumas proteínas sintetizadas voltam ao núcleo, algumas ficam no citosol e outras

Page 162: Livro CI 2007

 154 

são armazenadas no retículo endoplasmático rugoso para posterior transporte. Do retículo endoplasmático rugoso saem pequenas vesículas que depois se fundem com o aparelho de Golgi que emite, por sua vez, vesículas transportadas pelos microtúbulos dos axônios e dos dendritos. Tanto o retículo endoplasmático rugoso quanto o aparelho de Golgi contêm enzimas que regulam a síntese de neurotransmissão pelos próprios neurotransmissores e também por componentes da membrana plasmática. Do Golgi também saem pequenas organelas citoplasmáticas (os lisossomos) com enzimas capazes de decompor moléculas já utilizadas pela célula em unidades menores para serem usadas na síntese de novas moléculas.

No soma também estão a mitocôndria, que realiza a fixação do oxigênio e a síntese de ATP, e o peroxissomo – organela que contém proteção contra o peróxido, subproduto altamente oxidante que resulta da degradação molecular.

Figura 6.9: Fenda sináptica. Fonte: BEAR, M; CONNORS, B; PARADISO, M. Neurociências: desvendando o sistema nervoso. Porto Alegre: Artmed, 2002.

Os dendritos que saem do soma formam, por vezes, algo semelhante a uma árvore em torno do soma; aumentam a superfície da célula, possibilitando maior contato entre neurônios. Alguns tipos de neurônios ainda emitem espinhas dos ramos dendríticos. Essas espinhas são pequenas projeções com esférula na extremidade, onde se formam contatos sinápticos. Além de aumentarem a superfície celular, têm importância funcional, pois constituem microcompartimentos privilegiados, nos quais se concentram íons e pequenas moléculas que influenciam na transmissão de informações entre neurônios. O padrão de espinhas de um neurônio se modifica dinamicamente com a aprendizagem e com certas doenças mentais, o que nos permite supor que elas desempenham papel importante nas funções neurais.

Nos dendritos estão presentes praticamente todas as substâncias do soma; em ramos mais finos, desaparecem ou diminuem o retículo endoplasmático rugoso, aparelho de Golgi e os microtúbulos do citoesqueleto.

O axônio sai do soma através do cone de implantação, região muito excitável na qual aparece o impulso nervoso, conduzido pelo axônio. As diferentes partes da célula estão em constante comunicação: existe um fluxo contínuo de moléculas e organelas através do citoplasma, que pode ser do soma em direção às extremidades do axônio (anterógrado) ou das extremidades para o soma (retrógrado).

Muitos axônios são revestidos por uma cobertura isolante feita de lipídios e proteínas, chamada bainha de mielina. No Sistema Nervoso Central, a bainha de mielina é produzida pelos oligodendrócitos e no Sistema Nervoso Periférico pelas células de

Page 163: Livro CI 2007

  155

Schwann. Nos axônios de neurônios do Sistema Nervoso Central existem proteínas que bloqueiam o crescimento regenerativo após lesões; o que explica a regeneração de axônios periféricos, mas não de axônios centrais.

Figura 6.10: Estrutura do nervo. Fonte: http://www.esec-lousa.rcts.pt/sist_nervoso.htm

Cada axônio pode se ramificar em sua extremidade distal, e cada ramificação pode ter múltiplos botões sinápticos que se ligam ao soma, ao dendrito ou ao axônio de outros neurônios, formando as sinapses.

6.1.1.2. Células gliais As glias são células não neuronais com diferentes funções, que garantem a infra-

estrutura necessária para o funcionamento dos neurônios. Suas funções incluem alimentar o neurônio, lidar com sinais químicos que orientam o crescimento e a migração dos neurônios durante o desenvolvimento, fazer a comunicação entre neurônios na vida adulta; absorver substâncias dos meios vizinhos e transformar em substâncias úteis; isolar a membrana dos axônios; têm função de defesa, reconhecimento de condições patológicas, além de outras. Estão divididas em dois grandes grupos, macroglias e microglias. As macroglias são formadas por astrócitos e oligodendrócitos, que têm mesma origem embrionária que os neurônios (ectoderme). As microglias são formadas por microgliócitos ramificados e amebóides, e têm origem embrionária mesodérmica.

Page 164: Livro CI 2007

 156 

Figura 6.11: Células gliais. Fonte: http://www.uff.br/fisiovet/imagens/sistema_nervoso_6.JPG

Os astrócitos têm seus prolongamentos ramificados, ocupam espaços interneuronais, envolvem sinapses e nós de Ranvier, formam envoltório em capilares sangüíneos do sistema nervoso e revestem internamente as cavidades intracerebrais e meninges. Morfologicamente, os astrócitos são diferentes na substância branca e na cinzenta, mas até então suas funções não foram diferenciadas de forma significativa. São marcados pela presença de GFAP (proteína ácida fibrilar glial), uma proteína que forma o citoesqueleto, expressa exclusivamente por astrócitos, identificada por anticorpos monoclonais fluorescentes ou coloridos.

Seus prolongamentos envolvem as sinapses do Sistema Nervoso Central, e possuem receptores de membrana para certos neurotransmissores, como GABA (ácido gama-aminobutírico) e glutamato, transformando-os em glutamina, a qual é transportada para os neurônios e permite a ressíntese das duas substâncias e controla o excesso de neurotransmissores nas sinapses.

Page 165: Livro CI 2007

  157

Figura 6.12: Células nervosas. Fonte: www.afh.bi.br/nervoso/img/Nervos49.jpg

Nos nós de Ranvier, onde ocorrem potenciais de ação, os pedículos dos astrócitos participam do restabelecimento do gradiente eletroquímico normal, pois possuem grande quantidade de canais de K+ e proteínas transportadoras de íons.

As paredes dos capilares cerebrais também são revestidas por ramificações astrocísticas, que facilitam a existência da barreira hematoencefálica, importante mecanismo protetor do Sistema Nervoso Central.

Quando ocorrem lesões no tecido nervoso, os astrócitos se proliferam e se deslocam para as proximidades da lesão, formando uma cicatriz glial, que seria equivalente ao processo inflamatório de outros tecidos. Como produzem fatores tróficos e apresentam antígenos, os astrócitos desempenham dois papéis importantes para o local lesado: os fatores tróficos contribuem para a sobrevida dos neurônios atingidos e os antígenos provocam ação defensiva dos linfócitos T.

Os oligodendrócitos possuem menos prolongamentos que os astrócitos e são divididos em satélites e fasciculares. Os primeiros ficam próximos dos corpos celulares e os fasciculares entre os axônios do Sistema Nervoso Central, cujos prolongamentos se enrolam nos axônios para formar a bainha de mielina, elemento isolante que permite maior velocidade de condução do impulso nervoso. Esta mielina do Sistema Nervoso Central contém moléculas protéicas que bloqueiam a regeneração axônica, diferentemente da mielina de axônios periféricos, produzida por células de Schwann, que permite recuperação após lesões pela ausência deste componente bloqueador.

Os microgliócitos ramificados possuem corpo pequeno, alongado e com poucos prolongamentos; em sua forma original, não se proliferam nem atuam em processos patológicos. Já os microgliócitos amebóides, que também possuem corpo pequeno e poucos prolongamentos, têm atividade fagocítica e se proliferam bastante na presença de agressões e traumas do Sistema Nervoso Central. Se houver necessidade, monócitos sangüíneos podem entrar no tecido nervoso e se transformar em microgliócitos amebóides, assim como microgliócitos ramificados podem ser ativados, se proliferar e assumir forma amebóide.

6.1.2. Transmissão de informações A transmissão de informações entre neurônios acontece através de sinapses, que

podem ser elétricas ou químicas. As sinapses elétricas existem principalmente em neurônios imaturos e gliócitos adultos, e sua estrutura é denominada junção comunicante, uma região na qual duas células se aproximam e suas membranas ficam separadas por um espaço muito pequeno (cerca de 3 nm). Nesta região, as membranas possuem canais iônicos especiais, formados por subunidades protéicas idênticas e capazes de se acoplarem quimicamente para formar poros que permitem a passagem de íons e pequenas moléculas, de uma célula para outra. É uma transmissão muito rápida, pois não utiliza intermediários químicos. As informações transmitidas por sinapses elétricas não são modificadas entre uma célula e outra, e geralmente passam nos dois sentidos (entram e saem), embora existam as junções retificadoras – que permitem a passagem da corrente

Page 166: Livro CI 2007

 158 

elétrica em apenas uma direção. As sinapses químicas existem entre neurônios adjacentes de uma região

especializada, permitindo o contato por contigüidade. A estrutura é conhecida como fenda sináptica e é bem maior que as junções comunicantes (cerca de 20nm). O espaço entre uma membrana e outra é preenchido por matriz protéica adesiva que favorece a fixação e a difusão de moléculas entre elas. A região sináptica da primeira célula é chamada elemento pré-sináptico e é igualmente um terminal axônico. O elemento pós-sináptico, região sináptica da segunda célula, é geralmente um dendrito.

Figura 6.13: Sinapse. Fonte: www.ucs.br/ccet/defq/naeq/material_didatico/textos_interativos_37/sinapse.jpg

O terminal pré-sináptico tem como característica mais marcante a presença de vesículas que se aglomeram nas proximidades da membrana, e de grânulos secretores, esferas maiores com material elétron-denso, além de zonas de ativação. O potencial de ação chega ao axônio pré-sináptico e causa liberação de substâncias na fenda sináptica. Esta substância, armazenada nas vesículas, é o neurotransmissor, que se difunde até a membrana pós-sináptica e gera novamente um potencial de ação. Estas conversões de informação permitem que exista modificação durante o trajeto. Quem realiza estas modificações são os neuromoduladores, presentes em quase todas as sinapses.

Portanto, os neurotransmissores são produzidos pelo neurônio, armazenados em vesículas e liberados no espaço extracelular. Transmitem informações entre neurônios e células próximas. Os neuromoduladores são produzidos pelo neurônio, atuam na sinapse, modificando a ação de neurotransmissores.

As sinapses podem ser excitatórias ou inibitórias. As excitatórias despolarizam, enquanto as inibitórias hiperpolarizam o terminal pós-sináptico. Os elementos pré e pós-sinápticos das sinapses inibitórias têm membrana de mesma espessura, e as vesículas liberadas são achatadas, enquanto as sinapses excitatórias possuem elementos com diferentes espessuras de membrana (membrana pós-sináptica mais espessa) e liberam vesículas esféricas.

Devemos lembrar que cada célula pode fazer milhares de sinapses. Assim, o resultado final de uma informação depende da interação dos potenciais de ação de todas essas sinapses, conhecida como integração sináptica.

As informações são passadas entre os neurônios através de poros ou canais na membrana, que permitem a passagem seletiva de íons, gerando sinais elétricos. Canais iônicos são glicoproteínas, proteínas de membrana incrustadas na bicamada lipídica, com capacidade de deixar passar íons de modo seletivo, de forma continuada ou em resposta a estímulos elétricos, mecânicos ou químicos.

-canais abertos: deixam passar íons continuamente; -canais controlados por comportas: só abrem em resposta a estímulos específicos.

Podem ser: a) dependentes de voltagem: abertos por alteração da voltagem da membrana;

Page 167: Livro CI 2007

  159

b) dependentes de ligantes: abertos por substâncias específicas, como neurotransmissores, neuropeptídeos e hormônios;

c) dependentes de energia mecânica que incida diretamente sobre a membrana. Os canais iônicos têm três estados funcionais: repouso (está fechado mas pode ser

aberto), ativo (está aberto e permite fluxo iônico) e refratário (está fechado e não pode ser ativado). Depois de um potencial de ação, o axônio fica refratário. Isto garante que o potencial de ação seja propagado em uma única direção.

Existem interações específicas entre os íons e radicais da parede dos canais, que funcionam como filtro molecular, permitindo a passagem de uma espécie iônica em cada tipo de canal. As diferenças de concentração iônica (elétrica e química) existentes entre os meios intra e extracelular fornecem energia potencial para o movimento dos íons do local de maior concentração para o de menor.

Os canais de passagem livre são muito mais simples que os controlados. As proteínas possuem a propriedade de assumir conformações espaciais diferentes, chamada alosteria. Dependendo da conformação, não permitem a passagem de íons pela membrana. Porém, na presença de estímulos específicos, suas subunidades protéicas se modificam, permitindo a passagem iônica. Nos canais dependentes de voltagem, alterações no potencial elétrico da membrana podem causar mudança da estrutura. Em canais dependentes de ligantes, ocorre reação química não permanente entre um ligante (neurotransmissor, por exemplo) e a parte extracelular da proteína de membrana. Por fim, nos canais mecânicos, um estiramento da membrana causa abertura das comportas.

Os neurotransmissores podem ser aminas, aminoácidos e purinas, sendo que alguns aminoácidos podem atuar como neuromoduladores. Já os neuromoduladores podem ser gases e peptídeos, sendo que alguns peptídeos podem atuar como neurotransmissores.

Cada neurotransmissor é formado por uma substância específica em um local específico, e o conhecimento de sua síntese é de grande importância para os psiquiatras e neurologistas, pois algumas doenças atingem diretamente este processo, como o parkinsonismo e alguns tipos de depressão.

O potencial de ação, quando chega ao terminal sináptico, alcança zonas ativas, regiões ricas em canais de Ca2+ voltagem-dependentes. O potencial de ação provoca abertura dos canais de Ca2+, e este passa em grande quantidade para o interior do terminal, aumentando a concentração intracelular deste íon. A quantidade aumentada de Ca2+ no interior do terminal sináptico faz com que as vesículas sinápticas ancorem nas zonas ativas, liberando seu conteúdo na fenda sináptica através de exocitose. O neurotransmissor age no receptor específico, situado na membrana pós-sináptica e gera potencial de ação.

Existem dois tipos de receptores sinápticos: metabotrópicos e ionotrópicos (fig.7.13.). Os ionotrópicos são os canais iônicos dependentes de ligantes, e são mais rápidos. Os receptores metabotrópicos estão ligados à proteína G ou à ação enzimática intracelular do próprio receptor. Como não são canais iônicos, a transmissão é mais lenta e indireta, feita por reações químicas intracelulares, iniciadas pela proteína G, que ativa proteínas efetoras que geralmente são canais iônicos. Estes canais, ao se abrirem, permitem que ocorra um potencial de ação. Além disso, a proteína G pode atuar em proteínas de membrana que produzem mensageiros químicos (segundos mensageiros). Esses mensageiros podem agir em locais distantes da membrana ou no interior da célula pós-sináptica, desencadeando cascatas enzimáticas, aumentando o tempo que um potencial de ação leva para ser gerado, ou mesmo nem desencadeando um potencial de ação (apenas modificando o metabolismo e função neuronais). Quando ocorrem modificações, mas não necessariamente é desencadeado um potencial de ação, dizemos que houve neuromodulação. Chamamos co-transmissão quando dois neurotransmissores são utilizados na mesma sinapse e co-ativação quando dois receptores diferentes são ativados.

O fim da transmissão sináptica ocorre fundamentalmente através de dois mecanismos: a recaptação e a degradação enzimática do neurotransmissor. A recaptação é feita pelas proteínas transportadoras específicas da membrana do terminal pré-sináptico ou por astrócitos. É um mecanismo influenciado por drogas de vários tipos como cocaína, alguns antidepressivos e anticonvulsivantes. A degradação enzimática ocorre em sinapses colinérgicas e peptidérgicas. O neurotransmissor é quebrado e suas partes se difundem no

Page 168: Livro CI 2007

 160 

meio extracelular ou são recaptadas para o interior do terminal e utilizadas na síntese de novas moléculas.

Figura 6.14: Receptores ionotrópicos. Fonte: www.sistemanervoso.com

6.1.3. Neurotransmissores 6.1.3.1. Glutamato O glutamato, um aminoácido, é sintetizado pelo cérebro a partir de glicose e outros

nutrientes e é o principal neurotransmissor excitatório do cérebro. Quantidades muito pequenas de glutamato podem desencadear potenciais de ação. Existem três tipos de receptores de glutamato: AMPA, NMDA e Kainato.

Figura 6.15: Glutamato. Fonte: www.saha.org.ar

6.1.3.2. GABA É sintetizado a partir da descarboxilação do glutamato, catalizada pela glutamato

descarboxilase, presente em muitas terminações do cérebro, assim como as células B, do pâncreas. Os neurônios que secretam GABA são chamados de GABAérgicos. É o principal neurotransmissor inibitório do sistema nervoso central.

Page 169: Livro CI 2007

  161

Figura 6.16: Neurônios GABAérgicos. Fonte: www.benzo.org.uk

6.1.3.3. Acetilcolina É o neurotransmissor utilizado pelos neurônios que inervam os músculos, resultando

em contração. Junto com a noradrenalina, a acetilcolina é o principal neurotransmissor do sistema nervoso simpático. É provável, apesar de não estar ainda muito claro, que sua função no cérebro tenha ligação com a aprendizagem e a vigília.

Sua síntese depende da enzima colina acetiltransferase, que é sintetizada no soma e transportada até o terminal axonal. Para certas doenças, caracterizadas por deficiência na transmissão sináptica de acetilcolina, suplementos de colina são administrados na dieta, objetivando aumentar os níveis encefálicos do neurotransmissor.

Figura 6.17: Neurônios colinérgicos. Fonte: www.bayer.cl

7.1.3.4. Catecolaminas

Page 170: Livro CI 2007

 162 

São formadas a partir do aminoácido tirosina e possuem estrutura química denominada catecol. Neurônios catecolaminérgicos são encontrados em regiões do sistema nervoso envolvidas na regulação do movimento, humor, atenção e funções viscerais. São neurônios que contêm a enzima tirosina hidroxilase, que cataliza o primeiro passo da síntese das catecolaminas: converte a tirosina em dopa, que será convertida em dopamina pela enzima dopa descarboxilase. A dopa descarboxilase existe em grande quantidade nos neurônios catecolaminérgicos, e a quantidade de dopamina sintetizada depende da quantidade de dopa disponível.

Uma vez dentro dos terminais axonais, as catecolaminas podem ser novamente transportadas para as vesículas e serem reutilizadas ou ser degradadas pela enzima monoaminoxidase (MAO) da membrana externa da mitocôndria.

Figura 6.18: Síntese de catecolaminas. Fonte: www.sistemanervoso.com

6.1.3.4.1. Dopamina Os corpos celulares dos neurônios que utilizam a dopamina estão principalmente na

substância negra e na área tegmental ventral. 6.1.3.4.2. Noradrenalina Tanto no sistema nervoso simpático quanto no cérebro, encontra-se perifericamente.

A maioria dos neurônios noradrenérgicos tem seu corpo celular no locus coeruleus (tronco cerebral).

Neurônios que utilizam noradrenalina como neurotransmissor contêm, além de tirosina hidroxilase e dopa descarboxilase, a enzima dopamina β-hidroxilase, conversora de dopamina em noradrenalina.

6.1.3.4.3. Adrenalina Neurônios adrenérgicos contêm a enzima feniletanolamina N-metil-transferase, que

converte noradrenalina em adrenalina. Além de servir como neurotransmissor no encéfalo, a adrenalina é liberada pela glândula adrenal para a circulação sangüínea, e atua em receptores no corpo todo, produzindo resposta visceral coordenada.

6.1.3.5. Serotonina Em humanos, a serotonina tem sido associada à depressão, ansiedade,

comportamento agressivo, obesidade e outros distúrbios de alimentação, enxaqueca, disfunção sexual e dor crônica. É derivada do aminoácido triptofano. Neurônios serotonérgicos existem em menor quantidade.

Page 171: Livro CI 2007

  163

Figura 6.19: Síntese de serotonina. Fonte: www.sistemanervoso.com

7.1.3.6. Fatores de crescimento São peptídeos que transmitem sinais para os neurônios via receptor de tirosina

quinase. Podem ser produzidos por células gliais ou pelos próprios neurônios. Participam do desenvolvimento, divisão e crescimento neuronal e ajudam a prevenir a morte da célula. As neurotrofinas são fatores de crescimento que apóiam a diferenciação e sobrevivência de conjuntos específicos de neurônios. Entre elas estão: o fator de crescimento nervoso (NGF), o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF) e as neurotrofinas 3 e 4/5. Todas podem ser liberadas de qualquer lugar no cérebro.

7.1.4. Gênese e diferenciação Toda célula ectodérmica tem potencial para se transformar em neurônio, a chamada

neuralização. O ectoderma tem proteínas que bloqueiam o desenvolvimento neural (proteínas morfogenéticas – BMPs – subgrupo dos fatores tróficos transformantes – TGFs). Quando um neurônio pára de se dividir, torna - se um “neurônio juvenil” e migra se arrastando através de prolongamentos lançados pela membrana.

Figura 6.20: Diferenciação celular. Fonte: www.educacaopublica.rj.gov.br

A notocorda produz proteína que se difunde no sentido dorsal pelo tubo neural, reconhecida pelas células juvenis que emitem sinais intracelulares capazes de modificar a expressão gênica. O sinal varia com a concentração desta proteína – perto da “fonte” (mais ventral) as células do tubo neural se transformam em motoneurônios. Mais distante, as células se transformam em interneurônios e reconhecem diferentes BPMs, e podem se transformar em diferentes tipos de neurônios, de acordo com o tipo de BMP.

Fatores indutores e morfogenéticos mesodérmicos atuam no SNC embrionário

Page 172: Livro CI 2007

 164 

ativando genes homeóticos distintos em diferentes lugares, que sintetizarão proteínas responsáveis pela diferenciação celular, permitindo o aparecimento de diferentes núcleos.

Durante a migração, o neurônio juvenil PODE emitir um axônio que cresce numa certa direção (célula alvo) e estabelece contatos especializados. O axônio surge como um prolongamento do corpo celular, forma um cone de crescimento na extremidade, com actina (proteína contrátil), e lança projeções capazes de reconhecer pistas químicas e também de se locomover. Uma das coisas que essas pistas fazem é polimerizar o citoesqueleto do cone, alongando o axônio ou formando ramos colaterais.

Uma mesma molécula pode atuar de diferentes formas em axônios, dependendo do receptor da membrana do cone. Várias substâncias atuam na diferenciação neural, por exemplo: lamininas, fibronectina e proteoglicanos são inibidores de crescimento axônico; moléculas de adesão celular direcionam o crescimento do cone, como caderinas (glicoproteínas que dependem da concentração intracelular de cálcio, reconhecidas por outras caderinas do cone de crescimento) e imunoglobulinas, reconhecidas hemofílica ou heterofilicamente pelos cones de crescimento.

Vários neurônios são formados no embrião, mas o número de células que permanecem vivas após o nascimento é determinado pela quantidade de tecido alvo. Existem fatores neurotróficos que garantem a sobrevivência dos neurônios juvenis. Fatores tróficos são produzidos pelo alvo e captados pelas células com as quais fazem contato sináptico, e atuam dobre o DNA bloqueando o processo de apoptose (várias células têm a mesma direção alvo; as que conseguem estabilizar sinapses recebem quantidade suficiente de fator neurotrófico e sobrevivem. As outras morrem).

6.1.5. Envelhecimento e morte do Sistema Nervoso O processo evolutivo (desenvolvimento, amadurecimento e envelhecimento) é

caracterizado por modificações permanentes, desde a fecundação do óvulo até a morte. Estas modificações podem ser morfológicas, fisiológicas ou de conduta e são diferentes em cada um dos estágios da vida.

O processo de envelhecimento, apesar de ter características comuns nos seres humanos, pode variar de acordo com interferências ambientais, como condições de vida, higiene, alimentação e índice de mortalidade de uma determinada população.

Em muitos países, legalmente, a idade considerada como início da velhice é de 65 anos.

Além das mudanças físicas (pele, cabelos, dimensões corpóreas), ocorrem modificações mentais. Estas mudanças são mais subjetivas e, portanto, mais difíceis de avaliar. Ocorre redução da função sexual (climatério), diminuição da tolerância glicídica, das funções renal e respiratória, diminuição do índice cardíaco, força muscular e da velocidade de condução neuronal, além de diminuição da acuidade sensorial (visual, auditiva, gustativa, olfativa), redução na capacidade isoimunitária e aumento da reação auto-imunitária. Cresce a vulnerabilidade ao estresse, injúrias e doenças em geral. Nos últimos anos, as melhoras no sistema sanitário, higiene, alimentação, qualidade da medicina e ambientação social contribuíram para o declínio desta vulnerabilidade. Contudo, ainda existem diferenças acentuadas entre populações, o que denota tanto a desigualdade de acesso aos recursos modernos quanto a provável existência de fatores genéticos no envelhecimento, que diferenciam populações.

Os processos de desenvolvimento são identificados pela capacidade adaptativa do organismo. O envelhecimento é caracterizado por respostas adaptativas insuficientes ou inadequadas. Ocorrem diminuições da massa protéica, do tecido orgânico de ossos e vísceras, ocorre rigidez de certos tecidos, como o das artérias, do cristalino e da pele; surgem pontos de hiperpigmentação na pele, vísceras e Sistema Nervoso, devido ao acúmulo de lipofuscina. Gorduras são acumuladas e há redução de massa mineral. Os processos mitóticos ficam reduzidos e há declínio do metabolismo basal, no conteúdo de água celular, débito cardíaco e capacidade vital pulmonar.

O envelhecimento é um fenômeno multifatorial. Somam-se ao fator genético, o aparecimento de mutações aleatórias do DNA de células somáticas - que são acumulativas – alterações imunológicas, o entrecruzamento molecular e a formação de radicais livres.

Durante o envelhecimento, ocorrem modificações fisicoquímicas entre moléculas, que ficam maiores, mais complexas e com digestibilidade reduzida, além de alta

Page 173: Livro CI 2007

  165

estabilidade, o que torna o tecido rígido. A permeabilidade e o fluxo de substâncias ficam alterados, assim como fica reduzida a integridade celular. A formação de radicais livres de oxigênio e de peróxidos lipídicos origina aldeídos, causadores de ligações entrecruzadas entre macromoléculas, gerando estas modificações. No indivíduo idoso, há maior formação de radicais livres, que induzem a formação de mais ligações entrecruzadas.

Figura 6.21: Acúmulo encefálico de lipofuscina e formação de placas senis. Fonte: www.fotciencia.fecyt.es

O processo de envelhecimento ocorre por insuficiências genéticas, metabólicas, hormonais e imunológicas, como manifestação progressiva das alterações de função e estrutura, que culminam na diminuição da capacidade de reagir às agressões.

Estas modificações podem ser determinadas por alterações genéticas na codificação de proteínas que corrigem mutações sutis ou mesmo alterações na expressão do material genético. Agentes como raios ultra-violeta, substâncias químicas e alguns tóxicos podem desencadear mutações. Os mecanismos exatos de envelhecimento celular são pouco conhecidos.

O Sistema Nervoso envelhece lentamente após a maturidade, e termina na morte da pessoa e de seu cérebro. As causas do envelhecimento ainda não foram completamente esclarecidas.

O cérebro de um idoso é menor e mais leve, com alguns giros mais finos, separados por sulcos mais profundos. As cavidades são mais abertas e o córtex, portanto, menos espesso. São sinais de atrofia que podem ser observados com técnicas de imagem, como a tomografia computadorizada e a ressonância magnética. Ao ser observado no microscópio, o espaço extracelular possui depósitos de fragmentos de neurônios – as chamadas placas senis. Muitos neurônios possuem novelos de neurofibrilas no citoplasma. O número de neurônios diminui, assim como o número de sinapses e de substâncias químicas produzidas (principalmente enzimas que sintetizam e degradam neurotransmissores). Surgem proteínas anômalas nas placas senis; a principal é a ß-amilóide. Ocorrem modificações como lapsos de memória, diminuição da velocidade de raciocínio, confusões passageiras, dificuldade de locomoção, falta de equilíbrio, tremor distal, insônia noturna e sonolência diurna.

A velhice leva à deficiência no controle genético de produção de proteínas estruturais, enzimas e fatores tróficos, que repercute na função das células nervosas, dificultando a gênese, condução e a transmissão de impulsos nervosos. As células se degeneram, rompem e liberam detritos que se acumulam em placas senis; com o aumento das células anormais e a diminuição das normais, as neuroglias (sistema imunológico) são incapazes de remover os detritos, aumentando a quantidade destas placas. A principal degeneração é dos mecanismos de memória, neurônios e circuitos colinérgicos; porém, ocorrem também alterações circulatórias, respiratórias, digestivas, etc. que contribuem para a perda de função generalizada do organismo e acabam por levá-lo à morte.

Quando essas mudanças são tão pronunciadas que causam sintomas físicos e

Page 174: Livro CI 2007

 166 

psicológicos, chamamos de doença de Alzheimer (ou demência senil). As proteínas fibrilares sofrem alterações degenerativas e se acumulam de forma desorganizada no citoplasma.

Figura 6.22: Formação de placas senis. Fonte: www.biomed.uninet.edu

6.2. Adaptação Celular O organismo é capaz de se adaptar frente a estímulos que fogem do seu normal

(basal) de funcionamento. Contudo, estímulos exagerados podem levar à sobrecarga, pois os mecanismos adaptativos podem ser insuficientes ou limitados. Mesmo em situações não exageradas de estímulos, o organismo pode apresentar resposta adaptativa insuficiente. Ambas as ocorrências (exagero de estímulos e insuficiência de adaptação) geram resposta orgânica inadequada, chamada patológica.

O estímulo estressor pode ser extracorpóreo, intracorpóreo ou intracerebral. Se for maior que a capacidade adaptativa do organismo, pode causar lesão celular ou limitar o sistema de adaptação neuro-endócrino-imune.

Quando um organismo é agredido, reage ativando o metabolismo oxibiótico e energético, aumentando o consumo de oxigênio e ativando o sistema simpático-adrenal. Ocorre resposta muscular conhecida como luta ou fuga: a luta é realizada por ativação dos mecanismos muscular, imune, celular e metabólico-endócrino, que agem sobre o agressor com a intenção de eliminá-lo; a fuga é o processo de distanciamento do agente agressor (funções musculares esquelética e lisa, que expulsam, como a diarréia, os reflexos, a tosse, espirro, aumento de secreções, etc.).

O mecanismo de luta ou fuga ocorre pela ativação do sistema neuro-endócrino-imune, com participação do locus coeruleus e de núcleos simpáticos hipotalâmicos, que aumentam a secreção de catecolaminas e a ativação do Sistema Simpático eferente.

Quando esta ativação não é bem-sucedida em eliminar o agente agressor, o organismo modifica suas estratégias de defesa, visando manter a vida. Poupa-se energia, cai o consumo de oxigênio e o fluxo circulatório tecidual, e acumula-se energia para o próximo estágio. Agora, o organismo produzirá inversão metabólica e circulatória liberando energia e calor (febre), e aumentará a atividade fagocitária e imunológica, na tentativa de eliminar o agente agressor e passar para a fase de recuperação.

A diferença entre lesão e adaptação celular é que na adaptação a célula enfrenta a agressão atingindo um novo equilíbrio com o ambiente, modificado em relação ao basal, enquanto na lesão o limiar adaptativo da célula é ultrapassado e ocorre alteração do equilíbrio entre a célula e o meio.

6.3. Lesão Celular A lesão celular pode ser encontrada em qualquer tipo de célula, e ocorre em quase

todos os mecanismos patológicos. As causas mais freqüentes de lesão são a isquemia,

Page 175: Livro CI 2007

  167

lesão por agentes infecciosos e lesões de origem química. Os agentes nocivos afetam principalmente a membrana celular, a síntese protéica, a integridade do genoma e a respiração aeróbica, influenciando na fosforilação oxidativa e na produção de ATP.

Ocorrem modificações bioquímicas intracelulares que afetam o sítio de lesão e também locais distantes, antes que as manifestações morfológicas letais se instalem. O tamanho da lesão não depende somente do estímulo, mas também de sua duração, intensidade e quantidade. Os mesmos mecanismos, em pequenas doses, podem causar adaptação (reversível), enquanto que em grandes quantidades ou por tempo prolongado podem causar morte celular. Contudo, os estados hormonal, nutricional e metabólico são importantes durante os mecanismos de agressão, pois podem definir um quadro de lesão reversível, irreversível ou morte celular.

As causas de lesão celular são inúmeras e vão desde trauma físico até agenesia de enzimas metabólicas. A principal causa de lesão é a hipóxia (falta de oxigênio), que pode ser primária ou secundária.

Os agentes físicos, químicos e fármacos, assim como agentes biológicos, também são causas importantes de lesão celular. Entre as causas biológicas, destacam-se as reações imunológicas, as alterações genéticas e o desequilíbrio nutricional.

Entre os fatores químicos mediadores que determinam a agressão celular destacam-se os radicais livres, as aminas vasoativas, as proteases e os sistemas da cinina, do complemento e fibrinolítico, além dos metabólitos do ácido aracdônico e constituintes lisossomais, que provêm do plasma ou da própria célula e podem agir aumentando a permeabilidade celular ou induzindo a liberação de outros produtos nocivos.

6.3.1. Aminas vasoativas As aminas que atuam aumentando a permeabilidade da membrana celular, como a

histamina e a serotonina, são liberadas mediante algumas condições. O trauma, o calor excessivo (queimaduras) e as reações imunológicas são algumas delas.

6.3.2. Sistema de proteases plasmáticas São substâncias enzimáticas biológicas que atuam como hidrolisantes. O sistema de

cininas produz liberação de peptídeos biologicamente ativos, como a bradicinina, que atua como vasodilatador e a calicreína, agente proteolítico. O sistema fibrinolítico, durante a ativação do processo de coagulação, forma fibrinopeptídeos que aumentam a permeabilidade vascular.

6.3.3. Sistema complemento Atua nos processos imunes mediando reações biológicas, como o aumento da

permeabilidade vascular, quimiotaxia, opsonização e lise do organismo agressor. Sua ativação começa pelo complexo antígeno-anticorpo e por estímulos não-imunes. Ambas as formas de ativação geram produtos proteolíticos que lesam a célula.

6.3.4. Ácido aracdônico e seus metabólitos Os metabólitos do ácido aracdônico são sintetizados e liberados durante a hipóxia e

sob ação de certos agentes físicos, químicos, drogas e neurotransmisores. Tais metabólitos estão presentes nas reações de hipersensibilidade e inflamatórias. Estão também implicados nos processos de hemostasia, trombose e patologias cardiovasculares, pulmonares, renais e endócrinas.

As prostaglandinas, os tromboxanos, leucotrienos e hidroperóxidos são produtos metabólicos fisiológicos do ácido aracdônico. São substâncias que atuam como hormônios locais ou de ação parácrina e autócrina, cujos efeitos ocorrem em locais próximos do sítio de liberação e logo em seguida são inativados espontânea ou enzimaticamente.

6.3.5. Radicais Livres São produtos metabólicos de substâncias químicas, de drogas exógenas ou

endógenas (reações oxidativas que formam superóxido de O2, radical hidroxila e radical O2 singlet). Estes radicais são extremamente reativos, quimicamente instáveis, que iniciam reações em cadeia e podem ser acelerados na presença de outros radicais livres.

Radicais livres são produzidos pelo processo de respiração celular, através da reação entre o oxigênio molecular e um elétron. Também são ser produzidos por ação de

Page 176: Livro CI 2007

 168 

drogas, auto-oxidação de biomoléculas, efeitos poluentes ambientais, radiações ionizantes e ação de algumas enzimas. Estes radicais podem lesar sistemas biológicos ou formar peróxidos lipídicos ao se ligarem aos ácidos graxos polinsaturados.

Suas principais ações são a peroxidação lipídica, o envelhecimento, a inflamação e morte microbiana.

Os agentes antioxidantes (vitaminas E e C, selênio, hidroquinona e compostos sulfídricos) limitam a formação dos radicais livres, reduzindo a peroxidação lipídica.

A agressão por radicais livres ocorre em situações de estresse hiperoxidante ou quando os sistemas antioxidantes estão diminídos ou impossibilitados de agir.

Quando um radical livre reage com um composto, pode desencadear reação de formação de outros radicais livres, agindo em locais distantes.

Figura 6.23: Lesão celular por radical livre. Fonte: www.pierre.senellart.com

Figura 6.24: Formação de radicais livres. Fonte: www.geocities.com/bioquimicaplicada/Radica1.gif

Page 177: Livro CI 2007

  169

O envolvimento dos radicais livres em diferentes patologias é atualmente difícil de ser comprovado nos seres humanos, mas reprodutível em modelos animais. Contudo, nem todos os achados são extrapoláveis à espécie humana.

O possível papel dos radicais livres no envelhecimento baseia-se no fato de as espécies com vidas mais longas terem menor produção de radicais livres endógenos, e maior quantidade de enzima superóxido-dismutase. Isto demonstraria que ocorre diminuição da atividade antioxidante no organismo idoso por efeito somatório próprio do envelhecimento e pela reduzida disponibilidade de elementos necessários para o correto funcionamento dos antioxidantes.

Ocorrem diariamente muitos pontos de oxidação do DNA. Porém, a maioria é efetivamente reparada. Os pontos nos quais não ocorre reparo oxidativo sofrem lesões permanentes.

Os radicais livres de oxigênio participam do processo carcinogênico, principalmente na fase de propagação. Assim, substâncias antioxidantes podem ter efeito anticarcinogênico.

Existe também participação dos radicais livres no processo inflamatório. A morte celular por formação de radicais livres também está associada à

excitotoxicidade. Os mecanismos celulares e moleculares deste evento ainda não foram completamente elucidados; contudo, sabe-se que a estimulação excessiva e a liberação de aminoácidos excitatórios causam aumento na excitação dos receptores glutamatérgicos. Isto gera aumento excessivo de cálcio intracelular, que pode ativar cascata autodestrutiva e peroxidação lipídica, responsável pela produção de mais radicais livres.

6.4. Apoptose O estresse em um indivíduo vulnerável geneticamente pode levar a aumentos

deletérios do fator de liberação da corticotropina, do hormônio adrenocorticotrópico e do cortisol. O cortisol liga-se ao fator glucocorticóide e entra no núcleo, influenciando a expressão genética. Os genes são levados a produzir proteínas que são úteis imediatamente, mas que a longo prazo têm efeitos negativos sobre o neurônio. A vida e a morte neuronal são mediadas por equilíbrio entre proteínas apoptóticas e antiapoptóticas.

O fator neurotrófico derivado do cérebro ativa o sistema MAP quinase e ocorre aumento da produção da proteína Bcl-2, que induz o crescimento de axônios, desliga enzimas destrutivas e mantém a integridade das membranas mitocondriais. Em contrapartida, as proteínas apoptóticas (Bad, caspase, GSK-3b e Bax) promovem a morte celular. O fator neurotrófico derivado do cérebro pode ativar a enzima PI-3 quinase, que inibe proteínas apoptóticas. Contudo, a superativação de sistemas antiapoptóticos pode levar a um crescimento celular excessivo, como o câncer, enquanto a ativação excessiva de sistemas apoptóticos leva à degeneração celular.

Para estudar a integridade neuronal, utiliza-se a espectroscopia de ressonância magnética, para identificar aspectos da composição química do cérebro, como o N-acetil-aspartato, diminuído em pessoas com determinados distúrbios nervosos.

O estresse grave poderia levar à superativação da apoptose, deixando o indivíduo mais vulnerável a outras lesões neurais. Algumas pessoas podem ter vulnerabilidade genética para produzir substâncias apoptóticas em excesso ou não produzir substâncias antiapoptóticas em resposta ao estresse.

Medicamentos antidepressivos reforçam as forças antiapoptóticas, assim como os tratamentos eletroconvulsivos, que aumentam a quantidade de fator neurotrófico derivado do cérebro e reforçam a neurogênese. Além disso, durante o estresse, as proteínas chaperona funcionam como lixeiras, atuam levando proteínas danificadas para o retículo endoplasmático para serem degradadas. Os antidepressivos e estabilizadores do humor agem aumentando a expressão de proteínas chaperona.

6.5. Neuroplasticidade Plasticidade é a capacidade do sistema de modificar sua reação ao meio. Pode ser

feita pela repetição de um estímulo incondicionado, pela soma de diferentes estímulos ou pela compensação funcional (principalmente quando houver agressão).

A neuroplasticidade é componente fundamental da adaptação neuronal, e crescem as evidências de que é um processo muito mais bioquímico que morfológico. A

Page 178: Livro CI 2007

 170 

plasticidade fica evidente ao constatarmos que o neurônio não é uma estrutura fixa em quantidade de neurotransmissores que libera ou de sinapses que efetua. Também os receptores são estruturas fluidas, cujas propriedades podem mudar de acordo com a necessidade funcional.

O conhecimento acerca do cérebro e seu funcionamento ainda é muito pequeno. Contudo, nos últimos anos houve algum sucesso em comprovar alterações potencialmente relacionadas a algumas patologias.

A adaptabilidade do organismo às mudanças externas e internas depende enormemente da flexibilidade funcional de estruturas celulares das diferentes áreas encefálicas. É preciso levar em conta que a atividade funcional das estruturas não é homogênea.

No caso de sinapses reforçadas após o aprendizado, a expressão gênica e a chegada de uma nova proteína são utilizadas na construção de novas sinapses. A memória de longa duração decai na mesma proporção em que diminui a quantidade de sinapses. Contudo, mudanças estruturais após o aprendizado não precisam necessariamente estar vinculadas ao aumento do número de sinapses. Existem limites para a plasticidade estrutural no encéfalo adulto. O crescimento e a retração de axônios no Sistema Nervoso Central estão restritos a pequenas áreas. O aprendizado e a memória podem ser resultados de modificações na transmissão sináptica, e estas podem ser causadas por conversão de atividade neural em segundos mensageiros.

Lesões que danificam ou seccionam axônios causam alterações degenerativas, mas nem sempre causam a morte da célula. Alguns neurônios têm capacidade de regeneração axonal. Contudo, lesões do corpo celular de um neurônio acarretam em morte da célula. Após mortes neuronais, ocorrem alterações sinápticas e reorganização funcional do Sistema Nervoso Central, além de alterações na liberação de neurotransmissores, que auxiliam na recuperação da lesão.

No Sistema Nervoso normal, muitas sinapses parecem não ser usadas, a não ser que ocorra lesão de outras vias, que acarrete em maior uso dessas sinapses silenciosas. Muitas das moléculas responsáveis pela plasticidade neural durante o aprendizado estão sendo identificadas como substâncias ativas nos processos de recuperação após lesões cerebrais, como os receptores NMDA, íons Ca2+, substância P e neurotrofina.

Alterações em sinapses individuais no Sistema Nervoso Central adulto podem ter grandes repercussões funcionais. Os mapas corticais podem ser modificados por estímulos sensoriais, experiências e aprendizado após uma lesão cerebral.

A plasticidade torna possível a recuperação de lesões do sistema nervoso, porém é fundamental que exista atividade para que a recuperação atinja seu máximo potencial.

A produção e a liberação de neurotransmissores são reguladas pela atividade neuronal. Estimulações repetidas de vias somatossensoriais podem aumentar a quantidade de neurotransmissores inibitórios, causando menor resposta cortical à estimulação excessiva.

A manipulação genética influencia a neuroplasticidade e é potencialmente benéfica para distúrbios neuroquímicos. Estão sendo desenvolvidos procedimentos que modifiquem geneticamente os neurônios existentes, para que eles produzam e secretem compostos químicos deficientes no encéfalo.

6.6. Degeneração A mielina é de fundamental importância para a condução do impulso no Sistema

Nervoso. A resistência ao potencial de ação aumenta em áreas desmielinizadas, e o sinal pode lentificar ou nem mesmo chegar ao local destinado.

A desmielinização do Sistema Nervoso Central envolve danos à bainha de mielina no cérebro e medula espinal.

Page 179: Livro CI 2007

  171

Figura 6.25: Desmielinização axônica. Fonte: www.manualmerk.net

Diferentemente de muitos outros tecidos, o Sistema Nervoso tem capacidade limitada de reparação após ter sido lesado. Neurônios adultos não conseguem se reproduzir e cada neurônio que morre representa um neurônio a menos que teremos para “se conectar”. Porém, as células-tronco neurais existem tanto no Sistema Nervoso adulto quanto em encéfalos ainda em desenvolvimento. São células indiferenciadas, precursoras de neurônios e glias. Por maturação e diferenciação, podem dar origem a vários tipos diferentes de células do Sistema Nervoso Central. Suas características incluem a capacidade de auto-renovação, de diferenciação em muitos tipos de neurônios e células gliais, além da capacidade de povoar regiões do Sistema Nervoso central em desenvolvimento e em degeneração.

Em encéfalos de mamíferos adultos, existem locais de divisão celular de alta densidade, possivelmente locais de células-tronco. Estas células são sensíveis ao ambiente, o que lhes confere capacidade de se diferenciarem de acordo com a célula do local em que se encontram. Além disso, sua proliferação responde ao estímulo de fatores de crescimento.

Ainda não se conhece exatamente a função das células-tronco em encéfalos adultos. Contudo, o papel delas em implantes cerebrais tem sido motivo para entusiasmo de pesquisadores: as células-tronco, quando implantadas, sobrevivem e até mesmo se proliferam, mesmo no Sistema Nervoso, e fazem conexão com neurônios pré-existentes.

Em todos os indivíduos ocorre uma lenta lesão cumulativa desencadeada por subprodutos tóxicos do metabolismo celular, que provavelmente contribui para a morte neuronal ao longo da vida. Essa perda de neurônios pode não ser impedida.

6.7. Genética molecular Os humanos têm de 30 a 70 mil genes, distribuídos em 23 pares de cromossomos

(22 autossômicos e um par de cromossomos sexuais). Para cada gene, temos um alelo em cada cromossomo. A molécula de DNA é usada como padrão para a replicação de cópias adicionais durante a divisão celular, pela ligação de nucleotídeos livres com as bases complementares da cadeia aberta de DNA, unidos pela enzima DNA-polimerase numa nova dupla-hélice de DNA. Pequenas secções da molécula de DNA são usadas como padrão para a síntese de RNA mensageiro, responsável pelo transporte de mensagens para síntese de proteínas específicas. O RNAm é bem mais curto que a molécula de DNA e possui uma cadeia simples (enquanto o DNA é duplo).

A conversão da informação codificada do DNA depende do código genético.

Page 180: Livro CI 2007

 172 

Seqüências de três nucleotídeos formam códons que, por sua vez, representam aminoácidos que compõem a molécula de proteína. Vários aminoácidos podem ser codificados por mais de um códon. Além disso, existem três stop códons, que encerram transferências de informação.

Embora todas as células possuam o mesmo conjunto de genes, algumas células têm genes especializados que codificam proteínas específicas para a síntese de transmissores específicos, sob coordenação de proteínas reguladoras chamadas fatores de transcrição.

O controle da manifestação de enzimas responsáveis pelos sistemas neurotransmissores é feito pelos fatores que operam durante o desenvolvimento embrionário e pelo grau de atividade neuronal. Quanto mais ativo é o sistema nervoso, maior a síntese de neurotransmissores importantes para o comportamento do organismo.

Algumas doenças são causadas por um único gene. Assim, se uma pessoa herda dois alelos doentes, desenvolve a doença. Outras doenças são poligenéticas: genes múltiplos trabalham juntos para transmitir o risco de um transtorno, sendo este maior quanto maior for a quantidade de alelos doentes num indivíduo. Além do mais, a genética pode interagir com fatores ambientais e complicar o quadro.

A hereditariedade é uma medida de quanto da variância de um traço pode ser atribuído à genética. Quando a hereditariedade para um traço é alta, a quantidade de variância no traço é determinada pela genética. Contudo, a hereditariedade não diz nada a respeito do ponto no qual cairá a média da população, como também não impede os efeitos do ambiente. Em humanos, é calculada a partir do estudo de gêmeos e pode ir de 0 a 1,0. Quando não há efeito da genética na variância, dizemos que ela é 0; quando a genética comanda toda a variância, dizemos que é 1,0.

Graças aos avanços na genética molecular, hoje é possível identificar prováveis genes ou regiões de cromossomos responsáveis por determinadas doenças.

Cromossomos são longos filamentos de DNA, feitos de quatro bases: timina, guanina, adenina e citosina. Cada timina tem uma adenina complementar e cada guanina, uma citosina. Entre os genes, existem trechos de DNA sem sentido, que nunca são transcritos em RNAm nem traduzidos em proteínas. Mutações nesses trechos parecem não ter efeito nas funções humanas. Assim, ao longo das gerações, desenvolvemos inúmeras mutações nesses trechos, ao ponto de termos um DNA único. Essa é a base da impressão digital de DNA: uma área única é chamada de “marcador”, e podem ter seqüências muito diferentes entre os indivíduos.

Os principais estudos de genética molecular são os de associação e os de ligação. Os estudos de associação são feitos entre pessoas que têm e que não têm uma determinada doença, e que não possuem vínculo familiar (consangüineidade). É usado para saber se o DNA na região do gene transportador é diferente entre essas pessoas, se há polimorfismos nos acometidos que não ocorrem nos indivíduos sadios. Enzimas específicas “cortam” o DNA em determinadas seqüências de bases, e este é posteriormente colocado em gel e exposto a um campo elétrico. Os fragmentos mais curtos se deslocarão mais no gel que os mais compridos. Assim, examinam-se os padrões do gel dos dois tipos de indivíduos, para ver se existem polimorfismos diferentes.

Na maioria das vezes, não se sabe exatamente onde está o gene de interesse, apenas que os polimorfismos em um marcador particular são diferentes nos dois grupos; ou não se sabe quais genes estão ao redor do marcador ou, ainda, podem-se saber quais genes estão em volta do marcador, mas não é possível identificar qual deles é o responsável pela modificação. A possibilidade de erro aleatório em estudos de associação é alta, e os estudos requerem muitas replicações antes que possam ser aceitos.

Os estudos de ligação envolvem descendência e duas ou mais características associadas, para localizar os genes de interesse. Geralmente são usados marcadores cuja localização já é conhecida, pois poucos traços humanos podem ser usados em estudos de ligação. Além desta dificuldade, o estudo de ligação requer acesso não só ao indivíduo acometido, mas aos membros de sua família, preferivelmente por várias gerações, o que também não é fácil.

Uma das mais importantes áreas da genética molecular envolve as chamadas seqüências regulatórias, seqüências específicas de bases que circundam genes e que são ativadas ou desativadas por fatores específicos de transcrição.

Com a clonagem molecular, inúmeros novos receptores foram descobertos. É possível determinar e distribuir regionalmente a localização celular do RNAm de

Page 181: Livro CI 2007

  173

receptores, com grande especificidade, o que possibilita relacionar o local de transcrição dos receptores e seus sítios de ligação funcionais.

O estudo da interação entre alterações gênicas e efeitos de fármacos também tem despertado interesse. Já se reconhece que a resposta do Sistema Nervoso a determinadas drogas pode decorrer da modificação da expressão gênica.

Técnicas de biologia molecular são freqüentemente empregadas na investigação de sistemas neurais modificados por drogas. Os processos histoquímicos são usados para identificar componentes químicos de células e tecidos, utilizando corantes, tinturas e outras substâncias químicas, que se ligam ou reagem com cortes de tecido, possibilitando visualizar a reação. São corados citoplasma e outras estruturas celulares, geralmente em função do pH. Pode-se estudar também a estrutura e a organização cerebral por reações químicas realizadas por neurônios. A fluorescência utiliza a propriedade de formar produtos de condensação fluorescentes em presença de formaldeído, característica das aminas primárias (como dopamina, noradrenalina, serotonina e histamina).

