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Literatura na Educação Infantil acervos, espaços e mediações

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Literatura na Educao Infantilacervos, espaos e mediaes

B823 Brasil.CoordenaoGeraldeEducaoInfantil

Literatura na educao infantil: acervos, espaos e mediaes / Monica Correia

Baptista...[etal.],org.Braslia:MEC,2015.

187p.;27cm.

EstapublicaoreneostextosapresentadosnoSeminrioInternacional

LiteraturanaEducaoInfantil:acervos,espaosemediaes,realizadonosdias

08e09demaiode2014,emBeloHorizonte.

Organizadoras:MonicaCorreiaBaptista,RitadeCssiaFreitasCoelho,Vanessa

FerrazAlmeidaNeves,MariaFernandaRezendeNunes,PatriciaCorsino,AngelaRabeloBarreto.

ISBN978-85-8007-083-5

1.EducaoInfantil.2.LiteraturaInfantil.3.Infncia.I.Ttulo.II.Baptista,

MonicaCorreia,org.III.Coelho,RitadeCssiaFreitas,org.IV.Neves,VanessaFerrazAlmeida,

org. V. Nunes,Maria Fernanda Rezende, org. VI. Corsino, Patricia, org. VII. Barreto, Angela

Rabelo,org.

CDU:370.71:

Literatura na Educao Infantilv Acervos, espaos e mediaes v

4 v Acervos, espaos e mediaes v

LITERATURA NA EDUCAO INFANTIL

Apresentao 5 Mnica Correia Baptista, Rita de Cssia Freitas Coelho, Vanessa Ferraz, Almeida Neves, Maria Fernanda Rezende Nunes, Patrcia Corsino, Angela Rabelo Barreto.

Ler com as crianas pequenas 13 Dominique Rateau. As narratividades 31 Ligia Cademartori. Escuelas y construccin de acervos: libros de calidad

para la primera infancia 39 Alma Carrasco Altamirano. Elecciones y constitucin de acervos en la Educacin Infantil criterios

y condiciones de seleccin de libros 59 Cristina Correro y Teresa Colomer. Entrar na cultura escrita pela porta da literatura infantil: reflexes

a partir da pesquisa sobre a compreenso e os usos dos materiais

educativos Trilhas 81 Beatriz Cardoso e Anglica Seplveda. Por qu incluir proyectos de lectura en Educacin

Inicial? 107 Martha Beatriz Soto Martnez. Organizacin de acervos: espacios para los libros y la lectura

en la Educacin Infantil 121 Edith Sebastiana Corona Snchez. A organizao dos espaos de leitura na Educao Infantil 129 Edmir Perrotti. Infancia, lectura, escritura y politcas pblicas 145 Silvia Castrilln. PNBE: seleo, distribuio, circulao e usos de livros de literatura na

Educao Infantil: uma poltica em (re)construo 157 Aparecida Paiva. Sobre os autores 181

Sumrio

5 v Acervos, espaos e mediaes v

LITERATURA NA EDUCAO INFANTIL

Apresentao

Esta publicao rene os textos apresentados no Seminrio Internacional Literatura na Educao Infantil: acervos, espaos e mediaes, realizado nos dias 8 e 9 de maio de 2014, em Belo Horizonte. O seminrio foi uma das aes do projeto Leitura e Escrita na Educao Infantil, coordenado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pela Coordenao de Educao Infantil do Ministrio da Educao (COEDI/MEC), pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Para compreender o que motivou a organizao desse seminrio, bem como a atual publicao dos textos que fundamentaram os debates, importante retomar alguns aspectos que caracterizam a Educao Infantil no Brasil.

Nas ltimas dcadas, sobretudo a partir dos anos 2000, a Educao Infantil brasileira vem sofrendo intensas e significativas mudanas, no que diz respeito tanto ampliao do atendimento quanto s concepes que a fundamentam. Contamos hoje com um marco regulatrio bastante promissor do ponto de vista da garantia do direito educao da criana de zero a seis anos incompletos. Para exemplificar, podemos mencionar, em primeiro lugar, o fato de a definio de creche e pr-escola concebida pela Constituio Federal de 1988 estar dada unicamente pela distino etria. Dessa maneira, observam-se importantes rupturas com concepes que, durante anos, prevaleceram na realidade brasileira. A creche, destinada ao atendimento dos filhos de mes trabalhadoras, era compreendida como um mal necessrio, j

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que a educao das crianas pequenas seria uma tarefa materno-familiar; e as pr-escolas ou os jardins de infncia destinavam-se a crianas de famlias com maior poder aquisitivo e eram compreendidas como prembulo da escola obrigatria. O rompimento dessas vises resultou na concepo de educao como direito do cidado desde o nascimento, postulado pela Constituio Federal de 1988.

Um segundo aspecto que comprova as mudanas estabelecidas nesse marco legal e normativo a definio, conferida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, da Educao Infantil como primeira etapa da Educao Bsica. Compreendidas como integrantes do sistema educacional, creches e pr-escolas passam a ser regidas por normas especficas da rea educacional, que determinam o funcionamento e estabelecem critrios e parmetros de qualidade para esse atendimento.

Um terceiro fato a ser destacado que h, nas legislaes e nas normas, uma definio clara de que a esse direito corresponde o dever de o Estado, na figura prioritria dos municpios, assegurar a oferta de vagas para as crianas de zero a cinco anos.

Em quarto lugar, mencionam-se as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil. Tais Diretrizes se constituram em um instrumento normativo fundamental ao traar parmetros e critrios para a organizao das instituies e das prticas educativas, estabelecendo como eixos orientadores dessas prticas as interaes e a brincadeira, numa clara demonstrao de que so as crianas e a infncia as referncias para a construo do currculo nessa etapa educacional.

Finalmente, e de igual importncia, evidencia-se a determinao de que a avaliao deve possuir um carter processual e diagnstico, cumprindo o papel de fazer avanar o processo de desenvolvimento infantil, e nunca deve servir como instrumento de promoo ou de classificao.

Se, do ponto de vista das normas e leis, podemos considerar avanos significativos, igualmente, do ponto de vista do acesso, os dados tambm apontam conquistas no reconhecimento e na proteo do direito Educao Infantil. Ainda que o dficit de vagas, sobretudo de zero a trs anos, seja ainda uma triste realidade, contamos hoje com um nmero significativamente maior de crianas sendo atendidas do que h uma dcada. Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (INEP) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), no ano 2000, na faixa etria de zero a trs anos, menos de 10% das crianas frequentavam creches. Em 2013, aproximadamente 30% das crianas brasileiras nessa faixa etria estavam matriculadas, o que representa um aumento de mais de 100% do total de vagas. Em 2000 eram atendidas

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pouco menos de 40% de crianas de quatro e cinco anos de idade na pr-escola. Em 2013, quase 84% das crianas estavam frequentando a pr-escola.

A mudana no grau de formao dos professores que atuam nessa etapa da Educao Bsica tambm um indicador importante para compreendermos as alteraes que se processaram na rea. Contamos hoje com um nmero bem maior de professores formados em curso superior. Em 2000, convivamos com pouco mais de 10% de professores com ensino superior, atuando em creches. Em 2013, eram quase 60% de professores com esse grau de formao. Na pr-escola, eram, em 2000, 23% de professores com curso superior. Em 2013, so mais de 60%. Essas mudanas extremamente importantes convivem, entretanto, com o problema relutante da qualidade do atendimento. Dentre os mltiplos aspectos que perpassam a discusso sobre a qualidade, a questo do que ensinar e do como faz-lo so de extrema importncia para a construo da identidade dessa etapa da educao bsica.

O aprendizado da linguagem escrita um dos temas emblemticos nessa construo da identidade da Educao Infantil. Durante muito tempo, insistiu-se na pergunta alfabetizar ou no na pr-escola?. Preocupados em nos mantermos em um ou outro extremo dessa falsa polmica, afastamo-nos de perguntas fundamentais como O que entendemos por alfabetizao?, O que ocorre quando ensinamos algum a ler e a escrever?, Como assegurar criana uma trajetria de sucesso no seu processo de apropriao da linguagem escrita?, O que consideramos uma trajetria de sucesso no processo de apropriao da linguagem escrita?, Como dar continuidade a um processo de construo de conhecimento que se iniciou antes da entrada da criana numa instituio educativa?, Como garantir que a criana no perca o interesse que desde cedo demonstra em relao s linguagens e, em especial, linguagem escrita?, Qual o papel da Educao Infantil nesse processo?, O que precisa saber um professor de crianas de zero a cinco anos para ajud-las no seu processo de apropriao da linguagem escrita?.

Considerando que estas e outras perguntas precisariam ser prontamente respondidas, em 2008, o Ministrio da Educao (MEC), por meio da Coordenadoria da Educao Infantil (COEDI), promoveu uma reunio tcnica em Braslia com especialistas das reas de alfabetizao, leitura e escrita e Educao Infantil com os seguintes objetivos:

1. Analisar o papel da Educao Infantil na formao do leitor e as demandas para uma poltica nacional de leitura;

2. Construir um posicionamento sobre o papel da Educao Infantil na formao

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do leitor para que o MEC possa assumi-lo na orientao dos sistemas de ensino;

3. Tornar visvel a especificidade da Educao Infantil, diferenciando esta etapa da Educao Bsica do Ensino Fundamental, bem como da ao da famlia e da comunidade.

Aps essa reunio, teve incio o Programa Currculo em Movimento, que culminou, em 2010, com a publicao de textos que abordaram diferentes dimenses do cotidiano pedaggico de creches e pr-escolas. A elaborao desses textos, conforme orientaes do Ministrio da Educao (MEC), deveria ser precedida de ampla discusso com gestores, professores e pesquisadores. As temticas escolhidas buscaram tratar temas considerados relevantes e prioritrios na perspectiva do currculo e promover um dilogo entre a rea educacional e as determinaes contidas nas Diretrizes Curriculares Nacionais. Para favorecer esse debate, os textos foram disponibilizados, durante meses, para consulta pblica no site do Ministrio (MEC). Entre as temticas definidas, a discusso sobre a leitura e a escrita resultou na elaborao do texto A linguagem escrita e o direito educao na primeira infncia (BAPTISTA, 2010).

Em 2013, com o compromisso de dar continuidade aos debates promovidos pelo Programa Currculo em Movimento, o MEC, por meio da COEDI, retomou seu papel de mobilizao e de coordenao desse debate em nvel nacional e realizou uma nova reunio tcnica, na qual pesquisadores, representantes da Organizao dos Estados Iberoamericanos (OEI) e gestores pblicos construram os consensos a seguir:

1. A urgncia de o MEC assumir um posicionamento quanto s orientaes para um trabalho pedaggico com a leitura e a escrita na Educao Infantil;

2. A necessidade de que as propostas pedaggicas contemplassem prticas que assegurassem a continuidade do processo de insero das crianas de zero a cinco anos na cultura letrada, at mesmo por uma questo de justia social;

3. A noo de que reduzir a discusso da leitura e da escrita dicotomia alfabetizar ou no na Educao Infantil seria um equvoco, uma vez que o cerne do problema reside no que deve ser priorizado na Educao Infantil e em como possibilitar o acesso das crianas cultura escrita;

4. A necessidade de que fosse assegurado, nas creches e nas pr-escolas, um vasto acervo de livros de literatura e de livros informativos adequados a cada uma das faixas etrias que constituem a Educao Infantil;

5. A noo de que, para o sucesso dessas determinaes, a formao dos professores da Educao Infantil deveria ser assegurada a partir de aes continuadas referenciadas nas prticas e na formao cultural dos docentes;

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6. A clareza de que o dilogo com os gestores municipais de educao seria imprescindvel para o fortalecimento das polticas de Educao Infantil e de um trabalho de rede capaz de integrar a formao s prticas pedaggicas.

