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APRESENTAÇÃO Este módulo faz parte da coleção intitulada MATERIAL MODULAR, destinada às três séries do Ensino Médio e produzida para atender às necessidades das diferentes rea- lidades brasileiras. Por meio dessa coleção, o professor pode escolher a sequência que melhor se encaixa à organização curricular de sua escola. A metodologia de trabalho dos Modulares auxilia os alunos na construção de argumen- tações; possibilita o diálogo com outras áreas de conhecimento; desenvolve as capaci- dades de raciocínio, de resolução de problemas e de comunicação, bem como o espírito crítico e a criatividade. Trabalha, também, com diferentes gêneros textuais (poemas, histórias em quadrinhos, obras de arte, gráficos, tabelas, reportagens, etc.), a fim de dinamizar o processo educativo, assim como aborda temas contemporâneos com o ob- jetivo de subsidiar e ampliar a compreensão dos assuntos mais debatidos na atualidade. As atividades propostas priorizam a análise, a avaliação e o posicionamento perante situações sistematizadas, assim como aplicam conhecimentos relativos aos conteúdos privilegiados nas unidades de trabalho. Além disso, é apresentada uma diversidade de questões relacionadas ao ENEM e aos vestibulares das principais universidades de cada região brasileira. Desejamos a você, aluno, com a utilização deste material, a aquisição de autonomia intelectual e a você, professor, sucesso nas escolhas pedagógicas para possibilitar o aprofundamento do conhecimento de forma prazerosa e eficaz. Gerente Editorial Literatura brasileira – anos 60 a 80

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APRESENTAÇÃO

Este módulo faz parte da coleção intitulada MATERIAL MODULAR, destinada às três

séries do Ensino Médio e produzida para atender às necessidades das diferentes rea-

lidades brasileiras. Por meio dessa coleção, o professor pode escolher a sequência que

melhor se encaixa à organização curricular de sua escola.

A metodologia de trabalho dos Modulares auxilia os alunos na construção de argumen-

tações; possibilita o diálogo com outras áreas de conhecimento; desenvolve as capaci-

dades de raciocínio, de resolução de problemas e de comunicação, bem como o espírito

crítico e a criatividade. Trabalha, também, com diferentes gêneros textuais (poemas,

histórias em quadrinhos, obras de arte, gráficos, tabelas, reportagens, etc.), a fim de

dinamizar o processo educativo, assim como aborda temas contemporâneos com o ob-

jetivo de subsidiar e ampliar a compreensão dos assuntos mais debatidos na atualidade.

As atividades propostas priorizam a análise, a avaliação e o posicionamento perante

situações sistematizadas, assim como aplicam conhecimentos relativos aos conteúdos

privilegiados nas unidades de trabalho. Além disso, é apresentada uma diversidade de

questões relacionadas ao ENEM e aos vestibulares das principais universidades de cada

região brasileira.

Desejamos a você, aluno, com a utilização deste material, a aquisição de autonomia

intelectual e a você, professor, sucesso nas escolhas pedagógicas para possibilitar o

aprofundamento do conhecimento de forma prazerosa e eficaz.

Gerente Editorial

Literatura brasileira – anos 60 a 80

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GERENTE DE ARTE E ICONOGRAFIA:

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ILUSTRAÇÃO:

ANALISTA DE ARTE:

PESQUISA ICONOGRÁFICA:

PROJETO GRÁFICO:

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CRÉDITO DAS IMAGENS DE ABERTURA E CAPA:

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IMPRESSÃO E ACABAMENTO:

CONTATO:

Ruben Formighieri

Emerson Walter dos Santos

Joseph Razouk Junior

Maria Elenice Costa Dantas

Cláudio Espósito Godoy

Nathalia Saliba Dias / Sergio Augusto Kalil

Sergio Augusto Kalil

André Maurício Corrêa

Ana Izabel Marques Armstrong

Angela G. de Souza

Marcos Guilherme

Tatiane Esmanhotto Kaminski

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@LIT030Autores e obras

da literatura

brasileira

@LIT030

D541 Dias, Nathalia Saliba.Ensino médio : modular : literatura : literatura brasileira, anos 60 a 80 / Nathalia

Saliba Dias, Sergio Augusto Kalil ; ilustrações Marcos Guilherme – Curitiba : Positivo, 2013.

: il.

ISBN 978-85-385-7085-1 (livro do aluno)

ISBN 978-85-385-7086-8 (livro do professor)

1. Literatura. Ensino médio – Currículos. I. Kalil, Sergio Augusto. II. Guilherme, Marcos. III. Título.

CDU 373.33

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SUMÁRIO

Unidade 1: Literatura brasileira contemporânea: prosa

Literatura brasileira entre as décadas de 1960 e 1980 7

Rubem Fonseca 8

João Antônio 12

Dalton Trevisan 19

Lygia Fagundes Telles 23

Unidade 2: Literatura brasileira contemporânea: poesia

Adélia Prado 33

Manoel de Barros 38

José Paulo Paes 43

Hilda Hilst 46

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Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora

eu só cobro.

FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. p. 492.

Literatura brasileira contemporânea: prosa 1

4 Literatura brasileira – anos 60 a 80

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Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol.

Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio. Quando minha cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem eu sento na frente da televisão e em pouco tempo meu ódio volta. Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com todos os dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de caveira vermelha. Agora está ali, sorrindo, e logo beija a loura na boca. Não perde por esperar.

Meu arsenal está quase completo: tenho a Magnum com silenciador, um Colt Cobra 38, duas navalhas, uma carabina 12, um Taurus 38 capenga, um punhal e um facão. Com o facão vou cortar a cabeça de alguém num golpe só. Vi no cinema, num desses países asiáticos, ainda no tempo dos ingleses, um ritual que consistia em cortar a cabeça de um animal, creio que um búfalo, num golpe único. Os oficiais ingleses presidiam a cerimônia com um ar de enfado, mas os decapitadores eram verdadeiros artistas. Um golpe seco e a cabeça do animal rolava, o sangue esguichando.

***Na casa de uma mulher que me apanhou na rua. Coroa, diz que estuda no colégio noturno. Já passei por isso,

meu colégio foi o mais noturno de todos os colégios noturnos do mundo, tão ruim que já não existe mais, foi demolido. Até a rua onde ele ficava foi demolida.

FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. p. 471.

1. Qual é o foco narrativo utilizado pelo autor? A opção por esse foco narrativo é determinante para acentuar a mensagem do texto?

2. O narrador afirma em diversos momentos que estão lhe devendo algo. Quem lhe deve?

3. Pela sua leitura, o personagem está satisfeito com a vida que leva? Ele está incluído ou excluído do padrão social vigente? Justifique a sua resposta.

4. Observe que a palavra “golpe” se repete várias vezes na narrativa. Que motivo justifica tal repetição?

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Oiti

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OITICICA, Hélio. Seja Marginal, seja herói. 1986. 1 originalde arte, serigraf., 97 cm x 115 cm. Coleção particular.

Ensino Médio | Modular 5

LITERATURA BRASILEIRA

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Protestos de Maio de 1968, na França Protesto contra a ditadura no Brasil

Durante a década de 1960, o Brasil passou por um período de extrema turbulência política. Com o fim do governo de Juscelino Kubitschek em 1961, assumiu o poder, por meio de eleições diretas, o presidente Jânio Quadros. Contudo, oito meses depois de eleito e frustrando todas as expectativas da sociedade brasileira, Jânio renunciou, desencadeando uma grave crise política que resultaria no Golpe Militar de 1964. Consolidada a ditadura, os grupos políticos que a ela se opunham passaram a ser perseguidos pelo regime.

Este é o instrumento por meio do qual Jânio Quadros renunciou: um mero bilheteEste é o instrumento por meio do qual Jânio General Castelo Branco, primeiro presidente da República

durante o Regime Militar, cercado por militares

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Ao mesmo tempo que eram cerceadas as liberdades políticas, o Brasil e o mundo viviam uma verdadeira revolução contra os modelos sociais tradicionais. Um novo modelo cultural emergia: a contracultura.

Nos Estados Unidos, o feminismo, como movimento que lutava pelo reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres, consolidava-se. A guerra do Vietnã desencadeava protestos por todo o país. A insatisfação dos jovens fez com que eles procurassem um novo estilo de vida, contrário ao sistema, o que originou o Movimento Hippie. Na França, os estudantes se rebelaram contra o modelo de ensino tradicional, no movimento que ficou conhecido como Maio de 68. No Brasil, os estudantes se organizavam por meio da União Nacional dos Estudantes (UNE) e de outros grupos para protestar contra a ditadura.

Literatura brasileira – anos 60 a 806

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Contracultura

A contracultura foi um movimento que encontrou seu auge na década de 1960. A gênese desse movimento está na Geração Beat, formada por jovens intelectuais que se opunham ao consumismo e ao modelo americano de vida da época. Pregando uma crítica contra o sistema, eles abriram caminho para toda uma geração insatisfeita com os padrões sociais e culturais conservadores consolidados pela cultura ocidental.

Literatura brasileira entre as

décadas de 1960 e 1980

A literatura em prosa escrita a partir de 1960 pode ser estudada por meio de algumas vertentes. A primeira delas é considerada um reflexo imediato do Golpe Militar de 1964.

Nessa perspectiva, o tema central é a opressão política e ideológica exercida pela Ditadura Militar. A tortura praticada contra os presos políticos e as lutas dos membros dos grupos de esquerda para derrubar o regime tornam-se temas constantes nos romances escritos. Esses livros são verdadeiros documentos do Brasil após 1964, e o romance O que é isso companheiro, de Fernando Gabeira, é um dos melhores exemplos dessa literatura.

Outra vertente que se manifesta nesse momento é classificada pela crítica literária como Bruta-lista. Esse termo decorre não só da forma de abordar os temas e da linguagem, mas, principalmente, de uma narrativa que não encontra no narrador um mediador que faz pausas reflexivas sobre os fatos narrados.

Essa classe literária aborda personagens excluídos socialmente e que vivem a violência típica dos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo.

Os grupos marginalizados das décadas de 1970 e 1980, como criminosos, prostitutas e empregados de boates, frequentam as páginas dos contos e romances escritos por Rubem Fonseca e João Antônio.

A linguagem utilizada pelos escritores brutalistas é sempre moldada por frases curtas e com poucos adjetivos. Além disso, fortes traços de oralidade estão presentes nas narrativas.

Nesse período, há também uma vertente intimista que explora, por meio da subjetividade, os conflitos do homem consigo mesmo e também com a sociedade na qual ele está inserido. A prosa de Lygia Fagundes Telles, ao explorar a alma humana e os momentos de reflexão e formação da psique das personagens, é um exemplo dessa tendência.

É importante salientar que todas essas vertentes coexistem nesse período e o que importa é pensar na qualidade estética das obras.

No âmbito da prosa de ficção, percebe-se a valorização do conto como forma de expressão literária.

LITERATURA BRASILEIRA

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Rubem Fonseca

Censura

Durante o Regime Militar (1964-1985), o Estado exerceu controle político e ideológico sobre a produção cultural. Letras de músicas, filmes e livros não puderam circular devido ao fato de seu conteúdo contrariar os interesses dos grupos que dominavam o poder. Assim, obras com tendências políticas de esquerda, que criticavam o governo ou cometiam afrontas “à moral e aos bons costumes”, eram frequentemente censuradas. A Constituição de 1988 acabou definitivamente com a censura, garantindo a liberdade de expressão política e artística.