A citoquímica estuda a localização, as relações estruturais e as interações dos conteúdos celulares através de microscopia eletrônica, fracionamento celular e técnicas imunoquímicas. Atualmente é possível extrair partes homogêneas de proteínas e de RNAm de receptores para neuropeptídeos, assim como enzimas de síntese e degradação de neurotransmissores de tecidos, o que permite clonar, seqüenciar e expressar genes para diferentes neurotransmissores e receptores.

6.8. Reabilitação A integração das diversas áreas de conhecimento médico é uma realidade cada vez

mais presente e necessária na prática clínica, e requer uma abordagem terapêutica diferenciada, com recursos multidisciplinares e a atuação da equipe de reabilitação, interdisciplinar, em busca do melhor tratamento para cada paciente. A incapacidade funcional relacionada aos distúrbios do aparelho locomotor, de qualquer natureza, é a principal área de atuação da Medicina de Reabilitação.

Existem diversos componentes que, aliados, proporcionam ao paciente melhor qualidade de vida, mesmo quando o prognóstico é ruim. A reabilitação dispõe de meios físicos (termoterapia, eletroterapia, massagem, cinesioterapia), cuja utilização é embasada na integração das fisiologias normal, da lesão e do meio físico utilizado. A farmacoterapia, a nutrição, a fisioterapia, todas são modalidades complementares de uma mesma categoria, que inclui ainda enfermagem, terapia ocupacional, assistência social, psicologia, educação física e, claro, os cuidadores e pacientes.

A reabilitação de doenças neurodegenerativas passa por muitas outras áreas, que não somente a neurológica, e delas depende para diagnóstico, tratamento e pesquisa. Muitas perguntas ainda não têm respostas, e muitas respostas foram dadas por estudos não necessariamente neurológicos (bioquímicos, ortopédicos, imunológicos, entre outros).

A reabilitação enfatiza o alívio da dor, o relaxamento muscular, cicatrização, prevenção de deformidades, redução de edemas, prevenção de formação de fibrose, de aderências e de contraturas, a excitomotricidade, o fortalecimento muscular, ganho de amplitude de movimento, diminuição de espasmos musculares, adequação tônica, ou seja, minimizar um padrão alterado e reduzir os danos causados por uma lesão ou preveni-los, quando possível.

Para reabilitar, é preciso conhecer com profundidade o mecanismo patológico da doença, assim como a fisiologia de reparo – quando possível – da lesão. As técnicas mais avançadas incluem a extinção ou estabilização do mecanismo de lesão e a recuperação funcional do indivíduo acometido, através de treinos específicos que contribuam com a plasticidade, na tentativa de devolver o máximo possível do funcionamento normal das áreas atingidas. Contudo, a medicina física ainda está um pouco amarrada, no sentido de que as descobertas atuais não permitem total entendimento de certas disfunções, o que prejudica a reabilitação. Muitos dos achados científicos em neurociências ainda são suficientemente subjetivos para não permitir prognóstico exato de recuperação.

As doenças neurodegenerativas têm em comum a morte de células do Sistema Nervoso. São várias as formas de lesão e morte neuronal, o que dificulta o controle, o estudo e o entendimento da neurodegeneração. Progressos nos estudos dos mecanismos de morte celular poderão permitir novas abordagens terapêuticas para doenças ainda incuráveis.

Page 182: Livro CI 2007

 174 

Após uma lesão no encéfalo, a intensidade da reabilitação e também o tempo decorrido entre a lesão e o começo da reabilitação influenciam a recuperação da função neuronal. A privação prolongada de movimentos ativos após uma lesão cortical pode levar à perda da função em regiões não lesadas, porém adjacentes à lesão.

Estes danos em áreas adjacentes podem ser evitados por movimentos de retreinamento. Ocorrem, em alguns casos, reorganização neural e representação cortical estendida às áreas adjacentes, não lesadas.

Contudo, o começo muito precoce de reabilitação vigorosa da função motora pode aumentar as lesões neuronais causando, inclusive, ausência de crescimento ou brotamento dos dendritos.

Uma das explicações possíveis para o aumento do tamanho da lesão é a excitotoxicidade, causada por aumento da atividade cortical: os neurônios lesados são responsáveis pela morte de outros neurônios, pois liberam grande quantidade de glutamato que, apesar de ser essencial para as funções do Sistema Nervoso Central, em quantidades aumentadas pode ser tóxico para os neurônios. A alta taxa metabólica encefálica requer suprimento contínuo de oxigênio e glicose. Se o fluxo sangüíneo for interrompido, a atividade neural cessa e, em minutos, serão provocados danos permanentes. Sempre que um neurônio não consegue produzir ATP em quantidade suficiente para manter funcionantes suas bombas iônicas, ocorre aumento exagerado de Ca2+ intracelular, que dispara a liberação de glutamato. O glutamato se liga fortemente aos receptores NMDA da membrana celular, e facilita indiretamente a liberação das reservas internas de Ca2+, que não pode ser removido do citoplasma. Assim, ocorre saída de K+ da célula, o que requer aumento da glicólise para fornecer energia para a bomba de Na+/K+. Conseqüentemente ao aumento da glicólise, há liberação excessiva de ácido lático, que reduz o pH intracelular e produz acidose capaz de decompor a membrana celular.

Além disso, níveis muito elevados de Ca2+ intracelular ativam proteases, que decompõem proteínas celulares. O Ca2+ ativa enzimas protéicas que liberam ácido aracdônico, produzindo substâncias que causam inflamação celular e produzem radicais livres de oxigênio.

Por fim, o influxo iônico deflagrado resulta em influxo de água, que causa edema celular. Todos estes eventos acabam por levar a célula à morte, e propagam os danos neurais caso a célula libere glutamato e superexcite as células circunvizinhas.

A alta taxa metabólica encefálica requer suprimento contínuo de oxigênio e glicose. Se o fluxo sangüíneo for interrompido, a atividade neural cessa e, em minutos, serão provocados danos permanentes.

A excitotoxicidade do glutamato contribui para a progressão de doenças degenerativas neurais, como a Esclerose Lateral Amiotrófica, e a doença de Alzheimer. O futuro do tratamento farmacológico de doenças neurodegenerativas pode estar associado ao bloqueio dos receptores de glutamato do tipo NMDA, impedindo a cascata de morte celular relacionada à excitotoxicidade. Outros tratamentos, dirigidos ao bloqueio dos efeitos do Ca2+ e dos radicais livres também podem ter resultado efetivo.

Ao entendermos as causas e os mecanismos de morte neuronal, talvez sejamos capazes de planejar estratégias de prevenção de apoptose que sejam eficazes no tratamento de muitas das doenças neurológicas.

Entre os recursos bastante utilizados na medicina física temos a crioterapia, inclusive em casos de espasticidade e espasmos musculares, pois o frio diminui o limiar de disparo neuronal e reduz, portanto, a estimulação aferente. Com isso, induz o relaxamento do músculo, e permite a mobilização articular com dor reduzida ou sem dor e, assim, se ganha amplitude de movimento. Outro recurso é o uso de calor, que pode ser superficial ou profundo, e aumenta a extensibilidade do tecido colágeno e permite maior mobilidade músculo-articular, além de auxiliar a diminuir o mecanismo de dor. Pode-se também utilizar o laser de baixa intensidade (1 a 90mW), que estimula a produção de colágeno, altera a síntese de DNA, acelera a cicatrização de feridas e causa analgesia.

Nas síndromes dolorosas miofasciais causadas por hipertonia muscular, a massoterapia é bastante utilizada, pois busca o estiramento da musculatura e a inativação de pontos dolorosos (pontos-gatilho). Contudo, não consegue atingir grupos musculares mais profundos.

A eletroterapia atua basicamente alterando a polaridade das membranas celulares, as quais são capazes de acumular cargas elétricas distintas ao longo da superfície, o que

Page 183: Livro CI 2007

  175

as faz funcionar como o componente dielétrico de um capacitor. Pode também auxiliar a reduzir a dor e atuar como produtora de contração muscular (usada para diminuir a progressão de atrofias). Ainda é controverso se a estimulação elétrica muscular isolada consegue provocar ganhos significativos em músculos denervados ou atrofiados. Alguns autores defendem que a estimulação elétrica diminui ou retarda a atrofia; que aumenta o volume muscular e diminui a formação de tecido conjuntivo fibroso nestes músculos denervados. No entanto, outros autores mostram que esta mesma estimulação pode retardar a reinervação, interferindo na germinação terminal do axônio motor. Assim, deve-se avaliar o caso, e usar a estimulação previamente quando se tratar de um prognóstico mais demorado de reinervação (para evitar maiores danos e atrofia); e esperar para usá-la após a reinervação em casos com prognóstico de recuperação mais imediato.

Um dos tipos de estimulação elétrica (a funcional, conhecida por FES), auxilia no ganho de amplitude de movimento em musculaturas espásticas, através de estimulação do grupo muscular antagonista, por mecanismo de inibição recíproca. Por retroalimentação, pode favorecer a reorganização do ato motor (plasticidade) e auxiliar na reeducação neuromuscular, estimulando a movimentação voluntária e a propriocepção. Responde bem em casos de lesão do motoneurônio superir, mas não é tão eficar em lesões do motoneurônio inferior, em miopatias degenerativas e em casos de espasticidade acentuada.

O sistema motor está organizado em unidades motoras, que compreendem um motoneurônio inferior e o conjunto de fibras musculares que ele inerva. Quanto maior a precisão de movimentos, menor é o número de células musculares inervado por cada axônio, ou seja, quanto mais grosseiro o movimento, mais fibras musculares serão inervadas ao mesmo tempo por um mesmo axônio.

O limiar de excitabilidade dos motoneurônios inferiores varia de acordo com seu tamanho: os menores (unidades motoras tônicas) têm um limiar mais baixo que os maiores (unidades fásicas). A função muscular, para ocorrer adequadamente, depende da aferência proprioceptiva, da inervação motora, da integridade das fibras musculares e articulações. Se um destes componentes estiver alterado, o músculo passa a exercer uma função anormal, adaptativa. As moléculas de colágeno fazem ligações cruzadas entre si, e quanto maior a duração da função em sua forma adaptada, maior e mais resistente estará o tecido colágeno, dificultando a volta da musculatura ao seu estado normal. Apesar de o músculo ter a capacidade de voltar ao normal, sua recuperação dependerá de vários fatores, como o tipo de patologia que o acometeu, o tempo de imobilização (quando houver), as condições do músculo antes de ser acometido, a idade do indivíduo e as fibras presentes no músculo em questão. Geralmente, o tempo de recuperação é mais longo que o tempo que o músculo leva para fazer tal adaptação. Também devem ser consideradas as seqüelas da adaptação anormal, que podem impedir a completa recuperação.

Figura 6.26: Junção neuromuscular. Fonte: http://www.anatomyatlases.org/MicroscopicAnatomy/Section06/Plate06118.shtml

Page 184: Livro CI 2007

 176 

Figura 6.27: Camadas dos tecidos epitelial, conectivo, muscular e nervoso. Fonte: www.anatomyatlases.org/MicroscopicAnatomy/Section01/Plate0114.shtml

O controle e a coordenação motora são a última parte do movimento, pois dependem da integridade de todas as outras funções envolvidas na produção deste, como força e endurance musculares, amplitude de movimento articular, integridade do Sistema Nervoso Central e dos centros de armazenamento e controle, além de suas conexões com órgãos efetores periféricos e o fator psicológico (atenção, concentração, motivação). Controle motor é a capacidade de ativar corretamente os agonistas primários de uma ação específica, enquanto coordenação seria a integração do corpo e da atividade motora para gerar um movimento harmônico.

Algumas doenças não afetam o Sistema Nervoso Central, mas levam à falta de coordenação motora por déficit no órgão efetor ou por falta de treinos específicos para aquela função. Neste caso, a função pode ser recuperada através de treino. No entanto, patologias que lesem o Sistema Nervoso Central podem impossibilitar o restabelecimento das conexões que permitiam a função original. Para estes casos, os exercícios funcionariam como construtores de novas vias até as partes não lesadas do Sistema Nervoso Central, permitindo o que chamamos de plasticidade. A repetição nos permite estabelecer conexões cada vez mais sólidas e, com o passar do tempo, mais econômicas. Além da repetição, quando não for possível realizar voluntariamente um movimento, lançamos mão da utilização de reflexos como promotores ou iniciadores de uma certa atividade, e também da estimulação elétrica e do biofeedback (demonstração visual ou auditiva da capacidade de contração, através de eletrodos). Por exemplo, começar o movimento através de um reflexo, mantê-lo com o auxílio da estimulação elétrica e quantificar os ganhos do treino através do biofeedback.

6.8.1. Doença de Parkinson A doença de Parkinson é a forma mais comum de parkinsonismo, que possui

diversas etiologias, inclusive o uso de fármacos. A doença de Parkinson é o distúrbio mais comum dos núcleos da base e tem como

características a rigidez muscular, marcha de pés arrastados, postura encurvada, tremores musculares rítmicos em repouso (em torno de 3 a 5 Hz) que desaparecem com a movimentação voluntária e uma expressão facial em máscara (ausência de expressão ou amimia), mas pode apresentar também bradicinesia, acatisia, festinação, congelamento, cinesia paradoxal, micrografia, disartria e sialorréia, entre outros.

É causada pela degeneração das aferências da substância negra ao estriado, que utilizam a dopamina como neurotransmissor. A dopamina facilita a alça motora direta ao ativar células do putâmen. A falta de dopamina faz parar o sistema que alimenta a atividade na área motora suplementar via núcleos da base.

A doença interfere nos movimentos voluntários e nos automáticos e é causada pela morte das células produtoras de dopamina da substância negra e de células produtoras de acetilcolina do núcleo pedúnculopontino, por motivos ainda desconhecidos. O começo das mortes celulares ocorre muito antes de aparecerem os sinais clínicos da doença.

A etiologia do parkinsonismo pode ser identificada pelo quadro clínico (exame neurológico e anamnese), mas precisa de exames complementares (ressonância

Page 185: Livro CI 2007

  177

magnética encefálica, tomografia craniana, exame do líquido cerebroespinal) para sua exata determinação. A tomografia por emissão de pósitrons (PET) identifica a insuficiência dopaminérgica, mesmo em indivíduos assintomáticos, mas ainda é um método caro e nem sempre acessível.

Figura 6.28: Núcleos da base. Fonte: http://www.anatomyatlases.org/MicroscopicAnatomy/Section17/Plate17346.shtml

Figura 6.29: Núcleos da base. Fonte: http://www.anatomyatlases.org/MicroscopicAnatomy/Section17/Plate17346.shtml

Na doença de Parkinson existe desequilíbrio entre as atividades dopaminérgica e colinérgica. A maior parte dos tratamentos aumenta a atividade dopaminérgica. A morte de aproximadamente 80% das células produtoras de dopamina da via direta dos núcleos da base reduz a atividade nas áreas motoras do córtex cerebral, o que causa diminuição nos movimentos voluntários. Já a perda das células pedúnculopontinas gera a desinibição dos tratos reticuloespinal e vestibuloespinal, causando contração excessiva dos músculos posturais.

O uso acidental de um narcótico sintético de procedência duvidosa, nas décadas de 70 e 80, fez médicos investigarem e concluírem que o parkinsonismo poderia ser desenvolvido por indivíduos jovens, e que esta forma da doença estaria ligada ao MPTP (1-metil-4-fenil-1,2,3,6-tetra-hidropiridona), componente químico que mata os neurônios dopaminérgicos. A MPTP é transformada em MPP+ (1-metil-4-fenilpiridinium), e as células dopaminérgicas confundem MPP+ com dopamina, acumulando seletivamente esta substância. O problema é que, dentro da célula, a MPP+ bloqueia a produção de energia pelas mitocôndrias e a célula acaba morrendo. Com isso, desenvolveu-se o raciocínio de que a exposição crônica a algum produto químico tóxico pode levar ao desenvolvimento de formas comuns da doença de Parkinson. A MPTP pode induzir uma forma de morte neuronal programada na substância negra.

Existem duas categorias de tratamento da doença de Parkinson, uma voltada para o controle das manifestações clínicas (terapia sintossomática) e outra, que tem como objetivo proteger ou restaurar a função de neurônios (terapia neuroprotetora). A terapia

Page 186: Livro CI 2007

 178 

sintomática utiliza principalmente intervenções farmacológicas, mas inclui também cirurgias estereotáxicas. Já aterapia neuroprotetora utiliza meios farmacológicos e também implantes neurais e fatores de crescimento.

Uma das principais drogas administradas no tratamento da doença de Parkinson é a levodopa (L-di-hidroxifenil-alanina), precursora de dopamina, que atravessa a barreira hematoencefálica, e estimula a síntese de dopamina nas células ainda vivas da substância negra. Contudo, o tratamento com a levodopa não altera o curso da doença nem o ritmo de degeneração dos neurônios. Ainda temos como fármacos utilizados a selegina, tolcapone e entacapone (bloqueadores da degradação de dopamina), agonistas dopaminérgicos (bromocriptina, lisurida, pergolida, apomorfina, sabergolina, ropinirol, pramipexol), anticolinérgicos e amantadina (bloqueador da recaptação de dopamina). Usam-se também inibidores periféricos da dopa-descaboxilase (carbidopa e benzerazida) para evitar que a dopamina seja dissipada antes de chegar ao Sistema Nervoso Central; em contrapartida, estes inibidores causam efeitos colaterais que devem ser levados em conta, como náusea, vômito, hipotensão postural, arritmia cardíaca. Já os inibidores da MAO (monoamina-oxidase) tipo B, iclusive a seleginina, ativam mecanismos antioxidantes e antiapoptóticos. Por fim, também são utilizados antagonistas do glutamato. Contudo, alguns destes medicamentos ainda não têm efeito comprovado e nenhum é capaz de estancar ou regredir a doença.

Usando informações relativas às vias neuronais e neuroplasticidade, novas técnicas estão sendo desenvolvidas para o tratamento de distúrbios neurológicos. A estimulação encefálica profunda, transplantes (implantes) neuronais e cirurgias estereotáxicas vêm sendo empregados no tratamento de tremores e acinesia, presentes em distúrbios dos núcleos da base que envolvam deficiência de dopamina.

A estimulação cerebral profunda usa estímulo de alta freqüência nos neurônios talâmicos para tratar o tremor da doença de Parkinson. Através de uma estimulação elétrica prolongada, inibe-se a descarga de um conjunto hiperativo de neurônios. A estimulação é modulada e direcionada por gerador - implantado na tela subcutânea na região torácica - que responde a estímulos externos. Apesar de suas vantagens, como a reversibilidade do procedimento, a estimulação tem alto custo, requer ajustes periódicos e tem risco de infectar.

O transplante neuronal consiste em colocação de células produtoras de dopamina de um doador fetal, nos núcleos da base. Já o implante envolve a realocação de células supra-renais da própria pessoa, nos núcleos da base, para que sintetizem dopamina.

Para alguns casos graves de tremor e acinesia, centros especializados em cirurgia estereotáxica destroem uma pequena região de células talâmicas ou do globo pálido, acarretando em melhoras funcionais ao eliminar populações celulares hiperativas. Entre as cirurgias irreversíveis mais utilizadas estão a talamotomia, a palidotomia e a estimulação do núcleo subtalâmico. A talamotomia interfere no núcleo intermédio ventral do tálamo e é a mais eficiente para o controle do tremor. Contudo, seus efeitos sobre os mecanismos geradores do tremor ainda não foram esclarecidos (sugere-se que esteja ligado à redução da atividade autônoma no tálamo e à interrupção das vias palidofugal e contralateral do cerebelo). Este procedimento não é recomendado bilateralmente pois além da disartria que provoca em aproximadamente 25% dos casos, coloca em risco de alterações mentais persistentes. Se for preciso intervir bilateralmente, utiliza-se a estimulação cerebral profunda em pelo menos um lado.

A palidotomia é eficaz para o tremor e também para alívio de outros componentes, como a oligocinesia, rigidez e discinesias. O alvo da cirurgia é a porção sensório-motora do globo pálido interno. A indicação geralmente é feita para pacientes com quadros avançados da doença e com complicações motoras causadas por fármacos agonistas dopaminérgicos. Seus riscos são os mesmos da talamotomia e podem ocorrer aumento de peso e leve distúrbio comportamental.

A intervenção sobre o núcleo subtalâmico tem maior abrangência e possibilita melhoras de manifestações axiais da doença, relacionadas com suas eferências glutamatérgicas direcionadas ao pálido interno e à substância negra reticulata, que se conectam ao núcleo pedúnculopontino.

Os procedimentos cirúrgicos são feitos preferencialmente em pacientes sem alterações cognitivas ou naqueles com mais de cinco anos de evolução da doença. Não há limite de idade para indicação cirúrgica.

Page 187: Livro CI 2007

  179

6.8.2. Esclerose múltipla A esclerose múltipla decorre do processo de desmielinização central e parece ser

causada por doença auto-imune, na qual a mielina é atacada por anticorpos do próprio indivíduo. A destruição de oligodendrócitos gera áreas de desmielinização (placas) na substância branca do sistema nervoso central, causando lentificação ou bloqueio da transmissão de sinais. É uma doença sem cura, sem meios de prevenção e etiologia desconhecida. Ocorrem alterações reflexas, como transtornos da bexiga, impotência sexual em homens e anestesia genital em mulheres, fraqueza muscular, distúrbios de coordenação, cegueira parcial num dos olhos, visão dupla, visão fraca e distúrbios dos movimentos oculares, além de distúrbios da sensação, como formigamentos, dormências e sensações de agulhadas e fala arrastada. Pode haver alterações de memória e emoções.

A Esclerose Múltipla pode ser compreendida como uma patologia imunológica associada a fatores genéticos que predisporiam ou não ao desenvolvimento do quadro, diante de outros aspectos facilitadores, como alimentação, fatores ambientais, agentes infecciosos e outros. Em regiões de clima frio e temperado, o risco de contrair a doença é maior do que nos trópicos; locais de latitude maior que 30º têm maior prevalência que locais com mais baixa latitude.

A desmielinização provoca transtornos relativamente permanentes. Geralmente ocorre entre os 20 e os 40 anos, mais em mulheres que em homens (3:1) e evolui por anos, embora possa ter períodos de remissão. Cerca de 74% das lesões estão na substância branca, 17% na junção entre o córtex e a substância branca , 5% no córtex e 4% na substância cinzenta. Quando as degenerações estão presentes no corpo caloso, podem produzir uma série de alterações cognitivas, entre elas o prejuízo em tarefas que exijam atenção sustentada e vigilância (sinais de desconexão interhemisférica). Porém, buscar um padrão único para a natureza do déficit de memória na Esclerose Múltipla parece difícil, pois a doença lesa áreas inespecíficas, altera diversos sistemas e funções, além de comprometer diferentes vias, moduladas por diferentes neurotransmissores.

Figura 6.30: Á esquerda, substância branca normal. À direita, placa de desmielinização recente: macrófagos xantomatosos. Fonte: www.fcm.unicamp.br/deptos/anatomia/bineuhistogeral.html

É recomendado aos pacientes que evitem altas temperaturas e esforços físicos excessivos, pois aumentos na temperatura corporal são considerados nocivos aos

Page 188: Livro CI 2007

 180 

axônios, dificultando ainda mais a condução do potencial de ação. A Esclerose Múltipla pode ser aguda, subaguda ou crônica, com períodos de

exacerbação e remissão. A consciência permanece normal e, raras vezes, o pensamento e a memória são afetados.

Embora a causa exata desta doença ainda não seja bem conhecida, a causa dos distúrbios sensoriais e motores está bastante clara. As bainhas de mielina dos feixes de axônios do encéfalo, medula espinal e nervos ópticos são atacados, ocorrendo endurecimento em seu redor, em muitos lugares do sistema nervoso ao mesmo tempo.

As lesões encefálicas causadas pela Esclerose Múltipla podem ser visualizadas através da Ressonância Magnética. Além disso, o líquor mostra aumento de imunoglobilinas e bandas oligoclonais. Contudo, o diagnóstico é elaborado principalmente com base na história clínica.

Para começar a reabilitação deve-se esperar a relativa estabilização da doença, e neste momento o médico neurologista é de fundamental importância, pois além de diagnosticar, deve prescrever o tratamento medicamentoso mais adequado para seu paciente. Algumas drogas são atualmente utilizadas, como o Interferon Beta (1a e 1b), e o Acetato de Glatiramer. O médico fisiatra também pode prescrever medicamentos, e o apoio constante do fisioterapeuta é importante não só para o sucesso do trabalho, mas também para a manutenção e reformulação do plano de tratamento físico. Apesar de importante no trabalho físico com o paciente, o fisioterapeuta terá que driblar diversas dificuldades durante o tratamento, como excesso de fadiga causado por exercícios físicos, sensibilidade ao calor, e possíveis combinações de déficits, como fraqueza muscular, espasticidade, ataxia, déficits físicos e sensoriais. Algumas escalas são utilizadas para auxiliar o trabalho físico, como a Medida de Independência Funcional – MIF, que avalia atividades cotidianas e funcionalidade, direcionando o tratamento e também pontuando a progressão da doença.

Devem haver, na equipe, psicólogos com diferentes especializações, que auxiliem o paciente no curso da doença, especialmente ao utilizarem técnicas que auxiliem a reduzir o sentimento de não aceitação da doença e das incapacidades, reduzir o sentimento de impotência, de perda de controle, diminuir o estresse, a ansiedade e a depressão, e aumentar a esperança e sensação de competência.

Page 189: Livro CI 2007

  181

Figura 6.31: Esquema representando a lesão na Esclerose Múltipla. Fonte: http://eclerosemultipla.wordpass.com/

Deve também ser feita psicoterapia individual e em grupo, principalmente familiar, e o uso de técnicas de relaxamento é bem-vindo. A orientação vocacional também deve entrar no programa de reabilitação, para auxiliar o paciente a tornar conscientes novas habilidades, que poderão ser úteis para diversas funções, inclusive para recolocação no mercado de trabalho – levando-se em conta que muitos dos pacientes são afastados de suas funções iniciais por conta das incapacidades geradas pela doença – e em grupos sociais.

O terapeuta ocupacional também é de fundamental importância, principalmente conforme progride a doença, e deverá auxiliar o paciente inclusive em domicílio, prescrevendo e preparando adaptações da moradia e de utensílios, promovendo máxima independência.

Esclerose múltipla - Estudos recentes O fumo é um dos fatores considerados como risco para a Esclerose Múltipla. Os

fumantes têm de 40 a 80% a mais de chance de desenvolver a doença que os não fumantes. Além disso, quando já existe diagnóstico de Esclerose Múltipla, pacientes fumantes têm cerca de três vezes mais risco de progredir para as formas mais graves da doença. A justificativa parece ser os radicais livres produzidos pelo fumo, que causam danos neuronais. Em indivíduos que já possuem mecanismo de lesão, este quadro pode ser potencializado.

Existe, atualmente, estudo com Imagem do Tensor de Difusão e fascigrafia por Ressonância Magnéticaβ, que permitem analisar a integridade dos feixes de substância branca, o que fornece informações adicionais sobre a caracterização destes, em pacientes com Esclerose Múltipla, o que não é possível com as técnicas convencionais de Ressonância Magnética. A caracterização supracitada ainda está em fase de investigação e estudo, mas é uma técnica promissora no que diz respeito ao diagnóstico da doença.

Page 190: Livro CI 2007

 182 

6.8.3. Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) A Esclerose Lateral Amiotrófica é uma doença progressiva limitada ao sistema motor

voluntário, que destrói apenas os tratos ativadores laterais e as células do corno anterior da medula espinal (neurônio motor superior no cérebro, tronco encefálico e medula, neurônio motor inferior nas regiões medulares espinal e periférica), núcleos motores do tronco encefálico e córtex motor, causando sinais dos neurônios motores superior e inferior.

A etiologia da doença ainda não foi esclarecida, e não existe, portanto, método laboratorial para o diagnóstico. Os exames feitos são apenas para exclusão de outras patologias, e o diagnóstico é feito baseando-se em achados clínicos, o que não permite prevenir a ocorrência da doença. Contudo, alguns exames podem auxiliar o diagnóstico, identificando algumas características histopatológicas (presença intraneuronal de ubiquitina, gliose reacional, alterações morfológicas de motoneurônios, neurônios atróficos com núcleo picnótico e presença de esferóides axonais).

Os músculos do Sistema Nervoso Somático são inervados por neurônios motores do corno ventral da medula espinal, ou neurônios motores inferiores, que comandam a contração e podem ser alfa ou gama. O motoneurônio alfa libera acetilcolina, que age em receptores nicotínicos da junção neuromuscular e produz potencial excitatório pós-sináptico e que gera abertura de canais de Na+ voltagem-dependentes promovendo a despolarização dos túbulos T e a liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático, que culmina em contração muscular. O cálcio liga-se à troponina e esta expõe, na actina, os sítios de ligação para a miosina. A cabeça da miosina se conecta à actina e sofre rotação. Com ATP, as miosinas se desligam das actinas e o cálcio é recaptado para o retículo sarcoplasmático por ATPases. A actina é novamente coberta por troponina. Na Esclerose Lateral Amiotrófica, este mecanismo é afetado progressivamente e resulta em ausência de contração muscular.

Figura 6.32: Atrofia de neurônios motores da medula espinal, na doença degenerativa esclerose lateral amiotrófica à direita; à esquerda neurônio normal de outro paciente para comparar. Fonte:http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.fcm.unicamp.br/deptos/anatomia/neupatger10%2B.jpg&imgrefurl=http://www.fcm.unicamp.br/deptos/anatomia/bineuhistogeral.html&h=526&w=806&sz=153&hl=ptBR&start=13&tbnid=dIRvduTzU0SvRM:&tbnh=93&tbnw=143&prev=/images%3Fq%3D%2522esclerose %2Blateral%2Bamiotr%25C3%25B3fica%2522%26gbv%3D2%26svnum%3D10%26hl%3Dpt-BR

Os primeiros sinais são fraqueza e atrofia muscular. Geralmente, entre três e cinco anos todo o movimento voluntário é perdido – a capacidade de andar, falar, deglutir e respirar são lentamente perdidas. O quadro é caracterizado por paresia, hiper-rigidez mioplástica, hiper-reflexia, sinal de Babinski, atrofia muscular, fasciculações por atrofia e fibrilações. No indivíduo acometido, a consciência permanece normal, assim como a comunicação e a memória, o sistema sensorial e autônomo. A morte do indivíduo decorre

Page 191: Livro CI 2007

  183

de complicações respiratórias. Esta é uma doença relativamente rara, apesar de ser a mais comum das doenças do

neurônio motor em adultos, e sua causa é desconhecida.

Figura 6.33: Cortes pela parte alta do bulbo mostrando no corte da figura acima, de um caso de ELA, a palidez da mielina nas pirâmides bulbares, que correspondem ao trato corticospinal. Comparar com o lemnisco medial (fibras sensitivas), na linha média logo acima, e com as pirâmides no corte de cérebro normal na figura abaixo. Fonte: http://www.fcm.unicamp.br/deptos/anatomia/bineuela1.html

Page 192: Livro CI 2007

 184 

Figura 6.34: Esquema do sistema motor. Fonte: www.afh.bio.br/nervoso/img/Nervos18.gif

Por volta de 90% dos casos são idiopáticos, embora uma das formas da ELA, a forma familiar, já tenha o gene responsável identificado (mutação da enzima superóxido dismutase). Neste subtipo da doença, um produto tóxico do metabolismo celular é a molécula negativamente carregada de oxigênio (radical superóxido), a qual é extremamente reativa e pode provocar danos celulares irreversíveis. A superóxido dismutase é uma enzima essencial para que os radicais superóxido percam seus elétrons extras, convertendo a molécula novamente em oxigênio. A ausência desta enzima leva ao acúmulo de radicais superóxido, lesando as células.

Existe a hipótese de que a ELA seja causada por excitotoxicidade do glutamato e aminoácidos relacionados, o que causa morte neuronal. Além disso, sugere-se que um transportador de glutamato pode estar defeituoso, provocando exposição prolongada dos neurônios em atividade ao glutamato extracelular.

A primeira droga aprovada para o tratamento da ELA foi o riluzole, um bloqueador da liberação de glutamato. Porém, apesar de seu uso retardar em alguns meses a progressão da doença, a longo prazo o desenvolvimento do quadro continua igual.

Page 193: Livro CI 2007

  185

Figura 6.35: Esquema da alça motora.

Esclerose Lateral Amiotrófica – estudos recentes Estudos com antibióticos ß-lactâmicos em modelos animais da doença sugerem que

esses fármacos atuariam auxiliando a neuroproteção, uma vez que foi observada, após administração da droga, maior produção de fatores neuroprotetores no Sistema Nervoso Central. O mecanismo parece estar associado principalmente à excitotoxicidade do glutamato, pois os antibióticos utilizados induzem aumento na produção das moléculas transportadoras que recolhem o excesso deste neurotransmissor no Sistema Nervoso Central. Esta alternativa reduz o risco de danos aos neurônios, causados pelo excesso de glutamato.

Também foi sugerido que os radicais livres seriam responsáveis por lesões na Esclerose Lateral Amiotrófica. Contudo, estudos recentes em modelos animais propõem que a presença de radicais livres é, na verdade, conseqüência e não causa da lesão. Foi feita terapia com antioxidantes e não houve resultado satisfatório, permitindo supor que, então, os radicais livres não eram a causa da doença.

Outra alternativa pesquisada para a Esclerose Lateral Amiotrófica são as substâncias antinflamatórias, pois foram evidenciados processos inflamatórios no desenvolvimento da doença. A excitotoxicidade do glutamato e a ação de radicais livres, no Sistema Nervoso Central, são importantes mecanismos neurodegenerativos. A inflamação pode contribuir no processo de degeneração, junto com estes dois outros fatores. Foi observada a presença de níveis aumentados de prostaglandinas em cérebros de indivíduos acometidos pela patologia. Sabe-se que as prostaglandinas são pró-inflamatórias. Estudos experimentais em modelos animais com camundongos geneticamente modificados para desenvolver a doença observaram que o uso de antinflamatórios estava envolvido no retardo do quadro – maior sobrevida, melhor resposta motora e menor perda de massa muscular. A identificação de maiores quantidades de

Page 194: Livro CI 2007

 186 

fosfolipase A2 em camundongos com Esclerose Lateral Amiotrófica sugere que esta enzima tenha importância significativa no desenvolvimento da doença. O aumento da fosfolipase A2 antecede a lesão neuronal e a conseqüente perda motora, em camundongos. Se realmente esta enzima for fundamental para o surgimento da doença, então o tratamento à base de sulindaco, substância antinflamatória utilizada nos camundongos, pode ser efetivo para retardar o desenvolvimento do quadro clínico.

Atualmente, amostras de sangue de indivíduos acometidos pela Esclerose Lateral Amiotrófica estão sendo estudadas por eletroforese bidimensional e Western Blotting. Estes estudos fornecerão informações sobre a composição das proteínas das amostras analisadas, e poderão contribuir para o desenvolvimento de marcadores que auxiliem o diagnóstico da doença.

6.8.4. Doença de Huntington A doença de Huntington é uma doença hereditária autossômica dominante,

progressiva, cujo início se dá entre os 40 e os 50 anos, e que leva à morte em aproximadamente 15 anos após o aparecimento dos sintomas. Provoca degeneração em muitas áreas cerebrais, principalmente no estriado e córtex cerebral, o que gera diminuição de sinais por inibição direta e excessiva do globo pálido interno e da substância negra reticular (núcleos estimuladores) pelo putâmen, e leva à desinibição do tálamo motor e do núcleo pedúnculopontino. Esta desinibição é inadequada, produzindo estimulação excessiva tanto do tálamo motor quanto do núcleo pedúnculopontino, causando hipercinesias.

É causada pela mutação dominante de um gene que codifica proteína de alto peso molecular chamada huntintina, no cromossomo 4, prolongando-a mais que o normal. Estas proteínas mutantes se agregam e desencadeiam a degeneração neuronal. Não se conhece ainda a função da huntintina normal, mas é possível que sirva para contrabalançar os gatilhos de morte celular programada. Observou-se acúmulo de huntintina no encéfalo de indivíduos com a doença de Huntington e concluiu-se que a proteína induz degeneração neuronal, provavelmente por mecanismo de apoptose.

Observou-se também que a injeção de agonistas NMDA no estriado de ratos desencadeava perda celular semelhante à da doença de Huntington, levando à hipótese de que o gene alterado do cromossomo 4 produz alteração que desencadeia a ativação excessiva dos receptores NMDA ou a liberação excessiva de glutamato.

Além de hipercinesia (movimentos involuntários anormais, rápidos e espasmódicos, mas relativamente coordenados dos membros, tronco, cabeça e face) - no caso a coréia - a doença de Huntington é caracterizada por demência e transtorno de personalidade.

Figura 6.36: Diferenças encefálicas encontradas na doença de Huntington, em ressonância magnética. Fonte: Adaptado de www.sciencemuseum.org.uk/exhibitions/genes/images/1-3-5-1-4-2-1-1-2-2-0.jpg

Page 195: Livro CI 2007

  187

É uma síndrome inevitavelmente letal, cujos sintomas aparecem apenas na idade

adulta, quando o indivíduo provavelmente já teve filhos e transmitiu os genes da doença. Pacientes com a doença de Huntington apresentam dificuldade no aprendizado de

tarefas nas quais a resposta motora vem associada a um estímulo. Porém apesar de os indivíduos acometidos geralmente apresentarem disfunções motoras, estas não condizem com a severidade dos déficits cerebrais, sugerindo que essa deficiência seja uma conseqüência da doença. Esta constatação sugere que as doenças que atingem os núcleos da base afetam a memória de procedimentos, vinculada ao estriado – um dos focos de ataque da doença de Huntington.

Figura 6.37: Sistema de neurotransmissão alterada na doença de Huntington.

6.8.5. Demência A demência é caracterizada por crise na qual ocorre declínio cognitivo persistente,

que interfere nas atividades diárias, sejam elas sociais ou profissionais, e que independem do nível de consciência do indivíduo. Ocorre comprometimento da memória, e de pelo menos uma das outras funções cognitivas, como linguagem, gnosias, orientação espacial, funções executivas, praxias e capacidade de abstração, por lesão no Sistema Nervoso Central. Só o declínio da memória não é suficiente para caracterizar um quadro de demência, contudo, sua existência é essencial para seu diagnóstico. A demência geralmente interfere na capacidade de memorização, e com o tempo pode afetar também a memória remota.

Page 196: Livro CI 2007

 188 

O começo da demência traz distúrbios como dificuldade de nomeação de objetos, trocas de fonemas ou palavras, dificuldade para nomear objetos e imitar gestos complexos e para vestir-se, dificuldades de reconhecimento de lugares conhecidos e pessoas com as quais têm pouco contato; as funções executivas (planejamento, organização e seqüenciamento de atividades corriqueiras, como preparar o jantar ou fazer a contabilidade dos gastos mensais) ficam comprometidas. O comprometimento da compreensão ocorre nas fases mais avançadas.

A demência é freqüente na população idosa, e a partir dos 65 anos sua prevalência dobra a cada 5 anos, aproximadamente. Por ser conseqüente de várias patologias (vasculares, neurológicas, neoplásicas, etc), é importante que não seja tratada isoladamente, e que todos os profissionais da saúde que atuam com indivíduos idosos estejam familiarizados com sua conduta clínica inerente.

A diminuição da cognição na idade adulta pode ser degenerativa ou não. A demência degenerativa representa um processo que causa morte de neurônios do sistema nervoso central. A demência ocorre tardiamente na vida, e caracteriza-se por degeneração mental generalizada, com desorientação e comprometimento da memória, do julgamento e do intelecto. Muitas etiologias diferentes podem levar à este quadro. Entre as mais comuns estão os infartos múltiplos e a doença de Alzheimer.

O hipocampo é geralmente lesado, e é uma das estruturas fundamentais para a memória, sofrendo atrofia marcante. Formam-se emaranhados neurofibrilares dentro dos neurônios, envolvendo o núcleo e depois se entendendo para os dendritos. Atingem primeiramente o hipocampo, mas espalham-se pelo neocórtex conforme progride o quadro. O número de emaranhados neurofibrilares está envolvido com a gravidade da demência.

6.8.6. Doença de Alzheimer A doença de Alzheimer causa degeneração mental progressiva, o que gera perda de

memória, confusão e desorientação do indivíduo acometido, e é sempre fatal. Os sintomas começam a se tornar aparentes geralmente após os sessenta anos, e a expectativa de vida costuma ser de 5 a 10 anos após o diagnóstico.

O começo do quadro é caracterizado por sinais de esquecimento, que progridem para incapacidade de lembrar palavras, de produzir e mesmo compreender a linguagem. No estágio mais avançado da doença, o paciente negligencia o uso de roupas, a aparência e a alimentação. Além disso, o indivíduo apresenta cegueira de movimento, ou a incapacidade de interpretar o fluxo de informação visual – incapacidade de interpretar a direção do movimento de objetos em seu campo visual. Esta incapacidade interfere no uso da informação visual para o auto-movimento, e poderia explicar a tendência para divagação e perda, comuns nos doentes de Alzheimer.

As alterações celulares incluem aglomerados neurofibrilares (massas aglomeradas de neurofibrilas; acúmulo de proteína tau que sofre processo de hiperfosforilação e lesa células), placas senis (lesões extracelulares formadas por cúmulo central de proteína amilóide envolta por axônios e dendritos degenerados, e restos de células gliais) e atrofia grave do córtex cerebral, da amígdala e do hipocampo.

Figura 6.38: Placas senis: há depósito de substância amilóide, que pode ser visível (como nesta foto de córtex cerebral). Há também espessamento e tortuosidades dos dendritos e axônios nas proximidades do depósito, que podem ser demonstrados com impregnação

Page 197: Livro CI 2007

  189

pela prata. Fonte: http://www.fcm.unicamp.br/deptos/anatomia/bialzheimer.html

A função das células do complexo prosencefálico basal ainda é desconhecida, mas sabe-se que é um dos primeiros grupos celulares a morrer durante a evolução da doença de Alzheimer. Esta área tem sido associada às funções cognitivas, e podem ter papel essencial no aprendizado e na formação da memória.

Estima-se que 1,3% das pessoas entre 65 e 74 anos e 4% das pessoas entre 75 e 84 anos sejam acometidas pela doença de Alzheimer. Além disso, as pessoas com trissomia do 21 apresentam quadro de alterações celulares semelhantes às do Alzheimer por volta dos 40 anos, e os indivíduos acometidos pela doença de Alzheimer têm algumas células geneticamente normais e outras com trissomia do 21.

Grande progresso na biologia molecular permite hoje identificar o gene para a proteína precursora amilóide (PPA), presente no cromossomo 21. Assim, pessoas com síndrome de Down são mais vulneráveis à doença de Alzheimer, pois têm um cromossomo 21 a mais. Apesar disso, não é claro como a mutação do gene causa a doença nem mesmo qual a função da PPA normal no cérebro.

Sugere-se que a PPA normal estimule a proliferação de neurônios e reforce os efeitos dos fatores de crescimento nervoso, enquanto que a PPA mutante cause morte do neurônio.

Os casos precoces de doença de Alzheimer (entre 28 e 60 anos) foram ligados à presença dos genes presenilina 1 (PS1), encontrado no cromossomo 14, e presenilina 2 (PS2) nos cromossomos 14 e 1. Quarenta mutações diferentes do PS1 foram ligadas ao começo precoce da doença, enquanto apenas duas do PS2 foram identificadas como causa desta precocidade. Todas estas mutações aumentam a produção e o depósito amilóide e podem levar um gene PPA normal a produzir proteína amilóide mutagênica.

Outra proteína que parece estar ligada à maioria dos casos de Alzheimer é a apolipoproteína ε (Apoε), reguladora do metabolismo de gordura, cujo gene encontra-se no cromossomo 19 e possui diversos alelos. O alelo ε4, mesmo homozigoto, traz um risco muito maior para a doença de Alzheimer, além de estar associado com a má recuperação de danos encefálicos e de influenciar os depósitos amilóides.

A Apoε formada liga-se à proteína tau, que faz parte dos emaranhados neurofibrilares, permitindo que se hipotetize que a proteína tau produza os emaranhados e, conseqüentemente, a morte dos neurônios.

As pesquisas sobre doença de Alzheimer também enfocam os sistemas de neurotransmissores, apontando a redução da enzima colina acetiltransferase, responsável pela síntese de acetilcolina, nos portadores da doença. Os receptores 5-HT2A, NMDA e AMPA também estão diminuídos. Além disso, os receptores muscarínicos estão aumentados, possivelmente representando regulação para cima, conseqüente da diminuição da atividade da acetilcolina. Alguns medicamentos que reforçam a função da acetilcolina são efetivos na melhora da cognição, ainda que em pequena escala, mas não são capazes de alterar o curso de longo prazo da doença.

É de fundamental importância que se descubra os mecanismos genéticos da doença de Alzheimer, para que se possa desenvolver drogas capazes de evitar a formação dos emaranhados neurofibrilares e dos depósitos amilóides.

A excitotoxicidade também tem sido implicada como causa da doença de Alzheimer. Ainda não há exames específicos para detectar a doença, mas existem exames

como a ressonância magnética para medir o hipocampo e a determinação da concentração de proteína tau, além das proteínas amilóides no líquido cerebroespinal, que são técnicas promissoras. Também não existe tratamento efetivo específico nem preventivo para a doença de Alzheimer. O que se faz atualmente é inibir a enzima acetilcolinesterase, para que não destrua a acetilcolina na fenda sináptica, pois observou-se que nesta patologia ocorre redução na concentração de acetilcolina em núcleos subcorticais específicos, considerada responsável por parte da alteração encontrada no quadro clínico.

São utilizados hoje a rivastigmina, a galantamina e o donepezil, principalmente em casos leves e moderados (apesar de ter sido observada alguma melhora nos quadros mais avançados). Além destas, a vitamina E em doses altas também parece retardar o quadro demencial. Os transtornos de humor podem precisar de tratamento específico e são usados preferencialmente os antidepressivos com menor ação anticolinérgica e

Page 198: Livro CI 2007

 190 

neurolépticos atípicos. Referências Allanore Y et al. Nifedipine protects against averproduction of superoxide anion by monocytes from patients with

systemic sclerosis. Arthritis Res. Ther. 2005, 7: R93-R100. Andrade VM, Santos FH, Bueno OFA. Neuropsicologia hoje. São Paulo: Artes Médicas, 2004. Anisimov SV et al. ``NeuroStem Chip´´: a novel highly specialized tool to study neural differentiation pathways in human

stem cells. BMC Genomics 2007, 8:46.Banisor I,Leist TP, Kalman B. Involvement of B-chemokines in the development of inflammatory demyelination. Journal of Neuroinflammation 2005, 2:7.

Barbosa ER, Haddad MS, Gonçalves MRR. Distúrbios do movimento in Nitrini R, Bacheschi LA. A neurologia que todo médico deve saber. São Paulo: Atheneu, 2003.

Bazzichi L et al. A2B adenosine receptor activity is reduced in neutrophils from patients with systemic sclerosis. Arthritis Res. Ther. 2004, 7:R189-195.

Bear M, Connors B, Paradiso M. Neurociências: desvendando o sistema nervoso. Porto Alegre: Artmed, 2002. Bhat RV, Haeberlein SLB, Avila J. Glycogen synthase kinase 3: a drug target for CNS therapies. Journal of

Neurochemistry 2004, 89, 1313-1317. Brinckmann J et al. Absence of autoantibodies against correctly folded recombinant fibrillin-1 protein in systemic

sclerosis patients. Arthritis Res. Ther. 2005, 7:R1221-1226. Brummelte S, Teuchert-Noodt G. Density of dopaminergic fibres in the prefrontal cortex of gerbils is sensitive to aging.

Behavioral and Brain Functions 2007, 3:14. Busse ME, Wiles CM, Deursen RWM. Co-activation: its association with weakness and specific neurological

pathology. Journal of NeuroEngineering and Rehabilitation 2006, 3:26. Calia LC, Annes M. Afecções neurológicas periféricas in Levy JA, Oliveira ASB. Reabilitação em doenças neurológicas.

São Paulo: Atheneu, 2003. Calia LC. Polirradiculoneuropatia desmielinizante inflamatória crônica: estudo de dezoito pacientes. São Paulo:

Universidade Federal de São Paulo (dissertação), 1996. Cambier J, Dehen MM. Manual de neurologia. São Paulo: Atheneu, 1988. Cistemas JR. Patofisiologia dos radicais livres in Douglas CR. Patofisiologia geral. São Paulo: Robe, 2000. Delong MR. Os núcleos da base in Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da neurociência. São Paulo:

Manole, 2003. Ding Q et al. Exercises affects energy metabolism and neural plasticity related proteins in the hippocampus as revealed

by proteomic analyses. European Journal of Neuroscience,24, 1265-1276, 2006. Douglas CR. Patofisiologia geral. São Paulo: Robe, 2000. Durand M et al. The OXR domain defines a conserved family of eukryiotic oxidation resistance proteins. BMC Cell

Biology 2007, 8:13. Erk G et al. Neuroaxial anesthesia in a patient with progressive systemic sclerosis: case presentation and review of the

literature on systemic sclerosis. BMC Anesthesiology 2006, 6:11. Fendrick SE, Xue Q, Streit WJ. Formation of multinucleated giant cells and microglial degeneration is rats expressing a

mutant Cu/Zn superoxide dismutase gene. Journal ofneuroinflammation 2007, 4:9. Fridman C et al. Alterações genéticas na doença de Alzheimer. Rev. Psiq. Clín. 31(1): 19-25, 2004. Frolenza OV. Tratamento farmacológico da doença de Alzheimer. Rev. Psiq. Clín. 32(3): 137-148, 2005. Giusti B et al. A model of anti-angiogenesis: differential transcriptosome profiling of microvascular endothelial cells from

diffuse systemic sclerosis patients. Arthritis Res. Ther. 2006, 8:R115. Graeff FG, Guimarães FS. Fundamentos de psicofarmacologia. São Paulo: Atheneu, 1999. Grammatopoulos TN et al. Angiotensin type I receptor antagonist losartan, reduces MPTP-iduced degeneration of

dopaminergic neurons in substantia nigra. Molecular Neurodegeneration 2007, 2:1. Greve JMD, Amatuzzi MM. Medicina de reabilitação aplicada à ortopedia e traumatologia. São Paulo: Roca, 1999. Guyton AC. Fisiologia humana e o mecanismo das doenças. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. Heinzen EL et al. Alternative ion channel splicing in mesial temporal lobe epilepsy and Alzheimer´s disease. Genome

Biology 2007, 8: R32. Hellwig K et al. Efficacy of repeated intrathecal triamcinolone acetonide application in progressive multiple sclerosis

patients with spinal symptoms. BMC Neurology 2004, 4:18. Hernán MA, Jick SS, Logroscino G, Olek MJ, Ascherio A, Jick H. Cigarette smoking and the progression of multiple

sclerosis. Brain 2005 128(6):1461-1465. http://ind.universityofcalifornia.edu/ http://ww.biomedcentral.com http://www.alsa.org/ http://www.alzheimermed.com.br/ http://www.alzheimers.org/ http://www.blindness.org/ http://www.bvs.br http://www.faperj.br http://www.fapesp.br http://www.fcm.unicamp.br/deptos/anatomia/rpgneominis.html http://www.fesbe.org.br/sbnec http://www.hda.org.uk/ http://www.hdsa.org/ http://www.lesaomedular.com/ http://www.mndassociation.org/full-site/home.shtml http://www.msif.org/language_choice.html http://www.nmss.org/ http://www.parkinson.med.br/ http://www.parkinson.org http://www.persocom.com.br/ABPAT/default.htm http://www.pubmed.com http://www.sbfis.org.br

Page 199: Livro CI 2007

  191

Huang H, Wolf SL, He J. Recent developments in biofeedback for neuromotor rehabilitation. Journal of NeuroEngineering and Rehabilitation 2006, 3:11.

