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Arte de CApA

Flavia Bergamin

revisão

Sandra Garcia Cortés

diAgrAmAção

Valdir Colonhezi

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Título Provisório 5

Ao ex-aluno Fritz Carl Utzeri, por ter sido, além de médico graduado, um dos maiores repórteres investigativos do Brasil, na segunda metade do século XX e por ter servido de inspiração e exemplo, realizando reportagens inspiradoras que mudaram a his-tória do país como as dos casos Rubens Paiva e Rio Centro, além de ter sido um democrata, avesso a qualquer forma de violência, seja vinda da esquerda ou da direita. Reconhecido por seus pares jornalistas como um homem que viveu sem medo.

Aos entrevistados e personagens, razão de ser deste livro, ci-tados em ordem alfabética: Albineiar Plaza Pinto, Álvaro Cumpli-do de Sant’Anna, Américo Piquet Carneiro, André Jorge Campello R. Pereira, Antônio Augusto Fernandez Quadra, Antônio Duarte, Armando Hide, Arnoldo Flávio da Rocha e Silva, Bruna Trajano, Cláudio da Rocha Roquete, Claudio José de Campos Filho, Cla-rissa Pereira e Pádua, Eduardo Faerstein, Edmundo Luis Ramos de Souza, Eliana Cláudia Ribeiro, Eurys Maia Dallalana, Fernan-do Bevilacqua, Fernando Pinto Bravo, Fritz Carl Utzeri (Federico Carlo Utzeri), Gil Santini Pinto, Gilberto Hauagen Soares, Gulnar Azevedo e Silva, Hermes Lima, Hésio de Albuquerque Cordeiro, Ismael Silva Neto, Ítalo Suassuna, Jane Corona, Jayme Landmann, Jayme Pereira, João Lopes Salgado, João Ramos da Costa Andrade, José Assad, José Augusto Coelho Duque Estrada, José Augusto de A. C. Taddei, José Mendes Ribeiro, Júlio Sanderson, Liège Galvão Quintão, Luiz Carlos Lynch, Luiza Maria Spineti, Luís de Gonzaga Gawryszcwski, Luiz Roberto Tenório, Marcio Neves Bóia, Mar-cos Fernando de Oliveira Moraes, Marcos Moreira, Maria Chris-tina Lins de Almeida, Mario Dal Poz, Mario Fritsch Toros Neves,

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6 Fabio Daflon

Michel Assbu, Mourad Ibrahim Belaciano, Nilcéa Freire, Odilon Batista, Paulo Bacha, Paulo de Carvalho, Paulo Gadelha, Paulo Maurício Campanha Lourenço, Pedro Henrique França, Pedro Reginaldo dos Santos Prata, Ricardo Donato Rodrigues, Ricardo Vieira Elias, Sansão Gorensein, Silvia Disitzer, Tatiana Cobbett, Valter Duarte Ferreira Filho, Wanda Coelho.

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Título Provisório 7

Siglas

ABEM – Associação Brasileira de Escolas MédicasABI – Associação Brasileira de ImprensaAEMEG – Associação dos Estudantes de Medicina do Estado da

GuanabaraAESI – Assessoria Especial de Segurança e InformaçãoAI-2 – Ato Institucional n. 2AI-5 – Ato Institucional n. 5AIB – Ação Integralista BrasileiraALERJ – Assembleia Legislativa do Rio de JaneiroALN – Ação Libertadora NacionalAMAN – Academia Militar de Agulhas NegrasAMEG – Associação Médica do Estado da GuanabaraAMERE-HC – Associação dos Médicos do Hospital das Clínicas

da UERJ (na verdade Hospital Universitário Pedro Ernesto, que alguns alunos e professores preferiram por um tempo cha-mar de Hospital das Clínicas da UERJ)

AMERJ – Associação Médica do Estado do Rio de JaneiroANL – Aliança Nacional LibertadoraANMR – Associação Nacional dos Médicos ResidentesANS – Agência Nacional de SaúdeAP – Ação PopularARENA – Aliança Renovadora NacionalASDUERJ – Associação de Docentes da UERJBA – BahiaBIMA – Biblioteca Manoel de AbreuBNH – Banco Nacional de Habitação

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8 Fabio Daflon

CACO – Centro Acadêmico Cândido de OliveiraCAMDE – Campanha da Mulher pela DemocraciaCAPEMI – Caixa de Pecúlio Militar, ou CAPEMISA – Caixa de

Pecúlio Militar Sociedade AnônimaCAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

SuperiorCASAF – Centro Acadêmico Sir Alexander FlemingCCC – Comando de Caça aos ComunistasCCCJ – Confederação dos Centros Culturais da JuventudeCD – Conselho DepartamentalCDCR – Comissão de Diretórios e Conselho de RepresentantesCDCR – Comissão de Diretórios e Conselhos de RepresentantesCDR – Centro de Doenças RenaisCEBES – Centro Brasileiro de Estudos de SaúdeCEPERJ – Centro de Prematuros do Estado do Rio de JaneiroCFM – Conselho Federal de MedicinaCGT – Confederação Geral dos Trabalhadores na IndústriaCIA – Central Intelligency AgencyCICEME – Cine Clube Ciências MédicasCIP – Comissão Interministerial de PreçosCISA – Centro de Informações de Segurança da AeronáuticaCodesco – Companhia de Desenvolvimento das ComunidadesCONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores AgrícolasCOP – Chapa Ordem e ProgressoCOPEG – Companhia Progresso do Estado da GuanabaraCPC da UNE – Centro Popular de Cultura da União Nacional de

EstudantesCPI – Comissão Parlamentar de InquéritoCPMF – Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou

Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira

CR – Conselho de RepresentantesCREMERJ – Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio

de Janeiro

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Título Provisório 9

CR-FCM-UERJ – Conselho de Representantes dos alunos da FCM-UERJ

CRM – Conselho Regional de MedicinaCTA – Conselho Técnico AdministrativoCUT – Central Única dos TrabalhadoresD.I.A. – Departamento de Imprensa dos Alunos (anos 70)DCE – Diretório Central de EstudantesDF – Distrito FederalDI-GB – Dissidência da Guanabara, grupo de militantes críticos

do PCB, que se desligou e veio a refundar o MR-8, de início idealizado em Niterói, antigo Estado do Rio de Janeiro, antes da fusão com a Guanabara.

DINA – Diretoria de Inteligência Nacional do ChileDIP – Departamento de Imprensa e Propaganda (Ditadura do

Estado Novo)DOI-CODI – Destacamento de Operações de Informações –

Centro de Operações de Defesa InternaDOPS – Delegacia de Ordem Política e SocialECO-UFRJ – Escola de Comunicação da Universidade Federal do

Rio de JaneiroERDA – ERDA, Experimental Research of Dramatical Arts ou

Experiência Renovadora do Desenvolvimento ArtísticoEUA – Estados Unidos da AméricaFAPERJ – Fundação de Amparo e Pesquisa do Estado do Rio de

JaneiroFCM – Faculdade de Ciências MédicasFCM-UEG – Faculdade de Ciências Médicas da UEGFCM-UERJ – Faculdade de Ciências Médicas da UERJFEFIEG – Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado da

GuanabaraFEFIERJ – Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do

Rio de Janeiro, atual UNIRIOFGTS – Fundo de Garantia por Tempo de ServiçoFGV – Fundação Getúlio Vargas

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10 Fabio Daflon

FMP – Frente de Mobilização PopularFUR – sigla de movimento anticomunista de significado não

encontrado, o mais próximo encontrado foi FAC – Frente Anticomunista.

GB – GuanabaraGTRU – Grupo de Trabalho da Reforma UniversitáriaHUPE-UEG – Hospital Universitário Pedro Ernesto da UEGHUPE-UERJ – Hospital Universitário Pedro Ernesto da UERJIAPAS – Instituto de Administração Financeira da Previdência e

Assistência SocialIBAD – Instituto Brasileiro de Ação DemocráticaIML/SP – Instituto Médico-Legal de São PauloIMS-UERJ – Instituto de Medicina Social da UERJINAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdên-

cia SocialINPS – Instituto Nacional de Previdência SocialIPES – Instituto de Pesquisas e Estudos SociaisIPM – Inquérito Policial MilitarLDB – Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoMAC – Movimento AnticomunistaMDB – Movimento Democrático BrasileiroMDS – Ministério de Desenvolvimento SocialME – Movimento EstudantilMEC – Ministério da Educação e da CulturaMEC-AESI – Ministério da Educação – Assessoria Especial de

Segurança e InformaçãoMEC-USAID – Série de acordos produzidos, nos anos 1960, entre

o Ministério da Educação brasileiro (MEC) e a United States Agency for International Development (USAID). Visavam es-tabelecer convênios de assistência técnica e cooperação finan-ceira à educação brasileira.

MEDICIBI – Time de futebol de salão composto por alunos de medicina e ciências biológicas na UERJ.

MEP – Movimento de Emancipação do Proletariado

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Título Provisório 11

MOLIPO – Movimento de Libertação PopularMR-8 – Movimento Revolucionário 8 de Outubro, alusivo à data

da morte de Ernesto Che Guevara em 1968, na Bolívia.MRU – Movimento de Renovação UniversitáriaMUSICEME – Departamento de Música do Conselho de Repre-

sentantes dos Alunos da FCM-UERJNESSA – Núcleo de Estudos da Saúde do AdolescenteOAS – Organização Armada SecretaOCLAE – Organização Continental Latino-Americana de Estu-

dantes, segundo o jornal O Globo sediada em Havana.ONU – Organização das Nações UnidasOPAS – Organização Panamericana de SaúdePC do B – Partido Comunista do BrasilPCB – Partido Comunista BrasileiroPDT-RJ – Partido Democrático Trabalhista – seção RJPIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Portugal)PM – Polícia MilitarPMDB-MG – Partido do Movimento Democrático Brasileiro, se-

ção Minas GeraisPOLOP – Política OperáriaPPS – Partido Popular SocialistaPR – ParanáPRP – Partido de Representação PopularPSB – Partido Socialista BrasileiroPSDB/AM – Partido da Social Democracia, seção da AmazôniaPU – Posto de UrgênciaRAN – Resistência Armada NacionalistaREDUC – Refinaria Duque de CaxiasRJ – Rio de JaneiroRN – Rio Grande do NorteSINMED-RJ – Sindicato dos Médicos do Rio de JaneiroSINPAS – Sistema Nacional da Previdência e Assistência SocialSMCRJ – Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de JaneiroSNI – Serviço Nacional de Informações

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12 Fabio Daflon

SP – São PauloSTJ – Superior Tribunal de JustiçaSUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde – primeira

denominação do SUSSUS – Sistema Único de SaúdeSUSEME-RJ – Superintendência de Serviços Médicos do Rio de

JaneiroTP – Título ProvisórioU. de Chile – Universidade do ChileUB – Universidade do BrasilUBES – União Brasileira dos Estudantes SecundaristasUDF – Universidade do Distrito FederalUDN – União Democrática NacionalUEE – União Estadual dos EstudantesUEG – Universidade do Estado da GuanabaraUERJ – Universidade do Estado do Rio de JaneiroUFRJ – Universidade Federal do Rio de JaneiroUME – União Metropolitana dos EstudantesUnB – Universidade de BrasíliaUNE – União Nacional dos EstudantesUNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de JaneiroUSP – Universidade de São PauloVPR – Vanguarda Popular RevolucionáriaVPR – Vanguarda Popular Revolucionária – Palmares

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Sumário

Prefácio em um percurso de quarenta anos, Gestão CASAF 65/66 ................................................................ 17

Geração anos 70 em um coração de estudante da FCM-1978 ..................................................... 19

1ª PARTE ........................................................................................... 21

Leitmotiv ........................................................................................ 23

A fundação do Centro Acadêmico Sir Alexander Fleming ... 26

O Rio de Janeiro, a UEG e a UERJ ........................................... 30

A superação da Lei Suplicy ......................................................... 53

Mundo fechado, mundo aberto .................................................. 68

A Ciências Médicas em crise ....................................................... 74

Meados da crise ............................................................................. 82

1968 – O ano que terminou mal ................................................ 92

A rejeição ao patrono dos doutorandos de 1968 .................. 101

Crítica e autocrítica ..................................................................... 106

大字报 – Informativo Dazibao: Teologia da Libertação ...... 113

A Síndrome da Vice-Presidência atinge o CASAF ............... 115

Sobre professores e alunos em 1971 ....................................... 131

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Participação estudantil nos negros verdes anos 70 ............... 138

大字报 – Informativo Dazibao: O caso mais grave de tortura sofrido por ex-aluno da FCM-UEG/UERJ ........ 148

O canto geral na casa de Jane ................................................... 150

大字报 – Informativo Dazibao: Homenagem ao Dr. Roberto Chabo (1935-2007) e notas sobre intervenção no Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro .................... 156

Pequeno panorama do ano de 1973 na Ciências Médicas.... 158

大字报 – Informativo Dazibao: Acordo de Paz e fim da Guerra do Vietnã, em artigo de Fausto Wolff ................. 170

2ª PARTE ......................................................................................... 173

BIMA – a Biblioteca Manoel de Abreu .................................. 175

Passe livre ..................................................................................... 179

CICEME – Cine Clube Ciências Médicas .............................. 182

大字报 – Informativo Dazibao: Os 10 filmes políticos mais importantes do século XX – faça também sua lista ... 191

大字报 – Informativo Dazibao: O arquivo americano do jornal Perspectivas do CASAF............................................ 192

O ...ERDA ................................................................................... 195

大字报 – Informativo Dazibao: Emilio Myra y López ......... 200

O MUSICEME e o encontro com uma gestante .................. 202

Meningite ..................................................................................... 206

A AEMEG e a CDCR ............................................................... 209

O ensino pago ............................................................................. 219

Os acadêmicos bolsistas ............................................................ 226

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3ª PARTE ......................................................................................... 237

Fundos, honorários advocatícios e música na FCM-UERJ . 239

Um título para a consciência ..................................................... 245

A retomada das lutas, reabertura do CASAF ......................... 254

Luiza Maria Santana Spineti – Estudante dos anos 1970 ..... 265

Perguntas sem resposta .............................................................. 270

Mentores do 1º número do jornal TÍTULO PROVISÓRIO e democracia à brasileira .......................... 273

Médicos residentes e internos em greve ................................. 278

Homenagem ao Professor Américo Piquet Carneiro ........... 286

大字报 – Informativo Dazibao: De As Cumplidas até As Figueiríadas ...................................................................... 288

大字报 – Informativo Dazibao: Perfil de Américo Piquet Carneiro ..................................................................... 291

Cirurgia plástica e desdobramentos extrauniversitários........ 294

Entrevista de João Lopes Salgado à ASDUERJ .................... 298

A história de um lua preta – entrevista com Hésio Cordeiro .. 312

大字报 – Informativo Dazibao – Jayme Landmann (1920-2006) ............................................................................ 324

大字报 – Informativo Dazibao – Fé, fundamentalismo e Estado ..................................................................................... 326

Reabrimos o Centro Acadêmico, e agora? ............................ 327

Considerações finais ................................................................... 331

Referências e leituras afins ........................................................ 339

O autor – dados biográficos ..................................................... 349

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Título Provisório 17

Prefácio em um percurso de quarenta anos, Gestão CASAF 65/66

A fobofobia não é uma doença,é um neologismo criado por Fausto Wolff,que nos fala sobre não ter medo do medo,isto é, ter fobia do medo que nos destrói.

Stanislaw Balner

Sinto-me um privilegiado com a responsabilidade de escre-ver o prefácio do livro de Fabio Daflon. A história deste livro, Tí-tulo Provisório, me reporta ao ano de 1977, em plena ditadura militar e no início da luta pela redemocratização do país, com a campanha pela anistia ampla, geral e irrestrita.

Ainda sob o regime de exceção, com a imprensa censurada, os órgãos de repressão em plena atividade, os intelectuais e histo-riadores ameaçados, fui procurado pelo então estudante do quinto ano do curso médico, hoje, ex-aluno da Faculdade de Ciências Mé-dicas da UERJ, Fabio Daflon, com uma proposta de escrever um livro sobre o movimento estudantil na Faculdade a partir do golpe de 1964 e suas consequências para a vida acadêmica, institucional e política na faculdade.

Num primeiro momento, resisti em dar a entrevista proposta ao Fabio. Não o conhecia e ainda vivia o trauma da ameaça de no-vas prisões, outros processos e inquéritos policiais militares (IPM). Mesmo assim, marcamos um encontro e, graças à perseverança do

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18 Fabio Daflon

Fabio, saiu a entrevista. A partir daí fui tendo a convicção de es-tar lidando com um colega íntegro, competente e com propósitos bem claros de resgatar uma época importante da nossa Faculda-de, em que uma geração de jovens estudantes, correndo todos os riscos no enfrentamento de um regime opressor, foi à luta, como dizíamos na época, em defesa da democracia, de um ensino mé-dico de qualidade e de uma universidade comprometida na busca de um país mais justo, mais humano e acima de tudo democrático. Fabio construiu durante todos esses anos as condições de relatar um pouco da história de todos nós. Resgatou a importância do movimento estudantil, realizado pelo CASAF (Centro Acadêmico Sir Alexander Fleming) nessa época.

Título Provisório – imprensa e movimentos estudantis na Faculdade de Ciências Médicas da UERJ 1964 a 1985; proêmios de 38 a 64 é uma obra que nos dá a dimensão exata dos momentos vividos nos vinte e um anos de regime de exceção e a luta pela redemocratização, com abrangência também de alguns momentos fundadores da fa-culdade e da universidade.

Alguns ex-alunos como Fabio, utilizando sua competência na pesquisa de fatos e dados, nos permitem uma visão ampla desta luta e o papel que os alunos da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro nela representaram. A ele agradecemos as reflexões proporcionadas, marcadas desde já na história da nossa Universidade.

3 de janeiro de 2017Luiz Roberto Tenório

Ex-Presidente do CASAF – Gestão 65-66

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Título Provisório 19

Geração anos 70 em um coração de estudante da FCM-1978

Onde estão os perigos desta vida?Quero-os todos para mim, aqui ou longe,

a eles o melhor estilo e o melhor entusiasmo.E que sobre eles o amor e a alegria se debrucem

como rosas abertas num campo minado.

Joel Silveira

Livro de leitura imprescindível para todos os estudantes nascidos depois da redemocratização, sem terem vivenciado a juventude em uma ditadura; imprescindível também para aque-les que, mesmo tendo vivido naquela época, desejem conhecer a história do movimento estudantil na FCM-UERJ dentro do con-texto histórico político brasileiro naquele período, sem deixar de contextualizá-lo em um período histórico mais amplo.

Também aos que, como testemunhas e atores do aqui rela-tado, seja como estudantes, seja como militantes, ou ainda como profissionais, ler este livro é uma maneira de reviver para celebrar o prazer da vida em sua trajetória individual, mais plena, porque engajada socialmente.

Tenho a primeira edição deste livro, guardada como um te-souro, lançada pelo Dr. Fabio Daflon em 1980. Escrito no final dos anos 70, no auge da luta pela redemocratização no Brasil e pela Anistia, Ampla, Geral e Irrestrita, tema do nosso discurso

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20 Fabio Daflon

de formatura em 1978, um compromisso de luta da nossa turma bradado como juramento após o de Hipócrates.

O Centro Acadêmico da Faculdade de Ciências Médicas ti-nha sido reaberto em 1977 (fechado pela Direção da escola desde 1969) após uma campanha memorável de cuja chapa “Reabertura” o autor deste livro participou.

Muito do material aqui reunido só pôde ser exposto, par-cialmente, após a anistia em 1979. Agora revisado, ampliado e revisitado pelo autor, em exaustivo trabalho, como um precioso testemunho. Um presente capaz de sacudir da acomodação quem por desinteresse, acaso ou cansaço desistiu de indignar-se.

Serve também para nunca se esquecer de que, se a FCM--UERJ era considerada na nossa época, e ainda é até hoje, a segun-da melhor escola médica do Brasil, isso se deveu a uma história de luta, compromisso profissional, sociopolítico e humano com con-quistas de muitos que por lá passaram e aqui têm sua contribuição registrada para que não sejam esquecidos.

Serve, enfim, para que os que por lá atuam hoje, seja como docentes, tutores ou estudantes, sejam estimulados e construam os seus próprios méritos; mas o sucesso só é pleno quando alicerçado na ética e no compromisso social. Gratificação maior não há. Tal-vez só comparável à leitura deste livro.

1º de fevereiro de 2017

Dr. Pedro Reginaldo PrataPhD, Médico sanitarista, Residência em Clínica Médica,

Mestre em Saúde Pública, PhD em Saúde e Ambiente

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Título Provisório 21

1ª Parte

Muitos julgavam que a Universidade poderia existir, no Brasil, não para libertar, mas para escravizar, não para fazer marchar, mas para deter a vida... Conhecemos, todos, a linguagem desse reacionarismo.

Ela é matusalênica. É que liberdade, meus senhores, é uma conquista que está sempre por fazer. Desejamo-la para nós, mas nem sempre a queremos para os outros. Há, na liberdade, qualquer coisa de indeterminado e de imprevi-sível, o que faz com que só possam amar os que realmente tiverem provado, até o fundo, a insignificância da vida humana, sem o acre sabor desse perigo. Por isso é que a Universidade é e deve ser a mansão da liberdade. Os homens que a servem e os que, aprendendo, se candidatam a servi-la a alimentam. Essa bravura é que os torna invencíveis. Não morreram em vão os que morreram por esse ideal de um “pensamento livre como o ar”... Todos os que desapareceram nessa luta, como todos os que nela se batem, constituem a grande comunhão universitária que celebramos nesta inauguração solene dos nossos cursos.

Anísio Teixeira

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Título Provisório 23

Leitmotiv

Quem não sabe o que procuranão entende o que encontra.

Claude Bernard

Este livro, cuja primeira edição foi elaborada entre março de 1977 e 31 de dezembro de 1979, é uma resenha histórica vol-tada para a participação estudantil dentro de uma escola médica. Lançado em 1980, muitos entrevistados à época ampliaram seus dizeres, outras entrevistas recentes e inéditas foram acrescentadas. Constou de uma árdua pesquisa visando obter uma sequência para o período que enfoca: março de 1964 a março de 1985. A edição atual foi feita a partir de convite do Presidente da Associação de Ex-alunos da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, tendo sido revista e ampliada com vistas a contribuir mais para a história da faculdade. Algumas diferenças entre a primeira e a segunda edição devem-se ao maior aporte de informação agora colimado, ao amadurecimento do autor, e às en-trevistas realizadas entre 2013 e 2016, quando, sob regime demo-crático, os entrevistados sentiram-se mais à vontade para relatar os fatos e as suas interpretações.

Na parte autoral se ampliou bastante a história da FCM--UERJ da sua fundação até 1964, feita a opção de contextualizar no tempo histórico do Brasil os fatos da Ciências Médicas. Em tal campo foram valiosos os documentos cedidos pelo Dr. Odilon Batista (filho do Dr. Pedro Ernesto), as entrevistas com o Prof.

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24 Fabio Daflon

Álvaro Cumplido de Sant’Anna (autor do primeiro livro sobre a história da FCM), editado pela antiga Universidade do Estado da Guanabara, antes da fusão com o Rio de Janeiro. O livro do ex-alu-no Luiz Roberto Tenório: 50 anos de movimento estudantil na UERJ, e o próprio Título Provisório, em sua primeira edição, formam boa parte da estruturação deste livro, hoje. Contribuíram também os livros que situaram o autor no panorama educacional de então, principalmente os da lavra de Anísio Teixeira, considerado por Hermes Lima o Estadista da Educação.

Discípulo de John Dewey, pedagogo americano, que em seu país foi considerado muito radical, note-se que, nos Estados Uni-dos da América, Dewey jamais teve a expressão e importância que Anísio Teixeira teve para o Brasil, embora, na prática, por circuns-tâncias políticas, suas proposições pedagógicas não tenham sido cabalmente postas em prática.

Em termos materiais, foi constituído arquivo de todos os documentos passíveis de recuperação expedidos pelo Centro Acadêmico Sir Alexander Fleming, como foi feito com os do-cumentos emitidos pelo Conselho de Representantes dos alu-nos: órgão substitutivo do CASAF, após o fechamento deste pela repressão. Igual destino tiveram os jornais que noticiaram os acontecimentos da Ciências Médicas, principalmente a partir de 1968, em tempos sem disponibilidade na net de tais objetos de pesquisa.

A pesquisa foi facilitada por algumas orientações do histo-riador Hélio Silva, recebidas em uma única visita a sua casa, e pela leitura de livros de metodologia de pesquisa histórica. Dr. Hélio Silva me aconselhou a contar a história, e não minha história, con-selho seguido com lealdade e nessa segunda edição só “transgredi-do” quando foi essencial à trama histórica institucional da Facul-dade de Ciências Médicas da UERJ ou a alguma ação coadjuvante em que o autor sirva como testemunha do fato histórico ou ator protagonista ou deuterogonista da história.

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Título Provisório 25

As histórias de vida dão margem a algumas distorções. O “récit de vie”1 construído pelo depoente geralmente tem uma co-erência e uma organização que não fazem parte do processo his-tórico concreto das vidas humanas. Foi feito o possível para nas ações autorais não perder o rumo. Vale dizer, é histórico tanto o acontecimento que se relacione de algum modo com as estruturas existentes – positivo ou negativo –, seja na transformação (para pior ou melhor), seja na conservação (para melhor ou pior).

No que tange ao respeito dos aspectos éticos da pesquisa o autor se norteou pela leitura do livro Abuso da liberdade de imprensa e pseudocensura judicial: no sistema luso-brasileiro2. Embora essa 2ª edi-ção do Título Provisório tenha sido mais difícil e delicada, todo o relatado foi feito dentro da lei de liberdade de expressão, sendo o material escrito exposto aos entrevistados quando tocante a cada um deles.

Quando da 1ª edição, após ler o livro, o Professor Ítalo Su-assuna, ao observar a linguagem jornalística do texto, recomendou usar o termo referências para tratar das obras consultadas, assim, a lista de referências está ao final do texto todo, como na 1ª edição. Há um glossário de siglas, inclusive das que estão presentes nas referên-cias citadas na página do texto.

Os erros e omissões são de responsabilidade do autor.

1 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica: Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.2 RICARDO DE SOUZA, Sergio. Pseudocensura judicial: no sistema luso-brasilei-ro. Ed. Lumens Juris, 2013.

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26 Fabio Daflon

A fundação do Centro Acadêmico Sir Alexander Fleming

Grande já vai se tornando o nosso poderde construir a sociedade pela ciência e pela

técnica, por conseguinte de eliminardo seu seio a miséria, a pobreza, os aspectos

degradantes da inferioridade social.

Pedro Ernesto BaptistaDiscurso de posse como Prefeito do Rio de Janeiro

Consta no site oficial da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ o seguinte:

Em meio aos acontecimentos do início dos anos 30, um grupo de jovens profissionais toma uma iniciativa inusitada: fundar uma nova escola médica como Sociedade Anônima. A Faculdade de Ciências Médicas foi fundada em 15 de dezembro de 1935 e re-conhecida em 1940. Os seus fundadores eram médicos oriundos de vários lugares: membros da Academia Nacional de Medicina, atuantes no conselho científico e nas comissões editoriais res-ponsáveis pelos Anais e Boletins. A motivação destes profissio-nais está ligada às disputas por espaço e hegemonia no campo médico do Rio de Janeiro da época. Buscavam um espaço pró-prio onde pudessem exercer a cátedra, ocupadas todas na Facul-dade de Medicina do Rio de Janeiro por figuras mais tradicionais da elite brasileira. Traziam consigo as aspirações da classe média urbana em expansão à época, de fomentar a educação no país e criar corpos significativos de profissionais de nível superior.

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Dificilmente se poderia analisar a emergência do Estado Novo sem se considerar a atuação política e as reflexões teóricas do advogado e jurista Francisco Campos (1891-1968). Seu pensa-mento político esteve fortemente comprometido com a justifica-ção de práticas autoritárias, conferindo-lhe pretensa legitimidade. Além de ser praticamente o autor único da Constituição de 1937, esteve envolvido na redação dos Atos Institucionais números 1 e 2 – consolidando o golpe (contragolpe?) de 1964 –, além de tecer importantes sugestões para a Constituição de 1967. Frases célebres como “governar é prender” ou “o povo não precisa de governo, precisa de curatela” marcaram sua trajetória intelectual e sua vida pública, alocando seu pensamento nos quadros do cha-mado “pensamento autoritário”. Esse foi o primeiro Ministro da Educação de Getúlio Vargas, que, sucedido por Gustavo Capa-nema, teve grande importância em meio aos acontecimentos dos anos 30. Principalmente, junto com Capanema, na destruição da Universidade do Distrito Federal, de vida curta naquele período – 1935 a 1939; instituição criada por Anísio Teixeira com o apoio do Prefeito Pedro Ernesto. Universidade que se propunha a formar quadros capazes de agir positivamente sobre a realidade social. Quando fechada, a UDF teve seu quadro de professores e alguns cursos absorvidos pela Universidade do Brasil.

Em 12 de abril de 1938, foi fundada na Faculdade de Ciências Médicas uma associação de alunos, Centro Acadêmico Ciências Mé- dicas, que tem por fim difundir entre seus membros questões re-lacionadas à medicina e orientações à prática de esportes. A pri-meira diretoria eleita é a seguinte: presidente: Francisco Oswaldo D’Agostino; vice-presidente: Henrique Cecchi; 1º secretário: Ma-rio Branco; 2º: Cesar Ronocy; tesoureiro: Taylor Vieira Schnaider; bibliotecário: Thadyr Aor; orador: Raul Penido; diretor de espor-tes: Armando Pentagma Quedma. Há notícia de, em 1942, a Di-retoria ter sido: 1º presidente: Orlando Massa Fontes; secretária: Poncianita Vollmer Archero; tesoureiro: José Ribamar dos Santos. Constituído também por comissões de beneficência, científica e

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social, que cuidou de escrever um estatuto para regulação do seu funcionamento.

Concomitantemente ao nascimento da faculdade e aos seus primeiros passos, foi fundada a Universidade do Distrito Federal, da qual a Ciências Médicas passou a fazer parte em 1950. Antes de co-meçar a tecer alguns aspectos da história dos sobrenomes Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é necessário falar os nomes e sobrenomes de outra faculdade de medi-cina; escritos a seguir: Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro (1808); Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro (1813); Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1832); Faculda-de de Medicina e Farmácia do Rio de Janeiro (1891); Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1901); Faculdade de Medicina da Uni-versidade do Rio de Janeiro (1920); Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil (1937); Faculdade de Medicina da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro (1965), isto é, salvo no período em que alguns alunos se formaram na Faculdade de Ciências Médicas do Rio de Janeiro, na década de cinquenta do século XX, Rio de Janeiro aqui referido como Distrito Federal, a Ciências Médicas teve mais quatro sobrenomes; a saber: Faculdade de Ciências Médicas Sociedade Anônima de 1935 a 1950; Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Distrito Federal de 1950 até 1962, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado da Guanabara de 1962 a 1974, por ocasião histórica da fusão do antigo Estado da Guana-bara com o antigo Estado do Rio de Janeiro, quando passou a se chamar Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Rio de Janeiro, à época do início da construção do seu campus universitário, perto do Estádio Mario Filho, o Maracanã.

Em março de 1955, deu-se a morte de Sir Alexander Fle-ming (Lochfield, 6 de agosto de 1881-Londres, 11 de março de 1955), causa de uma grande comoção na sociedade carioca, uma vez que o descobridor da Penicilina tinha fortes laços de amizade com os médicos brasileiros e já havia nos visitado várias vezes. Em maio de 1955, o Diretório Acadêmico passa a denominar-se

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Centro Acadêmico Sir Alexander Fleming – CASAF em uma ho-menagem ao grande cientista, que, como se vê, a história eternizou.

Naturalmente, o envolvimento dos estudantes com a escola foi em um crescente. O CASAF teve grande participação em todos os períodos aqui historiados, esteve fechado no período de 1969 a 1977 por razões políticas, quando foi substituído pelo Conselho de Representantes dos Alunos, sem desconsiderar aspectos impor-tantes do desenvolvimento histórico da faculdade. É essa a história que agora se pretende contar. Respeitada a limitação da escrita a partir da visão de ex-aluno, desde 1981 sem vínculo formal com a faculdade, limite esse mitigado pelo convívio com os entrevistados e acesso irrestrito às fontes de pesquisa.

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O Rio de Janeiro, a UEG e a UERJ

(Walter Luiz Gouvêa Filhoe Fabio Daflon)

Quiero contar amigos,una historia muy simple

y hablar simple no es fácil.

Pablo Neruda

O Rio de Janeiro, como cidade, passou por modelos polí-ticos os mais variados, até vir a ser a capital da Unidade da Fede-ração resultante da fusão do extinto Estado da Guanabara com o do Rio de Janeiro. Em sua história de metrópole, quando o Presi-dente Washington Luís foi deposto, na condição de Distrito Fede-ral, com a instituição do Governo Provisório teve nomeado como Prefeito-Interventor o respeitado cirurgião Pedro Ernesto Rego Baptista (1884-1942), nascido em Recife. Médico de grande pres-tígio com trajetória política desde os primeiros anos da década de 1920, quando tomou parte dos movimentos de oposição aos go-vernos federais levados a cabo pela jovem oficialidade do Exército. A casa de saúde que fundara em 1918 na cidade do Rio de Janeiro foi refúgio e ponto de encontro dos “tenentes” até o triunfo de 1930, que conduziu Getúlio Vargas à chefia do país.

Enquanto a “revolução de 30” assumia suas feições discri-cionárias (na área da educação com Francisco Campos e Gustavo Capanema) e autoritárias, até tornar-se a ditadura do Estado Novo,

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o Dr. Pedro Ernesto, pelas obras realizadas em função das me-tas definidas como precípuas da sua administração – o binômio: saúde-educação –, angariou a simpatia do povo. Uma radical trans-formação marcou época no setor da saúde pública e da assistência médico-hospitalar, efetivada com a criação de hospitais e dispen-sários. A instalação deste aparato, principalmente nos pontos mais distantes da cidade, visava ao zoneamento do atendimento médi-co, uma assistência global ao indivíduo e à população, dentro de uma estrutura capaz de dar aos profissionais de saúde condições de trabalho de primeira plana para a medicina da época. Sua posse como prefeito foi considerada uma apoteose.

Hoje, esses hospitais e dispensários, acrescidos de alguns outros subsidiários da mesma ideia, fazem parte da problemática rede hospitalar de serviços de pronto-socorro da Superintendên-cia de Serviços Médicos do RJ (SUSEME-RJ), esboçada, naquele tempo, com intuito de servir de estímulo ao aprimoramento pro-fissional e de levar um tipo de assistência médica e uma mensagem humana à população desvalida.

O plano de construção de um Hospital Geral surgiu como consequência do zoneamento. O Hospital Geral Pedro Ernesto foi pensado para cumprir um ideal nobre, para receber a popu-lação empobrecida e com necessidades de atendimento médico especializado, além de servir de laboratório de ideias científicas sem quaisquer premissas relacionadas à eugenia. Construído em Vila Isabel, ponto considerado central, arquitetonicamente plane-jado para o funcionamento das diversas clínicas, não chegou a ter concluído o prédio que serviria para o funcionamento dos labora-tórios, lavanderia e capela, pois a obra foi interrompida por falta de dinheiro. A verba arrecadada dos cassinos pela municipalidade, destinada à construção do hospital, fora desviada para outros fins.

Marco político fundador do pensamento educacional do Brasil foi o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), assinado pelo grupo-geração de Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Hermes Lima, Paschoal Leme, Cecília Meireles, Afrânio

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Peixoto, Almeida Junior, Delgado de Carvalho, Roquete Pinto, dentre outros, propondo uma reforma educacional de profundi-dade, pela Escola Pública de qualidade, laica, obrigatória e gratuita.

Em abril de 1935, pelo Decreto municipal n. 5.513, foi criada a Universidade do Distrito Federal (UDF), composta de cinco es-colas: Ciências, Educação, Economia e Direito, Filosofia e Instituto de Artes. O principal objetivo da nova universidade era encorajar a pesquisa científica, literária e artística e “propagar as aquisições da ciência e das artes, pelo ensino regular de suas escolas e pelos cur-sos de extensão populares”. Na verdade, a UDF pretendia não ape-nas produzir profissionais, mas formar “os quadros intelectuais do país”. Essa foi a chamada “utopia renovadora” de Pedro Ernesto, homem público que deixou marcas profundas na estrutura de saúde do Rio de Janeiro, mas que não viu consolidar-se a UDF.

Paralelamente aos movimentos populares antifascistas cres-centes na Europa e com repercussões no Brasil, realizou-se o con-gresso de fundação da Juventude Proletária, Estudantil e Popular (JPEP), sob a coordenação de Ivan Pedro Martins, Carlos Lacerda, Jorge Amado e Edmundo Moniz.

Carlos Lacerda era um homem muito visado porque foi ele quem leu o Manifesto de Luís Carlos Prestes, aderindo à Aliança Nacional Libertadora. Nunca chegou a concluir seu cur-so universitário. Enquanto isso, para o corpo docente da UDF foi articulada a vinda de uma missão francesa composta de professores de diferentes áreas como Eugene Albertini, Henry Hauser, Jacques Perrot, entre outros. Embora despontasse como um centro de ensino inovador no Brasil dos anos 30, a UDF logo iria enfrentar dificuldades políticas provocadas pela revolta comunista de novembro de 1935, chamada também de Intentona Comunista de 35 por seus adversários e pelas For-ças Armadas. Logo em dezembro Pedro Ernesto foi obrigado a demitir seu secretário de Educação Anísio Teixeira, o Reitor da UDF Afrânio Peixoto e vários professores, abrindo-se assim

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uma grave crise no interior da universidade recém-criada. Pou-cos meses depois o próprio prefeito seria preso.

A Intentona Comunista de 1935, com armas e sem povo, foi um movimento equivocado que só serviu para alimentar a paranoia anticomunista por mais de 50 anos, talvez até hoje, quando há o pre-domínio do socialismo democrático. O fato é que havia em vários países do mundo frentes antifascistas, e aqui no Brasil não foi dife-rente; os comunistas assumiram uma posição de vanguarda, tendo, ao sofrer a repressão, levado toda sociedade a ser reprimida também. A história veio mostrar as faces nefandas do fascismo de esquerda.

Após a saída de Anísio Teixeira, Afonso Pena Jr., intelectual renomado, assumiu a reitoria da UDF e procurou enfrentar os de-safios, garantindo a permanência de professores e atraindo novos especialistas. Em 1936 a UDF tinha cerca de quatrocentos alunos e em 1937 formava sua primeira turma. Parecia que o projeto de Anísio Teixeira apesar de tudo se consolidaria, mas a impressão logo se mostrou ilusória, pois a UDF contrariava o projeto acalen-tado no Ministério da Educação primeiro com Francisco Campos e depois por Gustavo Capanema (os dois Ministros da Educação do Presidente Getúlio Vargas), de fortalecimento da Universida-de do Brasil como meio de contraposição às ideias pedagógicas que se tentou aplicar por intermédio de Anísio Teixeira, discípulo do pedagogo norte-americano John Dewey, autor de obras como School and Socyety, Democracy and Education, entre outras.

A instauração do Estado Novo em novembro de 1937 criou condições para a eliminação da UDF e a incorporação de seus quadros à Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, criada em 1939. A nova escola deveria ser dirigida por Al-ceu de Amoroso Lima e se submeter ao estreito controle doutri-nário da Igreja Católica, mas sua direção acabou sendo entregue a Francisco Clementino de San Tiago Dantas. A UDF foi extinta, e seus cursos transferidos para a UB, em 1939, por meio do Decreto n. 1.063, de 20 de janeiro. Naquele tempo, não houve necessidade de agir em força contra as manifestações estudantis. O esforço da

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repressão foi exercido contra os professores; os melhores foram afastados, alguns, presos. Leônidas Resende e Edgar do Castro Ra-belo foram destituídos de suas funções.

Apesar de a documentação histórica da UDF ter sido guardada pela Universidade do Brasil, para onde escoou parte do corpo docente da UDF, após seu fechamento na década de trinta do século XX, a atenção de Anísio Teixeira à universidade e sua participação na redação do Estatuto da Universidade, bem mais tarde nos anos sessenta, nos permite dizer que ao menos a memória afetiva em relação à UDF é patrimônio da UERJ. E o próprio nome UDF, apesar de essa segunda UDF ser completamente diferente da primeira, guarda esse vínculo.

Famoso cirurgião e membro do corpo clínico do Hospital Ge-ral Pedro Ernesto, antes de sua incorporação à antiga UEG, o Dr. Júlio Arantes Sanderson de Queiroz, hoje a emprestar seu nome ao Auditório do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, emi-tiu importante opinião sobre a influência da conjuntura autoritária do país dentro dos hospitais: “O panorama político criado pelos aconte-cimentos de 30, embora tenha desencadeado progresso material para a assistência médica, propiciando a criação de hospitais, acarretou um dos males que lhe foram intrínsecos: o autoritarismo sem a par-ticipação do médico na obra que se destinava a ser o terreno do seu trabalho. Aí reside a etiologia do desajuste. Os dirigentes aparecem inesperadamente entre a perplexidade dos que vão ser dirigidos”.

Mas, para entender as imbricações de origem da UDF e da UERJ, é preciso saber que esta última nasceu, historicamente, de entidades diversas reunidas pelo destino; entre estas, com o nome de batismo a Sociedade Anônima Faculdade de Ciências Médicas, fundada, em 1936, por um grupo de médicos liderados pelo Dr. Rolando Monteiro. Então, para reconhecimento era indispensável o passe livre do governo. A atuação de um dos acionistas/pro-fessores, parente do General Almério de Moura (Comandante da 1ª Região), para exercer sua influência, possibilitou a liberação do alvará, reunindo-se a congregação da Faculdade de Ciências Médi-cas Sociedade Anônima pela primeira vez em 1938.

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Fato importante ex-mura, quase simultâneo ao da criação da escola, foi o de que, em 1937, após o I Conselho Nacional dos Estudantes, o Ministro da Educação, Gustavo Capanema, instalou a UNE na Casa do Estudante do Brasil, no Rio de Janeiro, no Lar-go da Carioca, a qual, claro, alguns estudantes da Ciências Médicas passaram a frequentar.

Nos seus primeiros anos de vida, a administração e algumas cadeiras da Faculdade funcionaram nas dependências da Funda-ção Gaffrée-Guinle. Logo, porém, a disputa entre a Fundação e a Faculdade, pelo direito de exercer ação disciplinar sobre o corpo discente, motivou a construção da sede própria na Rua Cadete Ulysses Veiga. Posteriormente, em abril de 39, a sociedade tomou conhecimento de que o então Conselho Nacional de Ensino con-siderava pequeno o seu patrimônio, por isso em terreno sito na rua Fonseca Teles, também em São Cristóvão, ergueu um edifício de dezoito andares, cujo acesso se dá por uma ladeira fatigante, de todo imprópria para os doentes que, um dia, esperava-se, procura-riam o hospital que nele se pretendia instalar.

O espírito comercial de alguns possuidores de vultoso núme-ro de ações, desde a fundação da Faculdade de Ciências Médicas, co-loquialmente chamada Ciências Médicas, fez com que a maioria dos professores – maioria como professores, mas minoria como acionis-tas – progressivamente percebesse que o que no início parecia “puro idealismo” enveredava para a competição no domínio econômico. Além disso, com os novos professores que ingressavam através das provas de concurso, e que não possuíam ações da S.A., formavam--se dois grupos: o dos empregados e o dos empregadores. A voz da congregação era sufocada pela maioria do capital.

Em ares de relativa liberdade, os políticos colocaram em pauta a discussão da Universidade do Distrito Federal e, ao elabo-rar a Lei Orgânica do DF, o parlamentar e professor Jonas Correa nela procurou incluir um dispositivo visando à criação de uma uni-versidade – a UDF –, por meio da encampação de faculdades já em funcionamento. Na Sociedade Anônima Faculdade de Ciências

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Médicas, à insatisfação dos professores somou-se a agitação es-tudantil. A encampação da Ciências Médicas, na reinstituição da UDF, pelo poder público, constituiria uma congregação mais de-mocrática. A manutenção da universidade pela cidade-estado do Rio de Janeiro estabeleceria a amortização progressiva das men-salidades caríssimas a que se submetiam os alunos. Além disso, a oportunidade de utilização do aparelhamento oficial do Município, no caso da Ciências Médicas os hospitais, promoveria o barateio do custo do ensino.

A disposição recíproca desses fatores fez com que, após inú-meros projetos e substitutivos de lei, em outubro de 1950, fosse promulgada a Lei que reinstituía a UDF, extinta em 1939, rompendo um hiato de cerca de 10 anos até o ressurgimento com feições e finalidades completamente diferentes. Surgia assim outra UDF, que mudou de nome duas vezes, por motivo da transferência da capital federal para Brasília e da fusão do antigo estado da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro, chamando-se, sucessivamente, UEG e, nos dias de hoje, UERJ. A essa reparação não assistiu o Dr. Pedro Ernesto, que falecera em 1942, mesmo ano em que, durante a Se-gunda Grande Guerra, em ação contra os países do eixo, os estudan-tes fizeram a ocupação do Clube Germânia, na Praia do Flamengo, Rio de Janeiro, que veio a se tornar a sede da UNE.

Simultaneamente àquelas dissensões internas na Faculdade de Ciências Médicas Sociedade Anônima, nas quais a voz da con-gregação era sufocada pela maioria do capital, com o processo do fim do Estado Novo, voltaram à atividade os ex-professores da UDF (por exemplo: Hermes Lima, então deputado pelo Partido Socialista Brasileiro), e Anísio Teixeira abraçou novamente a causa da educação.

Paulo Egydio Martins foi Presidente da UME do RJ, e foi com seu apoio e o da UNE, sob o comando de José Frejat, em fins da década de 40 – 1949 – ou início da de 50 – 1953 – do século XX, que houve a greve na Faculdade de Ciências Médicas Socie-dade Anônima, então sob a direção do Dr. Rolando Monteiro;

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vejamos o relato sobre a atuação do líder estudantil em entrevista registrada no CPDOC sobre a greve da Ciências Médicas.

A UME comandou alguma greve na sua época?Sim. Havia uma famosa faculdade particular de Ciências Médicas, num

subúrbio do Rio, e eu me lembro de que, ainda comigo na presidência da UME, nós fizemos uma greve contra o dono – se não me falha a memória, chamava-se Rolando Monteiro. Acabou virando uma greve nacional. O pessoal veio me procurar dizendo que tinha havido, nessa faculdade, um aumento de mensalidade escorchante, que eles não estavam conseguindo pagar, e que o tal Rolando Monteiro não dava matrícula sem o pagamento. Muitos estavam no meio do curso, ameaçados de ficar com a carrei-ra interrompida. Olhei, verifiquei, medi, remedi e resolvi fazer uma greve local. Foi feita então uma greve na área do Distrito Federal. Mas aí verificamos que aquilo não estava tendo suficiente repercussão. Atuando na UNE através do José Frejat, estendemos a greve para o Brasil inteiro.

Em que consistia a greve? Os estudantes não iam assistir às aulas? Faziam manifestações?

Não íamos à aula, fazíamos passeatas, colocávamos faixas nas principais avenidas, principalmente na Praia do Flamengo. Esse era o protesto no Rio. Aos outros estados chegamos através da UNE, que, ao tomar conhecimento da razão do movimento no Distrito Federal, se solidarizou com a UME. A partir daí, as uniões estaduais, as UEE, decretaram greves por todo o país em solidariedade à “greve da Ciências Médicas”. Foi como ela ficou conhecida. Foi, na época, uma das maiores greves estudantis do Brasil. Naquela ocasião, o ministro da Educação já não era mais Clemente Mariani, era Simões Filho, dono do jornal A Tarde, em Salvador, um senhor baixinho que tinha um cavanhaque pontudo e andava sempre com uma bengala. Primeiro ele me chamou ao ministério, dando ordens para suspender a greve. Eu disse a ele que aquilo era a decisão de uma assembleia, e que não cabia a mim suspender. Expliquei que a greve não era da esfera federal, era contra o diretor de uma escola particular local. Repercutiu porque houve a solidariedade, primeiro, do Distrito Federal, e depois, de outros estados. Simões Filho virou-se para mim e disse:

“Menino, fique sabendo que, lá na minha terra, pessoas que não atendem ao que eu peço, que são malcriadas como você está sendo, eu trato a bengaladas”, e levantou um pouco a bengala.

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Respondi:“O senhor me permita, respeito a sua idade, mas se essa bengala resvalar

em mim, garanto que ela será quebrada. Depois, o que vai acontecer eu não sei”.Algo nesse gênero. Ele ficou profundamente irritado comigo, e houve um

rompimento, ao contrário do Clemente Mariani, que sempre nos tratou muito bem, com respeito, e, através do seu chefe de gabinete, Prisco Paraíso, sempre nos atendeu em praticamente tudo o que pedimos. E o fato é que a greve continuou. Acho que durou mais de um mês.

Um belo dia, recebo um telefonema dizendo que o Presidente Getúlio Var-gas pedia que eu comparecesse ao Catete. Estranhei aquilo, mas fui. Getúlio estava me esperando e me recebeu na sala dele, extremamente atencioso. Estava com um daqueles charutões grandes na boca, deu uma senhora baforada e perguntou:

“O senhor é que está liderando essa greve?”.Respondi que sim, e ele continuou:“Estou querendo um entendimento com o senhor. Diga ao ministro o que

pretende e, seja o que for, garanto que será atendido, desde que, ao ser atendido, suspenda a greve”.

Eu disse:“Presidente, se formos atendidos, a greve será suspensa. A assembleia

aprovará a suspensão quando vir que os senhores tomaram providências”.Ele: “Então, o senhor se dirija ao meu Ministro da Educação”.Eu disse: “Ah, não, esse não! Esse não dá...”.Ele deu uma sonora gargalhada!“Então, o senhor escolha qual é o ministro com quem quer despachar,

porque eu darei ordens a ele para o senhor ser atendido”.Escolhi o ministro das Relações Exteriores, João Neves da Fontoura. Fui

a ele, expus o problema, e ele disse:“Fique tranquilo. O presidente mandou atender, será atendido”.Não sei qual foi o entendimento do governo com o dono da escola, mas

sei que, para os alunos, as mensalidades ficaram como eram antes do aumento extorsivo, e a greve terminou.

Ernesto Simões da Silva Freitas Filho – Simões Filho – foi Ministro da Educação e fundador do jornal baiano A Tarde. Foi com esse ministro que Paulo Egydio não quis negociar o fim da

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greve. A atuação à frente da pasta foi bastante condicionada pela tramitação, no Congresso, do projeto de lei sobre Diretrizes e Ba-ses da Educação Nacional, que desde 1946 vinha ocupando gran-de espaço nas discussões sobre o assunto no país (e continuaria a ocupar até 1961, quando seria finalmente aprovada). Foi também na gestão de Paulo Egydio Martins que se construiu o Restauran-te Calabouço, onde foi assassinado o secundarista Edson Luís de Lima Souto em 1968.

Pitoresco era como, ainda segundo Paulo Egydio Martins, se chamavam os soviéticos: os URSSOS, palavra sobre a qual se discutia se era com “c” com cedilha ou não. Entre 1950 e 1956, a UNE ficou sob o comando da UDN, por articulações do estudan-te de engenharia Paulo Egydio Martins, Presidente da União Me-tropolitana de Estudantes do RJ por dois mandatos. O Presidente José Frejat foi sucedido por Olavo Jardins Campos, do movimento União Universitária, que teve como adversários da esquerda derro-tada Branca Fialho, Jacob Gorender e Salomão Malina.

Após o governo de Eurico Gaspar Dutra, Getúlio Vargas retornou pelo voto direto ao poder em 1950. Em 25 de julho de 1953, o então Ministério da Educação e Saúde foi dissolvido em duas pastas. Nascia o Ministério da Saúde. Em agosto do mesmo ano, os alunos da Faculdade de Ciências Médicas declararam-se em greve, em virtude de a drástica redução da subvenção municipal ter levado a reitoria a restringir a verba destinada aos encargos fi-nanceiros dos alunos, primitivamente calculada de forma que lhes possibilitasse a gratuidade. Rebelaram-se os alunos, declarando-se em greve permanente, porque a Diretoria da Faculdade de Ciên-cias Médicas lhes negou acesso às provas parciais, em virtude de se acharem em débito com as suas contribuições pecuniárias. Os acontecimentos tiveram repercussão ex-mura. O Reitor da UDF, Professor Rolando Monteiro, utilizara a maior parte da verba na realização de obras, em prejuízo dos alunos.

Seguiu-se a nomeação de uma comissão de vereadores, para entender-se com o Diretório Central de estudantes da UDF. Esses

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mesmos vereadores subscreveram o requerimento n. 5.746, “soli-citando ao Prefeito no sentido de intervir na reitoria da Universi-dade do Distrito Federal devido aos motivos que apresentam”, os quais, especificaram, visavam “pôr termo às divergências surgidas entre os estudantes e o Conselho Universitário de um lado, e do lado oposto a reitoria mencionada, que teima em não atender às justas reivindicações dos universitários, visando estes ao baratea-mento das mensalidades, aliás, de acordo com a intenção dos Srs. Vereadores, quando aprovaram a subvenção à UDF”.

Os fatos e agitações foram num crescendo verdadeiramen-te inesperado para o ambiente universitário. Daí veio resultar, a partir de uma modificação na forma de escolha do Reitor, votada pela Câmara do Distrito Federal e sancionada pelo Prefeito em 13 de outubro de 1953, a destituição do Prof. Rolando Monteiro do cargo e a implantação do ensino gratuito na Faculdade de Ciências Médicas a partir do momento de seu ingresso na UDF. A Ciências Médicas se tornou pública, portanto, na época em que se projetava o polêmico Hospital Universitário da Ilha do Fundão para a então Universidade do Brasil (UB); o grande problema em pauta era não dispor a Faculdade de um Hospital de Clínicas. E, amadurecida a dimensão da necessidade, o Hospital Geral Pedro Ernesto passou a entrar nas cogitações da Faculdade.

Não podemos deixar de registrar o suicídio do Presidente Getúlio Vargas, em agosto de 1954, ao fim de grave crise política, imolação que contribuiu para postergar a ascensão dos militares ao poder por 10 anos.

O Marechal Henrique Lott, anticomunista ferrenho e democra-ta mais ferrenho ainda, fora alçado à chefia do Ministério da Guerra (como então era chamado o Comando do Exército). Lott não aceitou o movimento golpista que tentou impedir a posse de Juscelino Ku-bistchek. Em 11 de novembro o general desencadeou o movimento militar, de retorno ao quadro constitucional vigente. Houve então a declaração do impedimento do Presidente em exercício, Carlos Luz (Café Filho havia sofrido enfarte e fora afastado da presidência), a

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entrega de seu cargo ao Presidente do senado, Nereu Ramos, e a ga-rantia da posse dos eleitos, em obediência à Constituição de 1946.

Em 1959 houve uma greve universitária de âmbito nacional, motivada pela Faculdade de Ciências Médicas da então Univer-sidade do Rio de Janeiro. A UNE decretou a greve no período das primeiras provas parciais, apelando para a solidariedade dos estudantes aos colegas de medicina, vítimas das arbitrariedades do Diretor. Sansão Gorensein, pediatra, escreve um livro unicamente sobre a greve da Faculdade de Ciências Médicas da UEG ocorrida no fim da década de 50, quando o Diretor da Ciências Médicas era o Professor Álvaro Cumplido de Sant’Anna, greve também conhecida por poucas pessoas como “As Cumplidas”, por ter sido relatada, após seu desfecho, de forma sucinta em versos decassíla-bos (hoje um documento histórico) por um estudante sob a alcu-nha de Luiz de Caminha; de fato, o movimento teve algo de épico, claro, bem distante de uma Ilíada ou Odisseia, porém com graves consequências para os alunos:

9 Todos os alunos da faculdade foram suspensos e as pe-nas variaram de 1 a 12 meses.

9 6 alunos foram suspensos por 12 meses. 9 3 alunos foram suspensos por 10 meses. 9 6 alunos foram suspensos por 6 meses.

Durante o movimento, cujo leitmotiv era impedir o ingresso da esposa de um militar, transferida para o Rio de Janeiro com mérito de ter sido aprovada em vestibular na Universidade Federal do Paraná. Na azáfama daqueles dias foi feito enterro simbólico de Cumplido de Sant’Anna, com féretro, coroas de flores e tudo. O centro acadêmico teve todos os seus membros suspensos e não foi fechado porque os próprios alunos fizeram um mandato tampão.

Na época o Presidente do CASAF era Marcos de Andrade Pádua. Mas era-lhe impossível fazer um vis-à-vis com as autorida-des universitárias constituídas em Comissão de Inquérito. A reação

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violenta materializou-se com o lançamento no histórico de cada alu-no da punição recebida. Juscelino Kubitschek, Presidente da Repú-blica, antes de as punições serem aplicadas, fez uma solicitação para que fosse concedida anistia geral para o corpo discente. Mas os pro-fessores mantiveram a punição; punição exemplar?!... Punição inca-paz de servir de forma alguma para as futuras gerações do alunato.

A Guanabara, cujo coração era o Rio de Janeiro, foi o único caso no Brasil de uma cidade-estado. Em plebiscito realizado em 21 de abril de 1953, a população decidiu pela existência de apenas um município na unidade federada. O Governador era nomeado pelo Presidente da República, à época Juscelino. José Joaquim de Sá Freire Alvim exerceu o cargo de 1956 a 1961, quando o passou para o primeiro Governador eleito, Carlos Frederico Werneck de Lacerda. Não há notícias de que José Joaquim de Sá Freire Alvim tenha feito injunções junto aos professores da Ciências Médicas para mitigar as penas aplicadas aos alunos da escola. Se JK não tinha conseguido nada, de que adiantaria tentar?

Sansão Gorensein foi um dos alunos suspensos por um ano, sem haver cometido nenhum ato de indisciplina. O que o fez vir a se formar médico na turma FCM-1963. O sucessor na Direção de Álvaro Cumplido de Sant’Anna na Ciências Médicas foi o Pro-fessor Raul Jobim Bittencourt. Sobre a diferença de personalidade deste último, Sansão Gorensein fez o seguinte relato:

Enquanto o diretor de 1959 era o protagonista maior de uma épo-ca de discórdia entre docentes e discentes, o professor Raul Bitten-court, catedrático de psiquiatria, depois também diretor, mostrava que o respeito e o relacionamento com alunos não era consequen-te às imposições e arbítrios. Relata que em um sábado em que a comissão de formatura de sua turma havia organizado um baile no Copacabana Palace, estava prevista uma aula prática no Hospital Psiquiátrico Pedro II, hoje Instituto Municipal Nise da Silveira, em Engenho de Dentro, subúrbio Carioca. A aula se iniciara às 14 ho-ras. Cerca das 16 horas o Professor Bittencourt interrompeu o que falava para alertar aos alunos sobre a hora, pois sabia do evento, enfatizando sua compreensão se algum aluno se retirasse. Pasmem

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todos, nenhum aluno saiu e assistiram à aula até que o professor a desse como encerrada às 18 horas. Gorensein relata ainda que, tendo feito seu serviço militar no CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva), lhe foi exigida uma declaração de Facul-dade relativa ao seu histórico escolar a fim de que atingisse o grau de Oficialato. O professor Bittencourt deu a declaração fazendo o esclarecimento de que aquela suspensão era consequente a um movimento coletivo, que envolveu todos os alunos da faculdade. Esse foi o professor respeitado por todos nós.

Uebe Rezeck foi eleito para a Presidência do CASAF para a gestão de 1960 em tempos de relativa tranquilidade ao fim do go-verno desenvolvimentista de JK e com a UNE em ascensão quanto a sua presença e importância no cenário político do Brasil. Porém, na faculdade, no início dos anos 60, aos alunos o castigo penoso de correr pela cidade durante o dia inteiro, cruzando-a em todos os sen-tidos, da Gávea até o Engenho de Dentro, da Esplanada do Castelo a São Cristóvão, para as aulas de clínica, ministradas em enfermarias da Santa Casa da Misericórdia, da Fundação Graffrée-Guinle, da Poli-clínica Geral do Rio de Janeiro, do Hospital Miguel Couto, da Polícia Militar, São Sebastião. Moncorvo Filho, no Hospital do Bonsucesso, onde o Dr. Américo Piquet Carneiro chefiava a clínica médica e mais alguns outros hospitais, tornava a ideia da incorporação do Hospital Pedro Ernesto extremamente sedutora.

Os docentes se dividiam, pois, caso o hospital fosse inte-grado ao patrimônio da Universidade, os catedráticos de mais de uma escola não poderiam assinar o ponto no local onde serviam a mais de uma faculdade; por outro lado, abrir mão de uma cátedra significava ter que passar a dividir a hegemonia do prestígio pro-fessoral no Estado em detrimento do status quo. Já havia, porém, professores sem seus próprios serviços. Estes olhavam com sim-patia a possibilidade de estruturação de feudo próprio em espaço a conquistar. Os mais idosos duvidavam do próprio fôlego para começar uma estruturação nova.

Ao staff clínico do Hospital Geral Pedro Ernesto, a hipó-tese desagradava profundamente. Esses homens, profissionais

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experientes, praticantes da medicina, teriam provavelmente meno-res conhecimentos enciclopédicos; entretanto, julgavam-se mais habilitados para a prática médica em comparação com os profes-sores de carreira. Acreditavam, por isso, no mal do academicismo e em uma queda do padrão de atendimento do hospital. As grandes vedetes da faculdade teriam mais um serviço para não comparecer e pressentiam, para após a invasão do hospital pelos catedráticos e demais docentes, uma competição inusitada.

De volta à cessão do Hospital Geral Pedro Ernesto para a UEG, cabe ressaltar que, entre os idealizadores do primeiro estatuto de funcionamento do Estatuto da UEG e do, desde então, Hospital Universitário Pedro Ernesto da UEG, depois UERJ, foram convidados pelos estudantes alguns opositores de Lacerda; como Zeferino Vaz (um dos criadores da Universidade de Campinas), Florestan Fernandes, Anísio Teixeira, Américo Piquet Carneiro, Marcelo Garcia (Secretário estadual de Saúde), Leoberto Ferreira Leal (epidemiologista da Secretaria Estadual de Saúde), Moysés Szklo, também aluno e membro do CASAF, e Marcos Fernando de Oliveira Moraes (Presidente do CASAF à época, hoje membro da Academia Nacional de Medicina). Des-sas reuniões surgiu um anteprojeto ao estatuto defendido na Câmara pelo então deputado Paulo Alberto Monteiro de Barros, mais tarde conhecido por seu pseudônimo de jornalista: Arthur da Távola.

Moysés Szklo se refere ao Professor Américo Piquet Car-neiro como o homem visionário, dentre todos da luta para incor-poração do hospital à antiga UEG, aquele lente foi fundamental. O estatuto pugnava por:

9 autonomia; 9 cota do orçamento do Estado para a FCM-UEG e o

HUPE-UEG; 9 sistema de participação dos professores e alunos na

universidade.

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Conforme o Dr. Marcos Fernando de Oliveira Moraes, Pre-sidente do CASAF à época, ao ler a mensagem substitutiva que definia as funções estatutárias da UEG e do HUPE, Carlos Lacer-da disse:

Se eu fosse outra pessoa; um relatório que participou na elabo-ração dele meus principais inimigos da Lei de Diretrizes e Bases, certamente eu não assinaria, mas como é para o bem do meu Estado, eu vou mandar essa mensagem substitutiva.

Na ocasião eram do staff do Hospital Pedro Ernesto médi-cos do naipe do Dr. Júlio Arantes Sanderson de Queiroz, cirur-gião e membro da Academia Nacional de Medicina, de grande cultura e humanismo político, que é a mais importante bondade, Orlando Vaz, ginecologista-obstetra, Jorge Farias, ortopedista, Hildebrando Marins, hematologista, Antônio Luís Medina, ci-rurgião-vascular, e George Sumner Filho, também professor de anatomia da Ciências Médicas, que junto com o Dr. Júlio Aran-tes Sanderson de Queiroz, mais preocupado em ser médico do que em competir com colegas, mediou boas-vindas ao primeiro professor da UEG a entrar como membro da universidade no já então Hospital Universitário Pedro Ernesto; falamos do Profes-sor Manoel Claudio da Mota Maia, também membro da Acade-mia Nacional de Medicina, aos quais se seguiram personagens da maior importância, em primeira plana, claro, o Professor Amé-rico Piquet Carneiro, a quem a antiga Ciências Médicas da UEG deve quase tudo, e também Gentil Luiz João Feijó, Mariano de Andrade, Edgard Magalhães Gomes, Jayme Landmann; mais tar-de um pouco, Aloysio Amâncio, Ângelo Falace de Oliveira, na incorporação de novas especialidades propiciadoras de debates científicos capazes de amainar hostilidades e gerar simpatias en-tre os colegas antes ressabiados uns com os outros.

O que havia, antigamente, era o seguinte: os hospitais uni-versitários não eram hospitais no modelo que há hoje. Naquela época o hospital era um conglomerado de pequenas clínicas

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autônomas que cada professor tinha. Cada professor tinha o seu laboratório, tinha o seu aparelho de raios-X, quer dizer, não era um hospital unificado. No Pedro Ernesto se conseguiu a unificação do hospital. Isto é, o professor era apenas uma das partes do hospital, fazia parte, mas não era nenhum dono do serviço. Em grande parte dos hospitais públicos brasileiros, foi a unificação do hospital junto com o convênio Instituto Nacio-nal de Previdência Social, INPS, que ajudou os muitos doentes crônicos, que se internavam ali e eram custeados pelo governo estadual. Foi um avanço muito grande, porque passou a haver doentes de todos os tipos, doentes que correspondiam às pa-tologias existentes no Brasil e os alunos começaram a viven-ciar mesmo uma realidade nosológica fundamental à formação médica. Aqui nos adiantamos algo no tempo, pois o convênio com o INPS só foi realizado, de fato, na década de setenta do século passado.

Em decreto publicado no Diário Oficial de 27.11.1962, assi-nado por Carlos Lacerda (Governador da GB) e Marcelo Garcia (Secretário de Saúde e Assistência), foi colocado à disposição da UEG o Hospital Geral Pedro Ernesto, para nele a Faculdade de Ciências Médicas instalar o seu Hospital de Clínicas. Assim, quan-do o hospital foi incorporado à Universidade, o prédio, que em primeiro lugar serviria para o funcionamento dos laboratórios, la-vanderia e capela, foi aproveitado, após os devidos estudos, com o término de sua construção, para a instalação do prédio de cadeiras básicas, atualmente Edifício Professor Américo Piquet Carneiro. Essa obra deveu-se à tenacidade, ao carinho e ao trabalho do emé-rito Prof. Paulo de Carvalho, farmacologista, encarregado do pla-nejamento da construção do prédio. A inauguração, em 1965, se deu com a presença do Governador Carlos Lacerda, em expiração de mandato. Passou a ser a Ciências Médicas a primeira faculdade de medicina do Estado a funcionar totalmente em uma única área na antiga Guanabara. Do ponto de vista legal e administrativo, foram os ex-alunos Marcos Fernando de Oliveira Moraes e Moisés

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Szklo que se apresentaram aos cinquenta e cinco deputados da cidade-estado, a fim de convencê-los, junto com o Professor Amé-rico Piquet Carneiro, amigo do Governador Carlos Lacerda, a assi-nar os documentos para transferência do Hospital Pedro Ernesto para a UEG.

Isso valorizou a FCM-UEG como escola médica e possi-bilitou o fortalecimento de seu movimento estudantil. Os alunos passaram a se esbarrar com maior frequência e a discutir os seus problemas e anseios. Paralelamente à evolução da escola, a partir da elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, surgiu um projeto da Universidade ideal em todos os pontos de vista, desde uma participação efetiva de todo o alunado até a influência defini-tiva da universidade na sociedade, opondo-se à estrutura acadêmi-ca da universidade tradicional, compartimentada em faculdades e, dentro delas, em cátedras autárquicas.

A criação da UnB por Darcy Ribeiro e sua equipe, de 1959 a 1961, generalizou a crítica ao sistema de cátedras e amadureceu a agitação estudantil em prol da reforma estrutural da universida-de. Parecia curto o trajeto – da superação do subdesenvolvimento à “pré-revolução brasileira” – a ser percorrido nos anos seguin-tes. Em 1960, vitoriosa a Revolução Cubana, Fidel Castro vem ao Rio de Janeiro, visitando Juscelino, Jânio e o próprio Lacerda, para com seu inegável carisma despertar o entusiasmo na União Nacional de Estudantes.

No ano de 1962 foi realizada em todo o Brasil a greve em favor da participação dos estudantes nos órgãos colegiados na proporção de 1/3 do conjunto dos membros. Naquele momento, tratava-se da luta pela reforma universitária como luta pela demo-cratização da universidade. Isso em dois níveis: um era o poder da universidade, até então exercido pelos conselhos universitários e congregações; unicamente constituídos por catedráticos, donos de cada cadeira ou disciplina. Nesse terreno, os estudantes pro-punham abolir a cátedra vitalícia e estabelecer alguns esquemas de aferição periódica da capacidade dos professores; e, ao mesmo

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tempo, a mudança na composição dos conselhos universitários, congregações, conselhos departamentais, etc.

Tratava-se de regulamentar um item da Lei de Diretrizes e Bases, assegurador da representação dos estudantes nos órgãos de direção da universidade. A greve era uma greve complicada, por-que a questão tinha que ser regulamentada no estatuto de cada uni-versidade. As faculdades isoladas e outras pertencentes às univer-sidades, com estatutos próprios, teriam de decidir se incluíam no estatuto quantos representantes dos alunos, e tudo o mais atinente à representação estudantil. Na Ciências Médicas, apesar de a greve ter sido considerada um fracasso pelas lideranças de então, somen-te após a greve do terço é que o Conselho Técnico Administrativo (CTA) passou a ter a presença regular do Presidente do Centro Acadêmico, Sir Alexander Fleming (CASAF), em suas sessões, não apenas a convite, como ocorria antes, embora de forma rotineira.

Luiz Roberto Tenório, em favor da permanência de Jango na Presidência, na crise pós-renúncia de Jânio Quadros, pela pri-meira vez levou cacetada da polícia.

Em 1963, com a perspectiva da utilização do hospital, foi dobrado o número de vagas para a Faculdade. Como era a turma do 2º ano quem sustentava o trote, os calouros, mais numerosos, comandados, entre outros, por Luiz Roberto Tenório, Gilberto Hauagen Soares e Gutemberg Damasceno, com o apoio da oposi-ção à Chapa Ordem e Progresso (COP), eleita sobre os louros do “fracasso” da greve do terço, revoltaram-se contra o trote, impon-do resistência. Também para a geração dos anos 60 a importância do Diretório passou a ser tal que, sem ele, a faculdade não poderia funcionar; e se funcionasse sem ele, deixaria de ser uma faculdade.

Na condição de Patrono da turma da Faculdade de Ciências Médicas de 1963 (FCM-UEG-1973), Chanceler da UEG, Carlos Lacerda, ao discursar, proferiu muitas palavras de advertência:

Não se improvisa uma cultura e já Rui Barbosa na oração aos moços advertia, moços e velhos, contra o perigo de nos con-vertermos em uma Nação em que os meninos falam como

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doutores, porque dizia ele, então os doutores passarão a falar como meninos. É tempo de compreendermos que não há de ser com folhetos de divulgação de agitação e de slogans que nós encontraremos solução para os problemas da nacionalidade bra-sileira. É tempo de nos convencermos de que não adianta, como os nazistas que jogavam sobre os judeus todas suas culpas, jogar sobre americanos, ou russos, chineses, ingleses ou franceses, as culpas das nossas próprias omissões.

No dia do golpe militar de 1964, chamado também de con-tragolpe pelos adversários da esquerda, após passarem por diver-sos lugares, inclusive em uma tentativa de buscar medicamentos na Universidade do Brasil com o médico Almir Dutton, que antevira a possibilidade de haver feridos, Luiz Roberto Tenório e Gilber-to Hauagen Soares foram para a Faculdade de Filosofia da UEG, onde alguns alunos estavam cercados pela Polícia Militar. Quando viram chegar os tanques do Exército e o grupamento da PM sair, pensaram que era enfim a resistência a se manifestar.

Mandaram que todos entrassem em uma sala. Os alunos entraram e cantaram o hino nacional.

“Vocês estão presos.”Gilberto e Tenório não estavam em uma lista de alunos a

serem levados para o DOPS, lida por um dos militares no recinto.Sobre o que houve em 1964, Nelson Werneck Sodré, em

entrevista concedida a Dênis de Moraes e perguntado se: “O Pre-sidente Goulart e a natureza de seu governo foram incompreendi-dos pelo movimento popular?”, respondeu: “Não, não foram in-compreendidos. O governo Goulart foi muito flutuante, oscilante. O Goulart, como o próprio Vargas em sua época, era um homem de posições muito mutáveis. Às vezes, pendia para a direita, para a conciliação e para a composição. Às vezes, pendia para a esquerda. Essa oscilação o desprestigiava. Tanto que Goulart, na fase final, se aproximava de uma crise em que seria hostilizado pela própria esquerda, quando surgiu a campanha pelas reformas de base. Gou-lart montou nessa campanha, que lhe deu grande prestígio. Ele

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vinha sendo isolado até pelas forças de esquerda, inclusive pelo movimento sindical. Ele assume uma posição definida pelas re-formas de base e realmente se reaproxima dos dirigentes sindicais, dos estudantes e dos intelectuais – mas aí já era tarde”.