Capa da primeira edição de Feliz

ano novo

Capa da primeira edição do livro O cobrador

José Rubem Fonseca, ou simplesmente Rubem Fonseca, como é conhecido, nasceu em Juiz de Fora (MG), no ano de 1925. Formado em Direito pela Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, o escritor foi comissário de polícia no 16.º Distrito, em São Cristóvão, Rio de Janeiro, até 1958. Posteriormente, cursou Administração e Comunicação nas universidades de Nova Iorque e Boston (EUA). A partir daí, passou a atuar como professor da Fundação Getúlio Vargas (RJ). A carreira como escritor começou na década de 1960, com a publicação de seus primeiros livros de contos. Durante o Regime Militar, o livro Feliz ano novo, publicado em 1975, foi proibido pela censura. A vasta obra do autor já foi adaptada para o cinema e a televisão. O romance A grande arte virou filme, e o livro Agosto, uma minissérie.

Rubem Fonseca

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Leia, a seguir, um dos contos de Rubem Fonseca, “Livro de ocorrências”.

1.

O investigador Miro trouxe a mulher à minha presença.Foi o marido, disse Miro, desinteressado. Naquela delegacia de subúrbio era comum briga de marido e mulher.Ela estava com dois dentes partidos na frente, os lábios feridos, o rosto inchado. Marcas nos braços e no

pescoço.Foi o seu marido que fez isso?, perguntei.Não foi por mal, doutor, eu não quero dar queixa.Então por que a senhora veio aqui?Na hora eu fiquei com raiva, mas já passou. Posso ir embora? Não.Miro suspirou. Deixa a mulher ir embora, disse ele entre dentes.A senhora sofreu lesões corporais, é um crime de ação pública, independe de sua queixa. Vou enviá-la a

exame de corpo delito, eu disse.Ubiratan é nervoso, mas não é má pessoa, ela disse. Por favor, não faz nada com ele.Eles moravam perto. Decidi ir falar com Ubiratan. Uma vez, em Madureira, eu havia convencido um sujeito

a não bater mais na mulher; outros dois, quando trabalhei na Delegacia de Jacarepaguá, também haviam sido persuadidos a tratar a mulher com decência.

Um homem alto e musculoso abriu a porta. Estava de calção, sem camisa. Num canto da sala havia uma barra de aço com pesadas anilhas de ferro e dois halteres pintados de vermelho. Ele devia estar fazendo exercícios quando cheguei. Seus músculos estavam inchados e cobertos por grossa camada de suor. Ele exalava a força espiritual e o orgulho que uma boa saúde e um corpo cheio de músculos dão a certos homens.

Sou da Delegacia, eu disse.Ah, então ela foi mesmo dar queixa, a idiota, Ubiratan resmungou. Abriu a geladeira, tirou uma lata de

cerveja, destampou e começou a beber.Vai e diz pra ela voltar logo para casa senão vai ter.Acho que você ainda não percebeu o que vim fazer aqui. Vim convidá-lo para depor na Delegacia.Ubiratan atirou a lata vazia pela janela, pegou a barra de aço e levantou-a sobre a cabeça dez vezes,

respirando ruidosamente pela boca, como se fosse uma locomotiva.Você acha que eu tenho medo da polícia?, ele perguntou, olhando com admiração e carinho os músculos

do peito e dos braços.Não é preciso ter medo. Você vai lá apenas para depor. Ubiratan pegou meu braço e me sacudiu.Cai fora, tira nojento, você está me irritando.Tirei o revólver do coldre. Posso processá-lo por desacato, mas não vou fazer isso. Não complique as coisas,

venha comigo à Delegacia, em meia hora estará livre, eu disse, calmamente e com delicadeza.Ubiratan riu. Qual é tua altura, anãozinho?Um metro e setenta. Vamos embora.Vou tirar essa merda da sua mão e mijar no cano, anãozinho. Ubiratan contraiu todos os músculos do

corpo, como um animal se arrepiando para assustar o outro, e estendeu o braço, a mão aberta para agarrar o meu revólver. Atirei na sua coxa. Ele me olhou atônito.

Olha o que você fez com o meu sartório!, Ubiratan gritou mostrando a própria coxa, você é maluco, o meu sartório!

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LITERATURA BRASILEIRA

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Sinto muito, eu disse, agora vamos embora senão atiro na outra perna.Pra onde você vai me levar, anãozinho?Primeiro para o hospital, depois para a Delegacia.Isso não vai ficar assim, anãozinho, tenho amigos influentes.O sangue escorria pela sua perna, pingava no carro. Desgraçado, o meu sartório! Sua voz era mais estridente do que a sirene que abria nosso caminho pelas ruas.

2.

Manhã quente de dezembro, rua São Clemente. Um ônibus atropelou um menino de dez anos. As rodas do veículo passaram sobre a sua cabeça deixando um rastro de massa encefálica de alguns metros. Ao lado do corpo uma bicicleta nova, sem um arranhão.

Um guarda de trânsito prendeu em flagrante o motorista. Duas testemunhas afirmaram que o ônibus vinha em grande velocidade. O local do acidente foi isolado cuidadosamente.

Uma velha, mal vestida, com uma vela acesa na mão, queria atravessar o cordão de isolamento, “para salvar a alma do anjinho”. Foi impedida. Com os outros espectadores, ela ficou contemplando o corpo de longe. Separado, no meio da rua, o cadáver parecia ainda menor.

Ainda bem que hoje é feriado, disse um guarda, desviando o trânsito, já imaginou isso num dia comum?Aos gritos uma mulher rompeu o cordão de isolamento e levantou o corpo do chão. Ordenei que ela o

largasse. Torci seu braço, mas ela não parecia sentir dor, gemia alto, sem ceder. Eu e os guardas lutamos com ela até conseguir tirar o morto dos seus braços e colocá-lo no chão onde ele devia ficar, aguardando a perícia. Dois guardas arrastaram a mulher para longe.

Esses motoristas de ônibus são todos uns assassinos, disse o perito, ainda bem que o local está perfeito, dá pra fazer um laudo que nenhum rábula vai derrubar.

Fui até o carro da polícia e sentei no banco da frente, por alguns momentos. Meu paletó estava sujo de pequenos despojos do morto. Tentei limpar-me com as mãos. Chamei um dos guardas e mandei trazer o preso.

No caminho da Delegacia olhei para ele. Era um homem magro, aparentando uns sessenta anos, e parecia cansado, doente e com medo. Um medo, uma doença e um cansaço antigos, que não eram apenas daquele dia.

3.

Cheguei ao sobrado na rua da Cancela e o guarda que estava na porta disse: primeiro andar. Ele está no banheiro.

Subi. Na sala uma mulher com os olhos vermelhos me olhou em silêncio. Ao seu lado um menino magro, meio encolhido, de boca aberta, respirando com dificuldade.

O banheiro? Ela me apontou um corredor escuro. A casa cheirava a mofo, como se os encanamentos estivessem vazando no interior das paredes. De algum lugar vinha um odor de cebola e alho fritos.

A porta do banheiro estava entreaberta. O homem estava lá.Voltei para a sala. Já havia feito todas as perguntas à mulher quando o perito Azevedo chegou.No banheiro, eu disse.Anoitecia. Acendi a luz da sala. Azevedo me pediu ajuda. Fomos para o banheiro.Levanta o corpo, disse o perito, para eu soltar o laço. Segurei o morto pela barriga. Da sua boca saiu um gemido.Ar preso, disse Azevedo, esquisito não é? Rimos sem prazer. Pusemos o corpo no chão úmido. Um homem

franzino, a barba por fazer, o rosto cinzento, parecia um boneco de cera.Ele não deixou bilhete, nada, eu disse.Eu conheço esse tipo, disse Azevedo, quando não aguentam mais eles se matam depressa, tem que ser

depressa senão se arrependem.Azevedo urinou no vaso sanitário. Depois lavou as mãos na pia e enxugou-as nas fraldas de sua camisa.

FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. p. 473-476.

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Agora, responda às seguintes questões:

1. O título do conto – “Livro de ocorrências” – faz referência aos livros em que eram anotados os fatos narrados aos policiais nas delegacias nas décadas de 1960 e 1970. De que forma os textos justificam esse título?

2. Como age a esposa de Ubiratan após ser agredida?

3. Na primeira parte do conto, como o personagem Ubiratan se relaciona com a autoridade poli-cial? Aponte dois exemplos no texto que sustentem a sua resposta.

4. Assinale a alternativa incorreta quanto ao conto de Rubem Fonseca.

a) O texto retrata a violência típica dos grandes centros urbanos da década de 1960 sem apre-sentar uma solução possível para o problema.

b) No que diz respeito à linguagem, pode-se afirmar que as frases curtas, além de darem celeri-dade à narrativa, transmitem a sensação de uma brutalidade semelhante à vivida pelos perso-nagens.

c) A briga entre marido e mulher, apresentada na primeira parte da narrativa, é, na opinião do narrador, resultado da condição de miséria econômica dos personagens.

d) O suicídio, na terceira parte do conto, é proposto como a única opção para os problemas da violência presentes nos grandes centros urbanos.

LITERATURA BRASILEIRA

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Esse samba faz parte de um cenário artístico do Brasil que sagrava a figura do malandro, do indivíduo à margem da lei, vivendo nos morros cariocas e adotando uma maneira de agir e pensar característica da “malandragem”.

Assim como no conto, a letra dessa música também apresenta o tema da violência de gênero. Há diferenças quanto à aceitação ou rejeição desse fato nas obras citadas? A violência contra a mulher

ainda ocorre em nossa sociedade? Discuta o tema com os colegas, abordando principalmente os motivos que desencadeiam esse tipo de problema.

João Antônio

João Antônio nasceu no subúrbio de Presidente Altino, em São Paulo, em 1937. Durante muito tempo, trabalhou em empregos mal remunerados. Em 1963, lançou seu primeiro livro de contos, Malagueta, perus e bacanaço, obtendo reconhecimento imediato tanto de público quanto de crítica. O

escritor trabalhou também como jornalista no Jornal do Brasil e foi um dos fundadores da revista Realidade, na qual publicou, em 1968, o primeiro conto-reportagem

do jornalismo brasileiro, “Um dia no cais”. No fim da década de 1960, João Antônio incorporou o estilo de

vida de seus personagens e dedicou-se plenamente à literatura. O escritor faleceu em 1996.

João Antônio

Capa do livro Meninão do Caixote, de João Antônio

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O conto de Rubem Fonseca aborda o tema da violência de gênero de modo bastante explícito.Agora, leia um trecho da letra de um samba de Moreira da Silva que já foi interpretado por diversos cantores,

como Jards Macalé, Ney Matogrosso e Zeca Baleiro.

Na subida do morroJards Macalé

Na subida do morro me contaramQue você bateu na minha nêgaIsso não é direitoBater numa mulherQue não é suaDeixou a nêga quase nuaNo meio da ruaA nêga quase que virou presunto

Eu não gostei daquele assuntoHoje venho resolvidoVou lhe mandar para a cidadeDe pé juntoVou lhe tornar em um defunto[...]