Nesse mesmo ano de 2013, iniciamos, UFMG, UFRJ, UNIRIO e COEDI, a elaborao do projeto Leitura e escrita na Educao Infantil, dando continuidade ao processo desencadeado em 2008 e entendendo que, para a superao dos desafios relacionados apropriao da linguagem escrita na Educao Infantil, seria necessrio, de um lado, promover um amplo debate entre pesquisadores, gestores, professores da Educao Infantil e demais interessados e, de outro lado, investir na formao dos professores. Assim, coerente com o compromisso de assegurar s crianas uma educao de qualidade e amparado na noo de que o acesso cultura escrita um dos elementos que compem a qualidade do atendimento educacional na primeira infncia, o projeto Leitura e escrita na Educao Infantil (MEC/UFMG/UFRJ/UNIRIO) tem o objetivo de formular e difundir proposies para o desenvolvimento de prticas pedaggicas de leitura e escrita na Educao Infantil comprometidas com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil.

Por meio de estratgias de ampliao do debate acerca do papel da Educao Infantil no processo de apropriao da linguagem escrita pela criana, pretende-se refletir acerca das seguintes questes: Que prticas pedaggicas deveriam ser desenvolvidas junto s crianas de zero a cinco anos de idade em relao leitura e escrita? Considerando o desenvolvimento intelectual, emocional, psquico e motor das crianas nessa faixa etria, como planejar e executar situaes de aprendizagem com o objetivo de promover a interao das crianas com a cultura letrada? Como conciliar prticas pedaggicas de leitura e escrita na Educao Infantil numa perspectiva interativa, relacional, dialgica na qual as crianas so entendidas como sujeitos implicados ativamente na coconstruo do conhecimento e na sua prpria identidade e na dos demais?

Compreendendo a importncia que a literatura assume no apenas na formao de leitores, mas tambm na prpria constituio dos sujeitos, definiu-se a Literatura na Educao Infantil como temtica para desencadear as primeiras discusses do projeto. O contato com a literatura pode oferecer s crianas, desde a mais tenra idade, o material simblico inicial para que possam ir descobrindo no apenas quem elas so, mas tambm quem elas querem e podem ser. O seminrio Literatura na Educao Infantil: acervos, espaos e mediaes pretendeu constituir-se como um espao de escuta dos convidados, palestrantes e pblico em geral, que generosamente ajudaram a pensar, a responder e a formular perguntas, algumas delas surgidas no prprio encontro.

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O seminrio contou com quatro mesas-redondas. Na primeira mesa, Literatura, primeira infncia e Educao Infantil, Dominique Rateau (Frana), Ligia Cademartori (Brasil) e Patrcia Corsino (Brasil) discutiram a literatura para as crianas menores de seis anos e o papel da Educao Infantil na formao de leitores. As perguntas propostas para essa mesa foram: Qual a importncia da literatura na formao das crianas? Como a literatura vem cumprindo esse papel formador? Como se caracteriza a literatura destinada a crianas menores de seis anos? Que tendncias podemos perceber no processo de sua constituio? Como a Educao Infantil se relaciona com a literatura? Como a Educao Infantil deveria se relacionar com a literatura? Qual o papel da Educao Infantil no processo de letramento literrio das crianas?

Na segunda mesa, Escolhas e constituio de acervos na Educao Infantil, Alma Carrasco Altamirano (Mxico), Cristina Correro (Espanha), Beatriz Cardoso (Brasil) e Anglica Seplveda (Brasil) debateram os critrios e as condies de escolha de livros de literatura para a Educao Infantil. Propusemos as seguintes questes: Como definir qualidade literria em livros para crianas menores de seis anos? Que parmetros e critrios podem orientar a escolha de livros de literatura para cada faixa etria entre 0 e 6 anos de idade? Como esses parmetros e critrios se relacionam com os aspectos sociais e culturais do mundo contemporneo? Alm de acervos de livros de literatura, que outros materiais/acervos seriam oportunos para compor uma biblioteca para a primeira infncia?

A terceira mesa-redonda, Organizao de acervos: espaos de livros e leitura na Educao Infantil, Martha Beatriz Soto Martnez (Mxico), Edith Corona (Mxico) e Edmir Perrotti (Brasil) apresentaram formas de organizao dos espaos de livros e de leitura na Educao Infantil a partir das seguintes perguntas: Como organizar os acervos nos diferentes espaos e contextos da Educao Infantil? Que classificaes so sugeridas para a catalogao e a organizao dos livros infantis em bibliotecas de instituies de Educao Infantil? O que caracteriza experincias de qualidade na organizao de espaos de livros e leitura na Educao Infantil? Que projetos podem ser desenvolvidos pelas bibliotecas escolares e no escolares a fim de ajudar a promover a leitura de literatura na Educao Infantil?

Na quarta e ltima mesa, Polticas pblicas e literatura na Educao Infantil, Silvia Castrilln (Colmbia), Aparecida Paiva (Brasil) e Jnia Sales (Brasil) problematizaram as polticas pblicas de seleo, distribuio de livros de literatura infantil e de promoo da leitura no Brasil. As perguntas propostas para essa mesa foram: Quais so e como se caracterizam as polticas de seleo e distribuio de livros de literatura para a Educao Infantil? O que as diferencia das dos demais segmentos da Educao Bsica? Quais as possibilidades e os desafios encontrados na implantao dessas polticas? Como essas polticas vm sendo avaliadas? Que sugestes e indicaes de mudanas as experincias do Programa Nacional

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da Biblioteca Escolar apontam? Que caractersticas deveriam possuir as polticas destinadas seleo e distribuio de livros para crianas menores de seis anos, considerando os desafios enfrentados e as necessidades delineadas? Como articular politicas pblicas de distribuio de livros com as de organizao e implantao de bibliotecas escolares e de promoo de leitura na Educao Infantil? O que apontam as experincias de outros pases para se repensar as politicas brasileiras?

A escrita dos textos desta publicao foi solicitada ao mesmo tempo que se fez o convite aos palestrantes. A orientao dada foi de que os autores problematizassem as temticas de cada mesa, tomando como referncia o projeto Leitura e escrita na Educao Infantil, ao qual todos tiveram acesso. Esta publicao o resultado desse trabalho, que significou um momento muito especial para a Educao Infantil e para todos os que defendem o direito das crianas a uma educao de qualidade.

Os dois primeiros textos desta coletnea discutem a importncia da literatura para as crianas menores de seis anos e o papel da Educao Infantil na formao de leitores. Dominique Rateau e Ligia Cadermartori nos falam sobre o encontro entre a infncia, as crianas e os livros de literatura, com suas belas imagens. E, mais alm, elas nos reafirmam a importncia do adulto na mediao desse encontro, o papel da observao, a multiplicidade de crianas e infncias, a construo da narrao, o ldico... Dessa forma, h uma defesa de que necessrio um processo de aprendizagem no encontro entre crianas e literatura.

Os textos de Alma Carrasco Altamirano, Cristina Correro e Teresa Colomer nos incitam a refletir sobre os critrios e condies de escolha de livros de literatura para a Educao Infantil. As autoras atestam que bons livros so aqueles que nos fazem imaginar, pensar, narrar, ampliar nossas referncias ticas, estticas e culturais. So bem escritos, belamente ilustrados, planejados, organizados. Argumenta-se que eles sejam muitos e variados e que estejam disponveis para as crianas e os adultos. Beatriz Cardoso e Anglica Seplveda apresentam resultados de estudos realizados a respeito do uso do material Trilhas para o ensino inicial da leitura, a escrita e a oralidade em salas de aula de crianas de seis anos.

Martha Beatriz Soto Martnez, Edith Corona e Edmir Perrotti nos falam sobre as formas de organizao dos espaos de livros e de leitura em bibliotecas para crianas pequenas, trazendo algumas experincias bem-sucedidas no Mxico e no Brasil. Tais experincias nos ajudam a pensar sobre a especificidade dos espaos de leitura para crianas e suas famlias. Espaos onde haja possibilidades para o encontro com o outro e consigo mesmo e para o encantar-se com o mundo. Espaos que informam e formam.

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As polticas pblicas de seleo, distribuio de livros de literatura infantil e promoo da leitura no Brasil so o tema dos escritos de Aparecida Paiva e Silvia Castrilln. Os avanos e os desafios dessas polticas so criticamente apresentados, fazendo com que o leitor se sinta provocado a refletir mais sobre as condies concretas em que tais polticas so implementadas.

Esta publicao pretende dar continuidade ao profcuo debate que marcou os dois dias do seminrio Literatura na Educao Infantil: acervos, espaos e mediaes. Neles, nossos convidados puderam compartilhar ideias, debat-las com os colegas, dando forma ao exerccio de construo de divergncias que Viveret (2006), ao mencionar as contribuies de Habermas, considerou essencial para que se chegue a um acordo sobre os objetos de discrdia, o que pressupe uma escuta (ou leitura) atenta das posies alheias, uma capacidade de compreender o ponto de vista do outro, mesmo que no se compartilhe dele.

Outros momentos de debate esto previstos durante a execuo do projeto Leitura e escrita na Educao Infantil. Esperamos que neles possamos delimitar, cada vez com maior preciso, o objeto de nossas discordncias e, assim, vivenciar um progresso real na qualidade do debate e um enriquecimento de nossos conhecimentos recprocos (VIVERET, 1996). Esperamos que essa maior clareza daquilo que nos une e daquilo que nos difere contribua para que as crianas e suas infncias sejam cada vez mais acolhidas nas prticas pedaggicas da Educao Infantil.

Mnica Correia Baptista, Rita de Cssia Freitas Coelho, Vanessa Ferraz Almeida Neves, Maria Fernanda Rezende Nunes, Patrcia Corsino, Angela Rabelo Barreto.

Referncias:BAPTISTA, Mnica Correa. A linguagem escrita e o direito educao na primeira infncia. In: BRASIL.

Ministrio da Educao. Programa Currculo em Movimento. Braslia: MEC, 2010. p. 1-7. Disponvel

em: . Acesso em: 27 out. 2015.

BRASIL. Ministrio da Educao. O papel da educao infantil na formao do leitor. Braslia: MEC,

2008. Reunio Tcnica.

BRASIL. Ministrio da Educao. Orientaes para uma poltica de leitura e escrita na educao infantil:

concluses e proposies da reunio tcnica MEC-OEI. Braslia: MEC, 2013. No publicado.

