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Autor Edgar Roberto Kirchof 2008 Literatura Brasileira I Esse material é parte integrante do Videoaulas on-line do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.videoaulasonline.com.br

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Page 1: Literatura Brasileira i 01

AutorEdgar Roberto Kirchof

2008

LiteraturaBrasileira I

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Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482 • Batel 80730-200 • Curitiba • PR

www.iesde.com.br

K58 Kirchof, Edgar Roberto. / Literatura Brasileira I. / Edgar Roberto Kirchof. — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2008.

172 p.

ISBN: 978-85-7638-968-2

1. Literatura Brasileira. 2. Períodos literários no Brasil. 3. Ori-gens da Literatura Brasileira. 4. Escolas literárias no Brasil. 5. História da Literatura Brasileira. I. Título.

CDD 869.07

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Sumário

Literatura no Brasil Colônia: questões preliminares | 7Breve contextualização histórico-filosófica: o Renascimento | 7Portugal permanece na Idade Média | 8Os textos fundadores | 10Uma questão preliminar: o estatuto da literatura no Brasil Colônia | 11

Literatura de informação e Literatura jesuítica | 19A Literatura de informação | 19A Literatura jesuítica | 22

O Barroco: fundamentos históricos, estéticos e ideológicos | 29O que significa Barroco? | 29Barroco e Literatura | 34A influência jesuítica | 37

O Barroco e a Literatura Brasileira | 43Barroco no Brasil: questões preliminares | 43Cultismo e conceitismo no Brasil? | 44

Neoclassicismo | 57Neoclássico: uma nova ideologia e uma nova estética | 57Fim do monopólio jesuítico sobre a Educação | 58Iluminismo e verdade estética: Alexander Gottlieb Baumgarten | 59As academias e a Arcádia | 60Neoclássico ou Rococó? | 64

O Arcadismo brasileiro | 69Arcadismo no Brasil | 69Duas tendências | 70

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Romantismo: fundamentos históricos e filosóficos | 81Início do Romantismo | 81Alguns pressupostos filosóficos do Romantismo | 83Principais características estruturais da literatura romântica | 85

O Romantismo brasileiro | 91Primeira geração romântica (1836-1850) | 92Segunda geração romântica (1850-1860) | 94Terceira geração romântica (1860-1870) | 96A prosa romântica | 97O teatro romântico no Brasil | 102Contribuições do Romantismo | 103

O Realismo | 107O que é Realismo | 107Realismo e realidade | 109Principais características | 110Realismo no Brasil | 111

Naturalismo | 121O que é Naturalismo | 121Principais influências ideológicas | 122Principais características | 124O Naturalismo no Brasil | 124Naturalismo de inspiração regional | 126Naturalismo estilizado | 127Naturalismos | 128

Parnasianismo | 133O que é Parnasianismo | 133Principais características | 134Precursores do Parnasianismo no Brasil | 135O Parnasianismo no Brasil | 136

Simbolismo | 149Origens e principais fundamentos do Simbolismo | 149Decadentismo e Simbolismo | 150Principais características | 151Simbolismo no Brasil | 152

Gabarito | 161

Referências | 167

Anotações | 171

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Apresentação

O presente livro propõe, ao leitor, um panorama de alguns dos prin-cipais temas ligados à história da literatura brasileira, abrangendo desde o período colonial até o Simbolismo. Por se tratar de um livro didático, está organizado de acordo com a periodização tradicionalmente aceita nos âmbitos da história da literatura e da crítica literária, sendo inicialmente discutido o próprio estatuto literário dos primeiros textos produzidos no contexto da conquista do continente americano.

O ponto de vista que permeia os textos aqui apresentados é marcado pela convicção de que a literatura não é um mero discurso es-tético, ou um código a ser decifrado de modo unívoco, como se fosse destituído de valores e princípios ideológicos. Antes, a literatura brasileira, assim como qualquer outro universo de nossa cultura, deve ser compreen-dida como um campo discursivo que foi sendo construído historicamente e, portanto, não está isento de todos os conflitos e contradições inerentes a qualquer atividade realizada no âmbito da cultura.

Por outro lado, por seu caráter conciso e abrangente, este livro não apresenta discussões profundas a respeito das disputas que emergem das posições ocupadas pelos vários agentes que atuaram – e continuam atuando – na produção do campo da literatura brasileira. Antes, procura apenas apresentar alguns de seus principais protagonistas, limitando-se, em alguns casos, a mencionar algumas das problemáticas e sugerindo bibliografia de apoio.

Em ordem cronológica, são apresentados os oito períodos aborda-dos: o período colonial, o Barroco, o Arcadismo, o Romantismo, o Realismo, o Naturalismo, o Parnasianismo e o Simbolismo, sendo que os quatro primeiros são apresentados em dois capítulos cada, ao passo que, para cada um dos períodos ou escolas restantes destina-se apenas um capítulo.