SILVA, Moreira da. Na subida do morro. Disponível em: <http://multishow.globo.com/musica/moreira-da-silva/na-subida-do-morro-com-ney-matogrosso/>. Acesso em: 27 nov. 2012.

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Leia, a seguir, o conto “Meninão do Caixote”, do livro homônimo de João Antônio.

Meninão do Caixote

Foi o fim de Vitorino. Sem Meninão do Caixote, Vitorino não se aguentava.Taco velho quando piora, se entreva de uma vez. Tropicava nas tacadas, deu-lhe uma onda de azar, deu para

jogar em cavalos. Não deu sorte, só perdeu, decaiu, se estrepou. Deu também para a maconha, mas a erva deu cadeia. Pegava xadrez, saía, voltava...

E assim, o corpo magro de Vitorino foi rodando São Paulo inteirinho, foi sumindo. Terminou como tantos outros, curtindo fome quietamente nos bancos dos salões e nos botecos.

***Na rua vazia, calada, molhada, só chuva sem jeito; nem bola, nem jogo [...] nem nada.Quando papai partiu no G.M.C., apertei meu nariz contra o vidro da janela, fiquei pensando nas coisas boas

de Vila Mariana. Carrinho de rodas de ferro (carrinho de rolimã, como a gente dizia), pelada todas as tardes, papai me levava no caminhão... E eu mais Duda íamos nadar todos os dias na lagoa da estrada de ferro. Todos os dias, eu mais Duda.

A gente em casa apanhava, que nossas mães não eram sopa e com mãe havia sempre uma complicação. A camisa meio molhada, os cabelos voltavam encharcados, difícil disfarçar e a gente acabava apanhando. [...]

Agora, na Lapa, numa rua sem graça, papai viajando no seu caminhão, na casa vazia só os pés de mamãe pedalavam na máquina de costura até a noite chegar. E a nova professora do grupo da Lapa? Mandava a gente à pedra, baixava os olhos num livro sobre a mesa. Como eu não soubesse, o tempo escorria mudo, ela erguia os olhos do livro, mandava-me sentar. Eu suspirava de alívio.

É. Mas não havia acabado não. À saída, naquele meu quinto ano, ela me passava o bilhete, que eu passaria a mamãe.– Trazer assinado.Coisas horríveis no bilhete, surra em casa.[...] O bilhete e a surra. É. Bilhete para minha mãe me bater, castigo, surra, surra. E papai que viajava no

seu caminhão, e quando viajava se demorava dois-três meses.[...]– Menino, vai buscar o leite. [...]– Mas está chovendo...[...]Peguei o litro e saí.[...]O remédio era ir buscar ao Bar Paulistinha, onde eu nunca havia entrado. Quando entrei, a chuvinha renitente

engrossou, trovão, trovão, um traço rápido cor de ouro lá no céu. O céu ficou parecendo uma casca rachada. E chuva que Deus mandava.

[...]No Paulistinha havia sinuca e só então eu notei. Pedi uma beirada no banco em volta da mesa, ajeitei o litro

de leite entre as pernas.– Posso espiar um pouco?Um homem feio, muito branco, mas amarelado ou esbranquiçado, eu não discernia, um homem de chapéu

e de olhos sombreados, os olhos lá no fundo da cara, braços finos, tão finos, se chegou para o canto e largou um sorriso aberto:

– Mas é claro, garotão!

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Fiquei sem graça. Para mim, moleque afeito às surras, aos xingamentos leves e pesados que um moleque recebe, aquela amabilidade me pareceu muita.

O homem dos olhos sombreados, sujeito muito feio, que sujeito mais feio! No seu perfil de homem de pernas cruzadas, a calça ensebada, a barba raspada, o chapéu novo, pequeno, vistoso, a magreza completa. Magreza no rosto cavado, na pele amarela, nos braços tão finos. Tão finos que pareciam os meus, que eram de menino. E magreza até no contorno do joelho que meus olhos adivinhavam debaixo da calça surrada.

Seus olhos iam na pressa das bolas na mesa, onde ruídos secos se batiam e cores se multiplicavam, se encontravam e se largavam, combinadamente. [...]

Eu já não entendia – aquilo se jogava a dinheiro. Bem. E por que ele dava o dinheiro se não havia jogado?– Ô Vitorino, você quer café?Um outro que o chamava, com o mesmo jeito na fala.[...]Vitorino era o dono da bola. Um cobra. O jeito camarada ou abespinhado de Vitorino, chapéu, voz, bossa,

mãos, seus olhos frios medidores. O máximo, Vitorino. No taco e na picardia.Saía, fazia que ia brincar. Ficava lá no meu canto, procurando compreender. Os homens brincavam:– Ô meninão!Eu sorria, como que recompensado. Aquele dera pela minha presença. Um outro virava-se:– Ô meninão, você está aí?Meninão, meninão, meu nome ficou sendo Meninão.

***[...]Para mim, Vitorino abria uma dimensão nova. As mesas. O verde das mesas, onde passeava sempre, estava

em todas, a dolorosa branca, bola que cai e castiga, pois o castigo vem a cavalo.Para mim, moleque fantasiando coisas na cabeça...Um dia peguei no taco.

***Joguei, joguei muito, levado pela mão de Vitorino, joguei demais.[...]Só joguei em bilhares suburbanos onde a polícia não batia, porque era um menino. Mas minha fama

correu, tive parceirinhos que vinham, vinham de muito longe à Lapa para me ver. Viam e se encabulavam. E depois carregavam nas apostas. Fama de menino-absurdo, de máximo, de atirador, de bárbaro. [...] E os salões se enchiam de curiosos humildes, quietos, com os olhos nas bolas. Era um menino, jogava sem medo.

Eu era baixinho como mamãe. Por isso, para as tacadas longas era preciso um calço. Pois havia. Era um caixote de leite condensado que Vitorino arrumou. Alcançando altura para as tacadas, eu via a mesa de outro jeito, eu ganhava uma visão! Porque não se mostrasse, meu jogo iludia, confundia, desnorteava. Muitos não acreditavam nele. Também por isso rendia... [...]

Porque me trepasse num caixote e porque e porque já me chamassem Meninão...Meninão do Caixote... Este nome corre as sinucas da baixa malandragem, corre Lapa, Vila Ipojuca, corre

Vila Leopoldina, chega a Pinheiros, vai ao Tucuruvi, chegou até Osasco. Ia indo, ia indo. Por onde eu passava, meu nome ficava. Um galinho de briga, no qual muitos apostavam porque eu jogava, ia lá ao fogo do jogo e trazia o dinheiro.

Lá ia eu, Meninão do Caixote, um galinho de briga. Um menino, não tinha quinze anos.

***Crescia, crescia o meu jogo no tamanho novo do meu nome.Tacos considerados vinham me ver, vinham de longe, namoravam a mesa, conversavam comigo, passavam

horas espiando o meu jogo. Eu sabia que me estudavam, para depois virem. [...]

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Minha vida ferveu. Ambientes, ambientes do joguinho. No fundo, todos os mesmos e os dias também iguais. [...] Dei-me com toda a canalha. Aos catorze, num cortiço da Lapa-de-baixo conheci a primeira mina. Mulatinha, empregadinha, quente. Ela gostava da minha charla, a gente se entendia. Eu me lembro muito bem. [...]

Na sinuca, Vitorino e eu, duas forças. Nas rodas do joguinho, nas curriolas, apareceu uma frase de peso, que tudo dizia e muito me considerava.

– Este cara tá embocando que nem Meninão do Caixote!Combati, topei paradas duras. [...]

***Umas coisas já me desgostavam.Jogava escondido, está claro. Brigas em casa, choro de mamãe. Eu não levantava a crista não. Até baixava

a cabeça.– Sim senhora.Mas a malandragem continuava, eu ia escorregando difícil, matando aulas, pingando safadezas. O colégio

me enfarava, era isto. Não conseguia prender um pensamento, dando de olhos nos companheiros entretidos com latim e matemática.

– Cambada de trouxas!Dureza, aquela vida: menino que estuda, que volta à casa todos os dias e que tem papai e tem mamãe.

Também não era bom ser Meninão do Caixote, dias largado nas mesas da boca do inferno, considerado, bajulado, mandão, cobra. Mas abastecendo meio mundo e comendo sanduíche, que sinuca é ambiente da maior exploração. Dava dinheiro a muito vadio, era a estia, gratificação que o ganhador dá. [...]

Vitorino era meu patrão. Patroou partidas caríssimas, partidas de quinhentos mil-réis. Punha-me o dinheiro na mão, mandava-me jogar. Fechava os olhos que o jogo era meu. E era.

– Vai firme![...]

***Jogo e minas.E papai estando fora, eu já fazia madrugada, resvalando, sorrateiro. Eu evoluí um truque para a janela do

meu quarto em noite alta eu chegando. Meter o ferro enviesado, por fora; destravar o fecho vertical...Mamãe me via chegar, e às vezes fingia não ver. Depois, de mansinho, eu me deitava. E depois vinha ela

e eu fingia dormir. Ela sabia que eu não estava dormindo. Mas mamãe me ajeitava as cobertas e aquilo bulia comigo. Porque ia para o seu canto, chorosa.

Mamãe, coitadinha.***

Larguei uma, larguei duas, larguei muitas vezes o joguinho.Entrava nos eixos. No colégio melhorava, tornava-me outro, me ajustava ao meu nome.Vitorino arrumava um jogo bom, me vinha buscar. Eu desguiando, desguiando, resistia. Ele dando em

cima. [...]Essas reaparições viravam boato, corriam os salões, exageravam um Meninão do Caixote como nunca fui.Vitorino, traquejado. Começava a exploração. Eu caía, por princípio; depois explodia, socava a mesa:– Este joguinho de graça é caro!Fechava a mão, batia e jurava em cima da mesa. [...]

***Tiririca, o grande Tiririca, elas por elas, era quase taco invicto antes do meu surgimento. E não parava jogo

perdendo, empenhava o relógio, anel, empenhava o chapéu, mas o jogo não parava. Ficava fervendo, uma raiva presa, que o deixava fulo, branco, furta-cor... [...]

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– O bicho tá tiririca.Ficou se chamando Tiririca.Mas era um grande taco. Perdendo é que era grande. Mineiro, mulato, teimoso, tanta manha, quanta fibra. Um

brigador. Um dos poucos que conheci com um estilo de jogo. Bonito, com puxadas, com efeitos, com um domínio da branca! Classe. [...] A sua força eram as forras. Os revides em grande estilo. Porque para Tiririca tanto fazia jogar uma hora, doze horas ou dois dias. O homem ficava verde na mesa, curtia sono e curtia fome, mas não dava o gosto.

– O jogo é jogado, meu.Levava a melhor vida. Vadiava, viajava, tinha patrões caros, consideração dos policiais. [...]Bem. Tiririca se encabulou comigo, estrebuchou, rebolou comigo durante sete horas e perdeu. Tudo.