No que tange às reformas de base afetas aos estudantes, não implantadas pelo Governo João Goulart, ficou adiada a Reforma universitária, que asseguraria plena liberdade de ensino ao abolir a vitaliciedade de cátedra.

Evidentemente, a história é apenas a história, sem haver como avaliar qual seria o custo de uma guerra civil para o Brasil. Se tomado o exemplo da Espanha, cuja ditadura do generalíssimo Franco (Francisco Franco Bahamonde) foi uma das mais longas desde o pós-guerra civil espanhola até a sua morte (1939 a 1975), fica a pergunta que não quer calar: “O que seria do Brasil comunis-ta na hora da Queda do Muro de Berlim?”. Jango não quis, ou não pôde, resistir com armas à sua derrubada do governo.

Quanto à reforma universitária não realizada, de fato, a cá-tedra vitalícia outorgava ao professor catedrático o direito de es-colher e indicar a contratação de seus assistentes, o que impedia a realização de concursos públicos e concentrava nas mãos do ca-tedrático um excessivo poder. Hábito mantido na FCM-UERJ ao menos até meados dos anos 80, mesmo sem professor catedrático, mas com professores titulares ou diretores, embora ressalve-se a idoneidade dos concursos para livre-docência e outros pré-requisi-tos para evolução na carreira universitária.

Em 1963, Maurício da Rocha e Silva, irmão do Professor Arnoldo Flávio da Rocha e Silva, catedrático da cadeira de fisiolo-gia da FCM-UEG e depois da UERJ, importante cientista, desco-bridor da bradicinina, já dizia: “... a cátedra mata o Departamento, como talvez o contrário também seja verdadeiro, a ideia do Depar-tamento exclui a cátedra”.

Em 10 de março de 1965, foi inaugurado o novo prédio da Faculdade de Ciências Médicas da UEG, em Vila Isabel, com a presença do Governador Carlos Lacerda, sendo Presidente do

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Centro Acadêmico Sir Alexander Fleming (CASAF) o aluno Hésio de Albuquerque Cordeiro, que ao discursar declarou: “... estare-mos sempre dispostos a lutar pela liberdade de cátedra, a favor dos excedentes que querem estudar e dispostos a não tolerar prisões como as dos Professores Leite Lopes e Mario Schemberg”.

Ao que Lacerda respondeu: “... os professores não foram presos pelo que faziam nas salas de aula, mas pelo que faziam fora delas”.

Entre as reivindicações estudantis estava a que favorece-ria os excedentes. Mais Vagas para a FCM-UEG – via-se escrito em uma das faixas. Mas o governador se posicionou firmemen-te contra abrir vagas para os excedentes, no que se verá, agiu com acerto.

Com o Decreto-lei n. 252, de 28.02.1967, são ampliadas determinações contidas no Decreto-lei n. 53, de 18.11.1966, no que se refere à organização das universidades federais. É instituído o sistema departamental e reduzida a autonomia da cátedra, integrada agora definitivamente no departamento uni-versitário. Todavia, embora instituído esse sistema, sua existên-cia teve até certo ponto caráter nominal, devido à coexistência antinômica do regime de cátedra, cuja autonomia fora apenas reduzida. Somente através da Lei n. 5.540, de 28.11.1968, foi estabelecido que a universidade brasileira teria de contar com uma “estrutura orgânica com base em departamentos reunidos ou não em unidades mais amplas”.

Luiz Roberto Tenório declarou que, ao fim de 68 e daí para a frente, “diversos professores e Diretores eram responsáveis por passar informações diretas aos órgãos de segurança do Governo, inclusive fotos e gravações de situações de conflito ocorridas na Universidade; alunos ‘olheiros’ cumpriam funções semelhantes e até altos dirigentes da Universidade estavam comprometidos com essas práticas. Nos porões do DOI-CODI, nas sessões de tortura, estes documentos eram apresentados às vítimas como prova de suas culpas”.

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Havia na Ciências Médicas o Professor Américo Piquet Carneiro, a impedir que autoridades superiores ao mestre, den-tro da então UEG, viessem a obter informações sobre alunos e suas atividades políticas. De fato, se houve um humanista completo no professorado da Ciências Médicas, este foi o Prof. Américo Piquet Carneiro, sempre solidário, deveria ter servido de referência aos demais professores, não apenas por ser um he-rói humílimo e sem vaidades, mas, principalmente, por ter sido um homem sem ódios.

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Título Provisório 53

A superação da Lei Suplicy

Para nós, a Universidade, não podendo sero reflexo do êxito – mesmo porque ele nãofoi alcançado –, tem de ser instrumento de

superação do atraso.

Darcy Ribeiro

Um dos problemas que o movimento estudantil enfrentou foi o da abolição do trote na Ciências Médicas. Na escola, a briga-da contra o trote, composta em 1964 para garantir sua abolição, não teve missão fácil. Quebrar uma tradição herdada das universi-dades europeias e introduzir outro tipo de integração humanizada, para possibilitar uma adaptação mais rápida para o calouro, foi motivo de convocação de assembleia geral, na qual, em acalorado debate, foi criada a Semana dos Calouros. Ganha a causa, foi mar-cada a I Semana de Calouros para ter seu início em 1º de abril de 1964. Constituída por atividades culturais e esportivas, teve o fito, também, de apresentar aos novos colegas os problemas da escola e a discussão política. Desenvolviam-se seus preparativos, enquanto, em contagem regressiva, aproximava-se o dia da sua abertura.

A UNE deveria pensar em uma campanha para a abolição geral do trote. Os melhores instrumentais para a defesa pessoal são os esportes, a cultura e a honestidade de propósitos. Na tradição ocidental, toda cultura de não violência, desde o Cristo crucifica-do, desenvolveu-se a partir da vítima. A abolição do trote no Brasil seria algo muito inovador, como foi na Ciências Médicas. Em vez

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de perder tempo com o trote, fazer fóruns sobre a própria pro-fissão e a sociedade, numa preparação adulta de como enfrentá-la ou se inserir (mas se inserir em quê?). Bullying, assédio são menos tolerados que o trote, este último mais tolerado porque seria um ritual de iniciação.

O que se pode afirmar é que, a partir da experiência da FCM-UERJ, o trote não fez falta alguma à passagem para a adul-tícia de todos seus ex-alunos. A entrada na faculdade de medicina é um momento delicado, mormente por ser a cadeira de anatomia ministrada no primeiro ano do curso médico, e lidar respeitosa-mente com corpos mortos para o estudo da morfologia em si já basta para amadurecer os alunos. Estudantes da área de ciências humanas e das demais áreas terão seus entreveros também sem passar pelo trote. A abolição do trote estimula, sem dúvida, uma cultura de não violência e quem a apreende pode ser um multipli-cador dessa nova cultura. Vejamos, sobre o trote, o que nos diz o ex-aluno, então recém-ingresso no PCB, Luiz Roberto Tenório:

O trote era muito violento na época, raspavam o cabelo de todos os calouros, pintavam os calouros, rasgavam as roupas dos calouros. E teve um movimento completamente voluntário e espontâneo de algumas pessoas de resistir o trote. Então a minha turma teve o mérito no primeiro ano de faculdade de ter um movimento de resistência ao trote. E nós conseguimos acabar com o trote como era feito em 1963. Apesar de nos co-nhecermos muito pouco porque estávamos no início, algumas pessoas também ficaram revoltadas com a violência do trote e reagiram ao trote. A nossa sorte que nossa turma era de 80 alunos e a turma anterior a nossa era de 40, então nós tivemos condições numéricas de enfrentar a questão do trote. Acaba-mos com o trote selvagem dentro da universidade, como nós chamávamos, e realizamos ao invés do trote a Semana dos Ca-louros. E nessa ocasião nós começamos a verificar a tendência autoritária, fascista, que me lembrava muito a juventude hitle-rista ou então a juventude de Mussolini na Itália na Segunda Guerra. Aquele comportamento fundamentalista fanático em relação à questão do trote. Essa foi a luta muito interessante que nos uniu muito.

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Em 1964 antes do golpe eu já tinha me filiado ao Partido Comu-nista Brasileiro, mas com grandes dificuldades de entender aque-la lógica do Partido Comunista, apesar de sempre ter sido um cara disciplinado. Até um determinado ponto eu fui uma pessoa disciplinada. Mas tinha questionamentos, tinha um grupo dentro do PCB que tinha questionamentos fortes em relação à ques-tão de um partido único, a chamada Ditadura do Proletariado, a questão do centralismo democrático, que na nossa concepção era muito mais centralista do que democrático. E isso daí fez com que houvesse uma luta interna dentro do partido.

O professor da Ciências Médicas que mais reagiu ao golpe ou contragolpe de 1964 e o denunciou de imediato foi o Professor Arnoldo Flavio da Rocha e Silva. Porém, naquele interstício, Moi-sés dos Reis Amaral, Presidente do CASAF pela chapa Unidade Estudantil – coalizão das tendências mais progressistas do movi-mento –, encontrava-se nos Estados Unidos, através do convênio UEG-Universidade de Stanford. Sua ausência liberava a disputa entre a Chapa Ordem e Progresso (COP) – representante da di-reita – e as novas lideranças da esquerda estudantil na Ciências Médicas, nos dias anteriores ao desfecho do golpe militar de 1964. Muitos professores cujo apoio ao golpe assentava no medo do comunismo, cedo, cedo, vieram a perceber a enrascada em que se metia a história do Brasil.

Reafirmando a Universidade como caixa de ressonância das tensões sociais, o incêndio da União Nacional dos Estudantes coincidiu com o início da Semana dos Calouros, causando perple-xidade e revolta. Extinguir uma violência menor, como era in situ o trote, passava a ser defrontar uma muito maior, como foi desde o seu início a ditadura militar. Aqui no Rio de Janeiro, elementos da reação distribuíram notas de apoio ao golpe sob a influência do lacerdismo. Logo se veria mesmo dentro de setores da direita quem quis apenas uma breve tomada do poder para depois reali-zar-se uma eleição democrática. Ledo engano. Foi um momento difícil para o CASAF-livre, pois tendo ficado sua sede em pequeno prédio anexo ao principal na Fonseca Teles, fora cedida uma casa

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em mau estado de conservação, na área do hospital, para onde o estudantado convergia. Alguns departamentos não estavam fun-cionando por falta de acomodações, exigindo grande esforço para instalá-los. Enquanto as cinzas da UNE se espalhavam, o CASAF--livre se erguia a partir dos escombros.

Quando, em setembro de 64, houve eleições para o CASAF--livre, por todo o Brasil havia diretórios estudantis fechados. Havia três meses, o Ministro da Educação solicitara ao Presidente da Re-pública envio de mensagem ao Congresso Nacional extinguindo a União Nacional dos Estudantes, as Uniões Estaduais ou Metro-politanas de Estudantes e a União Brasileira de Estudantes Secun-daristas (UBES). Eleito Presidente pela chapa Unidade Estudantil, Hésio de Albuquerque Cordeiro, juntamente com a nova diretoria, deu sequência ao desenvolvimento das atividades culturais.

O Departamento Cultural do Diretório, no dia 11 de abril de 1964, inaugurou a Biblioteca Manoel de Abreu (BIMA). Em solenidade, com a presença da Sra. Dulce Evers de Abreu – viúva do homenageado –, colocou-se para os estudantes o objetivo de trazer para a Ciências Médicas todas as condições para o aprimo-ramento da cultura em seu sentido amplo. Ao ato compareceram o Prof. Lourival Cordeiro de Souza, representando o Reitor, e o Prof. João Cardoso de Castro, representando o Diretor da Facul-dade. A Biblioteca Manoel de Abreu surgia como convite ao diá-logo, ao livre debate, com respeito e apreço mútuo. A biblioteca de livros técnicos da faculdade já existia desde 1958, mas só com a inauguração do prédio de cadeiras básicas teve sua instalação definitiva, tudo faz crer que no período em que a Faculdade de Ciências Médicas teve o sobrenome de Sociedade Anônima como faculdade particular, e após 1950 como Faculdade de Ciências Mé-dicas da Universidade do Distrito Federal, ao tornar-se pública, houve bibliotecas nos serviços das especialidades médicas, mas não uma biblioteca unificada.

Na mesma data, houve uma mesa-redonda com a presença de Carlos Heitor Cony, cronista opositor ao regime, romancista

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autor da obra-prima Pessach – A travessia, romance com ambienta-ção na luta armada, do ponto de vista literário a maior obra sobre o período da opressão, embora não seja a de maior importância his-tórica ou política, mas que faz o leitor pensar sobre como reagiria dentro daquela conjuntura. A necessidade de estruturação da vida universitária a partir das atividades culturais, como terreno funda-mental para um objetivo maior de participação social, passava a se contrapor ao imediatismo da formação médica, preenchendo uma lacuna e gerando consciência crítica da estrutura social. A mesa foi presidida pelo Professor Aloysio de Paula, contou também com a presença de Maurício Segall, autor de peças teatrais.

Quem sucedeu Álvaro Cumplido de Sant’ Anna na direção da faculdade foi o Professor Raul Jobim Bittencourt. Note-se que o saudoso Professor da Faculdade de Ciências Médicas, lente de psiquiatria, participou, antes de ser professor da escola, da redação da Constituinte de 1934, ao redigir a parte referida à educação; na Constituição de 1934 não havia menção ao ensino pago; na de 1937, redigida por Francisco Campos, fala-se em contribuição dos que podem pagar. No dia 31 de março de 1964, quem ocupava o cargo de Diretor da FCM-UEG (posteriormente UEG) era este catedrático de psiquiatria: Raul Jobim Bittencourt, que iniciou sua carreira na faculdade, já como catedrático, em 1935, ano de funda-ção da escola médica, homem de bom entendimento político, que jamais teve problemas ou criou problemas para nenhum estudante.

Os professores Américo Piquet Carneiro e Paulo de Carva-lho assumiram a Direção e a Vice-Direção da Faculdade, em ou-tubro de 1964. Foi Piquet quem arranjou recursos para a Ciências Médicas. O que ela é hoje se deve a ele.

O avassalamento da UnB, instituição pioneira na crítica à estrutura feudal das universidades latino-americanas, não calara a reivindicação de uma universidade integrada. O regime preci-sava maquilar qualquer resíduo de perspectiva progressista que pudesse transpirar pelos pequenos poros da repressão. A UEG, estoicamente, recebeu a maquilagem. Obedecendo à ordem de

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“Departamentalização das Universidades”, em abril de 64 foi ins-talado o Conselho Departamental da FCM; estrutura fac-símile ao Conselho Técnico Administrativo, mantenedora do funcionamen-to do órgão substituído.

A perversão, inversão e o detrimento dos valores culturais, substituídos pelo uso da violência e de medidas coercitivas no meio universitário e no país, refletia-se no movimento estudantil, atra-vés da tutela repressiva estabelecida pelo regime sem total sucesso. Quando a Lei n. 4.464, de 9 de novembro de 1964, foi assinada pelo Marechal Humberto Castello Branco e por Flávio Suplicy de Lacerda, na Guanabara permaneciam fechados o Centro Aca-dêmico Cândido de Oliveira, o Centro Acadêmico da Faculdade Nacional de Filosofia e o Centro Acadêmico da Escola Nacional de Engenharia. Esses diretórios só poderiam normalizar suas ati-vidades, totalmente suspensas, em agosto de 65, quando se anun-ciassem, conforme a Lei Suplicy, eleições para as suas diretorias.

Em “O Plantão”, órgão oficial do CASAF-livre, gestão 64/65, encontra-se o resultado do plebiscito no qual a Ciências Médicas, juntamente com 28 outras escolas da antiga Guanabara, com uma percentagem de 81,33% dos votos repudiou a Lei Su-plicy. No mesmo exemplar, as prisões políticas das lideranças estu-dantis eram denunciadas. Outro meio de comunicação era a leitura do mural Dazibao, com notícias sempre atualizadas e chamamento para reuniões ou assembleias.

A Chapa Ordem e Progresso, após a “revolução”, adotou o nome de Movimento de Renovação Universitária (MRU), sem abalar o crédito no progresso sem justiça social, pugnando por pragmatismo e liberdade, dizendo-se livre de ideologias. O MRU, embora a realidade o desagradasse, não ignorava o aspecto políti-co do movimento estudantil. Carlos Alberto da Silva, liderança à direita, acusava que ele vinha sendo insistentemente usado como forma de desagregação social, em uma concepção nova das lutas de classe, que beneficiariam a implantação de um totalitarismo. Na América Latina, Ásia e África, onde o pauperismo, a doença

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e a falta de educação se uniam no termo subdesenvolvimento, o campo era fértil para a escalada comunista.

Além disso, se possível, os subversivos teriam em mente transformar as universidades em “focos de guerrilhas”, algo conse-quente às recomendações do Congresso Tricontinental de Havana, havendo, no mundo inteiro, elementos treinados para tal missão. Como se todos os alunos fossem cada um aderir à luta armada, ten-do de fato havido adesões de pouquíssimos a essa utopia armada, à época nem tão utópica assim, porque em país de dimensão imensa como a China ou pequena como Cuba a guerrilha ascendeu ao po-der, depois de tomar vulto de guerra de insurreição. Obviamente, Cuba exerceu grande influência para o advento da luta armada, da qual participaram, inclusive, ex-alunos da Ciências Médicas.

Concomitantemente, a Unidade Estudantil, aumentando as relações no CASAF-livre com o DCE, a UME e a UNE através da representação externa, elegeu Luiz Roberto Tenório para Presi-dente do Diretório – gestão 65/66. Foi Tenório quem trouxe para dentro da escola o aprofundamento da discussão sobre a legislação repressiva imposta ao estudantado. Quando os presidentes de Di-retórios da Guanabara burlaram a Lei Suplicy, não apresentando chapas para o “Diretório Estadual de Estudantes”, em represália o regime decretou o fechamento da União Metropolitana dos Es-tudantes. A Lei Suplicy prescrevia principalmente que não poderia haver atuação político-partidária nos centros acadêmicos, visando, assim, impedir a participação de partidos políticos de esquerda, clandestinos então, no movimento estudantil.

A Comissão Inter-DCEs, responsável pela preparação do 23º Congresso da UME, de há muito vinha levantando os diversos locais em que haveria possibilidade de sua realização, concluin-do, após avaliar os prós e contras, que o CASAF-livre era o local de eleição. Lideranças estudantis de projeção nacional passaram a marcar presença nas assembleias da Faculdade. A consciência do estado repressivo, da ditadura, principalmente a partir do Ato Institucional n. 2, que proibia também eleições para governadores,

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somada a uma preocupação com o futuro político do país frente às sequelas que o sistema de cerceamento das liberdades individuais traria e trouxe, modificou qualitativa e quantitativamente o nível de participação do corpo discente.

A universidade continuava acadêmica e pedante, voltando-se para si mesma, para suas “ciências particulares e teóricas”, repleta de teóricos vaidosos e ortodoxos, completamente divorciada dos problemas sociais, agindo e ditando ordens discricionárias. Não demorou para que o Magnífico Reitor da UEG, Haroldo Lisboa da Cunha, enviasse à Ciências Médicas correspondência relativa às severas obrigações concernentes à adaptação dos regimentos es-tudantis à Lei n. 4.464 ou Lei Suplicy de Lacerda, sendo nomeado interventor o Prof. Roberto Alcântara Gomes Filho para efetivar o cumprimento das determinações.

A posição dos estudantes foi pelo não enquadramento do CASAF na Lei Suplicy e também pelo não reconhecimento do interventor como representante dos alunos, ficando a diretoria eleita reconhecida como representativa, até a realização de no-vas eleições. Em sua eleição para o CASAF, Hésio Cordeiro já infligira derrota à Lei Suplicy mesmo antes da sua promulgação, derrota reafirmada na eleição de Luiz Roberto Tenório, com a chapa Unidade Estudantil, que ao vencer a chapa do Movimento de Renovação Universitária (MRU), encabeçada por Issa Haddad, por 287 votos a 197 votos, reafirmou o CASAF-livre, enquanto o MRU ainda vacilava se não seria importante primeiro se submeter às Leis para só depois revogá-las. O Movimento de Renovação Universitária, ante a intervenção no CASAF-livre, pugnou por um movimento estudantil que não disseminasse a agitação no seio do povo, imaginando tudo estar encerrado pelos caminhos normais, vendo na revolução, na luta corporal ou de classes a única solução humana para a injustiça social. Referindo-se à Lei Suplicy, lembrou um princípio por ele considerado básico: “Em qualquer época e lugar vigente, uma lei é feita para ser cumprida. Isto não significa apoio, pois até para revogá-la é preciso antes aceitá-la como lei”.

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Mas de que valem as leis cuja única finalidade é nos colocar de joelhos?

Arthur da Costa e Silva foi eleito pelo Congresso Nacional exclusivamente com o voto dos 294 parlamentares da Aliança Re-novadora Nacional: ARENA – partido dos comensais e acólitos do governo; hoje mais chamado de ditadura civil-militar, uma vez que o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) abandonou o plená-rio, em três de outubro de 1966. Eram agremiações, porque o uso da palavra partido estava proibido, e o P, anteposto ao MDB, para formar a sigla PMDB, só foi colocado após a redemocratização.

Na prática, o pré-requisito para ser Presidente de República, durante a ditadura, era ser militar, isto é, general do exército. Os dois primeiros anos do governo Costa e Silva foram de intensa ati-vidade política, pois crescia o movimento de oposição ao regime. O Partido Comunista Brasileiro, reunido em seu VI Congresso, condenou a opção pela luta armada como forma de combate ao governo, dando origem a várias dissidências na esquerda brasileira. Em 1967 foi descoberto foco de guerrilha rural na serra do Capa-raó, Minas Gerais. Na época era corrente a piada de que o trem vai para frente e apita, enquanto o Brasil vai de Costa e Silva.

Políticos de diferentes tendências formaram a Frente Am-pla, sob a liderança de Carlos Lacerda e com o apoio de Juscelino Kubitschek e João Goulart. De caráter oposicionista, a Frente Ampla propunha a luta pela redemocratização, anistia, eleições diretas para presidente e uma nova constituinte. O ano de 1968 foi marcado pela intensificação dos protestos e a imediata reação do governo. As manifestações estudantis, que denunciavam a fal-ta de verbas para educação e se opunham ao projeto de privati-zação do ensino público, ganharam nova dimensão com a morte do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, em con-flito com a Polícia militar no Rio de Janeiro. Em resposta, houve uma greve estudantil nacional, comícios e manifestações urbanas com a participação de amplos setores da sociedade, cujo ponto alto foi a Passeata dos Cem Mil, ocorrida no Rio de Janeiro. O

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ambiente político tornou-se ainda mais tenso, e em abril o go-verno proibiu a Frente Ampla, tornando ilegais suas reuniões, manifestações e publicações.

É óbvio que os estudantes apoiaram os propósitos da Frente Ampla, e com a dissolução dos partidos pelo AI-2 Lacer-da via sua ambição de concorrer à Presidência da República su-cumbir. Seu propósito era ser o líder dos militares, e não um sim-ples acólito, razão de nunca ter se filiado ao partido governista da Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Apenas um homem como João Goulart, com sua extrema generosidade e sentimento democrático, apesar de ter sido uma liderança confusa, poderia, junto com Juscelino Kubitschek, mais pragmático, dar um aval à Frente Ampla.

Se Jango fosse interditado e Lacerda (a bête noîre ou o corvo) ou JK, naturais candidatos à Presidência, viessem a ser Presidente da República, talvez o Brasil e a população não ti-vessem vivido o sofrimento imposto pela ditadura, conivente com a tortura desde o primeiro instante. Mas o “se”, na his-tória que nunca é uma ficção, resulta em diegese inútil. Carlos Lacerda, até o ponto que lhe foi permitido, fez o bem no va-rejo e o mal no atacado. O surto de terrorismo que ocorreu a partir de 1966, marcado pelo atentado contra o Aeroporto de Guararapes, que deixou mortos e feridos, teria sido combati-do dentro da democracia, como ocorreu na Alemanha, Itália, por exemplo. Se Jango tivesse condições de na época tentar se manter no poder com manu militare, apoio militar que dizia existir mas que se mostrou frágil, qual teria sido o preço a ser pago pelo país?

Cabe registrar os muros da Ciências Médicas como inex-pugnáveis, e podemos dizer que é uma Troia jamais vencida; onde não entra presente de grego. Nos anos 60 havia o problema dos excedentes, foi naquele tempo a ocorrência da definição do limite de vagas para a capacidade instalada da escola; sobre isso nos fala Luiz Roberto Tenório:

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Fomos contra a entrada dos excedentes, porque os excedentes transformariam uma faculdade com capacidade para ministrar aulas para 80 e 100 alunos, em uma para 300 alunos. A Universi-dade do Brasil naquela época aceitou os excedentes e caiu a qua-lidade de ensino porque aceitou-os. O mais grave nos excedentes é terem ido negociar a entrada deles diretamente com o Costa e Silva, Presidente da República, levados pelo Suplicy, Ministro da Educação e Cultura. E aí eles criaram a turma Iolanda Costa e Silva, que era mulher do Costa e Silva, para agradar o regime militar e poder entrar na faculdade com notas baixíssimas etc. E era uma quantidade enorme de excedentes. Então essa luta de resistência contra os excedentes, contra esse clientelismo do governo em cima da Faculdade de Ciências Médicas, unificou o Movimento Estudantil com o movimento dos professores, in-dependente da ideologia dos dois movimentos. Isso foi muito importante.

E aí, novamente segundo Luiz Roberto Tenório:

Então esse movimento estudantil em 65 e 66 ganhou muita im-portância do ponto de vista do viés das atividades culturais, com isso se aglutinaram alunos que não iam simplesmente jogar totó no centro acadêmico; iam lá para discutir literatura e política; e naquela ocasião nós tínhamos uma discussão muito interessante sobre capitalismo e socialismo. Existia o espelho em Cuba em que os grandes heróis eram os cubanos. Aí tinha o projeto do Régis Debray de resistência armada na época. Começou o foco ou o foquismo, dois ou três anos depois. Então se começou a discutir quais as lutas efetivas contra a ditadura. E o movimento estudantil cresceu, houve a passeata dos 100 mil. O movimento cresceu e enquanto o movimento crescia, crescia também o nível de repressão. As pessoas passaram a ser presas. Eu fui várias vezes preso.Tive seis prisões de pequeno porte, como eu chamo, e duas de grande, médio porte. As seis prisões de pequeno porte foram quando participei de passeata, fiz uma pichação, você fazia não sei o quê, aí polícia prendia e para soltar um dia depois, dois dias depois. Essas aí foram...! Eu perdi a conta. Mas foram mais ou menos isso, umas seis. E teve duas mais importantes. Uma em 69, eu já estava formado, e outra em 72, mas essa é outra histó-ria. Mas eles tinham um pouco de pudor em relação a torturar

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estudante. “Estudantes sempre têm níveis de conhecimento so-ciais, por mais que seja ditadura, meu pai era delegado de polícia, meu tio foi Reitor da universidade, – aqui o entrevistado fala do Reitor Oscar Accioly Tenório –; meu sogro era desembargador”.

É ainda Tenório quem traça, em um mesmo trecho em que diz da importância de Américo Piquet Carneiro e Paulo de Car-valho para as discussões sobre currículo, um perfil fantástico do Professor Jayme Landmann:

Olha, o professor Landmann está para medicina do mesmo jeito que o Nelson Rodrigues está para o teatro e para literatura no Brasil. Por mais que eles queiram ser conservadores, e se digam conservadores a obra dele é revolucionária. E o Nelson Rodri-gues era isso, uma pessoa de direita, defendia os militares e fazia o “Vestido de noiva”, por exemplo, a “Revolução”, “Os sete gati-nhos”. E o professor Landmann de manhã ele tinha essa prática no movimento sanitarista e tal e depois ia para o consultório e fazia a prática toda contrária do que escrevia.

Manoel Cláudio da Motta Maia, Professor Titular de Ci-rurgia-geral do Hospital Universitário Pedro Ernesto, foi um dos mais rigorosos membros da Comissão Disciplinar infligidora de severas penas aos alunos da Ciências Médicas participantes da gre-ve de 1959. Não cabe aqui um paralelo do Prof. Motta Maia com o Landmann. A história de Motta Maia com os alunos ainda está para ser contada em livro a ser publicado pelo também pediatra Sansão Gorensein.

Ainda sobre professores nos fala Luiz Roberto Tenório:

O Piquet foi muito importante na discussão com vistas à refor-mulação de nosso currículo. Ele introduziu a discussão sobre o social junto à medicina. Como Paulo de Carvalho, que era par-ceiro dele, teve a importância na criação do prédio de cadeiras básicas atrás do Hospital Universitário Pedro Ernesto que uni-ficou os alunos dos primeiros anos do curso médico ao hospi-tal-escola. As cadeiras básicas unificadas a clínica médica. São muito importantes essas duas pessoas. E o Landmann foi um

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bom diretor apesar de ser um grande repressor. O Landmann foi um grande repressor! Ele como docente reprimiu, era truculen-to inclusive em alguns momentos. Agora uma pessoa que tem... Eu tinha com o Landmann um bom relacionamento. Escreveu muitos livros sobre medicina muito bons. Muito mais do que três, um desses livros é o Medicina não é doença. Ele questionava o modelo hospitalocêntrico. Propunha uma atenção básica em saúde, questionava o poder médico. Então ele foi uma pessoa muito importante.

De volta à trajetória de Luiz Roberto Tenório, segue seu relato sobre mais alguns fatos:

Quando chegou março de 69, aconteceu a minha cassação pelo AI-5. Eu estava em casa em um domingo, toca o telefone, toca a campainha. Eu estava sozinho em casa com meu filho de um ano, o Fernando. Minha mulher, na época, mãe do menino, es-tava fora de casa, andando de bicicleta na praia em Copacabana. Quando abri a porta, um revólver! E de lá fui levado para Aero-náutica, nessa época eu não tive tortura, embora sob a acusação de ser o mentor de um roubo de uma metralhadora no Hospital Central da Aeronáutica. Não sabia da tal metralhadora, não sa-bia nem que tinha hospital, quanto mais metralhadora! Era uma acusação completamente estapafúrdia, sem nenhum sentindo. Depois soube, há pouco tempo fui conversar com o João Lopes Salgado, descobri quem comandou aquela operação: foi o Salga-do. Você entendeu? O Salgado, a irmã dele, a Graça e mais outras três e quatro pessoas. Salgado jamais foi preso, mas sabiam da nossa amizade. “Deve ter sido o Tenório que organizou isso e tal”, pensaram – e me prenderam. Fiquei preso lá uns quatro ou cinco meses e fui transferido para o Hospital Central da Aero-náutica que é ali na Rua Barão de Itapagipe; fui muito interroga-do, interrogado: sem pancadaria, sem tortura. O Brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, inclusive, foi um dos interrogadores.

Após roubar diversos carros, a DI/GB (Dissidência do PCB na Guanabara) realizou três assaltos no Rio de Janeiro, que tiveram repercussão; um deles foi em 15 de fevereiro, ao Hospital Central da Aeronáutica, onde João Lopes Salgado com outros militantes roubaram a metralhadora Ina da sentinela.

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Manoel Cláudio da Motta Maia, Professor Titular de Ci-rurgia-geral do Hospital Universitário Pedro Ernesto, Membro Titular da Academia Brasileira de Medicina, parágrafos antes foi citado como um dos mestres mais duros em relação às punições aos alunos da greve da Ciências Médicas de 1959; porém não era um perverso, e sim um disciplinador à moda antiga; foi o grande lente quem foi salvar Luiz Roberto Tenório de uma de suas piores prisões, com perda da comunicabilidade rompida pela ira sagrada de Motta Maia; e é o ex-aluno e Ex-Presidente do CASAF quem nos relata o ocorrido:

O Motta Maia, por exemplo, quando fui preso na Aeronáutica, estive incomunicável. Eu operava com ele. Motta Maia soube que fui torturado, foi ao Hospital da Aeronáutica, chamou o diretor e falou: “Eu quero ver meu assistente porque ele está preso aí”. Então, um brigadeiro-médico disse: “Professor, o senhor não pode vê-lo, ele está incomunicável, Lei de Seguran-ça Nacional”. “Como não? Eu não posso ver?” Desceu, sentou num banquinho que tem no jardim do hospital, figura conheci-díssima. Sentou ali, tudo quanto era médico que entrava conhecia o professor Motta Maia, à época também na função de Diretor do Hospital Miguel Couto. “O que o senhor está fazendo?” “Es-tou à espera para poder falar com meu assistente.” Foi criando um clima de constrangimento dentro do hospital. Chegou o final da tarde, ele lá, sem comer, sem nada, aí o brigadeiro voltou com ele, me trouxe, levou-o ele até o quarto-prisão. Motta Maia me perguntou se precisava de algo, sobre como estava sendo tratado e tal. E a partir daí quebrou a incomunicabilidade, no dia seguinte o advogado foi me ver, os familiares puderam me visitar e etc. Graças à atitude dele.

Luiz Roberto Tenório nunca participou diretamente de ne-nhuma ação da esquerda que envolvesse violência. Em entrevista concedida ao historiador Carlos Eduardo Martins da Silva, forma-do pela UERJ, ex-membro do DCE e do Conselho Universitário; em referência ao Professor Motta Maia, Carlos fez a seguinte per-gunta a Tenório:

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Título Provisório 67

C: Foi esse que te levou para o sítio que o senhor se escondeu?LT: Não, quem me levou para o sítio foi o médico do Lacerda, Antônio Rebello Filho. Ele era médico do Lacerda, era ligado à Aeronáutica, colocou lençol azul no dia do golpe e foi para o palácio Guanabara com sua metralhadora portátil para defender o golpe. Ele trabalhava na clínica médica lá no Hospital Univer-sitário Pedro Ernesto.C: Qual o nome dele?LT: Antônio Rebello Filho.C: Era professor da FCM-UERJ?LT: Professor da FCM de clínica médica. O Antônio Rebello era de direita, lacerdista! Morava perto da UERJ. Ficamos amigos; ele foi médico do meu pai. Um dia na chegada ao hospital Pedro Ernesto de manhã cedo, ele estava na porta do hospital, eu deixei o carro. “Entra no meu carro”; eu: “Mas por quê?”; e ele: “Entra! Você não confia em mim?” – aí eu entrei. Dentro do carro ouvi: “Você está na lista para ser jogado do helicóptero!”. A lista que Burnier fez, mas que o Sérgio Macaco denunciou (Capitão da Aeronáutica Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho – homem que se recusou a obedecer as ordens do Brigadeiro João Paulo Mo-reira Burnier, que arquitetara um plano de desviar o Para-Sar das missões de salvamento para missões de assassinato). “Você está nesta lista! Então você vai ficar escondido lá no sítio.” Enquanto estive no esconderijo do sítio, o ator e compositor Mario Lago fez uma passagem por lá.

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Mundo fechado, mundo aberto

Quando uma sociedade tem uma necessidadetécnica, isso não dá mais impulso à ciência do

que o fariam dez universidades.

Friedrich Engels

O Professor Américo Piquet Carneiro acreditava que a for-mação médica devia ser alicerçada sobre um ciclo básico encoraja-dor da aptidão de pesquisador e sem prejuízo do ciclo profissional, assim assentado sobre bases sólidas, levando a uma prática médica de alta competência e de teor científico do mais alto padrão. A construção de prédio de cadeiras básicas e, junto com ele, o apare-cimento de laboratórios com melhores recursos e biotérios, abria a possibilidade de incentivo à pesquisa, dentro da disponibilidade de um Hospital-Escola e com a possibilidade de usufruto de uma biblioteca no melhor momento da sua existência.

Nessa conjuntura, colocou-se a escola de medicina da UEG ombro a ombro com a da USP, passando a ser primeira opção para grande número dos vestibulandos, aplicando exame de ingresso muito puxado. Quando se anunciou a entrada de 300 exceden-tes nas diversas Faculdades de Medicina do Estado, na tentativa de aquietar o mundo de candidatos reprovados nos vestibulares, aquiesceu-se em que a entrada dos excedentes criaria graves pro-blemas de ordem interna para a Faculdade.

No critério de classificação, os 416 concursandos do vestibular que obtiveram notas acima de zero poderiam ser

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considerados aprovados. Após o vestibular, as regras do jogo haviam mudado no sentido de estipular nota mínima para clas-sificação e o critério de segregação de naturalidade (quem fosse do estado X não poderia ter feito provas para uma escola no es-tado Y). Na realidade, os excedentes eram 900, e não apenas 300, como estipulava o governo federal.

Estruturada para receber um número determinado de es-tudantes, com um corpo docente que deixava muito a desejar, so-frendo a míngua de material, a Ciências Médicas não aceitou os 80 excedentes que lhe caberiam além dos 100 alunos que já cursavam o primeiro ano.

Assim, mesmo sob intervenção, com seu prédio trancafia-do a sete chaves, o CASAF-livre (autônomo em relação à Lei Su-plicy) colocou-se ao lado da Direção da Faculdade na luta contra a tentativa do Ministério da Educação de impor à Ciências Médicas a entrada dos excedentes. Entrariam em greve de solidariedade à Congregação da FCM, se necessário fosse, em uma demonstra-ção da viabilidade do diálogo com autoridades que efetivamente quisessem dialogar. Como escreveu Bertold Brecht: “Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas as margens que o comprimem”.

A Congregação era contra a admissão dos excedentes, a escola fora construída para 100 alunos por série. Alto dirigente do MEC tentou convencer o Diretor em exercício, Prof. Paulo de Carvalho, a dissuadir os demais professores. Como o Professor resistiu, impedindo a implosão da escola, em represália foi feito um corte nas verbas que a Universidade tinha direito a receber do CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Não bastava, entretanto, fechar a ponte levadiça e ru-minar a autossuficiência. Havia de se escolher entre a mobilização imediatista e a reforma universitária.

A aplasia, devido ao crescimento universitário ridícu-lo em relação aos problemas nacionais; a esclerose, manifestada pela cátedra vitalícia, dando à universidade o aspecto de museu

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arqueológico; a introversão, representada pela completa aliena-ção em face dos problemas ex-mura, compunha um quadro de sintomas que emergia do tradicionalismo doente da estrutura universitária.

Nessa altura Raimundo Moniz de Castro de Aragão, no-meado Ministro da Educação, já não conseguia impor a Lei Su-plicy. Chegava ao término a intervenção no CASAF.

Para a gestão 66/67, novamente a chapa Unidade Estu-dantil ocupou todos os cargos da Diretoria, cabendo ao acadê-mico José Augusto Coelho Duque Estrada o cargo de Presiden-te. Foi na Gestão do Duque que a turma a se formar em 1972 ingressou na faculdade. Turma que sofreu um grande trauma ao ver um dos alunos da classe ser baleado por um agente da repressão em 1968.

O Boletim, semanário de informação do CASAF, e o jornal mural Perspectivas, criados no início da gestão do Duque, abriram espaço para a expressão das ideias das novas lideranças que sur-giam, entre elas, Fritz Carl Utzeri, Gil Santini Pinto e Cláudio José de Campos Filho, entre outros.

Foi na edição provisória do Boletim n. 0, ano II, de 20.08.1966, que Gil Santini Pinto, em seu artigo “Mundo fecha-do, mundo aberto”, colocou com clareza a necessidade da crítica à Ciências Médicas como instituição de ensino. No artigo, ao discernir sobre a pobreza cultural na universidade, Gil analisou o argumento de que ela nada mais seria do que fruto de uma pés-sima situação econômica:

... se concordássemos com essa afirmação, teríamos que admitir que a cultura é patrimônio fundado na riqueza, no bem-estar social. Além disto ser intolerável do ponto de vista histórico, tal assertiva supõe que a capacidade criadora do homem se atualiza na razão direta de suas posses, o que não é verdade.

Ao se perguntar o que provocaria essa pobreza cultural, apontou duas causas: a primeira, o fenômeno de aculturamento:

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... a classe média que predomina nas universidades faz o jogo cultural da classe dominante, em vista de uma ascensão social; recebe e desenvolve em seu seio, de modo subliminar, falsos va-lores culturais que a amortecem e a desintegram em sua base, que são seus membros.

Exemplificou com as concepções de amor e trabalho: “... de-turpadas por um individualismo crônico que torna o homem um ser medroso, solitário, incapaz de se comprometer com o seu meio, em vista da construção da sociedade”, para completar o raciocínio colo-cando: “... a imposição desses valores falsos à vida cotidiana do povo. Uma propaganda bem dirigida sedimenta o pessimismo em relação às potencialidades da nação que, tragicamente, para gáudio de alguns e desgraça da maioria, continua dormindo em berço esplêndido”.

A segunda, a fuga de toda e qualquer análise e discussão dos problemas extracurriculares:

... o estudante é para estudar, palavra de ordem comum para condenar as esquerdas, faz com que o estudo deixe de ser ferra-menta para a construção da sociedade e se torne instrumento de satisfação pessoal. O futuro médico sabe que a fome, as bombas, e remotamente as próprias ideologias, quando não respeitam a pessoa humana, são causas de doença, de alienação, mas pres-sionado pela promessa de ascensão social recusa-se a participar, submetendo-se ao Mundo Fechado da Universidade. Na verda-de, a universidade brasileira não é autônoma. Está ela fechada por interesses que não permitem torná-la um centro de elabora-ção científico-cultural do homem.

A criação de “gênios” através da manipulação experimen-tal do homem, os meros mimetismos de fórmulas, a universidade como trampolim para a ascensão social começavam a sofrer pro-cesso de questionamento irreversível.

Os estudantes procuravam não se isolar dentro das paredes das faculdades, nem ficar apenas nas ruas. Haviam entendido a necessida-de de conduzir suas lutas específicas dentro e fora das faculdades e de, simultaneamente, conduzir a denúncia política do sistema existente.

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O Governo, através do convênio firmado entre o MEC e a United States Agency for International Development (USAID), tentava implantar sua política de estímulo ao investimento estran-geiro na Universidade.

O acordo MEC-USAID propunha a implantação de um sis-tema administrativo do tipo empresa privada, ameaçando a escola pública, instrumento de integração e coesão da comunidade.

A Ciências Médicas, que em período de maior democracia se transformara de empresa comercial em Faculdade Pública, no-vamente se defrontava com a possibilidade do início de cobrança de taxas referentes a serviço de ensino.

O movimento estudantil em ascensão importante impedia a implantação do ensino pago. A UME organizava passeatas para pressionar o MEC, exigindo verbas para a UEG e a UB. As Uni-versidades do Brasil, do Estado da Guanabara, Federal Fluminen-se, PUC e Faculdades Independentes fizeram greve de protesto contra a política educacional do governo e a cobrança de taxas. O Sr. Raimundo Moniz de Castro de Aragão, Ministro da Educação do Governo do Marechal Castelo Branco, condenava as greves como prejudiciais ao aluno, declarando: “... As tarefas de ensinar e aprender coincidem. E não são opostas como as reivindicações de patrões e empregados. Então, por que paralisá-las?”.

Escolhido paraninfo dos doutorandos de 66, o Prof. Arnol-do Flávio da Rocha e Silva, na colação de grau, em seu discurso respondeu:

O ano de 1966 mostrou de que são capazes, com coragem e de-cisão, a estudante e o estudante brasileiro. Vós tereis orgulho de dizer que pertenceis à classe que, neste ano, com tanta coragem e heroísmo, sustentou uma luta tão desigual e pôde desmascarar os coveiros da autonomia universitária.

Tenório, na madrugada do dia 23 de setembro de 1966, após reunião das lideranças estudantis por mais verbas para a educa-ção, realizada na Universidade do Brasil, na Praia Vermelha, viu o

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Título Provisório 73

cerco da PM no dia 22. Apesar da mediação de professores como Lauro Solero e Clementino Fraga, as tropas invadiram o prédio e forçaram os estudantes a passar por um corredor polonês. Da medicina da UEG, passaram a ser visadas muitas lideranças, como João Lopes Salgado, José Augusto Duque Estrada, Gilberto Hau-gen Soares, Claudio José de Campos Filho.

Ainda em 1966 foi realizado na UEG o Congresso da UME, como preparação para o 23º Congresso das UME, a ser realizado em Belo Horizonte, ao qual Tenório não conseguiu chegar por ter sido preso quando estava a caminho. Os estudantes, por sua vez, aperfeiçoavam suas formas de comunicação. No CASAF, por ini-ciativa de Fritz Utzeri, Gil Santini Pinto e Cláudio José de Campos Filho, foram criados o Cineclube Ciências Médicas (CICEME) e o jornal mural Perspectivas.

Em 1967, a derrota do PCB nas eleições dos diretórios es-tudantis radicalizou o movimento. Assim transcorreu a gestão do Duque, o qual, após a Unidade Estudantil ganhar as eleições para o CASAF, passou a presidência do Diretório para Gilberto Haua-gen Soares – gestão 67/68.

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74 Fabio Daflon

A Ciências Médicas em crise

A universidade de que precisamos, antesde existir como um fato no mundo

das coisas, deve existir como um projeto,uma utopia, no mundo das ideias.

Darcy Ribeiro

O ano de 1968 merece realce pela gama de acontecimen-tos que conteve e pelas tragédias com que foi terminado. Logo, em seu início letivo, o assassinato de um estudante secundarista, Edson Luís de Lima Souto, de 18 anos, com um tiro à queima--roupa no peito, em 28 de março de 1968 no restaurante Ca-labouço e pela divulgação, mão a mão e em grande murais, do Inquérito sobre o ensino da FCM-UEG, no intuito de criticar com coragem a formação médica recebida. Prisões e arbitrarie-dade eram as marcas do governo às crescentes manifestações de protesto dos estudantes contra a ditadura instalada no país, em 1964. Quem quisesse participar da comissão do currículo era só comparecer dia tal no CASAF para, a partir da contribuição de todos os alunos, promover uma discussão crítica sobre o ensino na Ciências Médicas. Após o incêndio da UNE, na Praia do Fla-mengo, restara o Calabouço como reduto estudantil. Seu enorme salão era tomado por grandes assembleias. Em 1967, o fecha-mento foi anunciado para dar lugar ao trevo de acesso às pistas do Aterro e, principalmente, ao Aeroporto Santos Dumont, algo que só ocorreu após a morte do estudante.

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Título Provisório 75

Na primeira reunião da comissão do currículo, apareceu um grande número de pessoas, mas, à medida que as tarefas ti-nham que ser realizadas, como se acontecesse uma triagem, este número diminuiu até ser fixada a composição final da comissão do currículo: Gil Santini Pinto, Albinear Valente Plaza, André Jorge Campello Rodrigues Pereira, Rebeca Zetune, Maria Miraci Lafetá, Ricardo Donato Rodrigues, Cláudio José de Campos Filho. Des-tes, quem deu tratamento estatístico aos resultados foi André Jorge Campello Rodriguês Pereira, que nos estudos secundários fizera curso técnico de estatística.

Essa comissão realizou trabalho ininterrupto durante as férias, para publicar o “Resultado do Inquérito Aplicado aos alu-nos da FCM – do 2º ao 6º ano, atuais, do curso médico – sobre o ensino nesta Faculdade”, diagnóstico elaborado a partir do pensamento daqueles que sofriam o ensino. A mola propulsora da iniciativa era trazer elementos para uma discussão que pos-sibilitasse o encaminhamento a uma reforma curricular a partir da seguinte visão:

O ensino superior no Brasil define-se como um meio atra-ente de promoção individual, sem qualquer vínculo ou compro-misso direto e imediato com o crescimento global da comunidade.

A formação médica que recebemos está caracterizada pelo espírito competitivo, pela irresponsabilidade frente aos problemas da sociedade. Isto é, há uma supervalorização da medicina de “alta qualidade”, levando à desvalorização da medicina voltada para a realidade, oferecendo um instrumental de trabalho condizente com as possibilidades econômicas e de saúde da comunidade.

Nosso aprendizado tem como elemento-chave a memori-zação, e não o raciocínio. O estudante não desenvolve sua inteli-gência crítica. Submete-se aos argumentos da autoridade, em detri-mento dos argumentos da razão. Daí termos no decorrer do curso:

9 sensação de perda de tempo, trazida pela passagem das cadeiras básicas;

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9 descaso e fuga do ambiente escolar, evidente nos três últimos anos, quando começamos a procurar aprender a prática médica fora da escola;

9 aceitação passiva do ensino estabelecido, como forma de não se comprometer com os problemas comuns e de resolver os problemas individuais.

Entendemos por “Educação Médica” o processo integrado de ensino e aprendizado que deve proporcionar os instrumentos intelectuais, a disciplina científica e a estrutura criadora necessária à formação dos recursos humanos no setor saúde.

Por sua vez, didática significa as técnicas usadas para pôr em prática os métodos de ensino. Assim, professor é aquele que usa de artifícios visuais, auditivos e da palavra, para bem minis-trar o conteúdo de uma aula. Logo, todo professor, para fazer jus a sua condição, deve ser didático. E também um aluno, que, usando de técnicas de transmissão, expõe um assunto, torna-se momentaneamente um professor do assunto.

Pelo Regimento Interno da FCM-UEG, o curso médico está estruturado em sete departamentos. E quando falamos em ensino, em Departamento, em cadeiras isoladas e em sistemas e órgãos, queremo-nos referir à organização do curso, e não à sua estrutura administrativa.

Assim, por exemplo, sabemos que do Departamento de Fi-siologia fazem parte as cadeiras de bioquímica, fisiologia, farma-cologia e biofísica. No entanto, a programação de cada uma dessas cadeiras é feita isoladamente.

É o que chamamos de ensino por cadeiras isoladas. Logo, Ensino por Cadeiras Isoladas, por Departamento ou por Sistemas e Órgãos não exclui a estruturação Departamental.

A partir dos dados obtidos no Inquérito, após avaliação, na análise das incidências, observou-se que:

O principal instrumento ou meio de aprendizado na FCM é o livro.

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Título Provisório 77

A prática nas enfermarias constitui-se no único instrumento significativo oferecido pela escola.

Isso porque as aulas, de modo geral, o currículo, sem ne-nhuma conexão entre a teoria e a prática, e a orientação dos professores foram considerados maus instrumentos para o aprendizado.

O ensino não permite um bom aproveitamento e, além dis-so, traz uma sobrecarga horária.

Nas aulas teóricas, a maioria dos estudantes se sente ente-diada e com sensação de perda de tempo. Reivindicam, portanto, menor número de aulas teóricas, ou sua substituição por estudo orientado por livros.

Os alunos esperam dos professores que eles desenvolvam uma aula onde o debate seja fundamental e, surpreendentemente, querem debater com peritos no assunto.

As aulas práticas são mais bem recebidas que as aulas teóricas.Os alunos da FCM mostram-se sensíveis a novos métodos

de ensino, considerando o debate eficaz na promoção do aprendi-zado, o qual, no entanto, deve obedecer a certas normas didáticas para alcançar seu pleno desenvolvimento.

A partir do exame das incidências os alunos acham que exis-tem professores que não deveriam dar aulas de espécie alguma.

O sistema de ensino por cadeiras isoladas, existente na FCM, é visto negativamente pelos alunos, pois oferece oportuni-dade ao catedrático de elaborar e executar isoladamente seu pró-prio programa de ensino, sem preocupar-se em integrá-lo com outras cadeiras.

Entre as três opções oferecidas no questionário, a mais valo-rizada foi o ensino por sistemas e órgãos, devendo o programa ser elaborado por todas as disciplinas necessárias ao aprendizado de determinado assunto. Este sistema de ensino foi também conside-rado o processo mais racional de avaliação do aprendizado.

De uma perspectiva teleológica, isto é, dos estudos das fi-nalidades, até hoje o trabalho feito pelos alunos da FCM-UERJ

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é um dos mais instigantes questionamentos já feitos ao currículo médico em todo o território brasileiro.

Em vista das análises feitas, os estudantes se propuseram a lutar pela reestruturação do ensino médico, ouvindo, inclusive, a opinião dos que consideravam o sistema de ensino vigente bom e o ensino por sistemas mais uma tolice da esquerda festiva.

Segundo André Jorge Rodrigues Campello, que atuou no grupo de estudo do currículo com o estudante, o trabalho foi organizar questionário de avaliação do ensino cadeira por ca-deira e professor por professor. Depois recolher as respostas e organizar tabelas e gráficos com elas, que ficaram expostas em grandes painéis na parte aberta da Faculdade durante muito tempo. Muitas reuniões eram feitas com professores, alunos e convidados (especialistas em ensino ou diretoria da Associa-ção Brasileira de Ensino Médico, que já estudava o assunto há algum tempo). O clima dos debates era pacífico, todos que-riam debater o que deveria ser uma faculdade de medicina e se opunham várias ideias sobre medicina e saúde, a visão antiga, baseada no médico individual, e a visão “nova” (nova no Bra-sil) de que a medicina passaria a ser um sistema de saúde, e o médico deveria ser preparado para isso. Essa simplificação não resume todos os diferentes pontos de vista debatidos durante meses (os alunos passavam o dia todo na faculdade, de 8 às 5 horas, e esse era um dos grandes méritos da FCM-UERJ). Ha-via também a questão médico especialista x médico generalista, medicina como causa de doença, epidemiologia (que também era assunto novo no Brasil), medicina socializada nos países capitalistas e nos países socialistas.

Quando os professores viram suas disciplinas criticadas em cartazes enormes, sentiram-se desnudados e reagiram para tentar conter os problemas em seus redutos. Mas, à medida que aumen-tava a participação, o trabalho sobre o currículo passava a ser, em circunferência cada vez maior e profunda, a pedra angular das de-cisões estudantis.

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Título Provisório 79

A faculdade havia crescido nos últimos seis anos, e o corpo docente não havia crescido em proporção. O crescimento do hos-pital havia sido quatro vezes superior ao setor técnico e docente.

O desaparecimento da expressão “Liberdade da cátedra” da Constituição de 1967, antes que a Ciências Médicas tivesse tempo de substituir totalmente aquela geração de catedráticos, forçava a faculdade a passar a funcionar, de fato, em regime de Departamen-tos. A cátedra vitalícia se caracterizava pelo poder ungido ao cate-drático de indicar, sem concurso público, todos os seus assistentes, o que em tese submeteria os docentes a todos os pensamentos e diretrizes do catedrático. Mesmo depois da abolição da cátedra, ao menos até meados dos anos 80, os professores titulares mantive-ram esse poder na FCM-UERJ.

Nessa conjuntura, não havia como evitar o debate. Nas fé-rias de julho, no anfiteatro central do Hospital de Clínicas, foi rea-lizado um seminário com o seguinte temário:

TEMA I – “O regimento da Fundação e as Universidades Brasileiras (UB)”

Questionavam-se quais as vantagens e desvantagens da apli-cação do regime de FUNDAÇÃO na UB, se o auxílio do capital estrangeiro devia ser recusado, se os referidos auxílios acarreta-riam qualquer prejuízo sob o ponto de vista nacional, se o regi-me de Fundação propiciaria remuneração mais digna aos corpos docentes.

TEMA II – “A crise educacional das universidades brasileiras”

Questionavam-se os docentes em face das reivindicações dos estudantes, se os estudantes tinham razão na insatisfação com os métodos de ensino vigentes, se as reivindicações dos estudantes significavam quebra da disciplina, que tipo de apoio lícito e eficaz devia o Corpo Docente prestar ao estudante.

TEMA III – “A gratuidade do ensino universitário”Questionava-se, considerando todas as regalias dos alunos

das escolas militares, se seria defensável a exigência de anuidades

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dos alunos das nossas universidades, como se encarava a conces-são de bolsas de estudos aos estudantes necessitados, se, sob o ponto de vista democrático, seria válido as universidades estabele-cerem distinção entre alunos pobres e ricos.

TEMA IV – “Prioridade das reivindicações do corpo docente”Questionava-se, basicamente, a necessidade do regime de

tempo integral; se o serviço exigido pela UEG (12 horas por se-mana) seria suficiente para o bom funcionamento das cadeiras; ou se o aumento substancial dos salários resolveria os problemas do corpo docente.

O seminário teve a participação dos corpos docente e dis-cente e marcou o início da luta pela comissão paritária.

O que se discutia eram os modelos de universidade idealiza-dos por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, nos quais os estudantes também se preparavam, em suas áreas, para os problemas sociais que teriam de fazer em face de suas profissões, e o modelo defen-dido por figuras exponenciais da UEG (futura UERJ) como João Lyra Filho, Oscar Tenório e Wilson Choeri e de outras universida-des, inclusive as católicas, cujo “ideário” era o de formar profissio-nais para o mercado, sem considerar, por exemplo, na formação médica o estudo das políticas de saúde, a miséria e a fome.

Paralelamente às discussões sobre o ensino ocorreu a greve pela construção de vestiários para os alunos e alunas da Ciências Médicas, que culminou com a troca de roupas no Gabinete do Di-retor Américo Piquet Carneiro. As estudantes e os estudantes tam-bém ficaram em trajes de baixo o tempo suficiente para colocarem suas saias, calças e jalecos, a intenção era o protesto puro contra o não atendimento de uma reivindicação antiga, motivadora já de al-gumas paralisações, antes nem sequer consideradas com seriedade.

Houve uma estudante, Jane Corona, hoje médica nutróloga, um tanto hesitante em despir-se (na realidade ficar seminua, como se de biquíni, com duas peças):

– Tenório, eu nunca fiquei nua na frente de ninguém!– Agora não é hora de hesitar, companheira, isso é ideológico.

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Título Provisório 81

O impacto da manifestação foi muito grande e todos os alunos da faculdade foram suspensos por um dia. Os professores João Cardoso de Castro, Paulo de Carvalho e Wilson Marques de Abreu constituíram Comissão Disciplinar para apurar responsabi-lidades, mas ou não conseguiram ou não quiseram apurar respon-sabilidades individuais sobre o episódio.

Sobre a greve dos vestiários o ex-aluno Valter Ferreira Duarte Filho, em seu depoimento, escreveu o seguinte:

Quanto ao movimento estudantil a Faculdade de Ciências Mé-dicas tinha seus problemas particulares, como era obrigatório o uso de uniforme branco, para trocar de roupa usava-se como vestiários um sobrado do Boulevard 28 de setembro e duas casas da Rua Felipe Camarão. Por isso, reivindicava-se um vestiário na própria faculdade e, como questão relativa à formação médica, discutia-se fazer uma reforma curricular para que fosse adequada à realidade brasileira. Em princípio, nada que vinculasse aqueles problemas a causas revolucionárias. A princípio, à parte algum possível “teórico de esquerda”, ninguém estava pensando nisso. Com o decorrer do movimento estudantil, porém, esse vínculo veio a acontecer.Construiu-se um vestiário com material pré-fabricado e, logo de cara, num prenúncio da maior vinculação com os fatos exter-nos que ainda viria, deram-lhe o nome do estudante assassinado, mas de modo equivocado: em vez de Edson, escreveram à tinta com auxílio de formas metálicas “Nelson Luís de Lima Souto”, corrigindo dias depois. No mais, de maneira dispersa, vários es-tudantes da FCM foram para as passeatas e protestos, creio eu com alguns já participando ou começando a participar das orga-nizações “de esquerda” clandestinas.

A greve dos vestiários foi um momento de descontração an-tecedente a um movimento vitorioso, resultante, enfim, na cons-trução dos vestiários, mas nenhum aluno ou professor poderia imaginar o que ainda estava por acontecer em 1968. Michel Assbu ouviu do Professor Américo Piquet Carneiro apenas uma crítica à greve do vestiário: “Arroubos da juventude”.

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Meados da crise

Quando a utopia se afastada tradição há crise.

Paul Ricouer

No início de junho de 1968, o movimento estudantil come-çou a organizar um número cada vez maior de manifestações pú-blicas. No dia 18, uma passeata, que terminou no Palácio da Cultu-ra, resultou na prisão do líder estudantil Jean Marc Van der Weide. No dia seguinte, o movimento se reuniu na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) para organizar novos protestos e pedir a libertação de Jean e de outros alunos presos. Mas o resultado foi a detenção de 300 estudantes, ao final da assembleia.

Três dias depois, uma manifestação estudantil, em frente à embaixada norte-americana, gerou um conflito que terminou com 28 mortos, centenas de feridos, mil presos e 15 viaturas da polícia incendiadas. Aquele dia ficou conhecido como “Sexta--Feira Sangrenta”.

Diante da repercussão negativa do episódio, o comando militar acabou permitindo uma manifestação estudantil, marcada para o dia 26 de junho. Segundo o general Luís França, 10 mil po-liciais estariam prontos para entrar em ação, caso fosse necessário. Logo pela manhã, os participantes da passeata já tomavam as ruas da Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro. A marcha começou às 14 horas, com cerca de 50 mil pessoas. Uma hora depois, esse número já havia dobrado.

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Além dos estudantes, também artistas, intelectuais, políti-cos e outros segmentos da sociedade civil brasileira engrossaram a passeata, tornando-a uma das maiores e mais expressivas mani-festações populares da história republicana brasileira. Quase 300 intelectuais, abrangendo escritores, teatrólogos, cineastas e jorna-listas, representados oficialmente pelo psicanalista e escritor Helio Pellegrino, haviam conseguido, em entrevista com o Governador Negrão de Lima, a manifestação pacífica da população, em detri-mento da repressão militar e do terror do Estado.

Ao passar em frente à igreja da Candelária, a marcha inter-rompeu seu andamento para ouvir o discurso inflamado do líder estudantil Wladimir Palmeira, em lembrança à morte de Edson Luís e cobrando o fim da ditadura militar.

Tendo à frente uma enorme faixa, com os dizeres: “Abai-xo a Ditadura. O Povo no poder”, a passeata prosseguiu, duran-te três horas, encerrando-se em frente à Assembleia Legislati-va, sem conflito com o forte aparato policial que acompanhou a manifestação popular, ao longo de todo o seu percurso. Em pontos estratégicos Wladimir Palmeira subia na capota de um carro e discursava.

Pessoal, a gente é a favor da violência quando ela é aplicada para fins maiores. No momento, ninguém deve usar a força contra a polícia, pois a violência é própria das autoridades, que tentam por todos os meios calar a voz do povo. Somos a favor da vio-lência quando, através de um processo longo, chegar a hora de pegar nas armas. Aí, nem a polícia, nem qualquer outra força repressiva da ditadura poderá deter o avanço do povo.

No mesmo dia, na capital do País, a polícia invadia a Univer-sidade de Brasília (UnB).

No fim da passeata havia a perspectiva de prenderem Wladimir Palmeira. Cientes daquele risco, os estudantes arma-ram um esquema para evacuação do líder, sem risco. Luiz Ro-berto Tenório deu fuga ao líder Wladimir Palmeira na direção

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do carro de seu pai. No dia seguinte, ao ir trabalhar, o delegado Rui Tenório foi preso. Ao ser interceptado por policiais, mos-trou sua carteira e disse:

“Eu não posso ser preso, porque sou Delegado”.“Não interessa, o Chefe mandou levar esse carro e nós va-

mos levar.”Ao chegar ao DOPS, como era Delegado, logo foi liberado.

Mas à noite, em casa, recomendou ao Tenório:“Toma mais cuidado, meu filho”.Segundo relato do próprio Wladimir Palmeira:

Os jornais da época falam dos meus grandes esquemas de se-gurança... Coisa nenhuma. Eu não queria ninguém em volta de mim, achava desnecessário e inútil, a não se que se montasse um aparato brutal. Mas numa manifestação pacífica isso não fazia o menor sentido. Para dizer a verdade, nem carro a gente tinha para sair. Na hora de ir embora, pegamos o fusca do Luiz Te-nório – que depois foi Presidente do Sindicato dos Médicos – e saímos por trás, pela Praça XV. Seguimos direto para Botafogo e o Tenório me deixou por ali, numa esquina qualquer – para não saber onde eu iria dormir – e continuou viagem.Quer dizer, nesse dia ainda tentaram me prender. A sorte é que o carro, na verdade, pertencia ao pai dele, um alagoano – por sinal amigo de minha família – que era delegado em Copacabana. Deu uma confusão da peste. Ainda hoje a gente se diverte quando o Tenório relembra esse episódio.

Aqui, cabe um parêntese importante: quem desejar com-preender com profundidade o ano de 1968 no Brasil, da mesma forma que os leitores que não têm tempo para ler nada tiveram a recomendação de Harold Bloom para pelo menos lerem Shakes-peare, leiam os livros 68 mudou o mundo, de Márcio Moreira Alves, e 1968: O diálogo é a violência: movimento estudantil e ditadura militar no Brasil, de Maria Ribeiro do Valle.

Fritz Utzeri, também ex-aluno da Ciências Médicas, pre-sente na passeata dos cem mil como estudante, quando ajudou a conseguir megafone para o líder Wladimir Palmeira, mas que

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enfim opina sobre a história da passeata dos cem mil, também em 2008, quarenta anos depois, na condição de jornalista; distan-ciado do tempo histórico e com o bom senso, sempre incisivo, de suas matérias e escritos: “Já no dia 04 de julho, quinta-feira, uma nova passeata ganhava as ruas da cidade – ficou conhecida como a dos ‘60 mil’. Era uma multidão considerável, porém uma perda igualmente importante”.

Quando a “Comissão dos 100 mil” foi a Brasília e acabou se envolvendo em um ridículo episódio de bravatas, a ironia pre-sidencial, mesmo de alguém tão rústico como Costa e Silva, não podia deixar de pensar que 40 mil já haviam desistido. Foi o pri-meiro erro das lideranças. Mas Wladimir e Elinor Brito levaram a multidão para o pátio do MEC, e o ministro da Educação, Tarso Dutra, mandou dizer que receberia uma comissão de estudantes.

“Olha aí, pessoal (“pessoal” era a marca registrada da ora-tória do Wladimir), o ministro está convidando a gente para subir. Nós achamos que ele é quem deve descer.”

Novo erro e que chegou ao ponto de os estudantes darem cinco minutos para que o ministro descesse. Como isso não acon-teceu (escreve Fritz Utzeri em um trecho bem mais adiante): “Ne-nhum acordo saiu, e o movimento começou a radicalizar e perder o apoio popular”.

Claro que atender às exigências de que tal comissão repre-sentativa dos estudantes se compusesse de terno e gravata era im-possível, tais formalidades exigidas pelos donos do poder, ade-mais, além de serem um insulto à juventude, não garantiam aos líderes segurança de liberdade individual se entrassem no prédio do ministério. Wladimir Palmeira sabia-se caçado.

Na reunião do Conselho Departamental da FCM-UEG no dia 8 de agosto de 1968, quando Gilberto Hauagen Soares comunicou a proximidade das eleições para o CASAF, infor-mou ainda que fora detido, sábado, com dois colegas. Chegan-do à polícia, havia um processo sobre “O PLANTÃO”, órgão oficial do CASAF, acerca de um artigo forte contra as forças

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armadas, no qual havia a foto de uma criança desnutrida atrás de um soldado armado, numa demonstração icônica e textual do descalabro político da ditadura em um Brasil que ainda hoje tem tantos problemas sociais e vivia em um Estado Antissocial. Uma comissão de inquérito do DOPS estava apurando, junto à Dire-toria do CASAF, qual o autor do artigo; se não fosse apontado, todo o CASAF poderia ser enquadrado na Lei de Segurança Na-cional. Só tinha a lamentar um fato: ficara dois dias detido, sem condições de higiene, fechado de todas as maneiras. Nessa hora, sentiu-se envergonhado de ser brasileiro.

Contra essa ação repressora incisiva foram empossados os novos membros que constituíram a Diretoria do Centro Acadêmi-co Sir Alexander Fleming, assim formada:

9 Presidente: João Lopes Salgado; 9 Vice-Presidente: André Jorge Campello Rodrigues Pereira; 9 1ª Secretária: Jane Corona; 9 2º Secretário: Celso Moreira de Souza; 9 Tesoureiro Geral: João Ramos da Costa Andrade.

Na segunda reunião do Conselho Departamental após a posse (142ª reunião do CD de 05.09.1968), o Reitor João Lira Fi-lho reiterou a solicitação de atendimento ao seguinte ofício subs-crito pelo Delegado Manoel Vilarinho:

... tendo sido apreendido na Leme-Gráfica Editora Ltda. um bo-letim com o subtítulo “Semanário de Informação do CASAF”, Departamento de Imprensa, e que se encontra anexado aos au-tos do Inquérito Policial n. 23/68, solicito providências urgentes de V. Exa, no sentido de informar a esta delegacia, situada no 3º andar do prédio da Rua da Relação, qual o responsável pelo refe-rido Departamento do CASAF. (O Departamento de Imprensa)

Abram-se aqui parênteses de gratidão: felizmente, havia na Ciências Médicas o Professor Américo Piquet Carneiro, a impedir

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que autoridades superiores ao mestre, dentro da então UEG, vies-sem a obter informações sobre alunos e suas atividades estudantis. O relato é de José Ribamar Bessa Freire:

Na polícia, havia sido formalizado um processo sobre O Plantão, órgão oficial do Centro Acadêmico, por causa de um artigo con-siderado subversivo. Toda a diretoria do CASAF foi ameaçada de enquadramento na Lei de Segurança Nacional. Ainda no mês de agosto, o delegado do DOPS, Manoel Vilarinho, invadiu a Leme Gráfica Editora Ltda. e confiscou os exemplares de um boletim com o subtítulo “Semanário de Informação do CASAF – Departa-mento de Imprensa”. Foi aberto o Inquérito Policial n. 23/68. A partir daí, o delegado do DOPS, em repetidos ofícios, começou a pressionar o Reitor João Lyra Filho para que fornecesse os nomes dos responsáveis. No dia 30 de agosto de 1968, o Reitor da UEG, João Lyra Filho, enviou ofício ao diretor da FCM, pro-fessor Américo Piquet Carneiro, pedindo “em caráter de urgência”, informações sobre o responsável pelo Departamento de Imprensa do CASAF e sobre o Livro de Caixa do Centro Acadêmico, ex-plicitando que era “para atender solicitações do DOPS”. Durante um mês, nenhuma palavra saiu da FCM para delatar os alunos. No dia 29 de setembro, outro ofício do Reitor João Lyra Filho in-sistia nas “providências urgentes”, alertando o seu diretor, Américo Piquet Carneiro, para a “gravidade da situação”.

O Reitor advertia: “Ainda não tenho resposta ao ofício nº 270 de 30 de agosto. Trata-se de matéria grave. Nossa omissão importará em cumplicidade”.

As respostas a tais solicitações nunca foram enviadas. O professor Piquet Carneiro resistiu a todas as pressões. Um ano de-pois, em agosto de 1969, instalou-se na FCM um Inquérito Policial Militar (IPM), atingindo estudantes de todas as séries e o próprio professor Américo Piquet Carneiro, acusado de “proteger estu-dantes subversivos”. Piquet, muito querido pelos estudantes por sua competência profissional e pelos valores éticos que defendia, havia lutado para a UEG ter seu Hospital de Clínicas e pela me-lhoria do ensino.

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De fato, se houve um humanista completo no professorado da Ciências Médicas, este foi o Prof. Américo Piquet Carneiro, sempre solidário, deveria ter servido de referência aos demais pro-fessores, não apenas por ser um herói humílimo e sem vaidades, mas, principalmente, por ser um homem de grande consciência social, cristão progressista e sujeito de diálogo.

No dia 12 de setembro, o Conselho Departamental resol-veu não autorizar a formação da comissão paritária. O Reitor e os professores não haviam comparecido à sessão onde o assunto seria mais uma vez debatido, o que levou os estudantes a saírem às ruas próximas em passeatas, levando a reitoria a modificar a sua conduta e, a princípio, ser favorável à criação da comissão.

No projeto, a comissão paritária se subdividia em três ou-tras comissões compostas de professores, assistentes e alunos, na proporção de 1/3 de cada categoria, para tomar conhecimen-to e examinar as aspirações do corpo discente e formular pro-postas. As três comissões seriam constituídas com a finalidade assim discriminada:

9 Comissão de currículo, composta de quatro professores, quatro assistentes, designados pelo Diretor, e quatro alunos eleitos por seus pares.

9 Comissão de verificação de aprendizado, com composição de tipo idêntico ao anterior.

9 Comissão de finanças, para tratar de todos os problemas re-lativos a verbas, salários, tempo integral e quaisquer outros assun-tos que envolvessem questões orçamentárias, sendo a composição também do mesmo tipo das anteriores.

Além das comissões, funcionaria um Conselho Misto, sob a Presidência do Diretor da FCM, constituído por seis professores e seis alunos, cuja função seria aprovar e metodizar a aplicação das resoluções tomadas pelas comissões nas várias etapas necessárias. Do ponto de vista teleológico, isto é, dos estudos das finalidades,

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as proposições sobre o currículo médico, feitas pelo estudo, são até hoje pertinentes em tudo relacionado com um bom exercício de aprendizado da prática médica, da arte médica.

As deliberações das comissões seriam tomadas por 2/3 dos votos mais um.

O Professor Américo Piquet Carneiro designou uma co-missão de entendimento, constituída pelos professores Jayme Landmann, Aloysio de Paula, Ítalo Suassuna, Hélio Hungria e João Cardoso de Castro, para travar conversação com o corpo discente e viabilizar o plano. Essa comissão teve duas reuniões com uma comissão de cinco alunos, designados por assembleia estudantil, da qual os professores também participaram. Os alunos da FCM estavam em greve para estudar as condições de ensino da Faculda-de, greve tão somente de presença, sem que fossem realizadas as provas de aferição de conhecimentos que não eram consideradas fundamentais ao ensino. Os estudantes compareciam à escola, mas não cumpriam as atividades acadêmicas formais nem assinavam listas de presença.