O primeiro capítulo aborda questões preliminares a respeito da literatura colonial, principalmente sua relação com a literatura européia, as discussões em torno de seu valor literário e os principais mitos funda-dores ligados à identidade brasileira. O segundo capítulo, por sua vez, exa-mina alguns dos principais autores, gêneros e obras daquele período, com ênfase na literatura de informação e na literatura jesuítica.

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O terceiro capítulo procura realizar uma apresentação do contexto histórico do barroco europeu, com o objetivo de fornecer um pano de fundo a partir do qual o barroco brasileiro poderia ser problematiza-do. No quarto capítulo, apresentam-se alguns dos principais autores considerados, no âmbito da literatura luso-brasileira, como pertencentes à estética barroca, com ênfase em Gregório de Matos e no padre Antônio Vieira.

Nos capítulos 5 e 6, assim como nos capítulos 7 e 8, segue-se uma estrutura análoga à dos capítulos três e quatro: apresentam-se, inicial-mente, as questões conceituais e históricas ligadas a cada período lite-rário específico – respectivamente, Arcadismo (capítulo 5) e Romantis-mo (capítulo 7) –, ao que segue a apresentação dos principais autores brasileiros ligados a cada um dos períodos específicos – respectivamente, Arcadismo (capítulo 6) e Romantismo (capítulo 8).

Por fim, nos demais capítulos, apresentam-se condensados em um mesmo capítulo tanto os conceitos fundamentais quanto os principais autores brasileiros ligados a cada período: Realismo (capítulo 9), Naturalismo (capítulo 10), Parnasianismo (capítulo 11) e Simbolismo (capítulo 12).

Que as reflexões aqui apresentadas de forma didática sirvam como uma motivação para que o leitor amplie não apenas seus conhecimentos mas também e, principalmente, seu interesse pela literatura brasileira.

Edgar Roberto Kirchof

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Literatura no Brasil Colônia: questões preliminares

Edgar Roberto Kirchof*1

Breve contextualização histórico-filosófica: o RenascimentoAntes de abordarmos os textos ligados à literatura no período colonial, é necessário compreender

um pouco do contexto sociocultural em que tais textos emergiram a fim de obtermos uma compreensão mais crítica e profunda de seus fundamentos ideológicos, bem como de suas principais intenções.

Durante o século XVI, com a fundação da Universidade de Paris, ocorreu um reavivamento da teologia medieval realista, um retorno aos grandes mestres, principalmente a Agostinho e aos neopla-tônicos. Na Alemanha e nos Países Baixos, com Reuchlin1 se valorizavam os gregos e com Erasmo2, o es-toicismo, sendo que a França passava por uma redescoberta do humanismo cristão, principalmente por meio de Jacques Lefèvre (1455). Em poucos termos, intelectualmente, os ideais teológicos medievais – principalmente a filosofia escolástica, de Tomás de Aquino – foram perdendo terreno para ideais mais humanistas e menos teocêntricos, baseados principalmente em um retorno à cultura greco-romana, anterior à cultura cristã instaurada a partir da Idade Média.

Todas essas mudanças relativas à vida política, econômica e sobretudo intelectual no continen-te europeu formaram a base daquilo que se convencionou chamar de Renascimento ou Renascença, cujo principal espaço de irradiação foi a Itália. Foi uma espécie de retorno à visão de mundo humanista e antropocêntrica que predominava na cultura greco-romana, em contraposição à visão teocêntrica e cristã da Idade Média. Grandes artistas, como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Brunelleschi, Bramante,

* Concluiu pós-doutorado em Semiótica pela Universidade de Kassel (Alemanha). Doutor em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestre em Comunicação e Semiótica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST). Licenciado em Letras português-alemão pela Unisinos.1 Johann Reuchlin (1455-1522): humanista alemão, professor de grego e de hebraico.2 Erasmo de Roterdã (1466-1536): humanista holandês, autor de O Elogio da Loucura (1511).

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entre numerosos outros, passaram a se inspirar em modelos gregos e romanos para produzir suas obras, não mais utilizando preceitos cristãos.

Se, de modo genérico, a arte medieval estava mais interessada nas conotações religiosas que poderiam emanar dos signos pictóricos e literários, a arte renascentista, por sua vez, passou a valorizar sobremaneira a cópia ou a imitação da própria realidade, em um apelo sensualista que foi suspendendo, de forma quase imperceptível, a cosmovisão predominantemente religiosa da Idade Média. Daí uma busca constante pelo aperfeiçoamento da técnica, inspirada nos novos conhecimentos angariados no bojo dos campos de saber que se transformariam naquilo que hoje denominamos de ciências, como a Matemática e a Anatomia, por exemplo.

José

M. A

zcon

a.Uma pietá Medieval.

A Pietá de Michelangelo.

Quanto à literatura, as influências greco-romanas já se fizeram sentir, pelo menos desde o século XIV, na Itália, com autores como Petrarca e Boccaccio, que privilegiaram temas profanos e huma-nistas em suas obras – como o amor mundano, a ironia, com críticas e sarcasmo em relação à instituição eclesiástica. A literatura influenciada pelos novos ideais buscou inspiração em clássicos como Ovídio, Horácio, Virgílio e em outros autores da Antiguidade Clássica, construindo efeitos estéticos rebuscados, baseados em um conjunto de preceitos teóricos herdados de obras como as poéticas e retóricas de Aristóteles, Horácio, Longuino e Quintiliano, entre outros.