Empenhou o paletó por cinquenta mil-réis e perdeu.– Esse moleque não é Deus!Bem. Voltava agora, com a sede e o dinheiro, exigindo o reencontro, prometendo me estraçalhar.– Quero a forra.Vitorino me buscou. Eu não queria mais nada.Do lado de lá da rua, em frente ao colégio, Vitorino estava parado. Passavam ônibus, crianças, passavam

mulheres, bondes, Vitorino ficava. Dois meses sem vê-lo e ele era o mesmo. Eu lhe explicaria bem devagar que não queria mais nada com o joguinho. [...]

Tiririca. A conversa já mudou. O malandro em São Paulo, querendo jogo comigo, aquilo me envaidecia... Tiririca me procurando.

[...]***

O último jogo. O jogo era em Vila Leopoldina, que assim marcou Tiririca. [...] Era o último, perdesse ou ganhasse. Bem falando, eu não queria nem jogar, ia só tirar uma cisma, quebrar Tiririca duma vez, acabar com a conversa. Não por mim, que eu não queria jogo. Mas pelo gosto de Vitorino, da curriola, não sabia. Saltei na rua de terra.

Ninguém precisava dizer que aquilo era um domingo...[...]Prometera voltar a casa para o almoço. Claro que voltaria. Tiririca era duro, eu sabia. Deixá-lo. Eu lhe

quebraria a fibra. Fibra, orgulho, teima, eu mandaria tudo para a casa do diabo. Já havia mandado uma vez... [...]O salão se povoou, se encheu, ferveu. Gente por todo o canto, assim era quando eu jogava e os homens

carregavam apostas entre si. O dono do bar me sorria, vinha trazer o giz americano, vinha me adular. Eu cobra, mandão. As mãos de Vitorino atiçavam.

– Larga a brasa, Meninão! Dá-lhe, Meninão! Vamos deixar esse cara duro, durinho. De pernas pro ar![...]Mas Tiririca estava terrível. Afiado, comendo as bolas, embocando tudo, naquele domingo estava terrível.

Contudo, na sinuca eu trazia uma coisa comigo. Mais jogasse o parceirinho, mais eu jogaria. Uma vontade desesperada me crescia, me tomava por inteiro e eu me aferrava. Jogava o jogo. [...]

Tiririca era um sujeito de muito juízo. Mas na velha picardia, eu lhe fui mostrando aos poucos os meus dentes de piranha. E quando o mulato quis embalar o jogo, a linha de frente era minha.

[...]A curriola se assanhou, cochichos, apostas se dobravam.Elogiado, embalado, joguei o jogo. Joguei o máximo, na batida em que ia, Tiririca nem teria tempo de

jogar, que eu ia fechar o jogo, acabar com as bolas. Ia cantando os pontos:– Vinte e seis.A curriola estava boba. O dono do bar parado, na mão um litro vazio de boca para baixo. Vitorino saltou

da cadeira, açambarcou todas as alegrias do salão, virou o dono da festa. Numa agitação de criança, erguia o braço magrelo.

– Este bichinho se chama Meninão do Caixote!

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Tiririca estatelado, escorava-se ao taco. Batido, batidinho. [...]O jogo acabou. [...]Vinha chorosa de fazer dó. Mamãe surgindo na cortina verde, vinha miudinha, encolhida, trazendo uma

marmita. Não disse uma palavra, me pôs a marmita na mão.– O seu almoço.Um frio nas pernas, uma necessidade enorme de me sentar. E uma coisa me crescendo na garganta,

crescendo, a boca não aguentava mais, senti que não aguentava. Ninguém no meu lugar aguentaria mais. Ia chorar, não tinha jeito.

– Que é? Que é isso? Ô Meninão!Assim me falavam e ao de leve, por trás, me apertavam os braços. Se foi Vitorino, se foi Tiririca, não sei.

Encolhi-me.O choro já serenado, baixo, sem os soluços. Mas era preciso limpar os olhos para ver as coisas direito.

Pensei, um infinito de coisas batucaram na cabeça. As grandes paradas, dois anos de taco, Taquara, Narciso, Zé da Lua, Piauí, Tiririca... Tacos, tacos. Todos batidos por mim. E agora, mamãe me trazendo almoço... Eu ganhava aquilo? Um braço me puxou.

– Me deixa.Falei baixo, mais para mim do que para eles. Não ia mais pegar no taco. Tivessem paciência. Mas agora

eu estava jurando por Deus.Larguei as coisas e fui saindo. Passei a cortina, num passo arrastado. Depois a rua. Mamãe ia lá em cima.

Ninguém precisava dizer que aquilo era um domingo... Havia namoros, havia vozes e havia brinquedos na rua, mas eu não olhava. Apertei meu passo, apertei, apertando, chispei. Ia quase chegando.

Nossas mãos se acharam. Nós nos olhamos, não dissemos nada. E fomos subindo a rua.

ANTÔNIO, João. Meninão do Caixote. Rio de Janeiro: Record, 1983. p. 79-107.

Agora, responda às seguintes questões:

1. Por que o protagonista recebe o nome de Meninão do Caixote?

2. O retrato de grupos marginalizados socialmente é uma das características da literatura em prosa das décadas de 1960 e 1970. Diante disso, aponte no texto “Meninão do Caixote” um persona-gem que se enquadra nesse grupo. Não se esqueça de justificar a sua resposta.

3. No plano da linguagem, a literatura dessa época tenta reproduzir a fala dos grupos sociais re-presentados pelos seus personagens. Ciente disso, aponte dois exemplos no texto “Meninão do Caixote” que ilustram essa característica da literatura do período.

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4. É possível afirmar que o personagem, apesar de sua pouca idade, vive uma crise de consciência devido ao fato de estar agindo de forma imprópria, dedicando-se ao jogo e não ao estudo?

5. Observe o seguinte fragmento do conto “Meninão do Caixote”.

“Tacos considerados vinham me ver, vinham de longe, namoravam a mesa, conversavam comigo, passavam horas espiando o meu jogo. Eu sabia que me estudavam, para depois virem. Viessem...”

Agora responda: O que o narrador quer dizer com “tacos”? Que figura de linguagem foi utilizada pelo autor neste fragmento?

6. O conto termina com o jogo entre Meninão do Caixote e Tiririca. Ciente disso, responda. Por que Tiririca tinha esse apelido?

7. No dia do desafio, a mãe do Meninão do Caixote vai ao salão de jogo. Para fazer o quê? Como reage o filho?

8. A reação do menino mostra arrependimento em relação ao estilo de vida que ele levava? Justifique.

9. O pai do protagonista é somente referido no conto. Diante disso, é possível afirmar que ele não é importante para o personagem? Justifique sua resposta.

10. É possível afirmar que Vitorino explora a habilidade do Meninão do Caixote? De que maneira ele fazia isso?

11. Assinale a alternativa correta.

a) No conto “Meninão do Caixote”, João Antônio narra a história de um menino que andava com um caixote e o utilizava como base para os pés dos homens que engraxavam sapatos.

b) O Meninão do Caixote vive uma dualidade existencial, visto que transita entre a escola propria-mente dita e a “escola da vida”, que é ensinada nos salões de jogos.

c) Vitorino, pai do protagonista Meninão do Caixote, é um péssimo modelo social, pois leva cons-tantemente o filho para jogar sinuca e lucra apostando nas vitórias do menino.

d) A mãe do Meninão do Caixote discute em vários momentos da narrativa com Vitorino. Essas discussões são motivadas, principalmente, pelo fato de ele lucrar com as vitórias do filho.

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Dalton Trevisan

Dalton Trevisan nasceu em Curitiba, no ano de 1925. Formado em Direito, advogou por pouco tempo. Ainda estudante, publicou seu primeiro livro, Sonata ao luar, que foi absolutamente renegado. Na década de 1940, Dalton foi um dos principais editores da revista Joaquim, que publicou os principais autores do Modernismo brasileiro, como Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Avesso a entrevistas e a fotografias, ele permitiu que criassem em torno de si uma associação com uma de suas principais criações, “O vampiro de Curitiba”. Dalton está entre os escritores mais profícuos da literatura brasileira contemporânea. Possui mais de 30 livros publicados e já conquistou os maiores prêmios literários da língua portuguesa.

Editora Abril/Abril Imagens/Nani G

oes

O vampiro de Curitiba é, provavelmente, um dos livros mais famosos de Dalton Trevisan. A obra é composta de 15 contos, dos quais apenas dois são narrados em primeira pessoa: “O vampiro de Curitiba” e “O herói perdido”. O personagem Nelsinho é o protagonista de todas as histórias.

Com a predominância do discurso direto e, às vezes, fragmentado, os contos são carregados de ironia e deboche, que é realçado pelo uso frequente de diminutivos (Nelsinho, coisinha, casadinha, magrinha, etc.), e apresentam uma linguagem coloquial para retratar um mundo sórdido, sem solidariedade nem esperança.

Apesar de cada narrativa seguir uma ordem cronológica direta, sem o uso de flashbacks ou outros recursos temporais, quando analisados conjuntamente, os contos não apresentam essa mesma ordem em relação à idade do protagonista – ela é diferente e aleatória a cada nova história.

O termo “vampiro” é uma metáfora ao comportamento de Nelsinho, cujo incontrolável desejo sexual o leva a percorrer as ruas de Curitiba perseguindo implacavelmente as mais diversas mulheres – jovens, velhinhas, professoras, virgens, estudantes, prostitutas, etc. Quase sempre bem-sucedido em seus “ataques”, o personagem vê sua libido renascer logo após ser saciada.

Capa do livro O vampiro de Curitiba, de Dalton Trevisan

A revista Joaquim circulou em Curitiba de 1946 até 1948, com o propósito de agitar culturalmente a cidade e propor novos ideais estéticos, mais modernos.

Idealizada pelo escritor Dalton Trevisan, mas com colaborações de vários artistas, como Carlos Drummond de Andrade, Candido Portinari, Poty Lazzarotto, etc., teve grande repercussão nacional, criando oportunidade para diversos novos artistas e atualizando a produção local.

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Dalton Trevisan, assim como seus contemporâneos João Antônio e Rubem Fonseca, escreveu principalmente contos, entendidos aqui como textos de pequena extensão em prosa. Contudo, Dalton inovou o gênero na literatura brasileira ao explorar o miniconto, uma forma extremamente curta de narrativa, que às vezes conta a totalidade de uma história em apenas uma ou duas linhas.

Observe alguns minicontos do autor e veja como os desastres amorosos, um dos temas preferidos de Dalton Trevisan, são trabalhados.

– A velhinha meio cega, trêmula e desdentada: – Assim que ele morra, eu começo a viver.

TREVISAN, Dalton. Ah, é? São Paulo: Record, 1994.

– Em agonia, roncando e gemendo, afasta a boca medonha da velha: – Só me beije depois de morto.

TREVISAN, Dalton. Ah, é? São Paulo: Record, 1994.

Leia o conto “Maria pintada de prata”, de Dalton Trevisan, e responda, em seguida, às perguntas.