VIVERET, Patrick. Reconsiderar a riqueza. Braslia: Universidade de Braslia, 2006. 221 p.

http://goo.gl/YnqEP4

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Ler com as crianas pequenas

Dominique Rateau

No h idade para ler livros de imagens nem para introduzir a literatura

Dizer e repetir, repetir quantas vezes for necessrio, esse o nosso dever, que emprega o melhor de nossas foras e que somente findar com elas.Louis-Ren Des Forts Pas pas jusquau dernier, Mercure de France, Frana, 2001.

Primeiramente nasce o homem, depois nasce a condio humana.Boris Cyrulnik, Edgard Morin - lAube poche essai, Frana, 2004. (edio original

2000), Dialogue sur la nature humaine.

Todas as coisas, Luclio, nos so alheias, s o tempo nosso. Sneca (Crdoba 2 a.C - 65 d.C), Aprendendo a viver.

Certos encontros nos transformam.Sejam eles com pessoas, sejam com livros com ou sem imagens , eles nos transformam, nos abalam, nos surpreendem, nos desconcertam, nos desestabilizam...

Questionando o sentido de nossas vidas, eles nos tornam vivos.

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LITERATURA NA EDUCAO INFANTIL

Na Frana, um movimento anunciado nos anos 1970...

Foi no sculo passado.

No havia telefone celular, nem computador pessoal, nem internet, nem correio eletrnico... As mquinas de escrever eram geralmente mecnicas, e as fotocopiadoras, muito raras. Quando se desejava reproduzir um texto em vrios exemplares, sem recorrer grfica, digitvamos o texto em estncil1 e o reproduzamos com a ajuda de mquinas que funcionavam a lcool e que exalavam um cheiro forte e nauseativo.

Foi com essa tcnica da folha roneotipada que Denise Escarpit2 publicou, em abril de 1972, o nmero zero do primeiro boletim de Nous Voulons Lire!3

Dez anos antes, La Joie par les Livres4 havia sido criada em 1963 por iniciativa de Anne Gruner-Schlumberger, mecenas privada. Um dos objetivos da patrocinadora era construir uma biblioteca moderna para crianas de um bairro popular. Desse modo, a biblioteca das crianas e dos jovens da Plaine,5 tambm chamada Petite Biliothque Ronde, abriu suas portas em 1965, em Clamart, no subrbio parisiense, sob a direo de Genevive Patte.6 Ao mesmo tempo, La Joie par les Livres implantava um centro de documentao sobre a infncia e o livro infantil e se associava Association des Bibliothcaires de France7 para editar, a partir de 1965, o Bulletin dAnalyse de Livres pour Enfants, que considerado, de certa forma, o ancestral da atual Revue des livres pour enfants.8 Voltemos Denise Escarpit,9 pesquisadora universitria, e sua iniciativa pessoal.

1. Definio do Grand Larousse Universel: suporte para a escrita que permite a reproduo de um grande nmero de cpias atravs de um duplicador.

2. Universitria, pesquisadora, especialista em literatura infantil, Denise Escarpit publicou, em 2008, La littrature jeunesse: itinraires dhier aujourdhui. Com a participao de Pierre Bruno, Christiane Connan-Pintado, Florence Gaotti, Philippe Geneste, Janie Godfrey, Rgis Lefort. Paris, Magnard: 2008, 473 p.

3. Nous Voulons Lire! atualmente NVL edio trimestral de informao sobre o livro infantil, publicada por NVL/CRALEJ (Centre de Ressources Aquitain pour la Littrature dEnfance et de Jeunesse. http://www.nvl-cralej.fr/).

4. Desde 10 de janeiro de 2008, La Joie par les Livres um servio do Departamento de Literatura e Arte da Biblioteca Nacional da Frana.

5. WIKIPEDIA. La Petite Bibliothque Ronde. Disponivel em: . Acesso em: 28 out. 2015. 6. Sobre Genevive Patte, ver: . 7. Association des Bibliothcaires de France. Biblib Bibliothque pour laccs libre linformation et aux savoirs. Disponvel

em: . Acesso em: 28 out. 2015.8. BIBLIOTHQUE NATIONALE DE FRANCE. La Revue des Livres pour Enfants. Disponvel em: .

Acesso em: 28 out. 2015.9. VISTICOT, Christian. Littrature: Denise Dupont-Escapit se souvient. SudOuest, Paris, 18 nov. 2011. Disponvel em: . Acesso em: 28 out. 2015.

http://www.nvl-cralej.fr/http://goo.gl/Id6aoOhttps://goo.gl/8P3i7Ohttp://www.babelio.com/auteur/Genevieve-Patte/38660http://goo.gl/Klov3hhttp://www.abf.asso.fr/http://www.abf.asso.fr/http://goo.gl/kcVcjmhttp://goo.gl/z9Pnmuhttp://goo.gl/z9Pnmu

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LITERATURA NA EDUCAO INFANTIL

Desde o primeiro folheto de Nous Voulons Lire, a autora manifesta sua vontade de se dirigir aos docentes, bibliotecrios, livreiros especializados, mas tambm, e, sobretudo, segundo ela, a vocs, pais, pelo fato de estarem envolvidos diretamente com a educao e a formao de seus filhos.

Durante os trs primeiros nmeros, Denise Escarpit expe, ao mesmo tempo, determinado contexto cultural relacionado aos livros e leitura: muito poucas bibliotecas, ainda menos livrarias especializadas... e encoraja os pais a reforarem os laos de seus filhos com os livros e a leitura. A pesquisadora insiste na necessidade de lerem juntos, na proximidade dos corpos, e afirma o quo importante que o livro seja associado ideia de afeio, de famlia, que ele faa parte do ambiente natural da criana.

Segundo Escarpit, a criana que, entre 3 e 6 anos, pega um livro de imagens e explora cada uma das imagens l.Com essa afirmao, a pesquisadora altera as representaes comuns do ato de ler, defendendo a ideia de que esse ato precede a aquisio do cdigo, questionando, assim, as noes de aprendizagem.

Nos anos 1970, j existia uma produo de livros de imagens impressionante, criativa, fabulosa...

No sou historiadora da infncia nem especialista da literatura infantil, mas essas referncias me ajudam a pensar a histria do encontro dos lbuns e das crianas pequenas. Nos anos 1930, os lbuns do Pre Castor10 tiveram um papel muito importante, pois renovaram completamente o livro infantil na Frana, tanto por seu aspecto quanto por seu contedo, seu grafismo, suas imagens e seus textos.11

Em meados dos anos 1930, outra revoluo se anuncia, quando artistas e editores utilizam cada vez mais imagens nos livros e atribuem um lugar cada vez mais audacioso imagem, de tal forma que ser necessrio estabelecer uma distino entre livros ilustrados e lbuns.Em 1972, o editor Robert Delpire publica Les larmes de crocodile, de Andr Franois, e Max et les Maximonsters,12 traduo do livro do autor norte-americano Maurice Sendak. Essas duas obras so referncias na histria da literatura infantil na Frana.

10. Paul Faucher o fundador dessa editora.11. BIBLIOTHQUE NATIONALE DE FRANCE. Lalbum: embleme de lvolution du livre pour enfants. Paris. Disponvel em:

. Acesso em: 28 out. 2015.12. SENDAK, Maurice. Max et les Maximonsters. Paris: ditions de lcole des Loisirs. 1967.

http://goo.gl/XOnAZK

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LITERATURA NA EDUCAO INFANTIL

Ainda em 1972, o editor norte-americano Harlin Quist havia se associado, na Frana, com Franois Ruy-Vidal, publicando, juntos, 33 lbuns, muito pouco convencionais, pois pretendiam que as crianas pudessem se reconhecer com suas alegrias, hesitaes, contradies e angstias em seus lbuns.13

Nesse mesmo ano, a seo infantil da Gallimard criada por Pierre Marchand e Jean Olivier Hron, e ir marcar a histria da edio francesa.

A cole des Loisirs j havia publicado Les trois brigands (1968) e Le Gant de Zralda (1971), de Tomi Ungerer; Il ne faut pas habiller les animaux (1971), de Judi e Ron Barrett; Le Magicien des couleurs (1971), de Arnold Lobel; Les aventures dune petite bulle rouge (1970), de Iela Mari; e tambm, nesse mesmo ano, Luf et la poule e La pomme et le papillon, de Enzo e Iela Mari; Petit bleu petit jaune, de Lo Lionni; Monsieur le livre voulez-vous maider, de Charlotte Zolotow e Maurice Sendak; Un baiser pour Petit Ours, de Else H. Minarik e Maurice Sendak; e, posteriormente, Lo (1972), de Robert Kraus e Jos Aruego. Todos esses lbuns ainda fazem parte do catlogo da cole des Loisirs.

Em 1972, Le Sourire qui Mord ainda no existia como editora, mas o coletivo Pour un Autre Merveilleux, criado aps maio de 1968, trabalhava ativamente para compreender a relao estabelecida entre literatura infantil e sociedade. Desse trabalho coletivo e da forte vontade de Christian Bruel14 nasce, em 1975, o lbum Julie qui avait une ombre de garon, concebido por Christian Bruel, Anne Galland e Anne Bozellec.15

Em 1972, Franoise Dolto,16 pediatra e psicanalista que se definia como mdica da educao, ainda no falava no rdio,17 e a psicanlise era reservada apenas a alguns iniciados.

Porm, novas reflexes estavam por vir em uma sociedade abalada pelos acontecimentos de maio de 1968. Novos movimentos questionavam os lugares e os papeis das mulheres na sociedade, as relaes entre homens e mulheres, a sexualidade, a contracepo, os

13. BIBLIOTHQUE NATIONAL DE FRANCE. Histoires de lalbum par ses crateurs.... Paris, 2008. Disponvel em: . Acesso em: 28 out. 2015.

14. Christian Bruel, diretor das edies Le Sourire qui Mord (1976-1997) e das ditions tre (1997-2009), intervm atualmente como formador.

15. BIBLIOTHQUE NATIONAL DE FRANCE. Histoires de lalbum par ses crateurs.... 16. Pediatra e psicanalista francesa que se interessou especialmente por crianas e famlias (1908-1988).17. Programa cotidiano na Rdio France Inter (rdio publica francesa), dirigido por Jacques Pradel, de outubro de 1976 a

outubro de 1978, durante o qual Franoise Dolto respondia s questes dos ouvintes sobre a educao de seus filhos.

http://goo.gl/ppXjtRhttp://goo.gl/ppXjtR

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mtodos de parto, a educao das crianas, a pedagogia na escola e fora dela, a forma de exercer a medicina, a psiquiatria. Um novo olhar sobre a infncia e a pequena infncia emergia, graas s contribuies de psicanalistas como Michel Soul, Serge Lebovici, Ren Diatkine.

A Frana comeava a implantar um plano de ao para conduzir uma poltica de desenvolvimento da leitura pblica. As bibliotecas municipais eram construdas, e os bibliotecrios, notadamente aqueles especializados em literatura infantil, tinham o projeto de acolher novos pblicos e, inspirando-se no que o movimento ATD Quart Monde18 havia iniciado desde os anos 1960 com as bibliotecas de rua, propunham-se tirar os livros da biblioteca para ir ao encontro de novos leitores.