Na realidade, a comissão reunira-se não para pensar sobre os questionamentos da formação médica. Citava-se o exemplo da Faculdade de Ciências Econômicas Cândido Mendes, onde os alu-nos haviam voltado às aulas 48 horas após terem conseguido a comissão paritária. A reunião ocorrera para dar saída ao impasse que, caso permanecesse, levaria à reprovação geral dos alunos da Faculdade. Tratava-se de um subterfúgio tático para impedir a cria-ção de um órgão que contestasse. O comportamento arredio dos docentes fez todo o trabalho perder o seu significado, encerrando--se, antes de se efetivar, a discussão sobre a reestruturação pedagó-gica da Ciências Médicas.

Fora muito significativa a participação da FCM na passeata dos cem mil, realizada em 26 de junho de 1968, ao ponto de as principais lideranças saudarem a chegada dos seus alunos. Mui-to aplaudidos ao chegarem numerosos com a palavra de ordem “Abaixo a ditadura”.

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João Lopes Salgado olha para a Estátua da Liberdade. São os preparativos do dia de protesto contra as prisões ocorridas no Congresso da UNE em Ibiúna.

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Em frente ao Hospital Pedro Ernesto o discurso do último Presidente do CASAF, João Lopes Salgado.

Já dentro do hospital, os estudantes protestam. À direita, Luiz Roberto Tenório, Presidente do CASAF, gestão 65/66.

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1968 – O ano que terminou mal

A morte ensina à sombracomo habitar as coisas,

seduzi-las, e a sombra, à mortecomo, tocando-as, consumi-las.

Claudio Neves

Aproximadamente quatro meses depois da passeata dos cem mil, a prisão dos estudantes que participaram do XXX Con-gresso da UNE, iniciado clandestinamente num sítio em Ibiúna, no sul do Estado de São Paulo, aumentou o clima de revolta. O CASAF organizou o Dia Estadual de Protesto, 22 de outubro de 1968, Ato de Repúdio aos fatos ocorridos em Ibiúna. Na assem-bleia de programação do ato, prenunciando que a violência ia-se manifestar, André Jorge Rodrigues Campello Ferreira apresentou proposta contrária, por opor-se à sua realização ex-mura, votou também para que a manifestação se restringisse à área interna da faculdade, foi derrotado nas duas votações. No dia marcado, pela manhã, foi exibido o filme “Os Companheiros”. Às 13 horas, os estudantes saíram às ruas para a inauguração da “Estátua da Liber-dade – Brasil-68”: um boneco PM cinza, de capacete azul, tendo na mão direita o cassetete em riste, na esquerda a metralhadora abraçada, pendurado na árvore da entrada de automóveis do Hos-pital Universitário Pedro Ernesto. O Presidente da extinta UME, Carlos Alberto Muniz, explicou: “Esta estátua não representa ape-nas uma crítica à PM, mas à repressão de toda a estrutura atual do

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Governo, que mantém o nosso sistema econômico e o Relatório Meira Matos”.

Logo no início das manifestações, surgiram os carros do DOPS. Os policiais desceram das viaturas atirando. Os estudantes se armaram com pedras. Os estudantes resolveram entrar, para reorganizar a manifestação, e sair, então, em passeata. Apareceu nova viatura do DOPS com os policiais atirando. Apanhados de surpresa, os jovens correram para o portão da escola, pegaram pe-dras e iniciaram a defesa. A luta prosseguiu com os policiais atiran-do de bem perto. Novos estudantes foram feridos; um estudante da Faculdade foi ferido a bala na cabeça. Os alunos da Faculdade atacaram um policial, deixando-o ferido, e refugiaram-se no Hos-pital. Segundo André Jorge Rodrigues Campello, o tiro que ma-tou Luiz Paulo da Cruz Nunes não foi acidental, Luiz Paulo, alto, forte, boa praça, estava próximo ao grupo de lideranças em volta do Presidente do CASAF, alguns dos quais cuidavam também da segurança de João Lopes Salgado, caso viessem arrancá-lo à força para prendê-lo. Até hoje Salgado se diz abençoado por nunca ter sido preso, porém se tivesse comparecido ao Congresso da UNE em Ibiúna, onde seria discutida primordialmente a perspectiva da luta armada não só contra a ditadura, mas pela tomada do poder e implantação da ditadura do proletariado, por sua condição de sargento da aeronáutica, Salgado crê na possibilidade de que se-ria morto. De volta à cena no portão da faculdade, teatro de um campo de batalha, outros estudantes foram feridos a esmo, sem intenção precisa de matar, talvez.

No interior do Hospital, organizavam-se grupos com tare-fas definidas, como, por exemplo, alimentação, segurança e im-prensa. Enquanto os estudantes baleados eram operados no 5º andar, a PM chegava para reforçar o policiamento do DOPS; nos fundos da Faculdade, postaram-se três batalhões de choque. O Di-retor da Faculdade, Prof. Américo Piquet Carneiro, tentava retirar o policiamento do local. Os policiais alegavam que só iriam embo-ra quando fossem devolvidas as armas – calibre 38 e 32 – tiradas

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pelos estudantes. Os estudantes, reunidos em assembleia no refei-tório, disseram não dispor de nenhuma arma para devolver e que permaneceriam no Hospital até a saída da polícia.

Pouco depois, após ter recebido telefonema do Reitor da UEG, Ministro João Lyra Filho, que já se encontrava no local, chegava ao Hospital o General Antônio Pires de Castro, que, na presença de professores e estudantes, no gabinete do Prof. Piquet, estabeleceu diálogo com o Reitor, sem chegar a nenhuma conclu-são, ficando resolvido que o Reitor iria diretamente ao Governa-dor Negrão de Lima. Antes de o General se retirar, os estudantes o fizeram prometer que o Hospital não seria invadido enquanto o Reitor falava com o Governador. Ao se despedir, estendendo a mão ao Presidente do CASAF, João Lopes Salgado se recusou a “apertar a mão de uma autoridade que participa da repressão”; o General respondeu energicamente: “Eu sou também brasileiro, meus filhos”.

Às 20 horas, o senhor Negrão de Lima recebeu os jorna-listas em seu gabinete. Vários boatos haviam surgido na antessala do Governador, dando conta de que o Secretário de Segurança e o Reitor da UEG dirigiam-se para o Palácio Guanabara, o que não aconteceu. A resolução fugia da alçada do Governador para esferas superiores. O estudante baleado na cabeça, Luiz Paulo da Cruz Nunes, do segundo ano de medicina, morreu às 21h40min, depois de ter sido submetido a uma neurocirurgia, no Hospital Pedro Ernesto.

No dia seguinte, o jornal O Globo publicou o editorial “ÓDIO IMPORTADO”:

Publicamos, no sábado, reportagem sobre o frustrado Congres-so da UNE, na qual transcrevemos trechos de dois documentos básicos daquela reunião em Ibiúna. É oportuno reproduzir aqui e agora dois parágrafos de dois desses documentos:“A organização dos estudantes nas manifestações de rua é ou-tro ponto importante, ao qual devemos atentar constantemen-te. Esta organização deve estar voltada fundamentalmente para

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garantir os objetivos políticos da manifestação, sendo claro que isto significa principalmente estar preparado para a prática da violência”.Esta organização aí mencionada é a Organização Continental Latino-Americana de Estudantes (OCLAE) sediada em Havana, e mentora da Ex-UNE.“Hoje, quando as condições subjetivas dos outros setores do povo ainda não estão suficientemente amadurecidas, só se pode conseguir manifestações de envergadura quando o próprio go-verno fornecer um motivo através da repressão desabusada, morte, etc.”Este último trecho consta do “programa da nova UNE”, igual-mente debatido no Congresso de Ibiúna, repentinamente inter-rompido pelos motivos conhecidos.Verifica-se, portanto, que Havana, mentora da ex-UNE, manda que os seus agentes no Brasil estejam preparados para a “PRÁ-TICA DA VIOLÊNCIA”. O texto nº 2 ensina que as “Mani-festações de envergadura”, isto é, aquelas de rua, “só se podem conseguir” através da “morte, etc.”.Ontem, no Bairro de Vila Isabel, foi realizado o primeiro teste da aplicação da nova “Linha de Ibiúna-Havana”. Chefiou a em-preitada um agitador profissional estranho à escola, escolhido para a baderna.Reparem a malignidade da seleção do local das arruaças: um hospital vizinho à Faculdade de Medicina. Por aí já se percebe que os estudantes de medicina não foram os autores do “progra-ma”, pois seriam os últimos a indicar um hospital como teatro de agitações.Quem perturba a vida de um Hospital terá de ser apoliticamente reprimido. Os próprios “playboys” costumam respeitar a placa “Silêncio – Hospital”. Portanto, em qualquer regime, autores de desordens à porta de uma casa de saúde teriam de ser castigados.Foi o que doze policiais tentaram fazer. Foram, porém, agredidos por mais de duas centenas de agitadores, que haviam recebido instruções de seus líderes para agir com violência (dentro das Instruções do OCLAE-UNE).Pode-se imaginar o drama vivido por dezenas de doentes, mé-dicos e enfermeiras, sobressaltados com a fúria de baderneiros com que embriagados pelo fel do ódio importado.Os verdadeiros estudantes – especialmente os de medicina – es-tão convidados a denunciar publicamente esses cruéis grupos de assalto que agem em seu nome.

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Comício à porta de hospital é desumanidade. “A opinião pública repudia esses bárbaros que a desrespeitam.”

Apesar da retórica forte, quanto à questão da OCLAE-UNE não havia mentira, hoje é reconhecida a influência de Cuba, dos Castro e Che Guevara sobre a geração dos anos sessenta do sécu-lo XX, da qual alguns representantes, atuantes politicamente ou não, ainda creem na ditadura do proletariado e no dito socialismo científico, que, visto a partir de uma mentalidade estalinista, dog-maticamente fundamentalista, levaria à luta armada várias pessoas daquela geração, ainda hoje tão auto-heroicizada e consequente-mente também heroicizada, apesar dos enormes equívocos come-tidos, inclusive a morte de inocentes e o agravamento da repressão.

Logo em seguida, o Prof. Américo Piquet Carneiro, Diretor da FCM, e o Prof. Jayme Landmann, Diretor do Hospital de Clíni-cas, emitiram, em conjunto, no Boletim da UEG, n. 30 de outubro de 68, a seguinte Nota Oficial:

A Faculdade de Ciências Médicas, em nome do seu corpo docen-te e corpo médico do Hospital de Clínicas, associa-se ao protesto feito pelo Reitor da UEG contra a brutal agressão policial desen-cadeada contra estudantes, em manifestações pacíficas, que cul-minou com a morte de um acadêmico de medicina e ferimentos graves em mais sete estudantes. Expressa, também, o repúdio ao fato inédito do ataque ao hospital com bombas de gás lacrimogê-neo e projéteis de armas de fogo, sem levar em conta os doentes internados, inclusive crianças recém-nascidas. Professores, edu-cadores e médicos, profundamente preocupados, esperam das autoridades medidas que protejam efetivamente o livre exercício das atividades universitárias, indispensáveis à construção de um destino melhor para o país.

O fato tingiu de sangue a UEG, cujo repúdio se manifestou através da Nota Oficial, emitida pelo Reitor João Lyra Filho:

A Universidade do Estado da Guanabara está de luto em face dos deploráveis acontecimentos ocorridos na tarde de hoje,

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dentro de sua Faculdade de Ciências Médicas, e com extensão, sobretudo, na área do respectivo Hospital de Clínicas. Todos deploramos ao extremo o comportamento dos agentes policiais que invadiram à bala e com lacrimogêneo as dependências da fa-culdade. Esperamos que as autoridades, mais uma vez alertadas, adotem providências drásticas no sentido de punir aqueles que, vindos de fora, conturbam mortalmente o clima de sinceridade da juventude universitária.

No dia seguinte, os estudantes da FCM-UERJ saíram em passeata para comparecer às exéquias de Luiz Paulo da Cruz Nu-nes. Entraram em conflito com a polícia, perto da Praça da Ban-deira, de um prédio em construção caiu um operário morto, atin-gido por um tiro, o que piorou a situação. Mas graças à estudante Evelyn Eisenstein, ao saber da decisão da família em antecipar o funeral em 1 hora e meia, a passeata não seguiu em frente, pro-vavelmente o recuo evitou mais mortes. No mesmo dia que Luiz Paulo da Cruz Nunes foi morto, outro estudante recebeu uma ba-lada no flanco, o rim foi atingido e, apesar da gravidade da lesão e da perda de um rim, o futuro dentista sobreviveu após passar cerca de dois meses internado no HUPE-UERJ.

Dilson Pires, o estudante de odontologia ferido, já partici-para dos protestos contra o homicídio do estudante Edson Luiz de Lima Souto. Fez uso de estreptomicina durante sua internação, antibiótico que lhe causou perda parcial da audição, mais tarde, ao verificar sua ficha do DOPS, checou que não era considerado sub-versivo, mas não pensou em pedir reparação financeira ao Esta-do, como tantos fizeram, às vezes por motivos menos graves. Sua formação toda, como estudante, acontecera em escolas públicas e gratuitas, não se sentiu bem em mover ação contra o Estado. Os outros seis feridos foram atendidos e liberados.

Carlos Alberto Muniz, Presidente da União Metropolitana de Estudantes, encontrava-se na Ciências Médicas e precisava sair dali de qualquer jeito. Tenório e Duque, dois dos Ex-Presidentes do CASAF, articularam a fuga do líder estudantil. O residente chefe

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de plantão era o Dr. Michel Assbu, hoje renomado nefrologista em Vitória, Espírito Santo. A faculdade estava cercada por policiais.

Carlos Alberto Muniz deitou-se na maca.Michel Assbu disse: “Vocês não podem levar a ambulância”.Tenório ripostou: “Michel, agora eu não posso polemizar

com você, nós vamos levar a ambulância!”. Segundo Michel Assbu, não foi bem assim, os estudantes e residentes negociaram a saída de ambulância sem conflitos ou óbices, apenas priorizando antes a saída eventual de doentes reais.

Duque reforçou a decisão com uma assertiva em gesto, as-sumiu o volante da ambulância e o motor roncou. Um estudante de nome Rodolfo fez papel de enfermeiro e “cuidou” de Carlos Alberto Muniz deitado na maca, e assim foi feita a “evacuação mé-dica” do líder estudantil de dentro da área tumultuada da faculdade e do hospital. Obviamente, Michel Assbu só permitiu a saída da ambulância com alunos em fuga porque os pacientes da pediatria e da cardiologia, em piora de quadro clínico pelo efeito das bombas de gás lacrimogêneo, já tinham sido transferidos para outros hos-pitais. Outras fugas após essa primeira também tiveram sucesso.

Os estudantes se organizaram para impedir a invasão da es-cola. Diretor da FCM-UERJ, o Professor Américo Piquet Carnei-ro envidou todos os esforços, com êxito, para que a escola sob sua responsabilidade não fosse invadida. Caso fosse, os alunos tenta-riam uma resistência com barricadas, colchões, todos os recursos que estivessem à mão; o ânimo era de revolta generalizada, e as dis-cussões ocorreram tendo em vista uma organização para impedir, com uso de força, a invasão da faculdade, ao menos naquele dia.

Na realidade foi tomada dos policiais apenas uma arma, entregue a Stuart Angel Jones, filho da estilista Zuzu Angel Jo-nes, que, quando do desaparecimento do filho, morto sob tortura por não revelar onde se encontrava Carlos Lamarca, fez campa-nhas no Brasil e nos EUA para resgatar o corpo do filho e punir os culpados. As reações no Congresso Nacional foram fortes. O Congresso da UNE, em Ibiúna, acabara com a prisão de muitos

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estudantes: entre as várias preocupações do MDB, acrescentava-se mais uma: a dos desaparecidos. Alguns deputados se manifestaram contra as arbitrariedades. Citamos apenas um de cada partido:

Márcio Moreira Alves MDB (GB):

Sr. Presidente, ontem, na Guanabara, o estudante de Medicina Luís Paulo da Cruz Nunes, de 21 anos de idade, foi assassinado com uma bala na cabeça por agentes do DOPS que invadiram a Faculdade de Medicina no carro de polícia que tem o núme-ro 6-237. Foram feridos outros seis estudantes, estando Alberto Augusto Noronha em estado grave, com um tiro no peito. O Hospital das Clínicas teve seus corredores, enfermarias e salas saturadas de gás lacrimogênio. Uma bala cravou-se a centímetros de uma cápsula de etileno, altamente explosiva, dentro do Centro Cirúrgico. Os doentes, mesmo em estado grave, tiveram de ser removidos das enfermarias. A polícia jogou bombas no Pavilhão da Pediatria. [...]E quem são os homens a quem está entregue a segurança, me-lhor diria, a insegurança dos cariocas?Luiz Igrejas, Coronel aposentado, ex-dirigente da Líder, organi-zação terrorista de direita que foi dissolvida pelo Marechal Cas-tello Branco, e que é precursora do atual CCC. É ele o Chefe de Gabinete do Secretário de Segurança, General Luiz França de Lima, nomeado por indicação do Marechal Costa e Silva. O Chefe do Serviço Externo da Superintendência de Polícia Execu-tiva, que ontem comandou o massacre no Hospital das Clínicas da Guanabara, é o detetive João Boneschi. Quem é? A 27 de maio de 1964, das 14 às 17 horas, este homem torturou, com es-pancamentos, no CENIMAR, em companhia do agente Solimar Adilson Aragão. Em agosto de 1964, juntamente com Solimar e o alcaguete Sérgio Alex Toledo, torturou o engenheiro Arnaldo Mourthé. A 22 de julho de 1964, juntamente com o capitão de corveta Darcy, Sérgio Alex Toledo e Solimar torturou o ex-di-retor da Associação de Marinheiros do Brasil, Avelino Capitani. A 22 de julho, entre 1 e 5 horas da manhã, torturou, com os mesmos comparsas, o ex-marinheiro Antônio Geraldo da Costa. Em agosto de 1964, no CENIMAR, com os mesmos comparsas torturou o bancário e estudante de Direito Guido Afonso Duque de Norte. Na noite de 22 a 23 de julho de 1964, torturou o ex--marinheiro Severino Vieira de Souza.

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Este homem com este passado, que havia sido posto de lado durante alguns anos na Secretaria de Segurança Pública da Gua-nabara volta agora, juntamente com o ex-dirigente da LIDER à evidência.Irritado com pedidos de moderação, Márcio Moreira Alves continuou:Sr. Presidente, após o discurso que acabo de proferir, ouvi, no plenário, reclamações contra o emprego da palavra bandidos, que fiz em referência aos elementos que assaltaram o Hospital das Clínicas da Guanabara. Não conheço nenhuma outra pala-vra para qualificar homens que jogam bombas dentro de ber-çários, que atacam a tiros um centro cirúrgico, que fazem com que doentes sejam removidos, inclusive com o soro intravenoso ainda pendurado nos braços. Portanto, Sr. Presidente, creio ser parlamentar o emprego da palavra usada em referência a ho-mens que assim agem neste país.Cunha Bueno (ARENA-SP).Sr. Presidente, raras vezes temos ocupado esta tribuna para tratar de problemas de natureza política. [...] É lamentável, Sr. Presi-dente, que, num país democrático como o nosso, onde o apare-lhamento policial está suficientemente atualizado para reprimir violências, esses episódios se reproduzam. Repito, Sr. Presidente: é lamentável; e acredito que nenhum membro desta Casa, per-tença ele à ARENA ou ao MDB, possa deixar de dizer uma pa-lavra de tristeza, e, mais do que isso, de revolta, em face das vio-lências policiais, que, se não forem coibidas, fatalmente criarão o clima necessário para a implantação de uma ditadura.

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Título Provisório 101

A rejeição ao patrono dos doutorandos de 1968

Contra ti se ergue a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetasA indecisão dos complicados e o primarismo

Daqueles que confundem Revolução com desforraDe poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo

Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejasPorém

Em frente do teu rostoMedita o adolescente à noite no seu quarto

Quando procura emergir de um mundo que apodrece.

Sophia de Mello Breyner AndresenPoema “O nome das coisas”, sobre Che Guevara

Outro fato de 1968 foi a escolha de Martin Luther King como patrono dos formandos, mas o Reitor João Lyra Filho vetou o nome sob a alegação de que o patrono da medicina tinha de ser um médico. A segunda opção foi o Ex-Presidente Juscelino Ku-bitschek, que articulava com Jango e Carlos Lacerda uma frente ampla contra os militares, a alegação dessa vez foi a de que tinha de ser um médico já falecido. Por ampla maioria a turma então votou no nome de Ernesto Guevara de La Serna, médico argentino que se tornara Ministro da Indústria em Cuba, que fora morto em 8 de outubro de 1967, sendo homenageado, no Brasil, dando nome ao grupo guerrilheiro MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outu-bro). Que fique registrado também que a captura e o assassinato do guerrilheiro Che, na Bolívia, foram orquestrados, junto com

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as autoridades bolivianas, por Klaus Barbie, criminoso de guerra nazista conhecido como o “açougueiro de Lyon”. Colaborador da-quela ditadura militar combatida por Guevara, mentor, junto com Fidel Castro, da ditadura do proletariado em Cuba, em processo que resultou em tribunal revolucionário e execução de opositores.

O Reitor vetou a escolha e exigiu que o discurso do orador da turma, Gutemberg Medeiros Damasceno, passasse por sua cen-sura. Em 11 de dezembro, no Teatro Municipal, sob a presidência do Reitor e com a presença dos professores Américo Piquet Car-neiro, que hoje empresta seu nome ao prédio de cadeiras básicas da FCM-UERJ, e Jayme Landmann, a formatura transcorreu com o orador a denunciar a censura, a fazer a leitura do discurso original com sérias críticas ao ensino universitário e às atitudes da reitoria.

Quanto à explosão do CASAF, fato doloroso e difícil de es-crever, mesmo para quem não viveu 1968, seu esclarecimento foi feito pelos autores do livro A direita explosiva no Brasil: José Argolo, Kátia Ribeiro, Luiz Alberto M. Fortunato, em que os realizadores da explosão do CASAF têm seus nomes revelados, porque o Co-ronel Alberto Fortunato, pai de um dos autores do livro, dá seu testemunho sobre todo o processo de planejamento da explosão da antiga sede do Centro Acadêmico Sir Alexander Fleming. Aqui recomendamos com empenho a leitura do texto completo sobre o terror, como método da repressão, no livro citado.

Ainda em 1968, a faculdade foi invadida por policiais militares, que vasculharam todas as suas instalações, inclusive o vestiário Edson Luis de Lima Souto, construído a partir das reivindicações estudantis. Naquele momento, João Lopes Salga-do já vivia na clandestinidade, junto com outros militantes. Nas imediações da Fábrica Nacional de Motores, em Xerém, cavava buracos, convivia com os camponeses, media distância dos ris-cos com grande lucidez. Em Xerém, esteve com Salgado o ex--marinheiro Antônio Duarte. Segundo Duarte, Salgado mostrava muita segurança e tranquilidade, não se tratando de mitificação o seu carisma sobre os outros guerrilheiros.

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Título Provisório 103

Um dos mais importantes instrumentos legislativos da re-pressão foi o Decreto n. 477, de 26 de fevereiro de 1969, que atri-buiu às autoridades universitárias e educacionais do MEC o poder de desligar e suspender estudantes envolvidos há até três anos em atividades consideradas subversivas pela ditadura, de expulsá-los e impedir de se matricularem em qualquer escola de nível superior no país durante cinco anos. O decreto também previu a demis-são de funcionários e professores, impedindo-os de trabalhar em ensino superior durante cinco anos (Art. 1º), Decreto-lei n. 477 de fevereiro de 1969 (com base no parágrafo 1º e no parágrafo 2º do Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968), defi-nindo as infrações disciplinares praticadas por professores, fun-cionários, alunos, empregados dos estabelecimentos públicos ou privados e estabelecendo as medidas a serem aplicadas. Na prática, o relatório Meira Matos submetia o Ministério da Educação e da Cultura ao Conselho de Segurança Nacional.

Em 15 de dezembro de 1968, dois dias depois da promul-gação do AI-5, Luiz Roberto Tenório e Gilberto Hauagen Soares foram cassados, perdendo os direitos políticos por 10 anos. Ainda assim, ou principalmente por sua cassação, Tenório participou ati-vamente da assistência médica ao MR-8, sabedor da possibilidade de ser preso, o que veio de fato a acontecer. Aqui cabe registrar a influência do Reitor João Lyra Filho na cassação dos recém-for-mados Luiz Roberto Tenório e Gilberto Hauagen Soares. Únicos ex-estudantes a serem atingidos pelo AI-5 em sua primeira lista de cassações de direitos políticos. Tenório reconhece que foi cassado pela indicação de Che Guevara a patrono.

Promulgado o AI-5, muitos alunos passaram a tratar os es-tudantes de esquerda como se portadores de doença infectocon-tagiosa grave, onanismo mental pernicioso e outras intoxicações da psiquê. Ranço preconceituoso mantido por muitos homens até hoje pensantes da mesma forma imatura, em nada colaboradora para o amadurecimento da democracia do país, a exigir sempre o diálogo e o respeito mútuo.

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Em janeiro de 1969, o Reitor encaminhou ao Conselho De-partamental da FCM pedido para “declarar o antigo aluno Gutem-berg Medeiros Damasceno persona non grata à universidade, por lhe haver sido infiel”. O ex-aluno só conseguiu receber seu diploma seis meses após a formatura, por pressão do Presidente do Sindi-cato dos Médicos do Rio de Janeiro, Dr. Miguel Olímpio Caval-canti. Até o início de 1969, a ditadura militar havia promulgado cinco atos institucionais. De janeiro a outubro, foram outros 11. Entre eles o que previa o “banimento de pessoas perigosas para a segurança nacional”. Não há como não admitir que uma guerra revolucionária em sua perspectiva marxista-leninista ou maoísta fosse inofensiva à segurança.

Recentemente, Luiz Roberto Tenório declarou que se ar-rependeu de ter trocado de roupa na greve pela construção dos vestiários: “Eu me arrependi de ter trocado de roupa no Gabinete do Diretor da Faculdade. Dr. Piquet não merecia isso, disso eu me arrependo”. A benevolência dos professores em relação a medidas disciplinares em relação ao fato demonstra a qualidade da maio-ria dos homens que constituíam o corpo docente da FCM-UEG, em 1968. Para proteger João Lopes Salgado, Dr. Américo Piquet Carneiro mandou alguém lhe entregar a chave do seu consultório, caso, súbito, carecesse de um refúgio momentâneo. A esquerda ar-mada cria na possibilidade de o Brasil entrar em crise econômica; naquele tempo, pensamento criticado por seus adversários: “Eles querem o quanto pior, melhor”. Para que, assim, a mobilização po-pular levasse ao fim da ditadura e à possibilidade de o socialismo real acontecer no País.

Mais recentemente ainda, em 25 de janeiro de 2013, ao ser reentrevistado no Café da Livraria Travessa do Leblon, na presen-ça também do ex-aluno Pedro Reginaldo dos Santos Prata, Gilber-to Hauagens Soares disse estar presente no Gabinete do Diretor da Faculdade de Ciências Médicas da UEG, Professor Américo Piquet Carneiro, no dia do assassinato de Luiz Paulo da Cruz Nu-nes e que testemunhou dois telefonemas:

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O primeiro foi o do jornalista Roberto Marinho, dono do jornal O Globo, que claramente constrangeu o Reitor da UEG, João Lyra Filho, a reclamar responsabilidade sobre os fatos, que ele as tinha apenas por ser conivente com a ditadura, e não por ser so-lidário com os estudantes; tanto é que, junto com Luiz Roberto Tenório, Gilberto foi um dos dois únicos ex-estudantes, formados médicos em 1968, cassados pelo AI-5.

O segundo telefonema foi o do Reitor João Lyra Filho para seu irmão Ministro da Guerra, Lyra Tavares, com o qual negociou a evasão dos estudantes sem perigo de novos mortos ou feridos. Então, o Reitor saiu de carro e deu duas voltas no entorno da Ciências Médicas, levando em sua carona Gilberto Hauagens Soares, portanto, foi Gilberto quem avisou aos estu-dantes para irem de saída aos poucos, e aos poucos os alunos da FCM-UEG foram para suas casas na tristeza daquele dia.

Após a morte do Presidente Costa e Silva, começava o cha-mado Milagre Brasileiro. A estender-se durante todo o período do governo Emílio Garrastazu Médici. Algo que a esquerda não esperava! Resultado apaziguador dos ânimos, enquanto no exílio, Josué de Castro, autor do livro A Geografia da fome, primeira obra a levantar bandeira em prol da erradicação e do combate à fome, amargava grande depressão. Mas a bandeira da luta contra a fome, após a anistia, foi levantada novamente por Herbert de Souza, o Betinho, irmão do cartunista Henfil. Bandeira que só começaria a ser estendida para aqueles dela necessitados quando, em 2002, Luis Inácio Lula da Silva, eleito Presidente do Brasil, colocou em prática o programa Fome Zero, constituído de planejamentos em prol da existência de uma segurança alimentar, ações antes impen-sáveis de serem implantadas no País. A despeito das críticas justas e injustas que possam ser feitas ao ex-presidente operário.

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Crítica e autocrítica

... é que amiúde um objeto me constrangecom sua mera e casual presença,

sem que me doa, fira ou que me lembre,sem que mais seja que ser ele mesmo.

Claudio Neves

Abaixo segue trecho do depoimento escrito por Valter Duarte Pereira Filho, que começa quando estava dentro da pas-seata dos cem mil, ocorrida em 1968. Vejamos:

Naquele ano, em junho, tomei parte nas passeatas e choques mais violentos, que ocorreram numa quarta no centro da cida-de, numa quinta na saída do campus da UFRJ na Praia Verme-lha, com prisões no campo do Botafogo, e naquele dia que foi chamado de “sexta-feira sangrenta”. Foram tão graves os con-frontos entre os estudantes e a polícia militar que levaram a um acordo entre os líderes estudantis e as autoridades da “demo-cradura”, acordo cuja maior expressão foi a permissão de um protesto pacífico no dia 26 de junho, conhecido depois como “a passeata dos cem mil”.Para que aquela passeata fosse ordeira e pacífica, o comércio não abriu as portas, a polícia não apareceu e muitos locais de trabalho no centro da cidade, quase todos, não funcionaram. Artistas e intelectuais aos montes, discursos inflamados na concentração e a caminhada pela Avenida Rio Branco com grupos de braços dados, alguns com cartazes, mais as palavras de ordem em coro, principalmente “abaixo a ditadura” e “o povo no poder”, com disputa entre “o povo organizado derruba a ditadura” e “só o povo armado derruba a ditadura”. Foi uma badalação e tanto.

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Título Provisório 107

Não demorou muito para que eu me sentisse deslocado. Para mim, aquilo não tinha nada a ver com as brigas dos dias anterio-res, nem com os participantes daquelas brigas. Seguia de braços dados com gente que não conhecia, desanimado, quando mais ou menos na esquina da Rua Rio Branco com a Sete de Setem-bro vi cerca de cinco ou seis homens e mulheres fazendo sinais com os braços para controlar os caminhantes do grupo em que eu estava. Diziam coisas como “calma”, “devagar”, “para um pouco”, “agora, não”, “vai agora”. Eu, hein! O que era aquilo? Quem eram eles? Que ideia era aquela de controlar um protesto consentido, pacífico, sem repressão?Foi então que passei a me ligar naquela passeata, para mim, frus-trante. Dei conta de que não eram só aqueles que se dirigiam ao cordão em que eu tomava parte que estavam ali querendo comandar o que era para ser deixado solto. Tinha Lenin e Rosa Luxemburgo em tudo quanto era lado. Gente que me pareceu muito vaidosa. Não lhes faltava pose. Eram figuras que eu não vira em nenhum dos confrontos com a polícia e que pareciam estar ali convencidos de seus papéis de líderes daquela massa e, sem dúvida, do povo que “organizado” ou “somente armado” derrubaria a ditadura.Não demorei muito a soltar meus braços e a sair da caminhada. Na calçada da avenida, fiquei olhando a passeata cheia de gente vibrando e gritando em coro as palavras de ordem, quase sempre sob a batuta de alguém que vivia ali a sua fantasia de líder. Tanto quando estava lá no meio quanto do lado de fora observando, senti que a minha realidade era a solidão. Não conseguia me ex-plicar por que sentia aquilo, nem queria. Larguei a passeata pra lá e tomei o rumo de casa. Estava apenas começando a descobrir que as certezas positivas podem levar à soberba e a soberba ao desprezo pela vida alheia.Naquele ano de movimento estudantil em que tanto se falava de liberdade, o caráter dogmático da certeza científica com que procuravam fundamentar as ações políticas era uma contradição com aquele ideal. Mas o pior era a autoridade que acreditavam poder deduzir da ciência e usar para pôr em prática nas reuniões, nas assembleias, nas passeatas, nos protestos em geral. Era um perigo, agravado quando falavam “nas massas”, assim mesmo, como coisa impessoal.Naquela busca de autoridade para conduzir as massas, usavam e abusavam da palavra “dialética”, hoje posso dizer, sem ter a me-nor ideia do que pudesse significar e, em relação à ciência, o que

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podia significar. Sem nem desconfiar que ciência (a “moderna”, que tem a Física de Newton como paradigma) e dialética não se combinam, falavam em “dialética” procurando para ela autori-dade científica. O resultado era de um obscurantismo autoritário a toda prova e ainda com a pretensão de conduzir as massas à revolução libertadora.O fato é que tudo o que um dia me horrorizara ao ouvir um ca-pitão dizer que num avanço de infantaria muitos soldados mor-riam sob o bombardeio da própria artilharia estava ali também, naquelas teses em que falavam que “as massas” estavam dessa ou daquela maneira, prontas ou em preparo para fazer a revo-lução. Sim, bem que eu caía naquela crença. Se não acreditasse não teria participado tanto e entrado até na de fazer coquetéis molotov, como entrei. Sem dúvida, líder eu não me achava. Não me importava em ser um combatente anônimo. É, acho que me habilitei a ser o que chamavam de “bucha de canhão”.Prossegui participando do movimento estudantil fora e dentro da Faculdade de Ciências Médicas. Onde houvesse um comício relâmpago e eu soubesse dele, de uma passeata, como outra pa-cífica que ocorreu, lá estava eu para bater palmas, gritar “abaixo a ditadura” e, a minha preferência, “só o povo armado derruba a ditadura”. Por vezes entrei em ônibus para falar contra a ditadu-ra, a opressão, o acordo MEC-USAID, o imperialismo, tendo a boa vontade e o apoio dos motoristas, sendo sempre aplaudido pela maioria dos passageiros. Era a glória.Na faculdade havia uma greve e em todas as assembleias eu vo-tava pela continuação. Era uma greve de presenças e provas que tinha a vantagem de manter a faculdade funcionando e os alunos sempre presentes. Mal podia eu imaginar que aquela greve até muito bem conduzida e discutida atrairia para a FCM o que de pior os equívocos e exageros daquele ano podiam provocar nos dois lados em confronto.As questões da greve eram de âmbito interno, mas dificilmente escapariam de ser vinculadas a contextos mais amplos. A greve foi levada ao exagero, em rigor, a alcançar o que não tinha nada que alcançar, a dizer respeito ao que não tinha nada que dizer. Mas naquele ano, não tinha jeito, qualquer ato político, por mí-nimos que fossem os seus limites, corria o risco de ser tratado como se fosse um momento pré-revolucionário, sem dúvida, su-jeito por isso à repressão de quem do lado contrário também o avaliasse assim.

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Título Provisório 109

Um exemplo tragicômico daquele risco aconteceu na assembleia de dias depois da invasão da Tcheco-Eslováquia pela União Sovi-ética. Como nas passeatas volta e meia queimavam uma bandeira dos Estados Unidos sob os gritos de “abaixo o imperialismo”, alguém propôs que fosse queimada na rua ou ali mesmo na bi-blioteca, onde ocorreram quase todas as assembleias da FCM naquele ano, uma bandeira da União Soviética. Pra quê? Deu numa confusão louca. Acabaram não aceitando a proposta, mas foi demonstração suficiente da variedade das posições políticas “de esquerda” que tendiam a querer a greve para muito além dela, dominando mesmo as suas razões acadêmicas.Então, ainda que com referências generalizantes, creio que já tenha começado a falar das razões do contexto daquele ano ter sobrado pra cima da Faculdade de Ciências Médicas e do Hospital Pedro Ernesto, levando à tragédia da qual nunca tive a coragem de falar com ninguém, muito menos quando ouvia a bronca do pai do Luiz Paulo. Agora é puxar pela memória, sempre traiçoeira, para traçar um roteiro mínimo dos fatos que me parecem merecer destaque para a consideração à parte dos estudantes de medicina, dos professores e dos médicos de lá naquele contexto e na tragédia, sem esquecer que houve coad-juvantes dos cursos de ciências biológicas e de odontologia da UEG (UERJ).Tinha uma repórter do Diário de Notícias que estava por ali, a Celeste. Lembro que gritei alguma coisa para ela em alerta e entramos de volta na alameda pela passagem de carros, correndo sem sentir os pés no chão, voando. Acho que após uns dez ou quinze metros lá dentro, virei de frente para a calçada da lateral do hospital. Tomei um susto e, por um segundo, não acreditei. Bem em frente a mim, estava o Luiz Paulo caído, em decúbito dorsal, com os olhos vidrados. Muitos fugindo da rua, se empur-rando apavorados, passando pelo lado dele, evitando pisá-lo. Co-mecei a gritar avisando que ele tinha levado um tiro, que eu nem sabia onde o atingira, mas sem fazer mais do que isso. De repente o pegaram e o levaram para dentro do hospital. Não demorou e vi o Dílson, Dílson Aparecido Pires, estudante de odontologia, sentado no chão, encostado na parede lateral do hospital gritan-do de dor. Tinha levado um tiro no abdômen. Seria operado e perderia o baço e um rim.Ainda em janeiro de 1969, a UEG realizou seu vestibular no Es-tádio do Maracanã. Estudantes das mais variadas unidades aca-dêmicas foram para as portas do estádio panfletar pregação de

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resistência à ditadura, algo que redundou na abertura de mais outro Inquérito Policial Militar, nos quais foram indiciados os estudantes João Lopes Salgado (já clandestino), Jane Corona (a exilar-se no Chile), João Ramos da Costa Andrade, André Jorge Campelo (Presidente do CASAF após a ida para a clandestinida-de do Salgado), Fritz Carl Utzeri (jornalista que viria a elucidar os casos do desaparecimento e morte do deputado cassado Rubens Beirodt Paiva e do Riocentro), Celso Moreira de Souza e Juan Alfonso H. Alvarez, posteriormente, o inquérito se arrastou por quase dois anos e graças à ação dos advogados Técio Lins e Silva, Modesto da Silveira, George Tavares e Lino Machado, em 1971, todos foram absolvidos.Mas quando em 26 de fevereiro de 1969, com base no AI-5, o governo emite o Decreto-Lei n. 477, cujo objetivo era expulsar alunos com “atividades subversivas” impedindo-os de nos pró-ximos 3 anos cursar qualquer outra escola pública ou privada, o Professor Jayme Landmann, substituto interino do Diretor Amé-rico Piquet Carneiro na Direção da faculdade, expulsa os estu-dantes João Ramos da Costa Andrade, Jorge Manoel de Oliveira e Silva e Claudio José de Campos Filho. Porém, mais tarde, ao reassumir sua função, o Professor Américo Piquet Carneiro re-vogou a punição. Para todos os efeitos considerou que os alunos trancaram matrícula no ano de 1969.Não foram esses os únicos transtornos sofridos por alunos da FCM em 1969. Em meados do ano, julho a setembro, vários alunos foram levados para o DOI-CODI e para o Quartel da Polícia do Exército, situado na Rua Barão de Mesquita, entre eles estavam Evelyn Eisenstein, Gerson Noronha e Claudio José de Campos Filho – o Claudio Campos –, este último, tão violentamente torturado, que depois de alguns dias teve de ser transferido para o Hospital Central do Exército, em Benfica. O Professor Américo Piquet Carneiro, ao saber do seu estado, conseguiu transferi-lo para o HUPE-UEG, onde foi tratado e recuperou-se.Permaneceram na luta estudantil os quadros do PCB, que tinha uma postura crítica em relação às posições “sectárias” assumi-das pelos militantes da Dissidência da Guanabara (DI-GB) e da Ação Popular-AP, a qual o principal líder estudantil católico da Ciências Médicas, Hésio Cordeiro, jamais aderiu. O PCB não era só contra a luta armada como responsabilizava os “compa-nheiros dissidentes” por terem dado o pretexto que o governo carecia para endurecer o regime militar. O futuro do PCB seria o

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“reboquismo”, isto é, ir a reboque de outros partidos com maior captação de eleitores, assim como o do PC do B o “revolucio-narismo”; epítetos injustos aplicados àqueles dois grupos, que, sem fazer o mérito da causa, aplicaram suas vidas em nome de um ideal pelo qual foram mortos em combate e nas trevas, caso do PC do B na Guerrilha do Araguaia e do PCB, cujas principais lideranças foram mortas, embora não fosse um grupo que pug-nasse pela luta armada.

Quanto aos poucos ex-alunos da Ciências Médicas que op-taram por participar da luta armada, houve os que foram para a linha de frente, João Lopes Salgado, por exemplo, e os que ficaram em atividades logísticas.

Luiz Roberto Tenório testemunha que em sua vivência no PCB sofria o constrangimento de que na maioria das vezes era contra a decisão tomada em reuniões, mas, voto vencido, se via obrigado a defender, nas massas, uma decisão com a qual discor-dava. Junto com outros pares solicitou desligamento do Clube, mas se viu ameaçado de ter os nomes dos dissidentes publicados no jornal Voz Operária, do partidão, como se tivessem sido expul-sos do PCB. Quem reverteu tal situação foi Wladimir Palmeira, que disse: “Se vocês fizerem isso, nós fazemos um jornal mural lá na faculdade divulgando o nome de todos os membros do Comitê Estadual”.

Em 1967, na reunião criadora da Dissidência Guanabara (DI-GB), Luiz Roberto Tenório declarou não ter condições de participar em armas da luta contra a ditadura, porque, mesmo que recebesse treinamento, não sabia se na hora que fosse necessário conseguiria atirar para matar alguém. Os líderes da DI eram Car-los Alberto Vieira Muniz, Wladimir Palmeira, Daniel Aarão Reis, Franklin de Souza Martins e João Lopes Salgado. “Os caras foram muito legais em relação a mim”, diz Tenório, “falaram que me com-preendiam, que precisavam de mim no trabalho com as massas, e, principalmente, para montar um serviço de atendimento médico ao pessoal do movimento engajado na luta armada.”

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O nome MR-8 foi adotado pela primeira vez por um grupo de Niterói, logo esfacelado. Em função de querer homenagear Che Guevara, logo a Dissidência fez ressurgir o nome MR-8, algo que ensimesmou as autoridades fluminenses que haviam declarado a seus chefes terem extinguido tal grupo.

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Título Provisório 113

大字报3 – Informativo Dazibao: Teologia da Libertação

O grito do pobre sobe até Deus, masnão chega aos ouvidos do homem.

Hughes Lamennais

Em 1968 apareceu, em Osasco (SP), um novo tipo de sin-dicalismo, baseado em comissões de fábricas, realmente capaz de mobilizar as elites da classe operária. Esse novo tipo de organi-zação daria origem às centrais sindicais de hoje, especialmente à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e ao Partido dos Traba-lhadores (PT).

Em 1968 a Igreja Católica passou, no Brasil, para a oposição ao regime militar, substituindo os partidos políticos amordaçados e dando voz aos pobres, perseguidos e injustiçados, que não tinham outras maneiras de se exprimir. Em agosto e setembro, os bispos brasileiros assumiram a liderança do episcopado latino-americano

3 Traduzido literalmente do chinês, Dazibao é “um cartaz com grandes ideogra-mas” (大字报), ou apenas uma forma de cartaz feito artesanalmente ou a mão. No entanto, Dazibao foi mais do que isso na China: Dazibao foi um movimento de expressão autêntica, pelo qual a população do país resolveu mostrar suas ideias. Seu surgimento histórico é incerto, mas em torno de 1911, com o fim do império Manchu e o início da República Chinesa, eles se transformaram num verdadeiro meio de reclame popular, e se difundiram por todo o país. No Brasil podemos entender o Dazibao como um jornal mural (http://orientalismo.blo-gspot.com.br/2011/04/o-que-e-dazibao.html).

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na Conferência de Medellín, que produziu a até hoje mais dura condenação do tipo de capitalismo implantado em nossos países. Alguns dos seus pensadores começaram a elaborar os textos da Teologia da Libertação, que viriam a ter uma influência universal4.

Talvez o protestantismo caça-níquel e messiânico tenha tido permissão para se espraiar como contraponto à teologia da libertação, combatida pela Una Sancta, Igreja Apostólica Roma-na, ao ponto de Leonardo Boff ter se sentado no mesmo assen-to que Giordano Bruno. Não se pode negar que a esquerdiza-ção teológica também gerou terror e muita confusão. Um padre esteve envolvido no atentado terrorista contra o Aeroporto de Guararapes em 1966.

É possível que, no Brasil, a liberação geral para a criação de Igrejas de “teor pentecostal” tenha ocorrido como contraponto planejado ao engajamento político da Igreja Católica no processo de combate à ditadura e ao crescimento da influência da teologia da libertação, que tinha grande rejeição dentro da própria Igreja Católica Apostólica Romana. Muitas dessas igrejas pentecostais se tornaram apenas instrumento de lucro para seus “pastores”, e, sem dúvida, o que se chama hoje de bancada evangélica traz prejuízo ao exercício da política profissional, o qual deveria ser disjuntivo da religião, qualquer religião ou seita, sob o risco de eternas voltas ao medievo e à estupidez.

4 ALVES, Márcio Moreira. 68 mudou o mundo; prefácio de Gilberto Dimenstein. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

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Título Provisório 115

A Síndrome da Vice-Presidência atinge o CASAF

O medo racional-sensato –Este é o medo que poderíamosdenominar “profilático”; o que

geralmente ocorre quando se faladele sem qualificação específica.

É pois um medo condicionado pelaexperiência e baseado na razão,

donde também pode ser chamadode “Medo lógico”.

Emilio Myra y López

Estatutariamente Vice-Presidente do CASAF, André Jorge Campello Rodrigues Pereira manteve vinculação com o PCB, a seu ver, por ser importante, sob um regime de opressão, partici-par de alguma organização clandestina, caso contrário a pessoa fica sem saber nada do que ocorre. Salgado fizera uma opção que implicava abandonar a faculdade, e foi à luta armada. Pelo Estatuto, André o substituía, mas não foi reconhecido com faci-lidade. Colocou em um mural o artigo do Estatuto onde estava disposto quem assumia na ausência do Presidente. O aviso em mural foi rasgado, estudantes xingavam-no quando passava pelos corredores, até que, naquelas circunstâncias, o CASAF foi fecha-do, conforme documento expedido pelo Vice-Diretor da FCM--UERJ, Professor Jayme Landmann, na condição de Diretor In-terino, quando o Professor Américo Piquet Carneiro ainda era o

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Diretor da Ciências Médicas. No Memorando n. 4, assinado pelo Professor Américo Piquet Carneiro, datado de doze de maio de 1969, consta o seguinte texto: A fim de tratar de interesse do Diretório e dos representantes das turmas, convoco para uma reunião quarta-feira, dia quatorze de maio de 1969, no Gabinete do Diretor, no horário das nove horas.

Desde 27 de março de 1969 o acadêmico e Ex-Vice-Pre-sidente e agora Presidente do CASAF, André Jorge Campello Rodrigues Pereira, fora convocado pelo Chefe do Departamento de Medicina, Professor Lafaiete Pereira, para responder a Comis-são de Inquérito constituída pelo Vice-Diretor Professor Jayme Landmann a fim de apurar fatos recentemente ocorridos na sede do Diretório Acadêmico. Fica difícil ordenar coerentemente a se-quência dos fatos. A cassação branca do Presidente do CASAF, André Jorge Campello Rodrigues Pereira, já havia sido sacra-mentada pela Portaria n. 23/69, assinada pelo Professor Jayme Landmann, na condição de Diretor em Exercício, cujo conteúdo foi o seguinte: O Diretor em Exercício da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado da Guanabara, no uso de suas atribuições, resolve: em face das ocorrências de 21 de março de 1969, na nova sede do Diretório e presenciado pelos Profes-sores Hugo Caire de Castro Faria, Francisco Alcantara Gomes e pelo Diretor do Hospital de Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas, suspender as atividades do Diretório Acadêmico e fe-char sua sede até a apuração dos fatos ocorridos.

Registre-se que o Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) sempre foi chamado de Hospital de Clínicas ou das Clí-nicas da UEG/UERJ pelo Professor Jayme Landmann e de fato foi tentada essa mudança de nome sem efeito prático. Talvez, ao denominar o HUPE como Hospital das Clínicas da UERJ, o Professor Landmann desejasse rebatizar o hospital em função das qualificações assistenciais progressivamente alcançadas, mas o fato é que, consuetudinariamente, o nome do ex-prefeito ca-rioca, Pedro Ernesto do Rego Batista (Pedro Ernesto), se impôs

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tanto pelo carinho da população como pela admiração ao ho-mem público.

Existiam representantes de turma, porém suas funções atinham-se a cuidar de problemas das turmas representadas, sem reunião entre representantes. A ausência de representação estu-dantil trouxe de imediato uma consequência: nenhum estudante, ao menos até a reabertura do CASAF, em mil novecentos e setenta e sete, teve mais lugar à mesa nas reuniões do Conselho Departa-mental, algo que abriu uma distância entre professores e alunos, distância que trouxe sequela, como se verá. Por desabituar profes-sores e alunos ao diálogo profícuo.

Porém, aquela era a realidade do início de 1969. O ex-Vi-ce-Presidente e, após a saída de João Lopes Salgado, Presidente do CASAF de curtíssimo mandato passou a ser monitorado pela polícia; perdeu o direito a ter ficha limpa, isto é, mesmo depois de médico, formado em 1972, tinha de ir à polícia para só depois tirar a carteira de motorista, quando viajava para congressos ti-nha de ir explicar aonde ia e quais os objetivos da viagem. Só conseguiu “limpar sua ficha” após o processo de redemocrati-zação do país.

Sem nenhuma representação nos níveis estadual e nacional, sem centro acadêmico, quem se formou em 1972 na Faculdade de Ciências Médicas viveu um período muito difícil, de muita repressão. Neste sentido é importante o depoimento de André Jorge Rodrigues Campello Pereira, a seguir: “Em 1969 o ‘clima’ na Faculdade era de muito medo e poucos se aventuravam a fazer qualquer movimento associativo, por mais neutro que fosse. Memorável campanha houve nessa época para a instalação de um bebedouro no prédio de Cadei-ras Básicas, na Faculdade de Ciência Médicas, e a conotação de ‘alta subversão’ de que foi revestido este movimento e os seus líderes”.

Vejamos o relato de André Jorge Rodrigues Campello Pereira:

A hostilidade de alguns colegas ao cumprimento do estatuto do CASAF, que previa a posse do vice em caso de afastamento do Presidente, só serviu para dificultar durante bastante tempo as

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primeiras tentativas de reorganização. É preciso lembrar que o João Lopes Salgado me chamou para conversar durante as férias de 68-69, antes de o CASAF ser fechado, disse-me que ia se afas-tar e que eu assumisse o cargo; é claro que ele sabia que eu pen-sava de modo diferente dele. A conversa foi no Jardim Botânico, junto com um colega da minha turma, o Avelino. Mas alguns dos outros membros do CASAF achavam que eu teria que me subordinar a eles, nas decisões da diretoria do CASAF, embora o estatuto dissesse que nas atribuições específicas do Presidente, as decisões eram de responsabilidade do Presidente: por exemplo: presença no Conselho Departamental. O estatuto da CASAF di-zia bem claramente que a representação do CASAF nos órgãos da Presidente e Vice da Universidade era atribuição exclusiva do Presidente e do Vice (em caso de afastamento), que eram elei-tos expressamente para isso, e que não estariam subordinados aos outros membros da diretoria, e que estes também tinham suas atribuições e responsabilidades (por exemplo, o tesoureiro) que estas não se subordinavam aos outros. Estaria subordinado apenas ao cumprimento do programa com o qual a chapa fora eleita em 1968.O Inquérito Policial Militar foi iniciado em 1969 e naquele mes-mo ano fomos indiciados como réus em processo na 2ª Audi-toria Militar da Aeronáutica. O processo só terminou em 1971, com a condenação de Salgado e absolvição dos outros nove. Isso manteve a Faculdade em clima de muita tensão, pois até os pro-fessores, mesmo o Professor Américo Piquet Carneiro, tiveram de ir depor na Base Aérea do Galeão (repare a época e o lugar, onde muita coisa terrível acontecia: supõe-se que vários presos tenham sido torturados e mortos ali, na Base Aérea, nessa mes-ma época, por exemplo, Rubem Beirodt Paiva). Piquet Carneiro quase foi indiciado também. No dia da audiência na Justiça Mili-tar pude ler a página onde constava a acusação contra mim (a lei permitia que, no dia da audiência eu lesse apenas a minha página) e não havia nenhum fato, nenhum documento ou elemento ma-terial que justificasse o indiciamento.O responsável pelo IPM (um brigadeiro da Aeronáutica), pura e simplesmente tinha a opinião ou a convicção de que eu deve-ria ser indiciado, sem apontar nenhum fato ou exibir panfletos ou textos de minha autoria ou do CASAF, ou provar a minha presença em algum ato ilegal, nada que ligasse a pessoa acusada aos atos que eram dados como crimes; em suma não havia nada que justificasse as acusações, que, se não me engano, estavam

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nos artigos 31 e 33 da Lei de Segurança Nacional: usar métodos violentos contra o governo, e outros. O mesmo, suponho, acon-teceu com os demais indiciados. As penas variavam de 2 a 12 anos de prisão. Não sei com certeza o teor do processo, pois até hoje os autos do processo estão em local proibido, não podemos ler o processo, embora estejamos em 2016, quase 50 anos depois. Além disso, os advogados não podiam fazer cópias do processo para estudar a defesa, nem na época, em 1969-1971, e nem hoje, quase 50 anos depois.No breve período em que ocupei o cargo de Presidente do CASAF, representando-o no Conselho Departamental e em ou-tras situações, segui as diretrizes do programa político com o qual havíamos sido eleitos em 1968. O fechamento do CASAF deixou um vazio, e só no 2° semestre é que surgiu algo, que veio de fora da Faculdade: a eleição da nova presidência da Associa-ção dos Estudantes de Medicina do Estado da Guanabara para a sucessão do Presidente anterior da AEMEG, Alexandre Kalache, a cujo trabalho a AEMEG deve muito; Kalache foi o idealizador da AEMEG e seu primeiro Presidente. E depois da eleição, viria a Semana de Debates Científicos, uma espécie de congresso em que os estudantes apresentavam trabalhos ligados a cadeiras bá-sicas ou clínicas, e que era organizado pela AEMEG.A 4ª Semana de Debates Científicos da AEMEG foi realizada na FCM-UERJ, em 1970, e foi organizada por uma equipe que era coordenada por mim, pois eu era o Presidente da AEMEG, e contou com a presença do Reitor, os Diretores das três Facul-dades de Medicina, do Sindicato dos Médicos, e outros, sendo ocasião para debates políticos. Essas atividades eram despreza-das pelas outras lideranças da esquerda, que achavam que só se poderia mudar o regime pela força das armas. Mas na verdade fo-ram atividades como essa que possibilitaram que nos anos mais pesados (1969-1973, e depois até 1980) as faculdades de Medici-na do Rio de Janeiro se tornassem as mais politizadas. A Facul-dade de Ciências Médicas-UEG, a Faculdade de Medicina-UFRJ e a Faculdade de Medicina e Cirurgia (hoje UNIRIO) foram um dos núcleos de reorganização do movimento estudantil nos anos mais difíceis da resistência ao regime pós-AI-5.É importante destacar: a história da resistência democrática ao regime pós-AI-5 ainda não foi contada. Continuando o relato da questão da vice-presidência do CASAF, eu fui eleito Presidente da AEMEG no 2° semestre de 1969 (gestão 1969-1970), e isso conseguiu desqualificar as agressões e a hostilidade que alguns

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colegas tinham contra mim. A AEMEG era muito visada, pois era a única associação interuniversitária de estudantes: a UNE e a UME estavam fechadas ou clandestinas. Mas ao mesmo tempo ela tinha um caráter específico profissional, que tornava difícil à repressão simplesmente fechá-la, sem motivo.A AEMEG era uma associação que reunia todos os estudantes das três faculdades de medicina, por isso ela foi tão importante naquele período. Havia perigo mesmo nestas atividades pura-mente acadêmicas: o Presidente da AEMEG que me sucedeu na gestão 1970-1971 foi preso, torturado, ficou muito tempo na prisão: Carlos Alberto Nascimento. É importante lembrar que foram as atividades associativas que mantiveram algum movi-mento e até mesmo circulação de notícias (imprensa e rádio sob censura) e que possibilitaram os primeiros sinais de reação, como p. ex. as eleições nacionais e estaduais de 1970 e de 1974. A his-tória que é contada nos livros sobre essa época omite a atividade de resistência democrática e só menciona as atividades armadas e a repressão a elas. O desprezo pelo conteúdo do estatuto do CASAF, o qual havia sido redigido por nós próprios, e por cole-gas em anos anteriores, só serviu para enfraquecer a resistência ao regime pós-AI-5, que já não era mais uma simples ditadura militar, mas uma forma de tirania muito pior.Acho que é útil lembrar que o entendimento do que foi aquela época pode ser difícil para quem se coloca nos tempos atuais, em 2016. As condições em que se exercia a cidadania eram tão diferentes das condições de hoje que se torna difícil explicar para as pessoas nos dias atuais, e pode dar a falsa impressão de que o objetivo é o de supervalorizar o passado e/ou desvalorizar o presente. O meu objetivo é apenas o de destacar as diferenças para que os relatos da época possam ser compreendidos, para que se entenda quais as ideias em debate, quais as propostas de ação e qual o valor dos métodos de ação. E tornar compreensível também o perigo para a integridade física e de vida de cada um de nós que atuamos pela democracia.As informações e ideias só podiam circular através de jornal, rá-dio, TV, livros ou comunicação pessoal. Toda a “mídia” da época estava sob a censura; que se tornou muito pior após o AI-5. A ameaça de violência vinha diariamente pelos jornais e TV: duas constituições foram rasgadas quando interessou aos militares, a de 1946 e a de 1967. O Vice-Presidente da República escolhido pelos próprios militares, Pedro Aleixo, ao invés de ser empossa-do no cargo de presidente quando da doença de Costa e Silva,

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foi sumariamente derrubado por uma junta de chefes militares. O Judiciário era ou ignorado ou silenciava. Todo representante parlamentar que dissesse algo ou votasse contra os interesses mi-litares era cassado, e notícias de fechamento de órgãos de repre-sentação eram frequentes. Em resumo, as notícias diziam que os militares faziam o que quisessem, e não havia Judiciário também, pois juízes também podiam ser afastados. Os advogados eram afastados, ameaçados e não tinham os direitos que têm hoje na defesa de seus clientes. O cidadão não tinha mais direito a defesa contra os abusos do Estado, mesmo em situações banais.Nos hospitais públicos o critério para a escolha dos diretores passou a ser o simples fato de ser médico-militar. Em todos os locais de trabalho ou estudo havia vigilância e denúncias anôni-mas (com todo tipo de abuso que se possa imaginar). Restavam apenas a comunicação pessoal, os livros e as publicações clandes-tinas. Até as livrarias eram alvo de censura e de atentados com bombas. É preciso entender que a reorganização da vida asso-ciativa nos anos de censura foi essencial, pois era a única forma de fazer as notícias e ideias serem divulgadas. Lembro que nas eleições de 1970 e de 1974 (deputados e senadores) havia poucas pessoas distribuindo panfletos com os nomes dos candidatos de oposição e que qualquer policial podia prender-nos se quisesse, mesmo que a eleição fosse permitida. E que na década de 70 o regime unilateralmente fundiu o Estado da Guanabara com o antigo Estado do Rio de Janeiro, para derrotar a oposição que tinha maioria na Guanabara; a fusão foi imposta sem nenhum argumento e desprezando a vontade dos cidadãos.Foi nessas condições que aconteceu a reorganização da vida as-sociativa e política da FCM-UERJ. A transmissão informal da presidência do CASAF, não reconhecida por alguns, só atrapa-lhou. O CASAF tinha participação institucional no Conselho Departamental, com direito a voto, e várias vezes durante o ano de 1968 eu fui às reuniões como substituto do João Salgado, nas ocasiões em que ele não podia ir por estar em outros lugares (viagem e.g.). A partir de dezembro, passei a ir regularmente às reuniões do Conselho, pois o Salgado decidiu que não iria voltar. É preciso lembrar que nas férias a faculdade ficava muito vazia, e o perigo de prisão ou violências era maior. Não esquecer que o CASAF foi e da Faculdade nos avisavam de que havia muita vigilância e perigo, que havia muitos policiais e “olheiros” e que o prédio do diretório tinha sido alvo de atentado com bomba, e os policiais que atuaram na morte do Luiz Paulo nos odiavam e

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provavelmente iriam fazer algo. Em março de 1969 o Diretor da Faculdade me comunicou por escrito que o CASAF não funcio-naria mais e a representação no Conselho deixaria de existir. A casa onde funcionava o CASAF foi fechada.Havia um pequeno muro, no pátio do hospital, lugar de passa-gem para todos os prédios, onde podíamos sentar, pois era da mesma altura que um banco, que passou a ser o único lugar de reunião e de encontro dos estudantes, e ali eu estava, nos inter-valos das aulas ou na hora do almoço. É claro que não podíamos falar de tudo ali, mas era o lugar possível, onde organizamos os primeiros movimentos para eleger representantes de turma, ou preparar as atividades da AEMEG (eu e os outros diretores da AEMEG organizamos a 4ª Semana de Debates, em 1970). Esse murinho foi demolido alguns anos depois – não sei quando; mas ele faz parte da história da FCM.A reorganização do movimento estudantil, da resistência ao re-gime pós-AI-5, deve bastante às faculdades de medicina: FCM--UERJ, Faculdade de Medicina-UFRJ e Faculdade de Medicina e Cirurgia (hoje UNIRIO). Posso mencionar que nas eleições de 1970 e 1974, entre os poucos que iam distribuir panfletos, muitos eram destas três faculdades, e também entre os poucos estudantes presentes em eventos políticos como reuniões em torno de algum assunto e reuniões na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) a presença dos estudantes de medicina tinha um peso importante.As atividades da AEMEG eram oportunidade para intelectuais ou políticos ou médicos, e até mesmo músicos, que eram censu-rados na mídia, pudessem falar ou trocar ideias ou mesmo apre-sentar seus trabalhos, pois a censura era também dirigida contra determinadas pessoas, independente do assunto sobre o qual fossem falar.Fazíamos também publicações clandestinas, com informações, notícias ou opiniões; não guardei os exemplares (tenho apenas um exemplar) para não correr o risco de ser preso com material proibido. Fazíamos a publicação chegar aos alunos através dos armários nos vestiários da faculdade. Felizmente, se algum exem-plar chegou às mãos dos órgãos de repressão, não identificaram os autores: já no século XXI, através do instituto do “habeas data”, pude ver as anotações que havia com meu nome e isso me permite supor que não soubessem a autoria. Mesmo assim, não havia naqueles textos nada que justificasse as acusações do IPM, que fundamentasse os artigos da Lei de Segurança Nacional em

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que eu fui enquadrado, nem conexão com outros fatos que de-ram origem ao IPM (exemplo, o roubo de uma metralhadora). Os nossos textos eram informativos, de análise da situação do momento e indicavam uma linha política de resistência.Nos anos seguintes a atuação da AEMEG se tornou mais im-portante, e a repressão se tornou mais intensa; o colega que me sucedeu chamava-se Carlos Alberto Nascimento, foi preso, tor-turado, passou muito tempo na cadeia. Fizemos uma campanha para libertá-lo, denunciando a repressão. A AEMEG organizou os primeiros movimentos de algo que estava começando naquela época a se tornar rotina, a exploração da mão de obra do es-tudante de medicina (acadêmico-bolsista) e do médico recém--formado, o médico-residente. Os movimentos referiam-se aos concursos para os pronto-socorros (chamavam de SUSEME – Superintendência de Serviços Médicos; acho que seria a Secreta-ria de Saúde de hoje) e à remuneração do acadêmico.No caso dos residentes, a questão era de fato uma mudança na forma como se entendia a medicina. Na medicina tradicional, (baseada no médico individual ou “hospitalocêntrica”), o es-tudante ou o recém-formado obtinha o lugar de estagiário ou residente através de conhecimentos pessoais (o estudante seria parente de médico ou os pais tinham “conhecimentos”) ou mes-mo de favor, ou ia “de porta em porta” até encontrar uma vaga. Quando se iniciou alguma institucionalização o caráter de favor se manteve, e quando a medicina se transformou, o médico-re-sidente tornou-se “mão de obra barata” com uma remuneração sem regulamentação. Qualquer reivindicação, desnecessário di-zer, era reprimida, e nos anos sessenta e setenta foi a AEMEG que deu início e sustentação aos movimentos que depois ganha-ram autonomia com as associações de residentes.Devo lembrar que a AEMEG era reconhecida em diversas ins-tituições, como, por exemplo, a Associação Brasileira de Escolas Médicas (ABEM), e participava como integrante de seus órgãos, com direito a voto em alguns casos. Quem consultar os arquivos da ABEM, da Secretaria de Saúde, das Reitorias da UERJ, da UFRJ e da UNIRIO vai encontrar nos anos sessenta e setenta o registro da AEMEG participando como legítima representante dos estudantes de medicina.Outro ponto importante foi o IPM e o processo na Auditoria da Aeronáutica. Ele é pouco mencionado e às vezes tratado como se só interessasse aos indiciados, mas isso é um erro: o IPM e o processo são parte importante da história da FCM. Durou três

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anos, muitos alunos e professores foram depor diante de um mi-litar que nenhum direito tinha de exigir depoimentos de civis, e sem um fato determinado que ligasse a abertura do inquérito com a condição de militar. O roubo de uma metralhadora de uma sentinela da Aeronáutica foi um dos motivos para a abertura do inquérito, e é um fato militar, sem nenhuma relação com a FCM-UERJ; e a manifestação estudantil em frente ao hospital, em outubro de 1968, em que morreu o Luiz Paulo da Cruz Nu-nes, não é um fato militar, mas policial, que deveria ser objeto de inquérito feito por policiais e com direito a advogado.Então a faculdade foi submetida durante três anos a este abu-so, com intromissão em decisões da Universidade e intimidação. A pessoa era intimada a depor, não era dito o motivo (no iní-cio ninguém sabia nada sobre o IPM, só sabia que ele existia), e não podia ir com advogado: não havia o que hoje chamamos (e que muitos pensam que sempre existiu) “estado de direito”. Os depoimentos eram longos, perguntas abusivas sobre coisas que nada tinham a ver com assuntos militares, às vezes sobre crenças e ideias, e é claro, presença de militares armados em toda parte. Eu fui o último a ser intimado a depor. Eu tive de ir sozi-nho (tinha vinte anos) esperei bastante tempo. O coronel-briga-deiro disse-me que me deixou por último de propósito, depois que ele já estivesse ciente de tudo o que ele queria saber, pelos depoimentos dos outros.Depois de algum tempo recebemos a notícia de que haviam sido indiciados dez estudantes, e que o Professor Américo Piquet Carneiro não foi indiciado por interferência de poderosos (?), já que ele era médico de muita gente importante. A primeira audi-ência do processo (na 2ª Auditoria da Aeronáutica) foi em 1970, num clima político de grande repressão (naquele mês estava acontecendo algo que eu não lembro que era o motivo da grande repressão e muitas prisões) e era um tribunal de júri militar. Cor-reu um boato de que os militares do júri haviam recebido ordens para condenar (se os membros do júri recebem ordens, para quê júri?) e que o juiz havia convencido o júri a adiar a sessão para obter mais informações, com a concordância do promotor (que também tinha o sobrenome Salgado). Num tribunal de júri mi-litar o juiz e o promotor são civis, formados em direito, e o júri, militares indicados pelas forças armadas (no caso, a Aeronáuti-ca), e como militares, recebem ordens de quem não participou do júri, ou seja, de seus chefes.