Grandalhão, de voz retumbante, ele era adorado pelos filhos, de oito e cinco anos. João não vivia bem com a mulher. Maria era ambiciosa, queria enfeitar a casa de brincos e teteias. O marido ganhava pouco, mal podia com os gastos mínimos. João economizava um dinheirinho, lá se ia com a asma do filho, um dente de ouro da mulher. Ela não era menos trabalhadeira: fazia todo o serviço, engomava a roupinha dos meninos, costurava as camisas do marido, inconformada porém da sorte, humilhando o homem na presença da sogra.

Depois de cada discussão, ele apanhava o chapéu, batia a porta e ia beber no botequim da esquina. Às vezes, um dos pequenos lhe agarrava a ponta do paletó:

– Não vá, pai. Por favor, paizinho.Comovia-se ao ser chamado de – Paizinho. Relutante, voltava-se para a esposa: em cada olho um grito castanho

de ódio.– O paizinho vai dar uma volta.Tão grande e forte, não era resistente à bebida: embriagava-se fácil com alguns cálices de aguardente. Em

estado lastimável, atropelando as palavras, era o palhaço do botequim. E, pior que tudo, sentia-se desgraçado, queria mesmo era estar em casa, no conchego do corpo generoso da mulher.

Mais discutiam, mais ele bebia e faltava dinheiro em casa. Maria deu para se embonecar, muito pintada para a sua idade, gasta pelos trabalhos caseiros. Com sacrifício comprou máquina de tricô de segunda mão e confeccionava coletes de lã, reputados pelo fino acabamento. E como participara, em meninota, de programa de calouros, revelou ambição de artista: se educasse a voz ficaria célebre. Para desespero de João e escândalo das famílias, a pobre senhora, feia e nariguda, começou a cantar no tanque e diante do espelho as mil marchinhas de carnaval. Descuidava dos

O rei da terra

Um dos temas recorrentes na obra de Dalton Trevisan é a impossibilidade de as pessoas viverem a experiência amorosa na sua plenitude. Muitos dos personagens do autor são adultos e idosos que vivem um casamento frustrado ou são vítimas da traição. O relacionamento desastroso foi explorado pelo autor em muitos de seus livros, como em O rei da terra.

Capa do livro O rei da terra, de Dalton Trevisan

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filhos, largados na rua, ocupada em depilar sobrancelhas e encurtar a saia – nos braços o riso de pulseiras baratas.Com uma vizinha de má fama inscreveu-se no programa de calouros: a voz até que era agradável e, a título de

experiência, foi contratada.– Sou artista exclusiva – ufana-se, com sotaque pernóstico. – A féria é gorda!Era repertório de música ligeira, posto insistisse no tango dolente, e foi aplaudida, ainda mais porque, depois

do programa, oferecia festinha aos colegas de rádio: salgadinhos e cerveja grátis. João escapulia pelos fundos, em mangas de camisa, envergonhado da barba por fazer. Voltava bêbado e Maria trancava a porta do quarto, obrigando-o a dormir no sofá da sala. Em noite de inverno, o filho mais velho, ao escutá-lo gemer, vinha trazer-lhe um cobertor:

– Durma, paizinho.A cada sucesso de Maria – o quinto prêmio de marchinha carnavalesca, o retrato no jornal, a carta do admirador

com pedido de autógrafo:– Ela ainda vai receber uma vaia – era o comentário de João. – Com uma boa vaia ela aprende!Morena que era, eis Maria de cabeleira oxigenada! Acompanhada à casa, horas mortas da noite, pelos colegas

de vida artística, ora o cantor de tangos, ora o mágico de ciências ocultas. Demorava-se aos beijos na porta e as mães de família proibiam as crianças de brincar com os dois meninos. Quando deu com Maria de cabelos loiros, João soube que era o fim – dona casada que tinge o cabelo não é séria. Foi dormir no quarto de despejo, encolhido na enxerga imunda, a garrafa na mão.

Por dois dias não saiu do quarto (assustava-lhe a própria força e jamais batera nos filhos), a urrar palavrões e a desferir murros na parede. Maria arrumou as malas e, sem que as crianças se despedissem de João, transferiu-se para a casa dos pais.

Lá deixou os meninos e amigou-se com um pianista de clube noturno: foi explorada como bailarina, a tal que faz companhia aos clientes e obriga-os a beber. O pianista, vicioso e tísico, tomava-lhe o dinheiro e batia nela se a féria não era gorda.

Cansada de apanhar de cinta, voltou à casa dos pais. Então a velha foi em busca de João e sugeriu as pazes.– Ela que fique onde está – ripostou ele. – Não quero Maria nem pintada de prata.Despedido da fábrica por embriaguez, sobrevivia com biscates. Foi vestir o paletó, da manga surgiu uma cobra

e, aos berros, lançou-o no fogo. Aranhas cabeludas mordiam-lhe a nuca; inútil esmagá-las com o sapato, de uma nasciam duas e três – enrodilhava-se medroso a um canto e escondia nos joelhos a cabeça.

No domingo recebia a visita dos filhos, enviados pela sogra. Divertiam-se no Passeio Público a espiar os macaquinhos. O pai comprava amendoim e pipoca, que os três mordiscavam, deliciados. Afastava-se de mansinho e, atrás de uma árvore, emborcava a garrafa saliente no bolso traseiro da calça – as mãos cessavam de tremer. Os meninos desviavam os olhos: sapato acalcanhado, calça imunda, paletó sem botões. Alisavam-lhe a mão gigantesca e frágil:

– Não, paizinho. Não beba mais, pai.A cabeça oscilando de leve, deixava as lágrimas correrem pelo narigão de cogumelo encarnado, despedia-se

com sorriso sem dentes. Na esquina, gorgolejava a cachaça até a última gota.Em delírio na sarjeta, foi recolhido duas ou três vezes ao hospício. A crise medonha da desintoxicação e era

solto quinze dias mais tarde; mal cruzava o portão, entrava no primeiro botequim.Maria caiu nos braços do mágico de ciências ocultas e, proibida de cantar com voz tão horrorosa, consolou-se no

tanque de roupa. Nem o amante nem os velhos quiseram saber dos meninos, internados afinal no asilo dos órfãos.Cada um aprendia seu ofício e, no último domingo do mês, com permissão da freira, dirigiam-se à casa do

pai, bem penteadinhos. O homem, ainda deitado, curtia a ressaca; entre resmungos, ordenou que um deles fosse encher a garrafa.

Com alguns goles sentiu-se melhor. Ocuparam-se os pequenos a varrer a casa, acenderam o fogo depois de várias tentativas, os olhos irritados pela fumaça. No almoço apresentaram café com pão e salame rosa. Sentado na cama, o pai satisfez-se em vê-los comer. Olhos ausentes, por vezes sorria em paz, um deles enxugava-lhe o suor frio da testa. Sem coragem de abandoná-lo, os filhos permaneceram a seu lado durante a noite: a falar bobagem, tremia da cabeça aos pés, a cama sacudida de estertores – bolhas de escuma espirravam no canto da boca.

Os meninos adormeceram, de lâmpada acesa, ouvindo o ronco feio de afogado. O maior acordou no meio da noite, foi espiar o pai em descanso, de olhos brancos. Tentou falar-lhe, mas não se mexia. Sentiu medo e despertou o irmão:

– O paizinho morreu.Sem chorar, encolhidos na beira da cama, ficaram de mãos dadas à escuta dos pardais da manhã.

TREVISAN, Dalton. O vampiro de Curitiba. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. p. 165-168.

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1. No âmbito dos estudos literários, existe uma classificação que diferencia os personagens em pla-nos e redondos. Segundo essa classificação, o personagem plano é construído em torno de uma única ideia ou qualidade. Portanto, além de não possuir profundidade psicológica, ele não evolui ao longo da narrativa. Já o redondo, devido a sua complexidade psicológica, pode surpreender o leitor no decurso da ação. Diante disso, classifique os personagens João e Maria e justifique a sua resposta.

2. Quais são os motivos dos conflitos entre João e Maria?

3. A literatura brasileira produzida nas décadas de 1960 e 1970 retrata frequentemente perso-nagens marginalizados, entendidos como aqueles que se encontram à margem da sociedade, excluídos do processo social. Diante disso, pode-se afirmar que o personagem João é um margi-nalizado? Justifique a sua resposta.

4. Observe o fragmento a seguir e assinale a alternativa correta.

"Despedido da fábrica por embriaguez, sobrevivia com biscates. Foi vestir o paletó, da manga surgiu uma cobra e, aos berros, lançou-o no fogo. Aranhas cabeludas mordiam-lhe a nuca; inútil esmagá-las com o sapato, de uma nasciam duas e três – enrodilhava-se medroso a um canto e escondia nos joelhos a cabeça."

a) O conto de Dalton Trevisan está inserido na estética surrealista. Daí o personagem visualizar cobras saindo de sua manga e aranhas se multiplicando.

b) O conto reproduz a situação típica de pessoas que vivem próximas às zonas pouco urbaniza-das. Devido a isso, estão presentes na narrativa cobras e aranhas.

c) As cobras e as aranhas não existem na realidade do personagem. Elas são fruto do delírio provocado pelo consumo constante de álcool.

d) Os delírios vividos pelo personagem decorrem especificamente do fim da relação amorosa com Maria.

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Capa do livro Seminário dos ratos, de Lygia

Fagundes Telles

Lygia Fagundes Telles

Lygia Fagundes Telles nasceu na cidade de São Paulo, em 1923. Formou-se primeiro na Escola Superior de Educação Física e, depois, na Faculdade de Direito de São Paulo. Ainda adolescen-te, Lygia começou a escrever e, durante a faculdade, publicou seu primeiro livro – Praia viva –, em 1944. Em 1949, o livro de contos O cacto vermelho recebeu o Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras. Mais tarde, porém, a autora rejeitou seus primeiros escritos por considerá-los imaturos e precipitados. Em 1985, Lygia entrou para a Academia Brasileira de Letras.

Lygia Fagundes Telles

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Leia o conto “Herbarium”, lançado originalmente no livro Seminário dos ratos.

Herbarium

Todas as manhãs eu pegava o cesto e me embrenhava no bosque, tremendo inteira de paixão quando descobria alguma folha rara. Era medrosa mas arriscava pés e mãos por entre espinhos, formigueiros e buracos de bichos (tatu? cobra?) procurando a folha mais difícil, aquela que ele examinaria demoradamente: a escolhida ia para o álbum de capa preta. Mais tarde faria parte do herbário, ele tinha em casa um herbário com quase duas mil espécies de plantas. “Você já viu um herbário” – ele quis saber.

Herbarium, ensinou-me logo no primeiro dia em que chegou ao sítio. Fiquei repetindo a palavra, herbarium. Herbarium. Disse ainda que gostar de botânica era gostar de latim, quase todo o reino vegetal tinha denominação latina. Eu detestava latim mas fui correndo desencavar a gramática cor de tijolo escondida na última prateleira da estante, decorei a frase que achei mais fácil e na primeira oportunidade apontei para a formiga saúva subindo na parede: formica bestiola est. Ele ficou me olhando. A formiga é um inseto, apressei-me em traduzir. Então ele riu a risada mais gostosa de toda a temporada. Fiquei rindo também, confundida mas contente: ao menos achava alguma graça em mim.

Um vago primo botânico convalescendo de uma vaga doença. Que doença era essa que o fazia cambalear, esverdeado e úmido quando subia rapidamente a escada ou quando andava mais tempo pela casa?