Huber VC et al. Serum antibodies from Parkinson´s disease patients react with neuronal embrane proteins from a mouse dopaminérgica cell line and affect its dopamine expression. Journal of Neuroinflammation 2006, 3:1.

Kamen G, Du DCC. Independence of motor unit recruitment and rate modulation during precision force control. Neuroscience 88:2 (1999) 643-653.

Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da neurociência. São Paulo: Manole, 2003. Lederer CW et al. Pathways and genes differentially expresses in the motor cortex of patients with sporadic amyotrophic

lateral sclerosis. BMC Genomics 2007, 8:26. Lent R. Cem bilhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociências. São Paulo: Atheneu, 2001. Leonard BE. Fundamentos em psicofarmacologia. Rio de Janeiro: Revinter, 2006. Levy JA, Oliveira ASB. Reabilitação em doenças neurológicas. São Paulo: Atheneu, 2003. Lorke DE. et al. Serotonin 5-HT 2A and 5-HT6 receptors in the prefrontal cortex of Alzheimer and normal aging patients.

BMC Neuroscience 2006 7:36. Lundy-Eckman L. Neurociência: fundamentos para a reabilitação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. Machado A. Neuroanatomia funcional. São Paulo: Atheneu, 2000. Micali OC et al. Silencing of the XAFI gene by promoter hypermethylation in cancer cells and reactivation to TRAIL-

sensitization by IFN-B. BMC Cancer 2007, 7:52. Milner R. A novel tree-dimensional system to study interactions between endothelial cells and neural cells of the

developing central nervous system. BMC Neuroscience 2007, 8:3. Molteni R et al. Exercise reverses the harmful effects of comsumption of a high-fat diet on synaptic and behavioral

plasticity associated to the action of brain-derived neurothophic factor. Neuroscience 123 (2004) 429-440. Nitrini R, Bacheschi LA. A neurologia que todo médico deve saber. São Paulo: Atheneu, 2003. Nitrini R, Caramelli P. Demências in Nitrini R, Bacheschi L.A. A neurologia que todo médico deve saber. São Paulo:

Atheneu, 2003. Oliveira RMC. Afecções neurológicas do Sistema Nervoso Central in Levy J.A, Oliveira ASB. Reabilitação em doenças

neurológicas. São Paulo: Atheneu, 2003. Pang TYC et al. Differential effects of voluntary physical exercise on a behavioral and brain-derived neurotrophic factor

expression deficits in Huntington´s disease transgenic mice. Neuroscience 141 (2006) 569-584. Pinkhardt EH et al. Amygdala size in amyotrophic lateral sclerosis without dementia: an in vivo study using MRI

volumetry. BMC Neurology 2006, 6:48. Pliszka S. Neurociência para o clínico de saúde mental. Porto Alegre: Artmed, 2004. Ramirez UB. CNTF: una citokina con potenciales efectos terapêuticos em patologias neurodegenerativas. Clinica y

ciência 2004, vol. 02, nº02, 55-61. Rosi S et al. Chronic brain inflammation leads to a decline in hippocampal NMDA-RI receptors. Journal of

Neuroinflammation 2004, 1:12. Sajith J, Ditchfield A, Katifi HA. Extrapontine myelinolysis presenting as acute parkinsonism. BMC Neurology 2006,

6:33. Santibañez G. Fisiologia dos estados emóticos in Douglas CR. Patofisiologia geral. São Paulo: Robe, 2000. Santos CLNG. Aspectos comportamentais em doenças crônicas: terapeuta, cuidador e paciente in Levy JA, Oliveira

ASB. Reabilitação em doenças neurológicas. São Paulo: Atheneu, 2003. Satoh J et al. Microarray analysis identifies a set of CXCR3 and CCR2 ligand chemokines as early IFNB-responsive

genes in peripheral blood lymphocytes in vitro: an implication for IFNB-related adverse effects in multiple sclerosis. BMC Neurology 2006, 6:18.

Schupp HT et al. Explicit attention interferes with selective emotion processing in human extrastriate cortex. BMC Neuroscience 2007, 8:16.

Sheremata WA et al. Interferon –B1a reduces plasma CD31+ endothelial microparticles (CD31+EMP) in multiple sclerosis. Journal of Neuroinflammation 2006, 3:23.

Simone IL et al. Influence of Interferon beta treatment on quality of life in multiple sclerosis patients. Health and Quality of Life Outcomes 2006, 4:96.

Srinivasan V et al. Melatonin in Alzheimer´s disease and other neurodegenerative disorders. Behavioral and Brain Functions 2006, 2:15.

Sung M, Marci C, Pentland A. Wearable feedback systems for rehabilitation. Journal of NeuroEngineering and Rehabilitation 2005, 2:17.

Sveistrup H. Motor rehabilitation using virtual reality. Journal of NeuroEngineering and Rehabilitation 2004, 1:10. Vaynman S et al. Coupling energy metabolism with a mechanism to support brain-derived eurotrophic factor-mediated

synaptic plasticity. Neuroscience 139 (2006) 1221-1234. Vaynman S, Ying Z, Gomez-Pinilla F. Hippocampal BDNF mediates the efficacy of exercises on synaptic plasticity and

cognition. European Journal of Neuroscience, 20, 2580-2590, 2004. Wu A, Ying Z, Gomez-Pinilla F. Dietary curcumin counteracts the outcome of traumatic brain injury on oxidative

stress, synaptic plasticity, and cognition. Experimental Neurology 197 (2006) 309-317. Wu A, Ying Z, Gomez-Pinilla F. The interplay between oxidative stress and brain-derived neurotrophic factor modulates

the outcome of a saturated fat diet on synaptic plasticity and cognition. European Journal of Neuroscience, 19, 1699-1707, 2004.

Yangou Y et al. COX-2, CB2 and P2X7- immunorectivities are increased in activated microglial cells/macrophages of multiple sclerosis and amyotrophic lateral sclerosis spinal cord. BMC Neurology 2006, 6:12.

Page 200: Livro CI 2007

 192 

Page 201: Livro CI 2007

  193

COGNIÇÃO Aula Inaugural Arnaldo Cheixas-Dias ([email protected]) e Rodrigo Pavão ([email protected]) Laboratório de Neurociências e Comportamento

A origem da palavra cognição vem da expressão latina cognitione, que é a percepção da realidade externa. Refere-se aos mecanismos pelos quais os animais adquirem, processam, estocam e usam informações do ambiente. No escopo da biologia, cognição envolve diversas funções fisiológicas: percepção, atenção, memória, raciocínio, imaginação, linguagem e consciência.

Desde Platão e Aristóteles, passando pela Psicologia Experimental e a própria Neurociência moderna, vários paradigmas vêm propondo formas de abordar a cognição. Nesse módulo, pretendemos resgatar esse histórico sob a luz da comparação interespecífica, com vistas ao estabelecimento de uma “imagem” da cognição ao longo da história evolutiva.

O campo no qual há confluência de todos os esforços científicos para a compreensão da cognição é a neurociência cognitiva. Ela reúne conhecimentos acumulados pela biologia, pela psicologia e pela medicina. Distinguimos, ainda que com enorme dificuldade de explicitar elementos objetivos, cérebro de mente. O principal papel da neurociência cognitiva talvez seja exatamente esse, o de explicar objetivamente como é que se extrai a mente do cérebro, ainda que não saibamos exatamente o que é mente.

Um grande desafio no sentido de responder a essa questão invariavelmente tem sido a concepção de como funciona o encéfalo. De um lado há a idéia de que diferentes funções seriam controladas por diferentes regiões do encéfalo. Por outro lado, há defensores da idéia de que o encéfalo tem um funcionamento global, um sistema que desempenha seu papel apenas se considerado como uma unidade funcional ele próprio.

Tudo começou a cerca de 200 anos com a frenologia e com ela a idéia o cérebro era organizado em cerca de 35 funções especificas (Figura 1). Essas funções, que variavam de funções básicas cognitivas, como a linguagem e a percepção da cor, até capacidades mais efêmeras, como a esperança e a auto-estima, eram concebidas como sendo mantidas por regiões especificas do cérebro. Além disso, se uma pessoa usava uma das faculdades com mais freqüência que as outras, a parte do cérebro que representava esta função devia crescer. De acordo com os frenologistas, esse aumento do tamanho de uma região cerebral causaria uma distorção no crânio. Logicamente, então, a análise detalhada da anatomia do crânio poderia descrever a personalidade de uma pessoa.

O fisiologista experimental Pierre Flourens (Figura 2) questionou a visão

localizacionista dos frenologistas. Ele estudava animais, especial mente pombos, e descobriu que lesões em áreas particulares do cérebro não causavam certos déficits duradouros de comportamento. Não importava onde fizesse a lesão no encéfalo, a ave sempre se recuperava. Ele desenvolveu, então, a noção de que todo o cérebro participa no comportamento.

Page 202: Livro CI 2007

 194 

Outros trabalhos, no entanto, levaram a uma compreensão distina de como funciona

o encéfalo. Paul Broca (Figura 3) tratou um paciente que podia entender a linguagem, mas não conseguia falar. A região do cérebro que estava lesada foi denominada, posteriormente, de área de Broca. Carl Wernicke (Figura 4) relatou o caso de um paciente que podia falar quase normalmente mas o que ele falava não fazia sentido e também não compreendia a linguagem escrita ou falada. Ele tinha uma lesão em uma região posterior do hemisfério esquerdo que foi denominada área de Wernicke. Esses aspectos exclusivos da linguagem que estavam prejudicados por lesões especificas ajudaram a retomada da visão localizacionista.

Outros pontos foram levantados pelos defensores do funcionamento global do

encéfalo. O psicólogo experimental Karl Lashley relatou que lesões no córtex realizadas antes e depois de aprender determinavam prejuízos de aprendizagem e memória em tarefa de labirinto, e que esses prejuízos eram correlacionados com tamanho mas não com a localização da lesão, favorecendo a hipótese do funcionamento global (Figura 5). No entanto, algumas falhas podem ser apontadas ao trabalho de Lashley: a tarefa de aprendizado em labirinto requer muitas modalidades, que, por sua vez, requerem tanto do sistema nervoso, que nenhuma lesão isolada pode produzir um déficit de aprendizado. Se um animal aprendeu a tarefa de locomover-se em um labirinto usando informação visual e proprioceptiva, uma lesão no sistema visual ou no sistema proprioceptivo pode não ser suficiente para criar um déficit, pois uma das modalidades pode compensar a lesão. Seguindo essa lógica, caso uma lesão seja tão grande que inclua todas as modalidades, então o déficit deve ser observado.

Page 203: Livro CI 2007

  195

Na tentativa de unificar os diversos achados, Donald Hebb sugeriu que conjuntos de

células, distribuídos ao longo de vastas áreas do córtex, trabalhavam em conjunto para processar e representar informações. Com a acumulação de evidências adicionais, esta perspectiva começou a ser encarada como um dos princípios-chave do funcionamento do sistema nervoso.

Assim, a despeito dos relatos de casos de lesão e da própria descrição do neurônio, afirmar que partes específicas do encéfalo controlam exclusivamente determinadas funções não encontra sustentação inequívoca. Há inúmeros casos de lesão em que a deficiência não se manifesta de maneira regular e simples, na base da associação área-função. O encéfalo, além de ter uma organização rica e complexa, tem também uma característica especial, que é a plasticidade. Uma função ausente em virtude de uma lesão pode reaparecer após um período em que o encéfalo de reorganiza com conexões diferentes. Um estudo bastante interessante que mostra essa plasticidade é o de Leah Krubitzer, em que foi observado uma estruturação cortical bastante diferente da habitual em gambás adultos que tiveram parte do córtex removido ainda quando fetos.

O debate acerca do modo de funcionamento do encéfalo, se baseado na localização

de cada função em determinada área ou se baseado no funcionamento do sistema como um todo, atravessou todo o século XX e, de certo modo, continua atual. Cientistas da biologia molecular continuam descobrindo processos neuronais surpreendentes. O ambiente extra-celular continua surpreendendo neuroanatomistas com elementos que têm importante papel na comunicação entre células, direta ou indiretamente. De fato, não temos conhecimento ainda, sobre como as inúmeras partes que compõem o encéfalo

Page 204: Livro CI 2007

 196 

funcionam isoladamente. Tampouco sabemos como todas essas partes funcionam em conjunto para produzir comportamentos complexos, controlar emoções, memórias etc. De qualquer modo, não se pode desprezar informações e conhecimentos originados de ambas as visões, localizacionista e holística. Um fator que não pode ser esquecido, nesse sentido, é o paradigma evolutivo. Todos os animais ao longo da história evolutiva sempre tiveram de lidar com problemas que lhe garantissem sobrevivência. O encéfalo de um inseto pode não apresentar determinadas homologias com o encéfalo humano e, mesmo assim, ser capaz de resolver os mesmos tipos de problema. Deste modo, parece coerente acreditar na hipótese segundo a qual o encéfalo, embora composto de distintas partes, funciona como um todo, um sistema único. Uma lesão no lobo temporal, por exemplo, não deve produzir simplesmente um encéfalo sem lobo temporal. Esse encéfalo torna-se um novo sistema, com múltiplas possibilidades de ajuste à nova condição.

A psicologia ganhou grande espaço na discussão a partir do estabelecimento da psicologia experimental. O século XX viu a ciência comportamental despontar e inundar o mundo acadêmico com toda sorte de mensurações de comportamentos. Descreveu-se como é possível ensinar qualquer animal a se comportar de determinada maneira controlando-se as conseqüências que se seguiam a respostas voluntárias. Buscando espaço no conjunto de ciências naturais, a psicologia propõe a base behaviorista de análise do comportamento. Os behavioristas defendiam que a psicologia tem de lidar com o comportamento público e observável, deixando de lado eventos privados (como sentimentos e emoções), já que esses não fariam parte do objeto de estudo da psicologia. Numa segunda fase comportamentalista, o behaviorismo radical, passa-se a defender que mesmo os eventos privados devem ser explicados como comportamentos selecionados pelo ambiente, assim como proposto por Darwin em relação aos genes. O psicólogo americano B. F. Skinner descreve esse processo como nível ontogenético de seleção por conseqüências.

Outro importante movimento dentro da psicologia ativo nessa discussão do século XX é o cognitivismo, que defende que há intencionalidade subjacente aos comportamentos voluntários. Embora tal afirmação pareça redundante, deve-se ressaltar que o behaviorismo estabelece como causa do comportamento o ambiente e nunca a intenção e/ou decisão do sujeito. Assim, não há livre-arbítrio.

A psicanálise propõe um modelo de funcionamento do psiquismo que se preocupa pouco com a fisiologia dura e descritiva e bastante com o processo resultante desse funcionamento. O quadro que se vê na psicologia no século XX, inalterado até hoje, é o de uma ciência com mais de um objeto de estudo, a depender da corrente filosófica adotada. O aspecto positivo dessa realidade é a possibilidade de lançar diferentes olhares sobre o fenômeno cognitivo até que se possa estabelecer um paradigma mais universalmente aceito.

Outras abordagens científicas têm colaborado sistematicamente para a compreensão do fenômeno cognitivo. A etologia, a computação, a própria engenharia... áreas diversas entre si mas com contribuições significativas e muitas vezes complementares.

A grande área que tem acolhidos esses esforços multidisciplinares é a neurociência cognitiva. Com o uso de métodos cada vez mais modernos, tem se tornado cada vez mais comum a integração de conhecimentos das diferentes áreas, inclusive a própria integração dos diferentes profissionais. Biólogos, psicólogos, engenheiros, médicos, filósofos, físicos, matemáticos, computólogos.

A eletrofisiologia, imageamento cerebral, os experimentos de psicofísica, enfim, todos os métodos que permitem tatear fenômenos cognitivos têm sido usados cada vez mais e de forma cada vez mais compartilhada por cientistas de diferentes formações com o intuito de compreender melhor a cognição. A neurociência cognitiva, possibilitando a reunião dos esforços em torno de objetivos comuns, pode ser o caminho mais curto para desvendar o fenômeno cognitivo enquanto processo complexo, do qual participam diversas funções fisiológicas.

Apresentando a perspectiva dos sistemas neurais e da psicologia cognitiva, esperamos transmitir uma síntese do entendimento da forma como a congição funciona.

Page 205: Livro CI 2007

  197

Fisiologia da Atenção Arnaldo Cheixas-Dias ([email protected]) - Laboratório de Neurociências e Comportamento

O estudo da atenção é de interesse de várias disciplinas científicas e, para que se empreenda qualquer tipo de pesquisa a seu respeito, é condição que se estabeleça uma definição para o fenômeno. Esta não é uma tarefa fácil, já que existem várias concepções diferentes de atenção, e cada uma delas implica diferentes formas de delinear estudos que permitam sua avaliação. Atenção é definida comumente como o processamento seletivo de determinadas informações sensoriais do ambiente presente devido a limitações do sistema nervoso para processar todas as entradas sensoriais (Laberge, 2000; Bushnell, 2001). Muito da sustentação desse tipo de definição parece dever-se ao relato moderno do fenômeno feito por William James no final do século XIX, que escreveu sobre o assunto:

Everyone knows what attention is. It is the taking possession by the mind, in clear and vivid form, of one out of what seems several simultaneously possible objects or trains of thought. (apud Posner, 1994)1

A definição de James ressalta o aspecto seletivo da atenção, idéia compartilhada até

hoje e que é coerente com a noção de que há uma limitação do sistema nervoso para processar informações simultâneas. Por outro lado, há uma expressão nas palavras de James que merece cuidado quanto ao sentido que pode assumir. O que significa “tomar posse pela mente”? Uma vez que é difícil definir o que é mente, melhor parece substituir essa expressão por módulos de processamento do sistema nervoso. Ainda, como “tomar posse” pressupõe um agente iniciador interno, tão melhor parece dispensar a expressão. O cuidado que se deve ter ao usar esse tipo de expressão é não considerar o fenômeno (processamento seletivo de informação pelo sistema nervoso, intitulado atenção) como a causa de um comportamento que a ele se segue. Se observamos uma criança imóvel a olhar o pai amarrando o cadarço de seu sapato e, mais tarde, vimos ela própria a reproduzir a ação, somos tentados a afirmar que ela aprendeu a tarefa porque prestou atenção aos movimentos do pai. É importante saber que o “prestar atenção” é um comportamento e que deve ser compreendido a partir da história de aprendizagem daquela criança, bem como da história comportamental embutida na filogênese (Skinner, 1981; Baum, 1999; Donahoe e Palmer, 1994). Ou seja, o que se quer saber é exatamente a causa para o comportamento de prestar atenção, de modo que a atenção, ela própria, não pode ser considerada uma causa em si, ainda que seja para o evento que a ela se segue.

Os estudos de fisiologia representam um recorte feito dentro de uma contingência estabelecida, ou seja, o recorte recai sobre o momento em que o organismo presta atenção. Feito esse recorte, pode-se estudar a participação de neurotransmissores em áreas específicas do encéfalo, reações autonômicas concomitantes, parâmetros temporais associados ao fenômeno e assim por diante. Esses estudos não mudam em nada a análise funcional (a atenção ocorre “em função de”) a que se presta a psicologia comportamental. Para quem faz estudos fisiológicos é importante saber que a atenção não ocorre em função de alterações no sistema nervoso, já que tais alterações são, elas próprias, aquilo que nomeamos como atenção. O importante para a fisiologia é compreender em detalhes exatamente o que acontece no sistema nervoso no momento em que uma informação é selecionada para processamento em detrimento de outras concomitantes. O esforço presente da fisiologia no estudo da atenção é tornar observável um fenômeno até aqui encoberto. A seguir, são apresentados os principais modelos explicativos para a atenção com vistas a uma definição coerente com os aspectos discutidos anteriormente e que possa servir de base para um estudo experimental que se queira conduzir sobre o tema. Em outras palavras, um modelo experimental de estudo da atenção proposto deve satisfazer dois critérios: (1) o fenômeno deve possuir definição coerente com a fisiologia e delimitação clara, já que a atenção é um fenômeno fisiológico e; (2) deve permitir a explicação funcional da contingência comportamental em vigor.

1 “Todo mundo sabe o que é atenção. É tomar posse da mente, de modo claro e vívido, de um dos que parecem ser vários objetos ou sucessões de pensamento simultaneamente possíveis.”

Page 206: Livro CI 2007

 198 

Principais modelos explicativos Há dois vieses no estudo científico sobre a atenção. O primeiro é que apenas

recentemente passou-se a estudar o fenômeno em animais. Como nesses estudos o experimentador não pode dispor da linguagem verbal para instruir seu sujeito experimental na tarefa, os limites do fenômeno ficam necessariamente bem estabelecidos. Assim, ainda que os estudos com animais sejam recentes, o avanço obtido já é significativo. O segundo é que os estudos sobre atenção têm predominado sobre as modalidades sensoriais auditiva e, principalmente, visual (Nahas, 2004). Na verdade são vieses históricos mas que não representam um problema comprometedor para a área. Como a atenção não é completamente compreendida, a incursão inicial a partir de uma modalidade sensorial bem estudada, como é a visão, ajuda a estabelecer com boa sustentação um primeiro arcabouço explicativo para somente depois avançar os estudos para outras modalidades sensoriais. Sob o ponto de vista comparativo existem, portanto, dois aspectos importantes para o estudo da atenção: a comparação intermodal e a comparação entre espécies. O primeiro deles tem sido buscado e o segundo depende de algum crescimento nos estudos presentes com audição e visão.

Muir (1996) propõe a existência de 3 formas distintas de atenção: a atenção sustentada, a atenção dividida e a atenção seletiva. A atenção sustentada seria um estado de prontidão do sistema nervoso para perceber quaisquer variações ambientais e permitir que o organismo responda rapidamente a elas. A atenção dividida expressa o processamento concomitante de mais de uma fonte de estimulação similarmente relevantes. Em tarefas experimentais em que se exige do sujeito executar mais de uma instrução ao mesmo tempo observa-se uma queda da capacidade executiva, mas é difícil estabelecer se ocorre um processamento paralelo com menos intensidade ou se o processamento é feito com intensidade única mas alternado entre as diferentes sub-tarefas. Já a atenção seletiva seria o processamento, pelo sistema nervoso, de uma fonte de estimulação ao mesmo tempo em que se ignora outras.

Essa divisão proposta por Muir não encontra consenso na comunidade científica uma vez que não é possível distinguir claramente um tipo de atenção de outra. A atenção sustentada, por exemplo, não exclui o processamento seletivo, já que uma alteração no ambiente é selecionada dentre outros aspectos que são mantidos inalterados. Ainda, se a expectativa diz respeito a qualquer alteração, de forma indiscriminada, pode ser que o processamento atencional se dê de forma alternada entre as diferentes regiões do espaço sob freqüência alta, ainda assim seletiva a cada mudança atencional. A atenção dividida tampouco exclui o aspecto seletivo do processamento de informação. Finalmente, a expressão “atenção seletiva” é criticada por alguns autores por parecer redundante, “uma vez que atenção é, por definição, seletiva” (Fuster, 1995 apud Nahas, 2004: p. 92). Mais econômico, então, é usar apenas a expressão atenção, tendo implícita a idéia de que representa o processamento seletivo, pelo sistema nervoso, de informações sensoriais do ambiente presente.

Uma questão importante neste ponto diz respeito ao ambiente. Ele não representa tudo o que está fora do corpo do organismo. Se uma pessoa está num ponto de ônibus e, enquanto espera o veículo, passa a reproduzir uma canção a partir de sua memória, pode até perder o ônibus, mesmo tendo ele parado no ponto. Parece claro que o processamento seletivo de informações focalizou-se sobre o conteúdo da memória da pessoa (ambiente interno) ao mesmo tempo em que ignorou a presença do ônibus no ponto (ambiente externo).

Broadbent (1958) propôs uma teoria segundo a qual haveria uma completa filtragem da informação em função da capacidade limitada do sistema de processamento (Fig. 1). As informações, chegando no sistema sensorial em paralelo, seriam filtradas por um sistema de retenção provisória da informação com base em seus atributos físicos e apenas as informações relevantes seriam selecionadas para processamento adicional. Segundo esse modelo, a seleção se daria em níveis sensoriais. Por outro lado, vários estudos demonstraram que informações não relevantes são processadas, ainda que minimamente, em estações nervosas posteriores ao nível sensorial (Gray e Wedderburn, 1960; Treisman, 1960 apud Broadbent, 1982 apud Nahas, 2004). Um bom exemplo incompatível com o modelo é quando uma pessoa, ao atender a uma conversa, escuta seu

Page 207: Livro CI 2007

  199

nome em outra conversa não atendida. O estímulo significativo (nome) “é prontamente detectado e ‘captura’ a atenção do sujeito” (Moray, 1959).

Figura 1. Modelos explicativos para a função seletiva da atenção. Adaptado de Laberge,

2000: p. 712.

Um modelo altenativo ao de Broadbent é apresentado por Treisman (1960), para quem haveria um filtro sensorial com função seletiva, da mesma forma como proposto por Broadbent. Por outro lado, este filtro teria uma função seletiva atenuadora e não de seleção completa, de modo que todas as informações passariam por algum processamento adicional central (Fig. 1).

Laberge e Samuels (1974 apud Laberge, 2000) propõem que há 2 tipos de influência imediata sobre a seletividade do sistema nervoso quanto ao processamento da informação. Num caso, o nível de atividade neuronal para processamento de determinada informação seria dirigido pela intensidade dos estímulos apresentados ao organismo e se daria no nível sensorial (estimulação retiniana, exclusivamente, no caso da atenção visual), o que explicaria o tipo de seleção proposta pelos modelos de Broadbent e de Treisman (Fig. 1). Grosso modo, a seletividade atencional estaria sendo dirigida pelo estímulo, sendo daí o controle da atenção chamado “de baixo para cima” ou exógeno (Egeth e Yantis, 1997 apud Laberge, 2000). Dentro dessa acepção, podemos inferir que o estímulo elicia a resposta de direcionamento da atenção (que, nesse caso, seria uma resposta reflexa).

O outro tipo de influência imediata sobre a seletividade do sistema nervoso para processar informações se daria “de cima para baixo”, ou seja, haveria controle central na seleção de estímulos a ser processados, baseado na história prévia de aprendizagem do organismo. Esse controle “de cima para baixo” estaria relacionado com uma espécie de expectativa do sistema nervoso em relação a um estímulo que esteja por vir ou mesmo o atendimento voluntário a determinado estímulo, comportamento esse que estaria, assim, sendo reforçado pela conseqüência que produz. O controle, nesse caso, é chamado endógeno (Egeth e Yantis, 1997 apud Laberge, 2000).

Da mesma forma que se poderia inferir o eliciamento da resposta de direcionamento reflexo da atenção no caso do controle “de baixo para cima”, pode-se inferir no caso do controle “de cima para baixo” que o direcionamento voluntário da atenção é reforçado pela conseqüência “x”. A inferência apresentada pode ser fonte de mal-entendido já que, do ponto de vista da psicologia comportamental, o controle sobre o comportamento voluntário de “atender a” está na conseqüência produzida por ele, de modo que se não poderia dizer que o controle é central. Para desfazer tal confusão, parece apropriado não perder de vista

Page 208: Livro CI 2007

 200 

que a identificação do controle efetivo necessita de uma análise da contingência de reforço que mantém a resposta de atender voluntariamente a determinado estímulo.

De um lado temos as expressões “de baixo para cima” (Egeth e Yantis, 1997 apud Laberge, 2000) e orientação exógena (Posner, 1980) associadas à idéia de desencadeamento automático da atenção (determinado pelo estímulo no nível dos receptores sensoriais e seus correspondentes sistemas de processamento, eliciando uma resposta atencional automática). De outro lado temos as expressões “de cima para baixo” (Egeth e Yantis, 1997 apud Laberge, 2000) e orientação endógena (Posner, 1980) associadas à idéia de desencadeamento operante da atenção (determinado pela história prévia de aprendizagem, produzindo uma resposta atencional operante, reforçada pelas conseqüências que produz).

Vale ressaltar que situações de desencadeamento automático podem ser influenciadas por instruções prévias ou expectativas baseadas na história passada (Helene e Xavier, 2003). Há, ainda, um aspecto importante acerca da manifestação da atenção e que diz respeito à topografia do comportamento de atender. O deslocamento dos recursos atencionais para determinado estímulo pode se dar acompanhada de atividade motora (movimento dos olhos, flexão corporal, movimento da cabeça etc.), sendo chamada por Von Helmholtz (1894 apud Van der Heijden, 1992) de orientação manifesta da atenção, em contraposição à orientação encoberta da atenção, em que não há a presença desses componentes motores. Deveras, há uma resposta seletiva de processamento de informação nos dois casos mas com topografias bastante diferentes.

Uma necessidade no estudo do campo seria o desenvolvimento de um delineamento experimental que pudesse dissociar os elementos da resposta de atender propriamente dita dos elementos sensoriais e motores a ela relacionados. Posner (1980) propôs uma tarefa visual para humanos a fim de dissociar tais elementos (Fig. 2). Na tarefa, o sujeito tinha sua cabeça imobilizada e era instruído a fixar o olhar em um ponto na tela de um computador a sua frente (os olhos do sujeito também não se mexiam). Solicitava-se ao sujeito que pressionasse um botão cada vez que um alvo fosse exibido em regiões periféricas de seu campo visual. Antecedente ao alvo, uma pista que indicava o local de maior probabilidade de aparição do alvo ou uma pista que não indicava nenhuma probabilidade diferente do local de aparição do alvo era exibida a cada tentativa. As tentativas nas quais a pista sinalizava o correto local de exibição do alvo eram chamadas tentativas válidas (e a pista válida). As tentativas nas quais a pista não sinalizava nenhuma probabilidade sobre o correto local de aparição do alvo eram chamadas de tentativas neutras (e a pista neutra). Finalmente, as tentativas nas quais a pista sinalizava o local incorreto de aparição do alvo eram chamadas de tentativas inválidas (e a pista inválida). Como ao longo das tentativas não havia movimentação nem da cabeça e nem dos olhos, trata-se de orientação encoberta da atenção, o que elimina a interferência da atividade motora.

Page 209: Livro CI 2007

  201

Figura 2: Esquema da tarefa desenvolvida por Michael Posner (1980) para avaliação da

orientação encoberta da atenção visual (Bear, Connors e Paradiso, 2002). Posner (1980) aferiu o tempo de reação ao aparecimento do alvo. A avaliação da

atenção se deu por meio do que o experimentador chamou de efeito de validade, que consiste na diferença significativa na comparação do tempo de reação nas tentativas com pistas válidas, neutras e inválidas. O que ele observou foi que o tempo de reação nas tentativas com pistas válidas foi menor do que nas tentativas com pistas neutras que, por sua vez, foi menor do que nas tentativas com pistas inválidas. O efeito de validade foi tomado como medida atencional. As pistas utilizadas nesse tipo de experimento podem ser simbólicas ou não simbólicas. No primeiro caso, a pista não guarda nenhuma relação espacial com o alvo. Normalmente utilizam-se setas, letras ou números que simbolizem o local de aparecimento do alvo mas que são exibidas em local diferente. Assim, o sistema nervoso precisa processar a informação da pista em níveis supra-sensoriais (estaria compatível com a idéia de direcionamento operante da atenção). O outro tipo de pista, não simbólica, compartilha com o alvo o local de exibição, ou seja, a atenção é mobilizada automaticamente para o local onde aparecerá o alvo. O tempo de reação em protocolos com pistas simbólicas é maior do que nos protocolos com pistas não-simbólicas em tentativas com intervalo pequeno entre pista e alvo, o que é tido como um fator que reforça a idéia da necessidade de processamento suprasensorial no primeiro caso. Em resumo, a resposta de atender pode ser eliciada por um estímulo antecedente ou reforçada por um estímulo conseqüente e a orientação dessa resposta pode ser manifesta ou encoberta.

Hodologia da atenção visual Em primatas, admite-se que há participação de pelo menos 3 áreas principais no

direcionamento da atenção para estímulos visuais: o córtex parietal posterior, o mesencéfalo (colículos superiores) e o tálamo (núcleo pulvinar) (Posner e Raichle, 1994). Cada área parece desempenhar uma função distinta na dinâmica atencional. Pacientes com lesão do córtex parietal posterior apresentaram desempenho similar ao de pessoas saudáveis no teste de direcionamento encoberto da atenção nas condições de pista válida e de pista neutra (Posner e Raichle, 1994; Nahas, 2004). Por outro lado, na condição de pista inválida, o prejuízo foi muito maior do que o observado em pessoas saudáveis, ou seja, o tempo de reação foi muito maior, além do fato de que, em muitas dessas tentativas com pista inválida, o alvo sequer foi percebido.

Os colículos superiores do mesencéfalo, sabidamente envolvidos na expressão dos movimentos sacádicos dos olhos, são recrutados no direcionamento da atenção visual

Page 210: Livro CI 2007

 202 

(Fig. 3), o que é evidenciado por estudos eletrofisiológicos com animais (Taylor, Jeffery e Lieberman, 1986) e por estudos clínicos mostrando que pacientes com degeneração mesencefálica apresentam desempenho prejudicado em tarefas de direcionamento encoberto da atenção (Laberge, 2000).

Figura 3: Representação gráfica da ativação de neurônio do colículo superior em

diferentes situações. (a) Olhar no ponto de fixação enquanto o estímulo é ignorado [baixa freqüência de disparos]. (b) Movimento sacádico para o campo receptivo [alta freqüência de disparos]. (c) Movimento sacádico para fora do campo receptivo [baixa freqüência de disparos]. (d) Olhar no ponto de fixação enquanto a atenção é direcionada para o campo receptivo [alta freqüência de disparos]. (Bear, Connors e Paradiso, 2002)

O núcleo pulvinar do tálamo aparece como uma via alternativa ao núcleo geniculado

lateral para a distribuição da informação visual para o córtex (Sarnat e Netsky, 1981; Jones, 1985). Ele possui conexões recíprocas com virtualmente todo o córtex (Jones, 1985) e possui conexões também com os colículos superiores (Sarnat e Netsky, 1981; Price, 1995). O tamanho proporcional do pulvinar em relação ao tálamo diminui do homem para o macaco e desse em relação ao gato (Laberge, 2000). Por conta de sua importância para o sistema visual, muitos estudos foram feitos para avaliar a existência de um núcleo talâmico homólogo em ratos. Por meio de marcadores retrógrados e anterógrados, o núcleo talâmico látero-posterior do rato mostrou-se homólogo ao pulvinar de primatas (Hughes, 1977; Mason e Groos, 1981; Donnelly, Thompson e Robertson, 1983; Taylor, Jeffery e Lieberman, 1986). Pacientes com lesões talâmicas apresentaram desempenho prejudicado em tarefas de direcionamento encoberto da atenção, mesmo em tentativas com pista válida, o que sugere a participação do núcleo pulvinar (látero-posterior em ratos) no engajamento atencional (Posner e Raichle, 1994).

Estudos a respeito da atenção continuam sendo elaborados e há ainda muito para se investigar a respeito. Novos delineamentos incluem técnicas cada vez mais avançadas, como o uso de imageamento encefálico, expressão gênica, eletrofisiologia de campo e de unidades neuronais isoladas. O conjunto de informações obtidas com os experimentos acumulados por diferentes grupos ao longo do tempo tem evidenciado de forma cada vez mais sólida que definições de atenção como um processo simples são equivocadas. O que

Page 211: Livro CI 2007

  203

chamamos de atenção certamente envolve o funcionamento concomitante de múltiplos eventos encefálicos que permitem ao sujeito interagir de forma bem sucedida com o ambiente. Ainda que a interpretação dos resultados seja desafiadora, o uso de modelos animais em experimentos comparativos tem se mostrado instrumento essencial na compreensão da atenção.

Bibliografia

Baum, W. M. Compreender o Behaviorismo: Ciência, Comportamento e Cultura. Porto Alegre: Artmed, 1999. Bear, M.F.; Connors, B.W.; Paradiso, M.A. Neurociências: desvendando o sistema nervoso. 2ª ed. Porto Alegre:

Artmed, 2002. Bushnell, P. J. Assessing attention in rats. In: Buccafusco, J.J (ed.) Methods of behavior analysis in neuroscience. Boca

Raton, London, New York, Washington D.C.: CRC Press. chap. 7, 2001, p. 111-121. Donahoe, J. W.; Palmer, D. C. Attending. In: ______ Learning and complex behavior. Boston, London, Toronto,

Sydney, Tokyo, Singapore: Allyn and Bacon. chap. 6, 1994, p. 152-176. Donnelly, J. F.; Thompson, S. M.; Robertson, R. T. Organization of projections from the superior colliculus to the

thalamic lateral posterior nucleus in the rat. Brain Research, v. 288, p. 315-319, 1983. Helene, A. F.; Xavier, G. F. A construção da atenção a partir da memória. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 25, p. 12-

15, 2003. Hughes, H. C. Anatomical and neurobehavioral investigations concerning the thalamocortical organization of the rat´s

visual system. Comp. Neur., v. 175, p. 311-336, 1977. Laberge, D. Networks of attention. In: Gazzaniga, M.S. (ed) The new cognitive neurosciences (chap. 49).

Massachusets: MIT Press, p. 711-724, 2000. Manson, R.; Groos, G. A. Cortico-recipient and tecto-recipient visual zones in the rat´s lateral posterior (pulvinar)

nucleus: an anatomical study. Neuroscience Letters, v. 25, p. 107-112, 1981. Nahas, T. R.; Xavier, G. F. Atenção. In: Andrade, V. M.; Santos, F. H.; Bueno, O. F. A. Neuropsicologia hoje. São

Paulo: Editora Artes Médicas, 2004a. cap. 5, p. 77-99. Nahas, T. R.; XAVIER, G. F. Neurobiologia da atenção visual. In: ANDRADE, V. M.; SANTOS, F. H.; Bueno, O. F. A.

Neuropsicologia hoje. São Paulo: Editora Artes Médicas, 2004b. cap. 6, p. 101-124. Posner, M. Orienting of attention.Q J Exp Psychol. 1980, 32(1): p.3-25. Posner, M. I.; Raichle, M. E. – Networks of attention. In: ______ Images of mind (chap. 7). New York: Scientific

American Library, 1994, p. 153-180. POSNER, M. I. Attention in cognitive neuroscience: an overview. In: GAZZANIGA, M. S. (ed.) The cognitive neurosciences. Cambridge, London: Bradford Book, MIT Press. 1995. chap. 39, p. 615-624.

Sarnat, H. B.; Netsky, M. G. Visual system and dorsal thalamus. In: ______. Evolution of the nervous system. New York, Oxford: Oxford University Press, 1981. chap. 10, p.243-295.

Skinner, B. F. Selection by consequences. Science, v. 213, p. 501-504, 1981. 92 Taylor, A. M.; Jeffery, G.; Lieberman, A. R. Subcortical afferent and efferent connections to the superior colliculus in the

rat and comparisons between albino and pigmented strains. Exp. Brain Res., 62: 1986, p. 131-142.

Page 212: Livro CI 2007

 204 

Fisiologia do Sono Arnaldo Cheixas-Dias ([email protected]): Lab. de Neurociências e Comportamento (IB-USP) Gabriela de Matos ([email protected]): Laboratório de Neurociências (FM-USP)

O sono tem fascinado todos os povos do mundo desde a mais remota antiguidade (Timo-Iaria, 2000). Devido à imobilidade e ao aparente desligamento com o meio ambiente, o sono gerou grande fascinação e curiosidade. E, mesmo no terceiro milênio, o sono é um tema que gera muita discussão, mitos e lendas. A ciência evoluiu consideravelmente ao longo das décadas elucidando muitas questões a respeito da fisiologia do sono, mas existem lacunas significativas a seu respeito. Não obstante, explicar inequivocamente porque dormimos é algo difícil. Embora se tenha muitas teorias a respeito da função do sono, não existe um consenso sobre seu principal papel (Durmes e Dinges, 2005). Como ainda há muito para se compreender a respeito da descrição da fisiologia do sono, tal questionamento é equivalente a perguntarmos: “Por que acordamos?”. Como veremos, há algumas hipóteses interessantes para explicar o sono. É possível que seja uma característica multifuncional que participa de outros processos fisiológicos essenciais para a sobrevivência. Neste capítulo, apresentaremos um breve histórico do estudo do sono e conhecimentos importantes construídos pela ciência ao longo dos séculos. Nessa incursão, veremos informações relevantes advindas da eletrofisiologia, neuroquímica, patologias, modelos experimentais e até mesmo de uma simples observação comportamental.

Histórico Embora o sono e os sonhos devam fazer parte do foco da curiosidade humana

desde sempre, o estudo sistemático a seu respeito começou apenas no século IV antes da era cristã. Os primeiros registros documentais sobre o estudo não místico do sono foram produzidos nessa época pelos gregos Platão, Sócrates e Aristóteles, sendo que este escreveu o livro De Somno (Sobre o Sono). Os escritos de Aristóteles parecem ser os mais antigos documentos a abordar as funções do organismo humano de maneira comparativa, o que incluiu a observação sistemática do comportamento de várias espécies. Talvez por essa razão o sono não tinha, para Aristóteles, nenhum caráter místico. De qualquer modo, ainda que há 25 séculos os gregos já tivessem elaborado estudos sistemáticos sobre o sono e muito tenha avançado nesse sentido, mesmo com o advento da eletrofisiologia a partir da década de 1930, as interpretações místicas ainda persistem.

Da Grécia antiga até o século XXI d.C. muitas teorias surgiram para explicar o sono. Acreditava-se, por exemplo, que o estado natural do organismo era o sono. Assim, os indivíduos acordariam para caçar, se alimentar etc. Com a Revolução Industrial essa noção se inverteu e passou-se a acreditar que o estado natural do homem (e, assim, de qualquer animal) era a vigília. O homem dormiria para gozar do merecido descanso. É difícil afirmar que o estado natural do organismo seja o sono ou a vigília; porque provavelmente ambos são estados naturais. Ou seja, o que realmente é natural é o ciclo vigília-sono. Dormir é importante (o maior período de vigília humana já registrada é de 11 dias) e despertar também o é (um indivíduo que permanecesse dormindo indefinidamente e sem cuidados, morreria em pouco tempo).

O estudo experimental do sono começou no século XIX com as manipulações do limiar auditivo de despertar realizadas por Ernst Kohlschüter na Alemanha (Timo-Iaria, 2000). Na década de 1870, o pioneiro estudo realizado por Richard Caton , revelou a existência de impulsos elétricos advindos da superfície craniana de animais. Tal fato possibilitou, em 1930, a invenção do eletroencefalógrafo pelo alemão Hans Berguer (Andersen e cols., 2001). Após tal advento, foi possível o estudo experimental sistemático sobre o ciclo vigília-sono.

A eletrofisiologia é o principal meio de estudo do ciclo vigília-sono, tanto em humanos quanto em outras espécies. Técnicas de imagem e tarefas comportamentais aliadas à eletrofisiologia fornecem valiosas informações a respeito da dinâmica do ciclo vigília-sono e melhor compreensão desse ciclo circadiano (ciclos de aproximadamente 24 horas).

Page 213: Livro CI 2007

  205

Além da fisiologia normal do próprio dormir e dos fenômenos que o acompanham (como os sonhos), os processos patológicos ajudam também a compreender a função biológica do sono. Uma das abordagens mais comuns no estudo de uma função consiste na retirada da mesma. Os sintomas decorrentes podem indicar as funções desempenhadas pelo órgão e/ou sistema (Suchecki, 2000).

Atualmente o estudo do sono é composto de dados clínicos e principalmente experimentais produzidos por equipes multiprofissionais. Há laboratórios especializados no estudo do sono e mesmo institutos inteiros dedicados a esta finalidade. Evidentemente, há interesses industriais associados à pesquisa da fisiologia do sono (fármacos e equipamentos). Com essa realidade de grande interesse clínico e, conseqüentemente, de grande aporte financeiro, o contínuo desenvolvimento de modelos animais e de experimentos com o uso combinado de técnicas comportamentais, farmacológicas e eletrofisiológicas é essencial para o avanço nas pesquisas de sono.

A B Figura 1: A) Eletroencefalógrafo Siemens® usado por Berger na década de 30. B): Eletroencefalógrafo Nihon-Koden® utilizado atualmente para o estudo do ciclo

vigília-sono. Filogênese e ontogênese Não se sabe com exatidão em quais espécies o sono está presente, mas não há

dúvidas de que os homeotérmicos dormem (Bear, Connors e Paradiso, 2002). Se nos basearmos no critério funcional (imobilidade) aplicado para os vertebrados, pode ser até que todos os animais durmam, inclusive os invertebrados.

Abelhas, baratas e escorpiões apresentam ciclos ultradianos (ciclos menores do que 20 horas) de atividade-quietude, o que pode ser equivalente ao ciclo vigília-sono de mamíferos. As abelhas, que passam o dia polinizando, construindo a colméia, produzindo mel e procriando, atravessam a noite com períodos de imobilidade (Nascimento, Gurgel e Maracajá, 2005). Escorpiões diminuem a responsividade a estímulos externos em determinados períodos e as baratas, se privadas do período de quietude por estimulação mecânica, apresentam períodos maiores de inatividade após o intervalo de estimulação (Tobler, 1996), como uma espécie de rebote, efeito observado em mamíferos privados de sono.

Evidências de que peixes têm sono dessincronizado não estão estabelecidas (Peyrethon, Dusan-Peyrethon, 1967), mas o estado funcional de sono foi inferido já a partir da observação feita por Aristóteles de que eles podem ser presas fáceis quando também não respondem a apresentação de alimentos (Timo-Iaria, 2000).

Não há consenso em relação a dados eletrofisiológicos que evidenciem sono em anfíbios. Ainda assim, já fora descrito imobilidade com aumento do limiar a estímulos desencadeadores de respostas de defesa em rãs, sapos e salamandras (Timo-Iaria, 2000).

Répteis, de um modo geral, também alternam períodos de grande atividade com períodos de relaxamento e imobilidade. Estudos eletrofisiológicos mostram a presença de atividade espiculada durante esses intervalos de quietude em algumas espécies, como crocodilos e lagartos (Peyrethon; Dusan-Peyrethon, 1969 apud Timo-Iaria, 2000).

Depois dos mamíferos, os ciclos das aves são os mais estudados. O ciclo de sono das aves caracteriza-se pela alternância do sono sincronizado, no qual há presença de fusos (Zepelin, 1990), com o sono dessincronizado (5% a 10% do sono total).

Page 214: Livro CI 2007

 206 

Desde a antiguidade o principal sujeito de estudo do sono foi o homem. Não obstante, no século XX, com o inicio do estudo experimental o gato foi a espécie mais estudada até a década de 1970, quando passou a ser substituída pelo rato. Essa espécie em especial é a escolha na maioria dos estudos sobre sono, mas há relatos sobre o ciclo vigília-sono de aproximadamente 100 espécies de mamíferos incluindo cetáceos, bovinos, eqüinos entre outros.

A expressão do sono ao longo da vida de um indivíduo se modifica bastante. Embora haja poucos estudos, sabe-se que, de um modo geral, mamíferos dormem cada vez menos ao longo da vida. Uma hipótese para esse fato seria uma maior necessidade de sono nos períodos iniciais de vida em função da estruturação inacabada do sistema nervoso. Pode ser que o sono favoreça a formação de novas sinapses, a mielinização dos axônios e a estruturação de matrizes extra-celulares. A forma como o sono poderia auxiliar nesse processo permanece sem resposta.

Sabe-se que a duração de um ciclo de sono é diretamente proporcional ao tamanho do animal. Assim, quanto maior o animal, maior a duração de cada ciclo. Por exemplo: um ciclo de sono pode durar cerca de 2 horas no elefante, 30 minutos no gato, 10 minutos no rato e 5 minutos no camundongo.

Estudo do Ciclo Vigília-Sono em Ratos Os ratos possuem hábitos noturnos; portanto, sua quantidade de sono total é maior

durante o dia (cerca de 70%) do que durante a noite (cerca de 30%). Em animais com alta vulnerabilidade como os ratos, ocorrem no final de cada ciclo breves despertares. Tal fato deve-se a um mecanismo adaptativo de defesa contra os animais predadores.

A divisão das fases do sono baseia-se em critérios eletrofisiológicos como sincronização, dessincronização, freqüência e morfologia das ondas eletrofisiológicas. Podemos sistematizar o ciclo vigíla-sono dos ratos da seguinte forma:

• vigília atenta: dessincronização cortical, ritmo teta hipocampal irregular, intenso comportamento exploratório;

• vigilia relaxada: ondas sincronizadas intercaladas com curtos períodos de dessincronização, movimentação reduzida;

• sono sincronizado fase I: caracterizado pela presença de fusos do sono;

Figura 2: Eletroscilograma de 20 segundos de um animal epiléptico. Elétrodos: Córtex Esquerdo e Direito (Área parietal bilateral), Hipocampo dorsal bilateral, músculos trapézios, rostro e epicantos oculares (Paxinos e Watson, 1997).

• sono sincronizado fase II: presença de ondas delta mescladas com fusos do sono; • sono sincronizado fase III: prevalência de ondas delta; • sono pré-paradoxal: presença de fusos corticais e ondas teta hipocampal • sono dessincronizado: dessincronização cortical, presença de ondas teta

hipocampal e atonia muscular.

Page 215: Livro CI 2007

  207

Figura 3: Eletrocilograma de 25 segundos de um rato epiléptico.

Córtex Esquerdo e Direito (Área parietal Bilateral), Hipocampo dorsal bilateral, músculos trapézios, rostro e epicantos oculares (Paxinos e Watson, 1997).

Figura 4: Eletroscilograma de 20 segundos de um rato normal. Córtex Esquerdo e

Direito (Área parietal Bilateral), Hipocampo dorsal bilateral, músculos trapézios, rostro e epicantos oculares (Paxinos e Watson, 1997).

Considerações finais A compreensão do sono, apesar de existirem muitas lacunas a respeito, tem se

desenvolvido de forma significativa. O conjunto de conhecimentos acumulados a seu respeito tem importante papel no estudo da fisiologia de várias espécies e, adicionalmente, vem ajudando inúmeros pacientes acometidos por patologias associadas ao sono.

Referências bibliográficas

Andersen, M.L.; Valle, A.C.; Timo-Iaria, C.; Tufik, S. - Implantação de elétrodos para o estudo do ciclo vigília-sono do rato. São Paulo: UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo, 2001.

Bear, M.F.; Connors, B.W.; Paradiso, M.A. - Neurociências: desvendando o sistema nervoso. 2ª ed. Porto Alegr: Artmed, 2002.

Durmer J.S.;Dinges D.F.- Neurocognitive consequences of sleep deprivation. Semin Neurol 2005 Mar; 25(1): 117-129. Kleitman, N. - Sleep and wakefulness. University of Chicago Press: Chicago, 1993. Nascimento, F.J; Gurgel, M.; Maracajá, P.B. Avaliação da agressividade de abelhas africanizadas (Apis mellifera)

associada à hora do dia e a temperatura no município de Mossoró – RN. Revista de Biologia e Ciências da Terra, 5(2), 2005, p. 1-9.