As livrarias especializadas em literatura infantil se desenvolviam em uma poca em que no existiam, na Frana, lojas de departamentos culturais nem lei sobre o preo nico do livro.19 A audcia dos editores de literatura infantil atingia os leitores adultos, agradava a alguns pedagogos, inquietava certos pais e educadores, questionava os bibliotecrios.

Enfim, os livros de imagens criavam debates e, mesmo aps a publicao de Max et les Maximonsters, por Delpire, em 1967, muito poucos exemplares foram vendidos. As discusses acerca desse lbum foram acirradas, quando a cole des Loisirs o editou, por sua vez, em 1973.Foi nesse contexto de questionamentos, reflexes, debates, utopias e esperanas de liberdade que, pouco a pouco, novos olhares permitiram a emergncia de novos projetos.

Desde 1972, Denise Escarpit militava pelo desenvolvimento da leitura dentro das famlias. A pesquisadora ressaltava a importncia para as crianas de encontrar livros de imagens desde a primeira infncia, antes da idade da aprendizagem.

Militante da pr-escola,20 Escarpit estava convencida, assim como certo nmero de movimentos pedaggicos, da importncia para as crianas de ter contato com livros antes

18. ATD QUART MONDE. Page daccueil. Disponvel em: . Acesso em: 28 out. 2015. ATD QUART MONDE. Agir tous pour la dignit: refuser la misre avec ceux qui la vivent, Pierrelaye. 2015. Disponvel em:

. Acesso em: 28 out. 2015.19. A Lei de 1981, chamada Lei Lang, instaurou o preo nico do livro. Na Frana, o livro tem o mesmo preo em qualquer

ponto de venda.20. Na Frana, as crianas so escolarizadas na pr-escola, entre 3 e 6 anos. s vezes, em certas condies, desde os 2 anos de

idade.

https://www.atd-quartmonde.fr/http://www.atd-quartmonde.org/

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da escola, da importncia de ter livros para si e de poder compartilhar a leitura destes em contexto familiar.

No incio dos anos 1980, as crianas pequenas rejuvenesceram...

Em 1979, um colquio,21 organizado pelo Ministre de lducation, sobre a aprendizagem e a prtica da leitura na escola reuniu, pela primeira vez, para uma reflexo comum, docentes, pesquisadores em pedagogia e vrias personalidades conhecidas por seus trabalhos sobre o desenvolvimento da linguagem, o desenvolvimento da leitura e o desenvolvimento da criana.Ren Diaktine, psicanalista, esteve presente.

Genevive Patte,22 j militante do acesso das crianas pequenas biblioteca, tambm participou do colquio. Emilia Ferreiro, pesquisadora procedente da Argentina, professora de psicologia e das cincias da educao na Universit de Genve,23 que havia ressaltado que as crianas que tinham livros em suas casas entravam mais facilmente no processo da escrita, tambm esteve presente.

Desse colquio, emergiu a vontade de inscrever a leitura no somente no campo da tcnica e da aprendizagem, como tambm no campo social e no campo do desenvolvimento humano. Foi com essa preocupao e com a de inscrever a leitura como base social, econmica e poltica de uma sociedade democrtica que nasceu a associao A.C.C.E.S. Actions Culturelles contre les Exclusions et les Sgrgations por iniciativa de Marie Bonnaf, Tony Lain, Ren Diaktine, todos os trs psiquiatras e psicanalistas. Trabalhando com os setores pblicos da pequena infncia e do livro, A.C.C.E.S. abre-se, desde o incio dos anos 1980, para promover, desde a mais tenra idade da vida, o encontro dos adultos, dos bebs e dos livros.

21. CENTRE NATIONAL DE DOCUMENTATION PDAGOGIQUE. Apprentissage et pratique de la lecture lcole: actes du Colloque de Paris, 13-14 juin 1979. Paris: Centre National de Documentation Pdagogique, 1979. 343 p. (Mmoires et documents scolaires).

22. FRANCE CULTURE. Genevive Patte. Disponvel em: . Acesso em: 28 out. 2015.22. Aluna de Jean Piaget.23. Com uma equipe de cinco educadores e psicanalistas.

http://goo.gl/h4RuQ1

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Nos anos 1980, um contexto favorvel ao encontro de livros, bebs e famlias...

Em 1984, a notvel srie Le bb est une personne, escrita por Bernard Martino, Tony Lain e Gilbert Lanzun e realizada por Bernard Martino, transmitida pela televiso francesa em um horrio de grande audincia. A partir desse momento, um movimento que visava considerar o desenvolvimento humano da criana pequena desde sua chegada ao mundo estava em curso. Franoise Dolto, fiel sua vocao de mdica da educao, havia criado, em 1979, em Paris, La Maison Verte. Com uma equipe de seguidores, ela dirigiu esse espao, que no era nem uma creche, nem um jardim de infncia, nem um centro de sade, apenas uma casa em que se permite uma vida social desde o seu nascimento para as crianas e seus pais, s vezes muito isolados, diante das dificuldades cotidianas, escreve.

Foi, sem dvida alguma, desse duplo movimento, por um lado a estima do beb e, por outro, uma maravilhosa produo de livros de imagens, que nasceu essa iniciativa cultural, que teve como objetivo colocar o livro ao alcance de todos, desde a mais tenra idade.

Rene Diaktine, poca presidente da A.C.C.E.S, escreveu: Em lugares mais inesperados, coloquemos livros disposio das crianas e as pessoas mais srias se entusiasmam com seu prprio entusiasmo. a via mais segura para que um dia eles compreendam o mundo e tenham o desejo de transform-lo.25

Em toda a Frana, associaes, leitores isolados, bibliotecas infantis, profissionais da pequena infncia, livreiros especializados ou no, escutando os pioneiros e desejando relacionar livros, adultos e crianas pequenas bem antes da pr-escola, desenvolveram projetos envolvendo aes e reflexes.

Foram lidos livros de imagens em todo lugar em que se encontravam crianas menores de 3 anos, acompanhadas de seus pais, pois, como o disse Winnicott,26 um beb sozinho no existe... Os profissionais e os leitores do projeto leram com as crianas e com os adultos que cuidavam delas. Esses leitores itinerantes se mostraram leitores de livros de imagens.O objetivo principal dos projetos era facilitar o encontro com as narrativas e tudo o que isso pode engendrar em termos de elaborao da lngua, do pensamento, do desenvolvimento do imaginrio, da capacidade de sonhar...

25. Apostila Lis avec moi, dit bb, realizada em 1994 pela A.C.C.E.S., Lis-avec-moi/ADNSEA,SDAC de Luxemburgo. 26. Donald Woods Winnicott, pediatra, psiquiatra e psicanalista ingls, 1896-1971.

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Nessa poca, a ideia de que uma criana pequena um beb, um pequeno indivduo que ainda no fala tinha interesse em livros e em narrativas era quase revolucionria. Foi preciso convencer, e ento argumentar, discutir, mostrar, demonstrar, refletir juntos, formar-se, informar-se... enfim, era preciso trabalhar juntos associaes, profissionais do livro, tanto bibliotecrios quanto livreiros especializados em literatura infantil, profissionais da infncia, profissionais da sade, representantes polticos, instituies pblicas... para decidir sobre a maneira a ser adotada para permitir a todas as crianas, desde a mais tenra idade e independentemente do ambiente familiar, cultural, social, territorial, encontrar livros e narrativas antes da idade escolar e da aprendizagem por ela proposta.

Em 1989, o Ministre de la Culture e o Secrtariat dEtat la Sant et la Famille se uniram para desenvolver uma poltica comum de informao cultural e artstica para crianas pequenas qual os caixas de subsdios familiares fariam suas contribuies. Isso possibilitou que artistas e profissionais do setor cultural e da pequena infncia trabalhassem juntos em uma dinmica proposta pelas administraes pblicas e pelos representantes polticos.

Foi com os lbuns anteriormente mencionados e outros ainda publicados nos anos 1970 e no incio dos anos 1980, como: Prune, pche, poire, prune, de Janet e Allan Ahlberg (Gallimard 1982), Ce jour-l, de Mitsumasa Anno (cole des Loisirs, 1978), Bonjour Poussin, de Byron Baron e Mirra Ginsburg (cole des Loisirs, 1980), Le bonhomme de neige, de Raymond Briggs (Grasset, 1979), La promenade de Monsieur Gumpy, de John Burningham (Flammarion, 1973), Tour de mange, de Donald Crews (cole des Loisir, 1981), Les pr-livres, de Bruno Munari (Danese, 1980), Ernest et Clestine ont perdu Simon, de Gabrielle Vincent (Duculot, 1981), Bonsoir lune, de Margaret Wise Browne e Clement Hurt (cole des Loisir, 1981)... e tantas outras criaes de artistas, que leitores foram at onde as crianas e suas famlias estavam para ler juntos no ritmo de cada um. Mais tarde, outros grandes artistas e outras grandes editoras publicaram maravilhosos lbuns, verdadeiras obras literrias e artsticas. Eles ainda as publicam. Entretanto, importante lembrar que as leituras compartilhadas de livros de imagens com crianas menores de trs anos comearam com lbuns que no eram, a princpio, criados para os bebs. No podemos nos esquecer disso no que diz respeito produo atualmente proposta na Frana e dirigida aos bebs leitores.

Nos anos 1980, a noo de criana pequena ainda no existia para os editores. Quando as leituras compartilhadas com as crianas menores de 3 anos se desenvolveram e, pouco a pouco, os livros comearam a fazer parte do ambiente das crianas pequenas, no somente os editores como tambm os comerciantes de livros produziram colees para os bebs. Eles publicaram e publicam ainda, em grande quantidade, livros teis, isto , visando aprendizagem imediata. Esses livros no resistem por muito tempo leitura em voz alta. Sobretudo no resistem s releituras. Eles no so perigosos; mas apenas inspidos,

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inodoros e sem sabor, limitando as crianas e os adultos a uma representao do universo das crianas muito formatada.

Uma histria singular que se inscreve em uma histria coletiva...

Em 1972, eu era estudante na escola de fonoaudiologia de Bordeaux, no sudoeste da Frana. Ainda no sabia que um dia me apaixonaria por livros de imagens e que me dedicaria ao compartilhamento dessa paixo com o maior nmero possvel de bebs, crianas pequenas, crianas e adultos de todas as idades e horizontes...

No sabia que encontraria crianas com grandes dificuldades para viver e crescer. Essas crianas chegavam, nas instituies especializadas, j tendo compreendido o funcionamento do sistema de escrita, sem contudo fazer da escrita uma ferramenta que lhes possibilitasse a elaborao de seus pensamentos. Conhecer essa realidade me permitiu um grande avano.

No sabia, ainda, que a vida me ofereceria um formidvel encontro com o Centre Rgional des Lettres dAquitaine27 e que poderia, ali, exercer com felicidade uma misso , o livro-pequena infncia, durante 14 anos.