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É um tribunal sem independência e sem Direito, feito para jul-gar militares. Os advogados eram Antônio Modesto da Silveira, Lino Machado Filho e Técio Lins e Silva. Antônio Modesto era o meu advogado e do Celso Moreira de Souza. Lino Machado era o advogado de Jane Corona, e vale lembrar que na defesa que ele fez de sua cliente ele dizia que ela era uma “pobre moça ingênua” e os outros (isto é, nós, os outros réus), os malvados, é que a teriam levado “para o mau caminho”. Houve forte reação dos outros advogados, e o Lino Machado mudou sua argumen-tação com medo diante da ameaça de os outros revidarem no momento das defesas dos outros réus. Na segunda audiência, já em 1971, o júri havia mudado, eram outros militares, e correu o boato de que a ordem seria condenar o Salgado e absolver os outros. Finalmente, em 12/10/1971, Salgado foi condenado e os outros fomos absolvidos.A importância de contar essas histórias é mostrar as diferenças entre aquele tempo e hoje, para tentarmos entender os motivos das ações de cada um. O IPM e o processo na 2ª Auditoria da Aeronáutica não foram simples farsas com a única finalidade de condenar o Salgado. Foram antes de tudo métodos de intimida-ção, de destruir toda crença de que o cidadão é portador de di-reitos, de afirmar que o uso de uma farda ou a condição de agen-te do Estado dá poderes ilimitados. O fato de esse processo e muitos outros processos de auditorias militares estarem até hoje, quase 50 anos depois, vedados à consulta pública, é um modo de impedir que se constate, documentalmente, a natureza daquele regime. Mas restringindo-me apenas à história da FCM, talvez tenha ficado mais claro o peso de um processo como esse na Faculdade. Imaginar que o Diretor, os professores e os alunos es-tavam submetidos a um militar, que estavam sem direitos e sem saber nada do que estava acontecendo, cientes do poder quase absoluto do regime, talvez assim se torne mais compreensível o que é que foi resistir, organizar pequenas atividades, divulgar notícias, publicar boletins e jornais clandestinos. A ameaça era onipresente, não havia como esconder ou negar, e ameaçar foi a função do processo e do IPM.Outro fato que merece ser contado foi a captura e prisão de Celso Moreira de Souza, que era da diretoria do CASAF, eleito também para a gestão 1968-1969. Foi preso em casa, sem man-dato de prisão, sem direito a nada, sua família demorou a saber que órgão policial ou militar o havia levado pois o ato de prender era na verdade um sequestro, em que a pessoa era levada sem

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que se dissesse quem estava prendendo e para onde o levavam: essa era a rotina daquele tempo. Não sabíamos onde ele estava, e a prisão era também uma ameaça direta para mim, pois nós dois tínhamos o mesmo pensamento político: a prisão podia indicar que eu seria o próximo. Depois de alguns dias de angústia, numa certa manhã um “fusca” estaciona bem de frente para o hospital, na rua Jorge Rudge esquina da rua 28 de setembro (a rua Jorge Rudge dava “mão” para a 28 de setembro), na mesma calçada e bem em frente ao bar que fica nessa esquina. Dois “caras” nos bancos da frente, dois no banco de trás, e o Celso, espremido entre os dois no banco de trás.Alguém me chamou (eu estava no pátio, dentro do terreno do hospital). Lembro que eu estava junto com o Erwin Keuper e que ele (era bem o temperamento do Keuper) e outros colegas queriam ir até lá e retirar o Celso à força. Seria um suicídio, pois é claro que deveria haver outros policiais dando cobertura, e o pre-judicado seria o próprio Celso. Não pudemos fazer nada; acredi-to que aquilo foi uma provocação para ver quem se mobilizaria (para identificar quem seria do mesmo grupo do Celso) ou para forçar nova agressão e os policiais se vingarem dos estudantes e fazerem novas prisões, “mostrar serviço”. Não sei até hoje o real motivo. Quando Celso foi solto, contou que foi torturado, apanhou muito e a tortura incluía um jacaré que o mordia e que era exibido como ameaça.Depois disso o Celso ainda participou da vida política na Facul-dade, mas não quis contar em detalhes o que aconteceu. Depois de formado ele foi morar em outro país e nos vimos poucas vezes, sempre sem conseguir que ele respondesse. Não sei se ele ou a família recorreram ao “Habeas data” para saber o que aconteceu ou se recorreram à Comissão de Anistia. Devido ao clima de medo e censura existente na Faculdade, mesmo nos dias em que isso tudo estava acontecendo não conseguimos contar a todos os colegas, muitos não ficaram sabendo.Acho curioso que quando tentei contar esse fato a outros co-legas da Faculdade, anos depois, muitos não acreditaram, não acreditaram nem mesmo que o Celso havia sido preso, pois ele era de temperamento calmo e cômico, simpático. Seu apelido era Celso Charuto. A história que é contada desta época é, na verdade, mal contada. E se mistura com imagens de “grandes façanhas”, de personagens heroicos, e como o Celso não cor-respondia a tais personagens heroicos, nem de longe, então é como se fosse impossível que isso tivesse acontecido. Quando

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conto que eu e o Erwin Keuper éramos amigos e que ele era politicamente atuante, ocorre o mesmo, pois também o Keuper não correspondia ao mito do herói, e “portanto”, não poderia ter sido atuante. O mesmo se passa com a tentativa de negação do peso que o processo e o IPM tiveram na FCM. E também a história da resistência à ditadura militar e ao regime pós-AI-5 (que já não era mais apenas uma ditadura militar, era algo bem pior e muito destrutivo) é mal contada, “esquecendo” e omitin-do tudo o que se refira à resistência democrática. Não me sinto como participante do único grupo “esquecido” pelos que mal contam a história; posso citar que também trabalhistas, socia-listas, grupos de orientação religiosa e vários outros atuantes deixam de ser mencionados.Saí da Faculdade só no início de 1973, pois tive dificuldades na conclusão de algumas matérias. Minha formatura foi separada da dos demais colegas (a deles, em dezembro de 1972, a minha em abril de 1973), e só em abril obtive o registro no CREMERJ. Quando saí, a situação da Faculdade era diferente. Já havia um movimento estudantil mais organizado, os novos estudantes já vinham sem tanta hostilidade à participação política, pois a classe média estava começando a perceber que ela apenas havia servido de massa de manobra, e porque as dificuldades econô-micas começaram a aparecer, com as primeiras denúncias de que o “milagre econômico” era na verdade um crescimento análogo ao crescimento causado por anabolizantes com os seus efeitos colaterais deletérios. E também as ilusões de que o regi-me iria moralizar o país e impor a ordem foram substituídas pela consciência de que a corrupção era muito grande e havia apenas a preservação de privilégios e abusos dos agentes do Estado. Pouco posso falar sobre a FCM depois disso. Passei muitos anos evitando ir lá.Quando através do “Habeas data” obtive as informações que havia sobre mim nos órgãos de repressão pude confirmar que desde 1969 até os anos 80 eu era seguido e registravam todos os meus movimentos. Eu sabia que isso acontecia, pois com frequência eu tinha problemas com o “Atestado ideológico” ou “Nada Consta” que era exigido para obter carteira de motorista, passaporte, visto para viagem ou concursos públicos. Esse docu-mento me era negado, e eu era obrigado a ir ao DOPS na Rua da Relação para explicar a finalidade do documento, dizer para onde era a viagem ou para qual órgão era o concurso, e só depois disso é que era emitido o tal “Atestado”. Isso só acabou nos

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anos 80. Eu tinha ficha no DOPS, no CISA (da Aeronáutica) e em outros, havia registros das atividades exercidas como médico, por exemplo, quando fui da diretoria da Sociedade de Medicina e Cirurgia (uma associação de médicos que ficava localizada na rua Mem de Sá), e até uma denúncia anônima feita por um “colega” de um hospital em que trabalhei. Além disso, havia registros de outras pessoas presas que, sob tortura, mencionavam meu nome e minhas atividades políticas, e inventavam fatos ou me atribuíam participação em atos nos quais eu não tive presença nem concordância.Por último, posso falar sobre o ambiente da Faculdade no ano de 1968. Além de muito estudo, pois passávamos o dia todo na Faculdade, com muitas aulas de manhã e de tarde, tínhamos muitas horas de debates de todo tipo. As assembleias, realiza-das na Biblioteca, não raro, reuniam 300 ou 400 alunos, de um total de mais ou menos 900 alunos. Nos outros debates, os professores eram atuantes, cada um com seu pensamento, e mesmo os funcionários participavam. Os assuntos eram pre-dominantemente a formação do médico, as políticas de saúde, as transformações sociais e as formas de mudança do regime político. O departamento de Medicina Social, recém-criado, trazia uma visão completamente diferente da medicina, e os seus integrantes, Hésio Cordeiro, Moisés Szklo, Nina Pereira Nunes e outros enriqueciam muito a nossa geração que vivia a transformação, ainda mal conhecida, da medicina baseada no médico individual, para uma medicina baseada em um sistema de saúde e na prevenção.Eu me coloquei claramente à esquerda, mas a maioria dos grupos e partidos me pareciam sem consistência, fora da rea-lidade ou tendendo ao totalitarismo. Eu fui tomando conheci-mento do socialismo democrático na Itália, alguns chamavam de eurocomunismo, e depois de oscilar um pouco, coloquei--me nessa direção. A ligação com o partido político era muito mais da minha parte, pois depois de médico formado vi que não tinha reconhecimento nem nenhum poder de influenciar nada lá dentro, e me afastei. Depois de formado é que vi que na realidade o grupo que seguia o pensamento do socialismo italiano era minoritário e afinal foi excluído do partido. Mas essa ligação me foi muito útil como estudante, pois numa si-tuação de ausência de informação, no escuro total, era essa ligação que dava alguma informação e entendimento do que se passava. Essa linha política se tornou predominante por

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alguns anos nas universidades, e, independente de filiação partidária, foi um dos principais protagonistas na resistência ao regime pós-AI-5.Quanto aos acontecimentos de outubro de 1968, devo acrescen-tar que eu tinha 19 anos de idade, assim como a maioria dos alunos, e exigir grande coerência, responsabilidade ou culpa pelo que aconteceu é um abuso. Na assembleia que decidiu por una-nimidade que a manifestação deveria se estender à calçada em frente ao Hospital (ao invés de limitar-se ao pátio interno), não fui muito claro na oposição a essa extensão, e não apresentei uma proposta contrária para ser votada, fiz apenas um discurso criti-cando, pois aquilo me parecia temerário porque eu entendia que o regime estava avançando e golpeando, e a oposição estava sem forças, e todo pretexto seria usado para reprimir. Além de não ter experiência política, e apesar de ter ido contra, lembro que não me pareceu nenhum absurdo fazer uma moderada e pacífica ma-nifestação coletiva em uma calçada, fazer alguns discursos e de-pois retornar ao terreno interno do Hospital. As fotos do dia da manifestação mostram as mãos vazias (ou com livros) de todos os estudantes. Na verdade, os policiais é que tomaram a iniciativa da agressão gratuita, ou sob o mando de autoridades superiores, ao invés de apenas vigiar a manifestação, usaram como pretexto para as ações a estátua da liberdade, que também deveria retornar para dentro do Hospital.

Acima termina o depoimento do ex-aluno André Jorge Cam-pello Rodrigues Pereira. Cabe assinalar que entre os estudantes sub-metidos a julgamento estiveram os ex-alunos João Lopes Salgado, condenado a dois anos e quatro meses de reclusão pelo CPJ da 2ª Auditoria da Aeronáutica, no mesmo julgamento em que foram absolvidos Jane Corona, João Ramos da Costa Andrade, André Jor-ge Campello Rodrigues Pereira, Celso Moreira de Souza, Benjamim Mandenbaum, Juan Alfonso Huaman Alvarez, Amauri Doroguei da Costa e Fritz Carl Utzeri.

Em meados de 1969, houve o sequestro do embaixador ame-ricano, do qual participou João Lopes Salgado; quais carrascos a es-querda produziria caso se alçasse ao poder ninguém, felizmente, pode dizer; a nota do MR-8, relativa às reivindicações para a libertação

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com vida do Embaixador Charles Burke Elbrick, consta do livro A verdade sufocada – A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça, produzido por um grupo de oficiais do Exército, sob o nome de Projeto ORVIL (LIVRO ao contrário), a fim de dar a visão daqueles que lutaram contra as esquerdas daquele tempo. Segue abaixo trecho da nota expedida pelos revolucionários:

Grupos Revolucionários detiveram, hoje, o Sr. Burke Elbrick, em-baixador dos Estados Unidos, levando-o para algum ponto do País. Este não é um episódio isolado. Ele se soma aos inúmeros atos revolucionários já levados a cabo: assaltos a banco, em que se arrecadam fundos para a revolução, tomando de volta o que os banqueiros tomam do povo e de seus empregados; tomadas de quartéis e delegacias, onde se conseguem armas e munições para a luta pela derrubada da ditadura; invasões de presídios, quando se libertam revolucionários para devolvê-los à luta do povo; as ex-plosões de prédios que simbolizam a opressão; e o justiçamento de carrascos e torturadores. Na verdade o rapto do embaixador é apenas mais um ato de guerra revolucionária, que avança a cada dia e que este ano iniciará a sua etapa de guerrilha rural.A vida e a morte do senhor embaixador estão nas mãos da di-tadura. Se ela atender a duas exigências o Sr. Burke Elbrick será libertado. Caso contrário, seremos obrigados a cumprir a justiça revolucionária. Nossas duas exigências são: – a libertação de 15 prisioneiros políticos; – a publicação e leitura dessa mensagem, na íntegra, nos princi-pais, rádios, televisões em todo o País.

No restante da nota, os sequestradores discriminam para quais países mandar os prisioneiros, prazo de 48 horas para uma resposta pública à nota, entre outras providências, dentre elas o “justiçamento” do embaixador, caso as exigências não fossem atendidas. Na prática, a nota elenca todos os atos da esquerda radi-cal, o sequestro do embaixador americano ensejou novos seques-tros. Em entrevista à TV Senado, Jacob Gorender declarou que “A luta armada foi um equívoco, mas foi digna”. Fica a critério do leitor concordar ou discordar disso.

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Título Provisório 131

Sobre professores e alunos em 1971

Do ponto de vista espiritual,o trabalho embrutece um pouco.

E eu tenho medo disso.

Ivo Pitanguy

Palavras de um paraninfo (trechos do discurso do Prof. Dr. Aarão Burlamaqui Benchimol, Professor Titular do Serviço de Cardiologia do HUPE-UERJ – Turma FCM-1971):

Magnífico Reitor da Universidade do Estado da Guanabara, Pro-fessor Oscar Accyolly Tenório.Ilmo. Sr. Diretor do Centro Biomédico da UEG, Prof. Américo Piquet Carneiro.Ilmo. Sr. Diretor da Faculdade de Ciências Médicas, Prof. Jayme Landmann.Autoridades presentes: Srs. Professores e homenageados. Meus Senhores. Minhas Senhoras. Meus Jovens colegas.

Com a honra que me destes de ser o vosso paraninfo, nesta cerimônia que marca os vossos ingressos na profissão que es-colhestes, me dais, também, a indizível alegria de ver entre vós um jovem que, sendo meu próprio filho, carrega a força do meu espírito e as esperanças do meu coração. Obrigado, pois, pela honra com que me distinguistes e pela alegria que me entregais. Buscarei corresponder ambas com palavras que, dirigidas a no-vos colegas, serão como vozes que em surdina e com ternura descessem aos vossos ouvidos de jovens médicos a quem devo os melhores conselhos e a melhor afeição.

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Por isso, a chamar-vos de meus colegas prefiro chamar-vos de meus companheiros, de meus amigos. Sendo assim, de mim não espereis uma lição, como prosseguimento do curso que termi-nais, no estudo de novo caso que nos chegou às mãos ou na análise de uma nova teoria lançada, mas, isto sim, uma conversa amável, dessas que se fazem em reuniões de amigos, cheias de simplicidade e ditadas pela cordialidade e pelo afeto.Serei neste nosso último encontro formal o expositor informal, mais falando ao que sereis do que ao que sois, mais olhando o mundo para o qual ireis do que o mundo em que hoje vos en-contrais, fechando os olhos para vossas alegrias desse instante e antessentindo os desencantos que poderão surgir em vossa cami-nhada, na profissão que abraçastes com carinho e vocação, para bem servi-la e bem dignificá-la.Não serei desse modo quem dá um alerta; não serei aquele que louva e aplaude, mas aquele que, às vezes, se faz amargo nos es-pinhos que aponta em meio às rosas que despetala. Não é assim que se devem falar os pais aos filhos que prezam, porque nele se desejam ver continuados? É de ver que sim, razão por que não fujo assim de vos falar. Com a flama de vossa inteligência e de vosso entusiasmo saís para um mundo em que a dúvida se sobrepõe à certeza, em que as indecisões se sobrepõem à cora-gem das afirmações, fazendo com que os homens atemorizados pela intranquilidade, mais cuidem do imediato do que de meditar primeiro para em seguida agir.Esse é o mundo que ides encontrar como um desafio a vossa fé e a vossa mocidade, em funda ameaça aos princípios que rece-bestes no cultivo da ciência e consolidastes, no íntimo de vossas almas, com grandeza de vosso amor a Deus.Existe, espalhada pela terra, uma ânsia de negar, em todos os sentidos e a todos os propósitos. Nega-se a evidência dos fa-tos, a evidência das coisas, a própria evidência dos céus. Tudo é negar. O que a ciência mostra e o que a fé impõe. Assim pensando é que a vós me dirijo mais do que a uma nova tur-ma de novos médicos, a uma falange de novos combatentes em favor do engrandecimento do Brasil, país nascido sob o signo da Cruz, até hoje vivendo no caminho de Cristo e no respeito a Deus.Na hora que passa, não basta que vós sejais médico do corpo. Mas tereis e havereis de ser em todos os vossos atos o cidadão que afirma, e não o homem que nega. Afirmar para construir, dentro da ordem e da lei, a grandeza da nossa nação.

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Título Provisório 133

Bem sei que a juventude de hoje tem se caracterizado também por uma atitude de contestação, por vezes das mais veemen-tes, e o próprio ensino médico não tem sido por ela poupado. Entretanto, esse ensino vem passando por grandes transfor-mações e por um processo de aperfeiçoamento constante nos últimos anos.Vós mesmos já tivestes a oportunidade, que infelizmente ainda falta à maioria da comunidade médica universitária brasileira, de ter sido vosso aprendizado dentro de um Hospital de Clínicas, que é sem favor algum um dos melhores do País.A existência desse hospital permitiu um ensino mais prático, mais objetivo, menos enciclopédico e teórico, consentâneo com os princípios modernos da educação médica. Por outro lado assistiu-se à benfazeja liberalização das relações entre professo-res e alunos, e às programações dos cursos realizados depois de ouvidas as opiniões dos alunos.É bem de ouvir que a eficiência do ensino em nossa Faculdade ainda requer muitos melhoramentos, o que vem ocorrendo mais lentamente, mas que se acelerará quando, uma vez terminadas as obras do Campus, a Universidade dispuser de recursos para implantação do tempo integral e de outros programas, e também quando o Governo formular em definitivo uma Política Nacio-nal de Saúde.Até aqui, bem o sei, muito estudastes, daqui por diante muito mais tereis que estudar. Se tu foste por acaso mau aluno, cuidai agora de ser bom médico. Não só os que brilham nas esco-las alcançam brilhar lá fora. Lembrai-vos de que Euclides da Cunha teve uma reprovação em Português. E viria a escrever Os Sertões.Para vossa caminhada, optastes pela mais nobre das profissões. Sendo a mais nobre, não deixa por isso de ser a mais árdua, a mais cheia de desencantos e decepções. Aos maiores sacrifícios nem sempre correspondem as mais justas recompensas. Não vos atemorizeis, contudo. O vosso prêmio devereis buscá-lo em vós mesmos, na tranquilidade e não na palavra agradecida do bene-ficiado com a vossa dedicação e com os vossos conhecimentos. Se a vida é assim feita, só temos que olhá-la como ela é. Em verdade assumis as vossas responsabilidades em um momento particularmente difícil de nossa nobre arte, e por que não dizê-lo do mundo em sua conjuntura atual?A profissão médica vem sendo submetida por diversas cir-cunstâncias a duras provações. Primeiro à pseudossocialização,

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reinante, que despersonaliza e avilta o exercício profissional, ao lado de um sacrifício da quantidade pela qualidade, que já co-meça na formação dos profissionais e que tem seu apanágio na filosofia reinante das entidades estatais, que exigem número de atendimento antes que qualificação dos mesmos. Eles são os do-entes atendidos sem amor à arte, açodadamente, desatentamente, sem o respeito devido à dignidade da figura humana, sem a so-lidariedade ao sofrimento alheio, o que constitui o atributo mais nobre e essencial da profissão.São essas as qualidades que dignificam a medicina dentre todas as outras profissões liberais e que tornam o médico que exerce a sua profissão com dignidade um dos membros mais respeitados da sociedade. Entretanto, a estrutura do trabalho, nessa nossa deformada medicina pseudossocializada, obriga o médico a uma pluralidade de atividades que o desgastam fisicamente, sem pro-ver os recursos necessários para a sua subsistência e sem deixar--lhes sequer a perspectiva de melhores dias. Assim, o médico sem gratificação de ordem profissional, emocional ou econômi-ca, vem se aviltando ao longo dos anos, reduzindo o conceito social de que a classe deve desfrutar, e transformando-se num dente da gigantesca engrenagem estatal de prestação de serviços médicos à comunidade.Lutai denodadamente contra o aviltamento profissional, não vos deixei despersonalizar pelo exercício estéril e desumano da pro-fissão, e tereis toda condição para triunfares na vida, a despeito de todas as dificuldades atuais. [...]Amargurareis por vezes a penosa sensação da incapacidade dian-te da morte brutal e inexorável. Sentireis o peso da responsabili-dade diante das decisões dramáticas que constituem o cotidiano da vida do médico. Mas a tudo suportareis, se tiverdes fé no seu destino, a crença na nobreza de sua profissão. Aceitai as vossas limitações. Colocando sempre a figura do doente acima da figura do médico. Que sede felizes.

Foram feitos os votos de melhores augúrios e dados os melhores conselhos para a Tuma FCM-1971, e, de fato, não há senões a serem feitos às palavras sinceras do Dr. Aarão Burlama-qui Benchimol para os formandos de 71. Mas o que pensavam os alunos calouros, entrantes na Ciências Médicas em plenos anos de chumbo?

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Título Provisório 135

Na verdade, conforme nos relata o ex-aluno Ricardo Viei-ra Elias, o Movimento Estudantil estava bem debilitado em todo o País. Entramos na Faculdade em 1971, ainda no governo Mé-dici. A supressão de nossas liberdades era asfixiante. Lembro-me de uma ocasião, em 71 ou 72, em que o Conselho de Represen-tantes foi reivindicar uma coisa básica, simples, ao Reitor, que na época era o João Lira Filho. Apesar de ser algo com prati-camente nenhuma conotação política, levamos uma carraspana do Magnífico Reitor e voltamos para a Faculdade com as mãos abanando. Naquele dia percebi que não conseguiríamos nenhum avanço apenas na base de conversa. Era a velha fábula do Lobo e o Cordeiro ali, na nossa frente...

Outro ex-aluno da turma de Ricardo Vieira Elias, Eduardo Faerstein, também dá importantíssimo depoimento sobre o início dos anos 70:

Ingressei na Ciências Médicas em 1971, mas como estudante secundarista, eu já havia participado das principais passeatas de 1968, e editava um jornal no Colégio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem, onde estudei a vida toda antes da universidade. Via--me, em família e entre colegas e amigos, vagamente criado nas tradições da esquerda (ainda) pró-soviética.No “Peri-AI-5”, eu e outros amigos encontramo-nos no fogo cruzado disparado por aqueles que já se alinhavam às múltiplas tendências em que a esquerda radicalizou seus cismas – que já vinham em ciclos desde muito antes, com determinantes com-plexos (nacionais e internacionais).Naquele momento, simplificando, tratava-se de ser contra ou a favor da via insurrecional armada, para enfrentar a ditadura bra-sileira, que se fascistizava no governo Médici.Optei por estar junto daqueles que vislumbraram o desastre político em que rapidamente se transformou a guerrilha, em suas diversas vertentes, e escolheram a presença e trabalho políticos nas instituições, partidos, associações e entidades de todo tipo, fortalecendo amplas alianças em prol da redemocra-tização do país.Na Universidade, essa visão se traduzia, na primeira metade da década de 1970, na valorização das reivindicações específicas

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dos estudantes (da melhoria do ensino à manutenção de sua gratuidade etc.), e das atividades associativas em geral (p. ex.: científicas, culturais, esportivas, sociais). Dessa forma, se bus-cava resistir ao clima de medo generalizado e ao isolamento en-tre as pessoas, e ao esvaziamento das entidades representativas, impostos pela ditadura. As Semanas de Calouros reuniam um pouco disso tudo!

Foi feito também o seguinte questionamento a Eduardo Faerstein, aluno dos anos 70, qual seja:

Quando no segundo ou terceiro ano da existência da Asso-ciação dos Médicos do Hospital das Clínicas da UERJ AME-RE-HC (na verdade Hospital Universitário Pedro Ernesto), quando um representante foi chamado para participar das reuniões do Serviço de Residentes e Internos da UERJ, ne-nhum dos membros quis ir, mas eu fui como voluntário. Em que medida o alunato se negava ao diálogo com mestres ou preceptores em sua época de estudante? Por quê?Eu achava muito importante esse diálogo. Entre a maioria dos docentes predominava o medo, como entre a maioria dos alunos. Todos sabiam o que ocorria ali perto, nos porões do quartel da PE da Tijuca, onde vários colegas estiveram presos e tortura-dos. A FCM-UEG (depois UERJ) era especialmente visada, por conta dos acontecimentos de 68, com o assassinato do aluno Luiz Paulo da Cruz Nunes (Turma FCM-1972), e as bombas de gás lacrimogêneo que foram atiradas para dentro do HUPE. A tragédia não tinha sido maior graças à atuação do Prof. Américo Piquet Carneiro, que pessoalmente salvou vidas de torturados, e ajudou financeiramente a defesa judicial de presos políticos e a sobrevivência de famílias de militantes na clandestinidade. Vários outros docentes contribuíam da mesma forma. Alguns estimula-vam dinâmicas participativas em suas disciplinas (exempli gratia a Profa. Euzenir Nunes Sarno). Tudo isso foi muito, muitíssimo importante, durante os piores anos de chumbo.

De fato, concluído o depoimento de Eduardo Faerstein, note-se que o governo militar também criou a Assessoria Es-pecial de Segurança e Informação (AESI). A AESI fazia parte da engrenagem de Segurança e Informação da Ditadura Militar.

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Estava subordinada à Divisão de Segurança e Informação do Mi-nistério da Educação e da Cultura (MEC-AESI) e dispunha de agentes infiltrados nos altos escalões das burocracias universitá-rias de particularmente todas as instituições públicas do país. Um professor, por menor que tenha sido a sua abertura ao diálogo, ter relação afável e de absoluta confiança mútua com estudantes era algo muito salutar.

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Participação estudantil nos negros verdes anos 70

Lua à vistabrilhavas assim

sobre Auschwitz?

Paulo Leminski

Segundo documento da Associação de Estudantes de Me-dicina do Estado da Guanabara (AEMEG), o estudante Carlos Alberto Nascimento Santos, então Presidente da Associação, fora preso acusado de ser pombo-correio do grupo de extrema esquer-da VAR – Palmares entre o Rio de Janeiro e a cidade Volta Redon-da, dentro da perspectiva de que a “segurança da nação era mais importante do que a segurança individual”, conforme no mesmo documento teria dito o Ministro da Educação, Coronel Jarbas Pas-sarinho. Suspeita muito contraditória, por ter sido a AEMEG uma entidade criada para fazer oposição dentro da legalidade, sendo uma das primeiras entidades a se manifestar publicamente contra a atuação dos militantes de esquerda que optaram pela luta armada, não como luta a favor da redemocratização, mas por em si mes-ma ter a perspectiva da implantação revolucionária da ditadura do proletariado, por meios violentos, desde a guerrilha até a perspec-tiva pretensiosa de uma guerra insurrecional, grupos de extrema esquerda esses que julgavam representar o povo, mas que não re-presentavam de forma alguma. A AEMEG levantava as bandeiras

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que viriam a ser as da geração dos anos setenta, pelas liberdades democráticas, contra sequestros de diplomatas, contra atos de ter-ror da esquerda e da direita.

A Faculdade de Ciências Médicas da UEG havia sido es-colhida, entre outros pontos que foram atingidos pela repres-são, para ser mais um local de reafirmação do golpe militar de 64. A verdade é que seu movimento autêntico com proposições internas para melhoria do ensino e externas pelo fim da dita-dura tornou-a um alvo específico da repressão. Os professo-res cujas cadeiras haviam sido criticadas dentro da exigência de uma discussão sobre o ensino achavam que era necessário apor um ponto final nas discussões curriculares sobre a faculdade. A consciência de que haviam sofrido uma derrota na universidade levava os estudantes, sem o que explorar na escola, a voltarem--se para a atividade externa. João Lopes Salgado, último presi-dente do CASAF, caíra na clandestinidade, sendo substituído por André Jorge Campello (Vice-Presidente).

Na Ata da 154ª Reunião do Conselho Departamental da FCM (09.01.1969) o Diretor Piquet Carneiro, visto a distribuição de notas aos vestibulandos incitando-os à rebelião, colocou em discussão a dissolução do CASAF-livre: “... Há uma posição de radicalismo em todos os problemas da Faculdade; chegará a um ponto em que os membros do Diretório não poderão mais conti-nuar, pela posição assumida dentro da Faculdade”.

Na mesma reunião, o Prof. Jayme Landmann propôs a dis-solução e intervenção no Diretório: “... o fato deve ter uma conse-quência, não pode partir para uma simples advertência; a época das advertências já passou. O Presidente não poderá mais reassumir o cargo, sob a pena de serem envolvidos em casos mais sérios”.

André Jorge Campello, embora sabendo que a Nota fora feita pela Diretoria do CASAF-livre, na intenção de evitar o seu fechamento, afirmou: “... a Nota foi distribuída em nome do CASAF-livre, mas o documento não é de sua autoria, não se

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deve confundir o núcleo com todos os alunos, não é a dissolu-ção do Diretório que resolve o problema”.

O intenso policiamento que a Faculdade sofria fez com que se presumisse a invasão do Diretório. Numa madrugada, em ato de terrorismo policial e vandalismo, uma bomba foi colocada no CASAF. Apesar da tentativa de contemporização do Vice-Presi-dente, o Diretório foi fechado no início das aulas. O trabalho para retirada do entulho da explodida sede do CASAF-livre foi aprovei-tado para derrubar um murinho perto do pátio, onde os estudantes costumavam sentar-se para o exercício do diálogo. Em âmbito da Ciências Médicas, o momento escolhido para as punições na FCM foi o início das férias de 68 e começo de 69. Em primeiro lugar, as suspensões, e por fim as expulsões, que logicamente deveriam cair sobre aqueles que se haviam destacado no movimento estudantil, a saber: João Ramos da Costa Andrade, Jorge Manoel de Oliveira e Silva e Cláudio José de Campos Filho, expulsos pelo professor Jayme Landmann, quando este interinamente substituía o professor Amé-rico Piquet Carneiro em férias do cargo de Direção da Faculdade.

Em fins de julho (outra vez nas férias) e por todo o correr de agosto, instalou-se na FCM um Inquérito Policial Militar atingindo estudantes de todas as séries, inclusive estudantes do primeiro ano, que não entendiam a razão da interpelação, pois não haviam par-ticipado de 1968. A IPM também se submeteria o Prof. Américo Piquet Carneiro, acusado de proteger estudantes subversivos. Mais tarde, o Prof. Piquet possibilitaria o retorno dos alunos expulsos, sem que qualquer punição constasse em seus currículos; para to-dos os efeitos haviam trancado matrícula durante o ano de 1969.

Antes mesmo da edição do AI-5, o Professor Jayme Land-mann foi comunicar ao Dr. Virgílio Pinho da Cruz Vicente Faria que o médico Luiz Roberto Tenório não poderia mais fazer resi-dência no Hospital Pedro Ernesto da UEG.

Se Dr. Tenório não pode fazer residência médica aqui, eu tam-bém não posso trabalhar neste Hospital. O Tenório passou por todas as avaliações de clínica, tendo inclusive sido convidado

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para ser professor auxiliar. Então eu também não posso mais trabalhar aqui.

O motivo real logo veio ao conhecimento de todos, na pri-meira lista de cassados pelo AI-5, estava o nome de Luiz Roberto Tenório. Uma gama de problemas mais complexos surgia com o movimento estudantil em maré vazante. Observava-se, a todo o tempo, a mudança de comportamento dos professores e catedrá-ticos em relação aos estudantes entre 1968 e 1969. Acelerava-se a implantação do ensino pago, sem possibilidade alguma de resis-tência. No momento em que João Lopes Salgado, com mais doze companheiros, participou da operação de sequestro do embaixa-dor americano Charles Burke Elbrick em troca de quinze presos políticos (entre eles Gregório Bezerra), opção de procedimento feita pelo MR8 para libertar companheiros presos, os alunos da FCM procuravam reconquistar sua entidade para levar suas reivin-dicações e lutas.

Os estudantes que tinham vivido 68 se apresentavam des-crentes e amedrontados; os que chegavam depois traziam a baga-gem da inexperiência. Era preciso um reaprendizado coletivo, uma melhor conceituação do que diferenciava o movimento univer-sitário do movimento das vanguardas universitárias. Foi quando, pretextando apresentar mediação ajustada àquele momento para o problema da representação estudantil, o Reitor lançou ofício auto-rizando a eleição de turma, permitindo a criação de um Conselho de Representantes (CR) composto de alunos de cada série e presi-dido pelo quinto ano.

O CR era órgão consultivo do CASAF quanto aos proble-mas específicos de cada turma. Foi concedido com limitações amplas. Para se reunir, seria sempre necessária a autorização do Prof. Hugo Caire de Castro Faria, então nomeado Vice-Diretor para assuntos estudantis. Entre os estudantes, havia oposição à formação de uma entidade atrelada, várias tentativas haviam sido feitas durante o ano para manter o CASAF-livre. Mesmo

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assim, em novembro de 1969 realizaram-se eleições para o Con-selho de Representantes da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ CR-FCM-UERJ, simplesmente chamado de CR (entidade representativa dos estudantes da Ciências Médicas, na ausência do CASAF). A disputa se fazia no CR, onde a cada eleição pro-gressivamente era derrotada a política pelega. Então, como ato suplementar à fraqueza da entidade, a partir de 1971, só pode-riam ter direito à eleição os representantes das turmas dos alunos colocados no terço superior das médias de cada turma do ano anterior. A Lei do Terço se constituía dentro da UEG como des-dobramento do Decreto-Lei n. 477.

Após a morte do capitão Carlos Lamarca, em dezessete de setembro de 1971, João Lopes Salgado retirou-se do país. Foi condenado a dois anos e quatro meses de reclusão pelo CPJ da 2ª Auditoria da Aeronáutica, no mesmo julgamento da absolvi-ção de Jane Corona, João Ramos da Costa Andrade, André Jorge Campello Rodrigues Pereira, Celso Moreira de Souza, Benjamin Mandelbaum, Juan Affonso Huaman Alvarez, Amauri Doroguei da Costa e Fritz Carl Utzeri. Todos os nove estudantes processa-dos sob as acusações de distribuir panfletos subversivos, aliciar outros estudantes para “práticas delituosas” e manter filiação a movimentos de esquerda na Faculdade de Ciências Médicas da UEG, durante o ano de 1968. Sua defesa foi feita pelos advoga-dos Lino Machado Filho, Antônio Modesto da Silveira, Técio Lins e Silva e George Tavares. Na auditoria, participaram como testemunha de acusação os professores Hugo Caire de Castro Faria e Jayme Landmann. Não fizeram carga; as acusações eram do tipo “pregaram cartazes”, “distribuíram notas”, “escreveram nas paredes”.

Em agosto de 1971, assumiram a Direção e Vice-Direção da Faculdade de Ciências Médicas os professores Jayme Landmann e Roberto de Alcântara Gomes. O primeiro problema estudantil de relevo enfrentado pelo novo Diretor foi a colação de grau da turma do estudante assassinado na porta do hospital. O patrono

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escolhido pela turma foi o jovem Luiz Paulo da Cruz Nunes, e o discurso continha o necrológio escrito pelo Reitor João Lyra Filho na época da ocorrência.

O Prof. Jayme Landmann proibiu o discurso e só concor-dou em ser responsável pela solenidade, após entrevista com a co-missão de formatura, para obter desta o compromisso de eleger novo patrono para submeter ao Conselho Departamental, e que o discurso deveria ter um caráter afetivo, excluindo o necrológio escrito pelo Reitor. Uma síntese com os trechos principais do dis-curso proibido é agora transcrita:

Hoje é dia de festa, dia de festa nacional, hoje estão se formando 130 médicos. Diante das necessidades do país e da complexida-de dos problemas de saúde, a desistência de cada um era crime contra o povo. Desde janeiro de 1967 até hoje, enfrentamos a difícil tarefa de ser universitário brasileiro. Os momentos de ilu-são foram poucos; logo vimos, não só pelos olhos dos nossos colegas veteranos como por nossa própria existência diária, as deficiências do curso médico.Rapidamente nos conscientizamos de que nossa participação era de fundamental importância e nos atiramos, ao longo desses 6 anos, ao trabalho de apontar os erros, tentar encaminhar as me-lhores soluções e procurar a criação de uma vida universitária.Somos a turma que viveu 1968, ano em que mundialmente a juventude sacudia as universidades dos países, ano em que fomos chamados de questionadores das velhas gerações. Disseram que não acreditávamos nos velhos, que sabíamos o que não quería-mos e não sabíamos o que queríamos. A verdade desses seis anos é bem diversa. Apesar de todo tipo de pressões, em nenhum mo-mento abdicamos dos propósitos de uma universidade melhor. Enfrentamos uma série de lutas, algumas coroadas de louros e outras fadadas ao fracasso. Essas, entretanto, não nos abateram, pois dentro da derrota fortificamos o que tínhamos e temos ain-da hoje: – a união.Mas esses impasses não foram vividos somente por nós. Conos-co, os professores reivindicaram verbas para as suas disciplinas, tempo integral para melhor se dedicarem ao ensino e, principal-mente, o exercício da pesquisa como pré-requisito para as uni-versidades se tornarem centro de cultura.

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A modificação do currículo praticamente não houve. As dificul-dades eram imensas, mas conseguimos aceitar a compreensão de que a universidade era professores e alunos juntos. Concretiza-mos a união de duas gerações na defesa do ensino, da cultura e da pesquisa. Percebemos que somente a escola unida encontraria o caminho livre onde pudesse respirar um pouco de saber.Sofremos algumas baixas. Estendidos no campo ficaram mortos e feridos. Luiz Paulo. Com ele todos morreram um pouco. Mor-remos nós, ao ver que a universidade permanece longe daquilo que idealizamos; morrem os médicos, quando ainda hoje, seja nos ambulatórios, nas enfermarias ou salas de aula, defronta-se com o ensino desvinculado da realidade; morrem os pais, quan-do percebem que os filhos estão longe do objetivo da profissão que abraçaram. Nesta frustração coletiva, tomamos nota das pa-lavras contidas no Boletim da UEG: “a compunção não exclui a revolta”. Lá se foi o desventurado Luiz Paulo, para nunca mais, deixando a dor no lar construído por seus pais e fundos ressenti-mentos no coração de todos nós. Sua juventude em flor somava esperanças que malograram e perdeu-se na estúpida façanha de um policial assassino. Não houve quem deixasse de abrir a alma e a consciência à solidariedade que ainda agora reiteramos aos seus colegas. Por que matar um jovem cheio de promessas radiantes? Por que incutir no ânimo dos moços a desconfiança implacável? Que fez Luiz Paulo para ser morto, como se o seu instinto fosse o de uma fera? Que trevas terríveis caem sobre nós todos! Seu grande crime: ser digno, brioso e inteligente; possuir ideal, que-rer ao estudo e desejar ser, na medicina, para servir ao Brasil e à Humanidade.Quem é o assassino? Que folha corrida haverá de possuir em confronto com a vítima? De qual dos dois precisaria mais a nossa Pátria? Eis o silêncio, eis a sombra, eis o mistério que a socieda-de estimaria ver desvendado. Quem não se abala ao saber que um jovem estudante foi morto a bala? A UEG ainda tem pre-sente, para não esquecer jamais, a lembrança dramática do qua-dro! Como sair da nossa imagem aquela tragédia trabalhada pela hediondez de um facínora? Que fez Luiz Paulo para ter a vida ceifada? A polícia não esclareceu. Que fez a polícia para identi-ficar e punir o assassino? Que sabe a opinião pública a respeito? Porventura, haveremos de querer que a juventude se desfibre na omissão ou que vegete no despejo de suas ideias?Não: a Universidade precisa que jovens cultivem seus próprios ideários e que os mestres não comprometam a autonomia de

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espírito dos alunos. Luiz Paulo só possuía uma ambição: ser médico. Antecipando-se ao tempo, frequentava enfermarias e manejava instrumentos de medicina. Seus dias fecundos eram aplicados no treinamento que se dispunha a acumular à experi-ência precoce. Todos os depoimentos são uniformes: moço de juízo prematuro e de coração ameno. Amava, à luz do olhar da sua eleita; dispunha-se a viver para o amor nobre e a ciência pura. Seus colegas extremavam-se na vizinhança do desespero. Só eles?Não; toda esta Universidade. O desespero existe porque nos sen-timos de consciência violentada. Nosso Reitor exprimiu o pensar e o sentir da UEG no texto da nota que ditou, pelo telefone, para ser intensamente divulgada. As palavras do nosso Reitor, transmitidas aos alunos da Faculdade de Ciências Médicas, reu-nidos na cantina do Hospital de Clínicas, foram as palavras que cada um de nós desejaria ter pronunciado. No túmulo da vítima inesquecível, escritas na tarja de uma coroa, estes poucos dizeres: “A Luiz Paulo, nossa Universidade”. Estamos de luto e sentimos nojo. Os meses e os anos correrão, talvez sejam vorazes. Mas na corrida não nos despojaremos da lembrança ensanguentada. A lembrança perdurará. Que sirva de semente; que frutifique na consciência dos responsáveis pela ordem e pelo bem-estar social o dever de banir, para sempre, uma ilustração tão malvada.A funesta verdade é que um jovem estudante morreu. Vítima de um sicário: morreu, exatamente, no momento em que mais a esperança precisava de sua vida: Luiz Paulo da Cruz Nunes! Não lhe diremos adeus, a lembrança de sua presença haverá de seguir com a nossa UEG.Mas hoje é dia de festa, dia de festa para o cidadão brasileiro que deposita na mão desses 130 médicos a esperança de ver sanadas suas doenças. Será que o tipo de formação se coaduna com a necessidade do povo brasileiro? Será que estamos aptos a assu-mir este papel? Qual de nós se arrisca a enveredar pelo caminho da clínica geral, das doenças infecciosas e parasitárias, da saúde pública? Até que ponto a formação universitária e a oferta do mercado de trabalho não nos impõem qualquer tipo de opção?Entre o médico e o doente colocou-se uma estrutura hospita-lar: a pública e a privada. Na primeira, predominam os valores médicos sobre as necessidades administrativas. Já a organização privada para os fins lucrativos submete os valores médicos a seus valores administrativos. A medicina privada estabelece uma rela-ção com a doença e não com a saúde.

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A saúde no nosso país, no que tange ao estado, é um mito. O Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) vem-se trans-formando em estrutura de auxílio à medicina privada; em vez de proporcionar diretamente assistência médica, financia as casas de saúde particulares. Essa estrutura, da mesma forma que sacrifica o doente, crucifica o médico, que dessa maneira passa a ser algoz do doente e vítima da assistência médica que não o deixa tratar. A resolução desses problemas ainda está longe de ser real, porém os caminhos para tal começam Hoje, Aqui, Agora!Hoje é dia de festa! Terminamos os seis anos de lutas e sobrevi-vemos; em determinados momentos a sobrevivência é o maior rasgo de consciência. Isto significa que lutamos, morremos, mas ressuscitamos. Não somos como mortos vivos, mas sim como novos homens renascidos após intensas batalhas.Parabéns, colegas; parabéns, pais; parabéns, mães; parabéns, pro-fessores; a virtude está em poder permanecer sem perder a cons-ciência, e esta é a herança que esta turma de estudantes deixa.

Quando a oradora Telma Ruth Cruz Pereira subiu à tribuna, fez-se silêncio. Página por página do discurso foi virada: “Era o que podíamos dizer!”. Em seguida, houve a chamada e um dou-torando gritou: “Luiz Paulo, presente!”. Nesse momento, o prof. Jayme Landmann, em meio a apupos, deu por encerrada a soleni-dade e a cortina do teatro se fechou. Como não havia sido feito o “Juramento de Hipócrates”, os formandos tiveram que colar grau mais tarde, individualmente, no gabinete do diretor da FCM.

Nascido em 13 de outubro de 1947 no Rio de Janeiro, es-tudante do 2º ano da Faculdade de Medicina da UEG (futura UERJ), Luiz Paulo da Cruz Nunes foi morto em 22 de outubro de 1968, quando participava da passeata de protesto contra a prisão dos líderes estudantis presentes ao XXX Congresso da UNE, em Ibiúna, realizada na porta do Hospital Pedro Ernesto. Esse dia ficou marcado como o “Dia Nacional de Luta contra a Repressão ao Congresso da UNE”.

Levado para dentro do hospital, com ferimento no crânio, foi operado e faleceu no mesmo dia. A necropsia foi realizada pelos médicos João Guilherme Figueiredo e Nelson Caparelli.

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Título Provisório 147

O corpo foi retirado do Instituto Médico-Legal pelo tio, Oscar Freire de Sá Siqueira, e sepultado pela família no Cemitério São Francisco Xavier.

No ano de formatura de faculdade, FCM-UEG, em 1972, foi escolhido como patrono, no entanto, como visto, o Reitor proi-biu a solenidade por saber que o orador denunciaria os desmandos do governo ditatorial. As solenidades só vieram a se realizar em 24 de outubro de 2008. Nesse mesmo dia, o então Reitor, Ricardo Vieira Alves, em homenagem a Luiz Paulo da Cruz Nunes, deu seu nome a uma praça no campus da UERJ.

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大字报 – Informativo Dazibao: O caso mais grave de tortura sofrido

por ex-aluno da FCM-UEG/UERJ

O Bem consiste em uma dialética do Bem e do Mal.O Mal consiste na negação dessa dialética,

na desunião radical do Bem e do Mal e, por consequência,na autonomia do princípio do Mal.

Enquanto o Bem supõe a cumplicidade dialética do Mal,o Mal fundamenta-se em si mesmo, em plena incompatibilidade.

Jean Baudrillard

Nome: Claudio José de Campos Filho – médicoIdade: 27 anosLocal: RJ – Polícia do Exército – 1973Apelação 41.845; vol. 4. Pág. 1053 v e 1054 – DCCI. Pág. 369 CJFC

O depoente foi preso no dia 2 de abril de 1973, em sua resi-dência, sendo levado para a PE (Polícia do Exército); onde sofreu toda sorte de maus-tratos; que o depoente apresenta-se em audi-ência usando aparelho ortopédico, atribuindo seu uso ao fato de ter sido seu nervo ciático poplíteo externo lesado em virtude do uso de um aparelho qualquer que lhe fora colocado naquele local e que fora levado para o CTI (Centro de Tratamento Intensivo) do HCE (Hospital Central do Exército) em coma hiperosmolar e insuficiência renal aguda, e também apresentava-se com paralisia de membros inferiores e que viera a se recuperar em virtude dos tratamentos realizados a que se submeteu; que o depoente sofreu

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perda parcial da memória e encontra-se ainda em tratamento, que o depoente encontra-se impedido de exercer suas funções de mé-dico psiquiatra em virtude das lesões a que fora cometido...

Felizmente, o ex-aluno recuperou-se e exerceu suas ativida-des profissionais sem sequelas aparentes.

Claudio Campos ministrou aulas de psicologia médica para a Turma FCM-1978. O ano era 1975, naquelas aulas se reportava frequentemente à tortura, denunciava o regime ditatorial e falava até de psicologia, como alunos aproveitamos menos do que nos poderia transmitir, ao menos naquela hora, sobre psicologia médi-ca, matéria que sabia muito.

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O canto geral na casa de Jane

Não vou morrer. Saio agoraneste dia cheio de vulcões

para a multidão, para a vida.Aqui deixo arrumadas estas coisas

hoje que os pistoleiros passeiamcom a “cultura ocidental” nos braços,

e a desonra que governa o Chile.

Pablo Neruda

Em todos os cantos onde um aluno carecia de apoio para, em razão de dificuldades políticas, não ser impedido de concluir seu curso médico, encontrava-se estendida a mão do Professor Américo Piquet Carneiro; não foi outra pessoa quem deu palavra de alento à estudante Jane Corona, ré em Inquérito Policial Militar na Aeronáutica, cuja recomendação do advogado era a de ir para o exílio, sob a pena de prisão por até 25 anos, por esse tempo ter sido aventado pelo Brigadeiro João Paulo Moreira Burnier.

“Jane, o melhor é você sair do país por um tempo.”“O senhor acha mesmo, Dr. Lino Machado? Falta pouco

para eu me formar.”Convidada para fazer parte da Diretoria do CASAF, Jane

Corona sabia serem justas as reivindicações feitas pelos estudantes em relação ao currículo.

“Mas, Salgado, o que eu vou fazer no CASAF?”“Faça o que você gosta de fazer, apostilas.”

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Dessa forma Jane veio a fazer parte da Diretoria do CASAF exatamente no ano de 1968, onde cadastrava os alunos quando iam lá comprar suas apostilas, demonstrativas da sua dedicação aos estudos e generosidade de compartilhamento com os demais estudantes dos aprendizados e conhecimentos compilados, mes-mo antes de fazer parte da Diretoria. Para Jane, olhar os estudan-tes da Ciências Médicas saírem às ruas significou uma ampliação da consciência na diretiva de perceber uma luta política por uma causa maior, não restrita apenas aos muros da escola em rela-ção ao resgate da democracia no país naufragada desde 1º de abril de 1964. Casada com o jornalista Luiz Rodolfo Viveiros de Castro, jornalista do jornal O Estado de S. Paulo, mais conhecido como Estadão, seu marido, vulgo Gaiola, não era codinome, e sim apelido mesmo, correspondente no Rio de Janeiro, já estava exilado no Chile desde 2 de agosto de 1970. Cabe antecipar o périplo, após a queda de Salvador Allende, feito por Gaiola: Por-tugal, EUA, México, onde trabalhou como torneiro mecânico. Foi Piquet Carneiro quem ajudou Jane Corona a ter uma vida de estudante no exílio.

“Não tem problema, minha filha”, disse Piquet Carneiro, “mandarei uma carta para o Reitor da Universidade do Chile, onde você concluirá seu curso.”

Quem conhece Jane sabe da improbabilidade de Piquet não ter recebido um grato e forte abraço. Logo moradora da Calle Pedro de Oña, n. 031-B, a estudante Jane veio a concluir seu curso em fevereiro de 1973 pela Universidade de Chile (U. de Chile). No Chile, o curso médico tem duração de sete anos. O quinto e o sexto ano são dedicados à aprendizagem das especialidades básicas. Em respeito ao princípio de reciprocidade ao ensino gratuito recebido, depois de graduado o médico tem de fazer dois anos de província, isto é, ir atender os pacientes nos diversos pontos das periferias urbanas e do interior do país, e faz jus a remuneração maior de acordo com a distância da responsa-bilidade assumida.

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Dedicada apenas ao estudo da medicina em seu exílio, a casa de Jane e Gaiola era ponto de encontro para feijoadas, noi-tes de cantoria, e sem que a ex-aluna tivesse participação nas reuniões políticas. Por sua casa passaram pessoas como João Saldanha, líderes cubanos, Carlos Alberto Muniz, Daniel Aarão Reis, João Lopes Salgado, Vera Maria Rocha Pereira, esta liber-tada após o sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, junto com mais sessenta e nove presos, no mais alto valor humano cobrado à ditadura por um sequestrado. Nascida em 12 de julho, mesma data natalícia de Pablo Neruda, em sua casa Jane Corona teve a imensa alegria de festejar um aniversário junto com o poeta. Em seu poema “Estes poetas são meus”, Drummond cantava:

Furto a Vinicius sua mais límpidaelegia. Bebo em Murilo.Que Neruda me dê sua gravatachamejante. Me perco em Apollinaire.Adeus, Maiacovsky. São todosmeus irmãos, não são jornaisnem deslizar de lancha entre camélias:é toda a minha vida que joguei.

Jane Corona, no entanto, não sabe de muitos dos tantos per-sonagens e das passagens acontecidas por sua casa em Chile. Es-tava lá para estudar. Na província, ficou um ano com um paciente sob seus cuidados até fazer o diagnóstico raro da Síndrome de Aschoff-Tawara, isto é, hemoglobinúria paroxística noturna. Onze dias depois da queda de Salvador Allende e da ascensão do ditador Pinochet ao poder, os brasileiros exilados no Chile foram forçados a uma nova diáspora. Findos seus compromissos profissionais e com um filho chileno pequerrucho, a opção de Jane Corona foi a de voltar ao Brasil, o que fez por terra, de carro, ainda em 1973, na companhia de Luiz Rodolfo, seu marido, pela Argentina.

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Na época do sequestro do embaixador americano, Charles Burke Elbrick, no correr de 1969, Jane dirigia um fusquinha ver-melho cuja chapa foi roubada na Ladeira dos Tabajaras, exatamen-te para servir de chapa fria a outro fusca vermelho utilizado, este sim na operação sequestro. Que burrice!

Ao chegar ao Brasil foi detida em dezembro, levada à Base Aérea do Galeão, sede do CISA, com amparo do pai e do advo-gado Lino Machado. Seu pai perguntou ao General Fiúza o que, afinal, pretendiam de sua filha?

“Ela vai ser interrogada e liberada.”O general Adyr Fiúza de Castro foi um dos que teve a ousa-

dia de se manifestar a favor da tortura.Jane Corona ignora quantos dias exatos esteve sob a pri-

vação de liberdade. Depois do constrangimento de ser despida e deixada assim constrangida até receber macacão de presidiária e ser encapuzada para cada movimento, respondeu a vários interro-gatórios sobre assuntos e pessoas sobre as quais nada sabia. Atrás de um vidro, que tornava Jane não visível aos outros brasileiros re-gressados do Chile, ela falava apenas a verdade, se tinha visto, sim ou não, se sabia, mais nada, porque podiam perguntar tudo sobre medicina e ela responderia o aprendido, pois não se exilara para fazer política, e sim concluir seu curso médico. Na prisão, sob uma luz intensa, o dia e a noite se anulavam e a desorientação no tempo era completa. Na cela, música a tocar ininterruptamente. Depois de não se sabe quantos dias, recebeu um salvo-conduto assinado pelo próprio General Fiúza para não ser presa de novo, pois fora já interrogada. Em Portugal, no tempo de Antônio de Oliveira Salazar, tal procedimento era chamado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) de Tortura do sono.

Não há registro de que tenha sido feito qualquer exame clínico antes da situação de estresse. Segundo o General Fiú-za, os médicos responsáveis por avaliar os presos eram Amilcar Lobo e Ricardo Agnese Fayad, este ex-aluno da FCM-UERJ, ambos posteriormente cassados pelo Conselho Regional de

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Medicina do Rio de Janeiro por infração grave ao Código de Ética Médica. Fayad recorreu à Justiça civil: em primeiro lugar por argumentar que como Médico Militar não estaria submetido aos preceitos do Conselho Regional de Medicina, em segundo lugar porque não poderia ser punido por conta da Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979, mais conhecida como Lei da Anistia. Chegando a haver sentenças judiciais favoráveis ao querelante, mas, mesmo sob ameaça de ser preso, o Doutor Mario Brandão Carneiro, Presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, recorreu ao Supremo Tribunal Federal, não só para preservação da sua liberdade, como também para que a decisão ficasse na alçada do Supremo, que afinal deu parecer desfavorá-vel ao ex-médico. Em um processo, obviamente, bastante sofri-do e razoavelmente longo para ambas as partes.5

Quanto aos funerais de Neruda, somente o fotógrafo Evan-dro Teixeira conseguiu, incrivelmente, fotos, tanto no necrotério como nas exéquias populares irreprimíveis mesmo pela ditadura instaurada há menos de duas semanas no Chile. Tais fotos até hoje são vistas por poucos e estão no livro Vou viver – tributo a Pablo Neruda, cujos poemas foram escolhidos pelo casal Liège e Fritz, com textos da lavra de Fritz Utzeri, denunciando, inclusive, via testemunho de Evandro Teixeira, a presença do delegado Sergio Paranhos Fleury no Estádio Nacional do Chile, onde o extraordi-nário fotógrafo fez registro de populares simples no campo e de

5 Entre as testemunhas de acusação contra o já então (década de noventa do século passado) General Médico Ricardo Agnese Fayad, esteve seu colega de faculdade Luiz Roberto Tenório, que, ao solicitar atendimento, segundo Tenório, não foi atendido de forma adequada. Adversário político de Tenório desde os tempos de faculdade, é provável que a animosidade recíproca tenha influenciado de forma negativa o que deveria ter sido uma consulta. Oportunamente, Tenório foi chamado ao Gabinete do Presidente Fernando Henrique Cardoso, que fez questão de agradecer pessoalmente ao ex-aluno em questão, por sua colaboração com o Executivo, ao impedir que fosse nomeado para um cargo de Direção no Sistema de Saúde do Exército (FUSEX) um médico que teve atuação antiética no período da ditadura militar.

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estudantes já condenados nos corredores do estádio. Iniciava-se a Operação Condor.

Um perfil negativo bem fundamentado do médico, Ex--Ministro da Saúde e Ex-Presidente do Chile, Salvador Allende, está escrito no livro Guia Politicamente Incorreto da América Latina; ali também se espera que as críticas radicais a Allende e à cubanização do Chile sejam entendidas no contexto da Guerra Fria, quando as boas intenções de um homem público eram massacradas e suas imperfeições humanas eram desconhecidas. Ademais, o apreendi-do em tal perfil é o fato de Allende ter mais talento para a política, como ocorreu com Juscelino Kubitschek, do que para a medicina.

Hoje se sabe que a violência militar no Chile foi para evitar uma guerra civil sangrenta, ao feitio da Guerra Civil Espanhola6.

Foi pela Argentina que Jane Corona, ex-aluna da Ciências Médicas, retornou ao Brasil. Perón ainda era vivo e o perigo estava on the road. Não bastasse a implantação da ditadura no Chile, de 27 de junho de 1973 até 28 de fevereiro de 1985, o Uruguai enfrentou uma ditadura civil-militar igualmente terrível.

6 MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Fórmula para o caos: Ascensão e queda de Salvador Allende (1970-1973), Capítulos: VIII, IX e X. Rio de Janeiro: Civiliza-ção Brasileira, 2008.

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大字报 – Informativo Dazibao: Homenagem ao Dr. Roberto Chabo

(1935-2007) e notas sobre intervenção no Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro

Chabo é um exemplo de vida. Exemplo de dignidade,coerência e firmeza de ações e princípios.

Com ele, aprendi nas lutas sindicais e políticas a importânciade não esmorecer jamais, na construção de um país mais justo

e de uma saúde de qualidade para todos os brasileiros.O mais importante, porém, foi que ele me ensinou a valorizar

a solidariedade e a tolerância e, principalmente,a cultivar as amizades. Vai fazer muita falta a todos nós.

Luis Roberto TenórioEx-Presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro

Nascido em 29 de janeiro de 1935, Chabo se formou pela Faculdade Médica de Pernambuco em 1961 e depois se especiali-zou em nefrologia pelo Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (HSE). Participou do staff do hospital, como efetivo no setor de nefrologia, de maio de 1966 até sua aposentadoria, em 1994. Chabo participou do primeiro transplante de rim da Améri-ca Latina, em 1964, como assistente da equipe de nefrologia, che-fiada por Jayme Landmann, Alberto Gentili e outros.

Naquele mesmo ano, motivado por antecedentes políticos, por sua militância socioestudantil na UEE (União Estudantil dos

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Estudantes) desde 1956 e por ser participante efetivo da UNE, foi preso e levado das dependências do Hospital dos Servidores, pela polícia política, onde permaneceu durante 30 dias. No retorno às atividades, iniciou um programa de hemodiálise periódica no Rio de Janeiro, dando treinamento a médicos do HSE.

Em 1966, em um clima de muita intimidação, Herbert de Souza (o Betinho), matriculado como paciente no HSE, naquele momento, egresso do Uruguai e seguido pela polícia, foi preso durante atendimento médico prestado por Chabo, que também foi levado preso novamente, dessa vez como suspeito de parti-cipação no esquema da AP (Ação Popular) por estar prestando serviços médicos a Betinho. A partir de 1966, e durante 1967 e 1968, Chabo tentou reorganizar o movimento médico, que era então extremamente conservador, juntamente com colegas como Miguel Olympio Cavalcanti e Almir Dutton, entre outros. Como ele era muito “visado”, o movimento foi feito quase que de forma clandestina, “à noite”, nos plantões dos hospitais durante vários meses, buscando apoio dos colegas médicos para necessárias rei-vindicações trabalhistas e melhores condições de trabalho. Miguel Olympio foi então eleito Presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, mas em seguida foi destituído pelo Serviço Na-cional de Informações (SNI), que recomendou ao Ministério do Trabalho que não permitisse “certas pessoas” entre os eleitos, e indicou o nome de Charles Damian, que assumiu e ficou no sin-dicato até 19787.

Foi muito importante a presença dos líderes sindicais no Hospital Universitário Pedro Ernesto à época da greve dos resi-dentes e mesmo antes, quando essa presença foi manifestação de incentivo e coragem para a luta.

7 Disponível em: <http://www.agencia.fiocruz.br/morre-roberto-chabo-o- homem-que-simbolizou-a-honradez>.

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Pequeno panorama do ano de 1973 na Ciências Médicas

El cielo es como un inmensocorazón que se abre amargo.

No llueve: es un sangrar lentoy largo.

Gabriela Mistral

Como sempre, o ano começara com a Semana dos Calou-ros, sem trote, sem brincadeiras de mau gosto, sem raspar o cabelo dos rapazes, sem sujar ninguém com tintas e ovos, apenas reali-zando jogos de futebol e apresentação dos Departamentos Cultu-rais do Conselho de Representante dos Alunos – o anônimo CR. Ciceroneados pelo veterano Eduardo Faerstein, foram mostradas a Biblioteca Manoel de Abreu, o Cineclube Ciências Médicas – CICEME, o MUSICEME – departamento de música –, o grupo de teatro ERDA, a cantina da D. Otília. As prateleiras de estantes da sala do CR cheias de papéis empoeirados, que, felizmente, nin-guém jogou fora, antes de um aluno fazer uma faxina seletiva na área, quando cursava o fim do quarto ano de medicina.

Nos primeiros dias letivos de 1973, os calouros estavam presentes em peso no anfiteatro da Disciplina de Anatomia Hu-mana, à época sob a chefia do Professor Titular Eurys Maia Dalla-lana. Ninguém antes nem depois lutara tanto para a construção da Faculdade de Ciências Médicas da UEG nem acompanhava com

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interesse humanista e político as circunstâncias dominantes do mundo acadêmico da medicina como Piquet. Nenhum professor fez as honras da casa de nos apresentar o homem, o médico, o professor absolutamente íntegro. Foi sem esses merecidos proto-colos, talvez porque o mestre não lhes desse a devida importância, se apresentar pessoalmente àquele grupo no início dos seus seis anos de curso médico.

Desde 1964, Piquet não se restringia apenas às suas ativi-dades de professor, isto é, lia tudo sobre a vida dos estudantes de medicina e médicos recém-formados no Brasil. Seu discurso nos pareceu extremamente pessimista:

“O Brasil não precisa de mais médicos!... Vocês estão sendo enganados. O Brasil não precisa de mais médicos”.

Falou mais cerca de 20 minutos, coisas ininteligíveis para aqueles alunos ex-secundaristas, cujo curso secundário ocorrera entre 1963 e 1972, sob uma intensa censura didática tangente à his-tória recente do País, em um tempo no qual o leque de profissões era bem menos aberto em relação aos dias de hoje.

Da mesma forma que chegou saiu, sem sequer dizer seu nome...

Piquet Carneiro sabia da política imposta pelo governo ditatorial de provocar uma pletora de médicos nos grandes cen-tros, com o objetivo de privatizar parte do ensino, se possível mesmo nas escolas de medicina federais e estaduais. Sabia que os médicos marrons emprestariam seus nomes para essa aber-tura desenfreada de escolas médicas particulares desde o início com mensalidades muito elevadas; talvez tenha nos dito tudo isso com meias palavras. Sabia que a única intenção social era o esgotamento do mercado de trabalho para a medicina nos grandes centros, assim os médicos se dirigiriam para o interior até serem ocupados todos os postos vagos nas mais longínquas fronteiras do Brasil.

No Estado de São Paulo, onde havia quatro faculdades de medicina até 1963, foram criadas, entre aquela data e 1971, mais

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14 escolas. No Rio de Janeiro, das quatro faculdades existentes até 1965, passamos para 12 em 1971: oito a mais. Em Minas Ge-rais, cinco cursos foram criados entre 1968 e 1971, contra quatro existentes até então. No Rio Grande do Sul, das duas faculdades de medicina em funcionamento até 1961, passamos para nove em 1970, isto é, sete novos cursos em apenas nove anos. Enquanto as instalações e os equipamentos necessários ao funcionamento do ci-clo básico eram itens relativamente fáceis de cumprir, não é preciso insistir sobre a precariedade das bibliotecas e dos recursos hospita-lares (leitos, instrumentos, administração e pessoal de apoio).

Se a Comissão do Ensino Médico do MEC mostrou-se tão crítica à situação do ensino à época, quem foram os responsáveis por aquela política de expansão indiscriminada? A resposta não é simples, ela deve ser buscada ao mesmo tempo na elite profissio-nal, na burocracia estatal e na fisionomia da sociedade que emergiu como produto do desenvolvimentismo dos anos JK.

Pressionado pela corporação médica, pelos movimentos sociais urbanos e pelo aumento dos gastos que a assistência hospitalar e a saúde pública impunham ao orçamento, o Esta-do incluiu o ensino médico na pauta das políticas públicas já em meados da década de 1950. Alguns dados foram mobiliza-dos politicamente: milhares de municípios sem médicos; reduzi-da proporção médico/habitantes; baixíssimos índices de saúde (mortalidade infantil, sobrevida média, etc.). Por outro lado, as novas camadas médias urbanas viam na medicina a possibilidade de ascensão social para seus filhos.

O sanitarista Carlos Gentile de Mello (1920-1982) dizia que a distribuição de médicos coincide com a distribuição de bancos. Não que os médicos sejam ricos, mas bancos existem onde há atividade econômica. Os médicos também. Lógico que só se resol-vem graves problemas de saúde com desenvolvimento econômico mais igualitário.

É um truísmo dos estudiosos dos fenômenos sociais a constatação de que a história atua na contramão das políticas de

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planejamento. Nosso tema ilustra bem a discrepância entre os ob-jetivos almejados pelos organismos que formularam e ajudaram a implementar a política de expansão de escolas médicas e os resul-tados não esperados de suas ações. Não é difícil, entretanto, iden-tificar as camadas médias emergentes como os principais agentes desse processo. Geralmente situadas fora ou na periferia dos gran-des centros urbanos, originadas a partir de hospitais comunitários precariamente instalados, ou por vezes bem equipados, mas não adaptados ao ensino e dispondo de corpo clínico sem títulos aca-dêmicos ou experiência docente, essas escolas médicas atendiam aos anseios de estudantes muitas vezes já integrados à força de trabalho, que exerciam atividades não médicas ou provinham de regiões diversas daquelas.

Homens como Carlos Gentile de Mello, Américo Piquet Carneiro e Hésio Cordeiro são poucos na história da medicina do Brasil e raramente lhes é dado algum poder na condução das po-líticas de saúde no País. Quanto aos bancos, não lhes são exigidas ações de progresso onde se faz mais necessário tê-las. O sonho de um país rico ser um país sem pobreza, seja de natureza material, cultural ou de saúde ruim causada pela miséria em todos os sen-tidos nunca vai morrer; porém os problemas são de dimensões grandiosas e o papel das universidades e faculdades precisa de re-definições ou de retomada de ideais.

Alguns acertos precisam ser apontados: em 1960 foi criada a Universidade de Goiás, e dentro dela a Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás (UFG); em 1964 foi criada a Universidade do Acre, dentro dela a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Acre (UFAC); em 1970 foi criada a Uni-versidade de Mato Grosso, dentro dela a, atual, Faculdade de Me-dicina da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.

Médicos empreendedores e com consciência da necessidade da interiorização das escolas médicas abrem faculdades particula-res em rincões onde estas se fazem necessárias. É o caso da Facul-dade Católica Rainha do Sertão, também conhecida como Católica

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de Quixadá. Iniciativa do Prof. Dr. Antero Coelho Neto. Assim deveria ter sido desde o tempo mais atroz da República.

Em 17 de março de 1973, foi morto no Departamento de Operações Internas – Centro de Operações de Defesa Interna/SP DOI-CODI/SP-SP-Brasil o estudante de geologia da USP Alexandre Vannuchi Leme, primo de Paulo Vannuchi, que se en-contrava preso desde 1969, e o nome desse militante estudantil ressoou na FCM-UERJ porque os seus colegas, juntamente com a Arquidiocese de São Paulo, organizaram a 1ª missa de sétimo dia na Catedral da Sé, ministrada por Dom Paulo Evaristo Arns, que então assumia a liderança católica de combate à ditadura, à tortura e às execuções sumárias.

Éramos uns quinze indivíduos, entre eles apenas um repre-sentante da Turma FCM-1978, calouro naquele dia 11 de setem-bro da morte de Salvador Allende, por estar ainda no primeiro ano do curso médico. Não era uma festa, não, com raras exceções, conhecíamos uns aos outros. Fomos lá para ouvir um diálogo em espanhol entre Fidel Castro e Salvador Allende. Foi em junho ou julho essa reunião secreta. A fita foi colocada no cassete. As vozes eram baixas, uma delas mais entusiástica e a outra roufenha. Difícil distinguir se quem falava era Allende ou Fidel. Nossas respirações abafadas, nem um pio na hora de entrar ou sair, nenhuma discus-são após ouvirmos o diálogo das Américas entre os líderes cubano e chileno, sendo que hoje podemos não só ouvir como ver os líde-res em filme disponível no Youtube.

Nilcéa Freire, futura Reitora da UERJ e Ministra da Secre-taria da Mulher do governo Lula, durante as férias de meados do ano, também convidara alunos da FCM-UERJ para assistir a um show com o Grupo Tarancon – pioneiro a mesclar música brasilei-ra com a latino-americana, ao mesclar os sons de Violeta Parra e Chico Cesar, de Atahualpa Yupanqui e Marlui Miranda, misturar chacareiras argentinas, xotes, baião, bailecitos bolivianos, guarânias e huyanos peruanos, guajiras centro-americanas, rumbas, afoxés, ainda hoje são as marcas do Tarancon junto com seu instrumental.

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Título Provisório 163

As lágrimas corriam dos olhos de Nilcéa Freire ao ouvir uma canção cuja letra falava de uma gente que se alimentava ape-nas de sopa de cebola. Demonstração clara da sua paixão pelo socialismo e da sua sinceridade e honestidade ideológica. Mulher sorridente nas horas comuns e nas de luta, possuidora de extraor-dinária coerência política e ideológica.

Em 12 de setembro passa no hall de entrada perto dos livrei-ros do hospital aos prantos. Impossível pará-la, ninguém ousaria perguntar a causa do seu choro. Entre outros brasileiros, no Chile, cumpria exílio João Lopes Salgado, que buscou refúgio na Embai-xada de Cuba, sob a bandeira da Suécia. Iniciava-se no Chile a mais cruel ditadura militar da história da América Latina.

O ano de mil novecentos de setenta e três ficará marcado para sempre como o ano mais latino-americano da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ.

Cláudio da Rocha Roquete, o principal idealizador do jornal Título Provisório, colega de classe, conversaria com seus amigos mais próximos a dizer que em sua família sempre existiu uma tradição de luta política, mas óbvio que não pertencia ao Clube (como era chamado o Partidão, ou PCB, como preferirem). Não participava de baile no ginásio de esportes. Não comparecia aos eventos cul-turais do Clube.

Não há registro de data, mas ainda em 1973 foi organizado o I Ciclo de Debates Culturais da FCM-UERJ, tendo como pri-meiro palestrante o cronista esportivo João Saldanha, primeiro técnico da seleção brasileira de futebol que se sagraria Tricampeã do Mundo em 1970. O auditório do Centro de Estudos Ney Pal-meiro ficou repleto de estudantes, e João Saldanha, com seu jeito simples de falar, cativou a plateia, ao condenar veementemente a ideia de que o futebol era o ópio do povo e de que a vitória da seleção tricampeã dera, de alguma forma, sustentação ao regime ditatorial. Sobre cinema, quem ministrou palestra foi o cronista José Carlos Avellar. Jornalista de formação, Avellar trabalhou por mais de vinte anos como crítico de cinema do Jornal do Brasil.

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164 Fabio Daflon

Atualmente é integrante do conselho editorial da revista Cinemais e da publicação virtual El ojo que piensa, da Universidade de Gua-dalajara (México). Foi consultor dos festivais internacionais de cinema de Berlim (desde 1980), de San Sebastián (desde 1993) e de Montreal (desde 1995). Desde 2006 é também curador (com Sérgio Sanz) do Festival de Gramado.

Fugindo um pouco ao tema dos ciclos de debates, cabe abrir um parêntese sobre alguns filmes que, ao serem liberados em país sob ditadura, e o principal dele era Z do diretor Costa-Gravas, sinalizavam que sob a ditadura começavam a se abrir ares mais res-piráveis de liberdades democráticas. Mas no filme A classe operária vai ao paraíso, de Elio Petri (Itália, 1971), Lulu Massa é um operário consumido pelo capital, cujo trabalho entranhado consome sua vida. A fábrica adota sistema de quotas (metas) que intensifica a produção. Lulu é o operário-padrão da fábrica, sendo hostiliza-do pelos outros companheiros de chão de fábrica. Após perder um dedo na máquina, Lulu adota uma atitude crítica ao modelo de exploração, confrontando a gerência. Os operários (situação e oposição sindical) contestam as cotas. Após uma greve, Lulu é demitido. Depois de negociações, ele consegue ser readmitido na fábrica, voltando à linha de produção e reintegrando-se ao coletivo de trabalho. Por conta da mobilização operária, o sistema de cotas é revisto pela direção da fábrica.

Interessante observar a semelhança da perda de um dedo do operário Lulu Massa com o que aconteceu de fato com o ex--Presidente Luis Inácio Lula da Silva, que alguns cínicos dizem ter cortado o dedo para se aposentar. Mas para além dos muros da escola existia o cine clubismo de circuito alternativo, porém e justamente com fito comercial. Certa vez, três alunos foram assistir ao filme (Sem destino), um road movie americano de 1969, escrito por Peter Fonda, Dennis Hopper e Terry Southern e di-rigido por Hopper, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O filme conta a história de dois motociclis-tas que viajam através do sul e sudoeste dos EUA, tal como a

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ascensão e queda do movimento hippie, o uso de drogas e estilo de vida comunal.

A teoria escatológica no sentido negativo da palavra, de que o uso de drogas aconteceu por causa do “desbunde” ocorrido pós- -68, é um grande equívoco. Nos morros o tráfico começou a se organizar entre 1964 e 1968. Em seu livro O Pêndulo de Foucault, Umberto Eco faz menção à permissividade com que se trataram os panteras negras com relação ao uso da cocaína – algo crível de ser só uma prosa romanesca de Eco, sem comprovação por estu-dos sociais claramente sérios, quando, ao mesmo tempo, eram su-primidos programas de segurança alimentar para as comunidades sobre as quais os panteras exerciam alguma liderança. No Brasil, o uso de drogas pesadas correu paralelo ao desenvolvimento da dis-tribuição das drogas pelo mundo. Em 1977, Eric Clapton lançou a música Cocaine, de grande sucesso nos EUA. A partir dos anos 80, por exemplo, quando começaram a reprimir a entrada de drogas naquele país pela rota do Pacífico, é que se deu aos traficantes a possibilidade da saída pelo Atlântico, com distribuição da cocaína pelo Brasil, que se encontrava no caminho, nos anos 70 uma droga de consumo não muito fácil.

Dois desses três ex-alunos da Ciências Médicas que foram assistir a Easy Rider eram Paulo Maurício Campanha Lourenço e Wellington Schafranski Balla, o terceiro, Fabio Daflon. Welling-ton, sem intenção alguma de diminuir qualquer membro da Turma FCM-UERJ-1978, é um homem de extraordinário bom caráter e uma das pessoas de maior simpatia existentes no planeta.

– Puxa, vocês viram? Todo mundo estava fumando maco-nha lá dentro!

Rimos, íamos responder, mas, súbito, onde estávamos perto da mureta à beira-mar, três soldados nos cercaram com baionetas apontadas para nosso peito como se quisessem nos transformar em frangos de padaria contritos pelo medo.

– O que vocês estão fazendo aqui? Mostrem seus do- cumentos!

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166 Fabio Daflon

Mostramos e dissemos que havíamos ido ao cinema e já íamos embora.

– Circulem, aqui não podem ficar.Cabe aqui o registro de que mesmo um simples cidadão no

sentido político da palavra, se encontrado com suspeitos, era au-tomaticamente suspeito, porque em uma ditadura ninguém está imune a nada. Talvez por isso ninguém deva ser indiferente a tudo. Quanto às drogas, é um mal que aflige a humanidade há milênios e, embora não haja trabalho escrito sobre isso, boa parte daquela geração fez apenas uso recreativo da maconha, mesmo porque cocaína não era tão fácil de ver nem de cheirar, fosse por medo de seus efeitos, fosse por não termos pertencido ao tempo do rapé, raspa de fumo cheirado na pequena fossa chamada ta-baqueira anatômica, formada após a extensão completa do dedo polegar, situada entre o carpo e o dedo, no dorso da mão. Aliás, a maior parte dos militantes de esquerda, em seus relatos, não faz referência ao uso de tóxicos ou à dependência química.