Portugal permanece na Idade MédiaEssa nova visão de mundo encontrou enorme resistência na Península Ibérica, de modo geral, e

em Portugal, especificamente – em grande parte por causa da fortíssima atuação da ordem fundada por Inácio de Loyola, em 1534, a Companhia de Jesus (cujos membros são denominados jesuítas até os dias de hoje) com o objetivo explícito de servir como um obstáculo para as reformas protestantes. No intuito de barrar a eclosão de movimentos reformatórios que levavam invariavelmente a cismas e novos movi-mentos, acreditava-se ser necessário realizar reformas no interior da própria Igreja Católica.

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9|Literatura no Brasil Colônia: questões preliminares

Em Portugal, desde que D. João III entregara aos jesuítas o Colégio das Artes, em 1555, a influência dessa ordem religiosa sobre a cultura lusitana passou a ser tão forte que chegou mesmo a, senão impedir, pelo menos frear de forma surpreendentemente eficaz a chegada da maior parte dos valores e concepções renascentistas, que atingiam, a passos largos, os demais países europeus. Dessa maneira, enquanto a Europa se modernizava a partir dos novos ventos trazidos pelo Renascimento, os jesuítas se encarregavam de manter a cultura portuguesa mais atrelada à visão de mundo e às tradi-ções da Idade Média.

Talvez não seja demasiado exagero afirmar que, cultural e intelectualmente, Portugal permaneceu sob o domínio do pensamento jesuítico desde 1555 até 1759, quando o Marquês de Pombal, influenciado pelos ideais do Iluminismo, expulsou-os tanto de Portugal quanto das colônias portuguesas.

Os jesuítas possuíam uma consciência muito forte da importância da educação, especialmente a educação das crianças, para a manutenção da fé cristã, razão pela qual se dedicavam de forma intensa à fundação e ao cuidado de numerosos colégios, muitos dos quais se transformariam posteriormente em universidades. Nos colégios jesuíticos eram aceitos tanto alunos com intenções de se tornarem re-ligiosos (padres jesuítas), quanto alunos interessados apenas em obter uma formação acadêmica con-sistente.

No entanto, a filosofia dos jesuítas era de fundamento medieval, notadamente teológica, o que os tornava muito avessos aos novos conhecimentos científicos que se desenvolviam principalmente na Itália e se espalhavam pelos demais países da Europa. Em vez de privilegiar a observação, o cálculo e a descoberta do novo, os jesuítas prezavam a manutenção da fé por meio do conhecimento da tradição, principalmente a tradição teológica cristã, o que os levou a promoverem uma cultura (embora erudita) livresca, gramaticista e, na maior parte das vezes, maniqueísta3 e moralizante.

No que diz respeito especificamente às artes e à literatura, os jesuítas se mantiveram medievais e, posteriormente, barrocos. Na verdade, o Barroco pode ser visto como uma tentativa de conciliação entre o pensamento religioso medieval, de um lado, e o apelo sensualista renascentista, de outro, tendo sido promovido amplamente pela ordem de Inácio de Loyola. Massaud Moisés acredita que os jesuítas, em decorrência do seu fundamento intelectual escolástico – que combatia as inovações renascentistas –, contribuíram sobremaneira para a manutenção do obscurantismo intelectual tanto em Portugal quan-to no Brasil. Sua aversão aos clássicos (a maioria deles considerados pagãos e, portanto, nocivos para a conservação da fé cristã) era tão grande que eles chegaram a proibir a recitação de sonetos e de coplas4 em festas religiosas, além de colocarem vários dos principais autores latinos em um index5, proibindo, dessa maneira, a leitura de grandes autores como Plauto, Terêncio, Horácio, Ovídio e Marcial (MOISÉS, 2000, p. 26).

Em vez de explorar as novas formas literárias e artísticas, como era a prática dos autores influen-ciados pelo Renascimento, em Portugal e no Brasil os jesuítas mantiveram a tradição medieval cristã. Os dois principais gêneros literários por eles cultivados foram, de um lado, a poesia lírica de fundo religioso e, de outro, o teatro cristão, cujas principais formas são os autos e os mistérios medievais. O primeiro gênero prevaleceu no caso da edificação da espiritualidade, ao passo que o teatro foi utilizado de forma intencional para catequizar os índios.

3 O Maniqueísmo tem sua origem na filosofia do persa Mani, que pregava um dualismo intransponível entre o bem e o mal: para ele, tudo que está ligado à matéria é mal por essência, ao passo que o espírito representa o bem.4 A copla é uma forma poética muito popular, originada na Espanha, sendo utilizada na composição de canções com temas geralmente cômicos, mas também eróticos e escatológicos.5 Index librorum proibitorum: lista de livros proibidos criada em 1559 pela Igreja Católica.