No sabia que, graas a esse trabalho, meus passos cruzariam os de Patrick Ben Soussan,28 pedopsiquiatra, e que esse encontro me abriria as portas da escrita. No sabia tampouco que organizaramos um seminrio Ler livros com crianas pequenas, aberto aos profissionais do livro, da infncia e da sade do departamento de Lot-et-Garonne.

Ainda no sabia, conscientemente, do meu grande interesse pelos livros de imagens, pela infncia, pela psicanlise, pela elaborao da lngua e pela elaborao do pensamento, pela questo humana...

27. Homenagem e agradecimentos a Eric des Garets, diretor do Centre Regional des Lettres dAquitaine de 1983 a 2001. Escritor, poeta, apaixonado pelas palavras, pelos silncios, da literatura.

28. Patrick Ben Soussan trabalha atualmente no Institut Paoli-Calmettes, Centre Regional de Lutte Contre le Cancer em Provence-Alpes-Ctes-dAzur, em Marselha, onde responsvel pelo departamento de psicologia clnica. Autor de vrias obras sobre a pequena infncia, a parentalidade, os livros e a cultura, presidiu a agncia Quand les Livres Relient de 2010 a 2012. tambm diretor de colees e da revista Spirale, la grande Aventure de Monsieur Bb, pela editora res. ltima obra publicada:

Quapporte la littrature jeunesse aux enfants? et ceux qui ne le sont plus. Paris: rs, 2014. (1001 et +).

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No podia imaginar a criao de Quand les Livres Relient nem minha implicao nessa agncia, que tem por objetivo favorecer a experincia literria desde a mais tenra idade. Objetivo esse a ser definido e questionado permanentemente em um contexto absolutamente diferente daquele do sculo passado!

No sabia que tudo isso me traria hoje aqui ao Brasil, em Belo Horizonte, para participar deste seminrio e da mesa-redonda intitulada Literatura, primeira infncia e educao infantil.

Quando comea a histria? A de cada um? A da humanidade?Quando os homens comearam a elaborar uma lngua? Lnguas?Quando experimentaram a necessidade de representar o mundo?Quando e por que comearam a contar histrias?

Para nos engendrar, foi preciso, em panelas com temperaturas acima de um bilho de graus, exploses estelares e ejees de matria incandescente com velocidades prximas da luz. O universo tem agora quinze bilhes de anos aproximadamente. Ele se estende por mais de cem mil trilhes de quilmetros. Essas dimenses inimaginveis no tm nada de excessivo. Nada menos do que isso foi preciso para nos colocar no mundo escreve Hubert Reeves nas primeiras pginas de Poeiras de estrelas.29

Quand les Livres Relient...30

Em 8 de julho de 2000, Frdric Monot, poca Delegado da Fondation du Crdit Mutuel pour la Lecture, reuniu em Paris, em seus escritrios, algumas associaes que, de um modo ou de outro, promoviam o encontro das crianas menores de trs anos e suas famlias, em torno dos livros de imagens. Havia a A.C.C.E.S. (Paris), Accs Armor (Bretanha), Antars (Lion), o Centre Rgional des Lettres dAquitaine (Aquitnia), Lire Voix Haute Normandie (Alta Normandia), Lis avec moi (Norte-Passo-de Calais) e L.I.R.E, em Paris. Todas se identificavam com as propostas da associao A.C.C.E.S., mas cada uma tinha desenvolvido, em seu territrio geogrfico, encontros envolvendo livros de imagens e uma reflexo com diferentes atores do mundo da sade fsica e psquica, do mundo social, do mundo intelectual, do mundo cultural, do mundo poltico...

29. REEVES, Hubert. Poeiras de estrelas. Paris: ditions du Seuil, 1984. Nova edio pela Sciences, formato de bolso, 1994.30. AGENCE QUAND LES LIVRES RELIENT. Accueil. Disponvel em: . Acesso em:

28 out. 2015.

http://www.agencequandleslivresrelient.fr/

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A fim de tornar visvel o invisvel trabalho realizado cotidianamente e para compartilhar os frutos de suas reflexes, as associaes, reunidas nesse dia, comprometeram-se a escrever um documento que apresentaria os grandes princpios que os reuniam, enfatizando a diversidade das aes.

A.C.C.E.S. no quis se engajar no trabalho proposto. Foi ento sem a A.C.C.E.S. mas no sem a reflexo que ela havia possibilitado durante vrios anos e da qual todos puderam se alimentar em uma relao direta com seus fundadores ou lendo suas publicaes que o livreto intitulado Quand les livres relient, tendo como subttulo Le livre et le tout-petit, foi escrito e publicado, em setembro de 2002.31

Esse livro ressaltava:- a importncia das parcerias;- a complementaridade necessria dos profissionais de diferentes horizontes;- a importncia da qualidade dos livros e a necessidade de escolh-los;- o respeito necessrio da liberdade das pessoas encontradas: propor sem impor;- a importncia do trabalho com os pais;- a elaborao de um pensamento a partir da observao das prticas...

e fazia notar a diversidade das modalidades de implantao e de aes.

Gostaramos que essa publicao pudesse ajudar associaes e coletividades territoriais a se lanarem na aventura do encontro dos livros com as crianas pequenas.Em todos os lugares, a necessidade constante de encontros entre profissionais e a necessidade de lugares de trocas e de reflexes foram afirmadas.Surgiu a necessidade de se reunir para defender certo olhar sobre os livros, sobre a literatura, sobre as crianas pequenas, sobre a leitura, sobre a cultura ato de civilizao e elo entre os seres.

Em fevereiro de 2004, a agncia Quand les Livres Relient32 foi criada, reunindo, de forma associativa, pessoas fsicas e jurdicas com o mesmo objetivo: compartilhar os esforos, as energias pessoais, associaes ou outras estruturas dispostas a conduzir aes interligadas

31. A coordenao dessa publicao foi confiada Lis avec Moi, associao de Nord-Pas-de-Calais, e mais especialmente a Juliette Campagne e Isabelle Sagnet. Os redatores foram Blandine Aurenche, bibliotecria, Chantal Ersu e L.I.R.E em Paris, Juliette Campagne e Isabelle Sagnet, Francine Foulquier, do Service Culturel du Consil General do Vale do Marne, Sylvie Joufflineau, do Lire Voix Haute-Normandia, Stphanie Kerdoncuff, do A.L.I.C.E Aquitncia Prado, Marie Manuellian, de Promotion de la Lecture (Dijon), Frdric Monot, da Fondation du Crdit Mutuel pour la Lecture, Dominique Rateau, do Centre Regional des Lettres dAquitaine, Evelyn Resmond-Wenz, da Accs Armor e Jolle Stechel, jornalista, que realizou reportagens

nas regies e escreveu alguns artigos.32. A agncia Quand les Livres Relient foi inicialmente chamada Quand les Livres Relient, Agence Nationale des Pratiques

Culturelles autour de la Littrature Jeunesse. Desde a sua criao, foi presidida por Luce Duopraz, em seguida, por Patrick Ben Soussan. Dominique Rateau sua atual presidente.

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e fazer valer, no plano nacional, europeu e internacional, suas aes em favor da experincia literria desde a mais tenra idade.

Quand les Livres Relient rene, atualmente, 47 pessoas jurdicas e 67 pessoas fsicas, distribudas em todo o territrio nacional, nos grandes centros e no interior.A agncia Quand les Livres Relient prope momentos de reflexo, assume a coordenao de sua rede, apoia os projetos locais, organizando jornadas de encontros nas regies, elabora publicaes graas ao engajamento de seus membros e ao trabalho de dois assalariados em regime de tempo parcial.33 Para isso, a agncia recebe o apoio financeiro da Fondation du Crdit Mutuel34 (estabelecimento bancrio), da Socit Nationale des Chemins de Fer Franais (SNCF),35 do Ministre de la Culture36 e trabalha juntamente com a Agence Nationale de Lutte contre lIlletrisme (ANLCI).37 As Edies rs,38 editor de cincias humanas, so tambm um fiel parceiro.

Em 2014, comemoramos nossos 10 anos e nos alegramos com a fidelidade de nossos parceiros e da qualidade de nossas colaboraes. Entretanto, mesmo se o Ministre de la Culture pretende apoiar Quand les Livres Relient, sabemos que, sem o mecenato das fundaes privadas, os projetos culturais no podero se desenvolver. Novas modalidades de financiamento so estabelecidas entre o setor pblico e o setor privado, demandando novos mtodos de trabalho.

Os membros da rede Quand les Livres Relient compartilham a leitura de livros de imagens com as crianas pequenas e seus pais, bem como com adolescentes e adultos de todas as idades onde for possvel: bibliotecas, creches, consultas de Proteo Maternal Infantil, centros de assistentes maternas, centros sociais, centros de lazer, espaos pblicos e parques, estabelecimentos escolares, centros de formao, abrigos, prises, hospitais, maternidades, museus, asilos, zonas de acolhimento para os viajantes...

Certos membros de nossa rede no compartilham leituras. So agentes territoriais engajados na implantao de polticas culturais, crticos literrios, terapeutas, escritores, professores,

33. Lo Campagne-Alavoine, diretor, e Hlne Tenneroni. 34. FONDATION DU CREDIT MUTUEL. Lecture. Disponvel em: . Acesso

em: 28 out. 2015.35. FONDATION SNCF. La Fondation. Disponvel em: . Acesso em: 28 out. 2015.36. FRANCE. Ministre de la Culture et de la Communication. Accueil. Disponvel em: . Acesso em: 28 out. 2015.37. FRANCE. Ministre de lEducation. Agence Nationale de Lutte Contre lIllettrisme. Accueil. LANLCI. Disponvel em: . Acesso em: 28 out. 2015.38. SOCIT DDITIONS RECHERCHES ET SYNTHSES. rs Editions. Disponvel em: .

Acesso em: 28 out. 2015.

http://fondation.creditmutuel.com/fr/index.htmlhttp://www.fondation-sncf.org/http://www.culturecommunication.gouv.fr/http://www.anlci.gouv.fr/http://www.editions-eres.com/

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atores, pediatras, historiadores, psicanalistas. Defendemos a necessidade de promover, desde a mais tenra idade, e ao longo de toda a vida, uma experincia literria que alimente nossa vida interior, a fim de cultivar, em cada ser humano, sua capacidade de sonhar, pensar, criar... privilegiando a cultura.Aps anos de encontros, observaes, reflexes compartilhadas, o que sabemos?

H 30 anos, o que aprendemos sobre o livro de imagens, sobre a leitura, sobre os leitores pequenos e grandes?...

Agora sabemos que as crianas pequenas se interessam pelos livros e pelas histrias de seu nascimento, e que os adultos presentes se encantam com isso. Sabemos, tambm, que os livros de imagens no so reservados nem s crianas pequenas, nem s crianas maiores, nem queles que no sabem ler... Sabemos, tambm, que alguns livros resistem a ns e que a voz de algum que, por sua leitura, dele nos d o sentido. Sabemos que crianas pequenas nos possibilitam ler, em certas imagens, coisas que no havamos lido.Sabemos, porque lemos, que certos lbuns publicados por editores para a infncia fazem parte da grande literatura: obras de artistas que, como todas as obras de arte, alimentam nossos imaginrios, ampliam nosso olhar sobre o mundo, suscitam nossas dvidas, enriquecem nossas lnguas e falam, com sensibilidade e poesia, da vida, da complexidade do mundo e das relaes humanas. Como toda obra literria, eles no nos dizem o que devemos pensar, mas nos ajudam a pensar. Sabemos de tudo isso!