Quem veio falar sobre literatura latino-americana ou hispa-no-americana foi a Doutora em Letras Bella Josef, jovem ainda, pessoa comedida e de gestos discretos a falar para estudantes de medicina sobre autores de vários países da América do Sul, tais como Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez, que tinha então seu primeiro romance, O enterro do diabo, traduzido para o português pelo genial jornalista Joel Silveira. García Már-quez teve citado seu livro Cem anos de solidão. Mestre da literatura fantástica, gênero no qual o leitor fica sempre em dúvida se o que está a ler é sonho ou realidade.

Houve apenas um tema médico tratado naquele ciclo de debates, que foi o de controle da natalidade, cuja palestra foi mi-nistrada pelo Dr. Mario Victor de Assis Pacheco. Aguinaldo Ne-pomuceno Marques, médico e escritor, junto de Mário Victor de Assis Pacheco e Carlos Gentile de Mello, foram próceres na As-sociação Médica do Estado do Rio de Janeiro nos anos 70. Essas

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figuras ilustres e cultas frequentavam o centro de estudos do Hos-pital Universitário Pedro Ernesto.

Em 1944, Mario Victor de Assis Pacheco foi designado para compor o Batalhão de Saúde da Força Expedicionária Brasileira, embarcando para a frente de operações na Itália no 2º Escalão da FEB. Foi promovido a Capitão durante a atuação na FEB.

Regressou da Itália em 1945, após o fim da guerra.Levou sua carreira como médico militar até o posto de co-

ronel, foi reformado no posto de Coronel pelo 1º Ato Institucio-nal nos primeiros dias de abril de 1964, anistiado e promovido ao posto de General em 1979.

Faleceu em 13 de julho de 1986.Foi autor de títulos importantes, tais como Neocolonialismo e

controle da natalidade, Explosão demográfica e crescimento do Brasil, Racis-mo, machismo e “planejamento familiar”, Planejamento Familiar e libertação do Brasil, Controle da natalidade, imperialismo e o FMI.

O debate entre a direita e a esquerda era sobre se no Brasil deveria ser implantado um programa de controle da natalidade. A direita acusava que sem controle seria gerado um bando de miseráveis, a esquerda pensava o oposto, que o Brasil precisava ocupar seus territórios com população autóctone, futura mão de obra para a constante construção do país, ou até mesmo para soldado da revolução popular que o país estava destinado a ver acontecer. Ao menos foi essa a lembrança capturada neste ins-tante, antes do ponto. Claramente merecedor de um estudo aca-dêmico profundo.

Embora não tenha participado como palestrante, Carlos Gentile de Mello (1920-1982) enriqueceu o debate. Nascido em Natal (RN), formou-se pela Faculdade de Medicina da Bahia, ten-do iniciado a vida profissional, clinicando, por dois anos, na locali-dade de Mucugê (BA). No Rio de Janeiro, a princípio, foi assistente voluntário de Clínica Médica da Faculdade Nacional, despertando progressivamente para os temas vinculados à Saúde Pública e à Administração dos Serviços de Saúde.

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168 Fabio Daflon

Ministrou um sem número de conferências, palestras, aulas magistrais em cerca de 50 escolas médicas, diretórios acadêmicos, associações científicas, entidades de classe. Falando sempre de “saúde, somente saúde, nada mais que saúde”, apontava de modo peculiar às mazelas do sistema de saúde “caótico, corruptor, in-controlável, irracional e elitista”.

Autor de quatro livros e de mais de 500 artigos, sua atua-ção não se restringia à imprensa especializada, procurando atingir a todos os setores da coletividade. Membro Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, Assessor dos Ministérios da Saúde e do Planejamento, Vice-Presidente da Associação Médica do Estado do Rio de Janeiro, Secretário-Geral da Associação dos Hospitais do Rio de Janeiro, eleito duas vezes para o Conselho Regional de Medicina, porém não empossado. Faleceu no dia 27 de outubro de 1982, reconhecido como o mais completo analista da realidade médica e assistencial brasileira.

Exerceu forte influência sobre alguns alunos da UERJ, entre eles Hésio de Albuquerque Cordeiro, importante mentor da cria-ção do Sistema Único de Saúde.

No início de 1974, alguns alunos que iam durante as férias à FCM-UEG se tornariam futuros monitores de anatomia, bio-química e outras matérias. Outros, a maioria residente no Rio de Janeiro, iam jogar futebol de salão ou fazer política. Desses últimos veio a notícia de que acontecia uma apresentação relâmpago da peça teatral O interrogatório, de Peter Weiss. Disposta em 11 cantos. O interrogatório em 11 cantos. Peça sobre o nazismo, visto ser Peter Weiss um sobrevivente da guerra, filho de um militar judeu e de uma atriz cristã.

Na verdade, nesta revisão e ampliação do livro Título Provisó-rio, só foi possível encontrar no Google o autor e a peça pela lem-brança de que a última frase do décimo primeiro canto era: “Nós sobrevivemos ao sistema, mas o sistema também sobreviveu. Nós sobrevivemos ao sistema, mas o sistema também sobreviveu. Nós sobrevivemos ao sistema, mas o sistema também sobreviveu”.

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Os atores, alternando vozes, falavam. Nós sobrevivemos ao sistema, mas o sistema também sobreviveu. Até que antes que ca-ísse o pano todos se perfilaram e falaram juntos: “Nós sobrevive-mos ao sistema, mas o sistema também sobreviveu”.

Comparar a ditadura militar brasileira com o nazismo é des-considerar as cisões entre segmentos das forças armadas, que sem-pre tiveram em mente, desde o mandato presidencial do General Castello Branco, a redemocratização, entendendo que o inimigo era o comunismo, e não a democracia.

Quanto à personagem feminina, entre as mais importantes do movimento estudantil na FCM-UERJ, além de sua generosa militân-cia como aluna, Nilcéa Freire foi a primeira mulher a ocupar cargo de Reitora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) entre 2000 e 2003. Durante sua gestão, a instituição foi pioneira na implantação de cotas para negros e estudantes de escolas públicas. “O trabalho e a história dessa mulher merecem o nosso reconheci-mento.” Quando Reitora, recebeu Fidel Castro em sua sala e pousou ao lado do líder cubano alegremente levantando-lhe a mão.

Durante os anos de chumbo, em razão de sua participação no Clube – PCB –, viveu no exílio, na verdade em condição de refugiada, no México, sendo obrigada a interromper o curso de Medicina, completando-o posteriormente. Ao retornar ao Brasil, fez residência em Parasitologia e mestrado em Zoologia. Em janei-ro de 2004, Nilcéa Freire assumiu a Secretaria Especial de Políti-cas para Mulheres (SEPM), com status de Ministério. Seu trabalho foi centrado na defesa dos direitos das mulheres, no combate à violência, às desigualdades, na defesa das liberdades individuais e coletivas, direitos e especialmente a elaboração do Plano Nacional de Políticas para Mulheres, tendo deixado a SEPM no fim do pri-meiro mandato do ex-Presidente Lula.

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大字报 – Informativo Dazibao: Acordo de Paz e fim da Guerra do Vietnã,

em artigo de Fausto Wolff8

Hay una lengua nacional y una lengua estatal.Lo que habla el Estado es esa jerga ideológica,

distorsionada, rota, que se escucha pordoquier en la opinión pública bajo la dictadura.

Herta Müller

Alfred Bernhard Nobel, o físico sueco nascido em 1883 e falecido em 1896, inventou a dinamite. Sua primeira fábrica de nitroglicerina explodiu, causando a morte de quatro empregados e do irmão mais jovem, Emil. Generoso, esse filantropo que acumu-lou uma fortuna de US$ 9 milhões era paradoxalmente pessimista e satírico. Sabia que seu invento era letal e temia seu uso em guer-ras. Morreu sem ver a Primeira Guerra, que transformaria seus temores na mais devastadora realidade. Entretanto, deixou toda a sua fortuna para os cinco prêmios que criou – física, química, medicina, literatura e paz. A premiação começou com US$ 30 mil e hoje está na casa de US$ 1 milhão para o vencedor em cada cate-goria. Os primeiros prêmios foram distribuídos em 1901 e, desde então, sua entrega só foi interrompida nos anos 40, 41 e 42, em

8 WOLFF, Fausto. Homens que criaram história. Revista eletrônica O lobo. Dis-ponível em: <http://www.olobo.net/index.php?pg=artigos&id=993>. Acesso em: 9 de novembro de 2013, às 23h58.

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plena Segunda Guerra. Não porque a viagem até Estocolmo fosse perigosa, mas porque os supridores de armas para ambos os lados eram todos descendentes de Nobel, uma ironia que nos dá bem a ideia da estupidez humana, principalmente se atentarmos para as palavras do mecenas em seu testamento: “O capital será investido e os interesses distribuídos na forma de prêmios para aqueles que no ano precedente mais tiverem contribuído para o benefício e aprimoramento da humanidade”.

Infelizmente, em 1968, um sexto prêmio foi acrescenta-do: o de economia. De todos os prêmios que caíram em mãos erradas, o mais flagrante foi o da paz, conferido ao genocida Henry Kissinger. Mas, antes de criticar Nobel, pergunta-se: “E se outro tivesse inventado a dinamite?”. Eu respondo: teríamos apenas a dinamite9.

Em 1973 Henry Kissinger ganhou, com Le Duc Tho, o Prê-mio Nobel da Paz pelo seu papel na obtenção do acordo de cessar--fogo na Guerra do Vietnã. Le Duc Tho recusou o prêmio.

9 WOLFF, Fausto. Homens que criaram história. Revista eletrônica O lobo. Dis-ponível em: <http://www.olobo.net/index.php?pg=artigos&id=993>. Acesso em: 9 de novembro de 2013, às 23h58.

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2ª Parte

“Morrer pela fé era coisa mais natural do mundo até deixar de o ser. Até chegar a maldita modernidade que resolveu dizer que a vida é o bem mais valioso de todos. Até a vida, e a preservação desta, se transformar no centro de todas as coisas.”

Fez uma pausa. A sua perna tremia cada vez mais nervosamente, pese embora o esforço do seu braço para a sossegar.

“O que é um mártir, afinal?”Hesitei.“Não sei responder a essa pergunta”, disse.“Um mártir é alguém que tem a razão do seu lado e ainda assim fra-

cassa”, explicou ele. “Um mártir morre porque tem a razão e a única maneira de o mostrar, para que os outros vejam e entendam – ou, pelo menos, aceitem –, é abdicar da própria vida.” 10

Diálogo entre os personagens Raul Cinzas,velho comunista, e um jovem repórter.

***

A desconsideração do valor da própria vida ou da alheia transcende a condição humana no sentido da bestialização.

10 TORDO, João. Anatomia dos mártires. Portugal: Publicações Dom Quixote, 2011.

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BIMA – a Biblioteca Manoel de Abreu

Lugar de ler é em qualquer lugar.

Stanislaw Balner

Manoel Dias de Abreu foi o inventor da abreugrafia, des-de o primeiro lustro do terceiro milênio em desuso por conta de a carga de radiatividade ter sido julgada excessiva, mas de muita utilidade em exames periciais e em rastreamento da tuberculose em seu tempo de uso para combate à epidemia dessa doença. Mas antes de falar da BIMA, cabe também dizer que as relações entre a medicina e a literatura ainda não foram anotadas no contexto da literatura brasileira, conforme o Professor de Literatura Brasileira da Universidade do Rio de Janeiro, Marcus Salgado, escreveu em prefácio do livro Algo sem gesso, deste coautor junto com Alberto Daflon Filho; vejamos: “Se a vida literária no Brasil adquire cará-ter visivelmente sistêmico apenas no começo do século XIX, não nos espanta que justamente o iniciador do romantismo entre nós, Gonçalves de Magalhães, fosse médico. A lista dos que transitaram entre a literatura e a medicina é longa”. Vejamos alguns nomes de grande expressão: Joaquim Manoel de Macedo, autor de A moreni-nha; Jorge de Lima, autor de Invenção de Orfeu; Madeira de Freitas, que assinava páginas satíricas e charges como Mendes Fradique – um dos mais importantes e mordazes humoristas brasileiros do começo do século XX; Pedro Nava, que, além de emprestar seu nome à biblioteca no Rio de Janeiro, se revelaria nada menos que

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o maior memorialista da literatura brasileira; Hélio Pellegrino, que, além de especialista em medicina psiquiátrica, integrou junto com Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, o “Grupo dos Quatro Mineiros”, bons de prosa e de poesia.” Entre ex-alunos e professores da Ciências Médicas destacamos o Profes-sor Rolando Monteiro, que publicou um estudo sobre Os Lusíadas.

O livro que melhor fala da cultura dos anos 60 é Verdade Tropi-cal, de Caetano Veloso. Na literatura, nos anos 70, aconteceu a chama-da geração mimeógrafo, que, sem poder publicar com a facilidade que existe hoje, rodava seus textos e poesias na máquina do mimeógrafo, textos cuja difusão se dava nas escolas, bares e ruas. Daquela geração mimeógrafo (também chamada de literatura marginal) o nome mais conhecido é o de Paulo Leminski. Entretanto, ler em folha solta um poema recém-saído dos porões, como foi o poema composto por Alex Polari Alverga, tinha muito peso. Até hoje, os poemas de Alver-ga talvez sejam aqueles que melhor representem o zênite do governo militar de vários ditadores, na falsa democracia relativa, apenas porque se sucediam no trono. O livro Inventário de cicatrizes, de Alex Polari Al-verga, é fundamental como literatura de testemunho.

Em 1971, a BIMA funcionava no segundo andar do pré-dio do Conselho de Representantes. Estava em escombros. No período de 1971 a 1976 foi resgatada. O acervo foi recomposto com doação dos alunos e as estantes refeitas pela carpintaria do HUPE-UERJ. Nomes como Cristina Schneider, Sergio Voronof, Virgínia Alonso Hortale, Heloísa Lube Novaes, Áurea Cristina Torres, entre outros, ajudaram muito no resgate da BIMA. Em 24 de setembro de 1975, foi realizada uma feira de livros na portaria principal da entrada do hospital, com a presença de várias editoras importantes, entre elas, Civilização Brasileira e José Olympio Edi-tora, com grande participação de mestres e alunos.

Muito tempo se passou desde aquele ano em que o general Ernesto Geisel começava seu governo. Tempo em que começava, no dizer do próprio ditador, uma reabertura “Lenta, gradual e se-gura”. Contra tal situação houve o Manifesto dos Intelectuais, em

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Título Provisório 177

1977, assinado por mil intelectuais. Foi o primeiro documento da sociedade civil a reclamar a oxigenação dos espaços públicos; a abo-lição da censura, a abertura democrática, a restauração do estado de direito; ademais de outras franquias indispensáveis ao pleno exercí-cio da cidadania.

Muitos romances tiveram extraordinária importância histórica e política no século XX, entre as quais: Agosto, de Rubem Fonseca, um dos intelectuais e escritores signatários do Manifesto dos Mil. A contar do que representa o tempo mais antigo para o mais atual, podemos citar dez dos mais importantes: Revolta da chibata: a vingança – Moacir Costa Lopes; Subterrâneos da liberdade (três tomos) – Jorge Amado; Memórias do cárcere – Graciliano Ramos; Elza, a garota – Ser-gio Rodrigues; Olga – Fernando Moraes; Agosto – Rubem Fonseca; O senhor embaixador – Erico Veríssimo; Quarup – Antônio Calado; Em câmara lenta – Renato Tapajós; O que é isso, companheiro? – Fernando Gabeira. Pessach – a travessia, de Carlos Heitor Cony, é hours concour! No romance o escritor se refere a uma palestra sobre a loucura nos per-sonagens de Dostoievski ministrada em uma faculdade de medicina, e essa faculdade é a Ciências Médicas. Cabeça de papel e Cabeça de negro, principalmente o primeiro, ambos de Paulo Francis, foram os que melhor retrataram os anos 70, mas o que desafia um eventual leitor desses livros é ter o conhecimento das referências culturais daquela década, em relação às quais o autor Paulo Francis é na maior parte do texto um crítico acerbo.

No tangente à literatura médica propriamente dita, temos O pulmão na prática médica, do Prof. Dr. Ismar Chaves da Silveira, Titular de Pneumologia da UERJ, Medicina não é saúde, do Prof. Dr. Jayme Landmann, Titular da Clínica Médica da UERJ, entre outros títulos da medicina interna. Entre os professores da área de saúde mental, damos destaque ao autor Jurandir Freire Costa, com várias publicações e um vasto público leitor mesmo fora da área médica. Citamos alguns dos títulos: O risco de cada um – e ou-tros ensaios de psicanálise e cultura; O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo; Razões Públicas, Emoções Privadas; Sem Fraude

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nem Favor : estudos sobre o amor romântico; Redescrições da Psicanálise; Ética e o Espelho da Cultura; A Inocência e o Vício: estudos sobre o homoerotismo; Violência e Psicanálise; Ordem Médica e Norma Familiar; História da Psiquiatria no Brasil.

Hésio Cordeiro, ex-aluno da faculdade, onde teve trajetó-ria acadêmica até chegar a Reitor, é um herói nacional ainda não bem biografado, mas será! Mentor intelectual da criação do Sis-tema Único de Saúde, publicou, entre outros livros, os seguintes: A indústria de saúde no Brasil; As empresas médicas; Sistema Único de Saúde. Quando hoje, o petróleo e o ferro são o sangue e os ossos da civilização, e a fibra óptica é a nervura, a digitalização desses textos e disponibilização para os alunos seria de suma importância na constituição de uma biblioteca digital. Entre os ex-alunos da Ciências Médicas, Hésio foi o personagem laborativo que deixou o maior legado para a nação.

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Passe livre

Uma jogada pode mudar o mundo.

Zico

Sobre futebol na Faculdade de Ciências Médicas da UEG-UERJ, nos anos 60 os craques não puderam mostrar seus talentos; o ginásio construído perto do Vestiário Edson Luiz de Lima Souto foi entregue aos alunos em 1972 ou no segundo semestre de 1969. Na FCM-UERJ, os anos de ouro do futebol talvez também tenham ocorrido na década de 1970. A torcida, principalmente feminina, lotava o ginásio. Creio até que exis-tissem marias-chuteiras, mas, no caso, eram presentes mais por razões sentimentais e admiração pelos atletas, ou amor sincero, do que por qualquer sentimento mesquinho. Embora possa pa-recer despretensioso falar de futebol, mesmo nesse lazer pode-ria estar o perigo.

Um craque de futebol bem agressivo, embora leal, que batia bem na bola de direita e de esquerda, chama-se Edmundo Luis Ramos de Souza. Um campeão para quebrar escrita! Vejamos o que nos conta a partir do parágrafo abaixo:

Quanto ao futebol, eu posso dizer que desde criança estive nas horas vagas nos campos em São Pedro da Aldeia. Para mim sem-pre foi muito gostoso, acho que era o momento mais interessan-te em tempo de criança. Apesar de a vida em cidade de interior ser muito legal e deixar muita saudade.

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Na faculdade me lembro de quando chegamos em 1973. Havia um time de futebol de salão (hoje futsal – isso?) que era o terror. Famoso, tinha fama de invicto. Ah! Mas desbancamos os caras.Eles eram o famoso time da Ortopedia. O Invencível, o Me-lhor, o Impossível de ser derrotado! Aí vem nossa turma, cheia de peladeiros. Só sei que juntamos um grupo de final de tardes, passamos a nos conhecer, e fizemos um time para o primeiro campeonato que ia acontecer em breve. Escolhemos um grupo e o apelidamos de MEDICIBI. Time formado por colegas da Medicina e das Ciências Biológicas.Ganhamos esse campeonato. Foi uma final que ficou na história do futebol na escola. Isso porque aconteceu contra o chamado melhor time da UERJ. O famoso time da Ortopedia, com Sil-vio craque como ninguém e companhia. A partir daí nos torna-mos os terrores da quadra e respeitados como o grande time da FCM-UERJ. Todos queriam nos ganhar. Nosso time: Henrique (CB), Luizinho (CB), Edmundo (MED), Jorge Brolo (MED) e Santiago (MED) e Bira (MED) – grande craque. Eu na época de UERJ disputei muitos campeonatos pelos times formados na Universidade. Fui campeão em futebol de aterro e futebol de campo. Todos em disputas em campeonatos universitários do Estado do Rio e em várias Olimpíadas Estudantis das quais par-ticipei. A inauguração do Campus Universitário da UERJ veio a oferecer outros esportes como judô, por exemplo, onde se desta-cou o ex-aluno Marcos de Oliveira Pequeno, também da Turma FCM-1978.

“Como atleta, não pagava anuidade, o que me ajudava bas-tante”, ainda diz hoje Edmundo.

Edmundo Luis Ramos de Souza, ao retornar a sua cidade natal, São Pedro da Aldeia, tornou-se o primeiro vereador de es-querda eleito na Região dos Lagos. Como médico atuou na instala-ção da Delegacia do Conselho Regional de Medicina daquela área. Sempre participou das assembleias da FCM-UERJ e atribui seu crescimento político às experiências positivas vividas intensamen-te na escola de medicina, entre as quais os debates de filmes pro-movidos pelo CICEME. Algo demonstrativo da tese de a experi-ência política na escola ter contribuído para a formação de líderes políticos honestos, como foi também Gutemberg Damasceno,

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citado por Luiz Roberto Tenório em seu livro 50 anos de movimento estudantil na UERJ. Da Turma FCM-UEG 1968, Damasceno foi prefeito por duas vezes em sua cidade.

De volta ao futebol. Então, o MEDICIBI se tornara o ter-ror das quadras no futebol de salão da Ciências Médicas, suou mui-to, para, no campeonato do ano seguinte, arrancar um empate do time Vaginense Futebol de Salão, o preferido das garotas, que por ele – o time! – gritavam seu nome. No gol, Fabio Daflon, na defe-sa, Wellington Schafransky Balla e Serjão – beque alto que desistiu do curso médico, após conversar muito com alguns colegas –, e no ataque a dupla Jorge Zurita, atacante ágil e objetivo, e Pedro Di Marco da Cruz, em sua única atuação nas quadras, porque o titular do ataque do Vaginense faltou no dia do jogo, a obrigar o goleiro do time adversário a uma quase impossível defesa. O feito de empatar com o MEDICIBI, talvez só tenha sido possível ao Vaginense porque Edmundo Luis Ramos de Souza saíra daquele time para as hostes de um outro, a fim de equilibrar o campeonato.

Carlos Alberto Sancas também jogou futebol, e muito bem! Mas sentava perto da porta nos dias de prova e saía durante sua execução para fazê-la na biblioteca e, quando os alunos da FCM-1978 se levantavam para entregar as provas, o Sancas reentrava em sala de aula e entregava sua prova preenchida no meio do tumulto; no dia em que teve de enfrentar a prova de genética, que exige raciocínio mesmo para colar, foi reprovado e não concluiu o curso médico. Ninguém nunca entendeu o que o interessava dentro da FCM-UERJ. Saiu da escola de repente.

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CICEME – Cine Clube Ciências Médicas

O cinema é um mododivino de contar a vida.

Federico Fellini

CICEME apresenta Ivan, O Terrível – de Serguei Eisenstein

Nascido em Timmendoferstrand, cidade do norte da Ale-manha localizada no estado de Schleswig-Holstein, onde nasceu o grande romancista Thomas Mann, Fritz Carl era filho de Elsa Utzeri e Fritz Carl Padel, soldado alemão morto na frente po-lonesa em 11 de setembro de 1944, quatro meses antes do nas-cimento do seu filho. Fritz Carl Utzeri teria direito à cidadania alemã, caso seus pais tivessem conseguido se casar, pois os casa-mentos de alemão com estrangeiro, o que sempre era dificultado e postergado, eram pessoalmente autorizados apenas por Adolf Hitler. Ex-aluno da Faculdade de Ciências Médicas da UEG, de-pois UERJ, onde iniciou o curso médico em 1965, nos anos de 1968 e 1969 trancou matrícula para dedicação exclusiva ao jorna-lismo. Não teria retornado à Ciências Médicas não fosse para dar essa alegria da graduação superior à sua mãe, Elsa Utzeri, italiana da Toscana com pais nascidos na Sardenha. Sua família emigrou para a França, deixando a Itália com a chegada de Mussolini ao poder, já que a mãe de Elsa era do Partido Comunista Italiano. Com a invasão do Norte da França pelos alemães, ela foi expulsa

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Título Provisório 183

de casa por namorar um soldado alemão, o Fritz Carl, em Pas-de--Calais, França. Elsa não pôde estudar como gostaria, mas viu o filho se formar médico com a turma FCM-UERJ-1972.

Elsa Utzeri vagou por Berlim sob os bombardeios dos alia-dos, grávida do filho, e, ao retornar à Itália para obter os passa-portes para deixar a Europa destruída rumo ao Paraguai, o nome do filho Fritz Carl Utzeri foi mudado pelo funcionário italiano, certamente por ódio aos alemães, ele traduziu o nome alemão e registrou-o como Federico Carlo Utzeri, isto é, apenas nomes ca-pazes de conferir identidade italiana.

Com três anos de idade veio para a América Latina com a mãe, direto para Assunção, no Paraguai. Ao Brasil, chegou com sete anos (1952), indo morar no bairro paulista de Higienópolis. Mas não parou ali: veio para o Rio de Janeiro, foi para Lima (Peru), La Paz (Bolívia), Santiago (Chile) e Buenos Aires (Ar-gentina), acompanhando a mãe e o padrasto italiano, Otello, que o criou. De volta ao Rio, foi morar na Tijuca, entre as décadas de 1960/1970.

Ao começar como estagiário no Jornal do Brasil, o repórter assinava suas matérias como Fritz Utzeri. No Brasil, por lei, só pode exercer o ofício de jornalista quem for brasileiro nato ou naturalizado, exceção feita aos correspondentes estrangeiros. Por isso, para efetivá-lo, o jornal providenciou o processo de naturali-zação e, aos 23 anos de idade e oficialmente sendo Fritz Carl, teve que ser naturalizado como Federico Carlo, o nome com o qual en-trara no país nos documentos da mãe traduzidos pelo funcionário italiano, algo que a muitos poderia ter causado um grande trauma de identidade. Não foi o caso. Fritz continuou usando o nome de nascido em suas matérias de jornal e em todos os documentos ofi-ciais era Federico Carlo. Até então estava no quarto ano de medici-na, interregno aproveitado para dar vazão à sua paixão por cinema, principalmente o cinema soviético e italiano, com a criação, sob sua coordenadoria, do Cineclube Ciências Médicas – CICEME. Nesta época frequentou muito a empresa Tabajara Filmes e era até

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mesmo aconselhado por William Cobbett a deixar a medicina para fazer cinema. Preferiu o jornalismo.

Tempo de cinema novo, de efervescência cultural no mun-do. É Tatiana Cobbett quem nos fala de William Cobbett, seu pai, primeiro brasileiro a importar filmes russos para o Brasil:

... meu pai, William Cobbett, era diretor de cinema e minha mãe produtora cultural, ambos falecidos mas com uma trajetória mui-to rica.Meu nome vem de uma espécie de promessa de expectativa, meus pais haviam importado (Tabajara Filmes foi a primeira em-presa importadora de filmes russos para o Brasil) o filme “Quan-do voam as Cegonhas” e a fila na porta do cinema me legou o nome da estrela do filme.

De fato, Tatiana Cobbett veio a tornar-se artista, foi e é cantora, compositora e bailarina, e assim uma estrela. Na sinop-se do primeiro filme russo exibido no Brasil consta o seguinte: Veronika e Boris estão apaixonados. Eles caminham pelas ruas de Moscou até o amanhecer. Mas a Segunda Guerra Mundial co-meça e Boris, operário de uma fábrica, alista-se voluntariamente às forças armadas. Para tristeza de sua família e de Veronika, ele parte para a frente de batalha. O filme foi dirigido por Mikhail Kalatozov e o nome da atriz no papel de Veronika é Tatiana Sa-mojlova, muito expressiva e densa.

Na Tabajara Filmes, Fritz Utzeri ia buscar filmes como “Ivan, o Terrível”, de Serguei Eisenstein, cujo pôster cedido por William Cobbett, um nordestino nascido em Natal, permanece em parede de sua casa até hoje. Cinéfilo, Fritz desde 1963 namorava Liège Galvão Quintão, também estudante de medicina e tesoureira do CICEME, apesar de ser aluna da UNIRIO, antiga FEFIEG, depois FEFIERJ, antes do nome atual já referido. Viveram juntos por 50 anos e 20 dias.

Quando trancou matrícula para dedicação exclusiva ao jornalismo, quem assumiu a coordenação do CICEME foi o

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estudante Mario Dal Poz, mantenedor do ótimo funcionamen-to do cineclube, com programação semanal, apesar do trabalho enorme de montar todo o equipamento para as projeções. Outros filmes importantes na época de Fritz, e principalmente para Fe-derico, foram os do neorrealismo italiano e os filmes de seu xará Federico Fellini, diretor de sua maior predileção.

Junto com Liège durante o ano de 1967, o casal de namo-rados assistiu a 373 filmes; várias vezes mais de um filme por dia, tudo anotado e brevemente resenhado.

O filme “Os companheiros”, de Mario Monicelli, foi exi-bido várias vezes, estrelado por Marcello Mastroianni, no papel de um socialista que trava um breve diálogo com uma prosti-tuta à procura de cliente, ao responder à pergunta de o porquê tanto luta:

“Lutarei até que o mundo não tenha mais nenhuma mulher que precise trabalhar como você.”

Panfletário e obra-prima, o filme exercia e deve exercer ain-da um grande efeito sobre a plateia. Fritz foi contra a exibição do filme no dia dos protestos contra as prisões ocorridas no Congres-so da UNE, em Ibiúna. Estava na faculdade e nos protestos no dia em que foi assassinado o estudante Luiz Paulo da Cruz Nunes. No dia seguinte, como repórter do JB, foi fazer a entrevista com o de-legado do DOPS que investigava os envolvidos nas manifestações. Comentou que a barra estava pesada!...

Na Boulevard 28 de setembro, em frente ao hospital Pedro Ernesto, quando os policiais começaram a atirar, um dos feridos caiu ao seu lado. A guerra era guerra! Os estudantes, com paus e pedras, se defenderam e partiram em massa para, em um primeiro momento, fazerem os policiais recuarem, relatou Liège, e tudo te-ria acontecido à semelhança da expulsão dos alemães pelos italia-nos, no filme “Quatro dias de rebelião” (Quattro giornate di Napoli, Le Itália, 1962), dirigido por Nanni Loy.

Uma arma chegou a ser tomada de um dos agentes da di-tadura. De acordo com Michel Assbu, residente chefe de plantão:

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Queriam invadir o Hospital. Durante algum tempo tivemos que transferir os pacientes da cardiologia e pediatria, aonde chegavam bombas de gás lacrimogênio. O Hospital Universi-tário Pedro Ernesto tinha recebido uma Ambulância Kombi, toda fechada. Todos os carros que saíam, eles revistavam, até que mandei buscar um remédio na farmácia Granado, na Pra-ça Saens Pena, e ele não revistou a ambulância. Foi assim a oportunidade de muitos saírem, pois a ambulância eles não revistavam. Eu era R2 (residente de 2º ano, chefe responsável pelo plantão).

De toda luta que participou, uma das mais duras para Utzeri foi o processo por causa do jornal Perspectivas, que fundou na Ciências Médicas. Por isso foi incurso na Lei de Segurança Nacional, pela Segunda Auditoria da Aeronáutica. Compareceu à Base Aérea do Galeão, acompanhado por Liège, orientada para ir ao jornal e denunciar sua prisão caso não saísse no mes-mo dia. A espera foi longa e angustiosa – o depoimento ao Co-ronel Rangel durou cerca de nove horas! Foi acusado de dividir as Forças Armadas.

Fritz, segundo Liège, à época de sua juventude muito magro e com cara de nerd, respondeu:

“Eu! Olha bem para mim, coronel, se eu tivesse essa capaci-dade, confesso que até tentaria, mas é impossível”.

Seu processo de naturalização como brasileiro foi concluído durante a Auditoria na Aeronáutica, providenciado agilmente pelo Jornal do Brasil.

Em uma das falações sobre patriotismo, o acusado, levado à irritação e revolta, ripostou:

“Coronel, eu sou muito mais brasileiro que o senhor! Pode-ria manter a minha cidadania italiana, mas escolhi ser brasileiro. O senhor nasceu aqui, não precisou escolher”.

Fritz jamais se vinculou a qualquer organização de esquer-da legal ou ilegal, foi, isso não é pouco, um dos mais brilhantes jornalistas do Brasil. Ao sair do interrogatório, abraçou a mulher, aliviado. Liège conta mais tarde terem visto sua ficha do DOPS,

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onde ao final do IPM na Aeronáutica estava escrito: “Muito inte-ligente e perigoso”.

Detentor da Medalha Chico Mendes (condecoração criada pela Organização Não Governamental brasileira Grupo Tortura Nunca Mais para homenagear pessoas e/ou grupos que a organi-zação considera lutar pelos Direitos Humanos e por uma sociedade mais justa) por sua trajetória de lutas jornalísticas pelo Jornal do Brasil e pela rede Globo de jornal e televisão, as denúncias do jornalista lhe valeram dois prêmios Esso com a série sobre o atentado do Rio-centro, ainda em 1981, e de Primeira Página, relativo ao sequestro do ônibus 174. Os prêmios prosseguiram com mais dois Prêmios Vladimir Herzog por “Quem matou Rubens Paiva?”, matéria feita por Fritz e Heraldo Dias e por “Riocentro, 15 anos depois” para o Globo Repórter, com Caco Barcellos.

Quando começou a ser reconhecida sua importância como jornalista, concedeu uma entrevista ao jornal do Conselho Re-gional de Medicina do Rio de Janeiro. Citado de memória, falou das três profissões baseadas essencialmente na entrevista: a me-dicina, o direito e o jornalismo. Reconheceu ter começado sua carreira em jornais na imprensa estudantil da Ciências Médicas, fato que honra a FCM-UERJ por ter na seara jornalística tão importante patrono. Aliás, quando Fritz Utzeri foi à entrevista no Jornal do Brasil para ser estagiário, quem o entrevistou foi Fer-nando Gabeira, responsável imediato por sua contratação. Fritz trancou matrícula na Ciências Médicas por dois anos e só retor-nou à escola para dar a sua mãe italiana a alegria de ter um filho diplomado, visto ela mesma não ter conseguido em seu país de origem, a Itália, estudar durante a Segunda Grande Guerra.

Quem sucedeu Fritz na direção do CICEME foi o ex-aluno Mario Dal Poz; como expõe abaixo:

Em 1968, eu ainda estava no primeiro ano e o Luiz Paulo da Cruz Nunes era do segundo ano. Muitos participavam do cine-clube. Aprendi muito com o Fritz e vários outros sobre cinema. Não tenho a menor ideia de quando e por quanto tempo dirigi

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o cineclube. Nem muito menos como foi decidido passar esse filme, um marco da filmografia do Mario Monicelli. Usávamos sempre um dos anfiteatros da faculdade. Dava um trabalhão montar e desmontar o equipamento. Os filmes eram alugados numa das distribuidoras na cidade, na véspera ou na manhã. Tínhamos uma sessão por semana. Preparávamos a sinopse, que era impressa e distribuída aos presentes. Tínhamos uma pro-gramação mensal, acho que juntando autores ou diretores ou temas. Talvez naquele mês (dezembro de 1968, no qual Luiz Paulo da Cruz Nunes foi assassinado) tenhamos passado outros filmes do Monicelli, como o “Exército de Brancaleone”, bem popular à época.

Quando estudante, muitas vezes Fritz Carl Utzeri foi con-vidado a ingressar no PCB, sempre recusava; e dizia para sua na-morada Liège Galvão Quintão: “Nunca na minha vida vou ser um tarefeiro”.

Em 4 de fevereiro de 2013 faleceu o ex-aluno da FCM--UERJ, que optou por jornalismo ao deixar a medicina para se tornar um dos grandes repórteres do século XX no Brasil, tendo sido membro da Diretoria da Associação Brasileira de Imprensa. Algo semelhante ao que fez o também médico João Guimarães Rosa, ao deixar a medicina para se dedicar à diplomacia, de olho enviesado para a literatura. Em 6 de fevereiro do mesmo ano, Élio Gaspari escreveu elogioso necrológio sobre a obra e o caráter do jornalista, sob o título “O repórter riu por último”, onde no início do texto, está dito:

Fritz Utzeri morreu no dia em que a Comissão da Verdade expôs farsa do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva.

Gaspari refere-se, no necrológio, à reportagem publicada em outubro de 1978, junto com o repórter Heraldo Dias, sob o tí-tulo “Quem matou Rubens Paiva?”, em que os repórteres, a partir de fatos concretos, demonstraram que Rubens Paiva não poderia ter sido morto em uma forjada tentativa de fuga.

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Fritz dizia que três dias 11 de setembro marcaram sua vida: o de 1944, da morte de seu pai na guerra, o de 1973, da queda do Governo de Salvador Allende, e o de 2001, quando do atentado fundamentalista islâmico contra as Torres Gêmeas do complexo empresarial do World Trade Center na cidade de Nova Iorque, matando todos a bordo e muitas das pessoas que trabalhavam nos edifícios.

Nos anos 1970 o CICEME reapresentou o filme “Os compa-nheiros”, de Mario Monicelli. Manteve-se ativo graças, entre outros alunos, a Maria de Fátima Martins Pereira – a Fatinha, atriz e perso-nagem também do grupo de teatro ...ERDA. Edmundo Luis Ramos de Souza, craque de futebol, tímido apenas para falar nas assembleias, diz ter sido nessas atividades culturais, como se vê não só ensejadas pelo Clube, a sua conscientização política. O Movimento de Eman-cipação do Proletariado (MEP) também gostava do cinema hoje cha-mado cult, porém suas sessões ocorriam mais nos bairros operários.

Como jornalista, Fritz Utzeri entrevistou Luc Antoine Montagnier, um dos virologistas a isolar primeiramente o vírus da AIDS; entrevistou também o Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio Sales. Dom Eugênio era um pastor que matinha controle do seu rebanho. Por isso, era um bispo polêmico. Não fo-ram poucos os sacerdotes que se queixaram dele. Nos anos 1970, em pleno regime militar, fazia questão de visitar os presídios jun-to com o coordenador da pastoral penal, padre Bruno Trombeta. Não havia Páscoa nem Natal em que o cardeal não passasse em pelo menos uma cadeia pública. Nelas, com a imprensa presente, celebrava para todos os presos e ia às celas dos prisioneiros polí-ticos, muitos dos quais não confessavam a mesma fé ou, simples-mente, eram ateus.

Em maio de 2000, pela primeira vez, Dom Eugênio falou ao jornalista Fritz Utzeri, do Jornal do Brasil, sobre um trabalho que desenvolveu em sigilo entre 1976 e 1982, quando acolheu e protegeu mais de cinco mil refugiados políticos de toda a Amé-rica Latina. Ele autorizou seus auxiliares a alugarem cerca de 80

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apartamentos para abrigar esses perseguidos das ditaduras milita-res do cone sul. Algumas vezes, como o jornal relatou, policiais ar-gentinos eram infiltrados nos grupos de refugiados, mas acabavam sendo descobertos.

Agia, à sua maneira, preferencialmente sem alardes. Bem distante do jeito de atuação de outro cardeal que marcou época, Dom Paulo Evaristo Arns, pastor da igreja em São Paulo. Embo-ra adotassem métodos diferentes e fossem considerados de alas opostas no seio da igreja e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – Dom Eugênio tido como conservador, Dom Paulo como progressista –, os dois tiveram algumas passagens juntos. Uma delas, em março de 1978, quando foram recebidos, com outras personagens civis brasileiras, pelo Presidente americano Jimmy Carter, na casa da Gávea Pequena.

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Título Provisório 191

大字报 – Informativo Dazibao: Os 10 filmes políticos mais importantes do século XX – faça também sua lista

Minha mãe sempre me dizia: “Nunca se meta com política!”.Jamais pertenci a um partido ou defendi uma ideologia,

mas é preciso se posicionar, deixar claro se você está do lado do mais forte ou do mais fraco. A indiferença é confortável,

mas paga-se um preço muito alto por ela.

Constantino Costa-GravasDiretor de cinema.

1) Os companheiros – Mario Monicelli;2) O conformista – Bernardo Bertolucci;3) A guerra acabou – Alain Resnais;4) Z – Constantino Costa-Gravas;5) A confissão – Constantino Costa-Gravas;6) A classe operária vai ao paraíso – Elio Petri;7) Os deuses malditos – Luchino Visconti;8) Actas de Marusia – Miguel Littin;9) Pra frente Brasil – Roberto Farias;10) O caso Matteotti – Florestano Vancini.

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大字报 – Informativo Dazibao: O arquivo americano

do jornal Perspectivas do CASAF11

No Colégio São Bento em São Paulo, onde cursou o pri-mário, Fritz Utzeri era o responsável pela publicação dos alunos, o que continuou fazendo no curso secundário; e mais seriamente ainda na Faculdade de Ciências Médicas.

Fritz Utzeri, além de jornalista, foi escritor – autor de li-vros de crônicas e do romance Aurora – os anjos do apocalipse, que dá nome também ao submarino nuclear Aurora, arma que deu início à revolução russa, quando submarino não tinha a energia nuclear para propulsão. No livro Aurora o submarino é nuclear e atua no fim da Guerra Fria; segundo Liège Galvão Quintão, viúva do ex-aluno:

O jornal Perspectivas era impresso em um mimeógrafo do CASAF, onde Fritz percebeu gostar mais do fazer jornalismo. Em medicina, já tendia a ser Psiquiatra; isso o tornava o acadê-mico mais procurado pelos pacientes psiquiátricos, não por seus conhecimentos, mas por um apelo irresistível levando a quase todos os doentes a optarem pelo seu nome: “Dr. Fritz”, justo em tempos de grande projeção do médium Chico Xavier.

Perfeccionista, preocupava-se com a diagramação, orde-nação e periodicidade do jornal, isso certamente levou o Depar-tamento de coleta de publicações dos EUA a vê-lo como uma 11 UTZERI, Fritz. Aurora – Os anjos do apocalipse. Ed. Record, 1998.

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publicação estabelecida. Com o desmantelamento, inclusive físico, do CASAF, o jornal parou de circular.

Fritz ainda morava com os pais e recebeu, por volta do ano de 1970, um envelope da Biblioteca Nacional do Congresso em Washington. Era uma carta onde formalmente era solicitado in-formar sobre a existência do número em falta (a biblioteca for-necia a relação dos números constantes da coleção) e dentro do envelope, as coordenadas, já com envelope pré-selado, para envio caso o jornal continuasse circulando. Desconfiado, pois a repres-são estava bem ativa, ignorou tal pedido. Alguns anos depois, em Washington como jornalista, teve a curiosidade de ir à Biblioteca do Congresso para verificar se era verdadeira a tal estória. Foi en-caminhado ao Setor de Periódicos e Panfletos, preencheu a ficha para consulta de Perspectivas e, para sua surpresa, a funcionária trouxe todos os números existentes do Jornal. Ele não resistiu e quis saber como a Biblioteca providenciava isso.

A Biblioteca do Congresso tinha um sistema de coleta de qualquer publicação, grande ou pequena, em todo o mundo, feita não necessariamente por espiões ou funcionários das Embaixa-das, que remetiam para os Estados Unidos tudo que circulasse no mundo, e o material era tratado com o cuidado de coleções e arquivado. Vejam: no mundo inteiro.

Fritz refletiu e percebeu a estratégia de tal ato. Imaginou que alguém anos depois poderia vir a ser um político de projeção, um candidato à presidência de um país de interesse geopolítico, com um discurso não radical, mas o “Grande Irmão” saberia exa-tamente como pensava em anos anteriores, se podia ser confiável segundo seus critérios. Então entendeu a máxima dos Impérios: “Informação é poder”.

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Sentados, os jornalistas Sergio Fleury da Fonseca, à esquerda, Fritz Utzeri na cadeira de fundo, Heraldo Dias, na mesa à direita, Arthur dos Santos Reis, à direita na mesa, com Elyberto Moraes de pé, na redação do Jornal do Brasil.

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O ...ERDA

La sátira es el arma más eficaz contra el poder:el poder no soporta el humor, ni siquiera los

gobernantes que se llaman democráticos,porque la risa libera al hombre de sus miedos.

Dario Fo

O ...ERDA, Experimental Research of Dramatical Arte OU Experiência Renovadora do Desenvolvimento Artístico, se-gundo o ex-aluno Adilson Luiz da Cunha Aguiar Mariz, já existia quando a Turma FCM-1978 ingressou na escola em 1973, e es-tava em cartaz no segundo andar do prédio do Conselho de Re-presentantes dos Alunos a peça Piquenique no Front, do drama-turgo espanhol Fernando Arrabal. Teatro do absurdo, o roteiro trata da ida a um piquenique no campo em meio à guerra ali de-senvolvida. Vejamos o que Adilson escreveu no site da ALUMNI − Associação dos Ex-Alunos da Faculdade de Ciências Médicas da URJ, quando soube que uma outra edição do Título Provisório estava sendo elaborada:

O senhor e a senhora Tépan decidem fazer tal piquenique com seu filho, Zapo, em pleno campo de batalha. A estrela da peça foi a aluna Maria de Fátima Martins Pereira, também atuante no CICEME, da Turma FCM-1977. Os outros atores, fica difícil dizer quem eram – o Carlinhos da genética, o Paulão da parasi-tologia e outros alunos veteranos, que com certeza não perten-ciam à fração bolchevique do Movimento de Emancipação do Proletariado – o MEP –, presente na escola mais tarde, nem a

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nenhum outro grupo político, como é comum acontecer com talentos artísticos.No antigo Teatro da UEG, no prédio da Rua Fonseca Telles, em São Cristóvão, com cerca de 500 lugares, mas em péssimo estado de conservação, havia um grupo que fazia uso da técnica de far-sa, com textos de Molière, para manter viva a chama da cultura e da arte como forma de resistência e agregação dos alunos. Nesse grupo entravam e saíam pessoas, quase sem tempo de conver-sar muito e fazer amizade. Mas suas ideias serviram para que o ERDA usasse a farsa ao melhor estilo de Molière para atuar como teatro crítico e combativo, de forma clara e sem equívocos, historicamente, se não em sua melhor fase, ao menos, o que não é pouco, em excelente fase.O pessoal novo que chegava ao ...ERDA, era para ser M..., daí os três pontinhos, realizou como primeiro trabalho algo eclé-tico, o Jogo das Contas de Vidro, uma sensacional coletânea de textos e poemas musicados pelo ex-aluno Marcio Borges, músico vinculado ao Clube da Esquina, com composições suas que vieram a ser gravadas por Nana Caymmi. A peça tratava da solidão e do homem. Foi um grande sucesso. Ainda na fase de apresentação no salão do 2º andar do prédio do CR, transformado em palco de teatro de arena, mesmo com a repressão na faculdade, que rasgava os cartazes e proibia apresentações.Mas foi a partir de “O pagador de promessas”, de Dias Gomes, que o Grupo se consolidou como um verdadeiro Grupo de Te-atro, conhecido e respeitado no circuito universitário e fora dele! Nessa época, houve uma parceria interessante e acidental: apre-sentação do ERDA foi junto com um outro grupo, que exibia “O Inspetor Geral”, de Gogol: era o ASDRÚBAL TROUXE O TROMBONE, dirigido pelo genial Hamilton Vaz Pereira e com a participação de Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Patrícia Travassos e outros.Na casa de Dias Gomes, com direito ao cafezinho da Janete Clair, foram discutidos um a um e construídos os personagens que iríamos fazer; ele abriu mão dos seus direitos autorais para que pudéssemos ter um fundo para dar continuidade ao nosso trabalho. Esteve presente à nossa estreia, comentada e elogiada no Jornal do Brasil pelo Yan Michalski, também lá presente: foi um sucesso naquele semestre letivo, mas destruído nas férias, pela re-pressão da própria universidade! Mesmo antes da estreia, a cada ensaio, éramos visitados e ameaçados das mais diversas formas

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por aqueles que se sentiam incomodados por nossa atuação en-gajada na escola.Participaram do ERDA também os ex-alunos Maria Elizabeth Zurita, Nancy Durso, entre outros que o tempo, sempre célere, não permite citar agora.Foi aí que o ERDA deu o seu grande salto, atuando em cima de textos mais curtos e próprios, escritos a várias mãos e adaptando textos já consagrados, usando colagem, para cora-josamente representar a UEG no Circuito Antes que o Pano Caia, no circuito universitário que fazia referência ao Teatro da Faculdade de Letras da UFRJ, Avenida Chile, que estava mesmo caindo, cheio de rachaduras por conta da construção de espigões vizinhos.“O jogo da independência” (originalmente “O jogo da liberda-de”, vetado em todo o território nacional, mas aprovado com o mesmo texto com a simples troca do título; não sei de quem foi a ideia, mas foi genial e deu nó na cabeça dos censores da época) caiu no gosto dos alunos da UEG e de fora dela, chovendo pedi-dos para apresentações.Na peça, os atores com macacões do tipo dos da Comlurb var-riam uma Praça e comentavam sobre as notícias antagônicas que eram publicadas sob a forma de slides projetados na parede. No fim, havia a inclusão do final da peça Calabar: “Um dia esse País há de ser Independente, dos holandeses, dos espanhóis, dos portugueses”; ia reduzindo até terminar num brado: “... Um dia esse País!...” e vinha a música, ao fundo crescendo: “já podeis da Pátria filhos ver contente...” e quando dizia que “... já raiou a Liberdade no horizonte do Brasil...”, as luzes se acendiam e os atores agora eram fantoches cantando dentro de uma prisão – verdadeira catarse!Nancy Durso, aluna da turma FCM-1978, jamais esqueceu o sor-riso de Dias Gomes, na primeira fila durante toda a apresentação da peça “O pagador de promessas”.

O teatro político fez que houvesse, ainda no governo Mé-dici, a peça “Um grito parado no ar”, em 1974, apresentada no Teatro João Caetano, com artistas excelentes no elenco como Othon Bastos. O teatro de Guarnieri não teve grandes ousa-dias formais nem se pretendeu profético e jamais avançou sobre os imediatismos do processo histórico, mas precisou de arrojo

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para satisfazer as fixações criadoras de seu autor: dar resposta ao momento e afrontá-lo. Um grito parado no ar, a metáfora da resistência, discute no palco a problemática do esmagamento da classe teatral, e do teatro, evidenciando, nas entrelinhas, a reali-dade objetiva de um sistema social que tirou do povo o direito de manifestar-se.

Ao introduzir de forma simbólica o povo na peça, Guar-nieri desafia o sistema e se apresenta como um artista da força de resistência. No final da peça, através do grito no escuro, bra-dado por Augusto, Guarnieri simboliza a quebra de fronteiras entre o palco e a plateia: o grito extrapola o espaço do palco com repercussão em cada espectador, em cada cidadão: é pre-ciso resistir.

Coerente com o estilo realista, as personagens de Guarnie-ri usam sempre uma linguagem eminentemente popular. É um mestre do diálogo que, normalmente, flui rápido, conduzindo a ação. Em “Um grito parado no ar”, uma peça dentro de uma peça, Guarnieri demonstrou com maestria essa sua característica. Augusto e as demais personagens atestam isso.

Um grito parado no ar, denominado pelo próprio autor como “Teatro de Ocasião”, é o depoimento vivo de uma época em que a Censura, ironicamente, beneficiou o teatro, no que concerne à procura de uma nova expressão para sua arte.

Cremos que os teatros estudantis motivaram autores partici-pantes na juventude do movimento estudantil do seu tempo.

De fato, segundo Márcio Moreira Alves: “O teatro e a canção foram os campos de confronto entre os intelectuais e o regime em 68, de vez que eram, juntamente com o cinema, atividades sujeitas à censura. Eram, igualmente, atividades cul-turais consumidas pela classe média, de onde provinham tanto os jovens oficiais das Forças Armadas como os estudantes di-reitistas do CCC”.

Nos anos 70, ao menos no primeiro lustro, foi o teatro quem mais combateu, nas artes, o regime. Chico Buarque de Holanda

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foi, então, o dramaturgo mais prolífero e atuante, com peças como “Roda viva”, “Calabar”, “Gota d’água”, “Ópera do malandro”, “O Grande Circo Místico”.

A peça “Roda viva” foi escrita por Chico Buarque no final de 1967 e estreou no Rio de Janeiro, no início de 1968, sob a dire-ção de José Celso Martinez Corrêa, com Marieta Severo, Heleno Prestes e Antônio Pedro nos papéis principais. A temporada no Rio foi um sucesso, mas a obra virou um símbolo da resistência contra o regime militar durante a temporada da segunda monta-gem, com Marília Pêra e Rodrigo Santiago. Um grupo de cerca de 110 pessoas do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiu o Teatro Galpão, em São Paulo, em julho daquele ano, espancou artistas e depredou o cenário. No dia seguinte, Chico Buarque estava na plateia para apoiar o grupo e começava um movimento organizado em defesa de “Roda viva” e contra a cen-sura nos palcos brasileiros.

“Calabar: o Elogio da Traição”, foi escrita no final de 1973, em parceria com o cineasta Ruy Guerra e dirigida por Fernan-do Peixoto. A peça relativiza a posição de Domingos Fernandes Calabar no episódio histórico em que ele preferiu tomar partido ao lado dos holandeses contra a coroa portuguesa. Era uma das mais caras produções teatrais da época, custou cerca de 30 mil dólares e empregava mais de 80 pessoas. Como sempre, a cen-sura do regime militar deveria aprovar e liberar a obra em um ensaio especialmente dedicado a isso. Depois de toda a monta-gem pronta e da primeira liberação do texto, veio a espera pela aprovação final. Foram três meses de expectativa e, em 20 de outubro de 1974, o general Antônio Bandeira, da Polícia Federal, sem motivo aparente, proibiu a peça, proibiu o nome “Calabar” e proibiu que a proibição fosse divulgada. O prejuízo para os autores e para o ator Fernando Torres, produtores da montagem, foi enorme. Seis anos mais tarde, uma nova montagem estrearia, daquela vez liberada pela censura.

Quem assistiu a qualquer uma dessas peças jamais a esquecerá.

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大字报 – Informativo Dazibao: Emilio Myra y López

AMORHUMOR

Oswald de Andrade

Emilio Mira y López (Santiago de Cuba, 24 de outubro de 1896 – Petrópolis, Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 1964) foi um sociólogo, médico psiquiatra e médico psicólogo, professor de Psi-cologia e de Psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade Complutense de Madrid. A sua visão da psicologia está intima-mente ligada à fisiologia, já que entendia que os estados mentais estavam relacionados a mudanças musculares com origem nos órgãos sensoriais resultantes da interação entre mundo externo e interno ao indivíduo.

Militante da Unió Socialista de Catalunya, o início da Guerra Civil Espanhola surpreendeu-o quando participava num congres-so em Zurique. Ao regressar colocou-se à disposição da República. Foi chefe dos serviços psiquiátricos do Exército republicano em 1938, com o posto de tenente-coronel; membro do Conselho Su-perior de Cultura da República; Presidente do Instituto de Adap-tação Profissional da Mulher e médico director do manicómio de Sant Boi. Com a derrota na Guerra Civil foi obrigado a exilar-se.

Principal promotor da escola psiquiátrica alemã na Catalu-nha, em 1939 apresentou no Maudsley Hospital, de Londres, o seu

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“teste psicodiagnóstico miocinético” (mais conhecido por PMK), a sua principal contribuição para as técnicas projectivas. Inventou o axistereómetro12.

Com o início da Segunda Guerra Mundial, mudou-se para os Estados Unidos da América, partindo depois para Argentina, Cuba, Uruguai, Guatemala, Equador, Venezuela e, finalmente, Brasil. Foi fellow researcher da Sociedad de Protección a la Ciencia, docente livre de psiquiatria na Universidade de Buenos Aires, pro-fessor de cursos de psiquiatria nos Estados Unidos da América, Argentina e Uruguai.

Em 1945, Mira y López teve seu primeiro contato com o Brasil, onde pronunciou conferências e deu um curso de Psi-cologia aplicada ao trabalho, a convite da Universidade de São Paulo – USP, Instituto de Organização Racional do Trabalho – IDORT, Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI e Estrada de Ferro Sorocabana. No Rio de Janeiro, foi nomeado em 1947 diretor do Instituto de Selecção e Orientação Profis-sional (ISOP), cargo que ocupou até falecer. Participou das lutas pela regulamentação da profissão e pela formação acadêmica re-gular do psicólogo no Brasil13.

Autor do livro Quatro Gigantes da Alma (o medo, a ira, o amor e o dever), talvez se tivesse mais tempo de vida incluísse entre es-ses gigantes a dor, o pensamento, o humor. É também autor, entre outros livros, de A psiquiatria na guerra14.

12 Disponível em: <http://www.cliopsyche.uerj.br/arquivo/mira.html>.13 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Emilio_Mira_y_L%C3%B3pez>.14 MIRA Y LÓPES, Emilio. Os quatro gigantes da alma: o medo – a ira – o amor – o dever. Tradução revista e prefaciada por Cláudio de Araújo Lima. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1963.

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O MUSICEME e o encontro com uma gestante

Preguem AvisosFechem Portas

Ponham GuizosNosso Amor Perguntará:

E daí, E daí?

Jards Macalé

Nos anos 1960, os shows musicais eram realizados na Bi-blioteca da Ciências Médicas. Alguns artistas de grande naipe, a começar por Paulo Moura, ajudaram os estudantes. Sérgio Ri-cardo (participante do berço da bossa nova, isto é, fez parte do primeiro núcleo de compositores desse movimento musical) e Carlos Lyra também colaboraram bastante. Baden Powell tenta-va, mas, às vezes ébrio, às vezes sem disponibilidade, não colabo-rou tanto como era a expectativa dos estudantes, principalmente por ser um grande violonista. Foi na biblioteca da dona Wanda Coelho que a cantora Beth Carvalho fez seu primeiro show para um público de estudantes e, que se saiba, essa não é a única ar-tista que atuou em início de carreira na Faculdade de Ciências Médicas da UERJ.

Fabio Daflon, acerca de seu relacionamento tangencial com o PCB, sempre deuterogonista e nunca protagonista, foi a algumas reuniões do Clube. Era imaturo. Lia desde cedo o que lhe caía às mãos. Na época leu o Manifesto Comunista e o belo livro de Karl

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Marx, A ideologia alemã. Leu cedo, dicionário a tiracolo, Euclides da Cunha, um dos primeiros escritores a escrever sobre Marx no Brasil, e devorava o Jornal do Brasil no dia a dia, além de ter vínculos da amizade no meio musical.

No início do 3º ano médico, procurou se afastar a fim de se dedicar ao estudo e se afastou com ruptura, passando a atuar no ME como freelancer. Entrementes, no início do curso, além das reu-niões do Clube, por ser amigo de Sidney Mattos, um dos músicos do Movimento Artístico Universitário – o MAU, que se reunia na casa do psiquiatra Aluízio Porto Carrero, e trazia entre seus com-ponentes os jovens Ivan Lins, Luiz Gonzaga Junior, Aldyr Blanc, entre outros, também vezeiros na frequência ao bar Montenegro, na Tijuca. Eram noitadas de boemia e música.

Antes da ruptura, o que não significou hostilidade ao pes-soal do Clube, chegou a fazer um ponto na esquina da Rua Fa-rani com a Praia de Botafogo, tudo errado – comprou o jornal Opinião, oposicionista do governo, e aguardou ser abordado por uma gestante certamente no último trimestre de gestação, de codinome Siqueira.

– Você é o Fabio – existia tanta certeza na voz dela que não cabe apor o ponto de interrogação.

– Sim, sou.– Sou a Siqueira, do Comitê Estadual.– Prazer.– Vim saber se você pode fazer uma contribuição mensal

para o partido.– Qual a finalidade da contribuição?Nunca tinha lido um exemplar de A voz operária, jornal clan-

destino do PCB.– Nós vivemos uma guerra, precisamos de dinheiro para

editar jornal, nos movimentarmos.– Que guerra, vocês vão comprar armas?Siqueira ficou nervosa, a dissuasão pela causa demoraria

muito e a ignorância do interlocutor a irritava. São inesquecíveis os

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olhos grandes e castanhos. Siqueira era alta, sobre os olhos miúdos de quem esperava uma resposta em fleugma.

– Preciso ir, é perigoso ficar aqui.Saiu pela Farani sem se despedir.Outro aluno, de atuação menos discreta até porque mui-

to marcante, foi o da turma que ingressou em 1972 – a turma FCM – 1977. Agora na ocasião de reeditar o Título Provisório, via e-mail, lhe foram feitas algumas perguntas. Tinha o apelido de Galileu, não era codinome, e seu nome é Marcio Neves Bóia. Disse que sua participação foi espontânea. As ditaduras são estúpidas, e, naturalmente, jogam as pessoas contra si. Quando cheguei à Escola Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca, to-dos já tinham sido presos e alguns já estavam na clandestinida-de. Pôs em relevo o movimento estudantil da UNIRIO (antiga FEFIEG) e a UFRJ.

Perguntado se os professores tiveram alguma solidariedade, mesmo velada, respondeu ser difícil encontrar um professor na FCM-UERJ que não tenha sido solidário com seus alunos, mesmo sem concordar com as ideias ou práticas. Os agentes infiltrados da ditadura devem ter existido. Mas isso faz parte do passado. In-teressante que até os simpatizantes da ditadura tinham vergonha de assumir, e até hoje não encontramos ninguém que tenha reco-nhecido sua identificação com o regime. Por fim destacou como personagens da história todos os diretores da FCM-UERJ (Jayme Landmann, Ítalo Suassuna, Américo Piquet Carneiro, Ismar Cha-ves da Silveira). Professores como Pedro Noleto, Dirce Bonfim, Ricardo Guerra, Ivan Mathias, Eustáquio Bruno e tantos outros. O Romero Lascasas Porto, meu colega de turma, foi uma inspi-ração para todos nós, pela inteligência, generosidade e carinho. O professor Arnoldo da Rocha e Silva, que se negou a impedir que os alunos que não pagassem taxas fizessem as provas, um ato ex-cepcional na época, foi paraninfo da nossa turma.

O que se pode dizer é que a Turma FCM-1977, desde os primeiros dias de aula, reconheceu três líderes de perfis

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diferentes – Marcio Neves Bóia, Nilcéa Freire e Romero Lasca-sas Porto (PC do B).

Faça-se mais justiça ainda também à UNIRIO (antiga Es-cola de Medicina da FEFIERJ – Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro), porque foi lá que se deu o início do movimento dos acadêmicos bolsistas da Superintendên-cia dos Serviços Médicos do Rio de Janeiro (SUSEME-RJ), onde aqueles estudantes adquiriram experiência para enfrentar a durís-sima greve dos residentes a ocorrer mais tarde um pouco, ainda nesse passado histórico.

Quanto à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em razão da distância, os alunos da FCM-UERJ não iam muito, ou, se participavam de reuniões conjuntas, isso nunca foi comentado.

De João Bosco e Aldir Blanc, a música “O bêbado e a equi-librista” se tornou o hino da anistia. E, como é raro homenage-ar um político no Brasil, quando o Senador Teotônio Vilela se fez batalhador incansável pela anistia geral e exerceu a presidência da comissão mista que estudava o projeto sobre o tema, encaminhado ao Congresso pelo Governo, Milton Nascimento compôs a música “Menestrel das Alagoas”. Teotônio Vilela foi da ARENA a maior parte do tempo. Alguns velhinhos se preocupam com a redenção, como foi o caso do menestrel, outros guinam para a direita ou para a indiferença. Muitos mantêm a combatividade a vida inteira, sejam de direita ou de esquerda, ou se chamados a combater diante de novas possibilidades de não omissão.

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Meningite

A noite fecundava o ovo dos víciosanimais. Do carvão da treva imensa

caía um ar danado de doençasobre a cara geral dos edifícios!

Augusto dos Anjos

O professor Ítalo Suassuna tornou-se Professor Catedrá-tico de Microbiologia e Imunologia pela Faculdade de Ciências Médicas da UEG (UERJ) em 1965. Na UERJ, foi Diretor da Fa-culdade de Ciências Médicas (1976), Diretor do Centro Biomédi-co (1976) e Sub-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa (1981). Foi um dos mestres que ingressou na faculdade com o movimento estudantil em ascensão, aposentou-se em 1993, viveu dentro da escola a ascensão e queda da ditadura militar, e os primeiros passos cambaleantes da democracia brasileira, com Presidentes da Repú-blica como José Sarney (hiperinflação), Fernando Collor de Mello (confisco da poupança popular, movimento dos caras pintadas e impeachment do político de olhar esquizoide, que só não viu quem não quis ver, antes que fosse eleito).

Foi um dos primeiros mestres no Brasil a dar acesso a um estudante às Atas do Conselho Departamental para realização de uma pesquisa histórica de natureza sociopolítica. Não professava nenhuma ideologia, mas protegeu e escondeu estudantes dando saída por porta falsa de seu gabinete. Procurava integrar a ativi-dade discente ao interesse do alunado, e foi assim que os alunos

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ingressados na faculdade em 1973 tiveram o seu primeiro curso extracurricular, Curso de Imunologia, com duração de uma sema-na e organizado pelo Conselho de Representantes dos Alunos – o CR, com professores convidados por Suassuna.

Entre seus alunos mais brilhantes teve os estudantes Ale-xandre Adler, falecido em 2003, com muito pesar para todos os seus colegas de turma e alunos, tendo recebido homenagens também em hospitais privados tanto por ser frequentemente re-quisitado, como por sua grande empatia e saber científico. Dá seu nome ao Centro de Estudos e Pesquisas “Amigos de Ale-xandre Adler”, no Hospital Lar Interlink, que fica na rua Elvi-ra Machado, n. 5, em Botafogo, no Rio de Janeiro. O objetivo principal do Centro de Estudos, além de homenagear o médico e professor da UERJ, é disponibilizar para a classe médica e as classes dos demais profissionais de saúde uma agenda de treina-mentos e cursos em geral. Sem esquecer, dentre outros, o hoje substituto do Professor Ítalo Suassuna, João Ramos da Costa Andrade, tesoureiro geral da Diretoria do Centro Acadêmico Sir Alexander Fleming, na gestão 1968-1969, sob a Presidência de João Lopes Salgado.

Foi João Ramos da Costa Andrade, quando iniciava sua car-reira no magistério, quem deu uma aula para a turma de ingres-so em 1973 sobre a epidemia de meningite que a ditadura não conseguia esconder. Óbvio que discerniu o evento epidemiológico com a devida prudência, com uso de palavras como governo sem liberdade de informação, etecetera. Afinal, fora um dos líderes do movimento estudantil, com interrupção e retomada do curso mé-dico por motivos políticos.

Apresentou vários gráficos, expôs o numerário de óbitos em slides bem-feitos e a aula pareceu mais um trabalho apresentado em um congresso de infectologia, a demonstrar o forte pendor acadêmico do orador.

A letalidade entre 1970 e 1972 variou entre 12 e 14% dos casos, depois declinou ao valor mais baixo (7%).

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O fato é que a maior epidemia de meningite da história do país grassava na cidade de São Paulo nos anos 70 e, segundo o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, a omissão das au-toridades fertilizou terreno para o avanço da doença, que atingiu todos os bairros e chegou a registrar a média de 1,15 óbitos por dia em 1975. A troca de Presidente com a entrada do general Ernesto Geisel, em 1974, facilitou a mudança de atitude das autoridades. Em julho de 1974 foi criada a Comissão Nacional de Controle da Meningite, encarregada de traçar a política de vigilância epidemio-lógica. Entretanto, o número de casos registrados em janeiro de 1975 foi seis vezes maior do que o mesmo em 1974.

***

Até julho de 1977 ainda eram registradas incidências acima do esperado. Desde então os casos provocados pelo sorogrupo A deixaram de ser identificados; enquanto os produzidos pelo soro-grupo C voltaram ao nível endêmico. A cidade, então, estava livre, pelo menos dessa epidemia.

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Título Provisório 209

A AEMEG e a CDCR

Vocês que virão na crista da maré em quenos afogamos, pensem em nós com simpatia

e lembrem-se dos tempos duros em que vivemos.

Bertold Brecht

A ideia da criação da Associação de Estudantes de Medicina do Estado da Guanabara surgiu em 1967, quando o Centro Aca-dêmico Carlos Chagas da Faculdade Nacional de Medicina pro-moveu a I Semana de Debates Científicos da Guanabara. O acadê-mico Alexandre Kalache, mentor e 1º Presidente da AEMEG, que surgiu com o objetivo de unir os estudantes de medicina do estado em torno de seus interesses comuns, foi Presidente por dois man-datos: 1967-1968 e 1968-1969. Até os fins de 1969, no entanto, não conseguiu estabelecer uma Diretoria que efetivamente ligasse a entidade aos estudantes. No entanto, após a realização de uma III Semana de Debates Científicos, ainda em 69, criaram-se as con-dições para a eleição da primeira Diretoria integrada por membros das várias Faculdades.

Os estudantes da FCM tiveram boa participação na III Se-mana de Debates Científicos, onde sentiram o clima de discussão e confraternização entre alunos e professores. Isso fez com que, ao voltarem a sofrer um impacto com a escola apática, impacto importante para o reinício de uma crítica, numa faculdade onde o comportamento docente e a radicalização estudantil ainda sofriam influência nociva mútua, ultrapassando os muros da Faculdade

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Nacional de Medicina, a AEMEG conseguiu se fazer conhecida de todos os estudantes dos cursos médicos, passando a levantar a sua voz em defesa das reivindicações estudantis. Extinta a União Metropolitana dos Estudantes, as Faculdades de Medicina passa-vam a ser um dos poucos ramos universitários a possuírem uma entidade estadual.

Na Ata da 194ª Reunião do Conselho Departamental da FCM, em abril de 1970, ao ser aberta a sessão, o Prof. Hugo de Caire de Castro Faria declarou que não tinha mais tempo para continuar o trabalho de grande importância que é o diálogo entre professores e estudantes e pediu que fosse designado um titular ou um grupo de professores para substituí-lo. Continuou falando:

É de grande urgência esta nomeação, pois há um grupo de alu-nos se reunindo e que está levando o ambiente à mesma condi-ção anterior a 1968. Ao sentir a ausência de quem tomasse conta direta deles, o grupo, que é uma minoria, está se rearticulando no sentido de reformular uma situação que já foi debelada.

Acrescentou o Prof. Hugo:

Não há, todavia, indícios da subversão da ordem, apenas existe a articulação de um grupo que não são os representantes legais dos alunos, que por um motivo ou outro se reúnem com estu-dantes de fora e pretendem desobedecer à Direção da Faculdade, burlando o já estabelecido; por exemplo, ontem iria realizar-se uma reunião da AEMEG, entidade estranha à Faculdade, com os alunos daqui.

Quem sucedeu Alexandre Kalache na Presidência da AE-MEG foi o ex-aluno André Jorge Rodrigues Campello Pereira, o mesmo último Vice-Presidente do CASAF, de mandato curto como Presidente, devido à saída do João Lopes Salgado.

Atrás da AEMEG, haveria alguma outra coisa que devia ser prevista e evitada. Nessa época, o Conselho de Representan-tes já se instalara no prédio dos alunos, imóvel construído para

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instalação do CASAF. A AEMEG pretendia que a Ciências Médi-cas fosse o local da realização da IV Semana de Debates Científi-cos da Guanabara. Como se uma coisa fosse a opinião dos alunos e outra a sua comunidade. Como se o ensino superior pudesse ser dividido em dois tempos: o tempo de aula e o intervalo entre as aulas. Como se os estudantes, dentro da sala de aula, não tivessem coração nem estômago, mas apenas cabeça. Ou como se, dentro da cabeça, houvesse uma muralha entre estudo e cultura, diversão, relacionamento humano, convívio social. Tentava-se a separação de duas coisas inseparáveis: A Representação e a Congregação dos alunos. A AEMEG contribuiu para a reinstalação de alguma repre-sentatividade dos alunos das escolas médicas, porque organizava simpósios, convidava professores para ministrar aulas ou pales-tras, o que exigia que os organizadores de tais eventos tivessem representatividade a fim de que os eventos tivessem credibilidade e fossem um sucesso.

O Ministro da Educação, Coronel Jarbas Passarinho, desde que assumira o cargo, vinha concedendo entrevistas, falando aos reitores, fazendo conferências nos locais os mais diversos, abor-dando inúmeros problemas de interesse para os estudantes. De-vido à inexistência de entidades estudantis no âmbito nacional e mesmo no estadual, não vinha tendo o Ministro interlocutor al-gum para, em nome dos estudantes, discutir estes problemas.

Assim a CDCR – Comissão de Diretórios e Conselhos de Representantes –, reunião das entidades estudantis existentes no estado, cujo objetivo precípuo era contribuir da melhor manei-ra para o revigoramento da representação dos universitários em todos os níveis, resolveu estudar os problemas referidos pelo Mi-nistro e verificou serem os de maior interesse para o conjunto dos estudantes: verbas, salários de professores, Decreto-Lei n. 477, re-presentação estudantil, etc.