Page 216: Livro CI 2007

 208 

Paxinos G & Watson C: The Rat Brain in Stereotaxic Coordinates. Academic Press, Sidney, Australia, 1997. Peyrethon, J.; Dusan-Peyrethon, D. - Étude polygraphic du cycle veille-sommeil d'un téléoteen (Tinca tinca). C. R. Soc.

Biol. (Paris), 161, 1967, p. 2533-2537. Suchecki, D.- Privação de Sono Paradoxal. In Tufik, S. (org.) Sono: aspectos básicos. São paulo: Instituto do Sono,

UNIFESP, 2000 (mimeo) Timo-Iaria, C – Evolução histórica do estudo do sono. In Tufik, S. (org.) Sono: aspectos básicos. São paulo: Instituto do

Sono, UNIFESP, 2000 (mimeo). Timo-Iaria, C.; Negrão, N.; Schmidek, W.R.; Hoshino, K.; Lobato de Menezes, C.E.; Leme da Rocha, T. - Phases and

states of sleep in the rat. Physiol Behav. 1970 Sep;5(9):1057-62 Tobler, I. - Evidence for sleep in the scorpion and cockroach. World Fed. Sleep Research Soc. Newsletter, 4, 1996, p.

9-11. Valle, A.C.; Sameshima, K.; Ballester, G.; Timo-Iaria, C. - Amplitude and frequency modulation of tetha waves during

desynchronized sleep in the rat. (no prelo). Zepelin, H. – Mammalian sleep. In: Principles and Practice of Sleep Medicine, Kryger M.H., Roth T. & Dement W.C.

(eds), W.B. Sandres Company, pp. 69-80, 1990.

Page 217: Livro CI 2007

  209

Música e Linguagem Felipe Rodrigues ([email protected]) - Laboratório de Neurociências e Comportamento

Há mais de um século atrás, o poeta e escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) disse: “Quando as palavras fracassam, a música fala.”; e estava literalmente certo. Os avanços na neurofisiologia da música e da linguagem têm mostrado que há muitos pontos de intersecção entre os circuitos neurais envolvidos com cada uma dessas funções do nosso cérebro. A seguir, você vai saber sobre tudo isso e mais um pouco.

Um pouco de sabedoria primeiro... Dizem os sábios que é prudente escutar primeiro para depois falar. A fisiologia não

discorda disso. Uma grande prova, é que a grande maioria dos deficientes auditivos não tem problemas para falar; ainda assim, eles não falam. Falar, só é possível porque escutamos. Logo, é válido conhecer um pouco mais sobre o pequeno sistema que compõe nossa audição. Ressalta-se que pequeno é um adjetivo literal para o tamanho das estruturas envolvidas. A audição tem um peso muito importante no nosso dia-a-dia, nos permitindo interagir com o mundo ao nosso redor e com outros seres humanos e, embora alguns a considerem menos importante que a visão, seguramente a audição trabalha complementando nosso sentido visual, sendo também fundamental.

É indiscutível que somos seres visuais. Olhamos para tudo o que nos chama atenção e não dispensamos olhar para qualquer evento que seja, mesmo que sonoro (quantas vezes você já se pegou olhando para o rádio ou para os falantes ao escutar atentamente para uma música ou uma narração? Ou quantas vezes você já se virou para procurar a fonte daquele cheiro gostoso de comida ao seu redor). Mas por mais visuais que sejamos, escutar é necessário. Primordialmente, como já dito, para que possamos nos comunicar.

Mas como funciona, então, nosso aparelho auditivo? Prolongando mais uma vez a ansiedade alheia, é impossível falar sobre sistema auditivo sem um breve resumo sobre a Física por trás da condução sonora.

Um pouco de Física também... Compressões e descompressões: ondas! Tudo o que ouvimos é composto por ondas sonoras. Tecnicamente falando, sons

são ondas mecânicas longitudinais. Isso significa que eles são causados pela agitação de partículas (vibração) do meio por onde estiverem se propagando. A primeira lição disso, é que não há som na ausência de matéria, leia-se: vácuo! Esqueça aqueles filmes de George Lucas cheios de explosões no espaço. Detalhes significantes: longitudinais, no nosso caso, significa que as ondas sonoras propagam-se como visto na figura 1, compressão de moléculas, seguido de rarefação de moléculas.

Figura 1 – Representação do efeito de compressão e rarefação de moléculas, causado por ondas sonoras no ar e, abaixo, representação gráfica de ondas sonoras.

Page 218: Livro CI 2007

 210 

Abaixo na figura, podemos ver como representamos graficamente ondas sonoras,

lembrando que picos significam compressão e vales, rarefação (e não que a propagação se de por movimentos para cima e para baixo). O mais comum é pensarmos nessas moléculas como sendo moléculas de ar, mas poderiam ser também líquidos ou sólidos, inclusive a propagação é mais rápida nos sólidos, 5.100 m/s no ferro, por exemplo, enquanto que no ar é de cerca de 340 m/s. A propagação em sólidos é mais variável que no ar, de acordo com o material (e de acordo com altitudes e temperatura ambiente, no ar) e a velocidade de propagação é intermediária nos líquidos, aproximadamente 1.500 m/s em água do mar. Uma compressão + uma rarefação (ou um pico + um vale) é o que chamamos de comprimento de onda ou λ (letra grega minúscula: lambda – em verdade, comprimento de onda é definido como qualquer ciclo completo no gráfico, passando por um pico e um vale. Ver Figura 1) e veremos a seguir sua importância para o cálculo de uma das propriedades dos sons. Vale lembrar que muito raramente na natureza ouviremos qualquer som com uma curva de amplitude como a apresentada na figura 1. Sons naturais são complexos e compostos por mais de um tipo de freqüência, resultando em gráficos não totalmente regulares, produto da interação de ondas de diversas amplitudes e freqüências.

A quantidade de energia sonora presente em um som, ou a Intensidade Sonora, é medida em decibéis (dB). Decibel, assim como porcentagem, é uma escala relativa e não absoluta; nesse caso, relativa à pressão sonora. É também uma escala logarítmica e visa facilitar nosso tratamento com a pressão sonora, já que a mesma pode variar de 10-12 até 1 W/m², sendo esses, respectivamente, os limiares de audibilidade e de dor para o ouvido humano, a freqüências de cerca de 2.000 Hz (veja abaixo o conceito de freqüência). Convertendo W/m² em decibéis, fazemos com que o limiar de audibilidade seja apresentado como zero decibel e o limite de dor como 120 dB, números muito mais palpáveis para qualquer pessoa. Entretanto, alguns truques se escondem debaixo dessa escala logarítmica. O principal deles, é que a pressão sonora dobra a cada três decibéis a mais; em outras palavras, precisamos dobrar o trabalho realizado para conseguir elevar em três dB a intensidade sonora gerada.

Seja freqüente, quero dizer, paciente... Uma propriedade importante dos sons, especialmente do ponto de vista biológico, é

a freqüência de uma onda sonora. Freqüência é o número de comprimentos de onda ocorridos em um segundo. E é expressa em Hertz (Hz). É importante saber sobre essa propriedade por dois motivos. Primeiramente, porque não ouvimos todos os comprimentos de onda. O aparelho auditivo humano está limitado a ouvir freqüências entre 20 Hz e 20.000 Hz. Tal limitação é causada por características implícitas a um órgão do sistema auditivo chamado cóclea, mais especificamente, por estruturas presentes em uma membrana, chamada membrana basilar, dentro da cóclea, que não vibram com sons abaixo de 20 Hz ou acima de 20.000 Hz. Trataremos desse assunto com detalhes mais adiante.

Em segundo lugar, porque diferentes freqüências têm diferentes propriedades quanto à propagação e reflexão. Falando em extremos, freqüências comumente chamadas de subgraves, de um até cerca de 100 Hz tem pouca reflexão, passando entre meios, como do ar para a terra diretamente e praticamente sem perda de energia. Tais freqüências implicam em consideráveis deslocamentos de massas de ar e, portanto, só podem ser produzidas por animais maiores. Por exemplo, sabe-se hoje que infra-sons (freqüências abaixo de 20 Hz) são utilizados por Tigres e Elefantes como forma de comunicação, que, no caso de elefantes, pode ser feita a quilômetros de distância. Tigres também os usam como forma de intimidar presas e alguns estudiosos chegam a afirmar que os infra-sons têm efeitos suficientes para paralisá-las.

No outro extremo, os superagudos, freqüências acima de 10.000 Hz, têm comportamento extremamente direcional e reflexivo, características que se tornam ainda mais exacerbados nos ultra-sons, freqüências acima de 20.000 Hz. O melhor exemplo para tal característica são os morcegos, que tem faixa de audição começando em 10.000 Hz e indo até cerca de 120.000 Hz. Emitindo sons acima de 50.000 Hz, os morcegos podem perfeitamente voar no escuro total, conseguindo desviar dos obstáculos presentes em seu habitat. Eles utilizam-se do que chamamos de sonar e tal vôo é possível pela

Page 219: Livro CI 2007

  211

reflexão e direcionabilidade dos ultra-sons, permitindo que eles identifiquem com precisão a posição dos objetos no espaço de acordo com as reflexões geradas no ambiente.

Por último, ressalta-se que os limiares de audição para as diferentes freqüências não são iguais. A figura 2 mostra como isso se comporta no homem:

Figura 2 – Limiares de audibilidade e dor para o ouvido humano em todo o espectro de audição.

Note que é preciso pouco mais de zero dB para ser possível alguma percepção sonora em freqüências em torno de 2.000 Hz (faixa de freqüência altamente relacionada com nossa voz); no entanto, a percepção sonora de freqüências tão baixas quanto no extremo de nossa audição, cerca de 20 Hz, dá-se somente com pressões sonoras acima de 70 dB.

Sons naturais e sons musicais... Não especificamos ainda, propositadamente, o que faz música e o que faz barulho.

Há diferenças. A freqüência de um som, sozinha, não nos diz que tipo de som é aquele. Há sons que entendemos como sendo ruídos, há sons que entendemos como vozes e há sons que classificamos como musicais. Em verdade, qualquer proposta de classificação poderá ser controversa. Há quem ouça música em latas. E há quem diga que um determinado músico só faz ruídos. Qual é o ponto de equilíbrio então?

Talvez um fator crucial para tal diferenciação seja o ritmo. Afinal, uma lata batendo sempre terá som de lata. Mas nem todo som de lata possuirá ritmo. Esse é um fator crucial em música. Cabe nesse momento falarmos também sobre periodicidade. Os sons utilizados em música são sons que chamamos de periódicos – sons que mantém suas características ao longo do tempo. A melhor forma de pensarmos em um som periódico é pensando em uma corda de um violão vibrando. Tal vibração se mantém constante e em uma mesma freqüência ao longo do tempo. Ruídos, por outro lado, são caracterizados por sons não periódicos, que mudam em freqüência e amplitude constantemente, não resultando em um gráfico perfeito como o da figura 1.

Entretanto, como já vimos em física, nenhum movimento ondulatório é composto apenas por sua freqüência fundamental, mas por vibrações secundárias, terciárias e outras. Isso faz com que, de fato, nenhum instrumento provoque uma onda como na figura 1, mas as ondas serão o resultado da composição de todas essas vibrações, ainda assim periódicas e com um tom fundamental. É exatamente por esse fator que conseguimos distinguir uma nota Lá vinda de um piano, de um trompete ou mesmo da voz. Todas elas terão como freqüência fundamental 440 Hz (considerando-se notas da mesma oitava musical), mas é devido às diferentes freqüências de outras ordens (2ª, 3ª, 4ª...) que conseguimos distinguir as diferentes fontes. Esse é o conceito de timbre.

Feitas estas considerações, podemos continuar nossa discussão partindo para como funciona nossa audição propriamente e como nosso cérebro interpreta vozes, ruídos e músicas.

Page 220: Livro CI 2007

 212 

Enfim... Orelhas!2 Você já transduziu hoje? O homem parece excelente ao ser capaz de construir auto-falantes e microfones,

tecnicamente conhecidos como transdutores. Mas ele nada mais fez que copiar uma tecnologia presente na natureza. Nossos Tímpanos! Um transdutor é um dispositivo capaz de receber um tipo de energia e transformá-la em outra. É exatamente para isso que nossas orelhas estão aí. Elas captam a energia sonora proveniente do ambiente e a transformam em energia elétrica - impulsos nervosos que atingirão nosso cérebro para processamento e interpretação daquele estímulo. Mas enfim, exatamente, como ouvimos? Na figura 3, vemos os componentes envolvidos com essa transdução.

Figura 3 – Estrutura interna dos órgãos da audição e equilíbrio. Destaque para estruturas responsáveis pela audição

Para fins didáticos, dividimos nossa orelha em três partes: orelha externa, orelha média e orelha interna. A energia sonora no ambiente chega até ao Tímpano pelo canal auditivo, parte da orelha externa. Essa energia, com todas as suas características de freqüência e intensidade, é transmitida pelo tímpano aos ossículos da orelha média (martelo, bigorna e estribo), que farão a transmissão para a janela oval na cóclea, integrantes da orelha interna. O processo de passagem pela orelha média não é, em absoluto, puro. A interação existente entre os três ossículos causa uma amplificação de até 30x na energia sonora que recebemos. Isso é um ganho de aproximadamente 15 dB em intensidade – uma pressão sonora cinco vezes maior.

A cóclea é a estrutura onde toda a mágica da audição e transdução acontece. A cóclea, como vista nas Figuras 3 e 4, é uma estrutura tubular enrolada sobre si mesmo, com três câmaras internas.

2 Nota: Pela nomina anatomica atual, orelhas, e não ouvidos, é o termo correto para descrever as estruturas responsáveis pela audição. A estrutura comumente conhecida por orelha tem por nome correto Pavilhão auditivo.

Page 221: Livro CI 2007

  213

Figura 4 – Corte transversal da Cóclea, esquemático, mostrando a organização interna.

As câmaras são chamadas escalas e são preenchidas por líquidos de composições específicas. Fazendo uma representação esquemática do tubo da cóclea, veríamos algo como na Figura 5:

Figura 5 – Representação esquemática do tubo da cóclea, com as principais estruturas representadas.

Quando um som causa vibração das estruturas da orelha, essa vibração acaba chegando ao estribo que está conectado à Janela Oval da cóclea. A vibração da janela oval é então transferida para os líquidos internos da cóclea e para as escalas vestibular e média, mais especificamente (a Membrana de Reissner é fina e desprezível para separar as vibrações entre elas. Sua função é unicamente de garantir composições iônicas diferentes entre as duas câmaras.) e, então, à membrana basilar. Como a cóclea é um tubo inextensível, a Janela Redonda funciona como uma válvula de escape, permitindo a movimentação dos líquidos internos e vibração nas membranas.

Page 222: Livro CI 2007

 214 

Figura 6 – Regiões da Cóclea para sensibilidade a diferentes freqüências.

Como já dito, a membrana basilar é a responsável pela nossa amplitude de audição. Estruturas fixas a ela, chamadas Fibras Basilares (não representadas nas figuras) tem tamanhos progressivamente variáveis ao longo da cóclea. Essas estruturas fazem com que diferentes regiões da membrana (e da cóclea) sejam mais sensíveis a uma ou outra freqüência. Pela Figura 6, podemos notar que sons agudos, altas freqüências, são melhores percebidos no início da cóclea. Sons médios, no meio dela. E sons graves, baixas freqüências, no final da cóclea, próximo à região chamada de Helicotrema (Figura 5). Tais constatações não significam que um som fará com que só aquela região vibre. Pelo contrário, todo som causará com que a membrana basilar como um todo vibre. Mas essa vibração será muito pequena fora do ponto ótimo de vibração, não chegando nem mesmo a causar potenciais de ação. Vale lembrar também, como já dito, que sons puros são raros na natureza e um mesmo som, portanto, causará a vibração de partes distintas da membrana basilar.

A estrutura chamada de Órgão de Corti é a responsável pela transdução de fato de energia sonora em impulsos nervosos. É nele que se encontram células receptivas específicas que iniciam a despolarização que chegará ao cérebro, conduzida inicialmente pelo nervo coclear. Detalhes da organização do Órgão de Corti podem ser vistos na Figura 7.

Figura 7 – Órgão de Corti.

Page 223: Livro CI 2007

  215

A Membrana Tectorial é uma estrutura rígida e fixa. A vibração da membrana basilar acaba causando o deslocamento de todo o Órgão de Corti; os cílios das células ciliadas, no entanto, acabam por não se deslocar por estarem imersos e fixos na membrana tectorial, dando a sensação de movimento em relação à célula e causando a despolarização. O mecanismo para tal é mecânico, por abertura de canais de Cálcio devido ao estiramento da parede dos cílios. Uma vez causados potencias que sejam suficientes para passarem aos neurônios seguintes, integrantes do nervo coclear, a mensagem vai em direção ao córtex.

Orelhas não são nada sem um encéfalo... Primeiro, uma parada rápida Muito bem. Estamos entendidos quanto à nossas orelhas. Sem elas, nosso encéfalo

estaria isolado do que acontece no mundo sonoro exterior. Mas tendo feita a transdução de energia sonora em elétrica (impulsos nervosos) – agora é a vez dele.

Os impulsos elétricos que saem da cóclea, não atingem diretamente o cérebro. Veja na Figura 8. No meio do trajeto até lá, os estímulos passam por algumas sinapses. Resumidamente, o primeiro ponto de sinapse é logo que as fibras entram na medula espinhal, em sua porção terminal superior. Daí, as fibras secundárias dirigem-se ao núcleo olivar superior, onde algumas fibras fazem nova sinapse. Subindo pela ponte, algumas poucas fibras param no Núcleo do Lemnisco Lateral e, enfim, a maioria delas chega ao colículo inferior, no mesencéfalo, onde todas (ou quase todas) fazem sinapse e, por último, chegam ao Núcleo Geniculado Medial (NGM), onde todas sofrem nova sinapse. Só então, os estímulos sonoros chegam ao cérebro, formando o chamado córtex auditivo (Figura 9).

Page 224: Livro CI 2007

 216 

Figura 8 – Esquema representando o trajeto percorrido pelos impulsos nervosos provenientes da cóclea até chegar até chegar ao Córtex Auditivo Primário no Cérebro.

O córtex auditivo Como já sabemos, nosso encéfalo é divido em lobos, com suas subáreas, e em giros

e sulcos. Nosso foco de interesse nesse momento concentra-se na região superior do Lobo Temporal (Figura 9). É nessa região que se encontra nosso Córtex Auditivo Primário. Todas as fibras que saem do NGM chegam até essa região do córtex. Dela, então, os estímulos partem para o córtex auditivo de associação, também chamado de Córtex Auditivo Secundário, que também recebe algumas fibras intra-talâmicas, de regiões vizinhas ao NGM. Nesse momento, tais informações serão processadas e integradas com outras regiões do cérebro. No entanto, nos deparamos com alguns problemas no meio de todo esse caminho.

Page 225: Livro CI 2007

  217

Figura 9 – Localização do córtex auditivo no cérebro.

Em primeiro lugar, precisamos novamente pensar em como transmitir diferentes freqüências ao cérebro. Falamos que existem diferentes regiões da cóclea para diferentes freqüências sonoras captadas no ambiente. Isso é chamado “Princípio de Localização”. Tais informações são fielmente transmitidas ao córtex - uma grande quantidade de fibras nervosas sai da cóclea, cada uma levando a informação de uma dessas regiões. No córtex auditivo primário, diferentes grupos de neurônios serão ativados para essas diferentes freqüências. Tal estruturação da Cóclea e do Sistema Nervoso Central resolve nosso primeiro problema. Em segundo lugar, precisamos entender como o cérebro entende as chamadas oitavas musicais. Tais freqüências, ainda que diferentes em valor de freqüência (uma grave, outra aguda), são percebidas como mesma nota musical pelo cérebro. Tal funcionamento é possibilitado por grupos de neurônios que são ativados pela estimulação de diferentes freqüências, porém, de mesmo tom fundamental (as oitavas musicais). Portanto, um Lá grave ou agudo, estimulará um mesmo grupo de neurônios. Esses dois fatores em conjunto, nos permitirão ter a percepção de timbre.

Feitas tais estimulações no córtex auditivo primário, as associações cabíveis serão realizadas no córtex auditivo secundário. Agora, regiões específicas lidarão com estímulos sonoros específicos. Podemos então partir para os assuntos mais complexos e que nos interessam: fala e música. Cabe adiantar a primeira distinção encontrada entre essas duas propriedades do nosso cérebro, que é fundamental e mais global. Na grande maioria das pessoas, fala tem suas funções concentradas no hemisfério esquerdo do nosso cérebro, enquanto que a música está intimamente associada ao hemisfério direito. Veremos as implicações de tais constatações adiante.

Fala “A palavra é metade de quem a pronuncia e metade de quem a ouve.” – Michel de

Montaigne A fala é uma característica exclusiva dos seres humanos, pelo menos como a

conhecemos. Não há quem ainda tenha provado que animais falam, tampouco, que não falam. Vejamos as áreas envolvidas com essa peculiar função humana (Figura 10).

Page 226: Livro CI 2007

 218 

Figura 10 – Mapa cerebral de regiões com funções específicas e conhecidas, enfatizando as Áreas de Broca e de Wernicke, associadas à produção e compreensão da fala, localizadas no hemisfério esquerdo de 95% da população.

A parte posterior do córtex auditivo secundário é conhecida como Área de Wernicke e é nessa região do córtex auditivo de associação que será processada a linguagem falada, possibilitando sua compreensão. É uma região crucial do encéfalo, pois muito do nosso entendimento sobre o mundo está baseado na linguagem humana e, portanto, perdas nessa região implicam em perdas intelectuais maiores. Apenas para exemplificar, quando lemos um livro não memorizamos as imagens das palavras nas páginas, mas sim o significado passado por tais palavras. Tal conversão (interpretação) é realizada por essa região.

A segunda região mais importante envolvida com a fala é a Área de Broca e é nessa região que são processados os impulsos necessários para a produção da fala. A área de Broca faz parte da região posterior do córtex frontal anterior (ou pré-frontal), logo abaixo e adiante do córtex motor. Essa área é responsável pela palavra falada e pessoas com lesões nessa região perdem a capacidade de falar, ainda que entendam a fala dos outros muito bem.

Uma última estrutura importante para a fala é o Fascículo Arqueado, que é um trato de fibras brancas que fazem a conexão entre a Área de Wernicke e a Área de Broca. Lesões nesse trato fazem com que os indivíduos – apesar de serem capazes tanto de ouvir e compreender a fala, como produzir frases completas e com significado muito bem – sejam incapazes de responderem corretamente a perguntas feitas e manter um diálogo, pois a conexão entre a interpretação (Wernicke) e a fala em si (Broca), está perdida. Maiores detalhes sobre a fala serão tratados no capítulo Neurofisiologia da Linguagem.

Música “Não sei uma nota de música. Nem preciso.” – Elvis Presley Se realmente Elvis Presley sabia alguma nota de música ou não, provavelmente

nunca saberemos. Mas é certo que muitos professores de canto concordam com ele. Para cantar, basta ouvir.

Neurofisiologicamente, ouvimos notas e oitavas musicais porque a estruturação do nosso sistema auditivo é organizada de forma propícia a tal. A descoberta dos neurônios que disparam estimulados por tons ou oitavas musicais não é uma coincidência. É uma mostra de que nós fizemos a classificação de notas musicais de acordo com aquilo que nosso cérebro está apto a ouvir. E assim cantamos e afinamos nossos instrumentos.

Afinal... Pra que existe música? Há vantagens evolutivas nela? O autor Steven Pinker nos ajuda nessa busca. Ele estabelece algumas razões pelas quais a música possa existir. E ousa dizer: “Eu suspeito que a música seja um ‘bolo de queijo’ auditivo, uma

Page 227: Livro CI 2007

  219

confecção rara artesanalmente construída para agradar os pontos sensíveis de pelo menos seis de nossas faculdades mentais”

O primeiro aspecto levantado por Pinker é a própria fala. O autor defende que a letra presente nas músicas (e também os paralelos que ainda serão apresentados) faz com que ela ative circuitos neurais “emprestados” da fala e, em particular, da prosódia.

Lembrando que a ativação dos circuitos neurais frontais relacionados com a música acontece predominantemente no hemisfério direito. A pesquisadora Isabelle Peretz é quem relata dois casos que demonstram uma dupla dissociação entre linguagem e música que comprova tal afirmação. O primeiro deles de um compositor que sofreu uma lesão no hemisfério cerebral esquerdo aos 57 anos, perdendo, então, a capacidade de falar e compreender a fala, mas que continuou a compor até sua morte quatro anos mais tarde – um caso de afasia sem amúsia. O segundo, de uma mulher que teve lesões bilaterais no córtex auditivo e no córtex frontal direito como conseqüência de cirurgias para tratar de aneurismas; ela perdeu a capacidade de aprender novas músicas, cantarolar uma melodia qualquer e até mesmo de se lembrar das músicas que conhecia. Porém, sua fala, memória (excetuando-se aquela para música) e inteligência estavam intactas – um caso de amúsia sem afasia.

O segundo aspecto refere-se ao circuito neural ativado pela música, relacionado à análise auditiva do ambiente. Pinker compara a audição à visão, dizendo que assim como recebemos uma série de estímulos luminosos que precisam ser diferenciados e separados (uma pessoa de um fundo de árvores, por exemplo), precisamos distinguir os diversos estímulos sonoros que nos são apresentados, por exemplo, separar um solista de uma orquestra, uma voz em um ambiente cheio de ruídos, uma vocalização animal em meio a uma floresta cheia de ruídos. O autor defende que nosso ouvido detecta cada freqüência e envia cada uma delas ao sistema nervoso, que as associa, percebendo-as como um tom complexo. “Presumivelmente o cérebro as associa para construir nossa percepção da realidade do som”. Isto é, a interpretação em tons complexos provavelmente se dá pelo fato de que sons naturais não ocorrem em freqüências puras, mas como tons complexos; logo, o sistema nervoso associa novamente as diferentes freqüências que constituem um som oriundo de um mesmo ponto no espaço e ao mesmo tempo porque são, em verdade, uma mesma fonte sonora. Nesse sentido, “melodias são agradáveis ao ouvido pela mesma razão que linhas simétricas, regulares, paralelas ou repetitivas são agradáveis aos olhos”. O sistema nervoso, então, se utiliza desse circuito neural para fazer a interpretação das melodias e harmonias presentes na música.

O terceiro aspecto defendido por Pinker é a emoção trazida pela música. Baseando-se numa sugestão de Darwin de que a música surgiu no homem devido às chamadas de acasalamento de nossos ancestrais, o autor defende que uma série de “chamadas emocionais” (como murmurar, chorar, rir, resmungar, gritar) tem um apelo acústico próprio; “é provável que melodias evoquem fortes emoções porque sua estrutura assemelha-se a chamadas emocionais de nossa espécie”. A música, então, traria diversos sentimentos à tona semelhantemente a essas expressões emocionais.

Outro aspecto apontado por Pinker é a seleção de habitat. Fazendo mais uma comparação entre o campo visual e auditivo, o autor ressalta que prestamos atenção a uma série de características visuais que sinalizam segurança, insegurança ou mudança de habitat, como vistas distantes, paisagens verdejantes, nuvens (que trazem chuva) ou pôr-do-sol. Ele então escreve:

“Talvez nós também prestemos atenção a características do mundo auditivo que sinalizem segurança, insegurança ou mudança de habitat. Trovões, ventos, água correndo, pássaros cantando, rosnados, passos, corações e galhos batendo, todos têm efeitos emocionais, presumivelmente porque eles revelam eventos dignos de atenção no mundo”.

A música também interferiria com tais circuitos neurais, de tal forma que ela altera nossas emoções e nossa noção de segurança ou insegurança.

O quinto aspecto ressaltado por Pinker é o controle motor. O ritmo é um componente universal da música e até mesmo único em algumas culturas. Tal ritmicidade que nos faz dançar, bater palmas, balançar, e acompanhar a música, certamente estimula nosso sistema motor.

O último aspecto defendido pelo autor é um “algo a mais” sem explicação conhecida e que ele coloca como sendo, possivelmente, desde um acidente do funcionamento

Page 228: Livro CI 2007

 220 

conjunto de diversos circuitos neurais até uma ressonância entre disparos neuronais e ondas sonoras. Seja como for, a música tem estreitas e importantes relações com o funcionamento de diversos circuitos neurais.

Música e Linguagem Sintaxe Tratando agora das sobreposições existentes entre música e linguagem, vamos nos

surpreender com o que antes tratávamos como sendo dois aspectos completamente diferentes. Um primeiro ponto que vale a pena ser comentado, é a sobreposição existente no processamento da sintaxe. Sim, música possui também sintaxe e os circuitos neurais que fazem o processamento dessa sintaxe musical seriam os mesmos utilizados para a fala. As áreas envolvidas seriam regiões do lobo frontal frontais.

Semântica Koelsch e colaboradores mostraram que “a música pode não apenas influenciar o

processamento de palavras, mas ela pode também pré-ativar representações de conceitos, sejam eles abstratos ou concretos, independente do conteúdo emocional desses conceitos”; em outras palavras, assim como a linguagem, a música pode facilitar a compreensão de significados (em palavras e, provavelmente, também contextos). Na pesquisa realizada pelos autores, palavras aleatórias foram apresentadas aos indivíduos após eles terem ouvido ou uma frase ou um trecho musical. Resultados obtidos com testes específicos de eletroencefalografia mostraram dados semelhantes para a ativação resultante causada pela música ou pelas frases.

Ritmicidade Há ainda mais: paralelos entre a rítmica da linguagem e a da música. A análise do

ritmo da linguagem e da música em subcomponentes e a comparação entre os domínios revelam que o agrupamento rítmico é semelhante na linguagem e na música, mas não sua estrutura periódica (que é mais organizada na música). Novas evidências ainda sugerem que a rítmica de linguagem de uma cultura deixa impressões na sua rítmica musical. Isto é, diferenças na rítmica da linguagem refletem-se na rítmica musical nas diferentes culturas. Novos estudos transculturais permitirão afirmar se essas evidências se confirmam. Esses achados reforçam a noção de que a música possui tanto sintaxe quanto semântica e seja, possivelmente, como a linguagem, relativamente inerente ao homem e não um simples produto da cultura.

Timbre Trabalhos recentes relacionados a timbre mostram que o processamento dessa

propriedade do som envolve redes neurais próprias, incluindo regiões anteriores e posteriores do giro temporal superior, e, possivelmente, áreas frontais também (o que parece bastante claro, dada a necessidade de memória operacional – ver no tópico seguinte explicação – à manutenção de informações sobre qualquer som percebido). Uma revisão sobre esses trabalhos parece apontar que o timbre musical é uma propriedade multidimensional do som que nos permite distinguir instrumentos musicais (e certamente também vozes).

A evolução da discriminação de timbres certamente não é produto da necessidade de reconhecimento de diferentes instrumentos musicais. O reconhecimento de tonalidades (característica gerada por vibrações sonoras periódicas) é importante para reconhecer diferentes vocalizações de animais na natureza; elas seriam uma boa indicação para distinguir as vocalizações de outros ruídos. As tonalidades e o timbre certamente serviriam também à identificação de vozes (é sabido, por exemplo, que mesmo bebês recém nascidos discriminam a voz da mãe de outras vozes). Relativamente à música, a capacidade de reconhecimento de timbre seria utilizada no reconhecimento de diferentes instrumentos musicais e as tonalidades no reconhecimento de diferentes notas.

Diante de tais paralelos, torna-se praticamente inegável que a música está presente no cotidiano humano mais do que apenas por prazer ou questões culturais. A organização de nosso sistema nervoso e as implicações que as estimulações musicais trazem nos mostra que música não é um acidente, mas uma propriedade específica de nosso sistema nervoso central e que caminha lado a lado com a linguagem na vida humana.

Page 229: Livro CI 2007

  221

O modelo declarativo/procedimental de Ullman Um pouco sobre memória Não é objetivo deste capítulo falar sobre memória. Entretanto, pelo menos um pouco

se torna necessário para que possamos apresentar o modelo de Ullman. Basicamente, há três tipos principais de memória:

Memória declarativa; Memória não declarativa ou de procedimentos; Memória operacional.

A memória declarativa seria responsável por armazenar em nossos cérebros fatos e eventos ocorridos em nossa vida. É devido a esse sistema que você se lembra de sua(seu) primeira(o) namorada(o), daquela balada que foi espetacular, do primeiro beijo e do dia em que passou no vestibular, inclusive onde estava e o que estava fazendo. Por esses exemplos, já podemos perceber uma característica fundamental desse tipo de memória, que é a retenção com apenas um evento ocorrido, sem a necessidade de que algo aconteça repetidas vezes para que nos lembremos.

A memória de procedimentos (não declarativa) é a memória relacionada às nossas habilidades. Graças a ela que aprendemos a andar de bicicleta, dirigir um carro, desenhar, escrever, falar, andar e tantos outros exemplos; mas, perceba, sempre relacionados a realizar algo ou desenvolver uma habilidade. Você também percebeu a característica oposta ao tipo de memória anterior? Várias e várias tentativas até que se consiga realizar algo com desenvoltura.

Vale ainda ressaltar sobre esses tipos de memória que a declarativa é “consciente”. Precisamos pensar para que consigamos nos lembrar dos eventos. Em outras palavras, envolve uso de atenção. Já a memória de procedimentos não necessita de atenção para que ela se manifeste. Após o treino necessário, podemos executar uma tarefa sem atentarmos para a mesma.

Por último, temos a memória operacional. O mais simples exemplo para esse tipo de memória é dizer que ela funciona de forma muito semelhante à memória RAM do seu computador. Ela armazena aquilo que estamos fazendo e trabalhando em um dado momento, como o texto que você lendo, para que possa prosseguir com a leitura do mesmo e compreendê-lo ou com uma série de dígitos para que seja possível realizar uma “conta de cabeça”. Logo se percebe a grande limitação desse tipo de memória. Na média, conseguimos guardar cerca de sete itens ao mesmo tempo nela. E ela está intimamente relacionada com atenção. Após desviarmos nossa atenção para outro fato ou tarefa, a tendência é que esqueçamos o que antes estava na nossa memória operacional.

Agora que sabemos mais um pouco sobre memória, vamos então entender a proposta de Ullman.

O modelo declarativo/procedimental O pesquisador Michael T. Ullman escreveu em 2001 o trabalho “The

declarative/procedural model of lexicon and Grammar” onde defende a idéia de que dois sistemas de memória trabalham em conjunto para a produção da língua falada.

Segundo ele, o leque de possibilidades de palavras que usamos, o léxico mental estaria intimamente ligado à memória declarativa. Falamos porque nos lembramos das palavras. Por outro lado, a construção de nossas frases, a gramática mental, estaria intimamente ligada à memória de procedimentos. Falamos porque aprendemos a construir frases. Então, a fala seria o produto constante desses dois sistemas de memória. Nas palavras de Ullman:

“A computação de uma forma morfologicamente complexa envolve a ativação paralelamente complexa de dois sistemas; o sistema declarativo tenta computar uma forma na memória associativa, enquanto a memória de procedimentos tenta computar uma regra [gramatical] em tempo real.”

Mas e a música? A proposta de Ullman é bem completa e tem bases sólidas para seu funcionamento.

Maiores detalhes podem ser encontrados em seu trabalho. E diante de outra conclusão de Ullman e diante dos paralelos já apresentados entre música e linguagem, torna-se muito claro que tal uso concomitante dos dois sistemas de memória é perfeitamente cabível também para a música:

Page 230: Livro CI 2007

 222 

“É importante notar que o modelo não assume que todas as partes dos dois sistemas de memória servem a linguagem. Pelo menos no sistema de procedimentos e, provavelmente, também no sistema declarativo, assume-se que circuitos paralelos tenham funções computacionais análogas na linguagem e em outros domínios. Similarmente, o modelo não assume que esses dois sistemas de memória são os únicos que estão sob o léxico e a gramática. Outras estruturas neurais e outros componentes cognitivos ou computacionais podem ser importantes para ambas as capacidades.”

Logo, nada impede que a música seja regida por regras semelhantes: A memória declarativa seria crucial para a memorização de tons, notas e mesmo músicas e cifras, enquanto a execução musical, seja a execução de um instrumento ou o canto, seria função da memória de procedimentos. Tal modelo pode perfeitamente ser transportado para a música. O funcionamento de tal sistema precisaria ser ainda todo descrito, mas parece muito lógico que os sistemas funcionem com o sistema não declarativo, de execução musical, sendo influenciado pelo sistema declarativo, a música em suas notas em si.

Ainda, tanto quanto na fala ou talvez até mesmo mais quê, a memória operacional se faz presente com grande peso, sendo importante para o planejamento da execução musical e atividade motora coordenada e também para a tradução da leitura musical em movimentos, um processo cognitivo provavelmente mais complexo que a fala, dada a quantidade e tamanho dos grupos musculares envolvidos. Fatos como o desenvolvimento de ouvido absoluto (característica pela qual uma pessoa pode se tornar capaz de apontar, sem referências externas, qual é uma nota musical), e também o melhor desempenho em tarefas de habilidade espacial apontado em músicos, nos levam à possibilidade de que o treino musical intensivo leve a alterações do funcionamento dos mecanismos de memória dos músicos. O estudo aprofundado e em conjunto de tais sistemas, poderá comprovar o modelo de Ullman e mostrar funcionamento semelhante para a música.

Bibliografia

Drake, C. e Palmer, C. – Skill acquisition in music performance: relations between planning and temporal control. Cognition. 2000 74:1-32.

Guyton, Arthur C. e Hall, John E. - Textbook of medical physiology. Elsevier Saunders, 11th ed. 1116 pág. Helene, A.F. e Xavier, G.F. – A construção da atenção a partir da memória. Rev Brás Psiquiatr. 2003 25(Supl II):12-20. Koelsch, S.; Kasper, E.; Sammler, D.; Schulze, K.; Gunter, T.; Friederici, A.D. – Music, language and meaning: Brain

signatures of semantic processing. Nat Neurosci 2004 Vol. 7, nº 3. Palmer, C. e Meyer, R.K. – Conceptual and motor learning on music performance. Psychol Scien, 2000 11(1):63-68. Patel, A.D. – Language, music, syntax and the brain. Nat Neurosci, 2003 6(7):674-681. Patel, A.D. – Rhythm in language and music: parallels and differences. Ann NY Acad Sci 2003 999: 140-143. Pinker, S. – The language instinct. Ed. Gardners Books, 1995. Samson, S. – Neuropsychological studies of musical timbre. Ann NY Acad Sci 2003 999:144–151 Stewart, L.; Henson, R.; Kampe, K.; Walsh, V.; Turner, R.; Frith, U. – Brain changes after learning to read and play music. Neuroimage 2003 20(1):71-83.

Page 231: Livro CI 2007

  223

Neurofisiologia da Linguagem Rodrigo Collino ([email protected]) - Laboratório de Neurociências e Comportamento “A linguagem, mais que um artefato cultural, é um instinto” (Steven Pinker)

Introdução Dentro das ciências cognitivas, o estudo da linguagem tem ganhado grande atenção

nas últimas décadas. É uma área que envolve diversos detalhes e grande complexidade, dado o emprego de técnicas desenvolvidas apenas recentemente (a partir da metade do séc. XX) em estudos neurocientíficos. Anteriormente a este período, as conclusões de médicos a cerca da neurofisiologia da linguagem eram abstraídas somente através da análise da casos clínicos, advindos de acidentes que causassem danos a áreas específicas do cérebro, o que acabava por desenvolver sequelas de cunho linguístico – na compreensão da fala, ou na produção de mesma, por exemplo. Retrocedendo mais ainda no tempo, pensava-se na Grécia Antiga que o controle da linguagem estivesse concentrado totalmente na língua do indivíduo. Assim, ao encontrar um indivíduo que, provavelmente devido a um acidende vascular cerebral (AVC), apresentasse dificuldades na dicção, era comum oferecer-lhe tratamento através de massagens em sua língua, na esperança de recobrar-lhe a fala. Atualmente, estudiosos da neurociência contam com instrumentos aguçados de avaliação da atividade cerebral, tais como fMRI, MEG, PET e ERP, a fim de correlacionar características da linguagem e regiões cerebrais específicas e seus respectivos padrões de ativação neuronal.

Neste capítulo, vamos então explorar algumas das maravilhas da linguagem produzidas pelo cérebro humano: o que a torna tão particular da espécie humana, sua lateralização e modularidade cerebral, distúrbios ocasionados pela falha em alguns de seus mecanismos, e como é possível o cérebro aprender e utilizar mais de uma língua para nossa comunicação.

A Linguagem é exclusiva do Homem? Vivemos imersos neste complexo comportamento chamado linguagem; ouvimos,

falamos, lemos e escrevemos quase que instintivamente e inconscientemente, sem pensar muito na ordem das palavras que emitimos, ou no som das sílabas que ouvimos. Bebês nascem e, em questão de 1 a 2 anos, já entendem muito de sua língua-mãe e não levam muito mais tempo para se comunicarem naturalmente.

Antes objeto de estudo apenas de linguistas, hoje a Linguagem passa também ao domínio de neurocientistas que procuram traçar sua ontogenia cerebral, e até mesmo encontrar semelhanças entre a nossa comunicação e aquela usada por outros animais. De certo, algumas espécies de animais se comunicam, como as aves, cães, lobos e primatas, mas até que ponto esta forma de comunicação pode ser equiparada à nossa? Será que alguma outra espécie poderia aprender a “linguagem dos homens”?

Neste sentido, vários experimentos têm sido realizados, especialmente com chipanzés. Em um deles, tentou-se ensiná-lo a aprender palavras em Inglês de elementos presentes em seu ambiente, e esperar que ele falasse ou ao menos entendesse o que lhe fora apresentado. Um dos resultados mais significativos deste experimento foi perceber que tais primatas possuem um sistema fonador diferenciado do nosso, o que limita enormemente a produção de nuances dos sons que podem ser emitidos pela espécie humana, e que conseguiam compreender apenas 400 palavras aos 2,5 anos. Em outra tentativa de ensinar um chipanzé a comunicar-se, optou-se pela Linguagem de Sinais (ASL), e chegou-se à seguinte conclusão: até os 4 anos de idade, o chipanzé havia aprendido a sinalizar 160 palavras, e chegou até mesmo a produzir a composição “water bird” ao ver um cisne em um lago. Pois bem, comparando-se com crianças de nossa espécie, aos 4 anos de idade, elas já possuem um vocabulário de aproximadamente 3.000 palavras. Além disso, não é possível saber com certeza se a produção de “water bird” por aquele chipanzé representava uma alegoria ao cisne ou se, simplesmente, eram duas mensagens separadas – uma indicando a água em si, e a outra indicando o cisne.

De modo muito diferente, a espécie humana parece ter sido selecionada com esta característica inata à linguagem: atualmente, no planeta, contam-se 10.000 idiomas e dialetos dentre todos os povos da raça humana. Além disso, casos de indivíduos que

Page 232: Livro CI 2007

 224 

cresceram em total isolamento com a sociedade relatam o desenvolvimento de formas próprias de comunicação. Por fim, há algumas características que diferem a comunicação humana daquela encontrada em qualquer outra espécie animal. São elas:

1. criatividade: a capacidade de gerar novas associações de palavras – ou até mesmo criar um novo dialeto;

2. forma: uso de fonemas e sílabas para compor palavras, e emprego de regras sintáticas bem definidas para compor sentenças, tudo isso sem a necessidade de intrução formal, mas da aprendizagem implícita – experienciada em nosso dia-dia;

3. conteúdo: não só as palavras, mas também gestos, expressões faciais e a entonação utilizadas carregam significado na comunicação humana.

4. uso: a língua serve o propósito de meio de comunicação social e também para identidade própria (expressa nossos pensamentos e emoções).

Assim, podemos dizer que nossa forma de comunicação é única e complexa dentre os seres vivos de nosso planeta. Surgem também algumas questões, de discussão atual no meio científico: esta capacidade única do ser humano reflete algum ajuste fino do cérebro primata para o propósito específico da linguagem? Ou tal capacidade dever-se-ia ao desenvolvimento de uma arquitetura neural completamente nova? Para melhor nos ajudar na busca por respostas a estas perguntas, vamos agora olhar para dentro do centro da linguagem: o cérebro humano.

Neuroanatomia da Linguagem Todos os aspectos da linguagem são comandados pelo cérebro: a captação de

ondas sonoras provenientes da conversa entre duas pessoas é levada ao sistema nervoso central pelo nosso sistema auditivo; a produção da fala, envolvendo a articulação dos lábios e língua, também tem seu controle motor coordenado pelo cérebro; a leitura e a escrita, e até mesmo nossa linguagem corporal, intermediados pelos sistemas visual e motor, são orquestrados pelos 1,5 quilos de massa cinzenta que se encontra dentro de nossa caixa craniana.

Cada uma destas funções linguísticas encontra-se sob responsabilidade de áreas neuroanatômicas bem definidas e localizadas, que serão ilustradas na Figura 1 e Tabela 1:

Figura 1: Principais áreas anatômicas do cérebro humano. Tabela 1: Relação de algumas estruturas cerebrais e seus respectivos papéis na linguagem.

Estrutura neuroanatômica Função controlada

Região temporo-superior posterior esquerda Compreensão da fala e escrita Região frontal inferior posterior esquerda Expressão oral e escrita Córtex auditivo primário Percepção de sons Região temporo-parietal esquerda Categorização de fonemas Córtex estriado e pré-estriado Visualização de palavras Córtex pré-frontal Iniciação e categorização de palavras Tálamo Interface semântico-lexical

Page 233: Livro CI 2007

  225

Percebemos, então, um fenomêno de lateralização cerebral no que se diz respeito ao controle da linguagem, determinando o hemisfério esquerdo como dominante. De fato, 99% das pessoas destras e 70% dos canhotos desenvolvem tal característica. O hemisfério direito também participa em características importantes da linguagem, tais como compreensão de respostas não-verbais, leitura de números, letras e palavras curtas, e conferir entonação, ritmo e prosódia à lingua falada. O centro de compreensão prosódica também localiza-se no hemisfério direito (córtex posterior).

Hoje é possível “ver” o cérebro em funcionamento através de procedimentos como PET e fMRI. Vários experimentos tem sido feitos envolvendo linguagem e mapeamento cerebral. Observe na Figura 2 alguns dos resultados obtidos:

Figura 2: Níveis relativos de fluxo sanguíneo representado por cores. Vermelho indica os maiores níveis, e níveis progressivamente menores são indicados por laranja, amarelo, verde e azul. (Posner e Raichie, 1994)

Portanto, podemos prever que danos em determinada porção do tecido cerebral podem afetar uma característica específica da linguagem. São diversas as disfunções decorrentes de AVC, conhecidas como afasias (difunções na produção ou compreensão da fala) , alexias (disfunções na leitura) e agrafias (disfunções na escrita). As mais conhecidas são as afasias de Broca, de Wernicke e de Condução. Vejamos estas com mais detalhes.

A afasia de Broca afeta o conteúdo da expressão oral e escrita.Geralmente é decorrente de lesões na região fronto-posterior esquerda, produzindo alterações no paciente equivalentes a uma “fala telegráfica”: substantivos são usados apenas no singular, verbos sem flexão, levando até mesmo a uma total quebra na sintaxe da frase (p.e., “Senhoras e senhores, por favor dirijam-se à sala de jantar”, seria produzido por um destes pacientes como “senhora, senhor, sala”). A afasia de Wernicke não prejudica a produção, mas sim a compreensão da fala e da escrita. Devido a esta dificuldade de compreensão, sua fala fica afetada por uma fluência em excesso, com abundância de palavras e frequentes trocas de assunto dentro do mesmo trecho discursivo, produzindo uma espécie de “vazio” na fala. Geralmente é resultado de lesões na região temporo-posterior superior esquerda. A afasia de Condução ocorre quando o fascículo arqueado (região parietal esquerda), que interliga as regiões de Broca e Wernicke, é rompido. Seus principais sintomas são dificuldades na repetição de frases e palavras e na nomeação de objetos, e troca de letras durante a escrita.

Existem também disfunções da linguagem observadas por lesões no hemisfério direito do cérebro: indivíduos que utilizam um único tom de voz na linguagem após lesão no córtex frontal direito, e indivíduos que não conseguem realizar compreensão prosódica após lesão no córtex posterior direito.

Há, ainda, aqueles distúrbio linguísticos sem, aparentemente, lesões vaculares ou mecânicas, apontando apenas para um componente genético. A dislexia, por exemplo, envolve grandes dificuldades em processos fonêmicos, ocasionando atrasos na leitura e grafia incorreta de palavras. Estudos recentes apontam para um possível correlato

Page 234: Livro CI 2007

 226 

anatômico da dislexia: indivíduos disléxicos apresentam tamanho levemente reduzido do hemisfério esquerdo, com grupos de neurônios “mal-posicionados” no planum temporale esquerdo – o que sugere um atraso na migração daquelas células durante o desenvolvimento. Existe, ainda, uma dificuldade em processar estímulos sensoriais (visuais ou auditivos) de forma rápida por parte de indivíduos disléxicos, quando comparados à população normal.

Agora que já conhecemos melhor as regiões cerebrais responsáveis pela linguagem, vamos conhecer o processo de aquisição de duas ou mais línguas sob um ponto de vista neurofisiológico.

O Cérebro Bilíngue Comunicar-se, portanto, parece pertencer ao acervo biológico do homem, herdado

geneticamente de nossos ancestrais; em nossa espécie, há um instinto para o desenvolvimento da linguagem – apesar dos possíveis problemas ou deficiências no decorrer do percurso. E quanto à comunicação em duas línguas? Como está preparado o nosso cérebro para aprender dois ou mais idiomas, e processá-los a nível neural? Existem populações neurais específicas para cada idioma, ou que se complementam no processamento de mais de um idioma? Aqui, devido à modularidade cerebral - já conhecida não apenas para diferentes funções cognitivas do ser humano (como memória, motricidade, visão, olfato), mas também para diferentes características linguísticas, temos novamente que discernir entre as várias habilidades envolvidas também na comunicação bilíngue: percepção de fonemas estrangeiros, aquisição de um léxico e de estruturas próprias da língua em questão, articulação da fala e compreensão auditiva a uma velocidade adequada para interação com nativos daquela língua, entre outras.

Experimentos em eletrofisiologia têm privilegiado as questões linguísticas que envolvem aquisição e uso do léxico e da gramática em uma ou mais línguas (Perani & Abutalebi, 2005), enquanto outros se propuseram a abordar a percepção fonêmica, destacando-se entre estes Kuhl (2000), Stager & Werker (1997) e Rivera-Gaxola et al. (2001), apontando para padrões de organização neural no córtex auditivo primário de crianças e adultos.