Os apaixonados pelos livros de imagens sabem, tambm, por experincia, que a leitura desses lbuns ou narrativas em palavras e em imagens que se misturam e se entremeiam no to simples para a maioria dos adultos e que muitos deles, mesmo os letrados e cultos, ficam no limiar dessa literatura que parece lhes ser inacessvel.Isso questiona nossas representaes do ato de ler, bem como o estatuto dos livros que contm imagens.

H 30 anos, medimos o caminho percorrido. incontestvel que os livros de imagens fazem parte da vida de muitas crianas menores de trs anos e que alguns lbuns se encontram atualmente presentes em todos os lugares de atendimento pequena infncia. As pessoas que acolhem os bebs em seu domiclio ao menos aquelas mais instrudas compartilham leituras com as crianas pequenas. Observamos que vrias bibliotecas ou mediatecas propem momentos de leitura para bebs e famlias e encorajam a inscrio dos bebs na biblioteca desde o seu nascimento. Sabemos, tambm, que as bibliotecas departamentais responsveis pelo desenvolvimento de bibliotecas nas zonas rurais formam os bibliotecrios assalariados e voluntrios para desenvolver o atendimento das crianas menores de trs anos. Constatamos tambm e principalmente na rede nacional Quand Les

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livre Relient39 que muitas associaes e indivduos de horizontes profissionais bastante diversos atuam para possibilitar que as crianas pequenas encontrem a literatura desde a mais tenra idade e antes da escola.

Mas sabemos, tambm, que dez anos depois de ter realizado sua srie de programas Le bb est une personne, o cineasta Bernard Martino julgou necessrio realizar Le bb est um combat. Por qu? Porque havia constatado que, aps o primeiro programa, muitos profissionais da rea de sade proclamavam Le bb est une personne sem, no entanto, nada mudar em sua prtica cotidiana nem em sua abordagem com relao ao beb... Jamais obtivemos vitrias definitivas. Dizer que o beb uma pessoa consiste em pensar que preciso lhe dar um lugar, que preciso proteger esse lugar do qual ele necessita para se desenvolver, o que impossvel ser obtido sem combate, escreve Bernard Martino.Da mesma forma, colocar livros disposio das crianas pequenas no basta para enriquecer e cultivar suas capacidades naturais de leitura e interpretao do mundo.Devemos, ainda, e sempre, refletir sobre o que fazemos e como o fazemos. Como podemos deixar uma criana escolher seu livro? Em que ritmo lhe permitido ler? Como se l com ela? Sabemos no ler? Como os pais so envolvidos? Quem compra os livros? Onde?...No h padronizao possvel.

Cada lugar nico. Cada criana nica. Cada profissional nico, em sua relao tanto com essa criana quanto com o livro. Cada leitor nico. E ns devemos continuar a refletir juntos, profissionais do livro e da infncia, sobre o que fazemos e como o fazemos. Pois, afinal de contas, o que importa a iniciativa tomada.O objetivo no aprender a ler, mas compartilhar leituras para cultivar uma forma de leitura que est presente em cada beb que vem ao mundo...Em um livro de imagens tudo conta: as palavras impressas, as imagens, a matria das imagens, a formatao, a tipografia, o formato, as cores... Qualquer que seja a histria contada, a noo em si de lbum impe a questo do enquadramento, dos limites e do jogo com os limites.Os artistas brincam constantemente com o enquadramento.

Alm do contedo da histria, eles criam um universo no interior de um objeto que tem um formato, um nmero de pginas... e contam, s vezes apenas com imagens, s vezes com palavras e imagens, e propem assim dois modos de narrativa que se cruzam, contradizem-se, ampliam-se... Outra narrativa aparece, inscreve-se em algum lugar entre as narrativas

39. Associao Lei 1901, iniciada em 2002 com o apoio da Fondation du Crdit Mutuel pour la Lecture, tem como objetivo favorecer a experincia literria desde a mais tenra idade da vida... compartilhando a leitura de lbuns de literatura infantil. Disponvel em: .

http://www.quandleslivresrelient.fr/

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impressas, favorecendo, desse modo, o acesso ao simblico e metfora, ampliando o sentido das palavras. Para ler um livro de imagens, o leitor deve aceitar entrar no jogo proposto pelo lbum: o jogo com os enquadramentos e o jogo das mltiplas formas de representao.

As crianas pequenas no tm nenhuma dificuldade com isso, pois elas, ao virem ao mundo, so permanentemente confrontadas com a necessidade de interpretar os signos para entrar em relao com o mundo e com aqueles que o constituem.

As crianas pequenas so leitores no sentido do qual fala Alberto Manguel,40 que, numa pgina inteira, descreve situaes diversas de leitura: o astrnomo que l um mapa de estrelas desaparecidas [...]; o zologo que l as dejees dos animais na floresta [...]; os pais que leem no rosto do beb sinais de alegria, medo ou espanto; [...] o amante que l s escuras o corpo amado, noite, sob os lenis; [...] antes de concluir: todos compartilham com o leitor de livros a arte de decifrar e de traduzir signos.No incio de sua obra j citada Poeiras de estrelas, Hubert Reeves, msico, poeta, astrofsico, nascido em 1932, em Montreal, observa: Galileu foi o primeiro a olhar o cu com uma luneta astronmica. Em algumas noites, ele descobre, pouco a pouco, as montanhas da Lua, os satlites de Jpiter e as estrelas da Via Lctea. Isso acontece em 1609. H menos de quatro sculos.

Quando Galileu viu o cu pela luneta astronmica, ele o leu. Ele reinterpretou seus saberes e aqueles de seus contemporneos a respeito do que ele observava, do que via.O psicolinguista Evelio Cabrejo-Parra desenvolve, tambm, a ideia de que o ato de leitura vai alm do livro lido. Ele diz: Esse ato de leitura est constantemente presente na vida. Por exemplo, abro a janela e pego um guarda-chuva. Realmente li algo. Pego um guarda-chuva, porque vi que chove. Construmos sentido permanentemente e assim levamos gua ao moinho da atividade fsica.41

Ler poderia ser, primeiramente, e sempre, descobrir e interpretar o mundo! Ler em livros seria descobrir e interpretar a representao que um artista faz do mundo. Atravs de suas obras, os artistas nos acompanham em nosso modo de olhar o mundo. Eles desempenham o papel da luneta astrolgica de Galileu. Eles nos mostram algo. Mas ver no basta. O trabalho de leitura demanda engajamento na leitura, engajamento em sua interpretao. O mesmo acontece com o trabalho de elaborao da lngua, que necessita de uma forma de

40. MANGUEL, Alberto. Une histoire de la lecture. Traduction Christine le Buf, Paris: Actes Sud,1998.41. Quand les livres relient: le livre et le tout-peti, coletivo escrito e publicado em setembro de 2002.

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engajamento do beb e um necessrio acolhimento benevolente de seu meio.Durante os trs primeiros meses, h uma atividade psquica extraordinria, silenciosa, do ser humano que consiste em captar traos acsticos das vozes que ele escuta e, a partir do quarto ms, ele comea a reutiliz-los para construir sua prpria voz, nos ensina Evelio Cabrejo-Parra.

Bernard Golse diz: No incio, para ser capaz de pensar, e depois de interagir e em seguida de falar, o beb precisa ao mesmo tempo de seu corpo e da relao com o outro.No nascimento, o beb est armado para aprender qualquer lngua, escreve Evelio Cabrejo-Parra, que insiste na necessidade de distinguir os conceitos de lngua e linguagem.Sempre associamos o aparecimento da linguagem emergncia das primeiras palavras, depois nos damos conta de que, no nascimento, a linguagem j est presente mesmo quando no h ainda palavras articuladas, escreve.

Em alguns meses de vida e de encontros, o beb ir se inscrever em sua lngua.Elaborar sua lngua, acessar o simblico e a escrita sempre uma nova conquista. Levantamos a hiptese de que o encontro com livros de imagens escolhidos por suas qualidades literrias e artsticas enriquece nossas capacidades de representao e de elaborao.Estamos convencidos de que a literatura a fico literria participa da construo do ser humano e de seu pensamento.

Compartilhamos leituras de livros de imagens com crianas menores de trs anos e seus adultos pais e profissionais e tambm com crianas, adolescentes, adultos, para juntos encontrar livros, tecer laos, viver leituras, cultivar nossas semelhanas, analisar nossas diferenas, inventar possibilidades, abrir janelas para o mundo...Esses lbuns, ricos em criatividade, evocam famlias, nascimentos, relaes humanas e filiais, desejos de paternidade, de rejeies e desejos infantis, histrias de amor e de dio, alegrias, risos, aventuras inimaginveis, vidas extraordinrias, lutos, sentimentos paradoxais, ambivalncias, brincadeiras com o limite... e ainda tantas outras coisas!

Eles nos percebem assim como ns os percebemos.Lemos literatura juntos para compartilhar as questes que nos renem: quem sou? De onde venho? O que o mundo?

Lemos juntos livros de imagens ricos em sentido. Um sentido que se constri na lentido, na repetio, na hesitao, no aprofundamento...Mais, dizem as crianas.Isso faz bem, dizem os adultos que os acompanham.

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Ler no serve para nada; apenas para ser livre

Na Frana, o ambiente mudou. A situao de crise econmica provoca inquietaes e angstias, e o mundo, tornando-se digital, impacta nossas organizaes econmicas e sociais. Sendo assim, a noo de consumo tem tendncia a se impor sobre a de cidadania, os servios de comunicao se tornam invasivos, o mercado do livro encontra-se submetido ao ditame do marketing, as colees para as crianas pequenas, muito frequentemente inspidas, invadem o mercado... mas artistas continuam criando livros, e editores continuam a public-los, e leitores itinerantes entusiasmados por suas descobertas continuam a compartilhar a leitura de livros de imagens escolhidos por suas qualidades literrias e artsticas, aqui, ali, em todo lugar. A literatura, a fico literria, a poesia, os contos, os livros de imagens abrem os horizontes, alcanam em ns esferas ainda desconhecidas, lugares at ento inacessveis... Cultivamos essa centelha de vida atravs de nossas descobertas artsticas.Precisamos dessas representaes para escrever nossa prpria histria...Descobrir uma infinidade de narrativas, variadas em suas formas e contedos, abre novas possibilidades.

A luta continua.No a batalha para o desenvolvimento da leitura no campo da cultura nem aquela para o desenvolvimento do devir humano dos Homens. Mas continuar o combate, tal como o defendia Bernard Martino, essencial.

Esse combate passa pela necessria observao de nossos prprios comportamentos para que possamos question-los. Questionar nossos pontos de vista um dos objetivos da literatura. Para isso, importante desenvolver espaos de troca e de reflexes, baseados na observao e no compartilhamento das observaes.