Só que as opiniões do Ministro estavam longe de serem aquelas do desejo dos estudantes, e a comissão viu ser necessá-rio levar ao conhecimento dos estudantes, da opinião pública, os

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pontos de vista dos alunos sobre os temas abordados. Para tanto, foi feita uma carta aberta ao Ministro Passarinho, a qual serviria para avaliar a disposição do MEC de dialogar com os universitá-rios. A carta definia a inexistência de diretórios em quase 50 das faculdades existentes na Guanabara e as dificuldades de funciona-mento dos restantes como “o maior problema que estamos en-frentando”. Pedia a reabertura dos Diretórios e a revogação da Lei n. 5.540, que tentava substituir os Diretórios por representantes isolados junto aos Departamentos e Congregações.

Na véspera da entrega da carta, o Ministro fez uma declara-ção extremamente negativa numa convenção do Lions Club: seu objetivo no MEC seria “acabar com o ensino superior gratuito”. A carta levava em seu conteúdo um “não ao ensino pago”. Por sua vez, a AEMEG funcionava estreitamente ligada aos Diretórios, e o fechamento destes criava sérias barreiras ao trabalho da entidade. Questões pertinentes aos estudantes de medicina, como o aumen-to do número de vagas no concurso de Pronto-Socorro, a luta pela expansão dos estágios remunerados nos hospitais do INPS, pelo término imediato das obras do Fundão (Hospital Universitário), eram levantadas. Na política de saúde, a AEMEG atuava no que dispunha a seguinte plataforma:

9 Sindicalização dos estudantes de medicina: através de uma campanha junto aos anos mais adiantados, colaborando com as lutas que fossem encaminhadas pelas entidades médicas.

9 Contra a proliferação indiscriminada de escolas médicas: con-siderando que essa não era a forma de resolver o problema do déficit de médicos, conforme proposto pela Associação Brasilei-ra de Escolas Médicas, uma vez que as mesmas não possuíam in-fraestrutura necessária, tais como pessoal docente, aparelhagem de laboratórios, hospitais-escola, etc. Também por serem escolas privadas e devido à falta de critério regional de criação, achando que sua criação devia ser controlada e planificada.

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9 Defesa dos interesses nacionais na indústria farmacêutica: levan-do em conta que o capital estrangeiro domina 90% da indústria farmacêutica no Brasil, o apoio à racionalização devia ser feito com o sentido de promover desenvolvimento.

9 Contra o controle da natalidade: considerando que o Bra-sil apresenta um déficit populacional da ordem de centenas de milhões e a produção de riquezas necessita de grande massa de trabalho.

Especificadas as particularidades, a AEMEG e a CDCR lutavam por objetivos comuns. Consequentemente, quando se realizou a IV Semana de Debates Científicos, toda essa discus-são adentrou a Faculdade de Ciências Médicas. O auditório do Hospital Pedro Ernesto foi pequeno para a abertura da Sema-na de Debates. Não havia cadeira vazia. Os excedentes ficaram sentados no chão ou em pé, atrás da última fila, perto da por-ta dos fundos. Às 11 horas do dia 14 de setembro de 1970, foi iniciada a cerimônia de abertura. O Reitor João Lyra Filho, o Diretor da Faculdade de Ciências Médicas, Américo Piquet Carneiro, o Diretor da Faculdade de Medicina da UFRJ, Lopes Pontes, o Diretor da Escola de Medicina e Cirurgia, Alcântara Gomes, o Diretor do Hospital de Clínicas da UEG, Oswaldo Araújo, o Presidente do Sindicato dos Médicos da Guanabara, Miguel Cavalcante (também Presidente do Conselho Regional de Medicina) ouviram as palavras dos estudantes. Discutiram a falta de estrutura para pesquisa nas Faculdades de Medicina, e principalmente de uma estrutura que atraísse os estudantes para este tipo de atividade.

O resultado do trabalho dos Diretórios que restavam aber-tos, dos Conselhos de Representantes que procuravam preencher as lacunas dos que foram fechados se substanciava nos primeiros frutos, possibilitando a realização de um Simpósio sobre a Univer-sidade nos dias 3, 4, 5 e 6 de novembro no auditório do Ministério da Educação.

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O simpósio objetivava normalizar a vida universitária, tu-multuada pelas decisões tomadas sem a participação das comu-nidades docentes e discentes, prejudicada pelos atos punitivos contra alunos e mestres, sufocada pelo Decreto-Lei n. 477 e pela violação da autonomia universitária, paralisada pelo golpe sofrido pelas entidades estudantis. Às 18h45 do dia 3 de novembro, dia da abertura do simpósio, a comissão organizadora ainda não sabia se ele se realizaria ou não.

Na manhã ou na tarde daquele dia, as Faculdades fervilha-vam de boatos de que o simpósio seria proibido. Rumores de pri-sões indiscriminadas, mais tarde confirmadas, de advogados e jor-nalistas tiravam a indispensável tranquilidade para a condução dos trabalhos. Enquanto representantes da CDCR, em entrevista com o Secretário Geral do MEC, Cel. Mauro Rodrigues, asseguravam a realização do simpósio, um fato mais importante ainda se soma-va aos demais: o Ministro Jarbas Passarinho não compareceria às primeiras sessões.

Alarmados pelas notícias, muitos estudantes e professores haviam deixado de ir ao MEC no dia três. Nesse dia, a mesa ins-talada foi composta pelos professores – entre os quais os reitores presentes –, estudantes e autoridades educacionais. O Secretário Geral do MEC abriu a sessão, falando sobre a importância do Simpósio, elogiando a iniciativa dos universitários em realizar uma reunião daquele tipo. Em seguida, o Presidente da Asso-ciação dos Estudantes de Medicina do Estado da Guanabara, Carlos Alberto Nascimento Santos, ressaltou a importância do Simpósio como contribuição para estabelecer um clima tranquilo na Universidade, e, diante dos rumores que corriam, apresentou a proposta de adiamento dos trabalhos. O plenário recebeu o dis-curso com uma prolongada salva de palmas. Proibido em quase todas as escolas da UEG, proibido na Nacional de Direito e em algumas outras escolas, o Simpósio alcançou os objetivos que os estudantes tinham traçado. O que se passou nos dias seguintes, a presença dia a dia maior de professores e estudantes, o calor

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Título Provisório 215

crescente dos debates, o clima de descontração formado levava a crer que também os professores e o próprio MEC tinham razões para dizer o mesmo. Nos debates de encerramento, os cinco ora-dores estudantis defenderam a universidade pública e gratuita, argumentando inclusive com as vantagens oferecidas à Academia Militar de Agulhas Negras (AMAN), sem entenderem à época que as escolas militares contam como Serviço Militar Ativo, o que justifica a remuneração dos estudantes militares, consideran-do que são praças especiais.

O Padre Raul Mendonça, Vice-Reitor da PUC, argumentou que, na situação brasileira, a universidade grátis para os que po-diam pagar era uma exploração contra o pobre. Seria uma grave injustiça empregar recursos para oferecer uma universidade grátis aos que podiam pagar. Estes já haviam usufruído os inúmeros be-nefícios da sociedade. O Ministro Jarbas Passarinho, pronuncian-do seu primeiro discurso no Simpósio, defendeu a cobrança de anuidades “dos que podem pagar”. Concordou com os argumen-tos do Padre Mendonça e declarou-se “horrorizado” com a argu-mentação dos estudantes. Fechando o encontro, foi proposta pela aluna Telma Ruth Cruz Pereira, da Faculdade de Ciências Médicas, para o início do ano letivo de 1971, a realização de um debate MEC-Estudantes-Professores, exclusivamente sobre a implanta-ção das anuidades.

No dia 12 de dezembro de 1970, o estudante Carlos Al-berto Nascimento Santos, que sucedeu André Jorge Rodrigues Campello na Presidência da AEMEG, foi preso na cidade Volta Redonda, vinte minutos após o seu casamento, e conduzido ao quartel do 1º Batalhão de Infantaria Blindada, sediado em Barra Mansa. Empenhando-se na normalização da vida universitária em todos os cargos que ocupara: Presidente do Diretório Acadê-mico Benjamin Batista, da Escola de Medicina e Cirurgia; Presi-dente da AEMEG; membro destacado da CDCR, tratava-se de uma liderança estudantil que sempre pugnara dentro dos estritos limites da legalidade.

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A CDCR, em junho de 1970, resolvera, após ter enviado a carta aberta ao Ministro Jarbas Passarinho, divulgar a seguin-te nota:

Considerando:Que os estudantes devem-se pronunciar sobre os atos de terror ultimamente ocorridos no país (sequestro de diplomatas, assaltos a banco, etc.);que tais atos têm contribuído para agravar o clima de intranquili-dade em que vivemos, aparentemente justificando a ausência de garantias individuais e da legalidade democrática, e fornecendo pretextos para novas investidas contra os direitos de associação e manifestação do pensamento;que tais atos demonstram a insensata pretensão de resolver os grandes problemas nacionais por meio das ações de grupos iso-lados do nosso povo, realizados à sua revelia;que estes atos em nada contribuem para a conquista dos refe-ridos direitos democráticos e, no caso específico dos estudan-tes, dos tão vivos anseios de liberdade e autonomia universitária, consubstanciados nas reivindicações de reabertura de nossos di-retórios acadêmicos, revogação do decreto 477;que a repetição desses atos desorienta a opinião pública sobre a responsabilidade pela intranquilidade do país;Resolve:Condenar severamente a repetição dos atos terroristas e apelar para a sua imediata cessação;lembrar que a restrição dos direitos democráticos constitui um estímulo para a proliferação do terrorismo;advertir para que a repressão ao terrorismo não sirva de pretexto para maiores limitações da liberdade, criando um círculo vicioso de imprevisível desfecho;conclamar os estudantes e o povo em geral a contribuir, com sua condenação, para o fim dos atos de terror, e com a sua ati-vidade consciente, para o pleno restabelecimento dos direitos e garantias constitucionais e democráticas, capazes de assegurar a tranquilidade e progresso do Brasil;conclamar especificamente os universitários cariocas para que prossigam na luta por suas reivindicações mais sentidas, em pri-meiro lugar pela reabertura dos Diretórios Acadêmicos.Rio de Janeiro, 18 de junho de 1970.“Comissão de Diretórios e Conselhos de Representantes”

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Título Provisório 217

O estudante Carlos Alberto Nascimento Santos, como Pre-sidente da AEMEG e membro da CDCR, apoiara a condenação ao terrorismo. Não havia justificativa para a prisão; o caso veio a público em nota expedida pela AEMEG.

Entre o Natal e o Ano-Novo, quando praticamente cessou a vigilância sobre a situação do preso, Carlos Alberto foi severa-mente torturado.

O Ofício n. 38 de quatro de janeiro de 1971, do processo 65/70, da 1ª Auditoria da Aeronáutica, explicita a principal razão da prisão. Segue-se a transcrição de pequeno trecho: “Carlos Al-berto Nascimento Santos, universitário, estudante de medicina, Presidente da AEMEG, partícipe do Simpósio promovido pelo Ministério da Educação em 1970, de há muito prega a comuniza-ção do País”.

Qualquer alternativa política esbarrava na repressão. Car-los Alberto permaneceu preso até abril de 1971. A CDCR foi desativada. A AEMEG, após ter sua sede funcionando no prédio dos alunos da Faculdade de Ciências Médicas, foi fechada ao tér-mino de 1977 ou 1978.

Melhor dizendo, a AEMEG deixou de existir no meio do vazio político, frente à impossibilidade de atuar, sem ter sido ne-cessário um gesto repressivo concreto. Mas, sem dúvida, os estu-dantes que nela militaram estariam mais tarde na Associação de Médicos Residentes do Estado do Rio de Janeiro – a AMERERJ, que teve importantíssimo papel na greve dos residentes em 1980, sob a presidência do Dr. Paulo Gadelha e com o apoio do Sindica-to dos Médicos do Rio de Janeiro, então sob a presidência do Dr. Rodolpho Rocco.

O Professor Rodolpho Rocco, apesar da sua grande simpli-cidade, foi o primeiro mestre da medicina ou “medalhão” que em seu discurso de Paraninfo da Turma da UFRJ-1975 veio manifes-tar concordância com as teses e propostas sobre currículo médico, levantada pela geração dos anos 60 da Faculdade de Ciências Mé-dicas da UERJ:

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Dois impactos aguardam os estudantes de medicina: 1) A en-trada na Faculdade, com a comprovação da insuficiência de recursos humanos e materiais na Faculdade e também a sensação sentida por muitos de nós, da falta de correlação entre o apren-dizado teórico e o que será aplicado nas especialidades médicas. Sim. Biofísica, Bioquímica, Fisiologia, Farmacologia, contêm assuntos de interesse comum aos professores clínicos e aos do Biomédico. 2) A ida para os hospitais e para o Pronto-Socor-ro, com a experiência penosa para alguns, dos encontros iniciais com os doentes, suas queixas e angústias, problemas sociais e econômicos e as primeiras incertezas profissionais. Estará certo meu diagnóstico? Resolverei o caso? É o que não deveriam ter se preocupado? Todo médico consciente receia o doente que não conhece. Nós, os veteranos, aprendemos é a disfarçar. O quarto--ano é o período de ouro dos estudantes, pois ele então sabe um pouco da verdade das doenças, suficiente para discutir, opinar e contestar. A real sensação de ignorância só virá mais tarde, no in-ternato, também conhecido como “em busca do tempo perdido” ou “salve-se quem puder”.

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Título Provisório 219

O ensino pago

... como diz o ministro Eduardo Portellaque os que podem pagar paguem para osque não podem pagar, como se houvesse

vasos comunicantes na economia e naestrutura social.

Paulo Sérgio Pinheiro

Ao término de 1969, uma gama de problemas mais comple-xos surgia com o movimento estudantil em maré vazante. Nessa época o início das obras de construção do Campus Universitário da UEG estabeleceu, na universidade, o contágio com uma das grandes causas das deficiências das universidades brasileiras – a mentalidade de fachada.

O Reitor João Lyra Filho, gastando quantias monumentais com edifícios suntuosos, deixava sobrando pouco dinheiro para o que realmente importava – os cientistas, os filósofos, literatos, economistas, médicos e o instrumental de trabalho.

A Faculdade de Ciências Médicas havia crescido nos últi-mos sete anos, e o corpo docente não havia crescido na mesma proporção. O crescimento do hospital havia sido quatro vezes su-perior ao do setor técnico e docente.

A falta de uma indústria de sustentação universitária nacio-nal fazia-se sentir na dificuldade para adquirir material para reequi-par as cadeiras básicas e as de clínica.

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Entrava a Ciências Médicas em decadência, após experi-mentar um período de cinco anos de maturação. Como se so-fresse um processo de regressão, por uma crise econômica, em consequência também dos progressivos cortes nas verbas para a educação, dentro da política de implantação do ensino pago, voltava a planejar a cobrança de anuidades para os estudantes.

Em 1961, ano da criação da UEG (Lei n. 93, de 15.12.1961), fora delegada ao Poder Executivo a função de organizar em Fun-dação a Universidade do Estado da Guanabara, assegurada aos alunos a gratuidade na realização dos cursos ordinários e das pro-vas compreendidas nos períodos normais.

A Emenda Constitucional n. 4, de 30 de outubro de 1969, à constituição da GB, passou a versar em seu artigo 5º: “A Univer-sidade poderá adotar o regime de concessão de Bolsas de Estudo, em substituição gradativa ao regime de gratuidade, na forma do art. 176, item VI, da Constituição do Brasil, mediante restituição pelo processo que a Lei prescrever”, autorizando a inclusão, no regimento geral da UEG, de dispositivo para substituir o regime de gratuidade pelo sistema de bolsas de estudo em favor dos alunos economicamente necessitados.

Recomendava-se, ainda, a transformação das universidades em Fundações e a criação de um centro de integração Universidade--Indústria (Recomendação n. 4 do relatório do Grupo de Trabalho para a Reforma Universitária – GTRU), através do qual seria pos-sível a utilização de docentes e pesquisadores como consultores de empresas privadas.

O cumprimento precoce da última recomendação, no ato de criação da UEG, deveu-se à atuação do Governador Carlos Lacer-da, que desde a época da discussão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação havia sido defensor ferrenho do ensino pago.

As universidades passariam a estar diretamente subordina-das aos interesses de grupos econômicos, uma vez que se acon-selhava a criação de Conselhos de Curadores, com a participação de “representantes da comunidade” (traduzindo: empresários ou

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Título Provisório 221

seus representantes), procurando adequar-se ao modelo econô-mico vigente no país.

O GTRU propunha a revogação indireta da gratuidade do ensino público, sugerindo a cobrança de anuidades e a instituição de um regime de bolsas que seriam pagas após a formatura do bolsista.

No desenrolar dos acontecimentos, o Ministro da Educa-ção, Jarbas Passarinho, passou a defender a cobrança de taxas rela-cionadas com a declaração de Imposto de Renda. O aluno teria um contrato de financiamento com um Banco Nacional de Educação, sujeito a correção monetária e com um prazo, após a formatura, para saldar o débito.

A totalidade dos alunos era destinada à obrigatoriedade de pagar pelo ensino. Segundo a argumentação oficial, seria in-justo isentar do pagamento do ensino os alunos carentes de re-cursos. A carência seria transitória, uma vez que o estudante, sendo preparado para uma atividade de nível superior, auferiria futuramente uma renda do mesmo nível do aluno que foi con-siderado não carente.

A febre dos diplomas, corrida do ouro iniciada pelos que ensejavam um lugar ao sol, redundara na proliferação de facul-dades particulares isoladas, promovendo um cerco de influência perniciosa para as faculdades públicas.

A proliferação indiscriminada das escolas médicas agravara as dificuldades do mercado de trabalho na área médica. Como se-ria possível pagar o total das anuidades devidas durante seis anos, acrescidas de juros e correção monetária, sabendo-se que o perío-do imediato após a formatura é, na maioria dos casos, o mais difícil da vida profissional?

Após um processo de dessensibilização, no sentido de acostumar o aluno a pagar qualquer coisa, a implantação do en-sino pago já se dava como um processo dinâmico. Mesmo a isenção de taxas era dificultada ao extremo e concedida sem cri-tério, como se fosse apenas para dar uma satisfação. Somente em 1973 o Conselho de Representantes dos Alunos da Faculdade de

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Ciências Médicas conseguiu esboçar a primeira reação contra a escalada dos preços das anuidades, publicando, em sinal de alerta, a evolução da cobrança de anuidades na FCM no período de 1969 a 1973.

A Comissão Interministerial de Preços (CIP) havia fixado os aumentos máximos para 1973 em 15,1%. Os aumentos da FCM, porém, ultrapassavam em muito esse percentual, desobedecen-do à determinação oficial do primeiro ao quinto ano. Em adição, utilizando-se o artifício de dividir a anuidade em taxa de inscri-ção e taxas de laboratórios, cobravam-se taxas de laboratórios em disciplinas que não ministravam aulas de prática laboratorial (por exemplo: Bioestatística e Matemática).

Em vista disso, o Conselho de Representantes dos alunos da FCM enviou ao Reitor, Prof. Oscar Accioly Tenório, ofício em que solicitava obediências à determinação do CIP e que não fossem cobradas taxas de laboratórios nas disciplinas que não possuíam laboratórios ou nas quais eles fossem utilizados pelos pacientes.

Tendo recebido os pareceres do Sub-Reitor Wilson Choeri e do Diretor da FCM, Dr. Jayme Landmann, o assunto é abordado nos tópicos onde os pareceres são mais falhos.

Sobre a consequência das cobranças, o Sub-Reitor afirmava que: “O ensino superior brasileiro já é pago, pois 60% das unida-des escolares são mantidas por entidades privadas, onde são co-bradas anuidades”. “Os alunos das escolas públicas não são os mais carentes, pois aqueles que tiveram oportunidade de estudar em cursos preparatórios caros e enfrentar, mercê de sua melhor situação econômica, a dureza do vestibular.” “É demagogia a afir-mativa de que se perderão talentos e vocações jovens pela cobran-ça de taxas irrisórias.”

O fato de 60% das faculdades serem privadas resultava de um incentivo oficial à privatização do ensino.

Apesar de inúmeras vezes os estudantes terem-se manifesta-do contra essa perspectiva educacional, observava-se que nos últi-mos anos o grande aumento no número de vagas fora todo devido

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a escolas particulares. Nas faculdades públicas, o número de vagas permanecia inalterado, às vezes até diminuindo.

A proliferação das famosas e então epitetadas “faculdades de fim de semana” obrigava o MEC a impedir que várias delas abrissem novas inscrições para matrícula, por não apresentarem níveis mínimos de recursos humanos e materiais. Além disso, a imprensa divulgava periodicamente casos de corrupção adminis-trativa e financeira nessas escolas. A argumentação de que os alu-nos mais carentes de recursos estudavam nas faculdades privadas e os menos carentes nas públicas não resistiria a qualquer pesquisa comparativa. Quantos estudantes pobres optariam pela Universi-dade Gama Filho, onde pagariam Cr$ 7.469,00 em 1973? Facul-dades públicas gratuitas representariam cada vez mais sua única oportunidade de seguir estudos universitários.

Tratava-se, antes de tudo, de formar “bons profissionais”, no menor tempo e com o mínimo de custos. O estatuto da UEG dizia em seu artigo n. 3: “São fins precípuos da UEG a execução do ensino superior e de pesquisa, o desenvolvimento das ciências, letras e artes, a formação de profissionais de nível superior, a pres-tação de serviços à comunidade e a contribuição ao desenvolvi-mento econômico e social”.

O que fora investido pela UEG na Faculdade de Ciências Médicas e no Hospital de Clínicas originara-se dos impostos pagos pela população do Estado da Guanabara, que esperava receber, sob a forma de ensino gratuito, desenvolvimento de pesquisa para o seu maior bem-estar, ou prestação de serviços médicos, como produto do investimento.

No decorrer do curso, os alunos gradativamente revertem a relação entre o custo do aprendizado e o trabalho produzido, até que no 6º ano a prestação de serviço é nitidamente mais elevada que o custo do ensino. Além disso, os gastos com os pacientes eram cobertos pelos próprios (a classe F gratuita não tinha mais significação estatística) ou pelo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).

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Nessa época, o elevado déficit orçamentário observado no Hospital das Clínicas da UEG acarretava a absoluta impossibilida-de de melhoria de seus serviços assistenciais, de ensino e pesquisa. O referido déficit impossibilitava a busca de novas fontes de re-cursos, visto que estas exigiam melhoria dos serviços oferecidos. Criava-se, assim, um ciclo vicioso, um obstáculo para a quebra da cadeia. Concluiu-se, então, que o Hospital devia dinamizar a pres-tação de serviços, como fonte geradora de recursos, através de convênios com firmas e entidades públicas ou privadas.

Quando o Hospital fez o convênio com o Instituto Nacio-nal de Previdência Social (INPS), órgão extinto a partir da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), passou a ter em sua área um Posto de Urgência (PU). Isso propiciou aos estudantes o conta-to com doenças mais comuns, perdendo o hospital o caráter de hotel de doenças raras, de asilo de doentes crônicos, e passando a receber uma população mista de doentes, ao transformar-se num Hospital Universitário menos desvinculado da prática médica exi-gida pela comunidade e, ao mesmo tempo, possibilitando o conta-to com doenças raras.

Após o convênio, a Universidade passou a conceder cada vez menos verba para o Hospital, acreditando que este pudesse vir a ter economia independente, criando-se uma demanda de produ-ção do pessoal médico em detrimento do ensino, uma contradição entre a produção de atendimento médico e um programa didático para uma formação médica satisfatória.

No escopo da mesma política de contenção de despesas com a educação, modo de controle ideológico da Universidade, na Ciências Médicas não existe forma livre de acesso à carreira uni-versitária. O corpo docente introduzido na escola a partir de 1969 foi escolhido a dedo. Não há concurso para auxiliares de ensino, há muito tempo não se defende uma livre docência, os salários dos professores que não têm a sua frente a possibilidade de galgar uma hierarquia universitária são irrisórios.

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A Universidade, por meio do programa de crédito edu-cativo, se transformara em instrumento de ágio, uma estrutu-ra universitária em progressiva falência no que tange ao ensi-no gratuito de qualidade e ao seu caráter público, e a história comprovou isso, tanto com o programa de cotas para pessoas carentes de recursos, como o Pró-Uni, que subsidia o estudo em faculdades particulares.

O primeiro país a estabelecer o sistema de cotas foi a Índia, desde 1950, exatamente por ter uma sociedade de castas.

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Os acadêmicos bolsistas

Ouvi pela primeira vez a palavra greve– dita por uma de minhas tias, tão baixo

e com um ar de tal escândalo, que pensei que fosseuma indecência [...] corei até as orelhas.

Pedro Nava

Pelo fato de ser uma rede geograficamente bem organizada, dispersa pelos mais diferentes pontos do estado e, sobretudo, de dispensar um atendimento gratuito, a rede de hospitais da Supe-rintendência de Serviços Médicos do Estado do Rio de Janeiro (SUSEME-RJ) é procurada pela grande maioria da população, às voltas com ocorrências que necessitam de socorro urgente, as quais podem variar desde uma diarreia até o politraumatismo. Por outro lado, as deficiências de material, pessoal e instalações não permitem um atendimento condigno à população.

A Associação dos Estudantes de Medicina do Estado da Gua-nabara, em 1971, junto aos Diretores, Chefes de Equipe e Acadêmi-cos dos hospitais estaduais que recebiam bolsistas em seus postos de urgência, elaborou um relatório, a partir das respostas a um ques-tionário com perguntas sobre diferentes aspectos do atendimento.

O acúmulo de trabalho para acadêmicos apresentou-se como o problema mais sério. Caso os acadêmicos se recusassem a trabalhar, todos os serviços de urgência entrariam em falência. Mesmo assim, os acadêmicos não possuíam os direitos trabalhis-tas, além de serem mal remunerados.

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Título Provisório 227

O estágio em pronto-socorro se desenvolvia no 5º e 6º anos, numa duração total de dois anos. Quando, em 1970, o currículo da Universidade Federal Fluminense foi reduzido para cinco anos, abriu-se uma nova questão; o concurso era feito por acadêmico no final do 4º ano médico. Assim, obrigatoriamente, colando grau o acadêmico da UFF, ao final do 1º ano de estágio teria de abando-nar o estágio, abrindo lacunas em cada equipe.

Os quartanistas da então Guanabara decidiram lutar pela não participação das Faculdades Fluminenses no concurso e in-centivar a luta pela criação de uma rede hospitalar voltada para a dura realidade do então Estado do Rio.

Nesse panorama, principiava a delineação do bloco de reivindicações que passaria a nortear o movimento dos acadê-micos bolsistas.

No início, esse bloco definia-se pela exclusão do concurso aos acadêmicos das Faculdades de Medicina do Estado do Rio, pelo aproveitamento de todos os quartanistas de medicina da GB (então 750), tornando-se o concurso meramente classificatório, aumento da bolsa para três salários mínimos, manutenção da carga horária (24 horas semanais) e garantias dos direitos trabalhistas.

Na entrada do ano letivo de 72, soube-se que estava forma-da uma comissão proposta pelo Conselho Técnico de Saúde, para estudar a situação dos estágios de acadêmicos na SUSEME. Corria oficiosamente o boato de que seria proposto o afastamento dos acadêmicos quintanistas, cujo trabalho seria substituído pelo dos residentes. Os estudantes tentaram acesso ao debate da questão, sem resultado, entretanto, em virtude do mistério e distância que envolviam a tal comissão.

Antônio de Pádua Chagas Freitas, Governador do Estado, poderia a qualquer momento extinguir, por decreto, o estágio re-munerado para os quintanistas.

Nos currículos das escolas médicas, a não inclusão do ensino prático da medicina de urgência por não disporem as Faculdades de estrutura para tanto, visto que a organização de um pronto-socorro

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representaria um ônus a mais, ainda mais com a escassez de verbas destinadas a cada uma delas, colocava os acadêmicos frente ao risco de perda de uma experiência necessária à formação médica e de uma fonte de renda para suprir o custo do estudo.

A estrutura da SUSEME ainda era a que melhor preenchia tal lacuna, por suprir os recursos objetivos para atendimento de urgência em nível de massa e médicos para a orientação dos aca-dêmicos em suas funções.

O acadêmico bolsista, como estudante que preencheria seu papel de médico numa comunidade, sem interferência do ensino ministrado na Faculdade, e como auxiliar para manutenção da saú-de, merecia por seu trabalho uma justa remuneração.

As alegações para exclusão do estágio para os quintanistas consistiam em:

9 prática ilegal da medicina; 9 má qualidade do atendimento, por deficiência técnica

dos quintanistas; 9 prejuízo à formação do acadêmico, pelo que os plantões

significam em termos de aulas.

O Conselho Técnico de Saúde, para resolver os problemas de falta de verbas da SUSEME, desgastada economicamente pelos inúmeros atendimentos de segurados do INPS, que investia na mer-cantilização da medicina sem remanejamento de verbas para o orça-mento estadual de saúde, resolvera tomar a decisão de acabar com o direito dos quintanistas de frequentarem seus serviços de urgência, admitindo somente os sextanistas e os residentes.

A menor oferta de empregos qualificados para estudantes de nível universitário na área médica sofria o agravante do aumen-to da densidade médica na GB, situada entre os maiores índices do mundo, na iminência de piorar dia a dia, devido à proliferação indiscriminada de faculdades de medicina, tanto na Guanabara como no Rio de Janeiro.

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Título Provisório 229

A AEMEG profligou, ao contrapor-se à prática médica ile-gal da medicina, nenhuma intenção do conjunto acadêmico visava substituição do médico em suas funções, e sim participar como auxiliar, facilitando o trabalho de atendimento ao povo. Colocou que o estudante de medicina, devido à sobrecarga imposta por um currículo de estudo mais longo e em maior carga horária glo-bal do que qualquer curso superior, sobrecarregado por um ônus financeiro mais pesado quanto ao estudo propriamente dito, iria empregar-se nas clínicas e hospitais particulares, ocupando o lugar do médico. Aí sim, provocando a prática ilegal da medicina ou a dedicação, pelo estudante, de boa parte do seu tempo a trabalhos inteiramente desvinculados de sua futura profissão.

Ciente de que a decisão final pertencia ao Governador do Estado e sem saber quando seriam entregues os resultados da tal comissão, a AEMEG convocou todos os interessados a compare-cer quarta-feira, dia 10.5.1972, às 15 horas, ao Palácio Guanabara (todos de jaleco), para entregar ao Governador um memorial rei-vindicando a permanência dos direitos dos quintanistas de obte-rem estágio-bolsa da SUSEME.

Na data e hora previstas, compareceram 100 acadêmicos. Ape-sar da marcação prévia da audiência, houve recusa do Governador em recebê-los. Segundo o seu chefe de Gabinete Civil, Senhor Mar-cial Dias Pequeno, “o encontro não estava marcado em sua agenda”.

Enquanto aguardavam a resposta ao memorial entregue, os acadêmicos compareceram, em outra semana, em número de 200, na Assembleia Legislativa, para expor a questão, a qual despertou o interesse de alguns deputados, que prometeram todo apoio.

Em agosto, veio a notícia, publicada na Imprensa, de que o Senhor Secretário de Saúde havia baixado portaria excluin-do o estágio para os quintanistas. A reação dos acadêmicos foi imediata, e fez-se percorrer um abaixo-assinado por todos os mestres encontráveis nas Faculdades, principalmente na UFRJ, em apoio às reivindicações dos acadêmicos, totalizando-se mais de 300 assinaturas.

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Com a divergência assim manifestada, foi convocado o Se-nhor Secretário de Saúde e a ABEM para uma mesa-redonda na antiga Nacional, na Praia Vermelha.

No dia 22, o Sr. Sílvio Barbosa da Cruz, Secretário de Saú-de da Guanabara, o Prof. Fernando Bevilácqua, representando a Associação Brasileira de Escolas Médicas, professores, quinhentos acadêmicos e seus representantes compareceram ao evento. O Dr. Nova Monteiro, Vice-Diretor da Faculdade, presidiu à mesa. A SUSEME usava o critério da ilegalidade para afastar os quintanis-tas, conferindo, com isso, crítica violenta às administrações ante-riores, que haviam permitido por 63 anos tal situação.

Além disso, o próprio sextanista também seria ilegal, e era público e notório que estudantes, a partir do 2º ano, faziam está-gios na SUSEME, que permitia a perda de aulas por parte destes alunos, favorecendo, sem remuneração, o trabalho negado com pagamento. Na realidade, isso se deveria mais à falta de verbas, e não aos quintanistas. Já que existia exercício ilegal da medicina, o correto seria contratarem médicos. Na mesma linha, caso a SUSEME não tivesse condições para ensinar aos quintanistas, muito menos teria para fornecer residência, fato constatado pela Associação Nacional de Médicos Residentes.

No fim da mesa-redonda, ficou decidida a formação de uma Comissão Universidades-SUSEME, com a finalidade de elaborar um projeto de convênio, conforme proposta da Associação Bra-sileira de Escolas Médicas (ABEM). A proposta se apresentava como uma faca com dois gumes. Por um lado, apresentava-se com um recuo do Secretário de Saúde; mas poderia ser uma forma de deixar a questão em banho-maria, por causa da proximidade do fim do ano; o tempo contava contra.

Conforme promessa do Secretário de Saúde, acatando a proposta dos alunos, a portaria seria revogada tão logo a co-missão aprontasse um esboço do que seria o convênio. Uma vez constituídas as comissões das quatro escolas, restava ainda que se marcasse a primeira reunião conjunta. Deu-se, então, um

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incrível “jogo de empurra” entra as Universidades e a SUSEME, que se atribuíram mutuamente a responsabilidade de convocar a reunião; já em outubro nada fora encaminhado. Houve, então, ameaça de greve na UFRJ, forçando a realização da 1ª Reunião da comissão das quatro escolas e da Secretaria de Saúde, ficando acertada a realização do concurso.

Em dezembro, foi divulgada na última hora a redução do número de vagas de 570 para 380, isto é, redução de 1/3, o que levou ao comparecimento de mais ou menos 100 acadêmicos à Se-cretaria de Saúde, para saber o porquê de tal redução. Pouco satis-feito, o Secretário ameaçou “virar a mesa” e suspender o concurso, alegando ainda que poderia aceitar os acadêmicos do Estado do Rio e piorar a situação. Resultou disso um clima de inseguran-ça e concorrência, que impediu uma resposta coerente à atitude oportunista. A resposta encontrada pela maioria foi a omissão e a tentativa de resolução individual do problema, que levou inclusive a um clima de guerra e competição incríveis.

A ideia que se pretendia programar era a de criação de Resi-dência Médica nos Hospitais do Estado, o que acarretaria a dispensa progressiva dos acadêmicos. Sabendo-se que a Residência Médica exige uma estrutura muito mais sofisticada de ensino, não haveria contradição alguma entre a Residência e o trabalho desenvolvido pelos acadêmicos bolsistas, uma vez que cada uma das atividades se revestia de características definidas e independentes, mas o que importava era a substituição de pessoal mais inexperiente por mão de obra mais especializada e barata no cumprimento da função de atendimento, isso sem qualquer estruturação pedagógica prévia.

A comissão tratava de assuntos ligados aos estudos de um convênio Universidade-SUSEME e a atitude do Secretário não considerava esse aspecto. Mesmo assim os professores não leva-ram adiante qualquer discussão. Isso porque “topar a parada” e realmente discutir o problema em toda a sua extensão implicaria tornar a participação da Universidade uma realidade, fazendo-a atuar como uma das partes ativas do convênio.

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Essa omissão acarretaria o aproveitamento apenas dos sex-tanistas, sendo admitido o estágio não remunerado para os quin-tanistas. A proposta da Associação Brasileira de Escolas Médicas era pior ainda. Consistia ela na incorporação do estágio de Pronto--Socorro ao currículo médico, sem qualquer remuneração e com a obrigatoriedade de cumprimento. Houve certa descontinuidade dos trabalhos da AEMEG, que não foi substituída por nenhuma outra entidade reunindo as escolas médicas da antiga Guanabara, dificultando o encaminhamento concreto das reivindicações dos acadêmicos. A partir de 1973, usaram-se os mesmos argumentos para impedir a remuneração dos quintanistas estagiários. Em 1974, não houve concurso, uma vez que não haveria remuneração.

A Secretaria de Saúde, utilizando a insegurança do médico recém-formado, oferecendo-lhe residência médica, sem possuir, em sua maioria, as mínimas condições de fornecê-la, desenvol-via o sistema de exploração de mão de obra barata. A fusão do Estado do Rio de Janeiro com a Guanabara trazia como objetivo, em médio prazo, a aproximação com as escolas de medicina do novo estado fluminense e a unificação das reivindicações quanto ao Pronto-Socorro. Nesse sentido, foi formada uma comissão de alunos da UEG, Nacional e Cirurgia, centralizando o movimento no Diretório Acadêmico da Medicina e Cirurgia, com realização semanal de reuniões e progressivo aumento da participação das escolas e das pessoas do alunato em fim de curso e médicos no início da Residência Médica.

Discriminadas as reivindicações necessárias para o bom de-sempenho dos acadêmicos, mesmo sabendo que isso não iria al-terar totalmente a realidade de saúde do estado, os acadêmicos de medicina de todas as escolas médicas do Rio de Janeiro, exceção de Campos e Volta Redonda, levaram ao Secretário de Saúde, através de uma manifestação com mais de 800 estudantes, um memorial e um abaixo-assinado contendo cerca de 5.000 assinaturas.

No memorial, eram denunciadas as más condições de fun-cionamento, desde o número insuficiente de médicos, a falta de

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medicamentos e assepsia, até o atendimento, não só dos casos de emergência, mas em proporção crescente, dos casos clínicos que não dispunham do tipo adequado de atenção médica.

Por outro lado, a maioria das faculdades funcionava sem possuir seu próprio hospital, levando a um ensino eminentemente teórico, desvinculado da realidade de saúde e da prática médica cotidiana indispensável.

Sob as distorções da rede hospitalar da SUSEME, diante do quadro da proliferação das escolas médicas, a Secretaria de Saúde passara a encarar o estagiário como mão de obra abun-dante e barata.

A reação se fazia sentir com as seguintes reivindicações:

9 estágios para todos os 5º e 6º anistas; 9 concurso classificatório apenas para a escolha dos

hospitais; 9 remuneração de dois salários mínimos aos acadêmicos

de 5º e 6º anos; 9 proibição de estágios em Pronto-Socorro aos acadêmi-

cos de 1º ao 4º ano; 9 estágios com orientação profissional; 9 contratação de mais médicos com salários dignos.

Na entrega do memorial, os estudantes de medicina, de ja-leco, sem faixas ou cartazes, realizaram silenciosa passeata pelas ruas da cidade.

Concentrados inicialmente nas escadarias da Santa Casa da Misericórdia, onde vários oradores fizeram uso da palavra, os aca-dêmicos se dirigiram à Secretaria de Saúde, na Avenida Marechal Câmara, ponto em que dezoito representantes foram à sala do Chefe de Gabinete do Secretário, Sr. Raul Ribeiro, que os recebeu em nome do secretário Woodrow Pimentel Pantoja.

No dia 7 de outubro de 1975, entregue o memorial, a co-missão de estudantes disse ao Chefe de Gabinete que seria dado

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um prazo até 15 de novembro para as autoridades responderem às reivindicações. Ao deixarem a Secretaria, os estudantes voltaram à Rua Santa Luzia (escadarias da Santa Casa), onde, de braços dados, interromperam o tráfego, até alcançarem a Avenida Presidente Antônio Carlos. Na Antônio Carlos, só ocuparam meia pista, atin-gindo a Erasmo Braga para chegar ao Palácio Tiradentes. E pela primeira vez, desde que havia sido instalada a atual assembleia, as galerias ficaram lotadas.

Estava na tribuna o Deputado Alves de Brito (MDB), que leu o memorial para constar dos Anais e fez indicação à mesa para encaminhar ao Secretário de Saúde as reivindicações. Apesar do baixo nível dos debates, com frieza total ante os pronunciamentos da ARENA, o Grupo Autêntico, liderado pelo Deputado Edson Khair (MDB), comandou as galerias.

A passeata do silêncio, como foi denominada pela Imprensa, observada de longe pela Polícia Militar, foi a primeira manifestação de rua ocorrida no Rio de Janeiro após 1968. Restava, agora, tra-balhar o prazo dado à Secretaria de Saúde para o restabelecimento do estágio remunerado nos hospitais do Estado. Em resposta às reivindicações dos acadêmicos de medicina, foi anunciado pelos Se-cretários de Saúde Woodrow Pimentel Pantoja, estadual, e Felipe Cardoso, municipal, que os estudantes teriam, em 1976, mais vagas do que as ofertadas em 1975 para estágios nas unidades de emergên-cia médico-cirúrgica da rede hospitalar da Cidade do Rio de Janeiro.

Havia 856 vagas para o 6º ano e 497 para o 5º, estes sem estágio remunerado, perfazendo o total de 1.359 vagas, e o Secre-tário prometia mil vagas para 1976, só podendo prestar concurso alunos do sexto ano, para receber a título de Bolsa, sem qualquer vínculo empregatício, a importância de Cr$ 700,00.

Expirava o prazo concedido ao Secretário de Saúde, quan-do, ainda em outubro, Armando Falcão, Ministro da Justiça, en-viou circular a todos os Governadores dos Estados e Territórios, solicitando medidas preventivas contra as passeatas, comícios, concentrações e quaisquer manifestações públicas capazes de

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provocar agitação e perturbação ao trabalho e à vida da coletivida-de. A circular afetava mais diretamente as manifestações estudantis e excluía, apenas, as campanhas regidas pela justiça eleitoral.

Os Acadêmicos haviam conseguido do Governador Faria Lima mais 200 vagas para os sextanistas, além das mil oferecidas pela Secretaria. O Governo argumentava que, com a fusão, não podia dar vagas nem mesmo para todos os sextanistas do novo estado. Cada um falava uma promessa.

Isso acontecia dentro de um processo de esvaziamento gra-dual, em que a evasão de servidores da rede de Pronto-Socorro do Estado e do Município do Rio de Janeiro já levara 1.100 funcioná-rios, entre médicos, enfermeiros, auxiliares e técnicos a deixarem seus empregos, atraídos por salários melhores, pagos pelo INPS ou clínicas particulares.

Os estudantes de 1º ao 4º ano, embora fosse proibido, “es-tagiavam”. Se esses estudantes tinham possibilidade de trabalhar, é porque existiam lugares. Os quintanistas e sextanistas de medicina das várias faculdades do Rio decidiram abandonar os hospitais da rede estadual ou municipal, onde trabalhavam sem remuneração. A intenção inicial era de greve, mas a repressão transformara o movimento em boicote. A falta de acadêmicos de medicina, de segundanistas a sextanistas, levaria os médicos e sextanistas a, em consequência, redobrarem seus trabalhos.

No Hospital Souza Aguiar (HSA), os plantonistas da Equi-pe Catapreta disseram haver sofrido ameaças do chefe do grupo. O fato, contudo, foi negado pelo chefe da equipe, médico Oscar Brandão de Lira, que justificou a presença no hospital de um cho-que da Polícia Militar: o policiamento fora chamado pela própria direção do HSA, para garantir os que quisessem trabalhar.

Na realidade, o policiamento havia sido reforçado em todos os hospitais. Como resultado do acúmulo de serviço, as pessoas demoravam a ser atendidas, dentro do esquema de prioridade elaborado para superar a emergência. Nessa altura, o movimento perdia o ímpeto, e o próprio Governador Faria

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Lima fazia questão, em mesa de negociação, de deixar claro que o aproveitamento do estágio sem a consequente remuneração ia contra as suas ordens e que, portanto, os estudantes deveriam manter o boicote e a mobilização nas turmas. Manifestava o pro-pósito de resolver o problema por etapas, prometendo efetivar o aumento das vagas para sextanistas até o fim do ano vindouro e, depois, a estender a remuneração aos acadêmicos do 5º ano.

Fora aberta a válvula de escape para esvaziar o movimento.Esses mesmos acadêmicos, ao se transformarem em médi-

cos-residentes, efetivariam as greves por melhor pagamento e pelo reconhecimento dos direitos trabalhistas. Na época da greve dos médicos residentes, o único nome da medicina nacional a declarar algo foi o Prof. Dr. Ivo Pitanguy, citado de memória: “Não é pos-sível que médicos trabalhem sem nenhum liame oficial”.

Cabe antecipar que no Hospital Universitário Pedro Ernes-to tínhamos como diretor o Professor Jayme Landmann; para de-monstrar a dificuldade vivida, cabe dizer que o professor tratava com dureza estudantes e residentes.

Passeata do silêncio por estágio remunerado.

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Título Provisório 237

3ª Parte

A fantasia perigosa é sempre superficialmente realista.

C. S. Lewis

E ainda hoje vivemos a contar as entrelinhas que separam a Paz do pacifismo, a Autoridade do autoritarismo, a Força da violência, a Liberdade do libertismo, a Fé do fanatismo e a justificar, por meio de malabarismos dia-léticos, as guerras, as revoluções, as torturas, as maldades, as imposturas, em nome da Ordem, da Lei, da Tradição e da Legítima Defesa. Passamos então a justificar os meios pelos fins, em nome daquele suprassumo de imoralismo político e moral do famoso: “fariam o mesmo conosco...”.

Foi assim que o terrorismo voltou à ordem do dia e se converteu num processo normal, embora ainda inconfessado nas democracias, de “progres-so” social. Foi no século passado que o fenômeno deu entrada na História contemporânea, com este nome. Pois, de fato, sempre existiu, com outros nomes. O terrorismo, como os amores contra a natureza, é um ódio que não ousa dizer o nome. Surgiu como um recurso do anarquismo contra a ordem social vigente. Era um processo de violência individualista para transmudar instituições estabelecidas, feudais ou burguesas. Karl Marx, institucionali-zando o socialismo, transformou o processo da violência de individual em social, e de arbitrário em necessário. E justificou-o, afinal, em nome da inevitabilidade da luta de classes. Daí uma das radicais divergências entre comunismo e anarquismo.

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Depois do advento do fascismo, o socialismo integral das direitas, o terrorismo passou a ser utilizado como uma arma política normal, já que o realismo político passou a fazer do Direito um fruto da Força e não mais da Força um instrumento do Direito, como ensina a natureza das coisas. Com o hitlerismo, passou o terrorismo a ser a base mais forte do Estado. E com a ameaça do imperialismo totalitário, tanto esquerdista como direitista, passou a ter livre trânsito nas democracias, em nome do realismo político, embora incon-fessadamente, como uma arma de repressão e de prevenção oculta.

Alceu Amoroso Lima

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Título Provisório 239

Fundos, honorários advocatícios e música na FCM-UERJ

Não, não sou eu quem vai ficar no portoChorando, não.

Lamentando o eterno movimento.Movimento dos barcos, movimento.

Jards Macalé

O ginásio de esportes da FCM-UERJ serviu para bailes, shows e, principalmente, para os campeonatos de futebol de salão. Dos shows realizados no final dos anos 60 ou início dos 70, há re-gistro apenas da presença de Clementina de Jesus. Deve ter ocor-rido muito mais coisa boa. O show de Jards Macalé foi impagável. Após o canto de uma primeira música, o artista pegou uma rosa e comeu as pétalas; depois disse: “Se vocês comem salsichas Swift, por que eu não posso comer uma flor?”.

No máximo em meados 1974, ninguém mais ninguém menos que Milton Nascimento compareceu à escola para su-perlotar o local. Em 1977, Milton Nascimento voltou à UERJ, mas, quando estivemos em sua casa na Barra da Tijuca, disse, então, que agora só dava para fazer o show na Concha Acústica da UERJ, que tanto quanto o ginásio também ficou lotada, se contarmos a metragem por pessoa. Naquele ciclo entre o pri-meiro show de Milton Nascimento no ginásio e o seu show na Concha, vários outros shows foram realizados.

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Nos anos 1960, a música brasileira participante havia ex-plodido no cenário fortemente estudantil dos festivais da can-ção, na linha do Centro Popular de Cultura da UNE, onde no-mes altos da poesia como Ferreira Gullar estiveram engajados. Mais tarde a realidade seria outra. Os tropicalistas estavam por acontecer no meio do caminho. Infelizmente, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque de Holanda entre outros músicos e compositores por uns tempos andaram em excursões pelo ex-terior, ou exílio mesmo. Ainda que fosse um exílio apenas da música, fizeram muita falta.

Desde o início dos anos 1970 ou antes um pouco, na Rua Ja-ceguai, 27, na Tijuca, um grupo de músicos em ascensão se reunia em noites de canções inéditas na casa do Dr. Aloisio Porto Car-reiro. A casa era frequentada por compositores e musicistas como Luiz Gonzaga Junior, Ivan Lins, Cesar Costa Filho, Sidney Mattos, Aldir Blanc, o cantor Rolando Begonha Faria, que migrou para a França, mas chegou a atuar junto com Elis Regina no programa Som Livre Exportação. Natural que, entre tantos músicos, alguns de seus amigos participassem dos eventos na casa do Dr. Aloisio e que, a partir desses contatos, esses músicos aceitassem fazer shows em muitos lugares no início das suas carreiras.

Registre-se que, no Dicionário Cravo Alvim da MPB, podem-se encontrar maiores detalhes sobre aquele grupo, que, ainda sob a influência dos anos 1960, organizou-se sob o nome de Movimento Artístico Universitário – o MAU.

Eventualmente, a casa 27 da Rua Jaceguai também con-tou com a visita de Donga, Cartola, D. Zica, Milton Nascimento, Guingua, Nelson Cavaquinho, Jackson do Pandeiro, Emílio San-tiago, Ney Matogrosso, entre outros.

No ciclo entre os dois shows do Milton, tivemos a presen-ça de astros como Luiz Gonzaga Junior, Sidney Mattos com sua banda, Alceu Valença e Geraldo Azevedo, Carlinhos Lyra, que se apresentou antes do grupo musical Boca Livre, em sua primeira

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apresentação pública, isto é, estreia, quando Carlos Lyra vaticinou que logo estariam a fazer grande sucesso.

O MUSICEME era terra de ninguém, ao contrário de ou-tros departamentos culturais, e o dinheiro arrecadado nem sempre era destinado ao pagamento dos artistas. O show com João Bosco, precedido de brevíssimo discurso, muito aplaudido, em prol das liberdades democráticas, pela libertação dos presos políticos e o fim da ditadura, depois do show do Milton Nascimento, inaugural do ciclo, foi o de maior público. Um absoluto sucesso.

Depois de derrotada a luta armada contra a ditadura militar, o SNI efetivou muitas prisões e assassinatos contra os membros do PCB no Brasil, mesmo ciente de que, desde os anos cinquenta do século XX, nunca mais o Clube defendera a luta armada.

– Precisamos arrecadar dinheiro para pagar os advogados dos presos políticos.

– Eu chamei o Cartola, Nilcéa.– O Cartola é legal, mas precisamos alguém que chame mais

público no momento.– Posso tentar o Paulinho da Viola, que sei onde mora.– Está bem, Paulinho está bom.Foi constrangedor ir à casa do Cartola e dizer para o gran-

de mestre, cuja poesia das letras era elogiada mesmo por Carlos Drummond de Andrade, sobre o adiamento do seu show.

– Vocês estudantes são assim mesmo, uma hora nos que-rem, outra hora não nos querem mais – disse Cartola, agacha-do em cuidados com seu jardim na casa no sopé do morro da Mangueira.

O show com Paulinho da Viola teve excelente público e quem cuidou da arrecadação do dinheiro da venda dos convites foi o MUSICEME de um membro só. Com o dinheiro em um envelope cheio, apenas com uma troca de olhar cúmplice, o enve-lope foi entregue a Nilcéa Freire. Pouco depois a futura Reitora da UERJ, juntamente com sua família, se exilou no México, o que lhe

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causou a perda de um ano letivo e a fez se diplomar no conjunto de alunos da Turma FCM-1978.

Tivemos sérios problemas na nossa formatura, óbvio, bem menores do que a Turma FCM-1972 teve. Há uns três anos exis-tia no HUPE-UERJ uma organização representativa dos inter-nos e residentes da escola – Associação de Médicos Residentes do Hospital das Clínicas da UERJ – AMEREHC-UERJ, e essa estória de suprimir o nome do Dr. Pedro Ernesto do hospital da UERJ fora fomentada pelo Professor Jayme Landmann, mas tinha a intenção de dar ao público a dimensão da capacidade de atendimento do hospital.

Na AMEREHC-UERJ, no nível estudantil, a hoje depu-tada já eleita por vários mandatos Jandira Feghali participava discretamente das reuniões. Em 1981 ingressou nos quadros do PC do B. Em 1983, assumiu a presidência da Associação Nacional dos Médicos Residentes, função de que saiu para di-rigir o Sindicato dos Médicos, de 1984 a 1986, foi também Pre-sidente da Associação dos Funcionários do Hospital Geral de Bonsucesso. Em 1986, Jandira elegeu-se deputada constituinte no RJ, exercendo o mandato de 1987 a 1991. Em 1990 foi elei-ta deputada federal pelo mesmo estado, sendo sucessivamente reeleita até hoje.

A AEMEG não resultara, mas a ideia gerada a partir dela de se criar uma Associação de Médicos Residentes do Rio de Janeiro – AMERERJ fez que a partir de 1977 os estudantes de medicina, não só no Rio de Janeiro, tivessem suas associações de classe, todas elas sob a liderança da Associação Nacional de Médicos Residentes – ANMR, que facultaria a homogeneiza-ção do movimento dos médicos recém-formados a resultar, em 1980, na primeira greve nacional, ainda no fim do governo do general Ernesto Geisel, que, óbvio, ordenou o endurecimento do tratamento dos grevistas ao máximo.

A turma da FCM-1978, partícipe da greve dos acadêmicos bolsistas e internos, escolheu a AMERERJ como Patrona, com

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todas as objeções previsíveis. A formatura foi no Hotel Nacio-nal de São Conrado, sob a Presidência de Mesa do Professor Ítalo Suassuna, que ameaçou suspender a formatura caso lêsse-mos o discurso e mantivéssemos o patrono. O orador era o Dr. Adilson Luiz Cunha de Aguiar Mariz. O tumulto foi geral, ainda não se tornara público o tumulto ocorrido em formaturas ante-riores. Uma das formandas, Gulnar Azevedo e Silva, do grupo de encargo da escrita do discurso, preocupada com a demora do início da solenidade, questionou:

“O que fazer?”“O melhor é fazermos o discurso e o Juramento de Hipó-

crates, recebermos nossos diplomas e, depois que o mestre sair, a gente reabre a cortina e refaz a formatura do nosso jeito!”

Na presença da autoridade, o orador fez o discurso e, depois de o Diretor da FCM-UERJ sair, foi reaberta a cortina. A Presidente da AMERERJ falou, nossos dois colegas que ha-viam perdido ano por motivos políticos ficaram felizes e tudo acabou sem um mal-estar emergencial; ainda que menor do que o já sofrido por turmas formadas antes, como a Turma FCM-1968 e a Turma FCM-1972. Dias depois, Suassuna, como era chamado informalmente, ao encontrar um dos recém-forma-dos, disse apenas:

“Vocês fizeram um papelão.”Na verdade foi evitado um vexame coletivo diante dos fa-

miliares e convidados. Vexame habilmente evitado, cuja responsa-bilidade cairia sobre o nome da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ. Nenhum aluno fez qualquer papelão, foi apenas contorna-do um abuso de autoridade.

O orador, Adilson Luiz Cunha de Aguiar Mariz, recebeu seu diploma de médico com o nome errado algumas vezes e a cada correção demorava mais a recebê-lo. Na cerimônia de formatura todos os graduandos, além do juramento de Hipócrates, ao fim da leitura do discurso de formatura e junto com o orador – volta-mos a dizer, todos os alunos da Turma da Faculdade de Ciências

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Médicas da UERJ formada em 1978 (FCM-UERJ-1978) –, disse-ram em coro e em alto e bom som:

Como profissionais de saúde assumimos o compromisso com o doente, sabendo que a saúde não depende apenas do médico, mas de quanto a população usufrua da riqueza que produz, tenha acesso à educação e cultura e possa participar dos programas de saúde a ela destinados. Porém, não vamos ficar de braços cruza-dos, pois o importante não é ser médico, o importante é apren-der para servir ao povo.

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Título Provisório 245

Um título para a consciência

As camadas médias urbanas fornecemo maior contingente de universitários,

mas não lhe fornecem um modelo de ator(econômico, social, político) em nome

do qual possam estruturar-sereivindicações em nome próprio.

J. A. Guilhon Albuquerque

Em entrevista ao Jornal do Brasil, no início do ano letivo de 1973, o Conselho de Representantes manifestaria os seus pontos de vista.

“Política é uma palavra proibida no nosso vocabulário. Até mesmo inconscientemente estamos sempre, em nossas conversas, fugindo de pronunciá-la, buscando substitutivos.” A afirmativa de José Marcos Chaves Ribeiro traduzia o clima que se criara em tor-no da participação estudantil. O Conselho de Representantes (o único que existia na UEG) substituía o CASAF – formado por de-legados das turmas, escolhidos, exclusivamente, entre a terça parte dos alunos que tinham obtido as melhores notas.

– Apesar de toda esta dificuldade, o impedimento maior para a nossa representatividade e para a nossa participação não está ape-nas na estrutura do Conselho de Representantes, que poderia fun-cionar muito melhor se houvesse maior liberdade e recepção para os nossos programas. Mais importante que a estrutura da representa-ção é a liberdade de dispor, de participar, que nós não temos.

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– Daí chegamos – prossegue Hélio Arthur Bacha – à cons-tatação inicial do José Marco, quanto à restrição que nós próprios, inconscientemente, estamos fazendo com respeito ao termo polí-tica, considerado tabu, hoje em dia. O raciocínio mostra um perigo maior que se manifesta, o sentimento de autocensura e a ameaça da perda de consciência.

É ainda Hélio Arthur Bacha que fala:– A nossa formação na universidade é essencialmente técni-

ca, nós não sabemos a importância do médico da nossa comunida-de. Não sabemos por que não temos condições de nos reunir para analisar e discutir uma política de saúde para o Brasil.

– Se o Ministério da Saúde organiza uma política nacional sem de alguma forma nos sensibilizar, isso pode significar que o plano poderá não ser ideal. A medicina brasileira está voltada uni-camente para o aspecto curativo, e é com esse objetivo que são orientadas as nossas aulas. Não existe qualquer preocupação em pesquisar as doenças que caracterizam o nosso mundo tropical e subdesenvolvido – explicou Mário Dal Poz.

E a angústia de não poderem debater publicamente estes problemas novamente se expressou com Hélio Arthur Bacha:

– Os estudantes hoje estão mais alienados, mas têm também mais consciência disso e estão tentando superar essa alienação. O movimento de 1968 e o movimento de agora são completamente diferentes. Hoje, nós lutamos por uma participação política, e nem se definiu ainda que tipo de participação política é essa.

Segundo Paulo Gadelha, referindo-se à participação política dentro dos partidos políticos: “Os partidos políticos hoje não são nem a ARENA e nem o MDB. Tem muito mais importância para nós, por exemplo, a Igreja, em termos de proposta política, do que a ARENA e o MDB. Tem muito mais importância uma política ditada pela Escola Superior de Guerra (ESG) do que a ARENA ou o MDB”.

Apesar disso, concluindo a entrevista, acrescentou Mário Dal Poz:

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Título Provisório 247

– Existe o interesse em participar dos partidos políticos, na medida em que teriam condições de obter uma participação maior, de falar e ser ouvido.

A legislação da UEG quanto à representação estudantil fora elaborada com base no § 3º do art. 38 da Lei n. 5.540, que exigia o aproveitamento escolar dos candidatos para a represen-tação estudantil, “critérios que incluam o aproveitamento esco-lar dos candidatos”. A UEG havia interpretado de forma tão drástica a Lei Federal, que restringia o direito à candidatura dos alunos que se colocassem no terço superior das melhores médias de cada turma.

No segundo semestre de 1973, os alunos desenvolveram uma campanha pela revogação da “lei do terço”. Lei condenada unanimemente pelo corpo discente da Ciências Médicas, que com uma ida coletiva à Reitoria conseguiu o encaminhamento da lei ao Conselho Universitário, para que fosse discutida sua revogação.

A essa altura, a aplicação da reforma universitária e a constru-ção do Campus Universitário constituíam momentos da profunda transformação na UEG, colocando na ordem do dia problemas que deveriam ser equacionados por toda a comunidade universitária.

A partir de 1972, com a falência administrativa do hos-pital e da escola, a Faculdade de Ciências Médicas entrava em ocaso, o ensino se deteriorava. A escola, que nunca chegara a ser vinculada à pesquisa, com a queda do padrão de atendimento médico no hospital, perdia o seu lugar de destaque no cenário médico nacional.

Na FCM, a atividade de Imprensa, desde a publicação do úl-timo número de “O PLANTÃO”, órgão oficial do CASAF, e ape-sar da publicação de alguns jornais, como “O SUPOSITÓRIO”, “QRS” e o “Jornal do CR”, vinha sendo um tanto descontínua. A estruturação do Departamento de Imprensa dos Alunos como órgão que cuidasse da feitura do jornal, como tentativa de romper com essa situação, encontrava sua maior dificuldade no pequeno número de participantes para a produção do jornal.

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Em junho de 1974, foi conseguida a edição do jornal Cobra de Vidro, que não iria firmar-se. Mas nessa empreitada o Departa-mento de Imprensa dos Alunos (D.I.A.) se preocupara em alcan-çar melhor estruturação.

O Conselho de Representantes já não era aceito como en-tidade de representação estudantil. Durante as férias grandes, o grupo de oposição ao CR elaborou um jornal clandestino (feito à revelia do conhecimento dos membros da entidade). Como o jornal exigia como pré-requisito a escolha de um nome eleito pelos alunos, o primeiro número, para preenchimento do cabeçalho, saiu como “TÍTULO PROVISÓRIO”.

A receptividade do jornal foi muito grande. O D.I.A. pas-sou a funcionar como qualquer outro Departamento, o número de pessoas que passou a frequentá-lo diariamente cresceu. TÍTULO PROVISÓRIO, após votação, passou a ser o nome do jornal, pas-sou a representar o crédito na possibilidade de mudar uma situa-ção provisória de opressão e cerceamento da liberdade.

A primeira meta do Título, colocando a representatividade como algo a conquistar, foi questionar o conselho velho. Na mes-ma linha, no editorial do exemplar n. 2 do jornal, a eleição de re-presentantes é anunciada para assumir novas perspectivas.

Eis uma síntese do editorial, preservando seu conteúdo:

... Hoje, quando se aproxima a eleição para a gestão 75/76 do CR., outra questão se coloca, ou seja, quais serão as característi-cas desta eleição?O DESPREZOComo sempre, certas pessoas demonstrarão um desprezo total pela eleição de representantes. Desprezo propagado nos corre-dores por aqueles que se orgulham de ter uma pretensa aversão a toda e qualquer manifestação de grupo ou classe social. Talvez, algumas dessas pessoas até acreditem, sinceramente, que estão acima dos diferentes interesses, objetivos e necessidades existen-tes, acima do conflito entre o que nós queremos e o que nos é imposto. Mas, deixando de lado o que elas possam pensar de si mesmas, o que é claro e inegável é ser esta uma posição em tudo favorável à perpetuação do atual estado de coisas.

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Título Provisório 249

O OTIMISMOJá, por outro lado, é muito provável que tenham os mais otimis-tas a ver nesta eleição o marco de um novo período para a nossa vida estudantil. Certamente, este seria um dos mais belos qua-dros da “Abertura Democrática” pintada no Brasil nestes últimos tempos. No entanto, tal otimismo só pode ser sustentado, se es-quecermos as condições que limitam a formulação, a expressão e a defesa do querer doa alunos. Não será alimentando ilusões que teremos um CR respaldado a todo momento, na maioria dos alunos, no que esteja fazendo ou deixando de fazer.O DESCRÉDITOO que se tem constatado, nestes últimos anos, é um certo des-crédito como clima predominante nas eleições de representantes. Este descrédito tem base em fatos reais, ou seja, a origem dele está nas experiências vivenciadas por todos no dia a dia, da es-cola e, além disso, no conhecimento das medidas repressivas que pairam sobre a universidade brasileira.REPRESENTATIVIDADE: ALGO A CONQUISTARO que o Departamento de Imprensa pretende, ao refutar o des-prezo que leva à perpetuação do atual estado de coisas; ao recu-sar um otimismo fácil, que difunde a ilusão como forma de não enxergar os problemas tais como eles são; ao procurar vencer o descrédito que nos prende, de forma cega, às experiências passa-das; e ao conclamar todos os alunos que tomem para si a tarefa de conseguir um órgão de representação realmente representati-vo é contribuir, dentro de suas possibilidades, para este processo.

O Diretório Acadêmico existia como um Direito esquecido. Enquanto o ressurgimento do protesto dos estudantes em todo o país se fazia acompanhar de uma repressão maior, na escola o não reconhecimento do Conselho de Representantes eleito, man-tendo-se os absurdos critérios de inelegibilidade, tentava manter os estudantes dentro das salas de aula, sem poder ver, ouvir nem pensar, tendo apenas que digerir o recebido.

O Departamento de Imprensa lançava o debate e sustentava a discussão de que, para a resolução dos problemas e para a realiza-ção de uma vida universitária, era imprescindível o fortalecimento, tanto em termos de representatividade, como em termos de liber-dade, das formas de organização estudantil.

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Quando os professores Jayme Landmann e Roberto Al-cântara Gomes foram substituídos na Direção e Vice-Direção da Faculdade, respectivamente, pelos professores Ítalo Suassuna e Ismar Chaves da Silveira, fechou-se o ciclo de maior repressão que os estudantes sofreram desde 1964.

Em março de 1976, TÍTULO PROVISÓRIO, no ano II – n. 4, publicou entrevista concedida pelo novo Diretor.

TÍTULO PROVISÓRIO: Qual o papel da Universidade, em ge-ral, em sua opinião?SUASSUNA: Eu acho que a Universidade tem uma função tradi-cional, que é informar, transmitir conhecimentos, mas que con-siderada como exclusividade, esta é uma função superada. Quer dizer que numa universidade moderna, para o papel que ela se ar-rogou, em qualquer nação que teve desenvolvimento, ela tem de ser, além disso e coincidente com isso, criadora de cultura, cria-dora de conhecimentos; quer dizer, isto inclui cultura de modo geral, tecnologia e ciência. E é esse, evidentemente, o destino de uma universidade moderna. E é o mais necessário para o nosso país, sobretudo por estar-se lançando a processos de acelerar seu desenvolvimento.TP: A Universidade Brasileira hoje cumpre esse papel?S: Não. A Universidade Brasileira no sentido, vamos dizer, quali-tativo, está procurando por todos os meios cumprir. No sentido quantitativo, ela ainda está muito aquém das nossas necessida-des. Em função do que o Brasil necessita a nossa Universidade ainda está muito aquém. Há duas ou três universidades que já chegaram a este estágio, mas a maioria das outras, não. O mo-tivo, a razão disto é muito simples. Como concepção de uma universidade moderna, a implementação para se conseguir esse objetivo é muito recente, um plano realmente de orientação só foi começado, em termos de plano nacional, de 1964 para cá e são exatamente 10 anos. Quer dizer, até então era atitude particu-lar de alguns professores, muitas vezes, entender a universidade assim. Então, nós temos os nomes pioneiros, a USP, a UFRJ, que, quase sozinhas, criaram centros de excelência com todas as dificuldades.TP: Em relação à pesquisa na nossa Universidade, o que o senhor acha de seu estágio de desenvolvimento? E qual a perspectiva, como diretor, que o senhor dará à pesquisa na FCM?

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Título Provisório 251

S: Eu acho que o potencial de pesquisa na Ciências Médicas é realmente muito maior que o que está sendo praticado. Prova-velmente, isso se deveu ao preço que se pagou para chegar ao “status” profissional que a FCM tem. A FCM da UERJ foi a primeira realmente que se dedicou a possuir seu Hospital de Clí-nicas. Foi a primeira que compôs o ensino médico, aqui, na nossa área geográfica. Mas esse investimento, em termos de Hospital, sempre representou um problema em qualquer país do mundo. Para dar um exemplo, a universidade americana é sempre toma-da como parâmetro do conceito moderno de que a Universida-de deveria abrigar todas as formas de ensino, para merecer este nome. No entanto, já há na literatura médica americana pontos de vista mais modernos dizendo que talvez para a escola médi-ca fosse melhor ela estar fora da universidade. Por um simples problema que se repete em todos os lugares: um Hospital de Clínicas e uma escola médica fazem uma demanda orçamentária que nenhuma outra escola se pode comparar.De modo que, chegando a sua pergunta específica, já que nós temos algo vantajoso, nós temos um Hospital, nós temos mate-rial clínico que pode servir de apoio à pesquisa médica (porque pesquisa médica deve ser feita com material clínico), nós teremos a possibilidade de atacar agora nesse outro setor. Para isto, nós precisamos de participação da universidade, uma vez mais, por-que à universidade compete manter os recursos humanos, que é o item nº 1. Os recursos humanos sob o ponto de vista dos alu-nos aqui na UERJ são muito bons. O pessoal jovem da docência também é responsável por muito do bom ensino. Então, recur-sos humanos a universidade tem onde colher, tem que encontrar meios de agora sustentá-los. O outro aspecto que se precisa é o financiamento da pesquisa. Ele tem-se facilitado, dentro, nova-mente, de uma política de desenvolvimento do Governo, agora planejado para o país inteiro. Eu acho que a universidade que tem recursos humanos, tem capacitação para isto, tem de onde solicitar e receber.TP: Qual a sua opinião sobre a importância da participação estu-dantil na vida universitária em geral?S: A minha opinião coincide inclusive com o que está escrito, pois está dentro dos regulamentos haver representação estudan-til nos órgãos colegiados. No entanto, eu acho que deve haver um limite. Eu conheci, participei numa universidade em que a participação do estudante sem limitação contribuiu muito para cair o que essa universidade produzia, que foi a universidade de

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Montevidéu. Em certa época havia 1/3 de representantes de alu-nos, 1/3 de representação de administração e 1/3 de profes-sores. A partir daí, os professores nunca mais puderam tomar decisões em função do ensino, dentro daquilo que eles mais possuíam – mais experiência. Um aluno é tão inteligente quan-to um professor ou muito mais. Mas em termos de vivência, de informação, eu acho que a experiência do professor como a experiência do indivíduo mais velho, que viveu mais, é uma contingência biológica, aliás, muito particular da nossa espécie. Nós somos a espécie que é capaz de transmitir conhecimentos por processos de comunicação bastante sutis. De modo que a minha posição é essa.TP: Até que ponto o Sr. acha que essas limitações à participação estudantil beneficiaram à universidade? E a partir desse ponto estas próprias limitações beneficiariam à universidade?S: Eu posso responder o seguinte. A coisa que mais me tem aju-dado é, sobretudo, o senso crítico do estudante. Quando a gente é capaz de ouvir o estudante, ele realmente nos abre os olhos para coisas que, apesar da experiência, pode estar embotado, para sentir e perceber. O sentido de crítica do estudante é mais aguça-do, porque ele é a parte mais interessada, que vive todos os dias, e realmente ajuda tremendamente. Eventualmente, o estudante tem uma forma de propor uma solução que eu acho extrema-mente inteligente e interessante. Agora, fazer disso uma regra de que sempre ela, necessariamente, é boa, ajudará a resolver, eu não faço.TP: O Sr. acha, então, que a participação do estudante na elabo-ração do currículo é importante?S: Acho muito importante. Esta é a parte que mais me tem aju-dado, porque em matéria de currículo, nós mesmos, professores, não temos tido uma participação muito grande em função dos parâmetros mínimos de currículo que a gente tem. Necessaria-mente a proposta do estudante deve ser agora discutida, em fun-ção da realidade, para que a gente possa ter condições de um plano didático global. Esse é o grande problema, porque o es-tudante só conhece o plano didático global quando se forma, quando deixou de ser estudante.

O desatrelar do Conselho de Representantes das Leis de inelegibilidade deu-se no primeiro ano da gestão Suassuna. Mas, apesar de se ter livrado dessas leis, o CR permanecia com suas

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limitações próprias, como o fato de não ser eleito em cima de uma plataforma discutida e apoiada nas turmas. Havia, portanto, neces-sidade de se eleger, além dos representantes por turma, uma chapa que viesse a compor a Diretoria do Diretório Acadêmico.

Há tempos os estudantes da UERJ vinham tentando de-senvolver discussões e realizar atividades em comum. Ao rea-lizarem a Semana de Calouros da UERJ, com a feitura de uma mesa-redonda sobre representação estudantil com 10 escolas, que culminou com a criação da comissão universitária da UERJ, foi dado um importante passo para a união dos estudantes. Nes-se meio-tempo, concomitantemente à aplicação de uma política de distensão, o Prof. Suassuna tentava conter o ímpeto que o movimento estudantil ganhava dentro da limitação por ele consi-derada necessária. Assim, expirava o ano de 1976, prenunciando o apito da panela de pressão.

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A retomada das lutas, reabertura do CASAF

... de uma forma ou de outra, osprofessores veem-se diante de um

novo dilema: fortalece-se dia adia a aspiração de isolar-se o

jovem do fluxo de reconstruçãoda sociedade.

Florestan Fernandes

Ao movimento estudantil coube a função de, tal qual uma cunha, abrir a brecha e alargar a fissura, detonando novo impul-so à participação política também de outros setores da sociedade. Tanto pelas greves operárias do ABC paulista, como pela movi-mentação estudantil, Florestan Fernandes chamou o conjunto do movimento todo de “A marcha de 1977”.