A plasticidade neural particularmente em crianças é algo notável e aceito tanto pela comunidade científica como pela sociedade leiga em geral, a qual percebe a facilidade e velocidade de aprendizado de novas tarefas – em especial, a aquisição de outro idioma. Testes experimentais têm demonstrado que recém-nascidos já discriminam entre dois idiomas estrangeiros, ao passo que bebês aos 2 meses de idade não o fazem mais (Mehler & Christophe, 2000). Ainda assim, percebe-se que a facilidade em aprender uma outra língua (o chamado período crítico) continua até aproximadamente quando se inicia a puberdade (Stromsworld, 2000), caracterizando ao longo do desenvolvimento infantil algumas janelas de oportunidade - períodos em que a aquisição de habilidades específicas seriam favorecidas por fatores genéticos, hormonais e de plasticidade neural. Os primeiros estudos utilizando-se de indivíduos bilíngues demonstraram que adultos que haviam aprendido duas línguas simultaneamente na infância apresentaram uma região em comum para processamento de ambas as línguas, ao passo que aqueles adultos que haviam aprendido duas línguas em momentos distintos de sua vida apresentavam regiões corticais também distintas quando utilizando cada um dos idiomas (Figura 3):

Page 235: Livro CI 2007

  227

Figura 3: Resultados de fMRI mostrando centros de ativação da linguagem para a fala em dois idiomas, em dois indivíduos adultos, sendo o da esquerda uma situação de aprendizado tardio do idioma, e o da direita, de aprendizado simultâneo de duas línguas. (Kim et al, 1997)

Outro importante estudo neste campo provou que não somente a idade, mas também o nível de proficiência (ou domínio) do idioma influi na representação cerebral. Estudos com fMRI encontraram maior densidade de massa cinzenta no cérebro daquelas pessoas que haviam aprendido mais precocemente duas línguas e que possuíam maior grau de proficiência. (Mechelli et al, 2004). Isto equivale a dizer que quanto mais cedo alguém é exposto a um idioma estrangeiro, maior a quantidade de conexões entre neurônios no cérebro para dar conta daqueles idiomas.

De fato, tomado de um ponto de vista neurobiológico, nascemos prontos para aprender qualquer idioma. Uma criança que nasce na Coréia vai aprender coreano tão bem quanto uma criança que aprende italiano por ter nascido na Itália, embora estas duas línguas possuam sotaques e sons de vogais e consoantes próprios, diferentes entre elas. Nosso cérebro, nos primeiros anos da infância, não faz distinção entre japonês e inglês, português e alemão, ou quaisquer outras línguas entre si. É somente após alguns meses de vida que nosso sistema nervoso central começa a privilegiar os sons mais freqüentes ao nosso meio, e por consequência, a não mais reconhecer fonemas estrangeiros que não fazem parte do sistema de sons a que a criança está sendo exposta (Figura 4). Daí vem a dificuldade que muitos adultos encontram em, primeiro, perceber auditivamente e, depois, em pronunciar determinados fonemas estrangeiros – como nas palavras bad e bed, em inglês, para os brasileiros, ou como nas palavras avô e avó, em português, para os povos de língua espanhola.

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Tempo (mês)

Bebês diferenciam qualquer contraste fonêmicos.

Aprend. Estatística

Percepção para vogais específicas

Detecção de pa-drões de ritmo

Queda na percepção de fonemas 2a. língua

Aumento da per-cepção na língua-mãe

Linha do te m po para pe rc e pção da fa la

Figura 4: Linha do tempo para percepção de sons da fala em bebês, de 0 a 12 meses de idade.(Kuhl, 2004)

Conclusão e Perspectivas O campo da neurociência se abre cada vez mais para estudos da linguagem.

Processos que envolvem desde a aquisição de uma língua, passando pelo seu processamento, distúrbios, anomalias, codificação gênica, representação mental, e chegando até o fenômeno do bilinguismo, todos ainda reservam perguntas que têm ajudado em nossa construção do conhecimento acerca desta fascinante área.

Podemos apontar, como perspectivas para o futuro, algumas linhas de estudo: 1. Interação entre linguagem e sistemas de memória; 2. Reabilitação de afasias e dislexias; 3. Ontogenia e prevenção de dislexias; 4. Melhor compreensão do papel de estruturas subcorticais no processamento

liguístico; 5. Organização do léxico de duas ou mais línguas na memória; 6. Neurofisiologia da aquisição e processamento de duas ou mais línguas em

diferentes idades e níveis de proficiência.

Page 236: Livro CI 2007

 228 

Referências Bibliográficas Bears M.F., Connors B.W., Paradiso M.A. Neuroscience – Exploring the brain. USA: Lippincott Williams & Wilkins,

2007. Bosch, L, Sebastián-Gallés, N., 2003. Simultaneous Bilingualism and the Perception of a Language-Specific Vowel

Contrast in the First Year of Life. Language and Speech 46 (2-3), 217-243. Callan, D., Tajima, K., Callan, A., Kubo, R., Masaki, S., Akahane-Yamada, R., 2003. Learning-induced neural plasticity

associated with improved identification performance after training of a difficult second-language phonetic contrast. Neuroimage 19, 113-124.

Kim, K.H.S., Relkin, N. R., Lee, K., Hirsch, J., 1997. Distinct cortical areas associated with native and second languages. Nature 388, 171-174.

Kuhl, P. K., 2000. A new view of language acquisition. Proceedings of the National Academy of Science 97, 11850-11857.

Mechelli, A., Crinion, J. T., Noppeney, U., O’Doherty, J., Ashburner, J., Frackowiak, R. S., Price, C. J., 2004. Structural plasticity in the bilingual brain. Nature 431, 757.

Mehler, J., Christophe, A., 2000. Acquisition of languages: infant and adult data. In: Gazzaniga, Michael S. (Org.). The New Cognitive Neurosciences, 2. ed.. USA:The MIT Press, 2000.

Perani and Abutalebi, 2005. The neural basis of first and second language processing. Current Opinion in Neurobiology, 15:202–206.

Pinker, S. The Language Instinct. USA: Penguin Books, 1995 Rivera-Gaxiola, M., Csibra, G., Johnson, M. H., Karmiloff-Smith, A., 2000. Electrophysiological correlates of cross-

linguistic speech perception in native English speakers. Behavioral Brain Research 111, 13-23. Stager, C. L., Werker, J. F., 1997. Infants listen for more phonetic detail in speech perception tha in word-learning tasks.

Nature 388, 381-382. Stromsworld, K. The cognitive neuroscience of Language Acquisition. In: Gazzaniga, Michael S. (Org.). The New

Cognitive Neurosciences, 2. ed.. USA: The MIT Press, 2000.

Page 237: Livro CI 2007

  229

Evolução da Inteligência Rodrigo Pavão ([email protected]) - Laboratório de Neurociências e Comportamento

Dado que todos os organismos compartilham um ancestral comum, por que eles diferem tanto em relação às suas capacidades cognitivas? Como surgiu e evoluiu essa habilidade? De que maneira diferimos de outros animais em relação a essa capacidade? As respostas para essas perguntas dependem tanto do entendimento de como o sistema nervoso evoluiu como de sofisticados estudos de comportamento animal. Nesta aula trataremos de elementos interessantes para a discussão da evolução da inteligência, baseados em estudos neuroanatômicos e comportamentais em primatas.

Os primatas compartilham uma série de características comuns que os distinguem dos demais mamíferos. Muitas dessas características podem ser interpretadas como adaptações para o habitat arborícola, no qual os primeiros primatas evoluíram. Essas características incluem grande capacidade visual, sobreposição dos campos visuais, membros e mãos adaptadas para locomoção na copa das árvores e manipulação de pequenos objetos. Os primatas mais derivados apresentam interações sociais complexas, o que demanda flexibilidade comportamental. Essas capacidades são compartilhadas pelos grandes símios, incluindo a espécie humana, que é considerada diferente das outras por apresentar extrema flexibilidade comportamental associada a capacidade de compartilhar grande quantidade de conhecimento entre indivíduos.

As mudanças encefálicas associadas a essas capacidades serão abordadas de modo multidisciplinar envolvendo fisiologia, anatomia e ecologia comportamental. Uma vez descritos e comparados os cérebros dos diferentes grupos, serão apresentadas as teorias mais consistentes a respeito dos processos evolutivos sob os quais as diferentes espécies passaram.

Histórico O fato de humanos gozarem de uma capacidade cognitiva claramente superior a dos

outros animais e ao mesmo tempo compartilharem semelhanças marcantes, como a postura corporal, fez Charles Darwin por em cheque a sua teoria a respeito da evolução das espécies. Afinal, segundo Darwin, humanos têm ancestrais não humanos e aparentemente não existe um motivo claro para que sofisticadas capacidades cognitivas estarem presentes exclusivamente em humanos. A “vantagem adaptativa” de altas capacidades cognitivas parece óbvia, não só para humanos como para todos os animais.

O pensamento darwiniano no estudo das capacidades mentais envolve dois conceitos evolutivos: (1) uma vez que os grupos de animais têm um ancestral comum, deve haver similaridades entre as espécies atuais e (2) o fato de divergências entre grupos animais terem ocorrido há muito tempo, pode possibilitar grandes diferenças entre grupos animais fruto da especialização para nichos específicos. No entanto, por muito tempo, os estudiosos do comportamento animal preocuparam-se essencialmente com o primeiro conceito (Kalat, 1983). Essa postura é congruente com a descrição feita por Darwin, de que imitação, uso de ferramentas e uso de sons na comunicação (como passo direcional à linguagem) são encontrados em não-humanos, sugerindo que a inteligência humana e não-humana diferem apenas em grau e não em tipo (Macphail e Bolhuis, 2001).

Os estudos entre a época de Darwin até a década de 1930 concentraram-se na demonstração e quantificação da inteligência animal. Um dos primeiros a avançar nessa área que foi intitulada de “Psicologia Comparativa” foi George Romanes, com a publicação de seu livro Inteligência Animal de 1882, que apresentou relatos curiosos sobre cães e gatos de estimação brilhantes (Romanes, 1882). No entanto, foram feitas muitas críticas com relação à falta de um controle adequado. Edward Thorndike, em estudos posteriores estabeleceu as bases do estudo da psicologia experimental ao incorporar os controles antes reclamados (Thorndike, 1911). Os trabalhos feitos pelos psicólogos comparativos dessa época visavam a comparação quantitativa entre espécies animais, para tanto os animais eram submetidos a tarefas distintas cuja solução teoricamente exigia capacidades cognitivas distintas. O fato dos animais terem sido testados em versões simplificadas das tarefas expostas a humanos, sugere que os psicólogos comparativos tinham como foco de estudo a inteligência, e não os animais. Essa área de estudo assumiu que inteligência é um processo único e geral, ou seja, que as diferenças na inteligência dos animais são apenas quantitativas; caso esse pressuposto esteja incorreto, isto é, caso a inteligência

Page 238: Livro CI 2007

 230 

consista de uma série de habilidades, apresentando especialidades para situações particulares, essa abordagem poderia gerar interpretações equivocadas sobre as capacidades desses animais.

Figura 1. Darwin, Romanes, Thorndike, Pavlov, Skinner, Watson e Tinbergen. A

Uma nova etapa no estudo da inteligência em animais foi dominante entre as décadas de 1930 e 1950. Essa etapa surgiu da necessidade de confirmação do pressuposto do momento anterior, de que inteligência é um processo único e geral. Dado o pressuposto, a forma mais coerente de estudar a inteligência e aprendizado parecia ser através de um único modelo animal sempre numa mesma situação, de forma a propiciar um melhor controle de outras variáveis. Independentemente, Thorndike e o fisiologista russo Ivan Pavlov estabeleceram os alicerces para o estudo científico da aprendizagem e da memória animal pelo desenvolvimento de modelos animais e a descrição dos métodos experimentais para modificar o comportamento (condicionamento operante – associação da resposta correta a recompensa e resposta incorreta a castigo, por Thorndike e o condicionamento clássico – associação entre dois estímulos como campainha a apresentação de comida, por Pavlov) (ver Squire e Kandel, 2002). Houve, assim, uma mudança no foco do estudo do comportamento animal, saindo da vastidão da avaliação das diferenças na inteligência de múltiplas espécies para a avaliação restrita dos mecanismos fundamentais do aprendizado. Tratava-se de uma psicologia laboratorial que se transformou numa tradição empírica designada como behaviorismo, liderado posteriormente pelos americanos John Watson e B. F. Skinner. A maior parte dos estudos era feita com ratos e havia alguma preocupação sobre como os estudos se relacionavam com humanos, mas poucos perguntavam como os estudos se relacionavam com animais na natureza, evidenciando o maior distanciamento das questões evolutivas (Kalat, 1983).

A partir da década de 1950, de maneira lenta e gradual, os estudos com psicologia experimental começaram a apresentar preocupação com questões evolutivas. A razão do surgimento dessa preocupação se deve à influência de etologistas como Niko Tinbergen, que defendia (1) os animais apresentam uma grande variabilidade no que aprendem (e não apenas no quão bem aprendem); (2) a aprendizagem tem função reduzida ou não demonstrável no comportamento de alguns vertebrados; (3) as diferenças entre espécies são grandes e importantes e (4) que é possível estudar comportamentos inatos de maneira experimental e científica (Tinbergen, 1951). Os psicólogos experimentais americanos reagiram contra esse avanço, no entanto, houve progressivamente uma síntese da etologia com a psicologia comparativa (Hinde, 1966). Simultaneamente, foi se tornando cada vez mais aceito que os paradigmas de condicionamento clássico e operante não poderiam ser aplicados facilmente a tudo que ocorre na natureza (Kalat, 1983). Um exemplo é o aprendizado de ratos e primatas em tarefas em tarefas de discriminação visual (apenas primatas com bom desempenho) e olfativa (apenas ratos com bom desempenho), que evidencia que os sistemas perceptuais evoluíram diferentemente nas diferentes espécies, para solucionar problemas associados aos seus diferentes nichos (Slotnick e Katz, 1974). Reforçando esse quadro, surge o conceito de aprendizagem especializada; como o “imprinting” (preferência do filhote durante período sensível em seguir o indivíduo ou até mesmo objeto que oferece alimento e aquecimento, observável em algumas aves; na idade adulta seleciona parceiros sexuais semelhantes ao indivíduo preferido no período sensível; difere da aprendizagem convencional pela ausência de recompensa) e aversão a sabor (consumiu determinado alimento com determinado sabor, se ficar doente tende a evitar aquele sabor em momentos posteriores; difere da aprendizagem convencional pela rapidez da associação) (ver Shettleworth). Assim, após quase um século, o pensamento darwiniano, de que deve haver semelhanças e diferenças entre as espécies, se tornou influente nos estudos sobre comportamento animal.

Page 239: Livro CI 2007

  231

Concepções de Inteligência e Evolução A concepção coerente a ser adotada na retomada do estudo da evolução da

inteligência é a de que durante o curso da evolução, algumas espécies adquiriram algumas habilidades especializadas que estão ausentes em outras espécies. Nessa concepção, a inteligência consiste de uma série de habilidades (e não em um único processo) e, portanto, uma espécie pode diferir qualitativamente de outra espécie. Mas há dificuldades na utilização dessa estratégia. Um exemplo interessante é a capacidade de reverter hábitos, avaliada em diferentes espécies distantes. Na tarefa de avaliação dessa capacidade, o animal pode escolher entre duas alternativas, A e B; inicialmente, apenas A é reforçada, que determina uma preferência de animal em escolher A; assim que essa preferência é estabelecida, apenas a alternativa B passa a ser reforçada, até que a preferência por B se estabeleça; nesse momento, A volta a ser reforçada, e assim por diante alternando entre A e B. Pombos, ratos e tartarugas mostram melhora progressiva na alternância entre as alternativas, diferente de peixes, que não aprendem a tarefa (Kalat, 1983; Holmes, 1966). Essa diferença entre animais que claramente aprendem a tarefa e animais que não são capazes de melhora parece um bom exemplo de diferença qualitativa. Mas há alguns problemas. O primeiro é que alguns invertebrados também apresentam essa habilidade: os polvos e as minhocas (Kalat, 1983). Já é bem descrito que os cefalópodos, grupo taxonômico que inclui os polvos, são capazes de solucionar uma série de tarefas cognitivas, o que parece uma convergência evolutiva com os vertebrados. No entanto, é pouco intuitivo entender que os peixes são intelectualmente inferiores em relação às minhocas. O segundo problema que pode ser levantado se dá pela possibilidade de deduzir que as aparentes diferenças qualitativas sejam resultados de algumas diferenças quantitativas como duração de memória de curta duração. Além disso, peixes algumas vezes mostram melhoras nessa tarefa de alternância de respostas quando usado um protocolo com mudanças sutis em relação ao original. Isso mostra que é necessário analisar diferenças comportamentais com muita cautela antes de concluir que há diferenças qualitativas entre espécies.

Há também a concepção mais simples e mais antiga sobre inteligência, de que se trata de um processo único e geral. O aumento no número de neurônios e conexões sinápticas capacita a realização de maior número de associações, processando e retendo maior quantidade de informação com maior precisão. É evidente a descontinuidade dessa interpretação com o que foi descrito anteriormente; no entanto, há evidências razoáveis de que, ao comparar espécies próximas, aquelas que têm encéfalos maiores têm vantagem geral em muitas tarefas de solução de problemas. Assim, pode-se justificar que não é incorreto interpretar inteligência como um processo único e geral ao comparar espécies próximas. A definição de inteligência usada aqui é a de que se trata de uma habilidade cognitiva geral que permite solucionar problemas novos, não se tratando de habilidade para situações específicas.

Paradoxo Uma vez incorporada a cognição na evolução biológica podemos considerar que os

processos adaptativos podem ocorrer de três maneiras distintas e com escalas temporais também diferentes. Na escala de milhares ou milhões de anos temos o surgimento de estruturas adaptativas, como garras, chifres, olhos, asas etc. Numa escala de centenas a milhares de anos ocorre a evolução cultural, com a desenvolvimento de ferramentas, armas, conhecimento sobre a natureza, novidades na organização social etc. Por fim, numa escala de alguns anos ou até mesmo meses, se aceitarmos uma idéia de evolução bem abrangente, o desenvolvimento intelectual e cognitivo de cada individuo pode também ser um fator gerador de novidades. O desenvolvimento cognitivo de um indivíduo, por outro lado, gera novidades em um curso temporal extremamente curto (ex. capacidades representacionais e computacionais) (ver Rozin, 1998).

É razoável assumir que a espécie humana apresenta alto desenvolvimento cultural e grande capacidade cognitiva, e que adaptabilidade dessa espécie é pronunciada em tal nível que a tornou capaz de driblar modificações ambientais Apesar do curto período de tempo que a nossa espécie está presente no planeta, é inegável o nosso sucesso. Certamente somos a espécie que teve o maior impacto no planeta, capaz de sobreviver em ambientes extremos, constituímos uma população muito vasta, que continua crescendo com uma alta taxa e somos muito bons na construção de estruturas

Page 240: Livro CI 2007

 232 

tecnológicas, na produção de alimento em pequenas áreas e na prevenção de doenças. É evidente, no entanto, que toda essa adaptabilidade decorrente do alto desenvolvimento cultural e da grande capacidade cognitiva que são resultados da evolução biológica. Surge, então, o paradoxo: se as características humanas oferecem tanta vantagem, por que outros animais não as têm? Certamente a possibilidade de seu surgimento já ocorreu repetidas vezes. De fato, existem muitos animais sociais, alguns que produzem ferramentas, diversos apresentam algum nível de inteligência. No entanto, o alto desenvolvimento cultural e cognitivo é exclusivo dos humanos. Quais as razões para tornar o surgimento de características humanas através de evolução biológica um processo tão raro?

Eventos encadeados (em primatas) Uma possibilidade de solução para esse paradoxo é compreender que as

características humanas são resultantes de uma série de eventos dependentes, todos eles com baixa probabilidade de ocorrência. Portanto, o fato de não haver outras espécies com características humanas está relacionado com a baixa probabilidade de ocorrência dos eventos que estão organizados em série, de modo que os eventos passados são pré-requisitos para eventos futuros Algumas críticas podem ser levantadas para essa interpretação, que considera apenas as chances de surgimento e manutenção dessas características e ignorando a seleção natural, que é um mecanismo altamente determinista associado a esse processo. Há também hipóteses que consideram o contexto ecológico do surgimento dos humanos (ver Foley, 1996). Assim, prosseguiremos então com esse paradoxo em aberto.

Figura 2. Lêmure, macaco-prego, macaco-rhesus, bonobo e humano. B

Os primatas são uma ordem dos mamíferos em que são incluídos os prossímios (lêmure, társio), macacos do novo mundo (macaco-prego, mico), macacos do velho mundo (macaco-rhesus, macaco-japonês, mandril), grandes símios (bonobo, chimpanzé, gorila, orangotango) e humanos. Os primatas diferem dos demais mamíferos pelo focinho reduzido, olhos voltados para frente e presença de mãos capazes de agarrar. São também nos primatas que são encontrados os exemplos mais notáveis de socialidade complexa e inteligência. Essas características podem ser associadas como uma série de eventos dependentes. Na história evolutiva dos primatas, o primeiro momento foi o desenvolvimento da grande capacidade vísuo-motora que é um pré-requisito para socialidade complexa, que por sua vez é um pré-requisito para inteligência. Esses eventos serão explicados e relacionados na próxima etapa.

Grande capacidade vísuo-motora Os primeiros primatas apareceram há cerca de 55 milhões de anos. Eles eram

semelhantes aos atuais prossímios. Apresentavam poucos gramas e pequenas mãos prênseis capazes de agarram os finos terminais de galhos de árvores das florestas tropicais. Esses animais tinham olhos voltados para frente, e seu sistema visual era bastante acurado pelo grande número de fotorreceptores concentrados na região da fóvea da retina. Um grande nervo óptico conectava a retina a áreas mesencefálicas e talâmicas. O córtex visual também era aumentado associada a esse aumento da capacidade visual. A organização do córtex visual dos primatas atuais é comum, indicando que o ancestral de 45 milhões de anos atrás já apresentava essa organização básica. Há 40 milhões de anos um novo cone com resposta a uma faixa de freqüência luminosa diferente apareceu a partir de duplicações e mutações nos genes que produziam um tipo de cone anterior. Assim de uma visão por 2 cones, surgiu a capacidade de ver com 3 cones, que origina a visão a cores que nós humanos estamos acostumados (Allman, 1998). Os primatas

Page 241: Livro CI 2007

  233

também apresentavam notável capacidade motora, além de se mover facilmente pelas copas de árvores, tem precisa movimentação de suas extremidades (mãos e pés), e evidente controle de seus inúmeros músculos faciais, correlacionado com aumento de suas áreas corticais motoras (Allman, 1998). Além do aumento do córtex visual e do córtex motor, os primatas são dotados de células exclusivas nessas duas estruturas; são as células de Meynert (localizadas no córtex visual, participam no processamento de imagens em movimento) e as células de Betz (no córtex motor, envolvida na programação do tônus muscular prévio a saídas motoras finas) (ver Sherwood, 2003). Assim, é possível diferenciar os primatas dos mamíferos prototípicos diferenciados em razão dessa série de características que determinam uma grande capacidade vísuo-motora.

Figura 3. Sobreposição de campos visuais, córtex motor e córtex visual em um mamífero prototípico (porco-espinho) e um primata (lêmure). C

As duas principais teorias que abordam a origem e desenvolvimento da complexidade vísuo-motora, são as teorias do “predador visual” e do “nicho galhos finos” (Allman, 1998). A primeira afirma que a complexidade surgiu em razão da pressão seletiva da necessidade de ataques precisos com as duas mãos utilizando a visão como orientação. A segunda teoria se firma no nicho ocupado por esses animais, que viviam em ambiente complexo em que quedas seriam fatais; a visão e os movimentos acurados seriam necessários para a locomoção precisa entre os galhos e também para perceber e pegar insetos e frutas (no mesmo período havia a grande diversificação das angiospermas, as plantas com flores). As duas teorias não se excluem, e, provavelmente, estão ambas corretas.

Os olhos voltados para frente permitem a noção de profundidade, devido a existência de um campo de visão binocular, que gera diferenças entre as detecções da cada olho. Para animais que vivem em árvores, essa modificação oferece grande vantagem pois permite melhor acuidade de posição. Essa modificação funciona como um quebra-camuflagens; mesmo que a presa tenha padrão de coloração igual ao do substrato, é possível observar que existe variação de profundidade da presa em relação ao substrato. No entanto, o surgimento da visão estereoscópica está associado a uma grande redução do ângulo de visão, essa redução determina uma maior suscetibilidade aos predadores. Para reduzir esse prejuízo, os primatas apresentaram modificações em seu sistema auditivo. Além disso, tornou-se comum também a convivência em grupos, espécies sociais teriam multiplicada a capacidade de perceber predadores, e os indivíduos vocalizam sobre a situação (Allman, 1998). Assim, acredita-se socialidade tenha sido a solução para a predação, ou seja, que o aumento da capacidade visual teria favorecido a organização de grupos sociais.

Socialidade complexa

Page 242: Livro CI 2007

 234 

Além da teoria apresentada anteriormente, existem outras teorias para a origem e desenvolvimento da socialidade. Uma delas enfoca o cuidado com os jovens: primatas em geral teriam infância prolongada (evento que é ainda mais evidente em humanos) relacionado ao aumento do encéfalo, que por sua vez está associado com necessidade de mais tempo de treinamento oferecido aos jovens pelos adultos com o objetivo do possibilitar o aprendizado de habilidades complexas e também de como adquirir alimento de maior qualidade. Outra teoria aborda a caça em grupo, atividade que determina aumento dos ganhos energéticos e assim poderia ter favorecido a organização em grupos sociais. O fato é que grupos primatas mais derivados apresentam uma organização social complexa, e essa socialidade está associada a especializações encefálicas.

Um aspecto de grande importância é a comunicação. Diversos são os exemplos do uso de sinais sonoros associados a aspectos muito relevantes do ambiente encontrados em primatas; esse tipo de comunicação demanda mecanismos de produção e percepção de sons. No entanto, um dos mecanismos de comunicação mais freqüentemente associado à evolução dos primatas é o uso de faces como pistas sociais (Allman, 1998). Trata-se de um processo de grande complexidade, pois além de exigir a contração precisa dos músculos faciais, exige também um mecanismo de reconhecimento dos padrões de face observados. Congruentemente à necessidade de processamento dessas informações, é encontrado um aumento considerável na representação cortical da face.

D

Figura 4. Exemplos de faces em primatas.

Informações sobre mecanismo neural dos sinais sociais foram obtidas em um estudo em que foram inseridos eletrodos na área pré-motora ventral de macacos e foram encontrados alguns neurônios que disparavam quando o animal executava uma determinada ação e também quando o animal observava essa mesma ação sendo executada pelo experimentador. Esses neurônios foram denominados “neurônios-espelho”. Nesse estudo, os macacos (1) faziam a ação motora de pegar um pequeno pedaço de alimento utilizando a mão, (2) observavam o experimentador pegar um pedaço de alimento usando a mão ou (3) observavam o experimentador pegar um pedaço de alimento usando uma pinça. Havia atividade similar nos “neurônios-espelho” nas duas primeiras situações; na terceira situação não havia atividade nesses neurônios (Rizzolatti, 1998). É bastante razoável aceitar que existam “neurônios-espelho” para outras ações, incluindo as diferentes faces, sendo esse um dos prováveis mecanismos para o reconhecimento de faces, usadas como pistas sociais. Além disso, é possível imaginar que esses neurônios tenham função fundamental na aprendizagem social.

Page 243: Livro CI 2007

  235

E

Figura 5. Atividade neural registrada nos dos eletrodos colocados na área pré-motora ventral em três condições: observação do movimento realizado pelo experimentador, realização do movimento e observação do movimento realizado pelo experimentador utilizando uma ferramenta.

Eletrodos colocados na área pré-motora ventral do córtex registram disparo de neurônios em condição de observação do movimento de pinça pegando alimento realizado pelo experimentador e em condição de execução do movimento de pinça pegando alimento pelo animal. Não é observado disparo quando o alimento é pego utilizando uma ferramenta.

Admitindo que a complexidade de um grupo social está relacionada ao número indivíduos desse grupo, foi realizado um estudo que evidenciou forte correlação entre essa medida (número de indivíduos do grupo) e a taxa de neocórtex (dado pelo volume do neocórtex dividido pelo volume do restante do encéfalo), sugerindo que a capacidade de processamento (medida pela taxa de neocórtex) está intimamente associada a complexidade social (Dunbar, 1998), o que evidencia a importância de abordar a socialidade na evolução da inteligência.

F

Figura 6. Atividade neural registrada nos dos eletrodos colocados na área pré-motora ventral em três condições: observação do movimento realizado pelo experimentador, realização do movimento e observação do movimento realizado pelo experimentador utilizando uma ferramenta.

Inteligência A interação social, com todas as sutilezas possíveis, demanda grande flexibilidade

comportamental e grande desenvolvimento encefálico, o que novamente evidencia a questão dos eventos encadeados. Nessa proposta, a socialidade demanda seleção de maiores habilidades cognitivas (inteligência) e a inteligência permite habilidade de manter relacionamentos (socialidade).

Há também a hipótese ecológica sobre a evolução da inteligência em primatas, que uma das justificativas é tendência de primatas que se alimentam de folhas apresentar

Page 244: Livro CI 2007

 236 

menores encéfalos do que primatas que se alimentam de frutas, medida através da comparação entre residuais (diferença entre o tamanho encefálico da espécie e o tamanho encefálico esperado para animal da mesma massa corporal, obtida pela reta ajustada entre massa corpórea e massa encefálica) (ver Harvey, 1990). Isso porque as frutas estão mais dispersas que as folhas, o que requer um encéfalo mais poderoso para produzir um mapa cognitivo que permite lembrar do local em que esse alimento foi encontrado (sabe-se que primatas tem mapas cognitivos muito complexos). Além disso, fruta é um recurso pelo qual há competição, diferente das folhas. Isso é consistente com o dado de que o gene que regula o desenvolvimento do encéfalo (regula o tamanho desse órgão pelo controle do número de divisões celulares), controla também o desenvolvimento do estômago e intestino. A hipótese ecológica trata da questão energética da alimentação: o custo de digerir folhas é muito maior do que digerir frutas; um gasto energético maior com digestão reduz a quantidade de energia disponível para o metabolismo encefálico. De fato, o tamanho do encéfalo é inversamente correlacionado com o tamanho do tubo digestivo. A utilização da estratégia de comparação entre taxa de neocórtex e (1) porcentagem de frutas na dieta e (2) extensão território (obtido pelo residual da regressão entre massa corpórea e extensão do território), no entanto, não apresentou correlação; esses dados favorecem a hipótese social da evolução da inteligência.

G

Figura 7. Tendência de que primatas comedores de folhas apresentem maiores residuais encefálicos do que primatas comedores de folhas.

Independente de qual a origem, a inteligência está associada com alta capacidade de processamento, que demanda grandes encéfalos.

Medidas neuroanatômicas da inteligência O tamanho dos encéfalos varia bastante entre os primatas: os prossímios

apresentam o menor volume encefálico, seguido pelos macacos do novo mundo, macacos do velho mundo e, com os maiores encéfalos, os grandes símios. No entanto, poderia se argumentar que essa diferença se deve a uma maior quantidade de “corpo” que precisa ser controlada, uma vez que a gradação de massa corpórea tem exatamente a mesma ordem. Assim, as comparações entre tamanho encefálico de diferentes espécies devem considerar o tamanho do corpo; isso é feito através da comparação entre residuais encefálicos.

Page 245: Livro CI 2007

  237

H

Figura 8. Gráficos massa corporal x volume encefálico e massa corporal x volume neocortical: observar os residuais encefálicos e neocorticais.

Pode-se argumentar também que a comparação entre residuais encefálicos não é a melhor medida para avaliar cognição, baseada na noção que os comportamentos “inteligentes” seriam processados no neocórtex e que as outras estruturas estariam relacionadas com processamentos mais estereotipados. Assim, a comparação entre os residuais neocorticais seriam medidas melhores para avaliar inteligência. Indo além, como a realização de tarefas de raciocínio e cálculo mental estão associadas a grande ativação do córtex pré-frontal, pode-se defender que o residual pré-frontal seria a medida mais precisa.

Apesar desse do esforço para isolar medidas mais precisas de estruturas relacionadas com inteligência, há autores que defendem o uso de medida encefálica completa (sem separar estruturas relacionadas com processamento de capacidades cognitivas) sem a relativização pela massa corpórea; isso é, a medida do tamanho absoluto do encéfalo é que melhor prediria a capacidade cognitiva de primatas (Deaner, 2007).

A capacidade de processamento não depende somente do tamanho (absoluto ou relativo) do encéfalo, depende também da organização intrínseca do órgão; nesse sentido, o aumento da mielinização, a redução da distância entre neurônios e o aumento número de neurônios no córtex seriam também boas medidas de inteligência, já que definem diretamente a velocidade de transmissão do impulso nervoso, a distância dessa transmissão e a quantidade de unidades de processamento, respectivamente (Roth, 2005). Os grandes símios e a espécie humana são os únicos que apresentam um tipo de neurônio de morfologia diferenciada, que é com número de conexões maior e que tem provável função cognitiva, denominado como “célula com forma de espinho” (Nimchinsky, 1999); o número de conexões entre neurônios também é um elemento que influencia na capacidade de processamento.

Page 246: Livro CI 2007

 238 

Figura 9. “Células com forma de espinho”, presentes em humanos, bonobo, chimpanzé, gorila e orangotango e ausentes em gibão, macaco e lêmure. I

A inteligência em seres humanos Nós somos a espécie com o mais alto nível de inteligência, e que apresenta a maior

capacidade de resolver problemas. Podemos ter desempenho inferior a outras espécies em problemas específicos, mas conseguimos criar novas estratégias para problemas que nos são apresentados (inteligência), e somos capazes de transmitir essa informação para outros indivíduos da nossa espécie (cultura). Essa combinação entre capacidade cognitiva e cultural elaboradas nos tornou uma espécie de grande sucesso.

A evolução da inteligência dos humanos está provavelmente associada com o aumento da complexidade social, cultura, linguagem e uso de ferramentas. Uma idéia bastante influente que trata da complexidade social é conhecida como hipótese maquiavélica, que sugere que a principal pressão evolutiva para o aumento da inteligência em humanos era a competição entre indivíduos, principalmente a competição sexual entre indivíduos do mesmo gênero (Alexander, 1979). Nessa teoria a principal função da comunicação é prever e manipular o comportamento de outros indivíduos. Outra hipótese para a evolução da inteligência em humanos é que se trata de um caso de seleção sexual (Ridley, 1993) – ser inteligente, charmoso e divertido era sexy para nossos ancestrais! Essa hipótese requer apenas uma preferência inicial por parceiros mais inteligentes e o restante do processo se dá por retroalimentação positiva.

A grande capacidade cognitiva está associada características usualmente consideradas exclusivas da espécie humana: a imitação, a teoria da mente e a linguagem (Roth, 2005). A imitação verdadeira requer que o observador armazene a representação da ação de um demonstrador e use-a para gerar ação similar em si próprio. Os humanos seriam os únicos capazes de imitar o procedimento e o resultado. Outros animais aprenderiam através de simples condicionamentos. A segunda característica exclusiva é a teoria da mente, que é a capacidade de atribuir estados mentais a outros indivíduos – capacidade de entender o que outros vêem, sentem e sabem. Essa capacidade é essencial para poder prever e manipular o comportamento dos outros, citada anteriormente na hipótese maquiavélica. Crianças com idade inferior a 4 anos não possuem essa capacidade, demonstrada pelo teste em (1) observam um brinquedo colocado na caixa 1 ao lado de um outro expectador (o “palhaço”), (2) em seguida o brinquedo é retirado da caixa 1 e colocado na caixa 2, sem que o “palhaço” observe essa ação, (3) ao final, pergunta-se onde o “palhaço” procurará o brinquedo, e a criança responde a caixa 2, indicando que não conseguiu entender o que o “palhaço” sabe. Essa capacidade pode ser observada em crianças com mais de 4 anos; no entanto, indivíduos com autismo permanecem sem ter teoria da mente mesmo na idade adulta. Macacos foram colocados em uma condição que permite avaliar a existência de teoria da mente: após treinamento inicial que aprenderam a não usar bebedouros na presença de uma pessoa, foram oferecidos dois bebedouros, sendo que um desses bebedouros era visível a pessoa enquanto o outro bebedouro estava associado a um anteparo que não permitia a visibilidade dessa pessoa; em condição que a pessoa era apresentada por um longo

Page 247: Livro CI 2007

  239

período, os macacos usaram os dois bebedouros com a mesma freqüência, indicando que não conseguiram entender o que a pessoa vê. A terceira característica citada como exclusiva de humanos é a linguagem – é razoável considerar que os humanos são os únicos que apresentam linguagem com semântica e sintática bem definida.

Figura 10.Tarefas que avaliam teoria da mente em humanos e macacos. J

Além dessas características comportamentais exclusivas, os humanos apresentam medidas do encéfalo, córtex e córtex pré-frontal muito maiores do que os demais primatas. Com o estudo da regressão da massa corpórea pelo volume da caixa craniana (proporcional encéfalo, possível de ser medido em fósseis) em indivíduos do grupo dos grandes símios e dos gêneros Australopithecus e Homo, é possível notar um aumento muito grande do volume craniano com pequeno aumento na massa corpórea entre os indivíduos do gênero Homo, o que não ocorre em grandes símios ou Australopithecus (Roth, 2005). Há também uma grande diferença na organização intrínseca do córtex: os humanos apresentam o maior número de neurônios, menor distância entre neurônios e maior mielinização (Roth, 2005).

L

Figura 11. Espécies de grandes símios e do gênero Australopithecus apresentam aumento reduzido no volume da caixa craniana com aumento da masa corpórea em relação a espécies do gênero Homo.

A espetacular diferença entre os humanos e os outros primatas nas características apresentadas, torna a afirmação de que nós gozamos de diferenças cognitivas qualitativas razoável. Além disso, o volume craniano humano é de 1350 – 1400 cm3, enquanto o do chimpanzé é de apenas 410 cm3 o dá mais um argumento para a hipótese qualitativa.

Page 248: Livro CI 2007

 240 

Figura 12. A observação dos crânios de chimpanzé e de humano atuais da figura superior sugere uma diferença qualitativa entre essas espécies.

Por outro lado, se organizarmos os crânios de espécies fósseis pela datação (em razão da filogenia ainda ser muito controversa), inserindo exemplares de Australopithecus e Homo, colocando chimpanzé atual antes do Australopithecus mais antigo e o humano atual após o Homo fóssil mais recente, não é possível observar nenhum salto. Essa organização evidencia o aspecto gradual das modificações cranianas no registro fóssil. Além disso, não há estruturas neuroanatômicas diferentes entre humanos e chimpanzés; há apenas diferença de tamanho nessas estruturas.

Figura 13. Crânios fósseis organizados pela data revelam alteração gradual do tamanho do encéfalo, sugerindo que na verdade a diferença entre os crânios de chimpanzé e de humano atuais se deva a uma série de mudanças quantitativas, mas que foram mantidos vivos apenas o início e o fim do processo. M

Há controvérsias sobre a possibilidade de classificar imitação, teoria da mente e linguagem como características comportamentais exclusivas da espécie humana. Imitação pode ser encontrada em outros primatas, como o exemplo do filhote bonobo que tem acesso ao endosperma de cocos quebrados pela mão até cerca de 1 ano de idade; após

Page 249: Livro CI 2007

  241

esse período o jovem tenta quebrar o coco, mas não tem sucesso até completar cerca de 4 anos; por todo esse período o jovem fez uma ação sem obter resultado favorável, processo que não pode ser interpretado com condicionamento, que se trata de uma imitação verdadeira. Há diversos relatos que suportam existência de teoria da mente em primatas não humanos, embasados em observações em que indivíduos supostamente enganam outros de seu grupo social, como o relato de que um animal subordinado parece se esconder do animal dominante para realizar comportamento sexual ou contato social íntimo; o ato do animal subordinado se esconder atrás de uma pedra pode ser interpretado como uma capacidade de interpretar a perspectiva visual do animal dominante. A linguagem parece também não exclusiva dos humanos. Macacos-vervet usam três tipos de sons de alarme contra predadores: o som para águias faz com que os macacos olhem para cima, som para cobra faz com que os macacos olhem para grama no solo e o som para leopardos faz com que os macacos corram para as árvores (Shettleworth, 1998); isso pode ser interpretado como uma semântica simples. A chimpanzé Lana, treinada a usar um teclado com símbolos, era capaz de gerar frases, ou seja, apresenta comunicação com sintática. A chimpanzé Lucy, treinada com linguagem de sinais, associou os símbolos “fruta” e “beber” para se referir a melancia; à chimpanzé Washoe foi apresentada ao símbolo “geladeira”, mas utilizava a combinação entre os símbolos “abrir”, “comer” e “beber” (Maturana, 1988). Isso reforça a idéia de que os chimpanzés apresentam uma linguagem simples. Evidenciou-se, então, que as características consideradas exclusivas de primatas são encontradas em outros primatas em grau inferior.

Figura 14. Relato de comportamentos que pode ser interpretado como teoria da mente, observado em primatas não humanos. Essa capacidade comportamental é extremamente elaborada em seres humanos, no entanto pode ser encontrada de modo simplificado em primatas não humanos. N

Considerando esses dados de que primatas não humanos apresentam, mesmo que de modo simplificado, as características usualmente consideradas exclusivas de seres humanos, pode-se pensar que na verdade a nossa inteligência seria resultado uma grande série de mudanças quantitativas, que teriam determinado uma mudança falsamente qualitativa. Apresentando essa questão de outra forma, tendemos a considerar que temos uma capacidade cognitiva qualitativamente diferente daquela observada nos demais primatas em razão do registro das diferenças quantitativas ter sido apagado com a extinção das espécies mais próximas da espécie humana, pertencentes aos gêneros Autralopithecus e Homo.

Referências Alexander R, Hoogland J, Howard R, Noonan K, Sherman P (1979) 'Sexual dimorphism and breeding systems in

pinnipeds, ungulates, primates, and human. In: Chagnon NA e Irons W (eds) "Evolutionary biology ad social human behavior: an anthropological perspective".' (Duxbury Press: North Scituate, MA)

Allman J (1998) 'Evolving brains.' (Scientific American Library - W. H. Freeman: New York) Deaner R, Isler K, Burkart J, van-Schaik C (2007) Overall Brain Size, and Not Encephalization Quotient, Best Predicts

Cognitive Ability across Non-Human Primates. Brain, Behavior and Evolution 70. Dunbar R (1998) The Social Brain Hypothesis. Evolutionary Anthropology 6, 178 – 190. Foley R (1996) 'Humans before Humanity - Cap. Why are Humans so Rare in Evolution?' (Blackwell Publishing: Oxford) Harvey P, Krebs J (1990) Comparing brains. Science 249, 150–156. Hinde R (1966) 'Animal Behavior: A synthesis of Ethology and Comparative Psychology.' (McGraw-Hill: New York)

Page 250: Livro CI 2007

 242 

Kalat J (1983) Evolutionary Thinking in the History of the Comparative Psychology of Learning. Neuroscience & Biobehavioral Reviews 7, 309-314.

Macphail E, Bolhuis J (2001) The evolution of intelligence: adaptive specializations versus general process. Biological Reviews 7, 341-364.

Maturana H, Varela F (1988) 'The Tree of Knowledge.' (New Science Library) Nimchinsky E, Gilissen E, Allman J, Perl D, Erwin J, Hof P (1999) A neuronal morphologic type unique to humans and

great apes. PNAS 96, 5268–5273. Ridley M (1993) The Red Queen: Sex and the Evolution of Human Nature, Penguin Rizzolatti G (1998) 'Mirror Neurons. In: Brain ans Mind: evolutionary perspectives. Ed. Gazzaniga M e Altman J.' (HFSP:

Strabourg) Romanes G (1882) 'Animal Intelligence.' (Kegan Paul, Trench: London) Roth G, Dicke U (2005) Evolution of the brain and intelligence. TRENDS in Cognitive Sciences 9, 250-257. Rozin P (1998) 'Evolution and development of brain and cultures: some basic principles and interactions. In: Brain ans

Mind: evolutionary perspectives. Ed. Gazzaniga M e Altaman J.' (HFSP: Strabourg) Sherwood C, Lee P, et al. (2003) Evolution of Specialized Pyramidal Neurons in Primate Visual and Motor Cortex.

Brain, Behavior and Evolution 61, 28–44. Shettleworth S (1998) 'Cognition, Evolution, and Behavior.' (Oxford University Press: New York) Slotnick B, Katz H (1974) Olfactory learning-set formation in rats. Science 185, 796-798. Squire L, Kandel E (2002) 'Memória: da mente às moléculas.' (Porto Editora: Porto) Tinbergen N (1951) 'The Study of Instinct.' (Oxford University Press: Oxford) Thorndike E (1911) 'Animal Intelligence.' (Hefner: Darien)

Figuras A darwin http://donsmaps.com/images5/darwin.jpg romanes http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/0c/George_John_Romanes.jpg thorndike http://faculty.frostburg.edu/mbradley/psyography/thorndike.gif pavlov http://www.muskingum.edu/~psych/psycweb/history/pavlov.gif skinner http://www.psychology.uiowa.edu/Faculty/wasserman/Glossary/skinner.jpg watson http://www.usu.edu/psycho101/lectures/chp1history/watson.jpg tinbergen http://content.answers.com/main/content/wp/en/3/3b/Nikolass_Tinbergen.gif B lemure http://www.sapere.it/tc/img/Mgz/2004/Agosto/lemure.jpg macaco-prego http://www.dbi.ufms.br/ecopan/prego.jpg macaco-rhesus http://images.livescience.com/images/060605_rhesus_macaque_04.jpg bonobo http://www.chamaree.com/wp/wp-content/photos/bonobo.jpg humano http://www.ratemymullet.com/mullets242/7.jpg C, D e G Allman J (1998) 'Evolving brains.' (Scientific American Library - W. H. Freeman: New York) E Allman J (1998) 'Evolving brains.' (Scientific American Library - W. H. Freeman: New York) e Rizzolatti G (1998)

'Mirror Neurons. In: Brain ans Mind: evolutionary perspectives. Ed. Gazzaniga M e Altman J.' (HFSP: Strabourg) F e H Baseado em dados de (encontrar) I Nimchinsky E, Gilissen E, Allman J, Perl D, Erwin J, Hof P (1999) A neuronal morphologic type unique to humans and

great apes. PNAS 96, 5268–5273. J e N Shettleworth S (1998) 'Cognition, Evolution, and Behavior.' (Oxford University Press: New York) L Roth G, Dicke U (2005) Evolution of the brain and intelligence. TRENDS in Cognitive Sciences 9, 250-257. M 1a (encontrar) 2a http://www.mnh.si.edu/anthro/humanorigins/

Page 251: Livro CI 2007

  243

O estudo de solução de problemas Pedro Leite Ribeiro ([email protected]) - Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva

Os estudiosos de solução de problemas estão tentando entender e medir as diferenças cognitivas entre algumas espécies animais, incluindo nós. Aqui temos uma breve discussão sobre algumas características desses estudos.

A idéia de classificar espécies num contínuo. Naturalmente um dos desafios é desenhar problemas que tenham diferentes níveis

de dificuldade para que seja possível ver qual espécie pode resolvê-los e até que nível. Idealmente os problemas poderiam ser postos numa escala de dificuldade, com a qual animais/humanos poderiam ter seu desempenho testado, através de mediadas quantitativas de pontos, eles poderiam ser classificados no nível cognitivo apropriado.

Parece óbvio que humanos estariam no topo, o desafio seria classificar os outros. Por exemplo, chimpanzés parecem estar em segundo, logo atrás de nós, depois viriam os outros Pongidae, e então os macacos. Animais como cachorros e golfinhos são esperados logo atrás dos primatas, isto devido a sua reputação tanto junto ao público geral como no meio científico.

Tais idéias se baseiam na premissa de que essa habilidade pode ser medida de maneira quantitativa, mesmo que não seja continua. É verdade que alguns estudos mostram algumas evidências de diferenças qualitativas, no entanto, estas diferenças parecem estar baseadas em características quantitativas. As diferenças qualitativas estão associadas a pulos para uma posição mais alta na classificação de cognição. Esta impressão da existência de “pulos” pode ser fruto do fato de pesquisadores procurarem problemas que não podem ser resolvidos por uma determinada espécie, mas que podem ser resolvidos por outra que estaria num degrau superior na escala cognitiva. Esta abordagem passa a idéia de diferenças qualitativas, que na verdade podem não existir. No entanto, quando comparamos com uma abordagem que leve em consideração o tempo e o número de erros que cada espécie animal leva para resolver o problema, as características quantitativas voltam a aparecer.

A dificuldade dos problemas apresentados aos sujeitos experimentais O que é dificuldade? O que é um problema fácil? Quanto mais difícil é um problema

de outro, como a distância (em termos de dificuldade) que separa um problema de outro pode ser medida?

As tentativas de estabelecer o que é dificuldade e o que é facilidade parecem se basear em diferentes pressupostos. Uma fonte de inspiração parece vir da observação da nossa própria maneira de lidar com problemas. No entanto, esta fonte não é simples. A maioria, senão todos os problemas que nos deparamos na nossa vida diária, podem ser resolvidos por meio de habilidades culturais adquiridas por meio de ferramentas cognitivas. Psicólogos, conscientes dessa complicação estão a mais de um século, tentando e desenvolvendo instrumentos capazes de medir coisas como inteligência e criatividade. Apesar dos debates a respeito do sucesso alcançado por eles é evidente que algum progresso foi feito. O senso comum diz que alguns indivíduos são mais inteligentes e criativos do que outros. No entanto, pessoas comuns (não pesquisadores) ficam muito confusas quando tentam explicar essas diferenças, e tudo que sobra, quando eles são confrontados com perguntas, é apenas uma vaga idéia que existem algumas diferenças. Psicólogos parecem ter ido um pouco além do senso comum, uma vez que eles livraram seus testes dos mais óbvios efeitos da cultura, como por exemplo, a educação formal. Em particular, com relação aos estudos de desenvolvimento cognitivo de crianças, eles chegaram a algum consenso do que esperar do desempenho de crianças nos diversos estágios do desenvolvimento. Portanto, uma das idéias do estudo da cognição animal é adaptar os problemas usados com humanos, sejam aqueles usados para medir diferenças individuais ou aqueles usados para mediar diferenças relacionadas com o desenvolvimento.

Outra importante fonte de inspiração vem do uso de ferramentas. Em alguma intensidade toda espécie animal tem que lidar com coisas do ambiente por intermédio do contato físico. Na locomoção, tanto em terra como no ar e na água, os animais têm que

Page 252: Livro CI 2007

 244 

lidar com irregularidades do meio, caso contrario eles não vão conseguir se locomover de maneira satisfatória e adaptativa. Correr no chão pode parecer um desafio grande o suficiente, isso sem falar em algumas espécies de macacos que podem se movimentar em altas velocidades de uma arvore para outra, isso certamente parece prodigioso para um observador humano. No entanto, tais desempenhos são classificados apenas como habilidades vísuo-motoras, sem implicações cognitivas. Em locomoção apenas detour (se distanciar do destino desejado para poder alcançá-lo) parece requere níveis cognitivos mais elevados.

Várias outras categorias de comportamento envolvem coordenação e contato corporal entre o animal e o ambiente que ele vive, como por exemplo: comer, brigar, cavar, construção de ninho, transportar (objetos, presas, filhotes, comida), empurrar, puxar, remover objetos, jogar, deixar cair, e uso de ferramentas. Em todas essas atividades o animal poderá ter que fazer rápidos e finos ajustes de comportamento, não importa com que eles estejam lidando. Na luta, tais ajustes devem ser feitos em coordenação com os movimentos do oponente, que pode ser um rival, uma presa um predador etc. Com relação a todas estas atividades, muitas serão classificadas como habilidades pecepto-motoras, porém algumas delas podem envolver algum nível de habilidade cognitiva, como inferências.