Ao nos dar a vida, nossos pais nos deram a morte.O que alimentaria nossas angstias e culpas, no ?Viemos ao mundo, vivemos e morremos e, por sermos seres de linguagem, o sabemos.Esse saber no adquirido.Ele no da ordem da compreenso, da explicao. No h nada a ser explicado!Ns o sabemos, alm das palavras, para diz-lo.Para o beb, o momento de sua chegada ao mundo uma prova, no sentido inicitico do termo. Desenvolvendo-se em um meio aqutico, ele acaba de vivenciar, na totalidade do seu ser, uma mudana radical de modo de vida. Ele acaba de deixar um universo e descobre outro. Agora ele respira e encontra inmeras sensaes novas.

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Logo ele confrontado pela complexidade da vida, das emoes, das vivncias...Para poder viver, ele dever interpretar, dar sentido ao que lhe rodeia. Desde o nosso nascimento, devemos ler.

Ler, quase tanto quanto respirar, essa nossa funo essencial, escreve Alberto Manguel.Compartilhando a leitura de livros de imagens de literatura, concebemos que essas outras formas de representao, que so as imagens, trazem uma dimenso complementar s palavras, uma possibilidade suplementar de dizer algo do indizvel.

As imagens, que se ligam s palavras, instalam-nos em um silncio, que um silncio repleto dos pensamentos e das imagens que elas cultivam.

Tana Hoban, grande fotgrafa, criadora de lbuns, relata42 o seguinte: A carta que mais me tocou como autora de livros sem texto vem de uma menina do Brooklyn. Ela me escreveu: No sabia que o silncio poderia ser to bonito.Certos adultos, desestabilizados pelos livros de imagens, declaram, ento, que se no h palavras escritas, no h nada a ser lido!

Caminhar demoradamente pelos livros de imagens, encontrar leitores e obras de artistas para cultivar (no sentido do jardineiro...), desde a mais tenra idade, nossas capacidades para ler e interpretar o mundo. Ler para compartilhar a ideia de que nada escrito antes, mesmo se uma parte da histria j conhecida.Fao votos de que todas as crianas do mundo possam encher suas mochilas de palavras, imagens, literatura, encontros e que, ao longo de suas vidas, possam sonhar pensando: Era uma vez... possvel que... possvel que em algum lugar...

42. Em Regarde bien/Look again, publicado por Les Trois Ourses, durante a Exposio Regarde bien/Look again: les albums photographiques de Tana Hoban, apresentada no Salo Internacional do Livro Infantil, Bolonha, Itlia, 2001.

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As narratividades

Ligia Cademartori

Em amplo arco que busca unir literatura, primeira infncia e educao infantil, fui provocada a refletir sobre a questo a quem se narra, ou seja, a pensar nesse que o destinatrio das narrativas infantis na primeira infncia. Tal reflexo, porm, conduz constatao de que impossvel considerarmos isoladamente aquele a quem as histrias se destinam, pois, para que esse destinatrio exista, preciso, antes, haver um precoce narrador, um emissor de narrativas.

H uma frase de Virginia Woolf, no conto Mrs. Dalloway em Bond Street, que diz: Nada ocupa o lugar da infncia. Uma folha de hortel a traz de volta: ou uma xcara com um crculo azul. No difcil nos identificarmos com o que a narradora diz. Sabemos da intensidade com que, de repente, surgem sensaes de nossos primeiros anos a partir de algo mnimo, insignificante aos demais, mas capaz de nos devolver, por instantes, uma poca perdida. preciso considerar, porm, que se trata de uma memria pessoal. Permite uma forma de reencontro com a nossa infncia, mas no diz muito sobre ela. Alm disso, uma recordao da infncia sempre impregnada de subjetividade e, inescapavelmente, afetada pela ao do tempo, por seus filtros. Mesmo de nossa prpria infncia sabemos pouco, e muito j se disse das falsas memrias como comprovao disso.Assim, ao falarmos de infncia, prudente assumir que nossa fala vem marcada por uma distncia e por uma diferena irredutveis. A importncia

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dessa conscientizao evitar a presuno do suposto saber, que leva a prticas sedimentadas e impermeveis a novas ideias e reflexes. Se pretendemos fazer algo, interferir numa cena insatisfatria, precisamos, antes de qualquer coisa, assumir a posio delicada e respeitosa de quem se aproxima de algo admitindo que sabe pouco a respeito do que tem diante de si.

A narratividade pr-verbal

Com frequncia encontramos frases sobre nosso tema que comeam assim: A criana ...; A criana sente...; A criana reage... Esquece-se que A criana no existe. Como no existe A mulher e, contrariando o que certa corrente psicanalista afirma, tampouco existe O homem, dito assim, desse modo que nivela individualidades. Mas existem, sim, crianas, como existem mulheres, como existem homens em mltiplas individuaes.

Quando generalizamos, presumimos. Quando presumimos, observamos pouco. Quando observamos pouco, no aprendemos. Se no aprendemos, o que podemos ensinar?

A primeira infncia alvo das mais diferentes teorias. Distintas contribuies delas, certamente, sero entrecruzadas aqui. Isso bom. Nosso suposto saber ser abalado, e, se tivermos sorte, haver lugar para a formulao de hipteses novas. No voltaremos para casa com a mesma bagagem.

Para pensar a relao da criana com as narrativas sendo ela tanto quem as recebe como quem as formula recorro a conceitos que destacam a dimenso do corpo na constituio psquica, enfatizando que por ele pelo corpo que se d a mediao com o mundo do infans, do infante, daquele que no fala. por meio do corpo que se inicia o que Daniel Stern chamou de envelopes protonarrativos e o que Bernard Golse denominou de espaos de narrao.

A psicanlise tem alertado: os nveis corporal e narrativo andam juntos. No tempo precoce da narratividade, ou seja, no perodo em que a criana preparada para o desenvolvimento da narratividade, aquilo que ainda no pode ser comunicado pela linguagem verbal encontra outra forma de comunicao. Quando falamos, portanto, de narrativas nos primeiros anos, preciso levar em conta que existe, primeiro, uma narrativa corporal e, s mais tarde, uma narrativa verbal.

O acesso ao nvel da narrao verbal passa por essa narrao corporal que feita de gestos, afetos e emoes. Falamos aqui de algo sutil e minucioso, que requer um observador igualmente minucioso e sutil, para acolher esse narrado e nele inserir a sua narrao. A

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narratividade pr-verbal, ainda segundo Golse, d-se em dois tempos: o primeiro sensorial; o segundo, comportamental.

No primeiro tempo, o sensorial, como se houvesse apenas o corpo, com suas sensaes prevalecendo sobre a relao com o outro. A intersubjetividade, nesse primeiro tempo, ainda fugaz e instvel. No segundo tempo da narratividade corporal, j se conta com as dimenses sensorial, motora e comportamental. S ento a narratividade passa a ser uma forma de comunicao com o outro.

Diversos autores de distintas tendncias afirmam que, desde muito cedo, o beb capaz de interagir com quem o cerca, com quem dele cuida, e que formas de narratividade surgem precocemente nessa interao. Independentemente de tendncias, o que se ressalta que isso ocorre no mbito de um prazer compartilhado, portanto, no brincar junto, atividade inseparvel do emocional.

Ao longo de sua obra, Golse destaca que a narrativa das vivncias do beb, feita pelo adulto para o pequeno de modo prazeroso, prtica fundamental para que seja instaurado o espao da narrao. Durante os cuidados com o beb, a me, assim como a cuidadora, narra, comenta os movimentos do pequeno, dando a eles um sentido, compondo uma historinha do que entende que o beb comunica: Ah, est de boquinha aberta, est com fominha? Pois, olhe aqui! Vai mamar e a fominha vai passar. Com essas simples frases feita uma interpretao do sinal emitido pelo beb, dada uma resposta a ele e anunciada uma providncia para atender necessidade manifestada. Trata-se de uma mininarrativa com incio, desenvolvimento e fim. Desse modo, o beb, aos poucos, vai aprimorando a narrativa corporal para se comunicar, ao mesmo tempo que preparado seu ingresso gradativo na escuta da narrativa verbal.

Essa interao por via da narratividade corporal se d como um carinho e como um brinquedo. O infante brinca com o corpo, e esse brincar um espao de narrao e de liberdade. com o corpo que o beb encena o tipo de relao, prazerosa ou no, que tem com aquele que cuida dele. A figurao com o corpo como um teatro comportamental, mas s se d quando existe um vnculo relacional. E assim, com essa comunicao pr-verbal, que vai se instalando o espao de narrao em que o infante figura e refigura o que entende e o que quer contar. Essa etapa constitui, portanto, a preparao decisiva para o acesso narratividade verbal.

Repito os verbos figura e refigura, pois por alta redundncia que a comunicao a se d. Um menino de um ano e meio, a caminho de sua creche, assistiu queda de um operrio que trabalhava no sexto andar. O pequeno ainda no se expressava em palavras,

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mas, ao ver a cuidadora que o esperava porta da sala, ergueu o brao o mximo que podia e, dobrando os dedos para baixo, fez movimentos sucessivos de queda, com os ps em ponta, expresso grave no rosto, e, emitindo sons roucos e apressados, repetia e repetia a figurao, conferindo nos rostos dos que o assistiam se havia transmitido a gravidade do que tinha a narrar. S parou de refigurar ao ouvir uma sucesso de interjeies de espanto daqueles ao seu redor. Assim, o infante, o no falante, teve certeza de que havia narrado.

A narratividade, esse ponto nodal para a organizao do psiquismo, baseia-se em elementos rtmicos e dinmicos da sintonia afetiva. A comunicao emocional. Quando se fala de criana com mais ou menos 1 ano, a narratividade pode ser a enunciao ainda no o enunciado de uma frase, a dramatizao de uma cena. Estamos aqui no mbito mais da linguagem do que da fala, e, no entanto, o narrador j apresenta as estruturas essenciais da narrao: incio, meio e fim.

Da brotar a capacidade de narrao verbal, mas esse espao da narrao depende de que as experincias sejam repetidas, para que possam ser identificadas. E preciso que sejam rtmicas e constantes para favorecer, pela experincia, uma integrao constitutiva. Inicialmente vividas e figuradas no corpo, as experincias encenadas evoluem a signos e passam a deflagrar sentidos.

As pesquisas desenvolvidas nas ltimas dcadas sobre a primeira infncia, como as de Stern, Golse e Winnicot, apontam para a relao entre o beb e seus cuidadores como sendo determinante para o espao da narratividade, para a subjetivao do pequeno e para sua relao com a linguagem. Na descoberta do mundo que o beb inicia, a musicalidade da voz, a ternura do toque, a ateno do adulto s suas necessidades so decisivas. Anterior ao aprendizado das palavras, capacidade de acompanhar o sentido de uma narrativa, a criana estabelece conexo com seus cuidadores por via de uma sintonia afetiva, por meio de uma comunicao no verbal baseada na musicalidade, no ritmo, na forma.