Deixei de roer as unhas, para espanto da minha mãe que já tinha feito ameaças de cortes de mesada ou proibição de festinhas no grêmio da cidade. [...] Fiz minha cara inocente: na véspera, ele me advertira que eu podia ser uma moça de mãos feias, “ainda não pensou nisso?”. Nunca tinha pensado antes, nunca

Análise da obra

Seminário dos ratos, de Lygia

Fagundes Telles

@LIT284

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me importei com as mãos, mas no instante em que ele fez a pergunta comecei a me importar. E se um dia elas fossem rejeitadas como as folhas defeituosas? Ou banais. Deixei de roer unhas e deixei de mentir. Ou passei a mentir menos, mais de uma vez me falou no horror que tinha por tudo quanto cheirava a falsidade, escamoteação.

[...] Chegou ao sítio com suas largas calças de flanela cinza e grosso suéter de lã tecida em trança, era

inverno. E era noite. Minha mãe tinha queimado incenso (era sexta-feira) e preparou o Quarto do Corcunda, corria na família a história de um corcunda que se perdeu no bosque e minha bisavó instalou-o naquele quarto que era o mais quente da casa, não podia haver melhor lugar para um corcunda perdido ou para um primo convalescente.

Convalescente do quê? Qual doença tinha ele? Tia Marita, que era alegrinha e gostava de se pintar, respondeu rindo (falava rindo) que nossos chazinhos e bons ares faziam milagres. Tia Clotilde, embutida, reticente, deu aquela sua resposta que servia a qualquer tipo de pergunta: tudo na vida podia se alterar menos o destino traçado na mão, ela sabia ler as mãos. “Vai dormir feito uma pedra” – cochichou tia Marita quando me pediu que lhe levasse o chá de tília. Encontrei-o recostado na poltrona, a manta de xadrez cobrindo-lhe as pernas. Aspirou o chá. E me olhou: “Quer ser minha assistente?”, perguntou soprando a fumaça. “A insônia me pegou pelo pé, ando tão fora de forma, preciso que me ajude. A tarefa é colher folhas para minha coleção, vai juntando o que bem entender que depois seleciono. Por enquanto, não posso mexer muito, terá que ir sozinha”, disse e desviou o olhar úmido para a folha que boiava na xícara. Suas mãos tremiam tanto que a xícara transbordou no pires. É o frio, pensei. Mas continuaram tremendo no dia seguinte que fez sol, amareladas como os esqueletos de ervas que eu catava no bosque e queimava na chama da vela. Mas o que ele tem? perguntei e minha mãe respondeu que mesmo que soubesse não diria, fazia parte de um tempo em que doença era assunto íntimo.

Eu mentia sempre, com ou sem motivo. Mentia principalmente à tia Marita que era bastante tonta. Menos à minha mãe, porque tinha medo de Deus e menos ainda à tia Clotilde que era meio feiticeira e sabia ver o avesso das pessoas. Aparecendo a ocasião, eu enveredava por caminhos os mais imprevistos, sem o menor cálculo de volta. Tudo ao acaso. Mas aos poucos, diante dele, minha mentira começou a ser dirigida, com um objetivo certo. Seria mais simples, por exemplo, dizer que colhi a bétula perto do córrego onde estava o espinheiro. Mas era preciso fazer render o instante em que se detinha em mim, ocupá-lo antes de ser posta de lado como as folhas sem interesse, amontoadas no cesto. Então ramificava os perigos; exagerava as dificuldades, inventava histórias que encompridavam a mentira. Até ser decepada com um rápido golpe de olhar, não com palavras, mas com o olhar ele fazia a hidra verde rolar emudecida enquanto minha cara se tingia de vermelho – o sangue da hidra.

“Agora você vai me contar direito como foi”, ele pedia tranquilamente, tocando na minha cabeça. O olhar transparente. Reto. Queria a verdade. E a verdade era tão sem atrativos como a folha da roseira, expliquei-lhe isso mesmo, acho a verdade tão banal como esta folha. Ele me deu a lupa e abriu a folha na palma da mão: “Veja então de perto”. Não olhei a folha, que me importava a folha? olhei sua pele ligeiramente úmida, branca como papel com seu misterioso emaranhado de linhas, estourando aqui e ali em estrelas. Fui percorrendo as cristas e depressões, onde era o começo? Ou o fim? [...]

Nas cartas do baralho, tia Clotilde já lhe desvendara o passado e o presente. “E mais desvendaria”, acrescentou ele guardando a lupa no bolso do avental branco, às vezes vestia o avental. O que ela previu? Ora, tanta coisa. De mais importante, só isso, que no fim da semana viria uma amiga buscá-lo, uma moça muito bonita, podia ver até a cor do seu vestido de corte antiquado, verde-musgo. Os cabelos eram compridos, com reflexos de cobre, tão forte o reflexo na palma da mão!

[...] Não. Não existia ninguém de cabelo de cobre que no fim da semana ia aparecer para buscá-lo, ele não ia embora nunca mais. Nunca mais! repeti e minha mãe, que viera me chamar para o almoço, acabou se divertindo com a cara de diabo que fiz, disfarçava o medo fazendo caras de medo. E as pessoas se distraíam com essas caras e não pensavam mais em mim.

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Quando lhe entreguei a folha de hera com formato de coração (um coração de nervuras trementes se abrindo em leque até as bordas verde-azuladas) ele beijou a folha e levou-a ao peito. Espetou-a na malha do suéter: "Esta vai ser guardada aqui". Mas não me olhou nem mesmo quando eu saí tropeçando no cesto. Corri até a figueira, posto de observação onde podia ver sem ser vista. Através do rendilhado de ferro do corrimão da escada, ele me pareceu menos pálido. A pele mais seca e mais firme a mão que segurava a lupa sobre a lâmina do espinho-do-brejo. Estava se recuperando, não estava? Abracei o tronco da figueira e pela primeira vez senti que abraçava Deus.

No sábado, levantei mais cedo. [...] Salvei uma abelinha das mandíbulas de uma aranha, permiti que a saúva gigante arrebatasse a aranha e a levasse na cabeça como uma trouxa de roupa esperneando, mas recuei quando apareceu o besouro de lábio leporino. Por um instante me vi refletida em seus olhos facetados. Fez meia-volta e se escondeu no fundo da fresta. Levantei a pedra: o besouro tinha desaparecido, mas no tufo raso vi uma folha que nunca encontrara antes, única. Solitária. Mas que folha era aquela? Tinha a forma aguda de uma foice, o verde do dorso com pintas vermelhas irregulares como pingos de sangue. [...] Escondi a folha no bolso, peça principal de um jogo confuso. Essa eu não juntaria às outras folhas, essa tinha que ficar comigo, segredo que não podia ser visto. [...]

Tia Marita veio ao meu encontro, mais aflita e gaguejante do que de costume. Antes de falar começou a rir: "Acho que vamos perder nosso botânico, sabe quem chegou? A amiga, a mesma moça que Clotilde viu na mão dele, lembra? Os dois vão embora no trem da tarde, ela é linda como os amores, bem que Clotilde viu uma moça igualzinha, estou toda arrepiada, olha aí, me pergunto como a mana adivinha uma coisa dessas!"

[...]Fui me aproximando da janela. Através do vidro (poderoso como a lupa) vi os dois. Ela sentada com

o álbum provisório de folhas no colo. Ele um pouco atrás da cadeira, acariciando-lhe o pescoço e seu olhar era o mesmo que tinha para as folhas escolhidas, a mesma leveza de dedos indo e vindo no veludo da malva-maçã. [...]

Estendi-lhe o cesto mas ao invés de segurar o cesto, segurou meu pulso: eu estava escondendo alguma coisa, não estava? O que estava escondendo, o quê? Tentei me livrar fugindo para os lados, aos arrancos, não estou escondendo nada, me larga! Ele me soltou mas continuou ali, sem tirar os olhos de mim. Encolhi quando me tocou no braço: "E o nosso trato de só dizer a verdade? Hem? Esqueceu nosso trato?", perguntou baixinho.

Enfiei a mão no bolso e apertei a folha, intacta a umidade pegajosa da ponta aguda, onde se concentravam as nódoas. Ele esperava. [...] Ele continuava esperando, e então? No fundo da sala, a moça também esperava numa névoa de ouro, tinha rompido o sol. Encarei-o pela última vez, sem remorso, quer mesmo? Entreguei-lhe a folha.

TELLES, Lygia Fagundes. O segredo e outras histórias de descoberta. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. p. 6-15.

Agora, responda às questões a seguir.

1. Qual é o foco narrativo? É possível afirmar que ele acentua o tom de intimidade exigido pelo tema trabalhado no conto? Justifique sua resposta.

2. Em determinado momento da narrativa, a protagonista afirma que deixou de “roer unhas”. Por qual motivo?

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3. Por qual motivo a protagonista mentia, mesmo para o primo?

4. Nos momentos finais da narrativa, uma moça vem buscar o primo botânico. Quem era ela? Ela já havia sido apresentada antes? Justifique sua resposta.

5. É possível afirmar que a protagonista passou por um processo de maturação devido à história que viveu? Justifique.

6. Na última busca de folhas que a protagonista faz, ela encontra uma folha com a forma aguda, como a de uma foice, o verde no dorso, com pintas vermelhas irregulares como pingos de san-gue. Considerando esse trecho, em confronto com o restante da narrativa, é possível afirmar que o trecho possui algum valor simbólico? Em caso afirmativo, qual seria esse valor?

1. (UTFPR) Marque a alternativa correta em relação à representação literária do elemento pobre na ficção brasileira.

a) Em O cortiço de Aluísio Azevedo, o pobre é sempre humilde e dócil.

b) Em Os sertões de Euclides da Cunha, o pobre é reacionário, conformado à situação política vigente.

c) O personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, representa majoritariamente o pobre malan-dro, esperto, que no final obtém sucesso.

d) Em Vidas secas de Graciliano Ramos, o emi-grante nordestino consegue se qualificar no trabalho, representando tantos nordestinos migrantes e pobres que trabalham, por exem-plo, nas fábricas paulistas.

e) Os pobres nos contos de Rubem Fonseca (década de 60/70), em grande maioria, são urbanos, revoltados com a questão social e apresentam, muitas vezes, conduta marginal, vingando-se da exclusão.

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(UNIR) Leia o texto a seguir e responda à ques-tão 2.

Exitus letalis

A bula, da mesma forma que a poesia, tem suas metáforas, os seus eufemismos, os seus mistérios, e as partes melhores são sempre as que vêm sob os títulos “precauções e/ou ad-vertências” e “reações adversas”. Essa parte da bula é certamente produzida por uma equipe da qual fazem parte cientistas, gramáticos, ad-vogados especialistas em ações indenizatórias, poetas, criptógrafos, advogados criminalistas, marqueteiros, financistas e planejadores gráfi-cos. Você tem que alertar o usuário dos riscos que ele corre (e, não se iluda, todo remédio tem um potencial de risco), ainda que eufemicamen-te, pois, se o doente sofrer uma reação grave ao ingerir o remédio, o laboratório, por intermédio dos seus advogados, se defenderá dizendo que o doente e o seu médico conheciam esses ris-cos, devidamente explicitados na bula.