Coordenação do contato corporal de um animal com o seu ambiente não é, no entanto, a única maneira possível de mostrar e identificar habilidade cognitivas. Aspectos motores são obviamente marginais em algumas refinadas performances humanas, como jogar xadrez ou raciocínio matemático. De fato, o comportamento pode parecer irrelevante para o estudo destas habilidades cognitivas. No entanto, se faz certamente necessário como abordagem metodológica uma vez que serve de mecanismo para se chegar ao verdadeiro objeto de estudo; o cérebro do animal.

O uso de ferramentas tem se revelado uma janela de ouro para dentro da mente do animal por boas razões. Humanos são de longe os mais proficientes utilizadores de ferramentas. Alguns podem advogar que o uso de ferramentas foi a causa de nosso desenvolvimento cognitivo no começo de nossa evolução. Portanto, o uso de ferramentas pode ser a causa e um sinal de altos níveis de habilidades cognitivas. Chimpanzés, frequentemente lembrados pelo alto nível de sua inteligência, são utilizadores de ferramentas, portanto, esta é mais uma razão para acreditar na correlação entre cognição e uso de ferramentas. Mais uma razão vem da consideração a respeito da natureza do uso de ferramentas. O argumento aqui é que o uso requer e mostra capacidades mentais como compreensão de relações causais, antecipação de resultados, percepção de propriedades funcionais dos objetos, planejamento, intenções e inferências.

A combinação das idéias descritas acima parece estar relacionada com os estudos sobre puxamento de cordas (Osthaus at all 2005, Heinrich and Bugnyar 2005), empurrar através de tubos (Visalberghi and Limongelli 1994), encaixar copos e seleção de ferramentas (Rosengart and Fragazsy 2005, Santos at all 2003). Estes quatro desenhos experimentais citados mostram de maneira não controversa níveis de dificuldade, baseados na idade que crianças podem resolvê-los e também em óbvios incrementos de complexidade.

Dificuldades da noção de dificuldade. Várias importantes dificuldades têm que ser enfrentadas. Uma se relaciona com o

fato que diferentes espécies têm diferentes habilidades, que podem em determinadas situações fazer com uma mesma tarefa seja mais fácil para a espécie A do que para a espécie B, estas características podem interferir, funcionando como um handicap para uma determinada espécie num teste em particular. Alguns aspectos podem variar desde anatômicos, até emocionais, temperamentais, habilidades perceptuais, idade, sexo, experiência passada e diferenças individuais. É também importante ressaltar que não de maneira alguma é fácil antecipar todos os possíveis efeitos destas coisas, levá-los em consideração e controlar todos eles.

Por exemplo, Rosengart em seu artigo (Rosengart, 2005) pensou que os copos com bordas que eles usaram em seus testes com macacos poderiam interferir no desempenho em comparação com os copos lisos oferecidos aos chimpanzés, e também que os chimpanzés poderiam ter alguma dificuldade com o tamanho pequeno dos copos com bordas. Tais detalhes poderiam interferir e arruinar o teste (fato que não aconteceu no

Page 253: Livro CI 2007

  245

experimento). Também, na experiência do tubo da armadilha por Rosengart 2005 um dos quatro macacos estudados (nomeado Rb) teve um desempenho claramente mais elevado do que o outro, seus resultados significam possivelmente algo como uma habilidade cognitiva mais elevada. O Rb era mais novo e menos experiente em problemas do tubo do que o outro. Poderia ter se levantado à hipótese de que animais mais novos têm habilidades mais elevadas para resolver problemas, mas Takeshita et al 2005, Rosengart e Fragazsy 2005 advertem, com propriedade, que a idéia de que uma experiência anterior com um problema similar sempre leva a uma vantagem, pode não ser verdadeira.

Há evidências que, dominando uma tarefa, um animal usará o conhecimento desta tarefa ao enfrentar um problema similar, e isso acontece mesmo quando não é adequado, isso é mostrado em situações que o animal usa artifícios inúteis para a solução do problema somente por causa da experiência anterior. (Rosengart e Fragaszy 2005). Muitas outras coisas tais como aquelas exemplificadas acima são desafios à imaginação dos investigadores de estudos sobre solução de problemas. Eles têm que projetar experimentos capazes de evitar todos os tipos de interpretações paralelas que não aquelas relacionadas que o que eles se propuseram a investigar.

Um dos maiores problemas no estabelecimento de quão difícil um problema é vem da dificuldade de saber e entender a estratégia usada pelo animal para resolver o problema. Deste fato algumas perguntas de extrema importância aparecem. O problema realmente requer o nível de habilidade cognitiva que ele foi projetado para medir? Ou ele pode ser resolvido de maneira mais fácil, que requer um nível de habilidade cognitiva menor do que o experimentador pensa que requer?

Um bom exemplo de como estas questões podem ter conseqüências vem dos experimentos feitos por Osthaus et al. Neste estudo os autores advogam que cachorros não podem entender problemas de meio e fim (problemas de meio e fim são aqueles que a solução (fim) depende do entendimento do processo (meio) de solução). É bem verdade que provar a inexistência de um determinado fenômeno é sempre mais difícil do que provar sua existência.

O experimento de Osthaus et al 2005: Um dos testes propostos pelos autores consistiu na oferta de alimento numa caixa

transparente, sendo que este alimento estava preso a uma corda e a única maneira de conseguir o alimento era puxar a corda até que a comida passasse por uma pequena abertura na caixa de acrílico. Uma segunda corda, igual à primeira, também podia ser puxada (pelos cachorros) da arena experimental, no entanto, esta segunda corda não tinha comida presa ao final. Estas duas cordas estavam cruzadas como um X e o ponto de cruzamento estava dentro da caixa, de forma que os cachorros não tinha acesso.

Portanto, os cachorros tinham duas cordas para puxar, sendo que apenas uma tinha comida no final. Por causa deste fato, serem duas cordas em X é que este experimento é considerado um experimento de começo e fim. Afinal, para o cachorro não basta entender que tem que puxar a corda ele tem que associar que a corda tem que estar presa a comida, tem que entender o processo que resulta no sucesso em conseguir a recompensa.

Usando esta montagem experimental quatorze cachorros foram testados vinte vezes cada um. Os autores contaram quantas vezes os cachorros puxaram primeiro a corda certa e quantas vezes eles tentaram primeiro a corda errada. Os resultados mostram que em menos de 50% das vezes os cachorros puxaram a corda certo primeiro. Por conta deste resultado os autores dizem que os cachorros não são capazes de resolver problemas de começo e fim. Afinal, aparentemente não foram capazes de associar qual corda estava presa ao alimento.

No entanto, o estudo mais detalhado dos resultados apresentados pelos autores pode levar a uma interpretação um pouco diferente. Os cachorros entravam na arena experimental e de forma afobada (típica de cachorros) e rapidamente puxavam as cordas. Vale ressaltar que os cachorros que primeiro puxavam a corda errada não eram impedidos de puxar a segunda e, portanto, correta. Desta maneira, se fosse possível perguntar aos cachorros no final do experimento o que eles acharam, eles talvez não dissessem como acreditam os autores “ Diabo! não consigo matar o problema das cordas” talvez eles dissessem “ Simples! Bastar puxar as cordas”. A segunda interpretação vem da não punição do cachorro que puxa a primeira corda errada e, portanto, da inexistência da

Page 254: Livro CI 2007

 246 

necessidade do entendimento completo do problema para o sucesso na obtenção da recompensa.

Desta maneira, como comentávamos antes da descrição deste experimento: “O problema realmente requer o nível de habilidade cognitiva que ele foi projetado para medir? Ou ele pode ser resolvido de maneira mais fácil, que requer um nível de habilidade cognitiva menor do que o experimentador pensa que requer? Estas questões parecem mais oportunas do que nunca, “ Simples, basta puxar as cordas”. De fato, os cachorros não se comportaram de maneira que demonstrasse que eles entenderam que apenas uma corda estava ligada ao alimento (disto segue a argumentação dos autores), no entanto, talvez eles tenham se comportado desta maneira porque não lhes foi exigido o entendimento total do problema.

A incrível habilidade dos insetos Consideremos, por exemplo, o estudo de comportamento de invertebrados, como

artrópodes. Estes animais são capazes de performances impressionantes, como a construção de complexos ninhos, caçar, comunicação e etc. Por várias razões, o ponto inicial de estudiosos de comportamento de insetos é assumir que os comportamentos observados não podem ser fruto de habilidades cognitivas semelhantes as humanas. Os modelos deles geralmente partem de idéias relacionadas com uma abordagem robótica, na qual eles procuram regras simples, que quando seguidas possam dar conta de explicar a aparente complexidade dos comportamentos observados.

Uma outra fonte de preocupação vinda da interpretação dos experimentos de solução de problemas se relaciona com o conceito de modular ou de domínios cognitivos. Se esta idéia estiver correta, um animal pode ter uma habilidade para um específico contexto, como construção de ninho, e carecer totalmente em outro contexto, como forrageamento. (ou o contrário, claro).

Como conseqüência o objetivo de classificar diferentes espécies certamente vai se deparar com severas complicações. A noção de alguma coisa como habilidade cognitiva geral (similar com o censo comum de noção de inteligência) terá que co-existir com a noção de habilidades de contexto - ou ser totalmente substituída por ela.

Conclusão Pesquisadores de solução de problemas têm se deparado com questões difíceis na

busca do entendimento da cognição animal. Pode ser que estas questões sejam muito difíceis para nós, portanto talvez nós tenhamos achado o limite de nossa própria espécie. É claro que pesquisadores ativos na área vão discordar e não vão aceitar que este problema não pode ser resolvido. Pelo menos eles devem admitir que não é possível oferecer uma solução agora, mas que eles estão no caminho de fazê-lo, e que portanto, é apenas uma questão de tempo e esforço. De fato a história do desenvolvimento cultural humano parece ter dado uma lição na visão pessimista, afinal, a história humana é um poderoso argumento de que qualquer problema apresentado a nós será eventualmente resolvido.

Apesar de todas as dificuldades relacionadas com o estudo de solução problemas, os resultados disponíveis são substancias. É possível antecipar fracassos e sucessos. No entanto, se você olhar para estes estudos sem pensar em rigorosas comparações entre espécies animais e se concentrar nas lições a respeito da cognição, certamente sua importância ficará clara o suficiente.

Referências citadas e relacionadas:

Fragaszy - Lectures in the course “Problem Solving” in the university of São Paulo, 2006, were decisive for the preposition of this essay.

Heinrich, B., and Bugnyar, T. 2005. Testing problem-solving in ravens: string-pulling to reach food. Ethology 111: 962-976.

Osthaus, B., Lea, S., and Slater. A. 2005. Dogs (Canis lupus familiaris) fail to show understanding of means-end connections in string-pulling task. Animal Cognition 8:37-47

Rosengart, C. R., and Fragaszy, D.M. 2005. Experience and materials affect combinatorial construction in tufted capuchins monkeys. Journal of Comparative Psychology 119:166-178.

Santos, L., Miller, C ., Hauser, M. 2003. Representing tools: how two non-human primate species distinguís between the functionally relevant and irrelevant features of a tool. Animal Cognition 6:269-281.

Takeshita, H., Fragaszy, D., Mizuno, Y., Matsuzawa, T. Tomonaga, M., and Tanaka, M. 2005. Exploring by doing. How young chimpanzees discover surfaces through action with objects. Infant Behavior and Development 28:316-328.

Page 255: Livro CI 2007

  247

Visalberghi, E., and Limongelli, L. 1994. Lack of comprehension of cause-effect relations in tool-using capuchin monkeys. J Comparative Psychology 108:15-22.

Boesch, C & Boesch, H. 1989. Cooperative hunting in wild chimpanzees. American Journal of Physical Anthropology 78(4):547-573

Cronin, K., Kurian, A., and Snowdon, C. 2005. Cooperative problem solving in a cooperatively breeding primate (Saguinus Oedipus). Animal Behaviour 69:133-142.

Visalberghi, E., Pellegrini Quarantotti, B., and Tranchida, F. 2000. Solving a cooperation task without taking into account the partner’s behavior. The case of capuchin monkeys. J. Comparative Psychology 114: 297-301.

Mendres, K.,and de Waal, F. 2000. Capuchins do cooperate: The advantages of an intuitive task. Animal Behaviour 2000. 60:523-529.

Tebbich, S., Taborsky, M ., and Winkler, H. 1996. Social manipulation causes cooperation in keas. Animal Behaviour 52:1-10.

Adams-Curtis, L., Fragaszy, D. & England, N. 2000. Prehension in infant capuchins (Cebus apella) from six weeks to twenty-four weeks: Video analysis of form and symmetry. American Journal Of Primatology, 52, 55-60.

Christel, M. I. & Fragaszy, D. 2000. Manual function in Cebus apella. Digital mobility, preshaping, and endurance in repetitive grasping. International Journal Of Primatology, 21, 697-719.

Fragaszy, D. 1994. Hands Of Primates - Preuschoft,H, Chivers,D. Ethology, 98, 171-172. Fragaszy, D. 2006. Hercules with a tail: A natural history of nut-cracking among the capuchin monkeys of southern

Piaui, Brazil. American Journal Of Primatology, 68, 79-80. Fragaszy, D., Baer, J. & Adamscurtis, L. 1994. Introduction And Integration Of Strangers Into Captive Groups Of Tufted

Capuchins (Cebus-Apella). International Journal Of Primatology, 15, 399-420. Fragaszy, D., Izar, P., Visalberghi, E., Ottoni, E. B. & De Oliveira, M. G. 2004. Wild capuchin monkeys (Cebus

libidinosus) use anvils and stone pounding tools. American Journal Of Primatology, 64, 359-366. Fragaszy, D., Johnson-Pynn, J., Hirsh, E. & Brakke, K. 2003. Strategic navigation of two-dimensional alley mazes:

comparing capuchin monkeys and chimpanzees. Animal Cognition, 6, 149-160. Fragaszy, D. & Visalberghi, E. 1987. Factors Influencing The Spread Of Novel Behavior Within Groups Of Capuchins.

International Journal Of Primatology, 8, 429-429. Fragaszy, D. & Visalberghi, E. 2004. Socially biased learning in monkeys. Learning & Behavior, 32, 24-35. Fragaszy, D., Visalberghi, E. & Galloway, A. 1997. Infant tufted capuchin monkeys' behaviour with novel foods:

Opportunism, not selectivity. Animal Behaviour, 53, 1337-1343. Gunst, N., Boinski, S. & Fragaszy, D. 2006. The ontogeny of foraging skills in wild brown capuchins (Cebus apella),

Raleighvallen, Suriname. American Journal Of Primatology, 68, 32-33. Izar, P., Verderane, M. P., Visalberghi, E., Ottoni, E. B., De Oliveira, M. G., Shirley, J. & Fragaszy, D. 2006. Cross-

genus adoption of a marmoset (Callithrix jacchus) by wild capuchin monkeys (Cebus libidinosus): Case report. American Journal Of Primatology, 68, 692-700.

Jeyaraj, T., Iversen, I., Leighty, K. A. & Fragaszy, D. 2006. Interactions between reward expectation and sweeping across a linear array of dots in an automated touchscreen drawing task by a captive capuchin monkey (Cebus apella). American Journal Of Primatology, 68, 56-56.

Liu, Q., Fragaszy, D. & Simpson, K. 2006. Kinematics of nut-cracking in wild capuchin monkeys in Piaui, Brazil. American Journal Of Primatology, 68, 111-111.

Matheson, M. D., Cooper, M., Weeks, J., Thompson, R. & Fragaszy, D. 1998. Attribution is more likely to be demonstrated in more natural contexts. Behavioral And Brain Sciences, 21, 124-+.

Osthaus, B., Lea, S. E. G. & Slater, A. M. 2005. Dogs (Canis lupus familiaris) fail to show understanding of means-end connections in a string-pulling task. Animal Cognition, 8, 37-47.

Pickering, T., Kennedy, E. H., von Ammon, B., Scott, N., Fragaszy, D. & Wintje, J. 2006. A capuchin monkey learns to navigate. American Journal Of Primatology, 68, 119-119.

Scott, N. M., Fragaszy, D. & Menzel, C. 2006. Chimpanzees' (Pan troglodytes) strategies for managing concurrent, asymmetric spatial relations in an insertion task. American Journal Of Primatology, 68, 118-118.

Visalberghi, E. & Fragaszy, D. 1995. The Behavior Of Capuchin Monkeys, Cebus-Apella, With Novel Food - The Role Of Social-Context. Animal Behaviour, 49, 1089-1095.

Visalberghi, E., Fragaszy, D., Fedigan, L., Izawa, K., Robinson, J., Defler, T., Janson, C., Brown, A., Pargament, M., Zunino, G., Welker, C., Watts, E., Antinucci, F., Spinozzi, G., Adamscurtis, L., Mason, W. A. & Suomi, S. 1987. Toward Understanding Behavioral Adaptability In Cebus. International Journal Of Primatology, 8, 404-404.

Visalberghi, E., Valente, M. & Fragaszy, D. 1998. Social context and consumption of unfamiliar foods by capuchin monkeys (Cebus apella) over repeated encounters. American Journal Of Primatology, 45, 367-380.

Page 256: Livro CI 2007

 248 

Neuroeconomia: a fisiologia da tomada de decisão Luiz Eduardo Tassi ([email protected]) - Laboratório de Neurociências e Comportamento

A questão de como os animais, especialmente o homem, selecionam movimentos de seu repertório comportamental, em outras palavras de como as decisões, os eventos computacionais que conectam os dados sensoriais e uma representação armazenada da estrutura do mundo com o comportamento é uma questão que tem sido discutida desde os tempos da Grécia Antiga. Para Aristóteles era a alma imaterial que servia como o mecanismo responsável para o comportamento motivado humano. Esta visão dominou o pensamento ocidental e árabe até o Iluminismo. Nesta época surge a convicção de que uma explicação material dos fenômenos observáveis poderia ser encontrada. Nesta linha situa-se a abordagem dualística da conexão entre sensação e ação, que foi proposta por Descartes. Sua proposta foi de que o comportamento humano pode ser dividido em duas principais categorias que podem ser vistas como provenientes de dois processos distintos. A primeira categoria proposta por Descartes compreende apenas os comportamentos que são completamente determinados em relação a eventos no ambiente sensorial imediato, comportamentos em que previsivelmente são ligados estímulos sensoriais estereotipados com respostas motoras simples. Sua característica deteminística sugeriu a Descartes que esta conexão sensório-motora residia dentro do corpo material, sendo assim possível seu estudo pela fisiologia. Na segunda categoria de comportamentos, aqueles em que nenhuma conexão determinística era evidente, Descartes segui a idéia de Aristóteles, identificando a alma imaterial como a fonte destas ações. (Glimcher, 2003, Glimcher,2003a).

A visão cartesiana deu um grande impulso à fisiologia ao sugerir que algumas ações poderiam ser estudadas com metodologia puramente fisiológica. Durante todo o século XIX e início do século XX grandes progressos foram feitos na identificação de mecanismos neurais ligando deterministicamente sensação e ação, especialmente ao nível dos reflexos medulares.

No entanto os mecanismos neurais responsáveis pelas outras categorias de comportamento permaneceram inexplorados fisiologicamente. Nos últimos 20 anos esta situação começou a mudar e atualmente três classes de tomada de decisão estão sendo estudadas: a dos comportamentos determinísticos sensório-motores; a dos comportamentos previsíveis em que os comportamentos são controlados por uma mistura de sinais sensoriais e não sensoriais, tais como probabilidades e estimativas de valor; e no terceiro grupo as decisões imprevisíveis ou estocásticas. Estas muito recentemente começaram a ser estudas fisiologicamente e também parecem ser passíveis de descrição ao nível de computações celularers feitas dentro de uma arquitetura neural definida.

No estudo da ecologia comportamental a visão é de que a evolução dirige o comportamento animal em direção à solução eficiente ou otimizada dos problemas enfrentados em seus nichos ambientais. Argumenta-se que as causas evolucionárias últimas da tomada de decisão podem ser encontradas na análise econômica da interação dos organismos com seu meio ambiente, no sentido de maximizar a adaptação em face da incerteza reinante. As evidências são de que os cérebros de animais complexos como os mamíferos executam operações que correspondem muito de perto aos problemas de otimização que a ecologia comportamental descreve como as causas últimas do comportamento. São dados que sugerem que os problemas ambientais enfrentados pelos animais podem modelar não somente o comportamento mas também o hardware neural e as computações por ele executadas para a tomada de decisão (Glimcher, 2002).

Em consonância com esta visão (Glimcher, 2004, para uma breve revisão), como um exemplo citamos o estudo de Platt e Glimcher (1999) que verificaram que os neurônios da área LIP (intra-parietal lateral), numa tarefa de tomada de decisão visual sacádica, tinham sua taxa de disparo como função da expectativa de ganho (produto da magnitude do ganho pela probabilidade) da sacada em cada direção. A área LIP é uma região do lobo parietal onde estão mapas de saliência, representação topográfica visual que codifica a localização de objetos salientes ou de relevância comportamental (Gottlieb, 2007).

Page 257: Livro CI 2007

  249

Fig. 1 A atividade de neurônios da área LIP correlacionada à probabilidade de ganho

(0.8 versus 0.2) numa situação em que as propriedades sensoriais e motoras permanecem idênticas

Neste e em vários outros estudos, as relações entre estímulo, resposta e resultado da escolha efetuada eram fixados, isto é, escolher o movimento associado à maior expectativa de valor era sempre o melhor curso de ação. Em contextos sociais, no entanto, o resultado das decisões não são determinísticos mas variam dependendo das escolhas feitas por outros indivíduos, tornando assim as previsões difíceis. A teoria dos jogos foi desenvolvida nas ciências sociais para predizer e explicar o comportamento nestas circunstâncias. Os modelos desenvolvidos na teoria dos jogos propõem que os jogadores avaliam custos e benefícios de cada alternativa para eles mesmos e para seus oponentes e então adotam uma estratégia comportamental. Tipicamente estas estratégias comportamentais envolvem uma distribuição probabilística e imprevisível de respostas que estabelece um equilíbrio para todos os jogadores. Estes pontos de equilíbrio são conhecidos como Equilíbrio de Nash e as estratégias a ele associadas têm a característica de se sobreporem a todas as outras. Em outras palavras, é um conjunto de estratégias, uma para cada um dos jogadores, em que a escolha de cada jogador é a melhor resposta às outras escolhas (Holt CA, Roth AE, 2004). Por exemplo no jogo de par-ou-ímpar a melhor resposta para os dois jogadores é a de imprevisivelmente apostar um número par (ou ímpar) na metade das vezes; qualquer outra estratégia seria facilmente explorada pelo oponente.

A seguir revisamos brevemente dois estudos que enfocam as bases neurais de escolhas modeladas pela teoria dos jogos Estudos da neurofisiologia da decisão foram feitos utilizando um jogo chamado em inglês de matching-pennies. Neste jogo, em cada jogada cada um dos dois oponentes coloca sobre a mesa uma moeda, após ter escolhido sua condição de vitória, isto é, um deles ganhará quando as duas moedas tiverem as mesmas faces para cima (cara-cara ou coroa-coroa) e outro quando as faces diferirem. Para este jogo (estruturalmente idêntico ao par-ou-ímpar) a melhor estratégia para ambos os jogadores é colocar sobre a mesa cara (ou coroa) 50% das vezes (o equilíbrio de Nash para este jogo) de forma absolutamente aleatória. Qualquer desvio desta estratégia será explorado pelo outro jogador em detrimento do primeiro.

Barraclough e colegas (2004) (Platt, 2004) registraram a atividade de neurônios do córtex pré-frontal dorso-lateral de macacos jogando uma versão visual-sacádica do jogo matching-pennies tendo um computador como oponente. Nesta forma cada jogada se iniciava pelo aparecimento dum círculo central no monitor, no qual o animal então fixava o olhar. Em seguida apareciam dois círculos laterais e o círculo central desaparecia. Neste momento o animal tinha que fazer uma sacada para um dos círculos laterais. Em seguida um anel vermelho era iluminado em torno de um dos círculos, indicando qual havia sido a

Page 258: Livro CI 2007

 250 

escolha (prévia) do computador. Se computador e o animal houvessem selecionado o mesmo círculo uma pequena quantidade de suco de fruta era liberada na boca do macaco. Quando o programa do computador decidia a sua escolha baseado na história das escolhas e dos reforços recebidos pelo animal, estes desenvolviam uma estratégia de escolha estocástica em cada jogada, perfazendo 50% de cada escolha ao longo do jogo; isto é, a estratégia ideal neste jogo. O próximo passo foi determinar se um algoritmo de aprendizagem por reforço poderia explicar as escolhas dos macacos. Neste tipo algoritmo o agente (animal, robot) faz suas escolhas baseado nas diferenças de valores das alternativas, valores determinados pela história anterior dos reforços recebidos em cada escolha. (Schultz, 1997 e Montague et al, 2004). Os autores verificaram que as diferenças de valor associadas a cada alternativa, embora pouco diferentes de zero na maior parte das vezes (ver gráfico), estavam presentes e influenciando as escolhas do animal. Resumindo: os animais convergiram para a estratégia ideal utilizando um algoritmo de aprendizagem por reforço, isto é baseando-se na história dos acertos anteriores.

Fig 2. Representação esquemática da versão visual sacádica do jogo matching-

pennies usada no estudo. A seleção do lado feita é feita pelo computador antes de cada jogada e revelada (feedback) ao macaco após a escolha deste (move/hold).

Fig 3. Probabilidade de resposta à direita em função da difrença de valor das

escolhas. Linha contínua representa a probabilidade de escolha predita pelo modelo matemático de apendizado por reforço, os pontos representam a escolha efetiva do animal no estudo, os histogramas a percentagem (0 – 17%) de “apostas” em função da diferença de valor entre as opções.

Como estas computações que dirigem o comportamento estão respresentadas no

sistema nervoso? O estudo do registro de neurônios individuais do córtex pré-frontal revelou que muitos neurônios tinham sua atividade sistematicamente modulada pelas escolhas anteriores, enquanto que outrs o eram pela história de reforços anteriores. Mais importante ainda é que muitas células tinham sua atividade modulada pela conjunção destes dois fatores. Por exemplo, um neurônio aumentava sua freqüência de disparos

Page 259: Livro CI 2007

  251

quando o macaco havia selecionado o lado direito na escolha anterior e não havia recebido o suco de frutas, enquanto que outros neurônios eram sensíveis a diferentes conjunções de escolha e resultado.

Fig 4. Os diversos locais no cérebro do macaco onde foram encontrados sinais

relacionados a tomada de dedisão durante o jogo de matching-pennies Cohen e Ranganath (2007) estudaram o desempenho de humanos jogando o

mesmo jogo, também contra um computador. Testaram também a hipótese de que as estratégias de decisão são baseadas nos resultados das apostas mais recentes através dum processo de aprendizagem por reforço, nas quais os erros de previsão de ganho são utilizados para corrigir o valor associado a cada opção de escolha. Mas em lugar da atividade de neurônios individuais, os autores registraram potenciais evocados (ERP – event related potentials) durante o jogo para avaliar como as respostas neurais aos resultados das apostas influenciavam a decisão na jogada seguinte. Para tal focaram suas análises na negatividade pós feedback (FRN, feedback related negativity), um potencial eletro-encefalográfico que se crê refletir um sinal neural de erro de previsão (por exemplo, quando o resultado duma escolha é diferente da expectativa isto seria reportado por este sinal). Os resultados, que foram consistentes com a teoria computacional, revelaram que magnitude dos ERPs após uma jogada em que o sujeito perdia permitia prever se o sujeito mudaria sua escolha na próxima jogada. Também constataram que o FRN era desproporcionalmente maior sobre o córtex motor contra-lateral à mão utilizada para fazer a jogada anterior, sugerindo que este sinal seria utilizado para corrigir o valor das representações neurais de cada ação. De acordo com teorizações recentes o FRN reflete um sinal de erro originário do sistema dopaminérgico mesencefálico enviado ao córtex cingulado anterior no qual é usado para adaptar o comportamento de acordo com os princípios da aprendizagem por reforço (Holroyd e Coles, 2002).

Antes de encerrar vale a pena apontar que as pesquisas acima discutidas se concentram quase que totalmente no córtex. No entanto outras põe em evidência a importância fundamental das conexões corticais com as estruturas sub-corticais na tomada de decisão (Bogacz, 2007).

Todos estes estudos mostram que não somente os comportamentos simples e determinísticos, mas também comportamentos que Descartes afirmava serem baseados na alma imaterial, são processados no tecido neural e podem ser analisados com metodologia da fisiologia. Por outro lado podemos ver que as forças evolutivas que levaram ao desenvolvimento de comportamentos economicamente eficientes, o fizeram através do desenvolvimento de um substrato neural voltado à computação das variáveis econômicas que geram esta eficiência comportamental.

Page 260: Livro CI 2007

 252 

Referências Barraclough DJ, Conroy ML, Lee D (2004) Prefrontal cortex and decision making in a mixed-strategy game. Nat

Neurosc 7:404-410 Bogacz R (2007) Optimal decision making theories: linking neurobiology with behaviour. Trends Cog Sci 11:119-124 Cohen MX, Ranganath C (2007) Reinforcement learning signals predict future decisions. J Neurosci 27(2):371-378 Glimcher PW (2002) Decisions, decision, decisions: choosing a biological science of choice. Neuron 36:323-332. Glimcher PW (2003) The neurobiology of vusual-saccadic decision making. Annu Rev Neurosci 26:113-179 Glimcher PW (2003a) Decision, uncertainity and the brain: the science of neuroeconomics. MIT Press, Cambridge Glimcher PW, Rustichini A (2004) Neuroeconomics: the consilience of brain and decision. Science 306:447-452 Gottlieb J (2007) From thought to action: the parietal córtex as a bridge between perception, action, and cognition.

Neuron 53:9-16 Holroyd CB, Coles MG (2002) The neural basis of human error processing: reinforcement learning, dopamine, and the

error related negativity. Psychol Rev 109:679-709 Holt CA, Roth AE (2004) The Nash equilibrium: a perpective. Proc. Natl. Acad. Sci. USA 101(12):3999-4002 Montague PR, Hyman SE, Cohen JD (2004) Computational roles for dopamine in behavioural control . Nature 431:760-

767 Platt M (2004) Unpredictable primates and prefrontal córtex. Nat Neurosc 7:319-320 Schultz W, Dayan P, Montague PR (1997) A neural substrate of prediction and reward. Science 275:1593-1599.

Page 261: Livro CI 2007

  253

CRONOBIOLOGIA Conceitos básicos Cintia Etsuko Yamashita ([email protected]) - Laboratório de Cronobiologia (MZUSP)

A cronobiologia é um dos ramos da ciência multi e inter disciplinar que se propõe a estudar as características temporais da matéria viva, em todos os seus níveis de organização. O seu reconhecimento como disciplina científica só ocorreu no ano de 1960, com a realização do Cold Spring Harbor Symposium on Quantitative Biology sobre relógios biológicos.

Neste capítulo, pretende-se abordar alguns conceitos e características gerais que envolvem o sistema temporal em diversos organismos vivos, bem como algumas aplicações que surgiram a partir de pesquisas cronobiológicas.

Os ritmos biológicos O ciclo de atividade/repouso, as fases do sono, o batimento cardíaco, são alguns

exemplos de ritmos biológicos. Um ritmo pode ser definido como um processo que varia periodicamente no tempo e são observáveis na maioria dos seres vivos. Para o estudo dos ritmos, alguns conceitos da física devem ser utilizados adequadamente, como período, fase e amplitude (figura 1). Período é o intervalo de tempo em que um ciclo se completa. A fase corresponde a cada um dos momentos de um ciclo. A amplitude é a diferença entre os valores máximos e mínimos de uma oscilação.

Figura 1. Representação gráfica mostrando os parâmetros: período, fase e amplitude.

O primeiro relato, com carácter mais científico, de um ritmo biológico foi elaborado por Andróstenes de Thasos, em 325 a.C. Ele descreve detalhadamente o movimento oscilatório diário de folhas de tamarindo. Já em 1729, o astrônomo francês Jean Jacques de Mairan observou que os movimentos diários das folhas de uma planta, provavelmente uma espécie de Mimosa, eram mantidos mesmo dentro de um móvel escuro, ou seja, num lugar isolado do ciclo claro/escuro – “sensitiva sente o sol, mesmo sem vê-lo” (fig. 2). Este experimento demonstrou a endogenicidade de um ritmo, ou seja, a existência de um ritmo endógeno, independente das oscilações ambientais. Atualmente, já foi observada ritmicidade endógena na maioria dos organismos estudados, até mesmo em procariotos. É importante ressaltar que alguns ritmos não possuem este componente endógeno, sendo gerados puramente por ação direta dos fatores externos ambientais, sendo, portanto, considerados ritmos exógenos.

Page 262: Livro CI 2007

 254 

Figura 2. Representação do experimento de Jean Jacques de Mairan que demonstrou a endogenicidade do ritmo de abertura foliar.

Freqüência dos ritmos Os ritmos biológicos podem ser classificados segundo a sua freqüência. Se o

período for menor do que 20 horas é um ritmo ultradiano. Este é o caso do batimento cardíaco, os disparos de potencial de ação das membranas celulares (figura 3), os estágios do sono, dentre outros.

Figura 3. Potencial de ação de membrana com uma freqüência de aproximadamente um segundo.

Quando um ritmo possui um período maior do que 28 horas, ele é conhecido como sendo um ritmo infradiano. A maioria dos ciclos ligados à reprodução se encaixam nesta categoria, como os ciclos menstruais em humanos (figura 4); também podem ser citadas as migrações anuais observadas em diversos animais.

Page 263: Livro CI 2007

  255

Figura 4. Ciclo menstrual em humanos. Nota-se a dinâmica de diversos componentes fisiológicos e histológicos, com um ciclo de cerca de 28 dias.

Existem alguns ritmos que possuem um período em torno de 24 horas, como o ciclo de atividade/repouso (figura 5) e o ciclo de liberação do hormônio melatonina. Estes são exemplos de ritmos circadianos, atualmente os mais bem estudados e conhecidos pelos pesquisadores.

Com o experimento de Mairan foi visto que alguns ritmos se mantêm mesmo em condições constantes, indicando a existência de um oscilador endógeno. Sob condições ambientais constantes, dizemos que os ritmos estão em livre-curso, podendo se expressar durante horas, dias, meses ou mesmo anos, dependendo da espécie e do protocolo experimental. O período do ritmo em livre-curso, ligeiramente diferente de 24 horas, é representado pela letra grega τ (tau) e é característico da espécie. Na figura 5 está uma representação de um ritmo de atividade/repouso (actograma) de um organismo, em condições de livre-curso.

Page 264: Livro CI 2007

 256 

Figura 5. Actograma representativo de um organismo, em condições de livre-curso. Para melhor visualização do ritmo, os dados foram duplicados numa escala de 48 horas (double-plotting: linha 1: dia 1 e dia 2; linha 2: dia 2 e dia 3; e assim sucessivamente). As barras vermelhas cheias indicam a fase de atividade, as barras brancas representam a fase de repouso. A barra na parte superior da figura indica o regime de iluminação ao qual o animal foi submetido, neste caso, escuro constante. Reparar que o τ é maior do que 24 horas; e, nesse sentido, a atividade começa um pouco mais tarde a cada dia.

Uma vez que os seres vivos possuem um relógio endógeno poder-se-ia pensar que os ciclos ambientais não exerceriam qualquer influência sobre os ritmos, desde que não se tratasse de um ritmo exógeno. Porém, os ciclos ambientais desempenham um papel essencial para o sistema temporal, sincronizando os ritmos biológicos, garantindo assim que as atividades fisiológicas e comportamentais de um organismo coincidam com a fases mais apropriadas do meio externo cíclico. A sincronização dos ritmos circadianos ocorre principalmente através do mecanismo de arrastamento, que consiste na modificação do período e da fase do oscilador circadiano por ciclos ambientais, resultando na periodicidade de 24 horas observada na natureza. Os ciclos ambientais que promovem o arrastamento dos ritmos biológicos receberam o nome de zeitgeber (“doador de tempo”) por Aschoff (1960). O ciclo claro/escuro é o zeitgeber da grande maioria dos ritmos biológicos (fig. 6).

Page 265: Livro CI 2007

  257

Figura 6. Actograma de um roedor diurno (nile grass rat). O animal está arrastado pelo ciclo claro/escuro (regime de iluminação nas barras localizadas no topo da figura), seu dia tem então 24 horas. A partir do dia 20, o organismo é colocado em escuro constante e existe a expressão de τ.

A figura seguinte ilustra um esquema da estrutura do sistema circadiano, em que estão indicados: o zeitgeber; as vias aferentes através das quais o zeitgeber é percebido e processado; o oscilador circadiano endógeno; as vias eferentes através das quais o oscilador controla os ritmos circadianos; o ritmo circadiano observado.

Zeitgeber Oscilador interno

~Ritmo

Agente mascarador

aferência eferênciaZeitgeber Oscilador interno

~Ritmo

Agente mascarador

aferência eferência

Figuras 7. Componentes do sistema circadiano.

Porém outros ciclos ambientais também podem ser zeitgebers, como o ciclo de temperatura, o ciclo de maré, ciclo lunar e também ciclos não abióticos, como o ciclo de disponibilidade de alimento e o ciclo social. Um indivíduo em seu meio natural está exposto a uma grande quantidade de ciclos, porém apenas aqueles aos quais a espécie é sensível serão zeitgebers.

Existem alguns fatores ambientais que podem ter uma ação direta sobre o ritmo expresso, sem que haja, contanto, a participação do relógio biológico, como esquematizado na figura.7. A este fenômeno damos o nome de mascaramento. O mascaramento confere a plasticidade das funções fisiológicas e comportamentais em responder prontamente a mudanças não previsíveis, flexibilidade esta de suma importância para os organismos. Uma vez que os organismos possuem essa plasticidade em responder diretamente ao ambiente não haveria, a priori, a necessidade de um sistema temporal endógeno. Porém, a existência de um relógio interno nos seres vivos, arrastado pelos ciclos externos, permite que estes se preparem frente às variações ambientais (antecipação), desencadeando então os processos fisiológicos necessários nos momentos mais apropriados do ambiente cíclico em que vivem. Nesse contexto, os ritmos circadianos desempenham um papel muito importante na coordenação temporal dos processos fisiológicos do organismo e para que um ritmo seja considerado “circadiano”, ele necessariamente deve apresentar três características: a) persistência em livre-curso, b) ser arrastável por um ciclo ambiental, c) apresentar compensação à temperatura.

Page 266: Livro CI 2007

 258 

A compensação à temperatura consiste na independência do valor de tau em relação à temperatura ambiente. É muito bem sabido que a velocidade de qualquer reação química é diretamente alterada pela temperatura. Ao aumentarmos em 10 ºC existe um aumento, ou diminuição, segundo uma taxa de 2 ou 3. Porém, o mesmo não ocorre com o período dos ritmos biológicos de um dado organismo, que mesmo em diferentes temperaturas, expressam um τ muito semelhante (tabela 1). Ainda pouco se sabe sobre as vias bioquímicas envolvidas neste processo, mas já se sabe que graças a essa propriedade, os seres vivos são capazes de se manter ajustados ao meio ambiente, independente da temperatura ambiental A compensação à temperatura indica, mais uma vez, a importância de se ter um oscilador endógeno que funcione como um relógio biológico na coordenação temporal dos processos fisiológicos, função essa que seria inviável se sua periodicidade dependesse da temperatura ambiente. Tabela 1. Período do ritmo em livre-curso em diferentes espécies se mantém muito próximo com o aumento ou decréscimo de temperatura. Adaptado de Marques et al, 2003.

Hoffmann apud Bunning(1967)

24,3

24,2

25

35

locomoçãoLagartoLacerta sicula

Neville (1965)25,3

25,9

26

36

Deposição de lamelas da cutícula

Gafanhoto

Schistocerca gregaria

Leinweber apud Bunning(1967)

28,3

28,0

15

25

Movimento das folhasPlanta do feijão

Phaseodus multiflorus

Hasting & Sweeney(1957)

25,3

25,5

22

32

luminescênciaAlga unicelular

LIgulodinium polyedrum

autoresT (h)T(° C)

ProcessoOrganismo

Hoffmann apud Bunning(1967)

24,3

24,2

25

35

locomoçãoLagartoLacerta sicula

Neville (1965)25,3

25,9

26

36

Deposição de lamelas da cutícula

Gafanhoto

Schistocerca gregaria

Leinweber apud Bunning(1967)

28,3

28,0

15

25

Movimento das folhasPlanta do feijão

Phaseodus multiflorus

Hasting & Sweeney(1957)

25,3

25,5

22

32

luminescênciaAlga unicelular

LIgulodinium polyedrum

autoresT (h)T(° C)

ProcessoOrganismo

Page 267: Livro CI 2007

  259

Bibliografia Sugerida: Antle MC, Silver R. Orchestrating time: arrangements of the brain circadian clock. Trends Neurosci. 2005

Mar;28(3):145-51. Aschoff J. 1960. Exogenous and endogenous components in circadian rhythms. Cold Spring Harbor Symp. Quant. Biol.,

25: 11-28.Enright, T. J.. 1965. J. theor. Biol., 8, 426–468. Besharse JC, Iuvone PM. Circadian Clock in Xenopus Eye Controlling Retinal Serotonin N-acetyltrasnferase. Nature

1983.305:133-5. Block G, Wallace S. Localization of a Circadian Pacemakerin the Eye of a Mollusc, Bulla. Science 1982 217:155-7. Dunlap JC, Loros JJ, DeCoursey PJ. (editors). Chronobiology: BiologicalTime keeping. Sinauer Associates,

Massachusetts, USA. 2003 Fu L, Lee CC. The circadian clock: pacemaker and tumour suppressor. Nat Rev Cancer. 2003 May;3(5):350-61. Golombek D., Cardinalli D., Aguilar-Roblero R., 1997.Mecanismos de Temporizaçao em Vertebrados. Em:

Cronobiologia: Princípios e Aplicações.Marques N. e Menna-Barreto L. orgs. EDUSP. Guldner F.H., 1976. Synaptology of the Rat Suprachiasmatic Nucleus. Cell Tissue Research 165:509-544. Halberg. Cronobiology. , 1969Ann. Ver. Physiol., 31:675-725. Herzog E.D., Takahashi J.S., Block G.D., 1998. Clock controls Circadian Period in Isolated Suprachiasmatic Nucleus

Neurons. Nature Neuroscience1 (8):708-713. HK, Oh WJ, Yoo OJ, Menaker M, Takahashi JS. PERIOD2::LUCIFERASE real-time reporting of circadian dynamics

reveals persistent circadian oscillations in mouse peripheral tissues. Proc Natl Acad Sci U S A. 2004 Apr 13;101(15):5339-46.

Inouye S.T., Kawamura H., 1979. Persistence of Circadian Rhythmicity in Mammalian Hypothalamic ``Island'' Containing the Suprachiasmatic Nucleus. Proc. Natl. Acad. Sci. USA 76:5961-5966.

Kalsbeek A, Perreau-Lenz S, Buijs RM. A network of (autonomic) clock outputs. Chronobiol Int. 2006;23(1-2):201-15. Konopka RJ, Benzer S. Clock mutants of Drosophila melanogaster.Proc Natl Acad Sci U S A. 1971 Sep;68(9):2112-6. Marques M.D., Golombek D. & Moreno C. Adaptação temporal. in: Cronobiologia: Princípios e Aplicações 2003.. 2a

edição. N. Marques e L. Menna-Barreto (orgs.). São Paulo: EDUSP-Editora Fiocruz. Menaker M, Tosini G. 1996. The Evolution of Vertebrate Circadian Systems. Em: Honma K., Honma S. (editors).

Circadian Organization and Oscillatory Coupling. Hokkaido university Press, Sapporo. Menaker M. 1982.The Search for Principles of Physiological Organization in vertebrate Circadian Systems. Em

:Vertebrate Circadian Systems. J.Aschoff, S.Daan and G.Groos (orgs). Berlin, Springer-Verlag, 1-12. Menaker M., Moreira L.F., Tosini G. 1997. Evolution of Circadian Organization in Vertebrates. Braz.J. Med. Biol.

Res.30(3):305-313. Moore R.Y., Eichler V.B., 1972. Loss of Circadian Adrenal Corticosterone Rhythm Following Suprachiasmatic Lesions

in the Rat. Brain Res. 42:201-206. Moore R.Y., Lenn N.J., 1972. {it A Retinohypothalamic Projection in the Rat}. J. Comp. Neurology 146:114. Moore-Ede M.C., Sulzman F.M., Fuller C.A., 1982. {it The Clocks that Time Us - Physiology of the Circadian Timing

System }. Harvard University Press. Pittendrigh C.S. Entrainment. In: Handbook of Behavioral Neurobiology. 1981. J. Aschoff (ed.), vol. 4, Biological

Rhythms. New York: Plenum Press. Ralph M.R., Menaker M., 1988. A Mutation of the Circadian System in Golden Hamsters. Science 241:1225-1227. Reppert SM, Weaver DR. Coordination of circadian timing in mammals. Nature. 2002 Aug 29;418(6901):935-41. Schultz TF, Kay SA. Circadian clocks in daily and seasonal control of development. Science. 2003 Jul

18;301(5631):326-8. Stokkan KA, Yamazaki S, Tei H, Sakaki Y, Menaker M. Entrainment of the circadian clock in the liver by feeding.

Science. 2001 Jan 19;291(5503):490-3. Yoo SH, Yamazaki S, Lowrey PL, Shimomura K, Ko CH, Buhr ED, Siepka SM, Hong Ralph M.R., Foster R.G, Davis F.C., Menaker M. 1990. Transplanted Suprachiasmatic Nucleus Determines Circadian

Period. Science 247:975-978. Reiter R.J., 1983. Pineal Gland: and Intermediary Between the Environment and the Endocrine System.

Psychoneuroendocrinology 8:31-40. Richter C.P. 1967. Sleep and Activity: their Relation to the 24 hour Clock. Proc.Assoc.Res.Nerv.Ment.Dis.45:8-27. Schwartz W., Gross R.A., Morton M.T., 1987. The Suprachiasmatic Nuclei Contain a Tetrodoxin-Resistant Circadian

Pacemaker. Proc. Natl. Acad. Sci. USA 84:1694-1698. Stephan F.K., Zucker I., 1972. Circadian Rhythms in Drinking Behavior and Locomotor Activity of Rats are Eliminated by

Hypothalamic Lesions. Proc.Natl.Acad.Sci USA 69:1583-1586. Takahashi J.S., Hamm H., Menaker M., 1980. Circadian Rhythms of Melatonin Release from Individual Chicken Pineal

Glands in vitro. Proc. Natl. Acad. Sci USA 77(4):2319-2322. Tosini G., Menaker M., 1996. Circadian Rhythms in Cultured Mammalian Retina.Science 271:419-421. Underwood H., 1977. Circadian Organization in Lizards: the Role of the Pineal Organ. Science 195:587-589. Welsh D.K., Logothetis D.E., Meister M., Reppert S.M., 1995. Individual Neurons Dissociated from Rat Surpachiasmatic

Nucleus Express Independently Phased Circadian Firing Rhythms. Neuron 14:697-706.

Page 268: Livro CI 2007

 260 

A identificação anatômica do oscilador circadiano Gisele Akemi Oda ([email protected]) - Laboratório de Cronobiologia

A identificação anatômica do oscilador circadiano, em vertebrados, iniciou-se nos anos 60 com os experimentos de Curt Richter, o qual lesionou diversos órgãos, verificando o efeito da lesão no ritmo de atividade locomotora de ratos. A lesão do hipotálamo gerou arritmicidade, indicando provável alojamento do oscilador nesta região do cérebro. Por outro lado, em 1976, Michael Menaker demonstrava arritmicidade resultante de extirpação da glândula pineal em pardais, com a retomada da ritmicidade na atividade após transplante de tecidos desta mesma glândula.

A arritmicidade resultante de uma lesão não é um indicativo final de que a estrutura lesionada consiste no oscilador circadiano! Lembremo-nos da estrutura do sistema circadiano: ele é constituído de aferências, oscilador e eferências. Notem que a arritmicidade pode ser provocada tanto na lesão do oscilador como de eferências. Como distinguir estas duas possibilidades? Precisava-se, dessa forma, de critérios melhores para se acessar o oscilador através deste tipo de experimento.

Para que uma estrutura possa ser definitivamente considerada como oscilador circadiano, ele deve obedecer a certos critérios:

- A oscilação deve persistir “in vitro”, ou seja, quando isolado de suas eferências. - Quando transplantado, deve transferir os padrões de sua oscilação – período e

fase – para o novo organismo. Em 1979, Zimmermann e Menaker demonstraram que a glândula pineal é o oscilador

circadiano dos pardais, trasplantando pineais entre indivíduos mantidos em condições de claro/escuro deslocados de 12h. Após o transplante, cada indivíduo passou a expressar atividade de acordo com a fase determinada pelo doador.

Em 1972, os núcleos supraquiasmáticos (NSQ) foram indicados como as prováveis estruturas que alojavam o oscilador circadiano, em ratos. Tendo dado prosseguimento aos experimentos de Richter, Stephan e Zucker identificaram essas estruturas no ponto final de lesões sucessivas do hipotálamo. Moore chegou à mesma estrutura através de um outro caminho: através da marcação radioativa dos nervos que saíam da retina, em uma rota nervosa distinta daquela responsável pela visão, o trato retinohipotalâmico, o qual desembocava nos NSQs. Faltava, ainda, provar que os NSQs eram os osciladores circadianos utilizando aqueles critérios apresentados acima.

Os NSQs são constituídos por dois conglomerados de células nervosas, designadas NSQ direito e NSQ esquerdo. Nos ratos, foi estimado que cada NSQ contém, aproximadamente, 10.000 neurônios agregados em um volume de apenas 0.05mm3.

Em 1979, Inouye e Kawamura conseguiram isolar os NSQs “in vivo”, cortando todas as ligações neurais entre os NSQs e o restante do hipotálamo, construindo o que eles descreveram como “ilha hipotalâmica”. Nesse experimento, eles demonstraram a existência de ritmos circadianos na atividade elétrica detectada por eletrodos localizados na região hipotalâmica externa e interna aos NSQs antes do isolamento neural. Após este isolamento, a ritmicidade era evidenciada somente nos potenciais medidos pelos eletrodos internos, ficando a região externa arrítmica.

A demonstração mais dramática dos NSQs como principais osciladores circadianos foi feita com o transplante de NSQs de hamsters “tau-mutantes” (que apresentam mutação no período circadiano, τ ≈ 20h) em hamsters selvagens (τ ≈ 24h). Os animais lesionados, que haviam ficado arrítmicos, passaram a apresentar ritmos de atividade-repouso com o período do doador mutante!!!

A idéia de que os organismos possuem um único oscilador ou relógio circadiano anatomicamente definido permeou os primeiros passos da história da identificação dessas estruturas, em espécies pertencentes aos diversos grupos vertebrados. Os NSQs em roedores e a glândula pineal em aves e répteis eram os grandes representantes desses osciladores únicos, em vertebrados. Posteriormente, a retina veio a se juntar como uma terceira estrutura produtora de oscilações auto-sustentadas circadianas. Estudos posteriores acabaram por indicar que o acoplamento entre essas três estruturas resulta no eixo central do sistema circadiano de vertebrados. Este acoplamento é variável entre espécies, podendo cada espécie incorporar uma, duas ou todas essas estruturas em seu eixo central circadiano.