A narratividade cria uma conexo entre fatos de modo contnuo, um encadeamento de acontecimentos sucessivos, figurando uma temporalidade: a da histria. A percepo da continuidade depende de relaes e interaes estabelecidas na primeira infncia. So elas que possibilitam criana estabelecer uma temporalidade sem muitas rupturas, lastreada na confiana da continuidade da experincia.

Para propiciar o acesso simbolizao, o narrador precisa se comunicar com a criana no s por meio da fala, mas tambm por meio da linguagem do corpo e do prazer compartilhado. Brincar junto, repito, s possvel na partilha de afetos e de prazer.

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Pesquisadores de campo em instituies destinadas primeira infncia vm relatando a significativa falta de estimulao por parte de cuidadores: bebs guardados nos cercadinhos, tendo, em volta deles, uma poro de brinquedos desligados de qualquer atividade que no seja a espontnea; escasso contato visual entre cuidador e criana; interao verbal mnima entre eles, a no ser nos casos em que se quer corrigir algo; ausncia da identificao da criana pelo nome prprio, o que significa releg-los condio de seres inominados, sem inscrio para ingresso na ordem da linguagem. Em situaes dessa natureza, creio que preciso intervir.

Como se v, no estamos falando de grandes metas, mtodos, meios didticos, mas de olhar, de ateno, de sentimento e de emoo. No ignoro a dificuldade da transposio desses conceitos a uma prtica na educao infantil, pois tudo depender de quem for capaz de olhar, de observar, de sentir, de reconhecer a criana. Mas importante no perdermos de vista que muito acontece antes de a criana ter acesso aos livros. E que tudo isso que acontece no perodo pr-verbal ser determinante na relao da criana com a literatura.

A simbolizao

No poema Infncia, de Carlos Drummond de Andrade, o poeta evoca: No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu a ninar nos longes da senzala e nunca se esqueceu. Os elos sonoros dos primeiros anos, as vozes que nos embalaram, repetindo-se em rimas, traduziam o mundo em som e ritmo para quem, recm-chegado, precisava de confiana e adaptao. Esses sons povoam nossa memria mais remota. Por eles tivemos acesso simbolizao, e, a seu modo, eles nos ofereceram sentidos.

A palavra nos acompanha desde quando habitvamos o ventre materno. As cantigas de ninar, os acalantos, os brincos presentes em todas as culturas estabelecem laos afetivos entre o beb e quem dele cuida. No princpio, era a palavra.

Literatura, primeira infncia, Educao Infantil: o que podemos pretender dessa relao frente avassaladora, diversificada, sedutora oferta de livros para a primeira infncia que a indstria editorial coloca ao nosso dispor? O contato com o livro requer um aprendizado, assim como qualquer mdia. E o livro, como nos lembra Umberto Eco, entre todas as mdias, a mais longeva. Aprender a manusear, a folhear esse objeto costuma ser uma experincia pessoal da criana. Cabe ao adulto respeitar o tempo lgico de cada uma nesse aprendizado.

Ao examinar um livro, tendo presente essa relao entre literatura, primeira infncia, educao infantil, o que avalio em que medida ele permite o aprimoramento da conscincia

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lingustica que a criana est formando. Que espao foi dado ao som, musicalidade? H jogos que estabelecem relao de continuidade com a experincia sonora j iniciada? Os sinais grficos, que s existem dentro da conveno e da norma, de que forma se apresentam e promovem o acesso a uma nova etapa? E o que o livro insinua ou consolida sobre as palavras e seus sentidos? Em que medida faculta a doao de sentidos a fenmenos diversos? De que modo contribui para a formao de conceitos?

O que espero de um livro para esse pblico que a criana, ao explor-lo brincando, adquira, de modo prprio e gradativo, de acordo com seu prprio ritmo, familiaridade com a estrutura da lngua, que ela viva experincias de linguagem. E que isso seja feito ludicamente. Que seja divertido descobrir as possibilidades combinatrias da lngua, suas potencialidades, seus recursos de expresso.

Ao promover e aprimorar a relao da criana com a linguagem, convm no perder de vista que ouvir e falar so atividades primrias, enquanto leitura e escrita so atividades bsicas. As primeiras se desenvolvem espontaneamente; as segundas requerem formalizao. Para passar de um tipo de atividade a outro, preciso ter adquirido certo grau de conscincia da estrutura da lngua.

Do mesmo modo que o conhecimento da realidade exterior s se d com a explorao dos objetos, a familiaridade com a lngua requer uma etapa na qual ela seja tratada em sua materialidade. Ou seja: preciso brincar com ela, brincar com palavras. Lembrando Jos Paulo Paes: bola, papagaio, pio de tanto brincar se gastam. As palavras no. Quanto mais se brinca com elas, mais novas ficam.

Nesse brincar com a lngua, sua potencialidade de transmitir informaes costuma ser neutralizada. Prevalece o prazer da expresso e a liberdade de composio. A ateno dirige-se aos meios, aos aspectos formais, mais do que ao fim, como acontece quando o interesse a informao. E so muitas as formas de brincar: unindo livremente fonemas, alterando partes das palavras para conseguir efeitos novos, jogando com sentidos iguais, diferentes, pertinentes, impertinentes.

E h as rimas, as quadras, as cantigas, os poemas. Cito trecho de O que literatura infantil, em que digo: a poesia infantil, de incio apresentada oralmente, ir, de modo gradual, possibilitar o contato da criana com seu suporte: o livro. A versificao, nessa etapa, se insere no mundo infantil como um jogo, continuidade do brinquedo com as unidades lingusticas, no qual o significado no tem primazia. Pois o potico tem como caracterstica fundamental a surpresa diante das relaes lingusticas estabelecidas no plano da composio e do sentido.

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Com as narrativas, num primeiro momento, no considero importante que a criana se aproprie da sequncia da histria. Ao ler uma histria escrita criana, convm lembrar que o pensamento no linear como a escrita. A oralidade associativa. O educador atento s diferentes reaes das crianas saber encontrar a motivao de sua prtica a partir do que observa. Pois a experincia de contar uma histria a um grupo de crianas prova do quanto uma sala de primeira infncia polifnica. Muitas falas, reaes muito diferentes, e ao educador cabe fazer a mediao e a articulao entre as diversas vozes.

Lemos uma narrativa e a criana mergulha na histria com sua subjetividade e joga com ela com sua prpria expresso, representando, alterando, divergindo. Nesse ludismo, faz uso inconsciente, espontneo da possibilidade de separar objeto e significado. o incio da abstrao, possibilitada pela relao imaginria com o narrado.

As situaes ficcionais que as narrativas criam so simulaes que permitem criana libertar-se das imposies do meio. As narrativas, alm de divertir, facultam, de modo sinttico e essencial, uma reordenao das vivncias infantis. Ao ouvir ou ler a histria, algo que existia apenas interiormente pode transpor essa interioridade e tornar-se uma situao simbolizada, partilhada. Mesmo situaes complicadas entre me e filha podem ser simbolizadas para pequenos, semelhana do que foi feito em El globo, de Isol. Do mesmo modo, simboliza-se uma relao muito afetiva entre pai e filho, apresentada a partir das emoes da criana, como em My dad, de Guido van Genechten.

Para encerrar essas relaes tecidas entre literatura e educao na primeira infncia, relembro uma conhecida frase de Einstein que, de modo sub-reptcio, orientou-me enquanto pensava sobre o tema: a imaginao mais importante do que o conhecimento. O conhecimento limitado. A imaginao abrange o mundo inteiro.

Referncias CADEMARTORI, Ligia. O professor e a literatura: para pequenos, mdios e grandes. Belo Horizonte:

Autntica, 2010.

CADEMARTORI, Ligia. O que literatura infantil? 2. ed. So Paulo: Brasiliense, 2010 (Primeiros

Passos).

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DRUMMOND, Carlos. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.

GOLSE, Bernard. Do corpo ao pensamento. Lisboa: Climepsi, 2002.

ISOL. El globo. Ciudad de Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 2002.

STERN, Daniel. Lenvelope prnarrative. In: GOLSE, Bernard; MISSONNIER, Sylvain. Rcit,

attachement et psychanalyse. Paris: rs, 2006. p. 29-46.

STERN, Daniel. O mundo interpessoal do beb. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1992.

VAN GENECHTEN, Guido. My Dad. Hasselt (Belgica): Clavis, 2011.

WINNICOTT, Donald Woods. O ambiente e os processos de maturao: estudos sobre a teoria do

desenvolvimento emocional. Trad. Irineo Constantino Schuch Ortiz. Porto Alegre, Artmed, 1983.

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Escuelas y construccin de acervos: libros de calidad para

la primera infanciaAlma Carrasco Altamirano

No siempre las elecciones tienen que ver con una causa letrada,

profesional o escolar. A veces uno elige quizs porque una palabra,

una imagen, un aroma resuenan como un blsamo o como una

tormenta en la evocacin de la vida propia (BAJOUR, 2006, p.45)

Los buenos libros cuentan, explican, narran, proponen, buscan la mejor manera de comunicarse con sus lectores. El contenido del texto y la forma de organizarlo son centrales en un buen libro. Un buen libro para nios es un libro bien escrito, inteligentemente planeado y desarrollado; bellamente diseado, sensiblemente ilustrado. Los buenos libros para los ms pequeos son literarios pero tambin son libros informativos.

Una escuela y un espacio de atencin a la primera infancia idealmente contara con muchos y diversos libros, de variados formatos y temticas. Ofrecera a lectores y mediadores oportunidades para experimentar un descubrimiento nuevo pero tambin reencuentros con los mismos libros, con los mismos autores de las colecciones de la biblioteca. Una biblioteca rica ofrecera a cada lector oportunidades para ser y volver a ser conmovido, tocado por obras, historias, ideas, propuestas grficas. Los muchos buenos libros son

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importantes y valorados por quienes han tenido experiencias en la bebeteca con libros que ofrecemos desde el Consejo Puebla de Lectura AC, la Bebeteca Lee Antonia. Los buenos libros y los espacios de atencin infantil estn al servicio de los nios. El nio pequeo esta siempre en movimiento y cuando se apodera de un libro con frecuencia lo abandona rpido, pero al momento siguiente, quiere retomarlo. Se apropia en cierta manera del lbum, pero con sus manipulaciones, se apropia tambin de su contenido (BONNAF, 2007, p. 57).

Al leer libros elaborados para ellos, particularmente esta innovacin cultural llamada libro-lbum, los nios no slo aprenden a leer, sino que al mismo tiempo aprenden qu es la lectura (LEWIS, 2005, p. 98).

Cada libro ofrece a un pequeo lector, a los nios ms grandes o a los adultos que les acompaan multiplicidad de opciones para ser ledas, vistas, revisitadas. Acervos, colecciones, agrupaciones de libros refieren la multiplicidad de libros, que deben ser, siempre, pensados en plural. Bibliodiversidad es la categora que da cuenta de ello. Para que los lectores disfruten de estos materiales y comprometan en ellos su atencin y su emocin debemos asegurar que estos libros sean de calidad. Bibliodiversidad y calidad son los dos requisitos bsicos en la construccin de bibliotecas para la primera infancia.

Un reto fundamental de la escuela y de los espacios de cuidado infantil es poner