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Os textos fundadoresAo lançarmos um olhar panorâmico sobre o conjunto dos textos considerados como os fundadores

da tradição literária no Brasil, de imediato salta aos olhos que, em sua grande maioria, não se trata de textos propriamente estéticos ou literários, no sentido restrito desses conceitos, e isso tanto no que diz respeito aos gêneros predominantes quanto à própria qualidade da composição.

Embora muito se tenha discutido até os dias de hoje nos campos da teoria da literatura e da crítica literária, sobre o que efetivamente deva ser considerado um texto literário – e as literaturas moderna e contemporânea têm sido pródigas em criar formas cada vez mais surpreendentes –, o fato é que o cânone tradicional comporta, em sua grande maioria, textos em que predomina, de um lado, a ficciona-lidade e, de outro, um arranjo lingüístico dotado de alto grau de literariedade6.

Entretanto, na produção literária ligada ao contexto dos séculos XVI e XVII, no Brasil, predominaram, de um lado, textos de ordem documental – que abrangem desde meros textos informativos até crônicas, testemunhos de viagem e textos considerados históricos – e, de outro, textos de cunho reli-gioso, marcadamente produzidos pelos padres jesuítas enviados ao Brasil juntamente com os colonos e os representantes da elite governante portuguesa. Seu principal intuito era cristianizar os nativos e cui-dar da manutenção da fé dos colonos e da classe dirigente.

Os principais textos de origem portuguesa a merecerem destaque, de acordo com o historiador da literatura brasileira Alfredo Bosi (1994, p. 13) são:

a :::: Carta a el-rei D. Manuel, de Pero Vaz de Caminha, referindo o descobrimento de uma nova ter-ra e as primeiras impressões da natureza e do aborígene ou nativo;

o :::: Diário de Navegação, de Pero Lopes e Sousa, escrivão do primeiro grupo colonizador – o de Martim Afonso de Sousa (1530);

o :::: Tratado da Terra do Brasil e a História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil, de Pero Magalhães Gândavo (1576);

a :::: Narrativa Epistolar e os Tratados da Terra e da Gente do Brasil, do jesuíta Fernão Cardim (a primeira certamente de 1583);

o :::: Tratado Descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa (1587);

os :::: Diálogos das Grandezas do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão (1618);

as cartas:::: dos missionários jesuítas escritas nos dois primeiros séculos de catequese;

o :::: Diálogo sobre a Conversão dos Gentios, do padre Manuel da Nóbrega;

a :::: História do Brasil, de frei Vicente do Salvador (1627).

Embora menos influentes em relação à formação do cânone literário brasileiro, também merecem destaque alguns textos de origem não portuguesa:

Viagem à Terra do Brasil:::: , do calvinista francês Jean de Léry (1578);

As Singularidades da França Antártida:::: , do frade André Thévet (1558);

Viagem ao Brasil:::: , do alemão Hans Staden (1557).

6 Literariedade: conceito criado pelos teóricos do Formalismo Russo para dar conta de todos os elementos lingüísticos e estruturais inerentes a um texto literário. Tais elementos permitiriam distinguir a especificidade da literatura em relação a outros tipos de texto.

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11|Literatura no Brasil Colônia: questões preliminares

Uma questão preliminar: o estatuto da literatura no Brasil Colônia

Antes de abordarmos alguns desses textos fundadores, é necessário enfrentar algumas questões importantes para que se possa discutir, com coerência, o tema das manifestações literárias no Brasil Colônia, dentre as quais destacamos as seguintes:

Por que tratar dos textos ligados à colonização enquanto :::: literatura?

Trata-se realmente de :::: literatura?

Uma vez que tais textos foram escritos por portugueses e outros europeus, pode-se dizer que ::::se trata realmente de literatura brasileira?

Nesse caso, quais seriam as suas :::: marcas de brasilidade?

Afinal, como definir uma literatura genuinamente brasileira a partir do período colonial?::::

Seria muita pretensão tentar fornecer respostas realmente consistentes para esses problemas, mesmo que de forma resumida, em um livro introdutório à literatura brasileira. Por esse motivo, nes-ta seção apenas apontamos para alguns dos principais argumentos em favor de se incluir tanto a lite-ratura de informação quanto a literatura jesuítica dos séculos XVI e XVII, notadamente européia (pois incluem-se textos de espanhóis, franceses e mesmo alemães), naquilo que se pode denominar de câno-ne da literatura brasileira.

Em primeiro lugar, não devemos esquecer que o Brasil iniciou sua existência para o mundo ocidental e europeu enquanto colônia. Nesse sentido, por uma questão histórica, não é aconselhável desconsiderar a visão de mundo do colonizador. A colonização deu início a um processo irreversível de hibridação cultural, uma mescla da cultura do colonizador tanto com as culturas aqui preexistentes quan-to com aquelas para cá transportadas, principalmente da África.