Na Ciências Médicas, a greve dos internos (sextanistas de medicina) marcou seu início no dia 01.03.1977. Submetidos a uma carga horária excessiva, com uma remuneração irrisória (Cr$ 900,00 mensais), os internos exigiam a diminuição do nú-mero de plantões mensais de 6 para 4, remuneração de dois sa-lários mínimos, como recomenda a CLT, e contratação de mais médicos e enfermeiras para o hospital.

Frente à negativa de atendimento, os internos haviam en-trado em greve de atendimento ambulatorial e de plantões, como forma de resolver o problema. Como Diretor do HC-UERJ, o Prof. Jayme Landmann tentou controlar o movimento, através de

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suspensão e corte das bolsas. Mas, sabendo da proximidade das aulas e da possibilidade de aderirem à greve as demais séries da graduação, anuiu ao estabelecimento de uma comissão sobre o in-ternato e residência no Hospital de Clínicas.

Na véspera do início da greve, o Diretor do Hospital colo-cara em reunião com os Internos e Residentes a intenção de não voltar atrás em sua decisão. Afirmava que manteria as punições, que isso constituía um problema de “autoridade”, e para a Dire-ção do Hospital não interessava se o que os internos queriam era justo ou injusto, interessava apenas sua “autoridade”. A coesão do movimento, com menos de 10% da turma furando a greve, e a proximidade das aulas com a ameaça de adesão de todas as séries do curso médico obrigaram a Direção a retroceder, pagar as bolsas atrasadas, conceder aumento para Cr$ 1.300,00, manter o esquema de plantão dos internos e uma folga semanal.

O apoio da AMERERJ (Associação dos Médicos Residen-tes do Estado do Rio de Janeiro) e da ANMR (Associação Nacio-nal dos Médicos Residentes) iniciava a mobilização dos próprios residentes no HC-UERJ. Os primeiros meses do ano de 1977 fo-ram caracterizados pela crescente onda de mobilizações, ainda que isoladas no meio estudantil. Essas mobilizações tinham um eixo comum: decorriam da necessidade de melhoria do nível de ensi-no, de melhores condições materiais e convergiam para a luta dos estudantes contra a diminuição de verbas para a educação. Todas as mobilizações vinham mostrar que, cada vez mais, tornava-se imperiosa a necessidade de criação de entidades livremente eleitas, desatreladas e representativas.

Na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, os estudantes do Grande Rio se reuniam para a discussão dos proble-mas do ME. À PUC, como sede do movimento regional, caberia romper o silêncio a que o estudante estava submetido desde 1968.

No 2º Encontro Regional de Universitários do Grande Rio, convocado inicialmente para discutir problemas de verbas e orga-nização estudantil, houve uma mudança de pauta.

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Nas comemorações do 1º de Maio, em São Paulo, ocorrera a prisão de estudantes e operários. Cartazes nos pilotis anunciavam a assembleia e a greve de 80 mil estudantes paulistas, além de pedir a libertação dos estudantes e operários presos.

Na Ciências Médicas, o Conselho de Representantes emite documento, que viria a ser o último expedido por ele, convocando todos os colegas para discutir a posição da escola ante o “ATO PÚBLICO PELA LIBERTAÇÃO DOS ESTUDANTES E TRA-BALHADORES PRESOS”, programado na PUC.

Eis a íntegra do documento:

Vemos na época atual a grande contradição existente entre a política oficial e os interesses reais da maioria da população brasileira.Sentimos no nosso dia a dia o reflexo dessa política na universidade.O ensino gratuito sendo extinto, cedendo lugar ao ensino pago, com taxas cada vez maiores e tornando-o cada vez mais inaces-sível às classes pobres.A percentagem do orçamento nacional destinado à educação di-minuindo grandemente, em benefício de outras áreas considera-das prioritárias pelo regime, trazendo a deterioração da qualidade do ensino, ausência de pesquisas e toda sorte de deficiências.Tenta-se formar profissionais voltados para acionar uma tecno-logia importada e a servir a uma elite economicamente privile-giada capaz de ter acesso a essa tecnologia, esquecendo as reais e prementes necessidades do povo brasileiro.Para tornar possível a manutenção dessa política contrária aos in-teresses dos mais amplos setores da população, o regime precisa valer-se de um aparato repressivo para estabelecer um clima de medo e passividade, para calar as vozes que se levantam contra a injustiça, para que as pessoas vejam a verdade como pecado e temam professá-la.Assim, vemos a prisão de nossos colegas da USP e dos traba-lhadores de São Paulo, cujo crime foi o de não acreditarem na farsa oficial das comemorações de 1º de maio e participarem da organização de comemorações realizadas em sindicatos, igrejas, e escolas com o verdadeiro sentido da data: a luta dos trabalha-dores contra a exploração a que estão submetidos.

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A repressão que ora se abate sob a forma de prisões políticas está presente a cada momento através do Decreto 477, que pro-cura amordaçar e intimidar os estudantes através do fechamento dos Diretórios e Centros Acadêmicos ou restrições às entidades abertas; através de restrições aos murais, proibições de reuniões, censura à imprensa estudantil e às atividades culturais. Portanto, não é um fato isolado nem alheio à nossa realidade a prisão dos colegas da USP e dos trabalhadores.Além do mais, a forma com que se deram essas prisões, com características de sequestro, sem culpa formada, sendo os presos levados a local ignorado e mantidos incomunicáveis, atenta con-tra os princípios mais elementares de respeito à pessoa humana que o Brasil, signatário da Carta das Nações Unidas, se compro-meteu a cumprir.Preocupamo-nos extremamente pela integridade física e a pró-pria vida dos trabalhadores e colegas da USP sequestrados. Con-cordamos com os estudantes da USP, mobilizados pela liberta-ção dos presos, de que só a ampla denúncia e a firme de todos os estudantes e demais setores da população podem ser as garantias de sua integridade física e de sua própria vida, e por isto nos posicionamos:PELA LIBERTAÇÃO IMEDIATA DOS ESTUDANTES E TRABALHADORES PRESOSPELA EXTINÇÃO DEFINITIVA DAS TORTURAS E AS-SASSINATOS AOS PRESOSPELAS LIBERDADES DEMOCRÁTICAS

A convocação resultou na primeira Assembleia Geral reali-zada na Ciências Médicas após o fechamento do CASAF.

No dia seguinte, 10 de maio de 1977, com presença signifi-cativa de alunos da FCM, 7 mil estudantes compareceram à PUC.

O Senador Petrônio Portela ameaçava: “Isso vai acabar mal. A ressonância será proporcional à explosividade”.

O Ministro da Educação e Cultura, Ney Braga, afirmava que uma inexpressiva minoria de estudantes, aliciada por elementos sem compromisso com os interesses maiores da nação brasileira, estra-nhos à universidade, pretendia perturbar a tranquilidade interna.

O primeiro passo era lançar a pecha de “subversivo” so-bre as lideranças estudantis, em seguida convidar os estudantes de

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grande participação a prestar depoimento na Delegacia de Polícia Política e Social, situada na Rua da Relação.

Tal medida logo alcançou a Ciências Médicas, atingindo principalmente a turma do quinto ano médico. Mas o apoio em outros setores sociais, um dos fatores que diferenciam o movi-mento estudantil atual do de 1968, fazia com que a sociedade civil, através de suas entidades democráticas, impedisse que a ditadura prendesse e torturasse de imediato.

Em Belo Horizonte, no III Encontro Nacional dos Es-tudantes (ENE), programado para 4 de junho, seria discutido o restabelecimento da União Nacional dos Estudantes, não fosse a intervenção policial orientada pelo Governador Aureliano Chaves.

Ante as prisões, enquadramento de estudantes na Lei de Se-gurança Nacional, proibição da realização do III ENE, em Floria-nópolis, o IX Encontro Científico de Estudantes de Medicina do Brasil fez constar no seu relatório final: “Nossos órgãos de luta são as entidades estudantis (DAs, CAs, DCEs). É através da garantia da sua independência e democracia interna que daremos passos cada vez maiores em direção à reorganização regional e nacional, as UEEs e UNE, com o que teremos melhores condições de lutar por nossas reivindicações”.

A invisível liderança estudantil em emergência nacional pauta-va sua mobilização em palavras de ordem eminentemente políticas.

A universidade e o regime, na medida em que progredia a rejeição coletiva à Ditadura, entravam em choque. As verten-tes internas e externas das inquietações estudantis continuavam atuantes. Os problemas da vida acadêmica – vertente interna – não haviam sido resolvidos, e as emoções políticas acentuavam--se com a compreensão de que, somente com a instalação da democracia no país, a universidade poderia cumprir sua real função de progresso social. Logo, a tortura de presos políti-cos voltaria a surgir como rotina de investigação. Entre os dias 19 de julho e 2 de agosto, 15 pessoas foram sequestradas e presas, entre elas três estudantes da Ciências Médicas, a saber:

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Cláudio da Rocha Roquete, Maria de Fátima Martins Pereira e José Mendes Ribeiro.

Nesse meio-tempo, na FCM, em plena atividade de férias, as lideranças estudantis articulavam a reabertura do Centro Acadêmi-co. Ao contrário da década de sessenta, não se formava nenhuma chapa reacionária para concorrer às eleições do CA. Isso se devia ao retraimento da influência familiar nesse sentido. Os pais haviam compreendido que um estado que torturava sistematicamente seus filhos não podia ser tão bom.

Os grupos Participação e Reabertura seriam os concor-rentes à eleição, que com 83,3% dos estudantes no sufrágio rea-briria o Centro Acadêmico. No dia 26 de outubro, foi divulgada uma carta denunciando tortura nas dependências do DOI-CO-DI, no Rio, por uma comissão de parentes dos 15 presos, dos quais 13 ainda permaneciam na prisão aguardando julgamento. A carta tinha como signatários os três estudantes da Ciências Médicas. São reproduzidos aqui o sofrimento e o gesto político dos colegas:

Na qualidade de presos políticos, julgamos da maior oportuni-dade engrossar as vozes que denunciam as torturas como uma prática sistemática e a opressão policial como instrumento que se presta a perpetuar a situação de miséria e exploração em que se encontram os trabalhadores brasileiros. Nesse sentido, passamos a relatar, aqui, fatos ocorridos durante a nossa passagem pelos órgãos policiais.Uma vez presos, fomos atirados em carros, imediatamente alge-mados e encapuzados e conduzidos a um local que, mais tarde, viemos a saber tratar-se do DOI-CODI-RJ. Lá, após termos sido despidos e fotografados, seguimos, debaixo de espancamentos, para as geladeiras, ou para salas de interrogatórios, iniciando-se, dessa maneira, os nossos 10 dias de isolamento e tormentos.Nessas e numa infinidade de outras situações em que nossos ver-dugos procuravam nos humilhar e aterrorizar, seu objetivo maior era nos abater, física, moral e psicologicamente. A cada ato de resistência, nossos algozes respondiam com o aumento infinito da tortura, com o prolongamento das sessões de choque, com o aumento da corrente elétrica, ameaças de pau de arara, tentativas

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de estupro, enfim, todo tipo de bestialidade era empregado com o fim de aniquilar qualquer resistência que opuséssemos àquelas iniquidades.Na geladeira, a companheira Maria de Fátima Martins Pereira, após permanecer várias horas com as pernas abertas e braços erguidos, foi atacada por cinco homens, que, forçando-a a deitar--se no chão e segurando-a pelas pernas e braços, tentaram enfiar na sua vagina um objeto de madeira semelhante a um cabo de vassoura, que a companheira foi obrigada a apalpar. Tentativas semelhantes de violação sofreram os companheiros José Mendes Ribeiro e Fernanda Duclos Carisio, sendo que esta foi forçada a passar as mãos pelo corpo de um torturador despido.Gabando-se de estar “exportando tecnologia”, a preocupação de nossos algozes com a “cientificidade” da tortura incluía com-parações com os outros órgãos de segurança, do tipo “aqui não ocorrem mortes como em São Paulo”.E uns poucos fatos podem demonstrar até que ponto a ciência e a técnica podem ser postas a serviço dos mais torpes objetivos. O companheiro Cláudio da Rocha Roquete, com problemas car-díacos, veio a desmaiar na geladeira, após sofrer violentos golpes no tórax e no abdômen e ficar dependurado pelas algemas du-rante horas. O médico que o examinou limitou-se a recomen-dar um período de descanso fora da geladeira, e o companheiro continuou sem ter acesso aos remédios que seu pai lhe enviava através do DPPS. Segundo os torturadores, não poderia tomá--los por estar em castigo.

Após a reabertura do Centro Acadêmico, o TÍTULO PRO-VISÓRIO, que lutava pela representação estudantil mais forte, deixava no ar uma pergunta: Reabrimos o Centro Acadêmico. E agora?

Ocorreu que no ano de 1978 os alunos participantes da restituição do CASAF à FCM-UERJ ou começavam seus inter-natos ou suas residências em medicina, com menos possibilidade de contato em função dos estudos e dos compromissos profis-sionais como médicos. A primeira diretoria do CASAF reaberto era composta por alunos muito veteranos ou médicos recém--formados, motivos demais para falharem em assumir e ao fim do mandado convocar alunos para segunda eleição da era come-çada a partir de 1977.

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Título Provisório 261

Fica aqui esse hiato a ser preenchido.Composição das Chapas que reabriram o CASAF para a

1ª gestão – período 1977-1978:

CHAPA PARTICIPAÇÃO(VENCEDORA) CHAPA REABERTURA

Veio a funcionar como colegiado Também não tinha cargos definidos

Amarino Carvalho de Oliveira JuniorAndré Rangel ReisClaudia BonamGulnar Azevedo e SilvaJoão Claudio Lara FernandesKatia SilveiraMarcia Lazaro de CarvalhoMarcia MattarMarilena Vilela CorreiaOziel Guimarães RiscadoPaulo Renato TravancasSílvia Disitzer

Paulo BachaHugo Fernandes JuniorDora ChorPedro BarbosaFabio Daflon

Nota: era uma chapa bem menor. Ain-da assim a vitória foi por cerca de cin-quenta a setenta votos.

O fato é que, quando a turma da FCM-1978 ingressou na escola em 1973, alunos como Hélio Arthur Bacha, Letícia Kraus, entre outros, estavam saindo da escola, e alunos como Paulo Bacha e Dora Chor estavam no meio do curso médico, entre outros, que estavam entrando.

Mirtes Dib Cruz, moça de família humilde e com tradição participativa no PCB, em 1974 ou 1975, exilou-se na Rússia, para acompanhar seus familiares fugitivos das humilhações, tortura ou morte, tecnicamente quem deixou o Brasil naquele tempo não pode ser considerado exilado, porque o exílio é uma figura jurídi-ca, e quem saía do país nem sequer recebia passaportes, seus do-cumentos, eventualmente, eram expedidos pela Organização das Nações Unidas. É desconhecido se voltou ou permaneceu por lá. Seus colegas de turma talvez queiram saber do seu destino, pois somente ao autor foi feita essa confidência, antes da fuga.

Ressalvamos aqui que o alunato do movimento estudan-til nos anos 1970 adotou métodos de luta mais pragmáticos e,

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conjuntamente com as greves dos operários do ABC paulista, cada segmento em sua seara, como era possível naquele momento, con-tribuiu muito para a redemocratização brasileira.

As formas de luta da geração de jovens e estudantes dos anos 1970 diferenciam-se das formas de luta da geração de 68 que optou pela luta armada porque esta se apresentava como uma prá-tica política alternativa. Nos anos 1970, as práticas políticas alter-nativas se reconfiguraram na forma das manifestações culturais. A adoção destas práticas políticas alternativas também pode ser apontada como uma das causas para o afastamento entre van-guarda e massa estudantil, pois havia uma contestação às práticas político-partidárias, ditas tradicionais.

A própria luta pela democratização tornou-se uma prática política alternativa, visto que, para o ME, a luta pela democratiza-ção da Universidade era consequente à luta pela democratização da sociedade, ainda que isso significasse apenas uma etapa no en-caminhamento do processo revolucionário. No entanto, as reivin-dicações específicas não ultrapassaram sua conotação reformista, demonstrando que o caráter pequeno-burguês do ME não seria superado com a luta específica. Assim como a democratização da Universidade, baseada em lutas de caráter pequeno-burguês, não emancipou os estudantes, a luta pela democracia também não cau-sou uma transformação profunda na sociedade, predominando a ideologia e as reivindicações da classe dominante.

Com base nos documentos estudantis do período, pode-se afirmar que a questão das verbas e da melhora das condições de ensino, bem como a democratização da universidade, também era pauta reivindicativa de universidades em outros Estados. O Jornal Manifesto dos estudantes socialistas do Grande Rio de abril de 1977 desta-cou as greves na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e na Escola de Comu-nicação (ECO) da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janei-ro), as mobilizações na PUC contra o aumento das anuidades e as assembleias na UFRJ contra o aumento dos preços do bandejão.

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O mesmo documento ainda fez referência a uma série de aconte-cimentos envolvendo estudantes de vários Estados no primeiro semestre de 1977 e ressaltou a importância da retomada da mobi-lização estudantil com base na luta em torno dos problemas rela-tivos à universidade, principalmente a reconstrução das entidades.

Naquele momento havia um inconsciente coletivo capaz de transpor muitas muralhas. A sede atual do CASAF o torna o terceiro maior centro acadêmico do Brasil e o primeiro do Rio de Janeiro. Esta se compõe de uma casa de dois andares, um ginásio e o espaço que se estende entre estes. Este espaço foi cedido ofi-cialmente ao CASAF, na gestão do Reitor Hésio Cordeiro, na dé-cada de 1990, por um Ato Executivo. O CASAF, Centro Acadê-mico Sir Alexander Fleming, tem orgulho de representar o corpo discente do curso de Medicina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a UERJ. Terceiro maior Centro Acadêmico do Brasil e o primeiro do Rio de Janeiro. Infelizmente, desde o incêndio do almoxarifado do Hospital Universitário Pedro Ernesto, ocorrido em quatro de julho de dois mil e doze, o ginásio, onde havia a quadra de futebol de salão, local de shows e disputados campeo-natos de futebol, está, inadequadamente, ocupado por materiais médico-cirúrgicos, com prejuízo da vida dos estudantes, embora a Direção alugue quadras fora da área física do CASAF para os jogos de futebol com dinheiro administrado pelos Presidentes do CASAF atual, como Clarisse Pereira e Pádua e Bruna Trajano (Gestões CASAF 2014 e as duas gestões de 2015 e 2016, respec-tivamente), que têm documentados pedidos de desocupação do ginásio, até o momento inviabilizados. Apesar de não ser desejo das autoridades universitárias (Direção da FCM-UERJ e Reito-ria) que essa ocupação continue sine die.

Mais tarde, o líder da greve de 1959, já médico e professor da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ, Dr. Virgílio Pinho da Cruz, foi chamado pelo Professor Jayme Landmann para assistir um paciente.

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Ao entrar no quarto viu tratar-se de Alvaro Cumplido de Sant’Anna.

Fechou a porta e foi argumentar com Landmann:“Não, dá...!...”“Você é médico, ordenou Landmann, vá lá e assuma o seu

paciente.”Virgílio cuidou de Cumplido de Sant’Anna até seus últimos

dias. Em 1977 o autor esteve no apartamento daquele mestre para uma entrevista. Pouco pôde colher. O professor estava em cadeira de rodas, mostrou alguns quadros de paisagens mortas pintados por ele, nos quais vicejavam frutas tropicais bem coloridas e tam-bém bananas ornamentais e maçãs sem mordidas.

Buscava fôlego para dar vazão às palavras.“Já não posso mais...”, disse, afetuosamente, ao despedir-se.

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Título Provisório 265

Luiza Maria Santana Spineti – Estudante dos anos 1970

Nunca admiro o ato ou o fato,mas apenas o espírito humano.

O ato, o fato, são vestimentas e ahistória não é mais do que o velhoguarda-roupa do espírito humano.

Heinrich HeinePoeta alemão

Causou enorme surpresa a todos que a conheciam, quan-do, ao subir no palanque sob os pilotis da PUC-RJ, Luiza Maria Spineti, da Turma FCM-1978, fez um discurso forte e inflamado contra a ditadura; mas quem se surpreendeu não ficaria surpreso se conhecesse, à época, sua trajetória. Vejamos o que ela relatou do próprio punho:

Os Encontros Científicos dos Estudantes de Medicina (ECEM), financiados pelo governo, foram os substitutos para nós das or-ganizações estudantis que estavam proibidas. Neles comecei a me politizar e a ter contato com as discussões da época. Na FCM ha-via lideranças sob influência do PCB, depois fiquei mais próxima do Cláudio da Rocha Roquete e José Mendes Ribeiro, que surgira do racha do POLOP, por ser mais radical. Em 1975 fui convidada a ser militante e aceitei, porque partido só existiam oficialmente o MDB e o ARENA, comecei a participar ativamente das reuniões e na FCM-UERJ começamos a criar um jornal, o TÍTULO PRO-VISÓRIO, ideia do Cláudio da Rocha Roquete, no qual escrevi

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um artigo sobre reforma curricular. O jornal foi um sucesso. Nes-se ano teve muita repercussão o assassinato de Vladimir Herzog em São Paulo e foi feita uma matéria no jornal, dessa forma fui me envolvendo cada vez mais com a luta contra a Ditadura.Em maio de 1977 foram presos em São Paulo estudantes que panfletaram sobre o 1º de maio, aí começamos a organizar no Rio de Janeiro um protesto contra as prisões em São Paulo, que culminou com uma grande assembleia na PUC-RJ, porém, após os estudantes oradores ficarem detidos no DPPS e as organiza-ções enviarem o segundo escalão para a segunda assembleia, eu fui convocada e aceitei como um desafio, realmente era muito tímida, mas acredito que o momento me deixou emocionada e pude expressar todo o meu repúdio ao que acontecia.Na FCM estávamos em campanha para reabertura do Centro Acadêmico e tínhamos uma chapa com o nome Participação.Em julho de 1977 fui a uma reunião no prédio dos alunos e demos pela falta do Cláudio e do Mendes, logo suspeitamos que pudessem ter caído, a partir dali nos dispersamos, e só voltei para minha casa no ano seguinte, em maio de 1978, perdi o ano por faltas.Antes disso, logo após as assembleias na PUC-RJ fui depor duas vezes no DPPS e sabia que estavam atrás de mim. Ficamos jun-tos eu, Paulo Maurício e Fatima, porém ela, depois de uma sema-na, resolveu voltar para o Rio porque disse que tinha uma casa segura e aí ela foi presa, dando mais um motivo para não voltar.Minha família colocou advogado para acompanhar o caso e ela orientava que não era seguro voltar, portanto ficamos eu e Paulo Maurício juntos acomodados em uma casinha na baixada flumi-nense; mais precisamente São João de Meriti, com o financia-mento dos pais do Paulo Maurício, pois o meu pai estava total-mente contra.Passei Natal, meu aniversário, carnaval neste lugar, tínhamos um álibi, dissemos que éramos primos e tínhamos brigado com os nossos pais, por isso estávamos ali. Foi difícil ficar afastada das atividades e da família, por outro lado aconteceu uma catarse; um encontro comigo mesma, e as questões pessoais começaram a bater na porta. No ano seguinte sopraram os ventos da aber-tura e resolvemos voltar. Em março de 1978 reiniciei as aulas na turma de 1974, mas ainda ficamos sob a guarda dos estudantes morando um mês no alojamento da residência médica do Hospi-tal Universitário Pedro Ernesto.

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Título Provisório 267

Depois as coisas se estabilizaram. O Claudio da Rocha Roquete, o José Mendes Ribeiro e a Maria de Fatima Martins Pereira esta-vam presos. Voltei mais revoltada ainda, fui para o movimento operário em Duque de Caxias. Lá participei de movimentos de bairro junto com a igreja progressista; dava curso para agentes de saúde; passava filmes nas comunidades; dava palestras e começa-mos a participar da fundação do PT.Participamos da luta dos metalúrgicos. Nessa época conheci Nelson, o pai do meu filho, operário da empresa Agrolite. Ele participava ativamente e me ajudava muito a passar os filmes nas comunidades, gostei muito da família dele, gente simples, ho-nesta e muito afetiva, me receberam de braços abertos, ficamos juntos por sete anos.

Além da crítica ao foquismo, a Fração Bolchevique do MEP, reivindicava uma interpretação da realidade brasileira e uma es-tratégia política consubstanciadas no Programa Socialista para o Brasil (1967), elaborado pela Organização Revolucionária Marxis-ta Política Operária (ORM-Polop) – grupo constituído em 1962.

A Fração Bolchevique do MEP não aderiu à luta armada e surgiu em 1970 como dissidência da Organização de Combate Marxista Leninista-Política Operária (OCML-PO). Essa referência acaba por localizar o MEP numa tradição política da esquerda bra-sileira que caracteriza a estrutura do país como capitalista depen-dente e a revolução como imediatamente socialista.

Essa concepção diferenciava o MEP e outras organizações do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que apontavam o atraso do capitalismo brasileiro como resultante de uma transição incompleta, cuja conclusão – tida como necessária à implantação posterior do socialismo – se daria a partir de uma aliança da classe trabalhadora com a bur-guesia nacional (formulação conhecida como etapismo, um dos pilares do stalinismo).

Em função da crítica a tais posicionamentos, e apesar de nunca ter assumido essa definição, o MEP foi identificado por al-guns como uma organização trotskista. O que se deve, também, à proximidade de seus militantes exilados na Europa nos anos

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1970 – articulados em torno do jornal Campanha – com a Liga Comunista Revolucionária (LCR) francesa. Em termos teóricos, todavia, o MEP se apoia nas contribuições do austríaco Au-gust Thalheimer, difundidas no Brasil por Eric Sachs a partir da Polop, e componente de um campo neomarxista conhecido como comunismo de esquerda.

Sachs foi membro do Partido Social Democrático Alemão antes da Primeira Grande Guerra, sendo editor de um dos seus jornais: o Volksfreund. Foi um dos fundadores do Partido Comu-nista Alemão (KPD). Ganhou destaque como principal teórico do partido, como editor de Rote Fahne, bem como dos manuscritos inéditos de Franz Mehring, após a morte deste. Em 1924 foi para Moscou, onde trabalhou na Internacional Comunista e no Institu-to Marx-Engels. Em 1928 retornou para a Alemanha, foi expulso do KPD, mas veio a ser um dos fundadores do KPO. Em 1932 exilou-se em Paris e em 1936 foi para a Espanha retornando pos-teriormente à França de onde saiu, em 1940, para Cuba, onde veio a falecer em 1948.

Quem foi e onde viveu esse marxista, aparentemente des-conhecido, que deixou no Brasil uma obra presumidamente tão importante? A explicação é simples: para mais de uma geração de marxistas brasileiros, Eric Sachs não era um desconhecido. Sob os nomes de Eurico Mondes, Eurico Linhares ou, especialmente, Ernesto Martins, seus textos foram passados de mão em mão e, durante pelo menos 25 anos, sustentaram uma das mais originais correntes da esquerda brasileira, associada ao extinto grupo “Po-lítica Operária”. Mas somente agora sua obra pode ser colocada, abertamente, à disposição de todos os interessados em conhecer as diversas vertentes do marxismo no nosso país. Eric Czaczkes Sachs não era brasileiro: nasceu em Viena, em 1922. Filho único numa família judia, proveniente de Tchernowitz (fronteira da Áus-tria-Hungria com a Rússia até 1919), seu pai era membro destaca-do da Social-Democracia austríaca e sua mãe, nascida na Rússia, conhecia de perto o Partido Bolchevique, dada a circunstância de

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Título Provisório 269

ter um irmão militante nas fileiras do partido russo. A trajetória pessoal de Eric no Brasil seria assunto para uma publicação à par-te, fugindo aos limites dessa apresentação. Bastaria aqui lembrar que, durante a década de cinquenta, exerceu grande influência na preparação ideológica de uma corrente de pensamento, trabalho que culminou, em 1960, na convocatória para o 1º Congresso da Organização Revolucionária Marxista Política Operária. Estudio-sos da esquerda brasileira, como Daniel Aarão, situam na funda-ção da Política Operária, em 1961, um marco inicial da história da nossa nova esquerda. Em 1969, Eric foi preso pelo DOPS carioca. Conseguindo fugir da prisão, refugiou-se na Embaixada da Áustria e, em 1970, pela quarta vez em sua vida, teve que abandonar um país. Mas dessa vez tratava-se do país que, voluntariamente, esco-lheu como seu.

Na sua volta ao Brasil, em 1980, integra-se no Partido dos Trabalhadores, no Rio de Janeiro. Eric morreu no Rio de Janeiro, em 9 de maio de 1986. Obviamente, alguns ex-militantes do MEP, eventuais leitores, talvez estejam lendo sobre suas origens pela pri-meira vez agora.

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Perguntas sem resposta

O verdadeiro caminhopassa em cima de um fio

esticado, não no espaço, masno rés do chão: parece

destinado a fazer tropeçar,mais do que a ser percorrido.

Franz Kafka

Entrevista com o Prof. Jayme Landmann

TÍTULO PROVISÓRIO: Na época em que o sr. passou a le-cionar na Ciências Médicas – favor especificar o ano –, como a escola se encontrava, e que críticas o sr. faria à FCM como instituição de ensino?JAYME LANDMANN:TP: Sofreu a Ciências Médicas mudança marcante após a incor-poração do Hospital Geral Pedro Ernesto à Universidade. Na luta pelo hospital a participação docente e a estudantil foram de-cisivas. O que foi a invasão do hospital? Como foi a mobilização estudantil para conquistá-lo?JL:TP: A grande mobilização estudantil que ocorreu na escola em 1968 assentou-se sobre uma crítica veemente ao ensino. Em pri-meiro lugar, gostaria de saber o que o sr. considera positivo na-quela crítica. Em segundo, até que ponto o sr. acha importante a participação crítica do estudante nos órgãos colegiados?JL:TP: A UERJ construiu seu campus universitário de acordo com a estética da segurança nacional – grande e vazio. A partir de então,

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Título Provisório 271

as verbas destinadas à FCM foram se tornando cada vez mais limitadas. Por orientação da reitoria, a escola passou a procurar gerar próprios recursos para seu funcionamento. O sr. estabele-ceria algum relacionamento entre este fato e a queda do nível de ensino observada após 1969?JL:TP: O convênio do Hospital com o INPS foi uma iniciativa do Sr. e propiciou a modificação da qualidade dos doentes interna-dos no Hospital de Clínicas e uma prática médica mais condizen-te com as exigências da comunidade. Esta medida visava tornar o Hospital economicamente mais independente em relação à Universidade. O Hospital, daí para frente, procurou gerar suas próprias divisas. Gostaria de saber se esse objetivo foi plenamen-te atingido e que implicações esse gesto lançou sobre o ensino?JL:TP: Na minha forma de ver, o convênio passou a exigir do corpo clínico um compromisso com a produção de atendimento médi-co que inexistia anteriormente. Este compromisso desencadeou um divórcio quase completo entre o ciclo básico e o profissional. Como o sr. explicaria a fragmentação institucional que a escola sofreu – a universidade se separou da Faculdade e o Hospital em busca de uma autonomia se divorciou da escola?JL:TP: Atualmente, à semelhança do que aconteceu com a Facul-dade de Ciências Médicas, estudantes de algumas escolas parti-culares (Medicina de Teresópolis, Medicina de Petrópolis, Souza Marques, Faculdade de Medicina de Nova Iguaçu) se mobilizam para conseguir uma melhor estrutura para as suas escolas. Como membro da Comissão de Ensino Médico do MEC, de que ma-neira o sr. avalia a repetição cíclica deste fenômeno?JL:Ao ler as perguntas, o Prof. Jayme Landmann tergiversou:– Uma entrevista não se faz assim; você não pode ser precon-cebido. Aqui, por exemplo: O Hospital não foi invadido; quem veio para o Hospital fui eu, o Prof. Piquet e o Prof. Ângelo Faila-ce. Não houve participação docente nem estudantil. Sofreu a Ci-ências Médicas... Não houve crítica ao ensino, aquilo foi político, foi o Salgado e a turma dele que organizaram...– É isto que eu quero que o sr. responda, professor.– Tá bom, eu vou fazer isto.Mais tarde, ao encontrá-lo perto dos livreiros, a pergunta:– Professor, e o meu negócio?

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– O fim do ano, as festas, você sabe como é. Eu vou responder quando tiver um tempinho...

O site Med On Line entrevistou o Prof. Jayme Landmann em sua residência na Barra da Tijuca, com a participação na en-trevista do Dr. Sérgio Fernando dos Santos, um ex-aluno e grande admirador do nosso entrevistado. Ao falar sobre o problema do gerenciamento do Hospital Universitário Pedro Ernesto, o profes-sor declarou o seguinte:

A única coisa que nós não conseguimos fazer aqui, e que ne-nhum hospital conseguiu foi ter um sistema americano de ge-renciamento, em que o hospital, ao mesmo tempo em que ele é público, ele é privado. Isso é que seria a grande saída, porque lá nos Estados Unidos, os doentes privados e os doentes públicos internam no mesmo hospital. O doente privado faz pressão para o hospital ser melhor, porque é aquele mesmo hospital que ele vai ter que recorrer e, lá nos Estados Unidos, o doente privado dá muito dinheiro para o hospital. Eu trabalhei um tempinho no New York Hospital que era da Cornell e o Reitor se gabava da existência de uma sala chamada de sala azul. Mas o que é que tem essa sala azul de especial? Ele disse: “Nessa sala azul eu recebo o doente rico que se interna aqui no hospital. Então quando ele tem alta eu não mando funcionário cobrar dele não. Eu é que vou bater o papo. O doente rico, em vez de pagar a conta só do hospital, ele faz doações grandes, não é?”. Com isso o hospital têm um suplemento de verbas enorme. O Mass lá de Boston, que é da Harvard, publica anualmente um livro de doações ou de doadores que é maior do que a lista telefônica aqui do Rio. São milhares de doadores e isso sustenta o hospital, dá um nível de maior independência. “Aqui no Brasil, não; aqui o hospital depende do governo.”

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Título Provisório 273

Mentores do 1º número do jornal TÍTULO PROVISÓRIO

e democracia à brasileira

O “eterno presente” é, em parte, resultadoda quebra de relações entre as gerações e,

por outro lado, consequência da sociedadede consumo. A desvantagem é que é impossível

que as pessoas entendam a situaçãoem que vivem sem que saibam como as coisas

surgiram, antes. A maioria das pessoasna verdade gostaria de estabelecer talcontinuidade entre elas e o passado.

Não é fácil estabelecer tal continuidade hoje,porque as mudanças do mundo têm sido tão rápidas

e tão profundas que a experiência de vida damaioria das pessoas é marcada pela descontinuidade.

Eric Hobsbawn

Fabio Daflon se reuniu com Claudio da Rocha Roquete, ex-aluno sem conclusão do curso, e Paulo Maurício Campanha Lourenço na varanda da casa do Paulo. Éramos estudantes do 5º ano de medicina. Quem escreve este livro nunca publicou uma linha no jornal, porque quis fazer uma reportagem sobre a morte do estudante Luiz Paulo da Cruz Nunes e se perdeu na comple-xidade da história. Só agora, mais de 40 anos depois, em uma segunda edição do livro Título Provisório, contada de forma menos incompleta, isso foi possível.

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Romero Lascasas Porto dá nome ao Laboratório de Hel-mintologia Romero Lascasas Porto, Disciplina de Parasitologia, Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia, Fa-culdade de Ciências Médicas, UERJ, Rio de Janeiro. Foi uma lide-rança estudantil inconteste, um homem extraordinário, que segun-do o Galileu serviu de inspiração para todos. Infelizmente, faleceu em um acidente de automóvel após um plantão, devido ao cansaço e à fatalidade. Tinha a flexibilidade de lidar bem com propostas de outras pessoas desde que para o enriquecimento e sucesso dos movimentos dos quais participou. Amado, querido, seguido não porque houvesse nele algo de messiânico. Mas sim uma revolta sincera, seja como estudante, seja como médico residente quando no início da década de 80 participou do Comando de Greve dos Médicos Residentes do HUPE-UERJ.

O ex-aluno Oziel Guimarães Riscado foi o responsável pela ótima diagramação do jornal. Sujeito de poucas palavras, sempre participante e presente nas reuniões do Conselho de Representan-tes dos alunos.

Paulo Maurício Campanha Lourenço pôde dar um depoi-mento mais amplo no qual diz:

As pessoas são a parte das lembranças mais significativas da épo-ca. Eu adorava jogar futebol e a política também era uma ativi-dade de grupo: participação! Romper o isolamento do individua- lismo “mesquinho e interesseiro”. Dar um sentido abrangente à vida. E a motivação eram as pessoas. Os trabalhadores. Acho que por isso escolhi a medicina, a saúde pública, a epidemiologia, a medicina do trabalho, e ser professor. Ou quem sabe? Foram as pessoas que me levaram nessa direção. Era parecido com com-partilhar a alegria de um gol num jogo coletivo em que cada um deu o passe certo, criativo e original.

Título Provisório. Nenhum título era bom o bastante para nomeá-lo. Ou não sabíamos ao certo onde queríamos chegar (ou nos deixariam chegar). O CASAF e o DCE. Autonomia, participa-ção, emancipação. O título era provisório, o futuro decidiria. Paulo

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Maurício propôs o nome do jornal e o Oziel foi o diagramador. Depois veio o teatro, os esquetes, o ERDA, a eleição do DCE. A agitação e propaganda ficaram mais dinâmicas e alegres. E o pas-sado surgiu porque surgiram novas pessoas e outras foram embora e ficaram na lembrança.

“A homenagem da turma feita a mim e à Luiza Maria Spineti foi importante por nos permitir compartilhar com os colegas a alegria da formatura.”

Paulo Maurício Campanha Lourenço junto com Luiza Maria Spineti, que fizera um discurso muito inflamado na concentração maciça pelas liberdades democráticas quando milhares de estudan-tes se concentraram na PUC-RJ, foram homenageados pelos alunos da Turma FCM-1978, mas andaram sumidos uns tempos, e só re-ceberam seus diplomas de médicos ao se formarem com a Turma FCM-1979, e não com sua turma original.

Cláudio da Rocha Roquete, José Mendes Ribeiro e Maria de Fátima Martins Pereira foram alguns dos últimos presos políticos do Brasil entre 1964 e 1985. Ficaram 10 dias incomunicáveis, mas, exceto pelos maus-tratos da tortura banalizada, foram respeitados seus demais direitos cidadãos e logo foram soltos. Nenhum pro-fessor da UERJ manifestou repúdio àquelas prisões. Quanto ao Cláudio da Rocha Roquete, aquele que não frequentava as ativida-des do Clube, em seu depoimento declarou que “o que nós dese-jávamos era mostrar para a ditadura que ainda existia uma organi-zação revolucionária dentro da faculdade. Não foi preciso utilizar a estrutura do MEP, porque Ricardo Aquino ofereceu a gráfica de um cunhado”. Cláudio já ocupou o cargo de Secretário adjunto da Secretaria Extraordinária de Superação da Extrema Pobreza do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), hoje ainda trabalha em prol de melhoria do Índice de Desenvol-vimento Humano das populações. Não chegou a concluir o curso de medicina.

Quando a Fatinha (Maria de Fátima Martins Pereira), já li-berta, perto de nós, andava pela rua perto do hall dos livreiros,

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o Professor Américo Piquet Carneiro caminhava em direção ao prédio de cadeiras básicas.

Interrompeu o passo e perguntou se ela estava bem. Disse: “Venha cá um instante”.

Tentava ser afetuoso, mas a aluna retesou e não quis se aproximar.

Segundo Gulnar Azevedo e Silva, o principal mentor do jor-nal Título Provisório foi o militante do MEP Claudio da Rocha Ro-quete. Foi incontestável a importância do TP para a reabertura do CASAF. Gulnar, ao ser aprovada para fazer residência em epide-miologia na Universidade de São Paulo, como à época era exigida uma carta de apresentação, foi solicitar ao Diretor da Faculdade, Prof. Ítalo Suassuna, que a recomendasse.

“Não”, respondeu Suassuna, “você participou daquele movimento.”

Gulnar, que nunca negou sua participação no MEP, levou para São Paulo carta de recomendação assinada pelo Prof. Amé-rico Piquet Carneiro. Na USP, participou da Associação Nacional de Médicos Residentes, não sabendo prestar informações sobre a primeira gestão do CASAF reaberto porque se voltou mais para o movimento de internos e de médicos residentes.

Paulo Maurício Campanha Lourenço e Luiza Maria Spinetti faziam a ponte entre o movimento, e Claudio mais na retaguarda, não só por estilo, mas porque se sabia visado.

Após o lançamento da 1ª edição do livro Título Provisório, insatisfeito com o seu conteúdo, o Professor Jayme Landmann ameaçou processar o autor, que respondeu de forma agradecida: “Se houver processo vai ajudar o livro a vender muito”.

Dois ou três dias depois do lançamento do livro no auditó-rio do HUPE-UERJ, em um apartamento de segundo andar, no bairro do Andaraí, ao chegar a sua casa de madrugada, o autor viu a fechadura arrebentada. Passou direto da porta e subiu até os andares superiores onde, em um hall, aguardou amanhecer, ouvir barulho de vizinhos, sentir cheiro de café, antes de abrir a porta e

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Título Provisório 277

ver a sua quitinete vasculhada. Como não havia nada, nem livros, porque o único “delito” tinha sido pensar a história, levaram o di-nheiro arrecado com as vendas dos exemplares do Título Provisório, cujo valor afinal se tornou absolutamente simbólico.

Em 31 de dezembro de 1978, à meia-noite, o Brasil saiu de uma das mais longas noites de sua história. Dez anos e dezoito dias depois de sua edição, o Ato Institucional n. 5 – que suspen-deu liberdades individuais, eliminou o equilíbrio entre os poderes e deu atribuições especiais ao Presidente da República – encer-rava sua existência.

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Médicos residentes e internos em greve

A objeção, o desvio, a desconfiançaalegre, a vontade de troçar são

sinais de saúde: tudo o que éabsoluto pertence à patologia.

Friedrich Nietzsche

Essa greve foi acusada pelo Dr. Jayme Landmann de ter sido uma greve política; e foi, não apenas pela circunstância de ter sido uma greve nacional, a primeira greve com tal nível de am-plitude ainda no governo do General Ernesto Geisel. Quando a Associação dos Médicos Residentes do Estado do Rio de Janeiro (AMERERJ), liderada por Paulo Gadelha, chegou a realizar uma grande reunião no auditório da Associação Brasileira de Imprensa, também com a presença e o apoio do Presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, Dr. Rodolpho Rocco. Porém a base da mobilização foi assentada em reivindicações justas – o que se discutia nas assembleias era como conseguir o reivindicado.

Leiamos o que disse o líder condutor da primeira assembleia realizada na Ciências Médicas, o ex-aluno Ricardo Vieira Elias:

Aquela greve surgiu como resposta a uma situação de profun-da injustiça, pois o treinamento que recebíamos como Médicos Residentes era ministrado durante o trabalho que executávamos como Médicos, legalmente inscritos no Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro. E, apesar de trabalharmos como Médicos, ganhávamos uma bolsa ridícula, algo como R$ 300,00

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mensais... Havia movimentos reivindicatórios nos outros esta-dos, basicamente com o mesmo conteúdo e embasamento jurí-dico que o nosso. É necessário lembrarmos que para o perfeito entendimento do Movimento dos Médicos Residentes, que o Brasil daquela época ansiava e lutava pela restituição da Demo-cracia. A Ditadura dava alguns sinais de esgotamento político, e os Médicos foram, naquela ocasião, uma das categorias sociais que mais contribuíram para pôr em evidência os graves equívo-cos cometidos pelo Regime Militar, e suas consequências para o cotidiano da população brasileira.O movimento foi bem conduzido e a proposta de greve foi assu-mida por quase a totalidade dos colegas. A reivindicação central era em relação à nossa remuneração, pois éramos médicos traba-lhando como médicos, submetidos a horários, com tarefas defi-nidas e sujeitos à subordinação funcional, isto é, obedecíamos a alguém. Isso caracterizava o vínculo trabalhista. A CLT estipulava o salário mínimo dos médicos na base de três salários mínimos gerais. Após aquela bela Assembleia encaminhamos à Direção do Hospital a pauta de reivindicações e a decisão de greve.Houve algumas situações anedóticas, pois os docentes tiveram que dar conta do trabalho! E era muito trabalho!... Mas a popula-ção colocou-se desde o início favorável às nossas reivindicações. Penso também que a cobertura jornalística foi decisiva para que ganhássemos os corações e mentes dos nossos pacientes. A com-paração com os movimentos atuais da categoria médica necessita alguns cuidados, principalmente aqueles relacionados às diferen-tes conjunturas políticas.Entre residentes líderes de outros hospitais cariocas, vários nomes não podem ser esquecidos, apesar de estarmos na his-tória da Ciências Médicas; são eles: Walter Mendes, Mauro Brandão, Roberto Medronho, Rosângela Belo e Maurício Vie-gas, entre outros.

Os principais líderes da greve no HUPE-UERJ foram Ri-cardo Vieira Elias e Romero Lascasas Porto (oradores e condu-tores). Participaram intensamente do movimento Márcio Neves Boia, Gulnar Azevedo e Silva, Ângela Jourdan, Alan Eduardo da Silva, entre outros. O líder nacional do movimento dos médicos residentes foi o Dr. Paulo Gadelha, que, na atuação política, ocupa-va a Presidência da Associação Nacional dos Médicos Residentes

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(ANMR), a Presidência da Associação dos Médicos Residentes do Rio de Janeiro (AMERERJ) e ao mesmo tempo, ainda na resi-dência, fazia Mestrado na Medicina Social. Isso deve ter sido uma experiência muito rica, porque uma série de questões foi debatida no Instituto de Medicina Social, como logo aconteceu sobre o mo-delo do Sistema Único de Saúde.

Parados os hospitais, sem os residentes, os staffs eram quem assegurava o atendimento. Ao mesmo tempo uma situação difícil reprimir médicos, a coisa do jaleco branco. Têm várias situações do movimento de residentes muito dramáticas nesse sentido. A primeira manifestação na frente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), o Partidão era contra, mas o movimento teve tendência mais de radicalização.

O PCB achava que era uma provocação e que o pessoal ia ser reprimido. E aí teve nossa pureza ingênua, heroica, sei lá, as pessoas iam ao local como a um compromisso inadiável.

Paulo Gadelha, com uma porção de panfletos nas mãos, viu um colega dele passando pela assembleia e o deixando lá sozinho. Gadelha subiu as escadas da Assembleia e não tinha ninguém. Em pouco tempo havia uma tropa a fazer o cerco.

De repente, começou a chegar gente, e, conforme mais pes-soas chegavam, a tropa começou a dizer para saírem todos dali. Só que havia um conflito entre o pessoal que era da repressão, pois havia um capitão e um coronel, que era mais ligado à segurança da ALERJ. Aí o coronel e o capitão discutiram muito. O Deputado Cláudio Moacyr de Azevedo era o Presidente da Assembleia Legis-lativa do Rio de Janeiro. “Conseguimos fazer a manifestação”, diz Gadelha. Nosso contingente paralisou a repressão. Começamos a falar, distribuir panfletos, e o cara: “Não pode, não pode! Não pode reprimir a manifestação”.

O Capitão dizia: “Atenção, tropa! Preparar para o comba-te!”. E o Coronel: “Não, não, tropa. Volta!”. Naquele momento lá... Por outro lado, as autoridades universitárias não davam sinais de querer abrir negociação.

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A última assembleia geral dos médicos residentes do Rio de Janeiro aconteceu na mesma Associação Brasileira de Imprensa (ABI), seu imenso auditório estava lotado, e na mesa encontrava-se o líder do movimento, Paulo Gadelha, e o recém-eleito Presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro (SINMED-RJ), Pro-fessor Rodolpho Rocco.

Circulava um boato de que no Hospital das Clínicas da USP os residentes estavam ameaçados de serem expulsos, caso não voltas-sem às suas atividades. As lideranças discursavam no sentido de man-ter forte o movimento. Estamos juntos aqui, vamos vencer esta luta.

Depois da reunião na ABI, todos voltaram para as suas uni-versidades ou faculdades. Na FCM-UERJ, houve uma assembleia com a presença de quase todos os residentes. A engrenagem do desgaste e da esperança tentava se ajustar à dureza da luta.

Antes da reunião, o comando da greve se reuniu na sala do CASAF, sem a presença dos estudantes. Éramos esperados no hall dos livreiros do HUPE-UERJ por um grande número de resi-dentes e internos. Mas não conseguíamos entrar no hospital nem sermos atendidos pelo Diretor, Professor Jayme Landmann.

O hospital esvaziado dos residentes e internos, que se soli-darizaram na greve, como já foi dito, obrigou que todas as ativi-dades de rotina e de plantão fossem executadas pelos professores e médicos do staff clínico. Todos desgastados, muitos raivosos. Exceção feita à professora e dra. Edna Cunha, médica pediatra que sabia tudo, ou quase tudo da pediatria, pessoa cuja vida foi dedicada às crianças, e que, por todo esse amor e competência, matava a saudade de seu próprio tempo de jovem médica em início de carreira, adorou nossa greve, que para a mestra foi apenas um período a mais para fazer o que ama – a pediatria.

Romero Lascasas Porto subiu na bancada de madeira de lei que obstruía, parcialmente, a entrada de todo aquele pessoal, caso não passassem apenas uns três de cada vez.

– Vamos nos reunir no anfiteatro para decidirmos o que fazer!

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Todos os residentes entraram, sentaram-se e ouviram a pro-posta feita pelo MEP de sairmos às ruas, convocando a população e distribuindo panfletos quando a caminho da reitoria, para ser-mos ouvidos pelo Reitor.

Houve um silêncio.– Tenho outra proposta: que saiamos ordeiramente para

tratarmos com o Reitor dos nossos problemas que já são muitos.Todos levantaram a mão, numa votação rápida e espontâ-

nea. A caminhada até a reitoria foi feita em tranquilidade.– Parabéns pela sua coragem de ter feito essa proposta –

disse-me Nilcéa Freire.Por sua vez, o ex-aluno do MEP, Claudio da Rocha Roquete,

reclamou:– Você estragou tudo!– Então todos estragaram, porque houve votação democrática.Meu amigo bolchevique arregalou os olhos e assentiu com

a cabeça uma concordância à minha reação.Na sala de espera do Reitor, nem a secretária estava presente.– O que fazer? – perguntou Romero.– Vamos voltar para o hospital, porque ele é nosso!– Vamos lá, pessoal!...A volta parecia uma daquelas maratonas olímpicas em que

os homens não andam nem correm, mas valia a retirada dos pés do chão. No retorno entramos pelo acesso aos ambulatórios à direita, por uma entrada mais larga, que dava acesso ao hospital. Na mesa, rumo ao Anfiteatro Ney Cidade Palmeiro, apenas um funcionário para ver passar, assustado, uma multidão decidida e jovem. Re-tomávamos o anfiteatro. Alguns membros do comando de greve esperavam que todos entrassem. Naquele momento apareceram os professores Jayme Landmann e Ítalo Suassuna.

Ao passar, o Landmann, dedo na minha cara, disse:– Vou expulsar você!Não seria a única vez que ameaçaria aquele aluno. Land-

mann e Suassuna sentaram-se à mesa do púlpito. Todos ansiosos

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por uma definição do movimento. Paulo Gadelha tentou fazer uma exposição de motivos da greve, mas o Diretor do Hospital desarmou-o:

– Eu concordo com tudo que você diz.Vivaldo de Lima Sobrinho, psiquiatra, presente à reunião,

comentou baixo que o que acontecia na tática usada pelo diretor do hospital era desmobilizar o interlocutor por uma identificação indesejada com o oponente. Suassuna se manifestou:

– Isso precisa acabar, é uma questão de autoridade.– Pois é essa autoridade que estamos pondo em questão –

replicou a residente Angela Jourdan.Landmann e Suassuna trocaram olhares, levantaram-se e

saíram.– Como é difícil vencer a repressão – disse Gadelha, ouvido

agora apenas por quem estava perto.– Eles estão em um jogo de intimidação.– Precisamos lutar contra o avassalamento da universidade.Palavras de ordem se sucediam. Mas as lideranças, de fato,

não sabiam mais o que propor aos grevistas, apesar da importân-cia política da greve e de toda a sua justeza contra a proletariza-ção da medicina.

A greve terminara, mas ninguém era capaz de decretar o seu final. Havia o medo sobre os boatos da repressão no Hospital das Clínicas da USP. Súbito, entrou na assembleia o Professor Rubem David Azulay, dermatologista e membro da Academia Nacional de Medicina. Não sentou. Falou pouco, com certeza, não mais que dois minutos:

– Vocês deviam acabar com isso. A residência é importante, não vai ser por uns cruzeiros a mais que os diretores vão criar casos com vocês. Os professores estão cansados dos plantões. Vim aqui para desarmar os ânimos de vocês, bons alunos, etcetera, etcetera, etc.

Silêncio.– Pensem bem, pensem bem, afinal, essa casa é de vocês

também.

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Não havia articulação entre as lideranças para sugerir aos diretores um retorno honroso aos trabalhos e estudos, uma comis-são que se reunisse com as autoridades professorais para negociar o fim da greve com algum ganho concreto. Ainda que fosse com uns quatro ou cinco do comando de greve e com o Presidente da AMERERJ, também residente da Ciências Médicas.

– Quem é a favor do fim da greve?O ódio só é sensato quando é sincero. Todos juntos levan-

taram o braço pelo fim da greve, para, no dia seguinte, reencontra-rem os professores com raras trocas de hostilidade, mesmo porque ambos se necessitavam mutuamente para o trabalho e tudo con-tinuou normalmente, como se nada tivesse morrido na véspera.

Segundo Jayme Landmann, a greve terminou da maneira como relata:

... houve uma greve de residentes e aí, depois de um certo tempo, os médicos do hospital ficaram com raiva dos residentes porque, havendo uma greve dos residentes, sobrou muito serviço pra eles, então ficaram contra. E eu fiz uma reunião com os médicos para saber quais seriam as atitudes que a gente ia tomar e aí veio o representante do sindicato dos médicos do Conselho Regional e eu disse: “Não, essa reunião é nossa, é só dos médicos, vocês não podem participar” e aí eles ficaram com raiva porque que-riam politizar o movimento, mas eu acabei com a greve porque disse: “Bom, quem não quiser trabalhar vai embora, então vocês assinam aí um papel”.

Nunca nenhum residente ou interno assinou qualquer papel para retornar ao trabalho, algo feito no dia seguinte.

Quando lançada a 1ª edição do livro Título Provisório, um re-sidente da nefrologia, que comigo nunca conversara nada, passou e disse:

– Dr. Landmann disse que vai processá-lo.– Será uma ótima propaganda para o livro, agradeça ao pro-

fessor por mim.

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Por causa da greve, a turma da FCM-1978 terminou sua re-sidência médica somente em fevereiro de 1981. Tempo suficiente para que fosse chamado para uma reunião entre o Professor Fer-nando Bevilacqua, então Diretor da FCM-UERJ, e um grupo de alunos com projeto de fazer um movimento para ser aumentado o número de vagas na escola. Para essa mesma reunião os estudantes tinham convocado o Professor Jayme Landmann.

– Dr. Landmann disse que não comparece hoje aqui porque você não tem nível para debater com ele – sentado na mesa junto comigo, recebi esse recado do Diretor do HUPE-UERJ, que ele tentou transformar em Hospital das Clínicas da UERJ, para apagar o nome do excelente político que foi o Dr. Pedro Ernesto, mas creio tenha sido sua real intenção dar um status público diferencia-do ao hospital.

– Diga ao Diretor do Hospital, por favor, que, partindo dele, o que disse de mim considero um elogio.

Um estudante pediu a palavra.– O que você acha de fazermos um movimento para au-

mentar o número de vagas aqui da Ciências Médicas?– Acho desnecessário e sou contra, porque a faculdade

não comporta um número maior de alunos do que os que já estão em curso.

Imediatamente a reunião findou.Ao sairmos no corredor, bastante efusivo, o Dr. Bevilacqua,

que transmitira o recado do Laudmann, me deu um forte abraço.

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Homenagem ao Professor Américo Piquet Carneiro

Quero pensar não mais como médico,considerar um homem inteligente não

como os médicos consideram uns aos outrosinteligentes ou menos inteligentes

– sempre engrandecendo, de maneira geral.

Pedro Nava

O primeiro dia do 43º Congresso Científico do Hospital Universitário Pedro Ernesto começou com uma homenagem ao médico Américo Piquet Carneiro, prestado pelo também médico Moyses Szklo da John Hopkins University e da UERJ. Durante a solenidade, Moyses, que foi aluno de Carneiro, falou sobre a vida de um dos nomes da história do HUPE, alguém que reunia huma-nismo a conhecimento científico. “Ele não foi um médico tanto pelos remédios que sabia receitar, mas pelas palavras que dizia aos seus pacientes”, afirmou.

Para o palestrante, um dos diferenciais de seu mestre era a forma de lidar com os pacientes já que, segundo ele, Piquet via como objetivo principal do médico o conforto físico e psicológico do paciente: “Ele procurava tocar os pacientes com as mãos aque-cidas. Sabia que eles estavam à procura de alguma coisa quando chegavam a seu consultório”, relembrou. Uma prova deste jeito de encarar a prática médica seria o Instituto de Medicina Social da UERJ, criado pelo falecido médico durante sua gestão como

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diretor da Faculdade de Ciências Biomédicas. Lá Piquet pôde dei-xar a sua marca, ao implementar a concepção de que para com-preender um paciente em sua totalidade é necessário conhecer seu contexto familiar e social. “Piquet compreendeu que as medicinas humanista e científica são compatíveis e reciprocamente necessá-rias. Ele era antes de tudo um visionário”, frisou.

Moyses Szklo ainda mencionou outra herança deixada por Piquet à comunidade: a Universidade Aberta da Terceira Idade (Unati). Ele foi um dos idealizadores do projeto, mas infelizmente não conseguiu ver sua ideia sair do papel: morreu antes de a Unati ter sido aprovada pelo Conselho Universitário. Durante sua car-reira de médico, demonstrou interesse pelos problemas de enve-lhecimento, que seria um dos dilemas do futuro. Piquet acreditava que tal assunto deveria ser compreendido dentro da abordagem multidisciplinar, que envolvesse vários saberes como a psicologia, a sociologia, a educação, a antropologia – daí a necessidade de for-talecer a articulação entre os governos e as universidades15.

15 D’ AULIZIO, Luciana. Hupe da UERJ homenageia Américo Piquet Car-neiro. Congresso de envelhecimento inicia lembrando o criador do Instituto de Medicina So-cial. 23 de agosto de 2005. Artigo publicado em: <http://www.agenc.uerj.br/agenciauerj/htmmaterias>.

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大字报 – Informativo Dazibao: De As Cumplidas até As Figueiríadas

Sábio é o homem que chega a terconsciência da sua ignorância.

Aparício Torellly, o barão de Itararé

O encaminhamento da candidatura de João Batista Figuei-redo à Presidência da República não foi um ato circunstancial, mas um projeto traçado desde o início do governo anterior. Com efeito, o general Ernesto Geisel, ao assumir a Presidência, cinco anos antes, representando, sobretudo, a ala moderada das Forças Armadas, tinha a função precursora de realizar a abertura política, a fim de que seu sucessor cuidasse da segunda etapa, qual seja, o processo de redemocratização.

***

Já em sua primeira entrevista à Folha de S.Paulo, ainda can-didato, escandalizou a opinião pública, defendendo as eleições in-diretas à Presidência e reforçando sua opinião com um exemplo:

Veja se em muitos lugares do Nordeste o povo pode votar bem se ele não conhece noções de higiene? Aqui mesmo em Brasí-lia, eu encontrei, outro dia, num quartel, um soldado que nunca escovara os dentes e outro que nunca usara um banheiro. E por aí vocês me digam se o povo já está preparado para eleger o

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Presidente da República?. (Na campanha das diretas, uma adoles-cente ironizou a frase usando um cartaz que dizia: “Já sei escovar os dentes; quero votar pra Presidente.”)

O Caso Riocentro levou o Presidente Figueiredo a um en-farte, um dos Ministros do STM (Supremo Tribunal Militar) que votou contra o arquivamento do caso foi o Almirante Julio de Sá Bierrenbach, autor do livro Riocentro: quais os responsáveis pela impunida-de? Sempre deixou claro que não foi o Supremo Tribunal Militar que se desmoralizou, mas alguns ministros, sim16. Em jargão militar, as Organizações Nacionais Permanentes não se desmoralizam, mas os homens responsáveis por sua operacionalidade, sim!

Os responsáveis pela tentativa de Atentado Terrorista ao Rio-centro jamais foram punidos, apesar de o fato ter ocorrido na noite de 30 de abril de 1981, por volta das 21 horas, quando ali se realizava um show comemorativo do Dia do Trabalhador, durante o período da dita-dura militar no Brasil. Isto é, foram beneficiados pela anistia, apesar de o crime ter ocorrido após a promulgação da Lei n. 6.683, promulgada pelo Presidente Figueiredo em 28 de agosto de 1979, que anistiava crimes políticos e conexos (aqui incluídos oportunisticamente tortura, estupro, execuções dentro de quartéis por agentes do Estado, diga-se um estado inconstitucional e fora da lei em si mesmo).

No livro Mario Lago – Boemia e política, de Mônica Velloso, a autora transcreve poema satírico de Mario Lago sob o título “Fi-gueiríades”, do capítulo “O militante”, que é uma fonte funda-mental para um estudo geral do movimento estudantil no Brasil. Transcrevemos abaixo alguns trechos do poema “Figueiríades”:

Os autores das grandes gargalhadas,que espremem o bestunto em seu ofíciode distrair o povo com piadas(visando às vezes tanto de artifício

16 BIERRENBACH, Julio de Sá. Riocentro: quais os responsáveis pela impunida-de? Rio de Janeiro: Domínio Público, 1996.

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pra não terem suas obras censuradas),veem baldado todo sacrifício,pois num terreno em que eram imbatíveis,surge agora rival dos mais temíveis.Cale Ziraldo a criatividade;Emudeça Jaguar sua ironia;Henfil mate a Graúna sem saudade;fique Max Nunes na cardiologia;esqueça Anísio a versatilidade;Jô emagreça de melancolia,que são todos de humor triste arremedodiante do humorista Figueiredo.

O poema “Figueiríades”, de Mario Lago, no juízo de Carlos Drummond de Andrade, foi composto “na melhor tradição da sátira poética brasileira”17. O ex-Presidente Ernesto Geisel arre-pendeu-se de ter indicado o General Figueiredo para seu sucessor. Nota-se que a redemocratização foi eivada de humor, e, talvez, o humor e a chacota em relação aos homens públicos sejam pontos essenciais à democracia.

17 VELLOSO, Mônica Pimenta. Mario Lago: boemia e política. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 252-257.

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大字报 – Informativo Dazibao: Perfil de Américo Piquet Carneiro

O difícil na vida é que no homem coabitam a razão e a paixão e ele

tem de alojar as duas em si o melhor possível. Do mesmo modo, na repre-

sentação poética o difícil é isto:estabelecer uma harmoniosa transição

do apaixonado para o racional.

Goethe

Michel Assbu, conceituado nefrologista da escola uerjia-na, postou no grupo de Facebook da Associação de ex-alunos da FCM-UERJ, Alumni, uma cópia escaneada de crônica do Casteli-nho (o saudoso jornalista Carlos Castelo Branco) sobre Américo Piquet Carneiro, sob o título “Um velho médico preocupado com o Brasil”, o recorte do jornal veio sem data e foi impossível ao autor encontrar a datação, pelo valor do documento e do médico. A íntegra é publicada abaixo:

O Dr. Américo Piquet Carneiro, por quem se reza hoje a missa de sétimo dia, foi um médico de muitos clientes e de muitos amigos. Exerceu a medicina na linha dos velhos mestres huma-nistas, cuja maior expressão foi Miguel Couto. Aplicado e atento, modesto e bom, um santo homem, desse tipo de médico que mal sobrevive nas grandes cidades. Professor da UERJ, atendia a numerosa e variada clientela, sem jamais abandonar o gosto da pesquisa que desenvolveu até os últimos dias.

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Entre seus clientes figuravam pessoas notáveis, como Dom Eugênio Sales, os monges do mosteiro de São Bento e os ad-vogados José Nabuco e Dario de Almeida Magalhães. Era uma daquelas pessoas a quem José Luiz de Magalhães Lins telefonava pelo menos uma vez por semana tivesse ou não consulta a fazer. Apesar de assistir a muitos homens ricos não gostava de cobrar e ainda presenteava seus clientes com livros que escolhia diaria-mente numa livraria da Tijuca, onde sempre morou. Estimulava o interesse da visão católica pelos problemas atuais. Era maritai-nista e evangelizador.Havia, no entanto, um cliente que o perturbava: o Brasil. So-fria e se angustiava com os problemas do país. No regime mi-litar, estreitada a área de debates, reunia à noite no consultório pequeno número de clientes e amigos aos quais submetia uma agenda especial. A política nuclear, por exemplo. Ou as institui-ções. Participavam físicos, advogados, alguns generais e coronéis infartados e já na reserva, que angustiados com sua marginali-zação interna, faziam sua terapia contra a angústia. De alguns desses serões também participei, com meus males pessoais de que tratou por vinte anos e com minha admiração por aquele extraordinário brasileiro.

Liderança católica e progressista, o Professor Américo Pi-quet Carneiro recebeu também manifestação do clero, na coluna Opinião, página onze, datada de treze de janeiro de 1993, do Jornal do Brasil, onde Dom Lourenço de Almeida Prado escreveu a se-guinte nota:

Os homens públicos, com ou sem valor, são celebrados com grandes manifestações externas. Os homens como Piquet, si-lenciosos comunicadores, no espírito que são como se bem diz os verdadeiros construtores da história. São reverenciados pelo silêncio, até nos momentos mais decisivos. As comunicações de almas são as mais profundas, mas as menos notórias. Convinha a Piquet morrer na vigília do Natal, quando os anjos anunciavam a pobres e desprezados pastores o Menino nascido numa estre-baria de Belém.[...]Numa época em que a medicina se esbarra nas contrapartidas de seus progressos, pois o antigo médico de família é substituído

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por uma equipe mais voltada para gráficos e imagens compu-tadorizadas e, com isso, distante do doente, que, sobretudo no estágio terminal, sofre o afastamento do último amigo, o médico que, desaparecida a possível eficácia do ativismo terapêutico, não se dispõe mais a perder tempo em dar-lhe atenção. O nosso caro Piquet Carneiro não só era um apologista do retorno do médico de família, mas continuava a ser esse médico, mais atuante pela amizade do que pelos medicamentos, que sabia oferecer.[...]Falamos acima da sua medicina da comunicação em amizade. Deixaríamos de assinalar uma feição do seu ser tranbordante, se não falássemos ao menos por rápida referência, da sua vocação de professor. Foi um mestre, um formador de discípulos. Deu ao ensino médico uma dedicação persistente. Não à glória da cátedra, mas ao encontro com os discípulos.18

18 DE ALMEIDA PRADO, Lourenço. Piquet Carneiro. Opinião, p. 11. Jornal do Brasil. Terça-feira, 13/01/1993.

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Cirurgia plástica e desdobramentos extrauniversitários

A moda passa,mas as cicatrizes ficam.

Yvo Pitangui

Quem trouxe Lamarca de São Paulo para o Rio de Janei-ro para a realização da cirurgia plástica foi o Dr. Luiz Roberto Tenório, já cassado pelo AI-5 e em “liberdade” vigiada. Tenório fazia parte do grupo de médicos que dava assistência aos guer-rilheiros do MR-8. No final, para outras organizações também! Então, antes de ir para a Bahia, Lamarca operou no Rio de Janei-ro. Quando o Dr. Miguel Olympio, Presidente do Sindicato dos Médicos, disse ao Dr. Afrânio Azevedo que seu paciente fora o Capitão da Guerrilha, o cirurgião-plástico passou uns tempos nos USA, mas não adiantou nada, foi processado de qualquer forma. No caso da cirurgia de Lamarca tinha sido escolhida a Casa de Saúde Santa Lúcia, na Rua Voluntários da Pátria, n. 435, Botafogo, Rio de Janeiro, onde atuava o Dr. Guilherme Romano, médico do General Golbery do Couto e Silva, porque assim o planejamento e ação permaneceriam insuspeitados.

Tenório relata que, com toda razão, Dr. Afrânio nunca mais lhe dirigiu a palavra e que se saiba também não dirigiu aos de-mais componentes do esquema médico. Outro caso clínico-cirúr-gico foi o do paciente Devanir (codinome?), sabe-se lá de qual

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organização! Necessitava de um exame de raios-X, visto ter sido baleado na perna com necessidade de verificar presença ou ausên-cia de fratura. Onde fazer a chapa?

Onde fazer a radiografia de um baleado? Pensou, pensou e só lhe veio à mente o nome do Dr. Adão Pereira, ortopedista, en-tão com cerca de setenta anos, que possuía um aparelho de raios-X em seu consultório. Comunista da velha guarda que era, solicitado, logo atendeu. O resultado foi que os Drs. Adão e Tenório logo tiveram que passar a comparecer toda terça-feira no prédio do Mi-nistério da Guerra, isto é, Palácio Duque de Caxias, para assinar o ponto. Algo muito aborrecido.

Um Major que guardava o livro de ponto, como é de praxe quando se vê um médico à toa, logo veio pedir um favorzinho:

“Dr. Tenório, meu filho precisa operar a fimose, está di-fícil marcar, seria possível o senhor arranjar um jeito de operar o garoto?”.

“Só se pudermos vir aqui apenas uma vez por mês...”“Isso a gente vê depois.”“Vou lá negociar com o grupo.”Mas Dr. Adão Pereira foi contra:“Nunca! Se precisar nós viremos aqui todo dia. Comunista

não negocia com fascista”.Almir Dutton (1932-2005) foi um médico entre os presos

que seriam trocados pelo embaixador da Alemanha, Ehrenfried Von Holleben, sequestrado pelo movimento Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Tal como os outros presos trocados por diplomatas, Almir perdeu a nacionalidade brasileira e andou pelo mundo afora com um passaporte fornecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) na condição de apátrida.

Carlos Lamarca foi morto em Pintadas, Município de Ipu-piara, interior da Bahia, em 17 de setembro de 1971, pela Equipe Cão do Major Nilton de Albuquerque Cerqueira.19

19 O Major Nilton de Albuquerque Cerqueira comandava em 1971 o Desta-camento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa

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Não era a primeira prisão do Tenório, mas das outras vezes ele ficara preso um, dois dias e fora logo liberado. Após a cirurgia plástica do ícone guerrilheiro20, Tenório foi encaminhado para o III Comando da Aeronáutica, onde foi torturado. Quando supor-tou os maus-tratos por ao menos um dia, a fim de que se des-mantelasse o serviço de pronto-atendimento aos clandestinos em luta armada contra a ditadura, essa resistência se mostrou inútil, porque logo outro preso foi colocado a sua frente, para, retirados os capuzes de ambos, dizer:

“Tenório, desculpe, eu disse tudo”.Passado muito tempo, esse homem, quando avistava Tenó-

rio, atravessava a rua, evitava-o, até que se viram cara a cara em uma antessala de cinema.

Impossível fugir.“Tenório, desculpe...”“O que é isso, rapaz? Venha cá, me dê um abraço, pô!”Reeleito para a Câmara em 1966 e 1970, em fevereiro de

1971 Ulysses Guimarães assumiu a Presidência do Movimento Democrático Brasileiro, com a renúncia do General Oscar Passos. A oposição passava a ter uma voz combativa a se opor ao regime.

Recentemente o juiz Guilherme Corrêa de Araújo, da 21ª Vara Federal do Rio de Janeiro, decidiu anular os atos da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça datados de 2007, que determi-navam pagamentos de indenizações para Maria Pavan Lamarca, viúva de Carlos Lamarca, e para seus dois filhos, e que definiram

Interna (DOI-CODI) de Salvador quando chefiou a Operação Pajussara, que resultou na morte de vários militantes de esquerda, inclusive do ex-capitão do Exército Carlos Lamarca.20 Foi o ex-aluno Luiz Roberto Tenório quem trouxe o Carlos Lamarca de São Paulo para o Rio de Janeiro a fim de se submeter a uma cirurgia plástica e, após o procedimento médico a que se submeteu, com uma identidade falsa de cabeleireiro homossexual, superado o pós-operatório, o também ex-aluno João Lopes Salgado participou da logística de condução ao interior da Bahia, onde foi executado. Motivo pelo qual veio a receber pensão sua viúva, Maria Lamarca.

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Título Provisório 297

o pagamento de uma pensão equivalente ao posto de General de brigada para Maria Lamarca.

Foi também determinado o ressarcimento ao erário federal dos valores já pagos à família. O juiz destacou ainda em sua sen-tença que “não se ignora inúmeros brasileiros tenham padecido de graves e injustificados sofrimentos no período em questão, mas para a superação dos traumas desses momentos históricos não foi prevista, de forma geral e abrangente, a concessão de reparação econômica ou moral”.

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298 Fabio Daflon

Entrevista de João Lopes Salgado à ASDUERJ

A luta armada foium equívoco,mas foi digna.

Jacob Gorender

ASDUERJ – Quais eram as reivindicações do movi-mento estudantil da FCM em 1968?