Page 269: Livro CI 2007

  261

A incorporação de cada uma dessas estruturas no eixo central varia enormemente quando se estudam espécies filogeneticamente próximas. Nas aves, por exemplo, o estudo comparativo do efeito da pinealectomia em diversas espécies levava a resultados pouco convergentes. A pinealectomia causava arritmicidade em certas espécies passeriformes, modificava o padrão da atividade locomotora em outros (estorninho) e, finalmente, não alterava este ritmo em outros (galos e codornas). O ritmo circadiano de produção de melatonina em culturas de pinealócitos correspondentes aos pineais dos três grupos era igualmente robusto, indicando mesma capacidade oscilatória, mas diferenças na incorporação desta glândula no eixo central do sistema circadiano. Em répteis, a variabilidade na incorporação de cada estrutura é ainda mais dramática, uma vez que ocorrem divergências mesmo entre espécies de mesmos gêneros.

Neste quadro aparentemente caótico, é notório o fato de que todos os mamíferos apresentam os NSQs como osciladores centrais únicos, além de apresentarem uma glândula pineal incapaz de sustentar oscilação, quando isolada de suas aferências. A glândula pineal assume o papel de eferência dos NSQs em mamíferos. A retina, por sua vez, assume papel de aferência aos NSQs, sendo que os mamíferos constituem o único grupo animal que apresenta fotorrecepção centralizada, exclusivamente retiniana. A única outra espécie conhecida que apresenta exatamente esta mesma estrutura do sistema circadiano (fotorrecepção exclusivamente retiniana, pineal não oscilatória e oscilador único provavelemtne no hipotálamo) são as feiticeiras (ciclóstomas como as lampréias) localizadas no outro extremo da árvore filogenética dos vertebrados. Existem muitas especulações interessantes sobre o porquê dessa estruturação unificada entre mamíferos e diferenciada do restante dos vertebrados e uma das proposições deste fato curioso traz à luz a conexão entre a “história fótica” vivenciada por cada espécie ao longo da evolução e esta estruturação. Dentro dessa proposição, argumenta-se que os mamíferos evoluíram de um grupo ancestral comum noturno. Essa hipótese ficou conhecida como a do “gargalo noturno”. Semelhanças na história fótica seriam mais determinantes do que a proximidade filogenética entre espécies, na estruturação do sistema circadiano, como exemplificado pelas semelhanças observadas entre os mamíferos e a feiticeira.

Os componentes do sistema circadiano de mamíferos estão associados às vias aferentes e eferentes dos NSQs. A informação temporal do ciclo de claro-escuro chega à retina e é enviada aos NSQs através do trato retinohipotalâmico, que é distinto do trato visual primário e do trato geniculohipotalâmico, que é originado do folheto intergeniculado. Além deles, existem aferências da rafe dorsal e de outras áreas adjacentes do hipotálamo. As eferências dos NSQs são os outros núcleos do hipotálamo e outras áreas do sistema nervoso central, incluindo a glândula pineal e a pituitária. Essas conexões indicam que os NSQs estão fornecendo informação temporal para a maioria dos sistemas de controle do organismo.

Qual é, no entanto, a variável correspondente ao oscilador circadiano, nos NSQs? Uma vez que os NSQs são um conglomerado de neurônios, o primeiro candidato a variável de oscilador era a atividade elétrica, avaliada pela frequência de disparo dos potenciais de ação dos neurônios. Esta idéia era motivada também pelo fato das outras estruturas oscilatórias (pineal e retina, bem como os olhos de insetos e moluscos, identificados como osciladores nos invertebrados) também terem natureza neuronal.

O experimento realizado pelo grupo de Bill Schwartz, em 1987, discutido em aula, demonstrou que os potenciais de ação globais dos neurônios dos NSQs constituem as aferências e eferências do oscilador, permanecendo a identificação final deste elusivo.

Mais tarde, ficou demonstrado que neurônios individuais dos NSQs apresentam oscilações circadianas na atividade elética, sendo que estas oscilações têm períodos correspondentes aos determinados pelas mutações nos períodos das atividades locomotoras, em roedores mutantes. Chegara-se ao nível celular dos NSQs e o notório fato de que organismos unicelulares apresentavam “sistemas” circadianos, desde procariotos, indicava que a variável oscilatória possivelmente comum desde procariotos a vertebrados com estruturas anatômicas definidas para o relógio deveria estar no nível subcelular.

Page 270: Livro CI 2007

 262 

Bibliografia Sugerida: Antle MC, Silver R. Orchestrating time: arrangements of the brain circadian clock. Trends Neurosci. 2005

Mar;28(3):145-51. Aschoff J. 1960. Exogenous and endogenous components in circadian rhythms. Cold Spring Harbor Symp. Quant. Biol.,

25: 11-28.Enright, T. J.. 1965. J. theor. Biol., 8, 426–468. Besharse JC, Iuvone PM. Circadian Clock in Xenopus Eye Controlling Retinal Serotonin N-acetyltrasnferase. Nature

1983.305:133-5. Block G, Wallace S. Localization of a Circadian Pacemakerin the Eye of a Mollusc, Bulla. Science 1982 217:155-7. Dunlap JC, Loros JJ, DeCoursey PJ. (editors). Chronobiology: BiologicalTime keeping. Sinauer Associates,

Massachusetts, USA. 2003 Fu L, Lee CC. The circadian clock: pacemaker and tumour suppressor. Nat Rev Cancer. 2003 May;3(5):350-61. Golombek D., Cardinalli D., Aguilar-Roblero R., 1997.Mecanismos de Temporizaçao em Vertebrados. Em:

Cronobiologia: Princípios e Aplicações.Marques N. e Menna-Barreto L. orgs. EDUSP. Guldner F.H., 1976. Synaptology of the Rat Suprachiasmatic Nucleus. Cell Tissue Research 165:509-544. Halberg. Cronobiology. , 1969Ann. Ver. Physiol., 31:675-725. Herzog E.D., Takahashi J.S., Block G.D., 1998. Clock controls Circadian Period in Isolated Suprachiasmatic Nucleus

Neurons. Nature Neuroscience1 (8):708-713. HK, Oh WJ, Yoo OJ, Menaker M, Takahashi JS. PERIOD2::LUCIFERASE real-time reporting of circadian dynamics

reveals persistent circadian oscillations in mouse peripheral tissues. Proc Natl Acad Sci U S A. 2004 Apr 13;101(15):5339-46.

Inouye S.T., Kawamura H., 1979. Persistence of Circadian Rhythmicity in Mammalian Hypothalamic ``Island'' Containing the Suprachiasmatic Nucleus. Proc. Natl. Acad. Sci. USA 76:5961-5966.

Kalsbeek A, Perreau-Lenz S, Buijs RM. A network of (autonomic) clock outputs. Chronobiol Int. 2006;23(1-2):201-15. Konopka RJ, Benzer S. Clock mutants of Drosophila melanogaster.Proc Natl Acad Sci U S A. 1971 Sep;68(9):2112-6. Marques M.D., Golombek D. & Moreno C. Adaptação temporal. in: Cronobiologia: Princípios e Aplicações 2003.. 2a

edição. N. Marques e L. Menna-Barreto (orgs.). São Paulo: EDUSP-Editora Fiocruz. Menaker M, Tosini G. 1996. The Evolution of Vertebrate Circadian Systems. Em: Honma K., Honma S. (editors).

Circadian Organization and Oscillatory Coupling. Hokkaido university Press, Sapporo. Menaker M. 1982.The Search for Principles of Physiological Organization in vertebrate Circadian Systems. Em

:Vertebrate Circadian Systems. J.Aschoff, S.Daan and G.Groos (orgs). Berlin, Springer-Verlag, 1-12. Menaker M., Moreira L.F., Tosini G. 1997. Evolution of Circadian Organization in Vertebrates. Braz.J. Med. Biol.

Res.30(3):305-313. Moore R.Y., Eichler V.B., 1972. Loss of Circadian Adrenal Corticosterone Rhythm Following Suprachiasmatic Lesions

in the Rat. Brain Res. 42:201-206. Moore R.Y., Lenn N.J., 1972. {it A Retinohypothalamic Projection in the Rat}. J. Comp. Neurology 146:114. Moore-Ede M.C., Sulzman F.M., Fuller C.A., 1982. {it The Clocks that Time Us - Physiology of the Circadian Timing

System }. Harvard University Press. Pittendrigh C.S. Entrainment. In: Handbook of Behavioral Neurobiology. 1981. J. Aschoff (ed.), vol. 4, Biological

Rhythms. New York: Plenum Press. Ralph M.R., Menaker M., 1988. A Mutation of the Circadian System in Golden Hamsters. Science 241:1225-1227. Reppert SM, Weaver DR. Coordination of circadian timing in mammals. Nature. 2002 Aug 29;418(6901):935-41. Schultz TF, Kay SA. Circadian clocks in daily and seasonal control of development. Science. 2003 Jul

18;301(5631):326-8. Stokkan KA, Yamazaki S, Tei H, Sakaki Y, Menaker M. Entrainment of the circadian clock in the liver by feeding.

Science. 2001 Jan 19;291(5503):490-3. Yoo SH, Yamazaki S, Lowrey PL, Shimomura K, Ko CH, Buhr ED, Siepka SM, Hong Ralph M.R., Foster R.G, Davis F.C., Menaker M. 1990. Transplanted Suprachiasmatic Nucleus Determines Circadian

Period. Science 247:975-978. Reiter R.J., 1983. Pineal Gland: and Intermediary Between the Environment and the Endocrine System.

Psychoneuroendocrinology 8:31-40. Richter C.P. 1967. Sleep and Activity: their Relation to the 24 hour Clock. Proc.Assoc.Res.Nerv.Ment.Dis.45:8-27. Schwartz W., Gross R.A., Morton M.T., 1987. The Suprachiasmatic Nuclei Contain a Tetrodoxin-Resistant Circadian

Pacemaker. Proc. Natl. Acad. Sci. USA 84:1694-1698. Stephan F.K., Zucker I., 1972. Circadian Rhythms in Drinking Behavior and Locomotor Activity of Rats are Eliminated by

Hypothalamic Lesions. Proc.Natl.Acad.Sci USA 69:1583-1586. Takahashi J.S., Hamm H., Menaker M., 1980. Circadian Rhythms of Melatonin Release from Individual Chicken Pineal

Glands in vitro. Proc. Natl. Acad. Sci USA 77(4):2319-2322. Tosini G., Menaker M., 1996. Circadian Rhythms in Cultured Mammalian Retina.Science 271:419-421. Underwood H., 1977. Circadian Organization in Lizards: the Role of the Pineal Organ. Science 195:587-589. Welsh D.K., Logothetis D.E., Meister M., Reppert S.M., 1995. Individual Neurons Dissociated from Rat Surpachiasmatic

Nucleus Express Independently Phased Circadian Firing Rhythms. Neuron 14:697-706.

Page 271: Livro CI 2007

  263

Maquinaria molecular e controle do sistema temporizador interno Pedro Augusto Carlos Magno Fernandes ([email protected]) – Laboratório de Cronofarmacologia

Após a constatação de que a transmissão elétrica neuronal não era o cerne do controle da ritimicidade endógena do relógio central dos mamíferos, a questão continuou em aberto até que estudos das décadas de setenta e oitenta, realizados com a mosca da fruta (Drosophila melanogaster), trouxeram à pauta o conceito de um relógio molecular. Os primeiros estudos demonstraram a existência de uma região do cromossomo X deste modelo que, quando mutada, induzia uma alteração de período ou a perda completa dos ritmos de eclosão e de atividade dos indivíduos (figura 1). Este trabalho mostrou, pela primeira vez, a existência de um controle gênico da ritimicidade endógena. Seus desdobramentos levaram à identificação do gene per (period; período em inglês) o primeiro dos chamados genes do relógio.

Page 272: Livro CI 2007

 264 

Figura 1. Dados do trabalho de Konopka e Benzer de 1971 mostrando o ritmo de eclosão de Drosophila selvagens ou com diferentes mutações: pero =arrítmico, pers= mutante com período curto e perl= mutante com período longo. A alteração ou ausência de ritmo foram encontradas em mutantes que apresentaram alteração de uma determinada região do cromossomo X batizada de lócus period.

A cada dia novas engrenagens deste relógio molecular são descobertas revelando um sistema altamente complexo e passível de modulação. Grande parte destes componentes apresenta padrões rítmicos de expressão (figura 2) sendo, as diferentes inter-relações físicas e funcionais existentes entre eles, ao longo do tempo, determinantes na geração de ritmos endógenos. Em outras palavras, a dinâmica de funcionamento desta maquinaria pode ser resumidamente explicada por um modelo de alças de feedback positivos e negativos envolvendo a transcrição e a tradução dos genes do relógio.

Page 273: Livro CI 2007

  265

Figura 2. Expressão diferenciada de RNAm (linhas tracejadas) e suas respectivas proteínas (linhas cheias) dos componentes per (vermelho) e bmal1(azul) da maquinaria endógena do controle da ritmicidade interna nos NSQ (acima) e no fígado (abaixo) de mamíferos.

Tomemos como exemplo um sistema simplificado (hoje em dia muitos outros protagonistas e interações já estão descritos) composto pelos seguintes genes do relógio: Clock, caseina quinase I∑ (CkI ∑), cryptochromes 1e 2 (Cry1 e Cry2), Period 1, 2 e 3 (Per1 , Per2 e Per3), Bmal1 e Rev-Erbalpha. Os níveis intracelulares dos RNAm e das proteínas codificadas por estes genes, com exceção dos genes Clock e CkI ∑, apresentam oscilação circadiana. A transcrição e a tradução dos genes Per, Cry e do gene do receptor nuclear órfão Rev-Erbalpha é estimulada pela ativação de suas regiões promotoras pelo heterodímero formado por Clock e Bmal1. O produto do gene Rev-Erbalpha age negativamente sobre a produção do RNAm de Bmal1, fazendo com que os níveis deste composto diminuam ao longo do tempo. Em contrapartida, complexos protéicos se formam entre os genes Cry e Per no citoplasma e são translocados para dentro do núcleo onde exercem um controle negativo sobre os promotores responsivos a Clock/Bmal1 levando a uma supressão na produção de Per, Cry e Rev-Erbalpha. Com a diminuição do gene Rev-Erbalpha a produção de Bmal1 volta a ocorrer (acredita-se que neste ponto Per2 atue positivamente sobre o promotor desse gene) levando à formação de novos heterodímeros Clock/Bmal1 e dando início a um novo ciclo (figura 3).

É importante ressaltar que em mamíferos, como visto na figura 2, tal maquinaria molecular está presente e ativa tanto nos núcleos supraquiasmáticos (relógio central) quanto em osciladores periféricos (fígado). A presença de um maestro que integra e controla os diferentes ritmos temporais internos confere ao organismo a capacidade de antecipação de ciclos externos recorrentes (ciclo claro/escuro). Como veremos a seguir, este fato é essencial para o entendimento da plasticidade funcional local e/ou sistêmica, dos componentes do sistema oscilatório de mamíferos frente a diferentes variações (rítmicas ou não) ambientais.

Page 274: Livro CI 2007

 266 

Figura 3. Esquema simplificado das alças de feedback responsáveis pelo funcionamento da maquinaria molecular do relógio biológico (Esquema apresentado por Fu & Lee em 2003).

Como já visto, os NSQ são considerados o relógio biológico central de mamíferos e controlam, em situações normais, a atividade e funcionalidade dos diversos osciladores periféricos. Estes núcleos enviam projeções para neurônios endócrinos - controle da produção de CRH e GnRH - neurônios pré-autonômicos do hipotálamo - origem das projeções descendentes que representam as aferências dos neurônios pré-ganglionares dos sistemas simpático e parasimpático - e neurônios intermediários - integração da informação circadiana a outras regiões hipotalâmicas (figura 4).

Figura 4. Esquema proposto por Kalsbeek et al., em 2006 para as diferentes projeções neuronais dos núcleos supraquiasmáticos de mamíferos.

Estes núcleos controlam a expressão rítmica de diversos fatores como, por exemplo, glicocorticóides, melatonina e atividade. Curioso, entretanto, é o fato de que, apesar de todos serem controlados pelo mesmo maestro, cada produto derivado de um oscilador apresenta um perfil de produção próprio com relação ao zeitgeber ambiental. Foi observado que em ratos os ritmos de glicocorticóides, LH e Leptina ocorrem durante a

Page 275: Livro CI 2007

  267

transição das fases de claro/escuro ambientais, já o pico de melatonina ocorre durante o período de escuro, o de prolactina no fim do período de claro e o de TSH possui um perfil bimodal (figura 5). Tais constatações levantaram a questão de como um mesmo par de núcleos (NSQs) pode controlar ritmos com fases temporalmente diferentes.

Figura 5. Ritmos de diversos hormônios em ratos (Kalsbeek et al.,2006)

A existência de diferentes alvos para as projeções dos NSQs poderiam explicar em parte esta questão, mas, quando olhamos por exemplo, as vias neuronais que controlam a produção de melatonina e corticosterone percebemos que a solução de tal indagação é mais complexa do que imaginamos. Em ambos os casos a informação fótica ambiental captada pela retina é transmitida aos osciladores pelos NSQs. No caso do controle da síntese de melatonina, os NSQs enviam projeções para o núcleo paraventricular do hipotálamo (PVN) que, por sua vez, se projetam à coluna intermédio lateral (IML) que, via gânglio simpático superior (SCG), transmite tal informação para glândula pineal induzindo a produção noturna de melatonina. Já a produção rítmica de corticosterona é estimulada pelos NSQs tanto por uma via neuroendócrina quanto por uma via (assim como a via controladora da produção circadiana de melatonina) autonômica composta pelo PVN e pela IML (figura 6).

Page 276: Livro CI 2007

 268 

Figura 6. Vias que controlam a produção rítmica de melatonina e corticosterona em ratos (Schultz & Kay., 2003).

Estudos de eletrofisiologia que mediram a atividade total dos NSQ de mamíferos mostram que tais núcleos possuem uma acrofase (pico) de atividade elétrica em torno do CT 12 (CT quer dizer tempo circadiano de um determinado indivíduo; esta análise é feita em animais em livre curso, ou seja, na ausência de um zeitgeber externo, quando não existe o arrastamento e a ritimicidade endógena é determina apenas pela maquinaria molecular do relógio biológico central). Contudo, trabalhos recentes que avaliaram a eletrofisiologia e a biologia molecular revelam a existência de subpopulações neuronais destes núcleos com relação aos neurotrasmissores produzidos e a acrofase de suas atividades. Diferentes populações neuronais produzem neurotrasmissores específicos como, por exemplo, vasopressina (VP), VIP GRP, Gaba ou Glutamato que podem ou não estar relacionadas com diferentes padrões de eletroatividade. Pelo menos quatro subdivisões dos NSQ são conhecidas em relação às suas diferentes acrofases (figura 7).

A primeira subpopulação neuronal apresenta acrofase no ZT 2, produz VP e GABA , inibindo a produção de glicose hepática (ação do VP) e de corticosterona (VP). A segunda possui acrofase em ZT 6 (acredita-se que de 50 a 60 % dos neurônios dos NSQs faça parte deste grupo) produz GABA e inibe o pico noturno de melatonina. O neurotrasmissor da população com acrofase em ZT 10 ainda não é conhecido, mas, esta região modula a produção de corticosterona ativando o eixo HPA; a população com ZT18 modula o pico noturno de produção de melatonina.

Page 277: Livro CI 2007

  269

Figura 7. Subdivisões fenotópicas e funcionais dos NSQs de mamíferos proposta por Antle e Silver em 2005.

Desta forma, a existência destes diferentes grupos funcionais dentro dos NSQs permite o controle orquestrado dos ritmos endógenos dos mamíferos. Os neurônios de todas as subdivisões utilizam a mesma maquinaria molecular intracelular na geração de seus ritmos, mas, acredita-se, com relação de fases diferenciadas. A forma pela qual a dinâmica funcional dos genes do relógio modula a acrofase elétrica de neurônios ainda não é conhecida.

Com relação aos osciladores periféricos algumas funções dos genes do relógio já são conhecidas. Basicamente, eles funcionam como fatores de transcrição modulando ritmicamente a expressão gênica de enzimas importantes do metabolismo funcional do oscilador em questão. No fígado, por exemplo, o heterodímero formado por Clock/Bmal controla, via elementos responsivos (E Box) presentes nos promoteres, a expressão dos genes Rev-ERBalpha e DBP. Rev-ERBalpha ativado leva à expressão de uma proteína que, por sua vez, inibe a expressão de uma outra enzima, a E4BP4. Na presença do produto do gene DBP e na ausência da proteína E4BP4 ocorre a produção da enzima 7alpha-hidroxilase que induz produção de bile (figura 8).

Figura 8. Controle rítmico da produção hepática de bile regida pela presença do heterodímero CLOCK/Bmal (Reppert & Weaver.,2003).

Até bem pouco tempo alguns experimentos mostravam que apenas os NSQs eram capazes de apresentar oscilações auto-sustentadas das proteínas do relógio em cultura por tempo indeterminado enquanto que os osciladores periféricos eram amortecidos em cultura, necessitando de estímulos externos para continuar a oscilar. Este era, inclusive, um outro argumento utilizado para reforçar o papel central dos NSQs enquanto principal oscilador endógeno de mamíferos. Contudo, estudos mais recentes que utilizaram uma metodologia mais apurada mostram que, na verdade, os osciladores periféricos também são capazes de apresentar oscilações auto-sustentadas em cultura, com fase e períodos bem definidos, por longos períodos de tempo (figura 9).

Page 278: Livro CI 2007

 270 

Figura 9. Dados apresentados por Yoo e colaboradores em 2003. Os pesquisadores demonstraram que não só os NSQs mas também diversos osciladores periféricos apresentam, em cultura, ritmo de expressão da proteína do relógio per2 por vários dias (A) com fase (B) e período (C) bem definidos e constantes.

Como visto no capítulo anterior, os NSQs são os regentes do sistema oscilatório de mamíferos que ajustam o funcionamento rítmico endógeno dos diversos osciladores ao ciclo/escuro ambiental (Zaitgeber; ciclo ambiental capaz de arrastar os ritmos endógenos). Tal capacidade permite aos organismos antecipar suas funções endógenas aos ciclos ambientais de acordo com seus hábitos de vida. Contudo, além da capacidade de antecipação a eventos constantes os organismos também são capazes de alterar seu funcionamento interno em função de variações pontuais de elementos importantes (disponibilidade de alimento, por exemplo) para sua sobrevivência.

Page 279: Livro CI 2007

  271

Um trabalho muito bonito demonstrou que animais noturnos mantidos em ciclo de claro/escuro (12-h/12-h) que tinham acesso à comida apenas durante um pequeno período de tempo (4-h) durante a fase de claro passaram a apresentar uma grande atividade algum tempo antes do horário em que a comida seria disponibilizada. Em contrapartida, quando a janela temporal de acesso a comida era aumentada (8-h) a antecipação da atividade não era tão pronunciada (figura 10).

Figura 10. Actograma apresentados por Stokkan e colaboradores em 2001, mostrando um pronunciado aumento de atividade em animais que recebiam alimento por um curto período de tempo durante o claro (A), fato este não observado quando a janela temporal de acesso ao alimento era aumentada para oito horas (B).

Neste trabalho foram utilizados ratos trangênicos que expressavam atividade rítmica de luciferase. Os autores após os diferentes tratamentos avaliaram se o padrão rítmico do NSQs, do fígado e do pulmão estavam alterados. Eles observaram que a restrição alimentar por curto período de tempo não alterarou o ritmo dos NSQs mas alterarou a fase dos ritmos do fígado e do pulmão. Em contrapartida, nos animais com um acesso mais prolongado e cuja variação na atividade durante o período de claro era menos pronunciada a alteração de fase ocorreu apenas no fígado (figura 11). Com este trabalho os autores propuseram que a alimentação alterou apenas a ritimicidade do fígado, pois este órgão tem função relacionada com a digestão. Já os pulmões estão associados funcionalmente com a atividade dos indivíduos e, portanto só tiveram seu ritmo alterado quando a atividade dos indivíduos foi grandemente alterada. Os NSQs por serem um sensor da variação claro/escuro ambientais não são afetados nem pela alimentação nem pela mudança de atividade.

Page 280: Livro CI 2007

 272 

Figura 11. Dados apresentados por Stokkan e colaboradores em 2001 mostrando que restrição alimentar altera a ritimicidade do fígado. Um pronunciado aumento de atividade ocorre em animais que recebiam alimento por um curto intervalo de tempo durante o claro (A), fato este não observado quando a janela temporal de acesso ao alimento era aumentada para oito horas (B).

A capacidade de antecipação e integração da ritimicidade interna dos organismos a eventos ambientais cíclicos é fundamental para o processo de adaptação evolutiva dos seres vivos. A presença de um oscilador interno capaz de perceber estas alterações e transmiti-las ao resto do corpo de forma a organizar os diferentes osciladores é funcionalmente importante para garantir o sucesso adaptativo dos organismos. Contudo, a capacidade de responder rápido a mudanças externas e internas de fatores importantes para a sobrevivência também está incorporada no sistema oscilatório interno. Para tanto, a existência de uma maquinaria molecular cíclica no cerne do controle temporal dos osciladores centrais e periféricos é que garante esta capacidade de antecipação, integração e resposta rápida dos organismos.

Page 281: Livro CI 2007

  273

Bibliografia Sugerida: Antle MC, Silver R. Orchestrating time: arrangements of the brain circadian clock. Trends Neurosci. 2005

Mar;28(3):145-51. Aschoff J. 1960. Exogenous and endogenous components in circadian rhythms. Cold Spring Harbor Symp. Quant. Biol.,

25: 11-28.Enright, T. J.. 1965. J. theor. Biol., 8, 426–468. Besharse JC, Iuvone PM. Circadian Clock in Xenopus Eye Controlling Retinal Serotonin N-acetyltrasnferase. Nature

1983.305:133-5. Block G, Wallace S. Localization of a Circadian Pacemakerin the Eye of a Mollusc, Bulla. Science 1982 217:155-7. Dunlap JC, Loros JJ, DeCoursey PJ. (editors). Chronobiology: BiologicalTime keeping. Sinauer Associates,

Massachusetts, USA. 2003 Fu L, Lee CC. The circadian clock: pacemaker and tumour suppressor. Nat Rev Cancer. 2003 May;3(5):350-61. Golombek D., Cardinalli D., Aguilar-Roblero R., 1997.Mecanismos de Temporizaçao em Vertebrados. Em:

Cronobiologia: Princípios e Aplicações.Marques N. e Menna-Barreto L. orgs. EDUSP. Guldner F.H., 1976. Synaptology of the Rat Suprachiasmatic Nucleus. Cell Tissue Research 165:509-544. Halberg. Cronobiology. , 1969Ann. Ver. Physiol., 31:675-725. Herzog E.D., Takahashi J.S., Block G.D., 1998. Clock controls Circadian Period in Isolated Suprachiasmatic Nucleus

Neurons. Nature Neuroscience1 (8):708-713. HK, Oh WJ, Yoo OJ, Menaker M, Takahashi JS. PERIOD2::LUCIFERASE real-time reporting of circadian dynamics

reveals persistent circadian oscillations in mouse peripheral tissues. Proc Natl Acad Sci U S A. 2004 Apr 13;101(15):5339-46.

Inouye S.T., Kawamura H., 1979. Persistence of Circadian Rhythmicity in Mammalian Hypothalamic ``Island'' Containing the Suprachiasmatic Nucleus. Proc. Natl. Acad. Sci. USA 76:5961-5966.

Kalsbeek A, Perreau-Lenz S, Buijs RM. A network of (autonomic) clock outputs. Chronobiol Int. 2006;23(1-2):201-15. Konopka RJ, Benzer S. Clock mutants of Drosophila melanogaster.Proc Natl Acad Sci U S A. 1971 Sep;68(9):2112-6. Marques M.D., Golombek D. & Moreno C. Adaptação temporal. in: Cronobiologia: Princípios e Aplicações 2003.. 2a

edição. N. Marques e L. Menna-Barreto (orgs.). São Paulo: EDUSP-Editora Fiocruz. Menaker M, Tosini G. 1996. The Evolution of Vertebrate Circadian Systems. Em: Honma K., Honma S. (editors).

Circadian Organization and Oscillatory Coupling. Hokkaido university Press, Sapporo. Menaker M. 1982.The Search for Principles of Physiological Organization in vertebrate Circadian Systems. Em

:Vertebrate Circadian Systems. J.Aschoff, S.Daan and G.Groos (orgs). Berlin, Springer-Verlag, 1-12. Menaker M., Moreira L.F., Tosini G. 1997. Evolution of Circadian Organization in Vertebrates. Braz.J. Med. Biol.

Res.30(3):305-313. Moore R.Y., Eichler V.B., 1972. Loss of Circadian Adrenal Corticosterone Rhythm Following Suprachiasmatic Lesions

in the Rat. Brain Res. 42:201-206. Moore R.Y., Lenn N.J., 1972. {it A Retinohypothalamic Projection in the Rat}. J. Comp. Neurology 146:114. Moore-Ede M.C., Sulzman F.M., Fuller C.A., 1982. {it The Clocks that Time Us - Physiology of the Circadian Timing

System }. Harvard University Press. Pittendrigh C.S. Entrainment. In: Handbook of Behavioral Neurobiology. 1981. J. Aschoff (ed.), vol. 4, Biological

Rhythms. New York: Plenum Press. Ralph M.R., Menaker M., 1988. A Mutation of the Circadian System in Golden Hamsters. Science 241:1225-1227. Reppert SM, Weaver DR. Coordination of circadian timing in mammals. Nature. 2002 Aug 29;418(6901):935-41. Schultz TF, Kay SA. Circadian clocks in daily and seasonal control of development. Science. 2003 Jul

18;301(5631):326-8. Stokkan KA, Yamazaki S, Tei H, Sakaki Y, Menaker M. Entrainment of the circadian clock in the liver by feeding.

Science. 2001 Jan 19;291(5503):490-3. Yoo SH, Yamazaki S, Lowrey PL, Shimomura K, Ko CH, Buhr ED, Siepka SM, Hong Ralph M.R., Foster R.G, Davis F.C., Menaker M. 1990. Transplanted Suprachiasmatic Nucleus Determines Circadian

Period. Science 247:975-978. Reiter R.J., 1983. Pineal Gland: and Intermediary Between the Environment and the Endocrine System.

Psychoneuroendocrinology 8:31-40. Richter C.P. 1967. Sleep and Activity: their Relation to the 24 hour Clock. Proc.Assoc.Res.Nerv.Ment.Dis.45:8-27. Schwartz W., Gross R.A., Morton M.T., 1987. The Suprachiasmatic Nuclei Contain a Tetrodoxin-Resistant Circadian

Pacemaker. Proc. Natl. Acad. Sci. USA 84:1694-1698. Stephan F.K., Zucker I., 1972. Circadian Rhythms in Drinking Behavior and Locomotor Activity of Rats are Eliminated by

Hypothalamic Lesions. Proc.Natl.Acad.Sci USA 69:1583-1586. Takahashi J.S., Hamm H., Menaker M., 1980. Circadian Rhythms of Melatonin Release from Individual Chicken Pineal

Glands in vitro. Proc. Natl. Acad. Sci USA 77(4):2319-2322. Tosini G., Menaker M., 1996. Circadian Rhythms in Cultured Mammalian Retina.Science 271:419-421. Underwood H., 1977. Circadian Organization in Lizards: the Role of the Pineal Organ. Science 195:587-589. Welsh D.K., Logothetis D.E., Meister M., Reppert S.M., 1995. Individual Neurons Dissociated from Rat Surpachiasmatic

Nucleus Express Independently Phased Circadian Firing Rhythms. Neuron 14:697-706.

Page 282: Livro CI 2007

 274 

Fototransdução e sincronização por luz Leonardo Henrique Ribeiro Graciani de Lima ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia Comparativa da Pigmentação

Antes do surgimento da vida na terra, nosso planeta já apresentava condições para as quais os seres vivos seriam selecionados evolutivamente, pois com o estabelecimento dos ciclos geofísicos de nosso planeta no sistema solar surgiram ciclos como, por exemplo, os movimentos de rotação e translação. Esses movimentos governam a quantidade de energia luminosa que atinge a nosso planeta, e se refletem em ciclos ambientais aos quais os organismos que vivem em um dado local em um certo tempo precisam se ajustar.

Sabe-se hoje que sistemas de percepção de energia luminosa (fótons) são encontrados desde os organismos vivos mais simples como arqueobactérias procariontes, até organismos complexos como vertebrados e plantas superiores. Esses sistemas possibilitaram aos organismos uma maior percepção, e conseqüentemente uma melhor adaptação ao meio ambiente através de fenômenos como a fototaxia, fotossíntese, sincronização dos ritmos biológicos endógenos, e também a formação de imagens (compreendida como visão).

A percepção luminosa depende da captação de fótons (que viajam em linha reta com comprimento de onda e intensidades diversas) e da conversão da energia contida nestes fótons, em um sinal fisiológico. Sendo assim, os organismos desenvolveram, ao longo da escala evolutiva, diversas moléculas protéicas conjugadas a compostos químicos que, ao serem atingidos por fótons, sofrem alterações estruturais que desencadeiam uma cascata de sinalização intracelular que resulta na percepção da luz.

As diversas proteínas fotoreceptoras descritas na literatura podem ser classificadas em um número restrito de famílias de acordo com a estrutura química dos cromóforos capazes de absorver a energia dos fótons, ligados a essas proteínas. Mesmo assim não se pode esquecer que argumentos com base em alinhamento entre as seqüências protéicas devem ser usados para descriminar as proteínas fotoreceptoras e analisá-las filogeneticamente.

As famílias mais importantes são: rodopsinas, fitocromos, xantopsinas, criptocromos, fototropinas e proteínas BLUF. Para as três primeiras famílias citadas a alteração da configuração de seus cromóforos é uma isomerização. Essa alteração configuracional inicia então um estado sinalizatório com estabilidade suficiente para comunicar os processos de absorção de fótons a um transdutor de sinal secundário. Possivelmente as proteínas descritas na tabela 1 não abordem toda a riqueza de proteínas fotoreceptoras presentes na natureza. Mesmo assim pode-se dizer que muitas das proteínas fotoreceptoras capazes de responder ao espectro luminoso visível (e também infravermelho e ultravioleta) atualmente conhecidas são abordadas. Muitos sistemas capazes de responder a luz ultravioleta ainda precisam ser caracterizados.

Page 283: Livro CI 2007

  275

TABELA 1 Classes de cromóforos e Famílias de fotopigmentos bem caracterizados

No retinal, tanto as pontes vinil 11-12 como 13-14 são passíveis de isomerização como no caso de rodopsinas sensórias de mamíferos e bacterianas respectivamente. Michael A.Van-der-Horst and Klaas J. Hellinghwerf 2003.

As proteínas fotoreceptoras sinalizam por distintas vias de transdução de sinal.

Muitos detalhes são conhecidos para a maioria delas, porém ainda existem questões a serem elucidadas em todas as famílias. Nesta seção será abordada a família das rodopsinas e sua importância para a sincronização dos ritmos circadianos dos animais.

Rodopsinas Rodopsinas são proteínas de sete domínios transmembrânicos (com peso molecular

entre 30-50kD) conjugadas a um cromóforo retinal não protéico derivado de vitamina A (figura 1), que controlam a sensibilidade à luz de diferentes comprimentos de onda. Essas proteínas surgiram antes do aparecimento de olhos.

Page 284: Livro CI 2007

 276 

Figura 1. Estrutura de opsina e de cromóforo retinal.(a) Modelo da estrutura secundária da rodopsina bovina. Os aminoácidos altamente conservados na família das opsinas são destacados em cinza. O sítio de ligação do retinal (a lisina K296) e a posição do contra-íon (glutamato E113) estão marcadas com círculos “Bold” assim como o contra íon E118 de opsinas visuais e não visuais de não vertebrados. As cisteínas C110 e C187 formam uma ponte dissulfeto. (b) A estrutura química das formas 11-cis e all-trans do retinal. (c) A estrutura cristalina da rodopsina bovina (d) A estrutura da ligação do tipo Base de Schiff formada entre a lisina da rodopsina bovina e seu contra íon glutamato. Akihisa Terakita 2005.

As opsinas são classificadas em “tipo 1” e “tipo 2”. Opsinas tipo 1 são proteínas muito antigas, usadas para a coleta de energia e informação luminosa encontradas em arqueobactérias e eucariotos (figura 2). Graças às novas técnicas de sequenciamento genético em amostras provindas de organismos de água doce, marinhos, pântanos e mares glaciais, o número de opsinas do tipo 1 está aumentando rapidamente (atualmente>800). Opsinas “tipo2” são encontradas somente em eucariotos.

Mesmo pertencendo a famílias distintas, existem muitas semelhanças entre opsinas do tipo 1 e do tipo 2. Pois ambas são proteínas de sete domínios transmembrânicos, ambas utilizam uma molécula de retinaldeído associada para a captação da luz, e em

Page 285: Livro CI 2007

  277

ambas o retinaldeído está ligado à proteína por meio de uma ligação do tipo Base de Schiff a um resídua lisina na sétima alça transmembrânica da proteína. As opsinas do tipo 1 diferem em espaço físico e na distribuição dos seus domínios intermembranosos em relação as opsinas tipo 2, o que se reflete em diferentes cascatas de sinalização. As opsinas do tipo 1 funcionam dentro da membrana para bombear íons ou sinalizar via outras proteínas integrais de membrana ao contrário da sinalização via proteína G.

Os pesquisadores ficaram estarrecidos ao descobrir que apesar da grande convergência nos detalhes moleculares de suas funções, não existe uma relação filogenética entre esses dois tipos de opsinas. Portanto, acredita-se que o mecanismo fundamental para detectar luz via opsinas associadas a retinaldeído foi descoberto e explorado indepentendemente duas ou mais vezes pelos seres vivos.

Figura 2. Tipos de sinalização de rodopsinas sensórias microbianas. Esquema do complexo tetramérico SRI-Htrl (receptor-transdutor) de sinalização fototáxica da arqueobactéria Halobacterium salinarum, rodopsina sensória de cianobactérias Anabaena sp. PCC7120 com a proteína de interação ASRT e os receptores foto-móveis CSRA e CSRB do eucarioto Chlamidomonas reinhardtii. John L. Spudich 2006.

Os progenitores das opsinas tipo 1 provavelmente existiram no início da evolução, antes da divergência entre eubactérias, arqueobactérias e eucariotos, o que significa que o mecanismo de transporte de íons, que usa energia luminosa em associação com as opsinas tipo 1, precede a evolução da fotossíntese como meio de utilizar a energia luminosa (figura 3).

Page 286: Livro CI 2007

 278 

Figura 3. Árvore filogenética (baseada na seqüência de aminoácidos) contendo os principais grupos representativos de rodopsinas do tipo 1. Jay McCarren and Edward F. deLong 2007.

As opsinas já estavam presentes nos animais antes mesmo da divisão destes em protostômios e deuterostômios e o tamanho de cada família de opsinas está crescendo rapidamente conforme os pesquisadores investigam organismos não tradicionalmente pesquisados em lugares inesperados (figura 4)

Page 287: Livro CI 2007

  279

Figura 4. Árvore filogenética dos bilatérios, com ocelos cerebrais identificados por setas. Para maior clareza alguns grupos foram omitidos. A filogenia molecular atual divide os bilatérios em três ramos principais, Deuterostomia, Lophotrochozoa e Ecydisozoa. Detlev Arendt and Joachim Wittbrodt 2001.

O espectro de absorção dos fotopigmentos é modulado por uma pequena coleção de grupos de aminoácidos adjacentes ao sítio de ligação do cromóforo no domínio transmembrânico das opsinas, onde os efeitos da seleção natural são mais evidentes.

Muitos genes de opsinas recém descobertos, assim como novos genes de outras famílias específicas para a fototransdução, como por exemplo, proteínas heterotriméricas ligadoras de guanina (proteínas G), e canais dependentes de ligação a nucleotídeos surgiram cedo na evolução dos vertebrados, durante extensivas duplicações cromossômicas que ocasionaram o surgimento de tecidos especializados na captura da informação luminosa como ocelos, olhos e retinias. Por exemplo, a duplicação do gene da opsina foi responsável pela evolução independente da visão tricromática (em três cores) presente em primatas do velho e do novo continente.

Antigamente os fotoreceptores eram classificados como fotoreceptores ciliares de vertebrados e fotoreceptores rabdoméricos de invertebrados. Essa classificação era baseada nas diferentes vias de sinalização, morfologia e especializações das células

Page 288: Livro CI 2007

 280 

fotoreceptoras encontradas exclusivamente em vertebrados e em invertebrados. Recentemente esse conceito foi alterado, pois fotoreceptores rabdoméricos foram encontrados em vertebrados, assim como fotoreceptores ciliares foram encontrados em invertebrados.

Os fotoreceptores ciliares utilizam membros da família de opsinas ciliares (c-opsinas) incorporadas em cílios especializados, enquanto os fotoreceptores rabdoméricos utilizam membros da família de opsinas rabdoméricas (r-opsinas) que são encontradas em rabdomeros. Cada tipo de receptor utiliza proteínas G diferentes: Proteína Gαt (transducina) para ciliares de vertebrados, Gαo para ciliares do molusco Pecten e Gq para rabdoméricos de vertebrados e de invertebrados. Fotoreceptores ciliares de vertebrados produzem potenciais de membrana hiperpolarizantes por meio de uma cascata que se inicia com uma fosfodiesterase. Já os fotoreceptores rabdoméricos são despolarizantes e utilizam uma cascata que se inicia com a fosfolipase C (figura 9). O sítio de amplificação dos sinais bioquímicos é diferente entre esses dois tipos de opsinas, assim como o mecanismo que termina a resposta. O cromóforo das opsinas rabdoméricas nunca se separa da proteína, sendo regenerado in situ por um diferente comprimento de onda, enquanto nas opsinas ciliares o cromóforo é re-isomerizado em tecidos exógenos. Atualmente parece claro que esses dois tipos de fotoreceptores surgiram independentemente e coexistiram nos urobilatérios antes do surgimento dos bilatérios (figura 5).

Figura 5. Distribuição filogenética de fotoreceptores ciliares e rabdoméricos nos bilatérios e hipóteses conflitantes quanto a sua evolução. Células fotoreceptoras rabdoméricas (cinza escuro); Células fotoreceptoras ciliares (branco). Os precursores em Urobilatérios podem ter sido: (a) uma célula precursora ciliar sensória, (b) uma célula precursora

Page 289: Livro CI 2007

  281

bimodal ciliar/rabdomérica ou (c) células precursoras ciliares e rabdoméricas. Detlev Arendt and Joachim Wittbrodt 2001.

Ao utilizar a visão para explorar o ambiente, todos os animais exploram as mesmas propriedades da luz: ou seja, diferentes intensidades (contraste) e diferentes comprimentos de onda (coloração). Porém não existem soluções únicas, e diferentes especializações que evoluíram para processar intensidade e comprimento de onda diferem entre as espécies. Essas diferenças mostram como problemas similares são solucionados por mecanismos diversos através da seleção natural. Por exemplo, mamíferos e abelhas utilizam fotoreceptores de comprimento de onda longo para detectar intensidade e visão a cores, enquanto que moscas e aves desenvolveram conjuntos diferentes de fotoreceptores para os mesmos propósitos.

Vias de fototransdução Como citado previamente, os fotoreceptores ciliares são capazes de responder a

estímulos luminosos por conterem opsinas embebidas na bicamada lipídica dos discos membranosos ciliares que compõe o segmento externo das células fotoreceptoras da retina (figura 6). O retinaldeído localiza-se horizontalmente na membrana destes discos, e está ligado a uma lisina da sétima alça transmembrânica da opsina. Portanto cada disco membranoso do segmento externo das células fotoreceptoras contém milhares de moléculas de pigmento visual (figura 7).

Figura 6 – Diagrama esquemático da retina de vertebrados. www.webvision.med.utah.edu/.

Page 290: Livro CI 2007

 282 

Figura 7 – Diagrama esquemático da rodopsina nos discos membranosos do segmento externo das células fotoreceptoras de vertebrados. www.webvision.med.utah.edu/.

Quando um fóton atinge o segmento externo dos fotoreceptores, o retinal-11-cis é isomerizado para forma all-trans causando as alterações conformacionais na molécula da proteína, o que inicia a sinalização. A partir de então muitas moléculas intermediárias são formadas e entre elas a metarodopsina II que ativa a proteína trimérica G que libera sua subunidade α chamada de transducina ativando a cascata de sinalização resumida da seguinte forma:

Fótons → rodopsina → rodopsina ativada (metarodopsina II) → uma proteína ligadora de GTP (transducina) → uma enzima que hidrolisa GMPc (GMPc-fosfodiesterase) → fechamento de canais iônicos ao se desligarem de GMPc (figuras 8 e 9).

No escuro correntes iônicas carregadas principalmente por íons Na+ passam pelos canais iônicos abertos. Essas correntes são chamadas de correntes-de-escuro, e despolarizam a membrana das células fotoreceptoras. Sendo assim os fotoreceptores despolarizados liberam neurotransmissores (glutamato) em seus terminais sinápticos em neurônios de segunda ordem. Sob estímulo luminoso as moléculas de rodopsina são isomerizadas para a forma ativa levando ao fechamento dos canais iônicos que interrompem o fluxo da corrente de escuro causando uma hiperpolarização dos fotoreceptores que então deixam de liberar neurotransmissores para os neurônios de segunda ordem.

Page 291: Livro CI 2007

  283

Figura 8. Ativação da rodopsina por fótons e a cascata de fototransdução que resulta no fechamento dos canais iônicos, aos quais o GMPc encontrava-se ligado, no segmento externo das células fotoreceptoras. www.webvision.med.utah.edu/

A corrente-de-escuro é composta principalmente pelo influxo de Na+ (80%), porém íons Ca2+ (15%) e Mg2+ (5%) também estão presentes. No escuro uma bomba trocadora de sódio/cálcio é responsável pela remoção do excesso de sódio e de cálcio. Sabe-se hoje que o cálcio mesmo não sendo responsável pela sinalização ativada pela rodopsina exerce uma função de segunda ordem muito importante para a transdução do sinal luminoso, pois ele aumenta a capacidade sinalizatória dos fotoreceptores acelerando a recuperação após a iluminação, e regula a sensibilidade dos fotoreceptores sob iluminação constante sendo então um importante mecanismo de adaptação luminosa.

Durante muito tempo acreditou-se que as únicas células fotoseníveis da retina de vertebrados eram os cones e bastonetes que enviam suas projeções para o segmento externo da retina. Porém recentemente foi demonstrado que uma população de células ganglionares da camada interna da retina expressa uma opsina rabdomérica chamada melanopsina que confere a essas células a habilidade de detectar luz. Essas células ganglionares foram então batizadas de células ganglionares retinianas intrinsecamente fotosenssíveis (abreviação em inglês “ipRGCs”) (figura 14).

A fototransdução rabdomérica apresenta semelhanças e diferenças notáveis em relação a ciliar, pois assim como na ciliar a via de transdução é iniciada pela izomerização da opsina induzida por luz, e pela interação dessa proteína com a proteína trimérica ligadora de GTP (proteína G). Porém nos fotoreceptores rabdoméricos, ao invés da opsina se ligar à proteína G transducina que é uma fosfodiesterase de GMPc, a opsina se liga a uma proteína Gq que ativa a fosfolipase C (PLC), que então catalisa a conversão de fosfatidilinositol-4,5-bisfosfato (PIP2) a inositol-1, 3,5-trifosfato (IP3) e diacilglicerol (DAG). A produção de DAG, em insetos, leva a abertura de canais iônicos que ocasionam o influxo de Na+ e de Ca2+ (Figura 9). Já em Limulus, IP3 libera cálcio de compartimentos, o qual, combinado `a calmodulina, ativa uma guanilato ciclase. O aumento de GMPc ocasiona a abertura de canais de sódio dependentes de nucleotídeos cíclicos, e ocorre a despolarização.

Page 292: Livro CI 2007

 284 

Figura 9. Árvore filogenética de Bilatérios, subunidades da proteína G e sua relação com fotoreceptores ciliares e rabdoméricos. As árvores foram calculadas usando-se ClustalX nas seqüências protéicas da opsinas e nas seqüências de DNA das proteínas G. Os grupos encerram genes ortólogos que podem ser traçados na escala evolutiva até um gene prcursor comum em Urobilatérios. As cores indicam verde para Deuterostômios, amarelo pra Lophotrocozoa e vermelho para Ecdysozoa. Detlev Arendt 2003.

Sincronização dos ritmos circadianos Sabe-se que as opsinas não absorvem energia de forma constante ao longo do

espectro eletromagnético. Esses fotopigmentos possuem um espectro de absorção de comprimento de onda que depende de sua estrutura atômica, principalmente no que se refere ao contra íon que estabiliza a base de Schiff entre o retinal e a lisina da sétima alça

Page 293: Livro CI 2007

  285

transmembrânica. O padrão de sensibilidade de comprimento de onda, ou seja, seu espectro de absorção é como uma impressão digital única de cada molécula de fotopigmento (figura 10).

Figura 10. Pico de sensibilidade espectral de três tipos de cones e de bastonetes na retina de primatas. www.webvision.med.utah.edu/

No campo da fotobiologia o espectro de ação é uma das principais ferramentas utilizadas para identificar o fotopigmento que inicia uma resposta induzida por luz. Um espectro de ação é formado pela resposta relativa de um organismo a diferentes comprimentos de onda de radiação eletromagnética visuais e não visuais. Foram desenvolvidas técnicas refinadas para determinar os espectros de ação aplicáveis a todos os organismos que respondem a luz.

Existem dois tipos de espectro de ação: policromáticos e analíticos. Geralmente quando se inicia o estudo das reações biológicas sensíveis à luz, o primeiro passo é determinar o espectro de ação policromático de uma reposta. Embora estes espectros de ação sejam válidos para identificar interações de respostas biológicas a comprimentos de onda variados, eles são limitados para determinar o pico de sensibilidade dos fotopigmentos. No passado as pesquisas feitas para identificar a resposta neuroendócrinas e circadianas a estímulos luminosos era feita com estímulos policromáticos. Nessas pesquisas, tanto humanos como roedores foram estudados em termos de respostas que envolvem: síntese de melatonina pela glândula pineal, avanço de fase circadiana ou respostas fotoperiódicas. Os resultados dessa abordagem de espectro de ação policromático sugerem que a região espectral entre 450-550nm fornece o maior estímulo para respostas circadianas e neuroendócrinas em mamíferos (figuras 11,12 e tabela 2). Porém estímulos luminosos de comprimento de onda longo com intensidade suficiente podem suprimir a síntese de melatonina assim como causar avanço de fase circadiana ou sincronizar ritmos circadianos em roedores e em humanos. Essas pesquisas policromáticas ainda indicaram picos de comprimento de onda que sugeriram que as respostas circadianas não seriam mediadas pelos fotopigmentos presentes nos cones e bastonetes da retina dos mamíferos. Um estudo feito em indivíduos (humanos) que não possuem percepção luminosa mostrou que esses exibem alterações nos ritmos circadianos do metabólito 6-sulfatoximelatonina (formado a partir da degradação do hormônio melatonina) medido na urina desses indivíduos, e comparados a indivíduos cegos com algum tipo de percepção luminosa.