Essa confluência de culturas acarretou, no caso brasileiro, o surgimento de uma cultura nacional complexa e heterogênea à medida que o Brasil deixou de ser colônia para se transformar no sujeito de sua própria história – embora, de um ponto de vista crítico, tal afirmação deva sempre ser vista com cautela. Como afirmou Alfredo Bosi (1994, p. 11), “essa passagem fez-se no Brasil por um lento proces-so de aculturação do português e do negro à terra e às raças nativas; e fez-se com naturais crises e de-sequilíbrios”.

Nesse contexto histórico da formação da cultura e da literatura brasileira não é possível, portanto, desconsiderar os textos deixados pelos colonizadores, pois esses textos não constituem apenas meros testemunhos de uma época. Ao longo da história da literatura brasileira, tais textos se transformaram em uma espécie de fundamento pré-literário, tanto em termos temáticos quanto em termos formais. Como breve exemplo, pode-se citar o interesse pelo indianismo no caso de José de Alencar, que retomou e reinterpretou a literatura de informação do século XVI. Mas também os modernistas Oswald e Mário de Andrade, entre outros, recorreram à literatura quinhentista e seiscentista quando procuraram pelos fun-damentos da brasilidade literária, mesmo que seu intuito, muitas vezes, tenha sido descontruir os mitos criados a partir dessa literatura.

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Assim sendo, a despeito de sua relativa baixa qualidade literária, a literatura de informação, junta-mente com a literatura jesuítica dos séculos XVI e XVII, devem ser consideradas – em uma ousada e mui-to acertada formulação de Alfredo Bosi – como a pré-história das nossas letras.

Literatura colonial e valor estético-literárioApesar de muito revelar sobre a mentalidade, os objetivos e os preconceitos do colonizador, a

literatura de cunho documental não possui objetivos artísticos e estéticos, mas pragmáticos: o que se considerava essencial, naquele contexto específico, era descrever as novas terras, sua gente, sua riqueza – enfim, sua potencialidade enquanto um novo mundo a ser explorado e cristianizado. Apesar de ser possível destacar aspectos de qualidade estética, por exemplo, na composição da Carta a el-rei Dom Manuel, de Pero Vaz de Caminha, ou mesmo na História da Província de Santa Cruz, de Gândavo, tratá-los como textos propriamente literários seria um exagero.

No que tange à literatura religiosa, seu caráter marcadamente catequético e doutrinário, fundamentado na visão de mundo escolástica que dominava o universo jesuíta no século XVI, consti-tuiu um empecilho quase intransponível para que atingisse um grau verdadeiramente literário. Talvez uma possível, porém controvertida exceção, seja a poesia lírico-mística de José de Anchieta, à qual já fo-ram atribuídos muitos elogios, desde comparações com Ovídio e Virgílio até afirmações de que se trata de uma espécie de precursora do estilo barroco, que despontaria, mais tarde, em padre Vieira e, princi-palmente, em Gregório de Matos (COUTINHO, 2004a).

Entretanto, uma análise atenta da obra anchietana permite perceber que o padre jesuíta utiliza a rima e esquemas rítmicos como mero ornamento formal, pois o conteúdo de sua produção está por de-mais preso à sua visão doutrinária marcada pela catequese (PIZZARRO, 1993, p. 197), no caso do teatro, e por um forte misticismo medieval, no caso da lírica. Observe, por exemplo, como a atmosfera lírica é utilizada, nos primeiros versos do “Poema da Virgem”, de Anchieta, com o fim de comover o leitor a par-tir dos sofrimentos da Virgem Maria ao enxergar Jesus crucificado:

Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas,

e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas?

Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto,

que a morte tão cruel do filho chora tanto?

O seio que de dor amargado esmorece,

ao ver, ali presente, as chagas que padece?

Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,

ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux.

Olha como, prostrado ante a face do Pai,

todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai. (ANCHIETA, 2008c)

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13|Literatura no Brasil Colônia: questões preliminares

A despeito de julgamentos críticos sobre a qualidade estética da poesia anchietana, o fato é que textos marcadamente literários, no contexto jesuítico, constituem exceção, se é que existem. A maior par-te dos textos produzidos pelos numerosos padres jesuítas para cá enviados – Manuel da Nóbrega, João de Aspilcueta Navarro, Luis da Grã, Francisco Pires, Fernão Cardim, para citar apenas alguns – entra no rol dos textos informativos ou caem na vala comum dos textos catequéticos e maniqueístas, com evidente intenção de edificação espiritual e conversão do indígena para a fé cristã, embora seja possível perceber intentos literários ou estéticos em alguns textos, como o Diálogo sobre a Conversão do Gentio, de Manuel de Nóbrega, alguns poemas de Anchieta ou alguns manuscritos de Fernão Cardim, entre outros.

Por outro lado, se os textos fundadores não primam pelo seu valor propriamente artístico – no sentido restrito desse conceito –, é possível afirmar que os primeiros escritos sobre o Brasil, produzidos tanto por autores não ibéricos quanto por autores ibéricos, adquirem um grande valor historiográfico, mesmo para a história da literatura, pelo fato de nos terem legado alguns dos mais fortes mitos sobre a nossa terra e seu povo nativo. Vários deles ressurgirão constantemente, ao longo da história posterior da literatura brasileira, e isso de forma consciente ou inconsciente por parte dos autores que deles lançam mão.