João Lopes Salgado – Foi muito voltado para as questões internas. Havia uma tradição na Ciências Médicas de um movi-mento que ia até onde não havia prejuízo para os estudantes. Ou seja, fazia-se uma greve por comida, por vestiário, por outras ques-tões quaisquer, e quando começava a haver um risco o Diretório recuava. A nossa posição foi um pouco diferente da posição dos diretórios anteriores. Eu e a Diretoria do CASAF achávamos que, quando se iniciava uma luta, um resultado tinha de ser conseguido. A luta não podia parar no meio, quando o risco apertava muito.

Havia algumas questões importantes naquele momento: uma era a famosa luta do vestiário. Exigia-se que entrássemos na Clíni-ca Médica de branco. Aí se trocava de roupa pelo meio da rua, o aluno passava pelo bar e chegava à clínica absolutamente fora de condições. Outra era a do currículo, bem mais profunda. Acháva-mos o currículo da universidade muito sem ligação com a realidade brasileira e a dos estudantes. Havia algumas pessoas que estudavam

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Título Provisório 299

o currículo, e tinham uma proposta de alteração, mas sem conse-guirem a mudança. Apesar de termos um Diretor maravilhoso, que era o Professor Américo Piquet Carneiro, com quem tínhamos uma abertura muito grande, mas o Conselho Departamental era conser-vador, não deixava a questão curricular ter um avanço.

ASDUERJ – A luta contra a Lei Suplicy já era pauta?JLS – Todas as questões ligadas à universidade, ao movimen-

to dos estudantes no mundo e no Brasil. Mas o que fez avançar mes-mo a luta dentro das Ciências Médicas foram questões específicas de reivindicações. Nós as entendíamos como fundamentais para que os estudantes participassem da luta maior. Eu acho que sem esse movimento reivindicatório nós não conseguiríamos engajar o mo-vimento das Ciências Médicas como engajamos, com a participação em lutas maiores, de rua, de passeatas no Centro da cidade, de luta contra a prisão do pessoal do Congresso da UNE em Ibiúna, que terminou no assassinato do Luiz Paulo da Cruz Nunes.

Então, foi um dos pontos que diferenciou o nosso movi-mento. Era politizado, sem abandonar o vínculo com o que os estudantes queriam. Nós fizemos uma greve, não sei de quantos meses, e não íamos para a sala de aula. Ou seja, os professores não tomavam presença, mas nós íamos para a sala de aula. Alguns pro-fessores que eram nossos aliados davam aula, mas não assináva-mos a lista de presença. Acabamos com a tradição da luta política de que fazíamos uma greve, a turma ia para a praia e, quando o professor ameaçava reprovar, aí, voltava todo mundo.

A diferença do nosso movimento e o movimento dos dire-tórios anteriores é que nós queríamos resultado, porque os estu-dantes já não acreditavam mais. A gente não tinha a experiência política que tinham os outros. Nós começávamos a ter contato com a política, nessa época, e éramos muito mais intuitivos. Eles tinham uma visão mais ampla, nos ajudavam muito. Acho que foi essa união da concepção meio intuitiva com os mais experientes que deu certo.

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300 Fabio Daflon

ASDUERJ – Quando conversamos com o Luiz Rober-to Tenório, uma das coisas que apontou, especificamente quanto a você e talvez quanto a essa turma, é que eles teriam tido a experiência de passar pelo PCB, enquanto vocês te-riam ido direto para o movimento estudantil. Você vê isso?

JLS – É verdade. No meu primeiro contato com organiza-ção partidária, eu já estava militando aqui na Ciências Médicas. Já militava há algum tempo quando o Tenório me chamou para par-ticipar da Dissidência. Isso tem o seu lado ruim, a gente era muito voluntarista, queria o resultado. O professor Piquet dizia: “Salga-do, você é pré-hegeliano. Essa sua luta não tem possibilidade de se realizar agora”. E eu nem sabia quem era o Hegel, entendeu?

ASDUERJ – A greve pelo vestiário foi em 68?JLS – No início de 68. Era um movimento de anos. Só no

meu tempo, nos dois anos de universidade anteriores, eu já tinha visto umas quatro greves pelo vestiário. Nós traçamos uma estra-tégia. Fomos às salas de aula, falamos com os professores, fizemos um movimento diário, acampamos no pátio do hospital, onde hoje é a radiologia. Armamos umas barracas, ficamos acampados por uns dias. Entreguei ao Professor Piquet Carneiro uma cópia do que seria o movimento: nós! A diferença do nosso movimento e o movimen-to dos diretórios anteriores é que nós queríamos resultado, porque os estudantes já não acreditavam mais. Vamos primeiramente acam-par, não vamos mais trocar de roupa no vestiário daqui da Avenida Felipe Camarão e depois culminamos com a ocupação do Gabinete do Diretor, se por acaso não resolverem o problema do vestiário. E fizemos daquele jeito. Isso deu credibilidade ao movimento.

Então, quando houve o ato contra as prisões em Ibiúna, com a saída do movimento pro lado de fora da faculdade, o pes-soal estava convicto de que deveríamos lutar. Eu não tinha ido para Ibiúna por dois motivos: primeiro porque o movimento tinha entrado em refluxo no Rio de Janeiro. Na Universidade Federal Fluminense não tinha mais movimento praticamente. O único

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Título Provisório 301

movimento que ainda estava vivo era na UEG, particularmente na Ciências Médicas, mas também na Filosofia e na Engenharia. En-tão, o pessoal da Dissidência decidiu que nem eu nem o Presidente da UME, Carlos Alberto Muniz, iríamos para o Congresso porque tínhamos que manter vivo o movimento aqui.

Eu tive muito medo de ir, porque eu ia ser preso.Tinha certeza que ia ser preso em Ibiúna, só não tinha

quem era imbecil. Todo mundo sabia que o Congresso da UNE ia cair, não é possível que não soubessem. Eu se fosse preso lá, talvez não estivesse aqui conversando. Um estudante, sargento da Aeronáutica, ia ser preso e não ia voltar mais. Então, eu fiquei muito satisfeito quando me disseram que eu não ia.

ASDUERJ – Como era ser sargento da Aeronáutica e líder estudantil ao mesmo tempo?

JLS – Na Aeronáutica ganhava minha vida. Era muito difícil porque não havia lei que protegesse os militares para vir para a univer-sidade durante o dia. Por acaso, um comandante me deu a facilidade de fazer meu trabalho à noite e vir para a universidade durante o dia. No início, eu tive certas preocupações pelo fato de ser Sargento da Aeronáutica. “Será que vão achar que eu sou infiltrado?”. Mas nin-guém nunca questionou. Era tão espontânea a minha participação, tão autêntica!... Questionaram outros, inclusive na minha época, tinham outros sargentos. Eu, ao contrário, era sempre empurrado para a lide-rança do movimento. Até onde pude eu conciliei o meu trabalho com a liderança do movimento estudantil. Mas, no dia da morte do Edson Luís de Lima Souto... Hoje não sei se é assim ainda, mas a esquerda era muito dividida. Então, discutiam muito: “O PCBR fez um discurso! Então, a Dissidência tem que fazer outro”. Só que não tinha ninguém na hora. O Franklin Martins já tinha discursado, o Wladimir Palmeira também, aí pediram: “Suba ali na Câmara de Vereadores e fale”.

Aí, eu falei.Quando cheguei à Aeronáutica, um cabo falou que tinha me

visto lá.

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302 Fabio Daflon

Tenho de tomar minhas precauções, tomar minha decisão hoje mesmo. Fui ao Departamento de Pessoal naquela tarde e pedi meu desligamento.

Tive muita sorte, sou um privilegiado. O Chefe do Departa-mento de Pessoal me disse que eu teria que pedir baixa naquele dia. Se deixasse passar mais dois ou três dias eu não conseguiria mais ter baixa. Ele era um Oficial, devia ser um simpatizante.

Naquela época, os órgãos de segurança não eram tão co-nectados como são hoje. Então, o Dops já estava me procurando, como um estudante, e a Aeronáutica não sabia. Não existia o pro-fissionalismo que passou a existir a partir de 69. Foi uma absoluta sorte e falta de integração das forças de informação. O dia do protesto ocorreu nesse mesmo ano...

ASDUERJ – Como foi esse dia?JLS – Nós nos preparamos para amparar o Congresso da

UNE, se houvesse algum problema. Quando houve as prisões em Ibiúna, nós começamos a nos organizar. Nossa ideia era fazer uma passeata na 28 de Setembro, em frente ao hospital, para marcar o protesto contra a queda de Ibiúna.

Nosso colega Skinner, ótimo desenhista, teve essa ideia de fazer alguma coisa para levarmos para fora. Fez aquela estátua. Eu discursei um pouco antes da saída, dizendo o que devíamos fazer. Na saída já víamos os camburões do DOPS lá fora. Eles deram tiros para cima. Quando a gente ia para frente da rua atiraram di-reto e aí acertaram o Luiz Paulo. Eu estava no meio dos estudantes nessa hora. Fiquei feito um louco. Quem devia ter morrido era eu e não o Luiz Paulo. É uma sensação muito ruim. Ele não devia ter morrido. Mas não me sinto culpado de nada.

No dia seguinte, no enterro dele, as pessoas não queriam que fosse cumprimentar os pais dele. Eles tiveram uma reação muito ruim em relação à gente. Achavam que a gente era “esses agitadores que mataram meu filho”. Eu fui cumprimentá-los e me cumprimentaram amarelamente. Eu entendo que eles estivessem

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Título Provisório 303

tristes, magoados com a morte do filho, mas eu fui para mostrar a eles que quem o matou foi a ditadura.

ASDUERJ – Algumas pessoas falam que a morte do Luiz Paulo precipitou um pouco a decisão pela radicalização do movimento estudantil. De uma certa forma, dando sinais de que era inviável seguir naquela forma de luta e já precipi-tando a entrada na luta armada. Você vê dessa forma?

JLS – Eu acho que sim. Não tinha mais espaço para a luta legal.

ASDUERJ – Essa discussão sobre a luta armada vinha desde quando?

JLS – Já vinha desde 67. A palavra de ordem pichada no muro era “Voto nulo está certo. Luta armada é a solução”. Era a palavra dos grupos cuja opinião era de o movimento ser de guerra revolucionária de longo prazo, mas a começar naquele momento.

ASDUERJ – Por que a pichação era “o voto nulo estava certo”?

JLS – Teve uma eleição, não sei se foi em 66 ou 67, que elegeu o Negrão de Lima Governador do Rio de Janeiro. A Dissi-dência pregou o voto nulo, contra a proposta do Partidão de votar no Negrão de Lima, ele era melhor que o Flexa Ribeiro, candidato do Lacerda. Nós tínhamos pregado o voto nulo como etapa. Mas essa discussão da luta armada já estava colocada, em 66, 67, pelo Marighela. Eu não sabia quem era o Marighela, nem sabia quem eram os caras, mas eu sabia da proposta.

ASDUERJ – E como você via essa proposta naquele momento?

JLS – Achava ser o momento de partir para a luta armada mesmo.

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304 Fabio Daflon

ASDUERJ – Quando você fez essa opção?JLS – Em 68, final de 68. Antes do AI-5 eu já entrei

em um grupo. A Dissidência tinha um grupo chamado GTA, Grupo de Trabalho Armado. Depois do AI-5, já me orientaram a sair do meu endereço, cair na clandestinidade – eu já estava meio clandestino naquela época. Aí eu passei a participar desse grupo armado. Ainda não era um grupo de ação, era um grupo de preparação.

O estudo das questões de luta armada, de como se com-portar, de treinamento. A Dissidência nunca foi uma organização vanguardista, nem depois do MR-8, como outras foram. A gente sempre tinha a impressão de que sem as massas não adiantava fazer luta armada. Só adiantava fazer luta armada quando tivesse um apoio popular.

ASDUERJ – Hoje como você avalia essa opção?JLS – O canal que me restava de luta, com a visão que tinha

naquele momento, era a luta armada. Fora o deslumbramento que representava para nós as ações do Che Guevara, Cuba, o Vietnã. Então dizer hoje que aquilo foi errado, eu não diria. Acho que fiz o certo, na conjuntura, dentro da minha organização. Em nenhum momento eu fui contra a luta armada. Acho que foi uma opção correta. Várias vezes nós nos fizemos essa pergunta. Fizemos a opção correta.

ASDUERJ – O sequestro do embaixador foi a primeira ação da qual você participou?

JLS – Não. Antes houve algumas outras ações. A primei-ra ação que eu participei foi a captura de uma metralhadora no Hospital Central da Aeronáutica. Foi relativamente fácil. É muito arriscado você tomar num lugar onde tem quatro sentinelas, num quartel. Propus e organizei a ação. Chegamos lá com uma pessoa passando mal e, quando o sentinela se aproximou, eu botei a mão na metralhadora, o outro apontou o revólver. Não teve tiro.

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Título Provisório 305

ASDUERJ – Qual era a estratégia naquele momento? Primeiro conseguir armas para depois realizar ações para expropriação?

JLS – Não. A visão naquele momento era a de montar o grupo tático revolucionário. Criar grupos armados em vários seg-mentos da sociedade, no campo, nas cidades, nas fábricas. Esses grupos armados eram grupos regulares. Achamos melhor do que a tese do foco. Tanto é que a gente não era foquista.

A visão era criar grupos regulares com bancários, professo-res, estudantes, camponeses; onde tivesse a possibilidade de se criar. Mais tarde, após a capilaridade na sociedade, aí sim o movimento estaria com mais facilidade de realizar uma grande ação. Então se faria uma grande ação, e em todos os lugares teríamos apoio.

Depois, quando nós fomos realizar isso na prática, não era bem assim. Você não consegue montar um grupo tático regular. Ou seja, a pessoa durante o dia está trabalhando, está na universi-dade dando aula, está no campo e de noite vai atacar um quartel do Exército, vai prender um torturador, enfim. Tentamos na Bahia, mas não era muito fácil.

ASDUERJ – Você que organizou isso na Bahia?JLS – Comecei aqui em Xerém. Fiquei nessas matas de

Xerém durante seis meses com camponeses. O interessante é que fizemos contatos com ex-militantes das Ligas Camponesas.

Tivemos que sair precipitadamente de lá porque desco-brimos que a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) estava montando o sequestro de um Ministro e de um Embaixador e o esconderijo era em Xerém, bem perto do lugar onde tínhamos um trabalho político grande. Era um absurdo fazer um sequestro numa área tão nobre de trabalhadores rurais, de militantes, numa base organizada de massa. Eles disseram que o importante era a ação armada, não recuariam. Nesse ínterim, caíram e saímos de lá. Depois ficamos um tempo parados e o pessoal da Bahia abriu um trabalho no oeste do estado. Lá com essa mesma visão.

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ASDUERJ – Você em algum momento sentiu que es-tava abdicando de sua vida? Como era namorar; viver; dedi-cando toda a sua vida a uma luta?

JLS – Isso era um lado quase sacerdotal do negócio. Esse objetivo estava acima de tudo. Claro que isso foi um sacrifício na nossa vida pessoal. Senti muito isso. Passei anos para superar esse momento perdido da minha vida no plano emocional. No plano profissional, eu nunca senti muita falta, porque as coisas que fui fazendo deram certo. Mas, no plano afetivo, emocional, foi difícil. Viver na clandestinidade era muito difícil. Fazer as duas coisas, ter satisfação emocional, uma relação estável e, ao mesmo tempo, viver na clandestinidade.

ASDUERJ – Você nunca foi preso?JLS – Eu nem poderia ser preso. Estaria morto. Era uma

decisão da Aeronáutica. Todos os militares que eram presos eram mortos. Não tinha perdão, era decisão mesmo lá de den-tro. Passou perto, mas nunca fui preso. Fui disciplinado. Eu ti-nha uns pontos de encontro com as pessoas: era uma rua, num quarteirão, um entrava de lá, eu entrava de cá e a gente se encon-trava no meio. Se alguém atrasasse, fim, não ia ao ponto. Isso me salvou várias vezes.

ASDUERJ – Você teve uma ligação com o Lamarca. Vocês eram da mesma organização?

JLS – Não. Em 1970, as organizações armadas sofreram fragmentação completa. O MR-8 foi o que ficou como caudatário desses finais de outras organizações. O contato com o Lamarca foi o seguinte: depois do sequestro do Embaixador americano, houve o do Embaixador alemão e do suíço. Em todas essas oportunida-des, nós fomos contra as operações. Tivemos militantes nossos li-bertados. Mas fomos contra, porque achávamos que no sequestro do Embaixador americano pegamos a ditadura de surpresa, eles nunca que imaginavam isso.

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Título Provisório 307

Era um momento muito particular da ditadura, de transição, o Costa e Silva estava com derrame, havia uma disputa interna entre os militares de linha dura e de linha moderada para tomar o governo. En-tão foi uma ação muito oportunista, no bom sentido, e as outras não, porque a gente sabia que nos sequestros seguintes a ditadura estava mais preparada, a segurança era muito maior. Toda vez que fizeram, tiveram que matar alguém, mataram no alemão, no suíço feriram.

ASDUERJ – Mas e o seu envolvimento com o Lamarca?JLS – Logo depois do sequestro do Embaixador suíço, hou-

ve um contato entre as direções. Nós tínhamos sido contra e o pessoal da VPR queria ouvir as posições do MR-8. Expusemos nossas posições, nossa linha política ao Lamarca, que já tinha dis-cordâncias da linha deles.

Pediu ingresso na nossa organização. Achou nossa linha mais condizente com a sobrevivência da luta armada. Isso acabou precipitando a morte dele. Não era para ter ido para a Bahia. Na verdade, o trabalho na Bahia estava no início.

Eu tinha ido para lá para organizar os grupos dessa região, para o lado de Barreiras, perto do Rio São Francisco. Havia uma área estratégica interessante do ponto de vista militar, que é a di-visa da Bahia com Goiás. Mas não queríamos ir naquele momen-to. Queríamos primeiro organizar os grupos nas regiões próximas para depois ter algo de maior vulto.

Só que houve uma queda maciça na organização aqui no Rio de Janeiro, a ponto do Lamarca e a Iara Iavelberg terem de andar de ônibus a noite inteira, porque não tinham para onde ir. E o diri-gente daqui do Rio de Janeiro mandou um emissário para a Bahia. Nesse encontro comigo ele disse que não tinha jeito, que o Lamar-ca tinha que ir mesmo. Ele era uma pessoa muito interessante e o trabalho tomou outras dimensões com a chegada dele. Mas não estávamos preparados para abrigar uma pessoa dessa importância. E, sobretudo, na ida dele, um militante acabou sabendo a região onde estava. Isso precipitou toda a queda.

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ASDUERJ – Você foi a última pessoa a ter contato com o Lamarca? Há uma história de uma carta que foi escrita...

JLS – A carta eu trouxe da Bahia, mas caiu com o César Benjamim. Antes, o Zé Carlos foi preso. Ele estava em um pon-to com o César, foi preso, mas o César conseguiu escapar. Ele me encontrou e falou: “Olha, caiu o Zé Carlos”. Então eu decidi ir desmobilizar a área.

ASDUERJ – O Zé Carlos era quem sabia onde o La-marca estava?

JLS – O Zé Carlos não sabia onde estava o Lamarca, mas sabia qual a região. Eles fizeram um cerco, era uma área rural. Foi muito fácil. Eu fui para a região para poder desmobilizar.

Tenho um arrependimento. Reuni a base, o Lamarca. Eu era o comandante da região, o Capitão era meu subordinado. Ele disse que queria passar uns anos como militante de base.

“Todo lugar onde chego já me colocam logo como comandante.”

Lamarca tinha um preparo militar muito bom, fez muitos treinamentos militares de guerrilhas, no Panamá, na selva ama-zônica, guerrilha urbana, sabia tudo. Então, quando ele chegava numa organização armada, logo diziam: “O comandante é ele”.

Quando ele chegou ao MR-8, disse: “Eu quero passar por essa experiência que eu nunca tive”, falou.

Nós tínhamos um respeito muito grande, apesar da humil-dade dele. Então cheguei lá, nós éramos cinco ou seis pessoas na base. Eu informei que o Zé Carlos tinha sido preso, que iria resis-tir algum tempo, mas que a gente saísse da área porque era essa a medida mais segura.

Ele disse:“Companheiros, não é possível que tenhamos que agir no

campo como na cidade. Toda vez que cai um aparelho, a gente tem de sair”.

Foi muito voluntarista. Disse:

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“Eu acho que a gente não deve sair. Acho que o companhei-ro não vai trair, não vai abrir a área, essa área é muito importante, ele sabe a dimensão dessa importância. Eu sou contra a saída”.

E aí me faltou coragem para assumir o comando e que a gente iria sair. Essa é outra tristeza que tenho da minha militância. São duas, uma é o Luiz Paulo e a outra é essa.

Quando colocamos em votação, eu fui voto vencido.Na Direção Nacional tinha um encontro quinze dias depois

aqui no Rio para poder dizer qual era a decisão da base. Nessa vinda para o Rio, caiu a área lá. Muito em função da carta que eu trouxe e entreguei ao César Benjamin para ser entregue a Iara em Feira de Santana. Essa carta que estava com o César caiu nas mãos da polícia numa blitz. E, aí, descobriram. Na carta, o Lamarca dava indicações de que o Zé Carlos sabia onde era a área. A partir daí a área foi cercada e houve tudo o que houve.

ASDUERJ – Você saiu do Brasil logo após isso?JLS – Eu saí um tempo depois, em 72. Fui para o Chile, de-

pois fiquei um ano no Panamá, depois fui para França, onde fiquei até 1980. Voltei depois da anistia. Tentei voltar para a universidade, mas não consegui. O entulho da ditadura ainda estava onipresente na universidade. Até uma liminar eu perdi.

ASDUERJ – Isso em 80, depois que você voltou?JLS – Em 81, 82. O diretor da faculdade tinha sido meu

professor de clínica médica, era o Fernando Bevilácqua. O Rei-tor era Ney Cidade Palmeiro. Não me aceitavam de jeito nenhum. Primeiro diziam que eu não estava anistiado do ponto de vista universitário. Isso eles perderam. Foi muito fácil de argumentar. Anistia é anistia!

Mas aí disseram que tinha de fazer vestibular de novo. Eles dificultaram tanto, que perdi o entusiasmo. Paralelamen-te, tinha um grupo de amigos, nem eram amigos meus ainda, que me arrumaram um trabalho de enfermeiro numa clínica de

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hemodiálise, chamada de CDR, Clínica de Doenças Renais. Era um pessoal progressista, solidário. Eles eram um grupo de mé-dicos, mas sem visão administrativa. E eu estava querendo uma realização profissional, queria saber se eu dava certo em alguma coisa, pelo menos no campo profissional. Eu me engajei, fiquei muito absorvido e esqueci a universidade. Esqueci também a mi-litância partidária.

Quando a clínica foi vendida, essa clínica tinha um projeto de diversificação. Eu não quis nada, trocava tudo isso pela fazenda. Então ficamos eu e outro que é meu sócio lá até hoje. Eu fui para a fazenda, ele continuou no Rio. Era um sonho grande meu voltar para o campo.

ASDUERJ – Ao contrário do César, que você citou, aparentemente você se afastou da militância política mais clara. Você viveu outras militâncias na sua vida? Participou da militância partidária?

JLS – Não. Não. Eu não consegui. Todo mundo foi para a militância partidária e eu não consegui me inserir. Daí eu fui me afastando, me afastando...

ASDUERJ – Muitas das pessoas que estavam militan-do em 68 e tiveram um papel importante na luta contra a ditadura estão agora em cargos públicos. Como você avalia essa geração hoje? Você enxerga alguma coisa dessa militân-cia, desse momento de 68?

JLS – Em primeiro lugar, acho muito legal ver as pessoas daquele tempo assumindo a direção do País. Agora, tiveram que fazer concessões, mudar de posições tão profundamente que acho que deve ter sido muito difícil. Eu não conseguiria, para estar no poder, fazer certas concessões políticas que eles têm que fazer. Mas acho melhor estar nas mãos deles do que na mão de outros. Eu prefiro, mesmo discordando do Carlos Minc em muitos aspec-tos, do Fernando Gabeira, da Dilma Rousseff.

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Pena eles terem se transformado tanto! Com abandono de tantos ideais. Não é possível que os caras precisem fazer tantas concessões para estar lá. Eu não concordo, apesar de gostar de vê--los lá. São meus amigos, são pessoas que eu sei que são boas. São pessoas que podem estar conjunturalmente enganadas, mas são pessoas de bem, do bem.

Observações do autor:

9 Hoje em tempos de alteridade, reconhecimento e res-peito às diferenças, multiculturalismo e outros caracteres da pós-modernidade, talvez, mais maduros historicamente como país, sejamos de fato e de direito, em alguns aspectos ao menos, “pré-hegelianos”.

9 O grupo acolhedor de João Lopes Salgado em seu re-torno pós-anistia ao Brasil trabalhava em sociedade no Centro de Doenças Renais do Rio de Janeiro. Salgado foi trabalhar como ad-ministrador desse serviço de nefrologia. “A bem da verdade”, nos diz o próprio Salgado, “foi o grupo de médicos e enfermeiros que dirigia a CDR-RJ – Clínica de Doenças Renais que acreditou em mim e me deu a oportunidade de crescimento profissional.”

9 Os militantes que se engajaram na luta armada a partir de 1966, 1967, ao menos os mais jovens, não tendem a deslocar a re-sistência armada para o pós-AI-5. Nem sequer tinham informação histórica sobre todos os fatos, pensamentos e propostas de ações gestadas ao longo de todo o século XX. O problema fundamental é que combateram um regime agressivo e inconstitucionalmente imposto, mesmo a políticos importantes de direita, como Carlos Lacerda, que jamais se filiou à ARENA ou foi conivente com o regime militar, que o traiu tão ou mais lamentavelmente que a Jus-celino Kubitschek.

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A história de um lua preta – entrevista com Hésio Cordeiro21

Então o que é que era o Instituto de Medicina Social? É oposto disso. Primeiro era um grupo pequeno,

absolutamente novo, independente da Faculdade de Medicina, mas que tinha um vínculo seminal com uma liderança católica,

liberal, progressista, que era o Dr. Américo Piquet Carneiro.

Reinaldo Guimarães

REVISTA RADIS – REPORTAGENS

Autores da entrevista: Adriano De Lavor e Eliane Bardanachvili

Hésio Cordeiro: “A saúde perdeu um pouco suas bandeiras”

A sala simples que o médico Hésio de Albuquerque Cordei-ro ocupa como coordenador do Mestrado Profissional em Saúde da Família, na Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, con-trasta com a riqueza de seu currículo, mas é coerente com a simpli-cidade do defensor histórico de um “sistema brasileiro de saúde” 21 A saúde coletiva teve financiamento a partir do Governo do Presidente e Di-tador Ernesto Geisel; toda a informação sobre os investimentos está contida no link visitado em 25 de novembro de 2013, às 13.35 h.: <http://www.memoria-social.pro.br/linhas/arouca/depoimentos/depoimentoscoletivos2.htm>, entre-vista Coletiva na casa de Anamaria Testa Tambellini (Rio de Janeiro, 12.11.2004), da qual foi também extraída a citação em epígrafe, não constante da entrevista original feita com Hésio Cordeiro.

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capaz de garantir o acesso à saúde como direito fundamental dos brasileiros. Mestre em Saúde Coletiva (UERJ), doutor em Medici-na Preventiva (USP) e sanitarista de primeira hora, ele estava no grupo pioneiro que formulou a ideia de um sistema unificado – que se transformaria no SUS. Um dos fundadores do Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ), presidiu o hoje extinto Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), entre 1985 e 1988, e dirigiu a Agência Nacional de Saúde Suple-mentar (ANS), entre 2007 e 2010. Mineiro de Juiz de Fora, simpá-tico, tranquilo, de fala mansa, Hésio recebeu a equipe da Radis para uma hora de conversa, em que falou sobre momentos marcantes da história brasileira, criticou o papel assumido pela iniciativa pri-vada na saúde e defendeu mais recursos para o setor como prin-cipal caminho para fazer frente aos desafios a ele inerentes. Sobre o SUS, faz um balanço: “Eu teria proposto uma ênfase maior na saúde da família e na qualidade do cuidado e do atendimento”.

De onde partiu seu engajamento na discussão política da saúde?

Minha formação foi inicialmente em clínica médica, com o professor Piquet Carneiro [o médico cearense Américo Piquet Carneiro (1909-1992)], um os fundadores do IMS/UERJ. Ele propôs que nós visitássemos os pa-cientes internados no hospital Pedro Ernesto. Esse primeiro contato com as famílias dos pacientes hospitalizados foi uma aproximação com a realidade assistencial e social desses pacientes. Piquet Carneiro também propôs visitas domiciliares, calcadas na promoção da saúde e na prevenção das doenças, in-cluindo doenças não muito comuns, como lúpus eritematoso e artrite reumatoi-de. Ele estimulava a gente para que nos dedicássemos e nos aprofundássemos nesses componentes epidemiológicos e sociais. Daí, foi um salto para discutir políticas da saúde e desigualdades sociais, e sua relação com as doenças e o aces-so aos serviços de saúde. Houve também um envolvimento político: em 1981, dei consultoria à campanha do Miro Teixeira [jornalista, advogado e atual deputado federal pelo PDT/RJ], na época, candidato do MDB ao governo do Estado do Rio de Janeiro, que havia constituído um grupo de assessoria

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chamado de luas pretas. Combinamos o interesse profissional, iniciado na clínica médica com as questões de prevenção, promoção e dos aspectos sociais do processo saúde-doença, com a dimensão política da saúde. Naquela época, a assistência dava pouca ênfase à prevenção e à promoção, era muito centrada na medicina curativa. O Inamps estava muito mais vinculado às empresas médi-cas do que propriamente à ação dos serviços públicos de saúde. A discussão foi crescendo e havia um movimento simultâneo à minha trajetória nos departa-mentos de medicina preventiva em Campinas (SP), Londrina (PR), Ribeirão Preto (SP), que discutia atenção primária e o sistema de saúde como um todo.

Como o senhor teve a convicção de que aquele era o melhor caminho?

Ficou tudo muito estimulante, dentro da perspectiva profissional. Havia o contato com a realidade, que evidenciava que os pacientes estavam sofrendo com a falta de acesso aos serviços de saúde, que os determinantes sociais das doenças afetavam o perfil epidemiológico destas pessoas e que era necessário um engajamento maior dos profissionais de saúde na superação das dificuldades. No âmbito específico das políticas de saúde, queríamos corrigir as desigualdades sociais, o que não seria feito somente por políticas econômicas e sociais mais justas, mas também por uma política de saúde que não privilegiasse o lucro e os serviços privados. Influenciava muito este pen-samento crítico a postura do médico Carlos Gentile de Melo (1920-1982). Ele era um crítico acentuado das formas de remuneração do trabalho médico e criticava as unidades de serviço. Ele as considerava um fator irremediável de corrupção, o que estimulava pedidos de exame sem necessidade e até frau-des, que vicejavam muito na assistência médica do Inamps. Foi crescendo, então, nos departamentos de medicina preventiva e social, a busca por polí-ticas de saúde que mudassem esse panorama. Uma destas instituições foi o Instituto de Medicina Social da Uerj, em 1970.

Existe diferença entre medicina social e o que se chama hoje de saúde coletiva?

É praticamente a mesma coisa. Medicina social apareceu como uma oposição aos saberes tradicionais da saúde pública, muito calcada na questão

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da higiene e do saneamento. Lógico que essas coisas todas são importantes, mas dava-se ênfase somente às práticas individuais de saúde e não às práti-cas coletivas. Essa proposta incorporava o conteúdo das ciências sociais na análise das políticas de saúde, fugia um pouco do campo da biologia, que não tem instrumentos para fazer análise política. A medicina social caracteriza este novo campo do saber, que estava surgindo nos anos 1970. Nos Estados Unidos, eles não chamavam medicina social, mas sim ciências do compor-tamento humano, que não se preocupavam com os determinantes sociais e políticos deste comportamento.

Eram movimentos semelhantes ou contrários?Aqui se fazia uma crítica de que os estudos não podiam se limitar à

questão do comportamento. Era algo maior, ligado a determinantes sociais e políticos, e que também estava relacionado ao movimento político de redemo-cratização do país e à vitória das oposições nas secretarias municipais de saúde – especialmente Londrina (PR), Campinas (SP) e Niterói (RJ) – onde os secretários que assumiram buscavam alternativas relacionadas à atenção pri-mária e à promoção da saúde. Eles queriam mudar a ênfase dada ao hospital, visto como local único da cura dos pacientes, e que nem sempre tinha sucesso. Isso aconteceu no início da década de 1980.

“Continuo achando que o problema é, ainda, de am-pliação dos recursos para a Saúde” (Hésio Cordeiro).

Pode-se então dizer que o IMS foi um dos berços da Re-forma Sanitária?

Em 1979, três professores do Instituto de Medicina Social – o cien-tista social José Luis Fiori, Reinaldo Guimarães, na época epidemiólogo, e eu, que era uma espécie de generalista da saúde coletiva – escrevemos um documento denominado A questão democrática da saúde, que foi incorporado pelo Cebes [Centro Brasileiro de Estudos de Saúde] e apresentado pelo Sergio Arouca (1941-2003) no Congresso Nacional, quando, pela primeira vez, os deputados federais discutiram alternativas para as políticas de saúde. Aí se

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mencionou o termo SUS, ou Sistema Único de Saúde. O documento foi a peça chave dessa discussão na Câmara dos Deputados. Foi apresentado para ter uma amplitude maior, não ficar restrito a uma única instituição. Ele acompa-nhava as críticas de Gentile de Melo às unidades de serviço e mostrava uma alternativa que privilegiava a promoção da saúde e a prevenção. A proposta foi bastante discutida pelos departamentos de medicina preventiva e social, sindicatos médicos e profissionais de enfermagem. Um movimento que envolveu os profissionais de saúde de forma crescente.

A partir daí.Em 1984, já dentro da possibilidade da discussão das Diretas Já,

da vitória das oposições, fizemos um seminário em Montes Claros (MG), promovido pelo secretário municipal de Saúde José Saraiva Felipe [ministro da Saúde do governo Lula entre 2005 e 2006 e atualmente deputado federal pelo PMDB/MG], em busca de alternativas para o governo Tancredo Neves. Foram vários políticos, vários dirigentes partidários. Lembro que o Raphael de Almeida Magalhães [ministro da Previdência Social entre 1986 e 1987] participou da reunião, assim como Sérgio Arouca e o então prefeito de Montes Claros, além de vários profissionais da área acadêmica e da área política. Então, elaboramos a Carta de Montes Claros, como contribuição ao futuro governo Tancredo Neves.

O senhor acredita que se Tancredo Neves tivesse assu-mido a Presidência da República teríamos um cenário dife-rente na saúde?

O estilo de Tancredo era mais cauteloso. Uma série de coisas que mais adiante o Waldir Pires [ministro da Previdência Social entre 1985 e 1986] propôs na Previdência Social e, depois de sua saída, o Raphael de Almeida Magalhães e o Renato Archer [ministro entre 1987 e 1988] propuseram, talvez não tivessem ocorrido. Eram medidas audaciosas demais. Na época em que eu era presidente do Inamps, houve até greve nos estados do Nordes-te, quando propus o repasse da administração das unidades gerenciadas pelo Inamps para as secretarias municipais e estaduais de Saúde. Dependendo do nível de complexidade, um posto de saúde poderia ser gerenciado pelo município e um hospital de médio porte, pelo estado. Com isso, o Inamps abria mão da

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Título Provisório 317

rede própria. Os convênios com o setor privado e o setor de avaliação e controle passaram a ser gerenciados também pelas secretarias municipais e estaduais de saúde. Isso foi o início do SUS, ainda denominado Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS).

E qual era o motivo dos que manifestavam reações contrárias?

Eu fui ao Rio Grande do Norte, porque os profissionais do Inamps não queriam aceitar de forma alguma essa mudança. Eu suponho que em razão de interesses econômicos, financeiros e materiais que estavam envolvidos na transferência e modificação dos convênios com a área privada.

O senhor acredita que isso seria cogitado, caso o presi-dente Tancredo Neves tivesse assumido...?

Eu imagino que haveria dificuldades.

Nesse caso, o senhor diria que há males que vêm para o bem?

Eu não chegaria a dizer isso (risos). Diria que seria outra realidade. Da mesma forma, o Sarney, que o substituiu na Presidência, até o final do governo, não entendeu, nunca, o que era o Sistema Único de Saúde. Ao cú-mulo de ele propor ao Renato Archer que o SUDS, no estado do Maranhão, fosse feito não com a secretaria estadual de saúde, mas sim com o Inamps, onde havia pessoas nomeadas por ele. O Renato, lógico, riu, e disse que a concepção do Sistema Único de Saúde era trabalhar com as secretarias, o que na prática significava que os recursos iriam para opositores do Sarney que estavam no governo do Maranhão.

Procurado pela Radis, o ex-ministro Waldir Pires declarou que o senhor é uma das figuras mais importantes do movimento sanitário brasi-leiro. Ele afirmou que sua participação foi fundamental para a garantia da saúde como direito fundamental dos brasileiros, e perguntou como seria pos-sível restabelecer um diálogo com a sociedade, para garantir que este direito seja cumprido. “Como recuperar este sentimento de construção da dignidade humana no Brasil?”

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(Risos) Esse é bem o estilo de o Waldir Pires fazer perguntas, con-ceitualmente difíceis de ser respondidas. A situação atual é bastante dife-rente. É importante fortalecer a administração pública, coisa que o Waldir sempre fez. Ele dava importância complementar à iniciativa privada, sob a ótica e a hegemonia do serviço público. Essa seria uma forma de restaurar e defender a dignidade do serviço público, sobretudo, em favor das pessoas mais desfavorecidas, que dependem dele para ter acesso aos serviços de saú-de. É lógico que a atenção primária já se expandiu muito, especialmente, pelo esforço dos municípios, mas ainda hoje se diz que o problema da saúde não é de recursos, mas de gestão. Continuo achando que o problema é, ain-da, de recursos, da necessidade de ampliar o recurso para a saúde. Ao invés dos 60 bilhões de reais hoje destinados à saúde, o recurso deveria quase dobrar. Não retornando a CPMF ou ampliando novas fontes de financia-mento que onerariam mais ainda o contribuinte, que já tem hoje uma carga de impostos em torno de 30%. Tem que se redefinir prioridades e valorizar o profissional de saúde: o médico, o enfermeiro, o atendente, o fisioterapeuta. Remunerar melhor e capacitar. Ter um programa de educação permanente e continuada que atinja os profissionais em todas as regiões do país. Seria uma estratégia para criar uma situação mais digna de trabalho e ação nos serviços de saúde.

Muito se critica o papel da iniciativa privada, ainda que seja com-plementar na saúde, como sendo um grande problema. O que o senhor tem a dizer sobre isso?

Muitas vezes, essa saúde dita suplementar se vale do serviço público para os procedimentos de alta complexidade. No fundo, o serviço público de saúde é que trabalha complementarmente à iniciativa privada, quando a concepção inicial é que a iniciativa privada complementaria as ações do setor público. A gente vê o contrário em transplantes renais, de fígado, de coração. Os pacientes preferem ser operados no serviço público, que desen-volveu estes procedimentos de alta complexidade, do que no setor privado, mais caro e nem sempre com a qualidade mais adequada. Houve uma inversão. O que se chama de suplementar, na realidade, está se valendo do serviço público, que acabou se tornando suplementar à iniciativa privada. E não o inverso.

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“Os setores progressistas da Reforma Sanitária tinham preconceito em discutir a área privada” (Hésio Cordeiro).

Mas não houve uma brecha na concepção inicial para isso? Poderia ter sido feito de outra maneira?

Na época da 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), havia uma discussão na qual se confrontavam posições muito radicais. Uma delas propunha a estatização total dos serviços de saúde, coisa que se sabia ser impossível. Não havia clima político possível para uma marcha tão radical. Ao mesmo tempo, os setores progressistas da Reforma Sanitária tinham muito preconceito em discu-tir a área privada. A saúde suplementar não mereceu discussão profunda. As pessoas não conheciam como funcionavam as operadoras. Havia uma espécie de crítica sumária às operadoras de serviços de saúde, mas ninguém tinha se dedi-cado a estudá-las. Minha tese de doutorado foi sobre a situação das empresas médicas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Foi uma das poucas iniciativas de estudo sistemático, em termos de política de saúde, sobre este setor. Na época, foi considerado um trabalho inédito no campo da saúde coletiva.

O aprofundamento da discussão seria como admitir a existência do setor privado...

Isso. Havia um preconceito muito forte, uma visão errada e também uma ação truculenta do setor privado. Eu recordo que não queriam que eu assumisse o INAMPS. Foram inclusive ao chefe da Casa Militar do Sar-ney para impedir que eu tomasse posse. Enquanto a Presidência assumiu em 15 de março (de 1985), tive minha posse em 20 de maio. O Waldir Pires arrancou a decisão do Sarney de fazer minha exoneração. E não era só a minha, mas dos três presidentes que ele havia proposto: eu, no INAMPS, o Arthur Virgílio Filho (pai do senador Arthur Virgílio Neto, do PSDB/AM) e o professor Eugênio Doin Vieira, de Santa Catarina, que foi presi-dente do IAPAS. O Waldir chamou a imprensa e disse que se Sarney não nos nomeasse, ele se demitiria da Previdência Social. Aí o Sarney resolveu emitir os atos de nomeação.

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Qual foi o principal legado da 8ª Conferência Nacio-nal de Saúde?

A conquista do acesso universal aos serviços de saúde para todos, como responsabilidade do Estado. A outra conquista, que nunca pegou, foi a ideia da seguridade social, uma nova concepção que fugia dos cânones do seguro social, em que apenas os contribuintes da Previdência têm direito aos serviços de saúde. A seguridade social nunca foi implementada para valer. Definiu-se que a Saúde receberia 30% dos recursos destinados à Previdên-cia Social, mas isso valeu num certo momento e depois essa participação na destinação dos recursos para a seguridade social foi se reduzindo. O conceito acabou desaparecendo.

O senhor atribuiria isso a quê?A uma cultura economicista de todos os governos brasileiros desde

o processo de redemocratização. No governo Lula não foi diferente; ao que tudo indica, não será diferente no governo Dilma. A própria ação da área econômica, especialmente do Antônio Palocci (deputado federal PT/SP), na Casa Civil do governo Dilma, não prevê uma mudança muito profunda dentro do conceito de seguridade social. Ao contrário, pode-se até supor que os planos de saúde terão certo alento e certo apoio nas decisões governamen-tais da política econômica.

Durante a recente [dez/2010] Conferência Mundial sobre o Desen-volvimento de Sistemas Universais de Seguridade Social, ouviram-se críticas recorrentes aos programas de transferência de renda, que diminuiriam a pobreza, mas não reduziriam a desigualdade social no país. Qual a sua opinião sobre isso?

São decisões que precisam ser tomadas para reduzir a situação de carência das pessoas. Se não conseguiram fazer uma mudança estrutu-ral, talvez tenha que haver uma reforma tributária mais intensa. Uma reforma que destine recursos às políticas sociais e, especialmente, para o nível municipal, diminuindo a posse de recursos centralizada na esfera do governo federal. Reforma tributária e reforma política caminham juntas nessa mudança do paradigma de combate à desigualdade. Um desafio muito grande.

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A sanitarista Sonia Fleury pediu que a Radis questio-nasse o senhor quanto ao fato de os dirigentes da Previdência, na época da Constituinte, terem sido contrários à ideia do SUS e defenderem o aprofundamento do SUDS. Ela gostaria de saber se o senhor acredita que a posição estava equivocada ou a defende ainda hoje.

Isso foi sempre uma divergência minha com a Sonia Fleury. Ela fazia parte do grupo liderado pelo Sergio Arouca, que pretendia que a reforma se iniciasse pelo alto, com a incorporação do INAMPS ao Ministério da Saúde. Saraiva Felipe e eu defendíamos o contrário: a reforma deveria começar por baixo, pelos municípios e pelos estados. O INAMPS seria a última estrutura a desaparecer. Foi o que ocorreu. Na esfera política, o então ministro Raphael de Almeida Magalhães ficou entusiasmado com a proposta de transferir as ins-tituições municipais e estaduais para o âmbito das secretarias de Saúde, e não o inverso. Fazer a fusão do Ministério da Saúde e do Inamps poderia gerar um monstro burocratizado, a centralização poderia retardar mais a própria Reforma Sanitária. Foi uma divergência estratégica naquele período. O SUDS foi uma estratégia-ponte que preparou a unificação da Saúde. Ela interpreta como uma oposição dos dirigentes da Previdência Social. Como se eu tivesse me oposto a isso (risos). Uma proposta que já em 1979 havia sido anunciada. Foi uma questão de estratégia de implemento, não de recusa ou ideologia.

“Waldir Pires chamou a imprensa e disse que, se Sarney não nos nomeasse, ele se demitiria” (Hésio Cordeiro).

Muito se critica que os ministérios que deveriam pro-mover a seguridade social não se articulam...

É verdade. O próprio conselho de seguridade social se esvaziou, mas isso não teve nada a ver com a unificação da Saúde com o Inamps. Foi outra questão conceitual, política, que perpassou a área econômica dos governos, contrários à substituição do conceito de seguro para o conceito de seguridade. Aí nesse ponto, a Sonia Fleury e eu temos a mesma posição. Na verdade,

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o conselho nunca foi usado e foi extinto por desuso. Uma visão neoliberal, que embora não se diga neoliberal, resultou no esvaziamento do conselho de seguridade social.

Na época em que se hasteou a bandeira da Reforma Sa-nitária, existia uma condição bastante adversa de ditadura militar, com muitas lutas a serem travadas. Hoje, com uma conjuntura mais favorável, qual seria a bandeira da saúde?

A saúde perdeu um pouco suas bandeiras. As bandeiras envelheceram. Hoje, a bandeira central é a qualidade do cuidado em saúde, que envolve deci-sões em relação à educação permanente, à educação continuada e à remunera-ção do profissional de saúde. Não é só uma questão simbólica; é uma questão material. As bandeiras da saúde deveriam ser substituídas pela qualidade de saúde e pela construção de um sistema brasileiro, voltado para a qualidade do cuidado. Um sistema em que o público e o privado se articulassem, com uma convivência entre o setor dos planos de saúde privados e o setor público de uma forma mais inteligente, conceitualmente; mais complementar, e não o contrário. Não o público complementando o privado, mas uma complementaridade mú-tua entre os dois setores. Isso depende de se assumir um consenso na sociedade, especialmente entre os profissionais de saúde, para que se discutam de novo as propostas de saúde a partir da ótica da igualdade.

Que papel assume o controle social neste contexto?Controle social é importante, mas não é tudo. Ele deve existir, mas

não deve ser manipulado pelo poder instituído, pelos governos estaduais e mu-nicipais. Deve ser espontâneo e se realizar dentro de parâmetros que possam representar a vontade coletiva da sociedade. E devemos despir esse controle social de qualquer coisa que soe clientelismo e manipulação política. Isso é uma cultura do país que a redemocratização ainda não conseguiu superar.

E o papel da comunicação?Seria uma forma de fazer chegar a todos os setores da sociedade as

dimensões biológicas, políticas e sociais dos problemas da saúde. Mostrar que a doença tem a ver com a miséria, mas tem a ver também com a opulência. A

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obesidade é hoje um problema de saúde pública. A desnutrição também ainda é um problema. Mas é cada vez mais frequente a obesidade em crianças. O aumento da capacidade de renda e o surgimento de uma nova classe média estão fazendo surgir esse grau de opulência.

Se pudesse voltar ao tempo em que redigiu o documento em favor da democratização da saúde, e avaliando o SUS de hoje, o que modificaria?

Teria proposto uma ênfase maior na questão da saúde da família, que chegou muito tarde, somente em 1994. Teria dado ênfase também à qualidade do cuidado e do atendimento em saúde. Um dos instrumentos importantes para isso são os processos de avaliação e de acreditação dos serviços. Acreditação no sentido de perseguição de objetivos, baseados em padrões de qualidade, consensuais e universais. Esse esforço da acreditação dos serviços tem sido feito pelo Ministério da Saúde, por instituições priva-das. O Consórcio Brasileiro de Acreditação ajudaria muito a melhorar as bandeiras da Saúde, baseadas na qualidade.

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大字报 – Informativo Dazibao – Jayme Landmann (1920-2006)22

Um mestre da razão e da polêmica morre esquecido na era dos médicos popstars.

Em seu site de Divulgação científica e debates referentes a epidemiologia, medicina, saúde pública e demografia, em 26 de agosto de 1998, o autor que assina o artigo escreveu ótimo perfil do Professor Jayme Landmann:

Salvo engano, passou despercebida a morte de Jayme Landmann há um mês no Rio de Janeiro. Nascido na Romênia em 1920, chegou ao Brasil, em 1929, formou-se em medicina pela Univer-sidade Federal Fluminense em 1945, posteriormente trabalhou no hospital de servidores do estado e foi Diretor do Hospital Pedro Ernesto e do Centro Biomédico da Universidade do Es-tado do Rio de Janeiro. Fundador junto com José de Barros Ma-galdi (Professor da USP falecido precocemente em 1978) da So-ciedade Brasileira de Nefrologia, foi introdutor da terapia renal substitutiva no Brasil. Sua notoriedade transbordou os limites da medicina carioca e da nefrologia nacional nos anos 80 quando assumiu a condição de polemista médico número um do país. Sua contribuição foi grande, onde destaco três livros que ainda restam em minha biblioteca: Medicina não é saúde, da Editora Nova Fronteira, em 1983, A outra face da medicina, da Editora Salaman-dra, em 1984, e As medicinas alternativas: mito, embuste ou ciência?, da Editora Guanabara, em 1988. O destaque de Landmann foi devido a proposições não dogmáticas e, pelos seus ideais co-letivos para organizar a medicina e a saúde pública brasileiras. Atitude bem distante do exibicionismo atual de médicos. Uma

22 Disponível em: <http://paulolotufo.blogspot.com.br/2006/08/jayme-land-mann-1920-2006-um-mestre-da.html>.

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entrevista excelente foi publicada na revista eletrônica Medonline em 1998, que ainda pode ser lida em: http://www.medonline.com.br/med_ed/med4/entrev.htm. Sua contribuição ao debate da prática da medicina no país nunca foi reconhecida pela saúde pública brasileira por pelo menos quatro motivos. Primeiro, a de-formação da medicina pelo “complexo médico-industrial” ainda era incipiente perto da provocada nos anos 90; segundo Landmann, não usava linguagem marxista, nem tinha lido Foucault, o que o afastava da assim chamada “epidemiologia social”; terceiro, como dirigente hospitalar, não aceitou a manipulação política das greves nos anos 80, o que motivou antipatia; quarto, combateu o corporativismo motivando uma reação inquisitorial do então Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, que lhe aplicou uma censura sigilosa que ele tornou pública em recurso ao Conselho Federal de Medicina, onde foi absolvido. Jayme Landmann deixou viúva, filhas, genros, netos e bisneto.

Paulo Lotufo

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大字报 – Informativo Dazibao – Fé, fundamentalismo e Estado

Alguns dos movimentos recentes procuraram levar a mo-dernidade aos muçulmanos num contexto islâmico mais familiar do que o das ideologias importadas do Ocidente, levando aqueles que ficaram à margem do processo modernizador a compreender instituições como governo representativo e regime democrático.

Os fundamentalismos se constituem como experimentos religiosos modernos, tecidos com a ideologia da exclusão. Tomam a forma de uma fé combativa, que prevê a aniquilação do inimigo com ódio e violência. Sob muitos aspectos não operam dentro da separação entre Igreja e Estado praticada no mundo secular, e ten-tam recriar a plenitude perdida, levando a fé para dentro da políti-ca. A força ambígua dos fundamentalismos está na maneira como vinculam a sua ação modernizante com as atividades de destrui-ção. Se concordarmos que as relações sociais se materializam no espaço, compreenderemos o nascimento do corpo-bomba como o da mais poderosa representação do esforço do religamento da religião com o Estado. O corpo-bomba que junta fé e política23.

23 KATZ, Helena. Corpomídia não tem interface: o exemplo do corpo-bomba. Cor-po em cena. Anadarco Editora&Comunicação. 2010. v. I. p. 15 e 16.

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Título Provisório 327

Reabrimos o Centro Acadêmico, e agora?

Há mudança no Brasil. Ela não corre, mas anda.

Não corre, mas ocorre.

Herbert de Souza

Em 24 e 25 de setembro de 2017, da mesma forma que o Professor Ítalo Suassuna nos anos setenta do século passado permitiu a consulta para fins de pesquisa das atas do Conselho Departamental da faculdade, a pedido, o atual Diretor, Professor Mario Fritsch Toros Neves, permitiu o acesso às pastas dos assun-tos estudantis e das correspondências emitidas ou recebidas pela Faculdade de Ciências Médicas da UERJ.

De forma bastante resumida foram observados os seguintes fatos:

1) Todas as correspondências dos estudantes após a rea-bertura do Centro Acadêmico emitidas com origem no Centro Acadêmico não eram atendidas, eram devolvidas a fim de que aco-lhessem o despacho do Diretor da Faculdade de Ciências Médi-cas da UERJ somente sob a orientação de que era o Conselho de Representantes que tinha o reconhecimento legal da Direção para emitir documentos.

2) Em 2 de junho de 1978, por meio do Ofício Confidencial 2015 da Assessoria de Segurança e Informação – DR 3 – do Mi-nistério da Educação e da Cultura, o Chefe daquela DR, Sr. Walter Pinto de Moraes, solicitou dados sobre o ex-aluno Fritz Carl Utzeri,

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que abraçara a profissão de jornalista, e acabara de publicar matéria no Jornal do Brasil sobre o deputado Rubens Beyrodt Paiva, sob o título “Quem Matou Rubens Paiva?”, jamais tendo se filiado a ne-nhuma organização de esquerda, ao que consta, a Direção, tendo no exercício o Prof. Ítalo Suassuna, informou endereço de seis anos atrás, data do nascimento, entre outras informações de menores va-lores. A reportagem de Fritz sobre o caso Rubens Paiva começou, com justiça, a dar popularidade a Fritz Utzeri como o repórter que desmontava versões oficiais; o que veio a ser reforçado quando Fritz participou da reportagem do Caso Rio Centro, considerada uma das dez reportagens que mudaram a história do Brasil no século XX.

3) Sem outra maneira para obter permissão para o uso da quadra de esportes do Centro Acadêmico ou tratar de outros as-suntos como os da segurança e manutenção dos vestiários dos alunos, permissão para as realizações de shows organizados pelo MUSICEME, os estudantes expediam seus documentos em nome do Conselho de Representantes, sem deixarem de tratar o Centro Acadêmico, entre seus pares, como tal.

4) Gradativamente, durante o ano de mil novecentos e se-tenta e nove, expediam documentos com cabeçalho onde constava o nome “Conselho de Representantes”, mas assinavam os docu-mentos, ao fim do documento, da forma “pelo CA”, isto é, pelo Centro Acadêmico. Sem que o Diretor obstasse mais no sentido que se fizesse a retirada do termo CA em prol do uso da sigla CR.

5) Em 29 e 30 de maio de 1979, aconteceu em Salvador o 31º Congresso da União Nacional dos Estudantes; o Congresso da Une pôs fim a 13 anos de ilegalidade, no momento que crescia a pressão pela redemocratização do país. Notícias de jornais estão arquivadas em pasta de assuntos estudantis da época, a sinalizar que dentro da faculdade a diminuição da repressão à reabertura do Centro Acadêmico diminuiu na medida em que o Movimento Estudantil reabria nacionalmente suas entidades de representação, porque desde o referido Congresso o Diretor da faculdade passou a aceitar documentos expedidos pelo Centro Acadêmico.

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6) Durante os anos oitenta do século passado, o Centro Acadêmico não voltou a se chamar Centro Acadêmico Sir Ale-xander Fleming, só readotou seu nome de CASAF nos anos no-venta do referido tempo. Fechava-se naquela hora um ciclo de re-conquista plena da representação estudantil que, sem dúvida, foi penoso e difícil, tendo contado, entre outros, com os estudantes, hoje ex-alunos, a seguir relacionados: Hugo Fernandes Junior, Le-onor De Queiroz Lima, Isabel M. C. M. de Azevedo, Renato José Bonfatti (CICEME), Marcia Lázaro de Carvalho, Oziel Guimarães Riscado, Maria Angélica Bonilla Valladares, Sylvia Regina de Sou-za Moraes, Rosângela Caetano, Eduardo Vieira Neto, até o final dos anos oitenta. Infelizmente, não foi possível identificar com segurança todos os nomes por conta da grafia das assinaturas nos documentos expedidos pelo Centro Acadêmico.

7) O MUSICEME ao que consta se manteve em atividade ao menos até o início dos anos oitenta do século passado, orga-nizando shows na quadra de esportes e participando da vida uni-versitária. Em todos os shows realizados era solicitada, antes da realização, a liberação pela censura federal.

Fica, assim, registrada, ainda que de forma superficial, al-guma anotação da história do CASAF nos anos oitenta do sécu-lo XX, demonstrando-se, salvo melhor juízo a partir de pesquisa sobre a história dessa representação estudantil nos anos oitenta e noventa, que fogem do tempo proposto para estudo dessa história neste livro, que o Centro Acadêmico Sir Alexander Fleming só pôde resgatar seu nome cerca de vinte anos após ter sido fechado, no início de 1969.

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Foto de capa do 2º exemplar do Título Provisório. Arquivo da Alumni.

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Título Provisório 331

Considerações finais

O fim da guerra fria foi, para muitos, um acordar.Caíram dos olhos as escamas dos preconceitos.Inimigos dos tempos das lutas em que estavam

todos ensandecidos, aprenderam a dialogar,a respeitar suas diferenças e, por vezes, a buscar

antes o que os une que sublinhar o que os separa.Essa transformação ajuda a preservar, para o país,

a esperança.

Márcio Moreira Alves

1) Os elementos e instrumentos usados para tecer algumas considerações finais são de ordem literária, com duas vertentes: uma de sentimento épico e outra do sentimento do dever; foram estes sentimentos que intercederam positivamente na construção da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ. O que faz que se re-meta aos livros de Homero: Ilíada e Odisseia; e ao livro O trabalho e os dias, de Hesíodo. A saber: que os primeiros são atinentes ao sentimento do épico e o segundo ao sentimento do dever.

2) Dividiríamos os personagens da história em duas cate-gorias; quais sejam: os epicianos e os laborativos, entendendo--se que não há uma separação absoluta em estanqueidade entre esses personagens.

Posto isso, torna-se essencial ressaltar que houve momen-tos épicos construtivos e desconstrutivos em relação à construção histórica da faculdade. Isto é, não vai aqui uma receita do que foi

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melhor para a faculdade ou para o Brasil, porque tanto a coragem épica quanto o dever consequente são essenciais à construção das instituições ou dos países, sendo o esforço e a satisfação ou a frus-tração obtidas naturais ao processo histórico.

Desde sua fundação na década de 30 do século passado, a Faculdade de Ciências Médicas foi uma Sociedade Anônima. Pas-sou a ser uma faculdade pública em 1950, na recriação da Uni-versidade do Distrito Federal. Isso se deu no bojo de uma gre-ve ocorrida na Ciências Médicas, que teve apoio da UNE e da UME, sendo Presidente da Ume à época o então estudante Paulo Egydio Martins Filho, que foi recebido por Getúlio Vargas a fim de negociar o fim da greve. Mas Paulo Egydio não foi o único recebido por autoridades. O Presidente do Centro Acadêmico Sir Alexander Fleming também esteve com autoridades do Ministério da Educação. Mas, apesar de os jornais daqueles meados de ano de 1953 terem noticiado o fato, provavelmente a pedido do próprio líder dos alunos, seu nome não foi citado, em nenhuma notícia da greve de 1953. Havia ocorrido uma punição e um estudante havia sido suspenso.

A greve tinha o fulcro de questionar o comportamento do Reitor da Universidade do Distrito Federal, questionar o encareci-mento das mensalidades. Não foi uma greve para que a faculdade fosse incorporada à recém-recriada Universidade do Distrito Fede-ral. Embora tenha contribuído para aquele desenlace. Trata-se então de um momento épico, em que um movimento dos estudantes inter-feriu no destino da escola, de forma positiva e insofismável, quando apesar das subvenções ainda havia cobrança de mensalidades.

Quando a faculdade foi incorporada à Universidade do Dis-trito Federal, a universidade teve como Reitor o Professor Rolan-do Monteiro, idealizador e fundador da FCM. Essa nomeação veio a causar, cerca de dois ou três anos depois, nova greve dos alunos pela destituição do Reitor, que teve enterro simbólico entre ou-tras manifestações. Naquele momento, os epicianos contribuíram muitíssimo com a história da Faculdade. Como era uma faculdade

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Título Provisório 333

particular, há uma lacuna em relação ao que sucedeu com as ações da faculdade, e ao que parece ter acontecido aos acionistas, entre eles o maior de todos, que era o Dr. Rolando Monteiro, que cuidou privativamente das negociações das suas cotas. Não há, entretanto, ainda, elementos comprovatórios de nada disso, exceto a conjun-tura institucional fortemente sugestiva. O Dr. Rolando Monteiro é um dos grandes personagens laborativos da faculdade.

Na greve do fim dos anos cinquenta, que teve como persona-gens antagônicos o ex-aluno Virgílio Pinho da Cruz e o Diretor da Faculdade Álvaro Cumplido de Sant’Anna, o movimento épico, ao que consta, faz parte da história, mas talvez não tenha contribuído em nada para reorganização ou amadurecimento institucional. Mas os ex-alunos Marcos Moraes e Moisés Szklo viveram aquela greve, ainda a ser contada melhor em livro do ex-aluno Sansão Gorensein a ser publicado. Foram Marcos Moraes e Moisés Szklo que fizeram o trabalho junto aos vereadores para que o Hospital Pedro Ernesto viesse a fazer parte da faculdade, além de terem sido signatários do Estatuto da UEG, em 1962. Personagens com vivências épicas e laborativas, muito importantes, sem dúvida.

Quanto aos anos 60 as contribuições épicas foram predo-minantes, tanto pelas circunstâncias da história da família, quando houve forte questionamento do pater familia, quanto pela conjun-tura mundial complexa. Quando a juventude sacudiu o mundo. Entretanto, os dois legados daquela geração, não só a representada aqui, são de origem acadêmica e política, a primeira na realização do inquérito pedagógico que questionou o ensino e o currículo, e a segunda, mais pública do que endogâmica, com a participação nos processos de luta armada – que visava a implantação de uma ditadura do proletariado – e cuja perspectiva era, certa e errada, a tentativa de criar “melhores condições de vida para o povo”. Pers-pectiva da esquerda radical de então, cujos méritos e deméritos não serão aprofundados aqui, mesmo porque a radicalização contri-buiu para o amadurecimento político do país, com a promulgação da Constituição de 1988, como pode ser observado abaixo:

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A respeito dos aspectos legais dos parâmetros interpretati-vos dos fatos e personagens, foi seguida a baliza da Constituição Federal de 1988, que tratou explicitamente de alguns crimes. Tais crimes estão dispostos nos incisos XLII, XLIII e XLIV. Assunto: TODOS os crimes dos incisos XLII, XLIII e XLIV são INA-FIANÇÁVEIS. Vejamos o artigo e os incisos interessantes ao texto:

Artigo 5ºXLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpe-centes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucio-nal e o Estado Democrático;

Portanto:

XLIII – Tortura; Tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins; o Terrorismo; Hediondos.XLIV – Grupos Armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Todos esses crimes são Inafiançáveis.Voltando ao assunto, vamos separá-los em dois grupos:

1. Os imprescritíveis:GRUPOS ARMADOS (XLIV).

2. Os insuscetíveis de graça ou anistia:TORTURA; TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECEN-

TES E DROGAS AFINS; O TERRORISMO; HEDIONDOS.Os insuscetíveis de graça ou anistia são quatro. Ou seja, Ter-

rorismo + Tráfico + Tortura + Hediondos.

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Título Provisório 335

Revisando...

9 Todos os crimes descritos no artigo 5º (Incisos XLII, XLIII e XLIV) são inafiançáveis;

9 racismo e grupo armados são imprescritíveis.

Foi utilizado este balizamento constitucional para a inter-pretação dos fatos.

Os erros e omissões são de responsabilidade do autor. No-vamente posto isso, não estranhem se começar a escrever sobre os desdobramentos legais da Constituição de 1988. Aqui da forma mais sucinta possível: em primeiro lugar: a participação em grupos radicais que tentavam se organizar para derrubar a ditadura e im-plantar a ditadura do proletariado, fez com que a Constituição de 1988 condenasse a existência de grupos paramilitares à direita ou à esquerda. Essa foi, no Brasil, uma contribuição importante da ju-ventude dos anos sessenta, paradoxalmente, ao ter sido torturada, em alguns dos seus representantes, e ao denunciar a tortura quan-do pôde, contribui também para a criminalização legal da tortura, que, como fato histórico, apesar de hedionda, contribuiu para o desbarateamento das forças de esquerda clandestinas, ou tornadas clandestinas, como preferirem.

Não se deve esquecer que a esquerda matou ao menos cento e vinte e seis pessoas, e que o número de mortos pela ditadura foi igual a quatrocentos e trinta e quatro mortos e/ou desaparecidos. Em uma comparação do contingente numérico dos militares da ativa da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, com o contingente somado de todas as organizações de esquer-da clandestinas, a esquerda matou mais! Qual seria o resultado estatístico das mortes necessárias à implantação de uma ditadura do proletariado?

João Lopes Salgado, como personagem épico, evoca o he-rói Aquiles, da Guerra de Troia. Aquiles só começou a participar daquela guerra após a morte de Pátroclo, em combate vencido

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pelo troiano Heitor, que veio a ser vencido por Aquiles. De fato, Salgado abandonou a escola, por ser sargento da aeronáutica, por ter feito a opção pela luta armada. Nem Salgado, nem qualquer outro ex-aluno que tenha participado dessas forças orgânicas então clandestinas, e hoje proscritas pela Constituição de 1988, principalmente a partir da legalização dos partidos de esquerda, em sua perspectiva de “mudar o mundo” via luta armada, exerceu violência suficiente para tirar a vida de inocentes ou adversários. Embora ainda mantenha a crença na ditadura do proletariado, crê ter lutado um bom combate. Um justo combate. Era um tempo da internacionalização dos conflitos como o da Guerra do Vietnam, quando Ho Chih Min escreveu: “É preciso armar de aço os versos do nosso tempo”. Embora movimentos sobre o que aconteça em outros países às vezes sejam oportunos e justíssimos.

Aquela geração, apesar do equívoco da luta armada, equivo-cada, porém digna (como falou sobre ela em entrevista à TV Sena-do o comunista Jacob Gorender – digna?), tinha em seu idealismo a perspectiva de um país com problemas sociais mais bem resol-vidos, superação da fome. Sem caber aqui considerações sobre a luta armada, afinal condenada pela Constituição de 1988, no bojo de um processo, que se iniciou, no Rio de Janeiro ao menos, com a greve dos acadêmicos bolsistas – parte de um todo da Geração dos anos 70. E, principalmente, de personagens como Alexandre Kalache, aluno da Faculdade de Medicina da Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro, fundador da Associação dos Estudantes de Medicina do Estado da Guanabara (AEMEG) que, nos caminhos estritos, da legalidade, ao repudiar o terrorismo, junto com ou-tros Presidentes AEMEG, tendo a Faculdade de Ciências Médicas da então UEG sido representada pelo Presidente do CASAF de curtíssimo mandato, o então acadêmico André Jorge Rodrigues Campello Ferreira.

É obvio que não foram apenas os estudantes de medicina que contribuíram para a ordenação jurídica e social do país, mas muito contribuíram, a partir da criação da AEMEG, para levantar

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bandeiras que nunca se transformarão em trapos, e que, a despeito de lideranças políticas participantes da luta armada dizerem não terem do que se arrepender, ao menos, à luz da Constituição de 1988, por respeito à Lei Magna, em entender que, respeitadas a di-mensão mundial do problema da luta armada, cujo enfrentamento se deu dentro da ordem democrática em países da Europa, como a Itália e a Alemanha, onde os ex-combatentes da luta armada fo-ram exemplarmente punidos, inclusive com prisão perpétua, como ocorreu com militantes das Brigadas Vermelhas, na Itália. Onde esses militantes não morreram dentro da cadeia, como, misteriosa-mente, morreram os militantes da organização Baader Meinhoff, na Alemanha, apenas para lembrar que radicais de esquerda, inclu-sive na América Latina, como ocorreu com o stalinista Abimael Guzman, comandante do Sendero Luminoso, que cumpre prisão perpétua no Peru. Aqui, no Brasil, onde os militares erraram, prin-cipalmente, a partir do Ato Institucional n. 2, pelo combate do fenômeno mundial da luta armada, em casa, ter sido combatido sob uma ditadura.

Se nos reportarmos à Guerra de Troia, e a Eneida, que é a saga do troiano derrotado e herói Enéas, que fugido de Troia foi fundar a grandiosa Roma, aqui, no Brasil, aquela esquerda derro-tada teve como Cavalo de Troia, a implantação de uma ditadura, que se corrompeu e se deteriorou, que impediu que a esquerda radical e o terrorismo, que a esquerda teima em apenas chamar de ações, no máximo de ações equivocadas, como o atentado ao Ae-roporto de Guararapes em 1966, o ataque ao Quartel do II Exér-cito em São Paulo, com a morte do Soldado Mario Kozel Filho, os sequestros de embaixadores, e outras ações elencadas na nota que o MR-8 escreveu por ocasião do sequestro do Embaixador Charles Burke Elbrick. Tivesse este combate tido condições de ser travado sem uma ruptura total da ordem democrática, ao menos a partir de 1966, sem a promulgação do AI-2, teriam o terrorismo de esquerda e de direita e os torturadores sido punidos, ou não? O fato é que derrotados em solo pátrio esses na maioria das vezes

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autodenominados heróis, os Enéas brasileiros, nunca desistiram de criar uma outra pátria dentro do Brasil real, até porque não haveria como organizar fora do país. Embora muito mais em função dos dramas políticos do que de uma antevisão o país continue a se es-truturar e reestruturar do ponto de vista jurídico e social.

Organização jurídica e social essa da qual alguns alunos participaram de forma mais profunda, sob a influência de uma liderança católica e progressista, como foi o Professor Américo Piquet Carneiro, que, hoje, empresta seu nome ao prédio de ca-deiras básicas da FCM-UERJ; a partir da criação do Instituto de Medicina Social da UERJ, de onde o Professor Hésio Cordeiro se projetou. Na prática, esse insigne professor participou da or-ganização jurídica e social da universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Brasil, por ter sido o mais importante mentor do Sis-tema Único de Saúde, que hoje regulamenta a atuação do Hospital Universitário Pedro Ernesto, quando na condição de Presidente do Instituto Nacional de Previdência Social liderou o processo de implantação do Sistema Único de Saúde, hoje, se imperfeito, na prática, do ponto de vista da idealização, modelar para o mundo. Enquanto outros ex-alunos, anteriores a Hésio Cordeiro, como Moysés Szklo, tiveram função importante na ordenação dos esta-tutos da então UEG, quando assinou junto como Anísio Teixeira o Estatuto da Universidade.

Tratamos então a história da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como um estudo de caso, a fim de contribuir para a sua compreensão à luz do seu pas-sado. Ainda que o esforço neste sentido só possa ter chegado ao já remoto momento do início dos anos 80 do século XX. Sem ter conseguido distinguir de forma muito clara os personagens epicia-nos dos laborativos. E, inclusive, achando importante a existência dos mesmos.

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Título Provisório 349

O autor – dados biográficos

Fabio Daflon, em 1978, em foto do álbum de formatura da Turma FCM-UERJ-1978, e na atualidade.

Médico carioca, Fabio Daflon atuou como pediatra na Marinha e no Ministério da Saúde. É Especialista em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo. É ex-aluno da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ, Turma FCM-1978, tendo sido represen-tante de turma 1973-74 e atuado no MUSICEME – departamento de música do Conselho de Representantes – entre 1974 e 1977.

Quando médico residente da pediatria, participou da Asso-ciação de Médicos Residentes do Hospital de Clínicas da UERJ, nome que tentava expurgar o nome de Pedro Ernesto do hospital,

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350 Fabio Daflon

mas que não vingou, tendo hoje o hospital o nome de Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE). Participou das greves dos internos e de residentes ocorridas no fim dos anos 70 e início dos anos 80 e escreveu sobre essas estórias no livro Título Provisório.

Na Marinha, como oficial, esteve embarcado em navio de guerra, tem contos publicados sobre situações marinheiras ou marítimas, contos a publicar sobre causos médicos. Como poeta publicou os livros: Mar Ignóbil e Mar Sumidouro. Participou de co-autorias e antologias.

Coautor do romance Vento passado, escrito com seu pai, sobre as aventuras paternas na II Grande Guerra, enveredou também pela trilha da memória pessoal no livro Estrela miúda – breve romance infinito; publicou seu primeiro livro em 1980, um ensaio; sob o nome Título Provisório – o movimento estudantil na Faculdade de Ciências Médicas da UERJ.

Em 2016, publicou o livro Vagalume-farol – a pulcrocracia dos vaga-lumes, pela Scortecci Editora, sua obra de poesia mais madura e importante até o momento.

Vive em Vitória, Espírito Santo, desde 2005. Atualmente, dedica-se exclusivamente à escrita como ofício.

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