Page 294: Livro CI 2007

 286 

Figura 11. Sobreposição dos gráficos de sensibilidade espectral relativa para um sistema visual com três cones com pico de 555nm, e um gráfico de sensibilidade para respostas circadianas, neuroendócrinas e neuro-comportamentais aparentemente reguladas por células ipRGCs. John P. Hanifin and George C. Brainard 2007.

Além disso, estudos em pacientes com deficiência de visão a cores sugerem que um sistema funcional normal com os três cones não é necessário para a supressão de melatonina. Os dados resultantes desses trabalhos deixaram claro que havia um “fotoreceptor desconhecido”, diferente de cones e bastonetes atuando na fotoransdução circadiana. Nos anos 80 cronobiologistas e pesquisadores neuroendócrinos começaram a empregar comprimentos de onda monocromáticos nesses estudos, sofisticando as técnicas fotobiológicas para determinação do espectro de ação analítico.

O espectro de ação analítico de uma resposta é determinado comparando-se os efeitos de dois ou mais estímulos monocromáticos com faixa de pico médio de 15-20nm ou menos. A vantagem de se desenvolver um espectro de ação analítico é determinar a curva dose-resposta em diferentes comprimentos de onda para uma determinada resposta biológica. O espectro de ação é então formado plotando-se os fótons incidentes necessários para produzir a resposta biológica versus o comprimento de onda. Espectros de ação analíticos recentes demonstram a sensibilidade a diferentes comprimentos de onda para diversas respostas fisiológicas (tabela 2). TABELA 2(John P. Hanifin and George C. Brainard 2007)

Melanopsina

Page 295: Livro CI 2007

  287

Pesquisas buscando identificar qual, ou quais os fotopigmentos responsáveis por mediar a entrada dos sinais luminosos nos osciladores circadianos sugeriram a existência de uma nova classe de opsina na retina dos vertebrados. Essa hipótese de que um novo fotoreceptor seria crucial para a captação de luz pelo sistema circadiano em mamíferos veio do fato de que camundongos rdrd sofrendo de degeneração da retina, com a ausência de bastonetes, e progressiva perda de cones, assim como em alguns casos de cegueira, continuam a apresentar um efeito robusto de entrada de luz no sistema circadiano (figura 12).

Figura 12. Ritmos diários de melatonina na glândula pineal de camundungos CH3 rd/rd, rds/rds e selvagens. Robert J. Lucas and Russell J Foster 1999.

A descoberta da melanopsina (Opn4) veio do estudo do mecanismo de resposta à luz em melanóforos de Xenopus leavis (figura13) .

Figura 13. Gentileza de Mark D. Rollag

A melanopsina é expressa na retina em todas as classes de vertebrados examinadas até o momento, sendo vista desde peixes até mamíferos (figura 14). O padrão de expressão de melanopsina difere entre as classes de vertebrados, no entanto sua presença em células ganglionares da retina é constante. Nos mamíferos, essas são as únicas células que expressam melanopsina.

Page 296: Livro CI 2007

 288 

Figura 14. Rede fotosensível na camada interna da retina de camundongo. A marcação imunofluorescente das células ganglionares contendo melanopsina em montagem plana da retina revela que existe uma rede extensiva de dendritos imunopositivos. Escala = 100µm. Ignacio Provencio, Mark D. Rollag and Ana Maria Castrucci 2002.

Como outras opsinas, a melanopsina possui um resíduo lisina no sétimo domínio transmembrânico, necessário para a formação de uma base de shiff com o 11-cis-retinaldeído. A melanopsina assemelha-se muito com as opsinas de invertebrados, tanto que segrega junto com essas opsinas em analise cladística de sequências de nucleotídeos. Essa estrutura molecular de invertebrados é bem demonstrada pelo resíduo aromático tirosina, no sítio onde retinaldeído estabiliza a base de shiff. A maioria das opsinas de vertebrados emprega um resíduo ácido neste sítio, geralmente glutamato. Um atributo importante das opsinas de invertebrados é que elas não são transferidas para tecidos exógenos para reisomerizar o retinaldeído usado. Ao invés disso o retinaldeído é fotoisomerizado dentro da própria molécula da opsina para a forma cis sob comprimento diverso daquele ativador da transdução do sinal luminoso. Como a luz depende de fotorreceptores oculares para entrar no sistema circadiano dos mamíferos, o fato de que uma pequena população de células ganglionares contendo melanopsina, além do polipeptídio ativador de adenilato ciclase da hipófise, ser intrinsecamente fotossensíveis sugeriu que a melanopsina teria uma função crítica no sistema circadiano de mamíferos. De fato, utilizando camundongos knock out para melanopsina e rdrd, Panda e colaboradores demonstraram que as células ganglionares fotossensíveis são essenciais para o ajuste do relógio aos ciclos de claro/escuro e para respostas fóticas não visuais (figura 15), como constricção pupilar e supressão de melatonina (figura 16).

Page 297: Livro CI 2007

  289

Figura 15. Deficiência de sincronização em camundongos knockout para melanopsina (Opn4 -/-); rd/rd. Actogramas duplos gravados em roda de atividade durante arrastamento e em livre curso em escuro constante.(A) Camundongo selvagem, (B) camundongo Opn4 -

/- e (C) camundongos rd/rd arrastado a um ciclo claro/escuro com 8 horas de 100-lux de luz fluorescente branca e 16 horas de escuro 8C:16E, enquanto que (D) camundongos Opn4 -/-;rd/rd não são arrastados. O início da atividade de camundongos selvagens é expresso como uma linha reta. Já o início da atividade dos demais camundongos deficientes é formado por linhas descontínuas cinzas. Após duas semanas de escuro constante três camundongos Opn4 -/-;rd/rd foram novamente colocados em regime de 6C:18E com 800-lux de luz fluorescente branca. O horário local é mostrado na parte de cima dos gráficos, e o regime de fotoperíodo é indicado pelo fundo branco e cinza. Panda et al 2003.

Page 298: Livro CI 2007

 290 

Figura 17. (A) Exposição luminosa ativa as células ganglionares retinianas intrinsicamente fotossensíveis (ipRGC), que são mais sensíveis a luz visível de comprimento de onda curto, e células ganglionares clássicas ativadas por cones (cRGC) do sistema de visão à cores, que são mais sensíveis à luz de comprimento de onda médio (λmax=555nm). ipRGCs contendo melanopsina emitem projeções para áreas não-visuais do encéfalo, incluindo o núceo-supraquiasmático (NSQ) que então emite projeções multisinápticas para a glândula pineal, assim como para muitas áreas que compartilham a mesma via de entrada de sinal do sistema fotoreceptor como o núcleo geniculado lateral (NGL), área pré-tectal, e colículo superior. Por vias ainda não identificadas a luz estimula o sistema de vigília e eventualmente o córtex aumentando o estado de alerta e cognição. Dreven W. Lockley and Joshua J. Gooley 2006.

Page 299: Livro CI 2007

  291

Bibliografia sugerida Arendt D. "Evolution of eyes and photoreceptor cell types." Int J Dev Biol 2003 47(7-8): 563-71. Arendt D K. Tessmar-Raible, et al. "Ciliary photoreceptors with a vertebrate-type opsin in an invertebrate brain."

Science. 2004, 306(5697): 869-71. Arendt, D. e Wittbrodt J. "Reconstructing the eyes of Urbilateria." Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2001, 356(1414):

1545-63 Fernald R D. "Casting a genetic light on the evolution of eyes." Science. 2006, 313(5795): 1914-8. Hanifin J P e Brainard G C. "Photoreception for circadian, neuroendocrine, and neurobehavioral regulation." J Physiol

Anthropol. 2007, 26(2): 87-94. Isoldi M C, Rollag M D, et al. "Rhabdomeric phototransduction initiated by the vertebrate photopigment melanopsin."

Proc Natl Acad Sci U S A. 2005, 102(4): 1217-21. Lockley S W e Gooley J J. "Circadian photoreception: spotlight on the brain." Curr Biol. 2006, 16(18): R795-7. Lucas R J. e Foster R G. "Neither functional rod photoreceptors nor rod or cone outer segments are required for the

photic inhibition of pineal melatonin." Endocrinology. 1999,140(4): 1520-4. McCarren J. e DeLong E F. "Proteorhodopsin photosystem gene clusters exhibit co-evolutionary trends and shared

ancestry among diverse marine microbial phyla." Environ Microbiol. 2007, 9(4): 846-58. Montell C. "Visual transduction in Drosophila." Annu Rev Cell Dev Biol. 1999, 15: 231-68. Panda S.e Sato T K et al. "Melanopsin (Opn4) requirement for normal light-induced circadian phase shifting." Science.

2002, 298(5601): 2213-6. Panda S. e Provencio I. et al. "Melanopsin is required for non-image-forming photic responses in blind mice." Science.

2003, 301(5632): 525-7. Provencio I, Rollag M D. et al. "Photoreceptive net in the mammalian retina. This mesh of cells may explain how some

blind mice can still tell day from night." Nature. 2002, 415(6871): 493. Spudich J L. "The multitalented microbial sensory rhodopsins." Trends Microbiol. 200614(11): 480-7. Terakita A. "The opsins." Genome Biol. 2005, 6(3): 213. van der Horst M A. e Hellingwerf K J. "Photoreceptor proteins, "star actors of modern times": a review of the functional

dynamics in the structure of representative members of six different photoreceptor families." Acc Chem Res. 2004, 37(1): 13-20.

Page 300: Livro CI 2007

 292 

Melatonina: o hormônio do escuro Eduardo Koji Tamura ([email protected]) - Laboratório de Cronofarmacologia

Melatonina é o hormônio produzido pela glândula pineal, conhecido como hormônio marcador do escuro. Esta indolamina derivada da serotonina foi descrita por Lerner et al. (1958), como a substância produzida pela glândula pineal durante o escuro que promovia a mudança da cor da pele de anfíbios. A melatonina é produzida somente durante o escuro, e de forma sincronizada com a duração desta fase. Nesse sentido, é um excelente marcador sazonal para diversos organismos e atualmente sabe-se que possui esta capacidade em diversos grupos animais. É um importante sinalizador para o estado reprodutivo em mamíferos, peixes e aves, também possui um papel sobre a atividade locomotora em peixes, répteis e aves e sobre a regulação da temperatura corporal em répteis e aves. Em aves, também está relacionada à produção de som e a fase de alimentação. No entanto, a maioria dos estudos com melatonina são realizados em mamíferos e atualmente sabe-se que possui inúmeras ações tanto centrais como periféricas (figura 1).

Figura 1. Melatonina atua principalmente como um sincronizador endógeno, mas também em outros sistemas, por exemplo, na imunidade, pressão sanguínea, etc (Claustrat et al., 2005).

Em plantas, não existe, até o momento, uma função muito bem descrita para a melatonina. No entanto, existem relatos de sua participação na sincronização sazonal para o crescimento de flores e de uma função “anti-attractant” para insetos.Um dado interessante é que a maioria das plantas utilizadas na medicina chinesa que teria uma ação anti-envelhecimento ou contra danos causados por radicais livres contém altas concentrações de melatonina.

Um dos efeitos mais conhecidos da melatonina sobre os animais é a capacidade de modulação do sistema reprodutor. Em mamíferos, existem diferentes formas de regulação dependentes de espécie. Mamíferos que habitam locais com grandes variações climáticas tendem a se reproduzir em épocas sazonais que favoreçam e garantam sua prole, ou seja, épocas em que o clima, por exemplo, favoreça a obtenção de alimentos e que a temperatura não seja prejudicial para o crescimento da prole. Considerando estas afirmações, era de se esperar que dependendo da duração da gestação os animais deveriam ser férteis em épocas sazonais diferentes.

Experimentos realizados em Hamster Siberiano, que apresentam um período de gestação curto, demonstraram que conforme a duração da fase de claro aumenta, estes animais se tornam férteis, por exemplo, aumentando o volume do testículo. Já em animais de longo período de reprodução como os carneiros, ocorre exatamente o contrário, já que eles são férteis durante a época sazonal em que a fase de claro é mais curta. Tanto os carneiros quanto os hamsters, quando pinealectomizados, perdem estas características, voltando a apresentá-las após administração de melatonina durante a quantidade diária de

Page 301: Livro CI 2007

  293

horas de escuro necessário para o período fértil (figura 2). Estes experimentos demonstram que estes animais são adaptados sazonalmente, o que permite que a prole seja concebida sempre na fase de maior comprimento de luz, onde a obtenção de alimento e a temperatura favorecem o crescimento da prole. Além disso, demonstraram que a melatonina é o hormônio responsável pela informação do fotoperíodo e atua regulando o sistema reprodutor de maneira dependente de espécie.

Figura 2. A informação do fotoperíodo é transmitida para um oscilador circadiano (relógio) localizado no núcleo supraquiasmático, que por sua vez transmite sinais e regula a síntese de melatonina de acordo com o fotoperíodo, em animais de longa reprodução (ex: carneiro) o curto período de exposição a melatonina estimula a reprodução, evidenciada na figura pelo volume testicular (Goldman 1999).

A síntese de melatonina inicia-se com a captura do aminoácido triptofano a partir da circulação, que é convertido em 5-hidroxitriptofano e em serotonina. Esta, por sua vez, é acetilada a N-acetilserotonina (NAS) em uma reação dependente da enzima arilalkilamina-N-acetiltransefrase (AA-NAT), cuja expressão gênica varia ao longo do dia. Por fim, a NAS é metilada pela enzima hidroxindol-O-metiltransferase (HIOMT), formando a melatonina (figura 3).

Page 302: Livro CI 2007

 294 

Triptofano hidroxilase 1 (TPH1)

Triptofano

5-hidroxitriptofano (5-HTP)

5-HTP descarboxilase

Serotonina (5-HT)

arilalquilamina N-acetiltransferase (AA-NAT)

N-acetilserotonina (NAS)

hidroxi-indol-O-metiltransferase (HIOMT)

Melatonina

Triptofano hidroxilase 1 (TPH1)

Triptofano

5-hidroxitriptofano (5-HTP)

5-HTP descarboxilase

Serotonina (5-HT)

arilalquilamina N-acetiltransferase (AA-NAT)

N-acetilserotonina (NAS)

hidroxi-indol-O-metiltransferase (HIOMT)

Melatonina

Triptofano hidroxilase 1 (TPH1)

Triptofano

5-hidroxitriptofano (5-HTP)

5-HTP descarboxilase

Serotonina (5-HT)

arilalquilamina N-acetiltransferase (AA-NAT)

N-acetilserotonina (NAS)

hidroxi-indol-O-metiltransferase (HIOMT)

Melatonina

Figura 3. Representação da via metabólica pela qual o aminoácido triptofano é convertido em melatonina. As enzimas que convertem o triptofano em serotonina a TPH1 e a 5HTP descarboxilase possuem uma ampla distribuição no organismo, sendo a produção de serotonina muito maior nos tecidos neurais. As duas enzimas que convertem serotonina em melatonina possuem uma distribuição mais limitada. Retirado e adaptado de Reiter et al. (2000).

O controle desta via biossintética está vinculado ao ciclo claro-escuro ambiental. Nos mamíferos, a informação luminosa é percebida pelos fotorreceptores retinianos, transmitida aos núcleos supraquiasmáticos (NSQs) e ao núcleo paraventricular hipotalâmico, que se conecta então aos gânglios cervicais superiores. Na fase de escuro, as fibras simpáticas pós-ganglionares liberam noradrenalina, que sinaliza através de receptores β-adrenérgicos presentes na glândula pineal estimulando a expressão gênica da enzima AA-NAT, um dos passos limitantes para a síntese de melatonina (figura 4).

Page 303: Livro CI 2007

  295

NSQ

Retina

GCS

Pinealócito

Artéria

ESCURO

Veia

NSQ

Retina

GCS

Pinealócito

Veia

Artéria

LUZ

OFF

NSQ

Retina

GCS

Pinealócito

Artéria

ESCURO

VeiaNSQ

Retina

GCS

Pinealócito

Artéria

ESCURO

Veia

NSQ

Retina

GCS

Pinealócito

Veia

Artéria

LUZ

OFF NSQ

Retina

GCS

Pinealócito

Veia

Artéria

LUZLUZ

OFFOFF

Figura 4. Modulação da via biossintética pelo ciclo claro/escuro.NSQ – Núcleo supraquiasmático; GCS – Gânglio cervical superior.

O passo limitante na síntese de melatonina é a conversão de serotonina à NAS (figura 5). Esta conversão ocorre apenas na fase de escuro e é interrompida no final da noite, ou quando existe um pulso de luz durante a fase de escuro. Durante esta fase, a atividade da enzima AA-NAT está aumentada em até 100 vezes. Este aumento pode ser devido ao aumento da transcrição gênica, como ocorre em roedores, ou à diminuição da degradação da proteína, que é sintetizada continuamente, como ocorre nos ungulados. Independente do tipo de mecanismo intrínseco que controla o aumento noturno da atividade da NAS, o sinal que ativa este mecanismo é o aumento da liberação de noradrenalina a partir de uma via simpática controlada pelos núcleos supraquiasmáticos, que são a sede do relógio biológico.

Luz inibe a produção de melatonina

Produção e liberação de melatonina

triptofano serotonina

NAT

N-acetil-serotonina

melatonina

HIOMT

NAT

100 pg/ml

Luz inibe a produção de melatonina

Produção e liberação de melatonina

triptofano serotonina

NATNAT

N-acetil-serotonina

melatonina

HIOMT

NAT

100 pg/ml

Figura 5. A enzima AA-NAT é regulada pela luz. Na presença de luz a transcrição do RNA mensageiro é bloqueada e na ausência de luz esta transcrição é ativada resultando na

Page 304: Livro CI 2007

 296 

síntese de N-acetilserotonina (NAS), precursor imediato da melatonina. No escuro também são ativados mecanismos que regulam a atividade da AA-NAT. Para que este sinal seja eficiente, o RNA mensageiro é rapidamente traduzido e sua meia-vida é bastante curta, dependendo de neo-transcrição.

Além da glândula pineal, certamente outros órgãos produzem a melatonina. Uma boa evidência deste fato é que plantas, organismos unicelulares, bactérias e invertebrados também a produzem. Atualmente, sabe-se que nos mamíferos, a melatonina é produzida na retina, na lente dos olhos, linfócitos, monócitos, em outras células da medula óssea, ovários e intestino. Além disso, a melatonina foi encontrada em altas concentrações na bile de vários mamíferos incluindo o homem. Essas concentrações chegam a ser de duas a três vezes maiores do que as concentrações da melatonina noturna no sangue, porém, a origem dessa melatonina ainda é desconhecida. A melatonina produzida pela retina participa do processo de adaptação para a visão noturna. No entanto, a melatonina extra-pineal não contribui para a ritmicidade plasmática deste hormônio, mas pode contribuir para diversos efeitos parácrinos e/ou autócrinos da melatonina, permitindo a efetuação de ações que exigem altas concentrações de melatonina. Como exemplo, podemos citar o fato de que a melatonina produzida por células imunocompetentes poderia atuar sobre o processo inflamatório.

A concentração noturna máxima de melatonina no plasma em mamíferos está na faixa de pM – nM e ações dependentes da produção extra-pineal são observadas em concentrações maiores, na faixa de µM – mM. A melatonina atua de diversas formas, possui receptores específicos de membrana e por ser uma molécula lipofílica com alta capacidade de entrada nas células possui vários alvos intracelulares, como interação com enzimas e outras proteínas o que resulta em uma grande diversidade de efeitos já conhecidos do hormônio melatonina (figura 6).

Figura 6. Esquema descrevendo os diversos mecanismos de ação da melatonina e algumas de suas ações (Hardeland et al., 2006).

Um dos efeitos mais conhecidos e bem estudados de altas concentrações de melatonina é a capacidade de atuar como antioxidante. Os radicais livres possuem alta reatividade, o que leva à oxidação de moléculas estruturais e essenciais para a atividade

Page 305: Livro CI 2007

  297

celular. Um outro mecanismo de ação que pode resultar em efeito antioxidante é o aumento da atividade de enzimas como a superóxido dismutase (SOD), glutationa peroxidase e glutationa oxidase.

Várias ações da melatonina são atribuídas a esta capacidade antioxidativa. Como exemplo, Drosophila melanogaster vivem por aproximadamente 60 dias e a administração de melatonina juntamente com o alimento promove um aumento no tempo de vida por aproximadamente 20 dias. Estes efeitos são atribuídos à prevenção da formação de radicais livres pela melatonina.

Por se tratar de uma molécula lipofílica a melatonina também possui ações intracelulares e um dos principais mecanismos de ação observados em baixas concentrações é a capacidade de ligação a calmodulina, ligação esta de alta afinidade, sugerindo uma relevância fisiológica. Considerando que a calmodulina participa da maioria dos eventos intracelulares em vertebrados superiores, além de possuir capacidade de ligação e regulação em uma grande diversidade de proteínas-alvos, incluindo enzimas, canais iônicos, receptores e proteínas do citoesqueleto, a interação melatonina-calmodulina, pode interferir em diversas modificações de funções celulares. A melatonina inibe a atividade da adenilil-ciclase dependente de cálcio-calmodulina em miotubos de rato em cultura e da isoforma constitutiva da sintase do óxido nítrico em cerebelo de ratos. Todos estes efeitos são atribuídos à ligação da melatonina a calmodulina.

A ligação da melatonina em receptores nucleares foi sugerida em ensaios com a linhagem celular de drosófilas SL-3, transfectadas com o receptor Z para retinóide β (RZRβ). Quando estas células eram incubadas com melatonina, os autores observavam um aumento na expressão dos genes transfectados e também foi observado em ensaios de “binding” em linhagens celulares de epitélio humano (HeLa) que a melatonina liga-se a estes receptores em baixas concentrações, da ordem de nM (Becker-Andre et al., 1994). Em 1997, os mesmos autores publicaram uma retratação, no qual afirmavam que nem todos os experimentos realizados eram reprodutíveis e, portanto, suas conclusões poderiam não ser exatas. No entanto, a ligação da melatonina a receptores nucleares tem sido sugerida em outros modelos, como por exemplo, em células mononucleares do sangue periférico, onde através de ensaios de “binding” e do uso de antagonistas seletivos para os receptores RZR/ROR, foi demonstrada a ligação da melatonina nestes receptores.

A melatonina também se liga com alta afinidade (pM a nM) a receptores clássicos membrana (MT1 e MT2 e Mel1c) que pertencem à família de receptores de sete domínios transmembrânicos, acoplados à proteína G, a um “sítio receptor” (MT3), muito provavelmente constituído por uma enzima a quinona redutase II (figura 7) e a receptores nucleares.

Page 306: Livro CI 2007

 298 

Figura 7. Mecanismos de ação da melatonina. (a) A melatonina é sintetizada a partir do triptofano; (b) Pode atuar por várias maneiras, por exemplo, através da ativação de receptores de 7 domínios transmembrânicos (MT1 e MT2) ou da ativação da QR2/MT3; (c) A melatonina é metabolizada para N1-acetil-5-metoxi-kinurenina (AMK), também pode ser conjugado a outros compostos e uma parte também pode ser mantida sem alterações (Boutin et al., 2005).

Os receptores MT1 e MT2 podem ser encontrados em mamíferos, anfíbios, peixes e aves, enquanto o receptor Mel1c pode ser encontrado em todas estas classes com exceção dos mamíferos. Os mecanismos de ação destes receptores são dependentes do local em que se encontram já que apresentam uma grande variedade de mecanismos descritos (figura 8), como ativação da fosfolipase C (PLC), levando a uma cascata de sinalização que resulta no aumento da concentração intracelular de cálcio. Também existem ações diretas e/ou indiretas sobre a regulação de canais na membrana, além da regulação da enzima adenilil-ciclase resultando na modulação da concentração de AMPc.

Figura 8. Cascatas de sinalização que podem ser promovidas pela ativação de receptores de melatonina (Masana e Dubocovich, 2001).

A melatonina também atua sobre processos fisiopatológicos no organismo exercendo ação muito descrita na literatura sobre o processo inflamatório. demonstraram em inflamação crônica induzida por BCG (Bacillus Calmette-Guerin) ou nistatina em pata de camundongos, um ritmo circadiano, sendo a espessura da pata maior na fase clara do que na fase de escuro. Este ritmo é dependente da melatonina produzida pela glândula pineal, já que não é observado em animais pinealectomizados, voltando a existir quando estes animais recebem suplementação de melatonina, em dose fisiológica, na fase de escuro.

Em modelo de inflamação aguda induzida por carragenina em patas de ratos, também foi observado um ritmo circadiano, sendo a intensidade do edema e a migração de células polimorfonucleares (PMN) menores quando a carragenina é administrada durante a fase de escuro. Cuzzocrea et al. (1999) demonstraram que a inflamação aguda também induzida por carragenina, aumenta o exsudato pleural e a mobilização leucocitária em ratos mantidos 24 horas em luz constante, durante uma semana e que a reposição exógena de melatonina inibe esse aumento, ou seja, a melatonina estaria modulando a resposta inflamatória aguda. Lotufo e colaboradores (2001) corroboram a hipótese demonstrando que a melatonina deve modular através da inibição da interação neutrófilo-endotélio, processo necessário para que ocorra a migração de neutrófilos para o tecido lesionado (figura 9). Outros resultados, descritos posteriormente, levaram à formulação da hipótese de que a melatonina atua sobre a interação neutrófilo-endotélio através de uma ação sobre as células endoteliais, e não sobre neutrófilos.

Page 307: Livro CI 2007

  299

Rolamento Adesão Transmigração

Estímulo

Selectinas Integrinas

Rolamento Adesão Transmigração

Estímulo

Selectinas Integrinas

Rolamento Adesão Transmigração

Estímulo

Selectinas Integrinas

Rolamento Adesão Transmigração

EstímuloEstímuloEstímulo

Selectinas IntegrinasSelectinas Integrinas

Figura 9. Migração de leucócitos. Após um estímulo lesivo, os leucócitos que trafegam na região central do vaso sofrem uma marginalização e interagem com as células endoteliais num processo denominado rolamento, através de moléculas de adesão principalmente da classe das selectinas. Outras moléculas de adesão são expressas nos leucócitos sendo as integrinas uma das mais importantes, promovendo uma maior interação com as células endoteliais resultando na mudança conformacional das células que transmigram para o local do estímulo.

Um dos mecanismos pelos quais a melatonina exerce seus efeitos é a modulação do tônus vascular, onde a melatonina atua de maneira dependente do modelo em estudo. Na ausência da camada interna (células endoteliais), a melatonina atua sobre as células musculares lisas da artéria caudal de ratos, através de dois receptores distintos, que desencadeiam efeitos antagônicos. A ativação de receptores do subtipo MT1 promove a potencialização da vasoconstrição, enquanto a ativação dos receptores MT2 promove a vasodilatação. Contudo os mesmos autores demonstraram haver marcação para o RNAm dos receptores MT1 e MT2 tanto na túnica média (camada de músculo liso vascular) como na túnica íntima (camada de células endoteliais). No entanto, em células endoteliais de cremaster de rato não foram localizados os receptores do subtipo MT2 de melatonina.

A melatonina potencia a vasoconstrição induzida por noradrenalina em artérias mamárias internas de humanos e também potencia a vasoconstrição induzida por prostaglandina F2α em artéria umbilical humana sendo que estes efeitos são dependentes da camada endotelial intacta. Em artérias coronárias isoladas de suínos a melatonina potencia a vasoconstrição induzida por serotonina, sendo que este efeito desaparece após a remoção do endotélio. Recentemente foi demonstrado que a vasodilatação induzida por bradicinina em arteríolas da microcirculação de mesentério de ratos é inibida por melatonina. Já havia sido demonstrada que a melatonina inibe a produção de óxido nítrico em células endoteliais em cultura, sendo o principal fator para a vasodilatação dependente de endotélio. De acordo com estes dados, podemos concluir que a melatonina modula o tônus vascular por ações diretas sobre o músculo liso e também através de efeitos dependentes de células endoteliais.

Atualmente, a melatonina tem sido muito investigada em humanos onde não possui funções diretas na modulação da reprodução. No entanto, é muito conhecida por contribuir no controle de outras funções, como o sono, a temperatura corporal, estando também relacionada em algumas enfermidades como Jet lag, depressão sazonal e possivelmente com o câncer.

Devido a esta grande diversidade de mecanismos de ações que ocorrem de acordo com a concentração e com o local de ação, a melatonina tem sido amplamente estudada por diversos grupos e nos mais diferentes sistemas. Apesar dos vários efeitos fisiológicos e fisiopatológicos já demonstrados e bem estabelecidos por toda a literatura, muitos destes efeitos não estão elucidados, abrindo um grande campo de estudo com esta importante molécula encontrada nos mais diversos organismos.

Page 308: Livro CI 2007

 300 

Bibliografia sugerida Becker-Andre M, Wiesenberg I, Schaeren-Wiemers N, Andre E, Missbach M, Saurat JH, Carlberg C. Pineal gland

hormone melatonin binds and activates an orphan of the nuclear receptor superfamily. J Biol Chem. 1994 Nov 18;269(46):28531-4. Erratum in: J Biol Chem 1997 Jun. 27;272(26):16707.

Benitez-King G, Anton-Tay F. Calmodulin mediates melatonin cytoskeletal effects. Experientia. 1993 Aug 15;49(8):635-41.

Boutin JA, Audinot V, Ferry G, Delagrange P. Molecular tools to study melatonin pathways and actions. Trends Pharmacol Sci. 2005 Aug;26(8):412-9.

Claustrat B, Brun J, Chazot G. The basic physiology and pathophysiology of melatonin. Sleep Med Rev. 2005 Feb;9(1):11-24.

Cuzzocrea S, Costantino G, Mazzon E, Caputi AP. Regulation of prostaglandin production in carrageenan-induced pleurisy by melatonin. J Pineal Res. 1999 Aug;27(1):9-14.

Goldman BD. The circadian timing system and reproduction in mammals. Steroids. 1999; 64:679-85. Hardeland R, Pandi-Perumal SR, Cardinali DP. Melatonin. Int J Biochem Cell Biol. 2006 Mar;38(3):313-6. Epub 2005

Sep 27. Karsch FJ, Malpaux B, Wayne NL, Robinson JE. Characteristics of the melatonin signal that provide the photoperiodic

code for timing seasonal reproduction in the ewe. Reprod Nutr Dev. 1988; 28(2B):459-72. Klein DC, Coon SL, Roseboom PH, Weller JL, Bernard M, Gastel JA, Zatz M, Iuvone PM, Rodriguez IR, Begay V,

Falcon J, Cahill GM, Cassone VM, Baler R. The melatonin rhythm-generating enzyme: molecular regulation of serotonin N-acetyltransferase in the pineal gland. Recent Prog Horm Res. 1997;52:307-57; discussion 357-8.

Kortvely E, Gulya K. Calmodulin, and various ways to regulate its activity. Life Sci. 2004 Jan 16, 74(9):1065-70. Lopes C, deLyra JL, Markus RP, Mariano M. Circadian rhythm in experimental granulomatous inflammation is

modulated by melatonin. J Pineal Res. 1997 Sep;23(2):72-8. Lotufo CMC, Lopes C, Dubocovich ML, Farsky SHP, Markus RP. Melatonin and N-acetylserotonin inhibit leukocyte

rolling and adhesion to rat microcirculation. Eur J Pharmacol. 2001; 430:351-7. Masana, M.I. & Dubocovich, M.L. (2001). Melatonin receptor signaling: finding the path through the dark. Sci STKE,

2001, PE39. Nosjean O, Ferro M, Coge F, Beauverger P, Henlin JM, Lefoulon F, Fauchere JL, Delagrange P, Canet E, Boutin JA.

Identification of the melatonin-binding site MT3 as the quinone reductase 2. J Biol Chem. 2000 Oct 6;275(40):31311-7.

Reiter RJ, Calvo JR, Karbownik M, Qi W, Tan DX. Melatonin and its relation to the immune system and inflammation. Ann N Y Acad Sci. 2000;917:376-86.

Reiter RJ, Tan DX, Sainz RM, Mayo JC, Lopez-Burillo S. Melatonin: reducing the toxicity and increasing the efficacy of drugs. J Pharm Pharmacol. 2002; 54:1299-321.

Reiter RJ. The melatonin rhythm: both a clock and a calendar. Experientia. 1993; 49(8): 654-64. Reppert SM, Weaver DR, Ebisawa T. Cloning and characterization of a mammalian melatonin receptor that mediates

reproductive and circadian responses. Neuron. 1994 Nov;13(5):1177-85. Simonneaux V, Ribelayga C. Generation of the melatonin endocrine message in mammals: a review of the complex

regulation of melatonin synthesis by norepinephrine, peptides, and other pineal transmitters. Pharmacol Rev. 2003 Jun;55(2):325-95.

Page 309: Livro CI 2007

  301

Fisiologia celular do Plasmodium durante a fase assexuada Laura Nogueira da Cruz ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia Celular e Molecular do Plasmodium

Malária Malária é uma das mais importantes infecções por protozoários no mundo causando

morte de mais de 2 milhões de pessoas anualmente (WHO, 2005). A Africa subsaariana concentra 90% dos casos, no entanto mais de 40% da população mundial está sob risco da doença, principalmente os habitantes das regiões tropicais e subtropicais do globo (figura1) onde ocorre a distribuição geográfica do mosquito do gênero Anopheles (A. darling, no Brasil e A. gambiae, na África), que transmite as espécies infectantes humanas P. falciparum, P. malariae, P. vivax e P. ovale, sendo as três primeiras espécies encontradas no Brasil.

P. falciparum é o parasita que mais causa morte por malária no mundo ocorrendo em maior incidência na África. No Brasil, a maioria dos casos é de P. vivax (WHO, 2005)..

É importante lembrar que a malária pode ser muito mais antiga que a humanidade e existem quase 100 espécies de plasmódios, 22 dos quais infectam macacos e 50 parasitam aves ou répteis (que tiveram seu apogeu nos períodos Permiano e Triássico, quando os insetos hematófagos já existiam).

Plasmódios de roedores e aves são freqüentemente utilizados, no laboratório, como modelos experimentais. Entender a complexa biologia do parasita é fundamental para o desenho de novas e mais eficientes drogas e desenvolver novas estratégias para combater a epidemia.

Figura 1. Potencial mundial de transmissão de malária (Fonte : http://en.wikipedia.org/wiki/Malaria)

Combate à malária Nos últimos cinqüenta anos muitas pesquisas foram realizadas fomentando o

desenvolvimento de drogas sintéticas antimalaricas. A mais importante dessas foi a cloroquina que possui baixa toxicidade, baixo custo e necessidade de ser aplicada apenas uma vez por semana. Atualmente ,no entanto, um grande problema no combate à malária deve-se ao aumento da resistência dos parasitas a cloroquina, derivados de cloroquina e a grande maioria de antimaláricos introduzidos. Para inibir o aparecimento de resistência a WHO recomenda que o tratamento utilize pelo menos o combinado de 2 anti-maláricos.

A incidência da malária, no Brasil, por exemplo, aumentou cerca de 10 vezes nos últimos 30 anos, sendo que hoje 99% desses casos ocorrem na Amazônia Legal (FNS, 2002), área endêmica do país, composta pelos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. Nos Estados fora da Amazônia Legal, o risco de transmissão local é pequeno ou inexistente e a quase totalidade dos casos de malária registrada é importada da Amazônia Legal ou de outros países, principalmente da África

Page 310: Livro CI 2007

 302 

Limitações da quimioterapia no controle da malária demonstram a necessidade de novas drogas, preferencialmente contra novos alvos, pois apesar de todas as pesquisas e informações adicionais o número de casos de malária vem aumentando e uma vacina eficiente provavelmente não estará disponível no futuro próximo. Além disso, os esforços para controlar o mosquito Anopheles tiveram pouco sucesso.

Atualmente o que pode ser feito são medidas de profilaxias para pessoas que se dirigem a áreas de maior transmissão. O regime profilático consiste em prescrição médica dos medicamentos antimaláricos de acordo com as espécies de Plasmodium predominantes, grau de risco da infecção da área de destino, perfil de resistência ás drogas e avaliação dos efeitos colaterais associados ao uso das mesmas.

A quimioprofilaxia deve ser iniciada uma semana antes da viagem, para avaliação dos efeitos colaterais, e prolongada por quatro semanas após a saída da área endêmica, a fim de sustentar a ausência dos parasitas na corrente sangüínea, mesmo após a sua transição pelo estágio hepático, período de incubação que pode levar á formação de formas latentes do parasita, responsáveis por recaídas. Contudo, apesar das medidas preventivas, febre no período de dois meses após o curso da quimioprofilaxia ainda pode ser originada pela infecção. Outro propósito da profilaxia se estender por um tempo depois da visita a área de risco é para evitar que se importe doença para a origem do viajante.

Trabalhos recentes mostram que o controle com telas mosquiteiras impregnadas com inseticida ajuda no combate da malaria. A malaria caiu na década de 50 pelo esforço combinado da cloroquina e do DTT, que combatia o mosquito!

Ciclo de vida O Plasmodium é um parasita eucarioto unicelular, de vida intracelular obrigatória,

que mede 1,6 X 1,0 uM e pertence ao filo Apicomplexa. Possui um ciclo de vida caracterizado pela sucessão de várias formas especializadas de desenvolvimento

Em vertebrados, a infecção se inicia pela picada do mosquito Anopheles, fêmea, que retira 3 a 4 microlitros de sangue, enquanto injeta saliva contendo alguns esporozoitos. Uma vez na corrente sanguínea, os esporozoitos invadem os hepatócitos e se desenvolvem para o estágio assexuado de merozoito. Durante este período a infecção é assintomática e cada esporozoito forma 30,000 merozoitos. Estes são liberados diretamente na corrente sangüínea e invadem os eritrócitos. Na corrente sangüínea amadurecem passando pelos estágios de anel, trofozoito e esquizonte. Por um processo ainda desconhecido, alguns merozoitos não invadem os eritrócitos e se diferenciam em gametócitos, a forma infectante do mosquito.

Para o fechamento do ciclo, o mosquito – onde ocorre o ciclo sexual do parasita - terá que picar o vertebrado que tem gametocitos presentes na circulação. Estes, após o ciclo no mosquito formarão os esporozoitos que migrarão até a glândula salivar e serão transmitidos ao hospedeiro vertebrado (figura 2).

Page 311: Livro CI 2007

  303

Figura 2: Ciclo de vida da malária (Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Malaria)

O ciclo intraeritrocítico é, portanto, o responsável por toda manifestação clínica na malária, sendo na ruptura do eritrócito infectado e conseqüente liberação do parasita para infecção de novas células que ocorrem febre e tremedeira, típicas da doença. Dependendo da espécie de parasita, estes sintomas ocorrem em intervalos distintos – 3 ou 4 dias para P. falciparum e P. vivax, respectivamente (tabela 1).

Função da melatonina A transição do estágio intraeritrocítico, bem como o processo de invasão in vivo e a

produção de gametócitos são processos altamente sincronizados e na maioria mamíferos estudados seguem ciclos múltiplos de 24h (tabela 1) Tabela 1- Período do ciclo intraeritrocítio de diversas espécies de Plasmodium (Garcia, et al 2001)

Parasita Hospedeiro vertebrado Período do ciclo intraeritrocítico

P. knowlesi primata 24h P. cathemerium pássaro 24h P. vinckei roedor 24h P. chabaudi roedor 24h P. berghei roedor 24h P. yoelii roedor 18h P. gallinaceum galinha 36h P. falciparm homem 48h P. vivax Homem 48h P. cynomolgi Primata 48h P. coatneyi Primata 48h P. malariae Homem 72h P. inui Pássaro 72h P. brasilianum Primata 72h

No caso do desenvolvimento intraeritrocítico do Plasmodium, os processos de

divisão celular e expressão gênica específicas de cada estágio são de extrema importância. Foi demonstrado por Hotta et al. (2000) que o hormônio melatonina é capaz

Page 312: Livro CI 2007

 304 

de sincronizar o desenvolvimento do Plasmodium in vivo e in vitro. Quando se mantém parasitas em cultura, a sincronia é perdida, um dos fenômenos que sugeriram que o hospedeiro tem papel fundamental no estabelecimento do ritmo.

A melatonina tem um largo espectro de atuação (vertebrados, plantas e protozoários) podendo ser sintetizada em vários tecidos, porém sua síntese rítmica é confinada primariamente à glândula pineal. Este hormônio é sintetizado a partir de serotonina, que está presente em grande quantidade na glândula pineal.

É interessante observar ainda que os precursores da melatonina, que são devirados do triptofano, têm o mesmo efeito da melatonina tanto no ciclo celular do Plasmodium quanto na mobilização de Ca2+ de estoques intracelulares.

Hotta et al. (2000) consideram que a melatonina é capaz de ativar a cascata da fosfolipase C que, por sua vez, ativa a via de inositol 1,4,5-triposfato (IP3) e libera Ca2+ do retículo endoplasmático (RE), nos estágios trofozoitos do Plasmodium.

Homeostasia e sinalização por cálcio Variações na concentração de cálcio intracelular exercem papel fundamental em

muitos processos biológicos de células eucarióticas, como organização do citoesqueleto, divisão e diferenciação celular.

As células eucarióticas possuem mecanismos para manter a homeostasia de Ca2+ estes incluem, uma bomba de cálcio na membrana plasmática, no retículo endoplasmático além de trocadores em organelas intracelulares e na membrana plasmática.

Especificamente, para o parasita da malária foi demonstrado a existência de 2 compartimentos de Ca2+: um é o clássico retículo endoplasmatico e o outro é um compartimento ácido.

Sabe-se que para Plasmodium falciparum o Ca2+ extracelular é indispensável no processo de invasão do eritrócito pelo parasita e estudos fisiológicos mostram envolvimento da sinalização de Ca2+ no processo de maturação do parasita.

Como qualquer célula eucariótica, o citoplasma do eritrócito possui baixa concentração de cálcio (menor que 100 nM), sendo que o ambiente extracelular encontrado pela maior parte das células eucarióticas situa-se ao redor de 1 mM. A ausência de Ca2+ extracelular é normalmente incompatível com as funções normais da célula e sua sobrevivência.

Dentro deste contexto, nosso laboratório demonstrou que o parasita resolve o problema de pouco Ca2+ no meio em que sobrevive, através da invaginação da membrana citoplasmática do eritrócito pois no momento da infecção forma o vacúolo parasitóforo (VP) e inverte a polaridade da Ca2+ ATPase da membrana (bombeando ativamente Ca2+ para o interior do VP). Desta forma pode manter o ambiente de alta concentração de Ca2+ necessário ao desenvolvimento do parasita.

Enzimas proteolíticas Enzimas proteolíticas possuem um importante papel no ciclo de vida de todos os

protozoários medicamente importantes como leshmania, toxoplasma, giardia e plasmodium.

Várias proteases de protozoários foram identificadas e caracterizadas sendo utilizadas pelos protozoários em diferentes funções tais como: invasão de células e tecidos do hospedeiro, degradação de mediadores da resposta imune e hidrólise de proteínas para suprir necessidades nutricionais do parasita.

As proteases podem ser classificadas em quatro classes, sendo três delas (serine, cisteina e aspartil proteases), assim denominadas pela existência de sítio de aminoácido chave e a metaloprotease , pela necessidade do íon metálico para catálise.

Sabe-se ainda que para a invasão dos eritrócitos por merozoitos e ruptura pelos esquizontes maduros, são necessárias proteases do parasita, pois durante estes eventos proteínas do citoesqueleto do eritrócito precisam ser hidrolizadas e algumas proteínas do parasita são proteolicamente processadas.

Outra importante função das proteases inclui a degradação da hemoglobina que é utilizada como uma fonte de amino ácido livre pelo parasita.

O conteúdo da hemoglobina em eritrócitos infectados diminui 25-75% durante o ciclo de vida do parasita eritrocítico, a concentração de aminoácido livre é maior nos eritrócitos

Page 313: Livro CI 2007

  305

infectados do que nos não infectados e a composição dos aminoácidos de eritrócitos infectados é semelhante à composição de aminoácidos da hemoglobina

Peptídeos fluorescentes para determinar atividade de proteases Recentemente foram desenvolvidos peptídeos sintéticos, com seqüências

específicas de aminoácido capazes de penetrar na célula e emitir fluorescência quando clivado pela protease (figura 3). Dependendo da especificidade da seqüência peptídica e das proteases pode-se então determinar atividades e funções proteolíticas.

Figura 3: Representação esquemática do mecanismo de funcionamento dos substratos quelante interno fluorescente de peptídeos (IQF).

Em estudos realizados com P. chabaudi utilizou-se este quelante interno fluorescente de peptídeos (IQF) e microscopia confocal para demonstrar-se que melatonina induz atividade das thiol protease em uma forma cálcio-dependente.

Estas proteases estão localizadas predominantemente no citoplasma do parasita e sua atividade pode também ser induzida por agentes que aumentam o cálcio citosolico como tapsigardina (inibidor específico da Ca2+ ATPase do retículo endoplasmático), nigericina (ionóforo K+/H+) e ionomicina (ionóforo Ca2+/H+).

Page 314: Livro CI 2007

 306 

Bibliografia Sugerida: Ball E G; McKee R W; Anfinsen C B; Cruz W O. e Geiman Q M. Studies on malarial parasites. IX. Chemical and

metabolic changes during growth and multiplication in vivo and in vitro. J. Biol. Chem. 1948, 175:547-71. Barrett A J. Classification of peptidases. Methods in Enzymology. 1994, 244:1-15. Beraldo F H, Garcia C R. Products of tryptophan catabolism induce Ca2+ release and modulate the cell cycle of

Plasmodium falciparum malaria parasites. J Pineal Res. 2005, 39(3):224-30. Berridge M J. Bootman M D. and Roderick H L. Calcium signaling: Dynamics, homeostasis and remodelling. Molecular

Cell Biology. 2003, 4: 517-29. Berridge M J. e Irvine R F. Inositol triphosphate, a novel second messengers in cellular signal transduction. Nature.

1984, 312 (5992);315-21. Chouaibou M. Simard F. Chandre F. Etang J. Darriet F. Hougard J M. Efficacy of bifenthrin-impregnated bednets

against Anopheles funestus and pyrethroid-resistant Anopheles gambiae in North Cameroon. Malaria Journal. 2006 5:77-83.

Doerig CD. Signal transduction in malaria parasites . Parasitol Today. 1997, 13:307-13. Farias, S.L.; Gazarini, M.L.; Melo, R.L.; Juliano, M.A ; Juliano, L. and Garcia, C.R.S. Cysteine-protease activity elicited

by Ca 2+ stimulus in Plasmodium, Molecular and Biochemical Parasitology. 2005, 141: 71-79. Garcia C R. Ann S E. Tavares E S. Dluzewski R. Manson W T. and Paiva F B. Acid calcium pools in intraerythrocytic

malaria parasite. Eur. J. Cell Biol .1998, 76: 133-38. Garcia C R. Calcium homeostasis and signaling in the blood-stage malaria parasite. Parasitol Today. 1999, 15:488-91. Garcia C R. Markus R P. Madeira L. Tertian and quartan fevers: Temporal regulation in malarial infection, Journal of

Biological Rhythms. 2001, 16(5): 436-43. Gazarini M L. Tomas A P. Pozzan T. and Garcia C R S. Calcium signaling in a low calcium environment: how the

intracellular malaria parasite solves the problem. Journal of Cell Biology. 2003, 161: 103-10. Groman N B. Dynamic aspects of the nitrogen metabolism of Plasmodium gallinaceum in vivo and in vitro. J. Infect. Dis.

1951, 88:126-50. Harrison T. Samuel B U. Akompong T. Hamm H. Mohandas N. Lomasney J W. and Haltar K. Erythrocyte G protein-

couple receptor signaling in malarial infection. Science. 2003, 301: 1734-6. Hawking F. and Gammage K. The timing of the asexual cycles of Plasmodium lophurae and P. cathemerium. J.

Parasitol. 1970, 56: 17-26. Hoffman S L. Miller L H. Perspectives on malaria vaccine development. In: Hoffman, S.L., editor. Malaria vaccine

development. Whashington: ASM Press. 1996, pp..1-13. Hotta C T. Gazarini M. Beraldo F H. Varotti F P. Lopes C. Markus R P. Pozzan T. and Garcia C R. Calcium-dependent

modulation by melatonin of the circadian rhythm in malarial parasites. Nature Cell Biol. 2000, 2(7): 466-68. Hotta C T. Markus R P. and Garcia C R S. Melatonin and N-acetyl-serotonin cross the red blood cell membrane and

evoke calcium mobilization in malarial parasites. Brazilian Journal of Medical and Biological Reserch. 2003, 36:1583-7.

Klemba M. and Goldberg D E. Biological roles of proteases in parasitic protozoa. Annul Rev. Biochem. 2002, 71:275-05. Madeira L. DeMarco R. Gazarini M L. Verjovski-Almeida and Garcia C R. Human malaria parasites display a receptor

for activated C kinase ortholog. Biochem Biophys Res Commum. 2003, 306:995-01. McKerrow, J.H.; Sun, E.; Rosenthal, P.J.; Bouvier, J. The proteases and pathogenicity of parasitic protozoa. Annu

Revericrobiol. 1993, 47:821-53. Neurath H. The diversity of proteolytic enzymes. In: Proteolytic enzymes: a practical approach (Beynon, R.J. and Bond,

J.S., eds.), Oxford:IRL Press. 1989. pp.1-13. Olliaro, P.; Cattani, J.; Wirth, D. Malaria, the submerged disease. JAMA. 1996, 275:230-3. Passos A P D. and Garcia C R S. Characterization of Ca2+ transport activity associated with a non-mithochondrial

calcium pool in the rodent malaria parasite P.chabaudi. Biochem Mol. Biol In.t 1997, 42:919-25. Rosenthal P J. Proteases of malaria parasites: new targets for chemotherapy . Emerging Infectious Diseases. 1998,

4:49-57. Rosenthal P J. Proteases of protozoan parasites. Advances in Parasitology.1999, 43: 105-59. Roth E F. Brotman D S. Vanderberg J P. and Schulman S. Malarial pigment-dependent error in the estimulation of

hemoglobin content in Plasmodium falciparum-infected red cells: implications for metabolic and biochemical studies of the erythrocytic phases of malaria. Am. J. Trop. Med. Hyg. 1986, 35:906-11.

Scheibel L W. and Sherman I W. Plasmodium metabolism and related organellar function during various stages of life-cycle: Proteins, lipids, nucleic acids and vitamins.In: Malaria: Principles and Practice of Malariology. (Wernsdorfer, W.H. and McGregor, I., eds.) 1988, pp.219-52; Edinburgh: Churchill Livingstone.

Sturn A. Amino R. Sand C. Regen T. Retzlaff S. Rennenberg A. Krueger A. Pollok J. Menard Robert Heussler V. Manipulation of host hepatocytes by the malaria parasite for delivery into liver sinusoids. Science. 2006, 313:1287-90.

Varoti F P. Beraldo F H. Gazarini M L. Garcia C R. Plasmodium falciparum malaria parasites display a THG-sensitive Ca 2+ pool. Cell Calcium. 2003, 33:137-44.

Referências eletrônicas:

WHO, World health Organization. Roll Back Malaria department. Disponível http://www.who.int/malaria, acesso 17/maio/2007, Genebra, 2005

Ministério da saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Disponível em http://www.saúde.gov.br/bvs, acesso em 17/maio/2007, Brasília, 2003.

Cives, Centro de Informação em Saúde para Viajantes. Disponível em http://www.cives.ufrj.br/informação/malaria/mal-iv.html, acesso em 17/maio/2007, Rio de Janeiro, 2005.