O mito do paraíso perdidoNesse sentido, um dos mais significativos mitos é o do Brasil enquanto um eldorado ou uma terra

da qual emanam leite e mel, criado nos primeiros relatos de viagem e perpetuado, ao longo da história da literatura, por todos os autores e períodos literários em que houve a exploração de ideais ufanistas, como o nacionalismo romântico de Alencar, por exemplo.

Apesar de o primeiro documento realmente escrito sobre o Brasil ter sido a Carta de Pero Vaz de Caminha, esta permaneceu praticamente desconhecida até 1773, guardada nos arquivos portugueses. Por essa razão, os primeiros documentos sobre as terras americanas a se tornarem realmente conhecidos e populares na Europa foram as cartas de Américo Vespúcio, nas quais já se encontram alguns dos prin-cipais mitos criados e reforçados a respeito do Novo Mundo e de sua gente nativa: uma terra da qual emana leite e mel e cujos habitantes são dóceis, inocentes e destituídos de religião. Observe o modo paradisíaco como Vespúcio descreve as suas primeiras impressões, no fragmento de sua carta de 18 de julho de 1500, destinada a Lorenzo di Pierfrancesco de Medici:

O que aqui vi foi uma infinitíssima quantidade de pássaros de diversas formas e cores, e tantos papagaios e de tão diversas formas que eram uma maravilha: alguns coloridos como grama, outros verdes e coloridos e de cor limão, e ou-tros todos verdes e outros negros e encarnados. E o canto dos outros pássaros que estavam nas árvores era uma coi-sa tão suave e de tanta melodia que se nos ocorreu muitas vezes ficar parados por sua doçura. As árvores são de tanta beleza e de tanta suavidade que pensávamos estar no Paraíso Terreno. E nenhuma daquelas árvores nem suas frutas se pareciam com as nossas. (VESPÚCIO, 2008, tradução nossa)

Essa mesma visão sobre as novas terras descobertas pode ser percebida em numerosos ou-tros documentos da época. Como esclarece Pizzarro (1993, p. 154), essa perspectiva idealizada deve muito aos escritos de Marco Pólo7, de Mandeville8 e do Preste João9, em que terras estranhas são des-

7 Marco Polo (1254-1324), viajante veneziano. Foi um dos primeiros ocidentais a percorrerem a China e a Mongólia no final da Idade Média, tendo deixado um fantasioso livro de crônicas sobre essas viagens.8 Jean de Mandeville (1357-1371) – suposto cavalheiro inglês ou francês que também deixou um fantasioso livro de crônicas sobre as viagens que realizou por países como Turquia, Armênia, Pérsia e Egito, entre vários outros.9 Preste João – lendário monarca cristão no Oriente, na verdade, Etiópia. Segundo a tradição mítica, ele seria decendente de Baltasar, um dos três reis magos, e seu reino seria repleto de monstros, tesouros e paisagens idílicas.

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critas como paraísos dotados de povos exóticos e tesouros incalculáveis, como as amazonas. Como você verá adiante, a Carta de Caminha também reforça essa visão de mundo, que mais revela sobre o imaginário europeu da Idade Média do que sobre a própria terra que passava a ser explorada.

O índio sem fé, sem lei e sem reiEntre os principais mitos criados e reforçados pelos primeiros documentos produzidos na era

colonial, também merece destaque a idéia do nativo como o bom selvagem, destituído de sentimento de cobiça, de propriedade, de hierarquia e, mesmo, de religião. Essa idéia está muito presente na Carta de Pero Vaz de Caminha, mas também pode ser encontrada nos escritos de Léry, entre vários outros. Observe, na passagem a seguir, como Pero Vaz de Caminha se deixa imbuir desse mito:

Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem cau-sa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim! (CAMINHA, 2008)

Essa idéia de que os índios não teriam qualquer religião, lei ou autoridade, já presente na Carta, também está presente nas descrições de Pero de Magalhães Gândavo, por exemplo, no sétimo capítulo de seu Tratado da Terra do Brasil (aproximadamente 1570), conforme a citação a seguir:

Não há como digo entre eles nenhum Rei, nem Justiça, somente em cada aldeia tem um principal que é como capitão, ao qual obedecem por vontade e não por força; morrendo este principal fica seu filho no mesmo lugar; não serve de ou-tra coisa se não de ir com eles à guerra, e aconselha-os como se hão de haver na peleja, mas não castiga seus erros nem manda sobre eles coisa alguma contra sua vontade. Este principal tem três, quatro mulheres, a primeira tem em mais conta, e faz dela mais caso que das outras. Isto tem por estado é por honra. Não adoram coisa alguma nem têm para si que há na outra vida glória para os bons, e pena para os maus, tudo cuidam que se acaba nesta e que as almas fenecem com os corpos, e assim vivem bestialmente sem ter conta, nem peso, nem medida. (GÂNDAVO, 2008)

Essas formulações de Gândavo e de Caminha forneceram o fundamento para a criação do famoso mito “Sem F, sem L e sem R”, segundo o qual os nativos não possuiriam fé (F), lei (L) e tampouco rei (R). Esse mito seria consagrado por Gabriel Soares de Souza, uma década mais tarde.