Vejam esta maravilha de eufemismo, de fi-gura de retórica usada para amenizar, maquiar ou camuflar expressões desagradáveis empre-gando outras mais amenas e incompreensíveis. Trecho da bula de determinado remédio: “Uma proporção maior ou mesmo menor do que 10% de...” (não cito o nome do remédio, aconselha-do pelo meu advogado) “pode evoluir para ‘exi-tus letalis’” (o itálico é da bula).

Qual o poeta, mesmo entre os modernos, os herméticos ou os concretistas, seria capaz de eu-femizar, camuflando de maneira tão rica, o risco de morte – “evoluir para exitus letalis”?

FONSECA, Rubem. In: Língua Portuguesa, n. 28, fev. 2008.

2. No texto, Rubem Fonseca cita duas figuras de linguagem, a metáfora e o eufemismo, e tra-balha amplamente a segunda. A primeira ocor-re quando uma palavra é empregada em um contexto de significação que não lhe é próprio, com base em uma relação de similaridade. Nu-mere os exemplos dados na coluna da direita de acordo com as figuras de linguagem da co-luna da esquerda.

1 – Eufemismo2 – Metáfora

( ) Senti a seda de sua pele em meu rosto.

( ) A propaganda é a alma do negócio.

( ) Falta-lhe inteligência para com- preender a situação.

( ) O pavão é um arco-íris de plu- mas.

( ) No confronto entre policiais e bandidos, muitos adormeceram para sempre.

Assinale a sequência correta.

a) 2, 1, 1, 2, 2

b) 1, 1, 2, 1, 2

c) 2, 2, 1, 2, 1

d) 1, 2, 2, 1, 1

e) 2, 1, 2, 2, 1

3. (UESPI) Considerado um dos grandes escritores da literatura contemporânea brasileira, Dalton Trevisan se firmou na literatura com o seu livro de contos O vampiro de Curitiba. Desta obra, pode-se afirmar o seguinte:

a) o livro, apesar de se passar em Curitiba, abor-da uma realidade do século XII;

b) o livro fala de um vampiro que sempre ataca homens desprevenidos, fazendo deles seus es-cravos;

c) a virilidade e a força são a arma que o vampiro usa para conquistar suas presas;

d) o personagem do vampiro é uma alegoria da velhice, da impotência sexual e da busca da espiritualidade;

e) nos contos, suas presas masculinas são sem-pre passivas.

4. (UEM – PR) Sobre O Cobrador, de Rubem Fonseca, assinale a alternativa correta.

a) Trata-se de um dos mais famosos livros da vertente da literatura contemporânea co-nhecida como “ficção Brutalista”, que deseja chocar o leitor ao fazê-lo encarar a violência causada pelas mazelas sociais do país. Esse li-vro se caracteriza por não tentar mostrar as vítimas da desigualdade social como anjinhos inocentes, tentando comover o leitor com

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seus sofrimentos, mas como indivíduos que optam pela violência e pela brutalidade como defesa e/ou reação à situação de carência e de injustiça social; e denunciam o burguês como participante, por vezes sádico, dessa mesma estrutura social violenta.

b) Trata-se de um dos mais famosos romances do autor. Narra a história de um homem po-bre que ganha a vida fazendo cobranças de dívidas para uma pequena financiadora. Ele ganha uma comissão sobre o montante das dívidas que recuperou: a necessidade de ga-nhar a vida vai, aos poucos, levando-o a fazer ameaças, depois a usar de violência contra os “maus pagadores”. Essa violência torna-se um hábito até que, um dia, o homem percebe que tomou gosto por ela. Sua última frase, após espancar um garoto de dezesseis anos, é “por mim, eu trabalhava até de graça”.

c) Esse livro provocou polêmica quando foi pu-blicado e quase foi recolhido pela Censura. Apesar disso, passados quase 30 anos de sua publicação, percebemos que a violência e as crueldades que ele narra tornaram-se quase inofensivas hoje em dia, quando as compara-mos com as imagens exibidas nos noticiários da TV. Pode-se dizer que O Cobrador, embora importante como marco literário de uma dé-cada, envelheceu e perdeu boa parte de seu impacto.

d) A tensão psicológica é fundamental na constru-ção textual de Rubem Fonseca. Em O Cobrador, a principal violência dos textos é psicológica: o mendigo desprezado que não se considera humano, mas “menos que isso”; o aposenta-do que lamenta não ter mais forças para im-pedir um assalto; a criança que, humilhada pela mãe, jura crescer para vingar-se do desa-mor materno. Essa galeria de sofredores, em-bora não desperte simpatia no leitor, pode, por vezes, criar uma identificação desse leitor com algumas das situações apresentadas no livro.

e) As mulheres, em O Cobrador, são uma catego-ria à parte. Piores do que os homens, quando se descobrem traídas, elas surgem, ao longo do texto, como perigosíssimas: imprevisíveis, traiçoeiras, capazes de paixão terna e de au-tossacrifício por assassinos impiedosos e, ao

mesmo tempo, de entregarem o amado à morte por motivos fúteis. As feministas criti-cam duramente essa misoginia, mas o escritor afirma que suas personagens são, quase sem-pre, baseadas em mulheres reais.

5. (UFSM – RS)

Quando ela me viu abrir a porta da rua gri-tou, vai, mentiroso, frouxo, debiloide, ignoran-te, pé rapado.

Fui, chateado. [...] Não me incomodava de ser chamado de mentiroso, nem de frouxo [...], mas de ser chamado de ignorante, pé rapado, isso doeu. Só porque [ela] era datilógrafa e cur-sou o ginásio [equivalente ao Ensino Fundamen-tal] ela não tinha o direito de dizer aquilo de mim [...].

FONSECA, R. Abril, no Rio, em 1970. In: ______. Feliz ano novo. São Paulo: Cia. das Letras, 2003. p. 46.

Nesse fragmento, o personagem de Rubem Fonseca, que vive no ano de 1970, queixa-se:

a) dos preconceitos que orientavam a elite urba-na brasileira quanto à seleção de empregados para suas empresas;

b) da estrutura socioeconômica brasileira que, tradicionalmente, impedia as crianças pobres de concluírem o ensino formal;

c) do sistema político que vigorava nos anos 60 e 70, o qual inibia a imprensa e a livre organi-zação da sociedade civil;

d) da fragilidade dos Direitos Humanos no país, tendo em vista que a grande maioria da po-pulação permanecia analfabeta;

e) do fracasso da esquerda armada na luta con-tra o Regime Militar e por uma nova ordem sociopolítica.

6. (UFPR) Leia o fragmento a seguir, extraído do con-to “A mão no ombro” (in: Seminário dos ratos, de Lygia Fagundes Telles):

O homem estranhou aquele céu verde com a lua de cera coroada por um fino galho de ár-vore, as folhas se desenhando nas minúcias sobre o fundo opaco. Era uma lua ou um sol apagado? Difícil saber se estava anoitecendo ou

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se já era manhã no jardim que tinha a luminosi-dade fosca de uma antiga moeda de cobre. Es-tranhou o úmido perfume de ervas. E o silêncio cristalizado como num quadro, com um homem (ele próprio) fazendo parte do cenário. Foi an-dando pela alameda atapetada de folhas cor de brasa, mas não era outono.

Assinale a alternativa correta.

a) Assim como em livros publicados nos anos 70 por Dalton Trevisan e Clarice Lispector, os elementos fantásticos dos contos de Seminá-rio dos ratos são resultado de uma estratégia para driblar a vigilância da censura no perío-do da Ditadura Militar.

b) A presença de um estranho jardim aproxima “A mão no ombro” do conto “Herbarium”, narrativa em que as plantas igualmente cola-boram para a composição de um cenário den-so, pouco objetivo.

c) A atmosfera de mistério relaciona-se com a psicologia da personagem que – assim como diversos protagonistas de Seminário dos ratos – é um ser humano isolado do convívio social.

d) A variedade de detalhes e nuanças do trecho apresentado resulta numa exatidão descritiva típica de uma descrição realista.

e) A dificuldade do personagem para identificar o astro luminoso – Lua ou Sol – justifica-se pelo predomínio dos cenários urbanos na fic-ção de Lygia Fagundes Telles.

7. (UFPR) Sobre a obra Leão-de-chácara, de João Antônio, assinale a alternativa incorreta.

a) O conto “Joãozinho da Babilônia” opõe, na disputa pela mesma mulher, um leão-de-chá-cara da noite carioca e um homem mais ve-lho e poderoso, mostrando no desfecho que, a despeito da violência, o submundo carioca esconde dramas amorosos capazes de resga-tar as personagens do mundo do crime.

b) O livro trata de tráfico de drogas e crimina-lidade, assim como da sordidez do comércio sexual envolvendo mulheres, os homens que as sustentam e os que são sustentados por elas, mas não explora esses temas como críti-ca ou denúncia, expondo-os como uma con-dição, uma circunstância da vida dos persona-gens.

c) O recorte social da obra é o da vida noturna carioca, dos “malandros e merdunchos”, mas revela também o trânsito de outras classes so-ciais nesse ambiente.

d) Enquanto Memórias de um sargento de milí-cias trata da malandragem no “tempo do rei”, numa visão ingênua e cômica de leves desvios sociais, Leão-de-chácara descreve a vida de um submundo carioca já violento, onde o trá-fico de drogas começa a se organizar.

e) A linguagem de João Antônio constitui-se como registro autêntico daquela que é em-pregada no espaço social retratado por sua ficção, seja no nível da voz narrativa, seja nos diálogos.

8. (UNIJUÍ – RS) O conto constitui atualmente um gênero em que se reúne fantasia, alegria, in-trospecção, sátira, ironia, humor e, mais recen-temente, política e erotismo. Essa plasticidade revelou na escritura de grandes nomes de con-tistas contemporâneos como Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca. São obras suas pela ordem:

a) Feliz ano novo, Ciranda de pedra e As meni-nas;

b) Maçã no escuro, Exílio e A mulher que matou os peixes;

c) A paixão segundo G.H., A polaquinha e Feliz ano velho;

d) A república dos sonhos, Maçã no escuro e Laços de família;

e) Seminário dos ratos, O vampiro de Curitiba e O cobrador.

9. (ESPM – SP) A ficção engloba romance, nove-la e conto. Incidentalmente, a crônica. Existem, decerto, escritores que passam de um gênero a outro, com os melhores resultados. Entre os au-tores abaixo, qual deles é predominantemente contista?

a) Antonio Callado.

b) Fernando Sabino.

c) Dalton Trevisan.

d) Antonio Torres.

e) Lya Luft.

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Literatura brasileira contemporânea: poesia

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MadrigalMeu amor é simples, Dora, Como a água e o pão.

Como o céu refletidoNas pupilas de um cão.

PAES, José Paulo. Os melhores poemas de José Paulo Paes. 3. ed. São Paulo: Global, 2000. p. 69.

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiámas não pode medir seus encantos.A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existemnos encantos de um sabiá.

Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare.

Os sabiás divinam.

BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 53.