Canibalismo e antropofagiaSe no início da colonização prevalece uma visão idealizada do índio, segundo a qual ele é uma

espécie de “bom selvagem” que habita um paraíso natural, sem cobiça, sem governo e sem religião, aos poucos, na medida em que o colonizador passa a enxergar o índio um pouco mais de perto, descobre alguns de seus rituais religiosos, sendo que o ritual que mais lhe chama atenção é a antropofagia, ligada ao culto que realizavam aos seus antepassados. A partir de então vai surgindo um mito oposto ao do bom selvagem, a saber: surge a imagem do índio enquanto canibal.

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O mito do canibalismo é já iniciado por Vespúcio, que logo percebe a existência da prática antro-pofágica entre os nativos:

E percebemos que eram de um povo que se diz canibais e que quase a maior parte desse povo, senão todos, vivem de carne humana. E isto, tenha-o por certo, Vossa Magnificência! Não se comem entre eles, mas viajam em embarcações que se chamam canoas e vão trazer presas das ilhas ou terras vizinhas, de um povo inimigo deles ou de um outro povo que não o seu. (VESPÚCIO, 2008, tradução nossa)

No livro de Hans Staden, esse mito recebe uma configuração quase romanesca, o que contri-buiu para a sua rápida popularização na Europa. Thévet, por sua vez, introduziu um elemento novo nes-sa questão, na medida em que distinguiu canibal e antropófago: ao passo que o primeiro realmente se alimentaria da espécie humana, o segundo comeria a carne de seus inimigos apenas como uma for-ma de vingança. Com Manuel de Nóbrega, que chega a realizar comparações entre o canibal indígena brasileiro e os canibais africanos citados por Rabelais no quarto livro de Pantagruel10, o mito do indígena americano como um canibal acaba se consagrando e entrando definitivamente para o imaginário do europeu.

Um século mais tarde, um frade agostiniano influenciado pelo Arcadismo, Frei de Santa Rita Durão, tornaria esse mito ainda mais concreto no corpo do cânone literário luso-brasileiro na medida em que realizou uma separação dicotômica entre o índio, selvagem canibal, de um lado, e o europeu, civilizado e cristão, de outro.

Para finalizar, podemos chamar a atenção para o fato de que os primeiros escritos acerca do Brasil não entraram na história da literatura nacional por seu valor propriamente estético, mas sim por te-rem criado – sobre os nossos nativos, sobre o próprio colonizador e sobre a terra brasileira – uma série de representações míticas que se perpetuariam no imaginário dos europeus acerca de nosso país, mas também no imaginário de nosso próprio povo. Os numerosos mitos criados por Caminha, Gândavo, Nóbrega, Vespúcio, Anchieta e todos os demais escritores do Brasil Colônia surgem e ressurgem ao lon-go de nossa trajetória histórica e literária, muitas vezes imbricados em outros mitos, que passam a ser questionados e desconstruídos a partir do Modernismo. Em poucos termos, não é possível estudar nos-sa identidade nacional sem recorrer à literatura colonial.

Texto complementar

10 François Rabelais (1493-1553): escritor francês da Renascença. Sua obra inspira-se no folclore popular e Pantagruel é um de seus livros cômicos. O título faz referência ao protagonista, monstro grotesco, ao mesmo tempo cômico e assustador.

Os viajantes que aludem ao Paraíso(HOLANDA, 1992 p. 158-159)

Os viajantes que aludem ao Paraíso materialmente presente em alguma parte da Terra, e que tentaram chegar a ele, não teriam melhor sorte do que Alexandre. “De paradis terrestrene vous saroie

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ie proprement parler car ie ny fui oncques”: assim se expressa, com efeito, o autor ou compilador das viagens de Mandeville, que não obstante refere o que outros lhe teriam narrado a respeito, como quem diz que a interdição não era irrevogável. De qualquer modo, deixa claro que a possibilidade de vencê-la não está unicamente no arbítrio dos homens. Outras grandes personagens, antes e de-pois, teriam procurado muitas vezes, e com o maior empenho, par moult grande volonté, avançar sobre os rios que correm do Paraíso. Assim, a fabulosa narrativa das viagens “nas quatro partidas do mundo” de D. Pedro, o Infante de Portugal, consta que, tendo esse príncipe alcançado licença do Preste João para ir até onde não houvesse mais geração de homens, venceu 17 jornadas de dromedário (os dromedários que lhe deu o Preste), que valem por 680 léguas, sobre um deserto onde não há caminho por mar ou terra, e chegou à vista de umas montanhas, de onde não quise-ram ir além os homens mandados a acompanhá-lo, e avistou então o Tigre e o Eufrates e o Gion e o Fison, que são os rios do Paraíso terreal, e mais não viu. O mesmo aconteceu com quantos tenta-ram igual demanda, porque ou não lograram vencer os ínvios desertos, ou não puderam seguir via-gem as naus onde navegavam; ou morreram cansados de remar contra a corrente; alguns ficaram cegos, outros surdos, do estrondo que ali fazem as águas, insuportáveis a ouvidos mortais; muitos naufragaram, ou se perderam, de sorte, escreve Mandeville, que nenhum homem conseguiu chegar lá pelo próprio capricho se ce nestoit par especial grace de Dieu.

Por especial graça de Deus: isso mesmo dará a entender Cristóvão Colombo, quando, chegado à altura da “província” do Pária, se imagina à porta do Paraíso Terreal. “Já disse”, escreve, “aquilo que achava deste hemisfério e de sua feiúra, e creio, se passasse por debaixo da linha equinocial, que ali chegando, neste lugar mais alto, acharia maior temperança e diversidade nas estrelas e nas águas, não porque acredite que onde se acha a altura extrema seja possível navegar-se ou seja possível su-bir até lá, pois creio que lá está o Paraíso terrestre, onde ninguém pode chegar, salvo por vontade divina [...]”. A graça de Deus, a vontade divina, é todavia caprichosa, ou assim parecerão suas razões, superiores aos nossos limites humanos e terrenos.

A história das Ilhas Afortunadas e do horto das Hespérides, como tosca imagem do Éden, tão tosca, em verdade, quanto seria dado concebê-la aos que não conhecem a luz da verdadeira fé, só era imperfeitamente válida para quem procurasse uma representação material do sítio onde Deus pusera os nossos primeiros pais. Não pelo fato de se achar literalmente no lugar onde pára seu curso o carro do Sol, ao passo que o sítio do verdadeiro Éden ficava da banda do Oriente: assim o dizem as traduções correntes e mais acreditadas entre os doutores. Pois dado que a Terra tem forma esférica, e essa era a noção conhecida já entre os antigos gregos, o Oriente poderia ficar em qualquer de suas partes, como dirá o Bispo de Chiapa.

A razão mais poderosa e verdadeiramente decisiva contra a assimilação da verdade revelada às diabólicas mentiras do paganismo está em que palavras humanas não bastam para reproduzir ou comunicar aquilo que naturalmente transcende a mente humana, quanto mais o saber dos que ignoraram a palavra de Deus. Na melhor hipótese caberia acreditar que aqueles homens se apropriaram de relatos verídicos e inspirados em palavras dos que obedeceram à lei divina, como sudecera a Homero, segundo são Justino Mártir, o qual, no pintar em sua Odisséia o jardim de Alcino, se teria limitado a copiar Moisés. Ainda assim seria forçoso admitir que tais cópias, como sempre su-cede, ficavam muito aquém do original.

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17|Literatura no Brasil Colônia: questões preliminares

Atividades1. Marque (R) se a afirmativa se refere à Renascença e (IM) se ela se refere à Idade Média.

Tendência a uma concepção filosófica humanista e estóica. )(

A arte possui um caráter simbólico e religioso. )(

Literatura marcada por temas profanos, como o amor mundano e a sátira. )(

A arte passa a incorporar conhecimentos provindos de áreas como a Matemática e a Anatomia. )(

2. Assinale apenas as afirmativas corretas.

a) Os primeiros textos produzidos no Brasil Colônia se destacam por um alto valor literário, espe-cialmente a Carta de Pero Vaz de Caminha.

b) Segundo vários críticos, a poesia religiosa de Anchieta possui um alto valor literário.

c) Durante os primeiros séculos da colonização do Brasil, os textos produzidos pelos europeus fizeram emergir vários mitos acerca de nossa identidade nacional.

d) Um dos mitos mais recorrentes na literatura colonial diz respeito à representação do Brasil como um lugar idílico.

3. Quais os principais mitos sobre a identidade do Brasil surgidos a partir da literatura colonial? Por que eles são importantes para a história da literatura?

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Gabarito

Literatura no Brasil Colônia: questões preliminares

1. Na ordem: R, IM, R, R.

2. São corretas as afirmativas b e c.

3. Nos séculos XVI e XVII, a literatura produzida por autores europeus foi responsável pela criação de vários mitos sobre a identidade nacional, especialmente no que diz respeito à terra e ao povo. Um dos mais recorrentes foi o mito segundo o qual o Brasil (assim como as demais colônias) se-ria uma espécie de paraíso perdido, marcado por uma natureza exótica e abundante, repleto de riquezas. Um segundo mito diz respeito ao índio, retratado como se não possuísse governo, reli-gião e tampouco leis. Outro mito extremamente influente diz respeito à prática da antropofagia pelos indígenas. O motivo por que tais mitos são tão importantes para a historiografia literária está relacionado ao fato de que eles foram sendo apropriados por escolas literárias nos séculos posteriores, mesmo que, por vezes, essa incorporação se desse para contestá-los.

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| Literatura Brasileira I

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