Foto da instalação “Desvio para o vermelho”, de Cildo Meireles

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Mesmo com a repressão e a censura vivenciadas durante a Ditadura Militar, a população não se calou. São Paulo, julho de 1968

1. As três obras anteriores foram produzidas por importantes artistas das décadas de 1960, 1970 e 1980. Do ponto de vista temático, você consegue perceber alguns pontos em comum? Quais?

2. Analisando a linguagem, você diria que eles se aproveitam de algumas conquistas modernistas ou valem-se do modelo formal de composição clássica, como os sonetos, rimas e métrica? Justifique.

A unidade anterior tinha como foco a produção literária contemporânea, desenvolvida no Brasil no período com-preendido entre as décadas de 1960 e 1980, detendo-se, especialmente, nos autores da prosa, como Rubem Fonseca e João Antônio. Nesta unidade, o objetivo é dar continuidade ao estudo, porém focando os poetas, como Adélia Prado, José Paulo Paes, Hilda Hilst e Manoel de Barros.

Além do importante papel que desempenharam na época, influenciando outros que surgiram depois deles, muitos escritores desse período ainda estão em atividade atualmente e continuam publicando novas obras, como é o caso de Manoel de Barros e Adélia Prado.

Esse período foi marcado por muitos acontecimentos sociais, como o fim do governo de Juscelino Kubitschek, a eleição e renúncia de Jânio Quadros, seguida do Golpe Militar, e, na direção oposta, a luta pelos direitos sociais, a liberdade de expressão e a autonomia das mulheres.

Esses elementos aparecem, ainda que não de maneira direta, na produção dos poetas desse período. Entre os temas recorrentes, estão a valorização do Brasil e a vida do homem simples. Duas mulheres se destacam pela qualidade e autenticidade de suas obras: Adélia Prado e Hilda Hilst.

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Capa do livro Pau Brasil, de Oswald de Andrade

Os escritores que vamos estudar nesta uni-dade criaram uma poética própria, sem se filiar a nenhum movimento ou tendência que pudesse se configurar como uma escola literária, isto é, sem se organizarem em grupos definidos com ideais comuns. Seus textos apresentam temas e linguagens individuais, e cada escritor, a sua maneira e com base em suas experiências pessoais, desenvolveu uma estética própria.

Podemos notar, porém, algumas tendên-cias comuns entre um e outro poeta, como a defesa da simplicidade que aparece ma-terializada no tema “natureza”. Além disso, foram, de maneira geral, fortemente influen-ciados pela Primeira Geração Modernista; em especial, pela figura de Oswald de Andrade e sua literatura concisa e com temas do Brasil.

Em alguns casos, seguiram tendências dos poetas da Segunda Geração Modernista, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, ou, ainda, beberam da fonte de João Cabral de Melo Neto e, mais tarde, dos concretistas.

Poema concreto “Greve”, de Augusto de Campos

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Os pintores transitam constantemente entre a tradição da história da arte e os fragmentos do mundo atual, realizando uma pintura híbrida, que dialoga com a produção poética do momento ao ressignificar elementos tradicionais e apresentar um ponto de vista particular sobre o mundo.

No período estudado, a pintura passou a ser produzida com base em novos paradoxos: uso abusivo das cores, grandes formatos, uso de objetos do cotidiano, gestualidade, figurativismo e expressionismo.

Adélia Prado

Adélia Luzia Prado nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, em 1935. Era filha de um ferroviário e de uma dona de casa. Sua família tinha uma vida pacata e muito religiosa.

Em 1950, morreu sua mãe, e esse acontecimento fez com que a autora começasse a escrever a fim de expurgar a dor. Em 1954, terminou o curso de Magistério e começou a

lecionar logo em seguida como professora primária. Casou-se com José Assunção de Freitas e, ainda em Divinópolis, iniciou, com o

marido, o curso de Filosofia. Em 1972, seu pai morreu e, no ano seguinte, a autora enviou originais de seus poemas a

Affonso Romano de Sant’Anna, que os submeteu à apreciação de Carlos Drummond de Andrade. O poeta modernista ficou tão impressionado com a produção de Adélia que sugeriu

a sua publicação à editora Imago e escreveu em sua coluna no Jornal do Brasil sobre o novo nome da literatura nacional.

Mas, ainda que seja possível identificar esses aspectos em comum, não podemos filiar os poetas dessa época a nenhuma escola ou tendência única, como foi possível fazer com os românticos, os realistas, os parnasianistas, etc. Trata-se, então, de estudar sua produção individual – neste caso, a de alguns dos mais importantes: Adélia Prado, Manoel de Barros, José Paulo Paes e Hilda Hilst –, entendendo qual é o seu percurso pessoal e de que maneira cada um deles alterou a produção poética nacional, criando novos paradigmas e modelos aos escritores atuais.

PIMENTEL, Vanda. Envolvimento. 1969. 1 tinta sobre tela, color., 130 cm x 97 cm. MAM, Rio de Janeiro.

MORAES, Glauco Pinto de. Engates acoplados. 1979. 1 óleo sobre tela, color., 240 cm x 180 cm. Coleção do autor.

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Igreja de Divinópolis, cidade natal de Adélia Prado

Em 1976, Bagagem foi publicado com a presença de figuras ilustres: Antônio Houaiss, Raquel Jardim, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Juscelino Kubitschek, Affonso Romano de Sant'Anna, Nélida Piñon e Alphonsus de Guimaraens Filho, entre outros.

Dois anos depois, publicou Coração disparado, que foi agraciado com o Prêmio Jabuti. Adélia Prado largou a carreira de Magistério, na qual atuou por 24 anos, para se dedicar somente à escrita.

Nos anos seguintes, publicou diversos livros de poesia e prosa, trabalhando inclusive com teatro. Entretanto, no final da década de 1980, parou de produzir por um longo período, retornando apenas em 1994, com o Homem da mão seca.

Adélia Prado vive até hoje em Minas Gerais de maneira reclusa.

PoemasO aspecto mais relevante da poesia de Adélia Prado é a sua relação com o cotidiano, o que vai

influenciar toda a sua visão de mundo, inclusive a sua religiosidade. Por viver em uma cidade pequena – Divinópolis tem, atualmente, cerca de 200 mil habitantes –, de

forma bastante simples, relacionou-se com as coisas prosaicas a sua volta de forma poética. Cuidar da casa, ser mãe, dar de comer aos cachorros, ficar à toa são atos de extrema beleza para a escritora, momentos de transcendência, completude e felicidade.

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Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.Faço comida e como.Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorroe atiro os restos.Quando dói, grito ai,quando é bom, fico bruta,as sensibilidades sem governo.Mas tenho meus prantos,claridades atrás do meu estômago humildee fortíssima voz pra cânticos de festa.Quando escrever o livro com o meu nomee o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,a uma lápide, a um descampado,para chorar, chorar e chorar,requintada e esquisita como uma dama.

PRADO, Adélia. Bagagem. São Paulo: Siciliano, 1991. p. 12.

Como o próprio título sugere, o “eu lírico” possui o grande desejo de ser mãe, fazer a comida, comer, alimentar os cachorros e escrever. Essas tarefas são vistas sem hierarquia entre si, cozinhar não é mais importante do que escrever, mas agir como uma “dama” é algo estranho, uma vez que não faz parte da vida simples.

O mesmo acontece com a fé, que não é tortuosa nem radical, trata-se de uma religião vivida no cotidiano, sem a defesa de uma ideologia específica ou de um tipo de comportamento moral. A fé é uma parte do cotidiano, uma forma de se relacionar com o mundo, de agradecer e ser humilde diante da vida.

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Um salmoTudo que existe louvará.Quem tocar vai louvar,quem cantar vai louvar,o que pegar a ponta de sua saiae fizer uma pirueta, vai louvar.Os meninos, os cachorros,os gatos desesquivados,os ressuscitados,o que sob o céu mover e andar

vai seguir e louvar.O abano de um rabo, um miado,u’a mão levantada, louvarão.Esperai a deflagração da alegria.A nossa alma deseja,o nosso corpo anseiao movimento pleno: cantar e dançar TE-DEUM.

PRADO, Adélia. Bagagem. São Paulo: Siciliano, 1991. p. 33.

Observa-se aqui como o “louvor” deixa de ser um ato de devoção única e exclusivamente a Deus e passa a ser entendido como um sentimento maior e mais profundo de amor à vida, que pode ser expressado a qualquer momento e por qualquer pessoa ou animal. Essa dessacralização da fé surge em Adélia como um desdobramento do cotidiano, da vida simples, que é o cerne da sua poesia.

Um último aspecto da poesia de Adélia Prado que merece ser estudado com cuidado é a questão do feminino: a mulher e sua posição no mundo são alguns de seus temas mais recorrentes. A autora perscruta o universo feminino, procurando dar lugar aos sentimentos da mulher, independentemente de sua posição social. Contudo, Adélia não tem a intenção de se filiar a uma causa sociopolítica, como o feminismo. Na verdade, ela apresenta um novo olhar sobre a mulher, que dá lugar às suas angústias e aos seus desejos interiores, bem como ao papel de mãe e esposa, dona do lar.

As experiências pessoais da autora mais uma vez contam para a construção de sua voz poética. Ela escreve como filha, mãe, esposa e devota, assumindo essas posições inteiramente. Identifica-se somente uma dicotomia entre os apelos do corpo e a elevação espiritual, o gozo carnal e o êxtase espiritual.

Os autores dessa época foram fortemente influenciados pelos poetas da Primeira e da Segunda Geração Modernista e, por esse motivo, fizeram muitas paródias de textos originais. A seguinte versão de Adélia Prado para o poema de Carlos Drummond de Andrade diz muito sobre a visão que a poeta tinha da mulher e de si mesma. Leia os textos e responda às questões.

Com licença poética Quando nasci um anjo esbelto,desses que tocam trombeta, anunciou:vai carregar bandeira.Cargo muito pesado pra mulher,esta espécie ainda envergonhada.Aceito os subterfúgios que me cabem,sem precisar mentir.Não sou tão feia que não possa casar,acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.Inauguro linhagens, fundo reinos– dor não é amargura.Minha tristeza não tem pedigree,já a minha vontade de alegria,sua raiz vai ao meu mil avô.Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.Mulher é desdobrável. Eu sou.

PRADO, Adélia. Bagagem. São Paulo: Siciliano, 1991. p. 11.

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1. O título do poema de Adélia Prado possui um jogo de palavras. Qual é? Explique os sentidos possíveis para esse título.

2. No poema de Adélia Prado, como o “eu lírico” vê a si mesmo?

3. O poema de Adélia Prado é uma paródia do poema de Carlos Drummond de Andrade com a intenção de:

a) ridicularizar a visão de Drummond sobre si mesmo;

b) fazer um elogio ao poeta Drummond ao exaltar todas as qualidades por ele elencadas;

c) ressignificar o poema de Drummond, ao fazer um paralelo com o texto original, porém apre-sentando um ponto de vista feminino;

d) alterar o significado do texto original, mostrando como Drummond possuía uma visão machista;

e) provocar humor ao reescrever o poema de Drummond, modernizando-o.

Poema de sete facesQuando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homensque correm atrás de mulheres.A tarde talvez fosse azul,não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:pernas brancas pretas amarelas.Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.Porém meus olhosnão perguntam nada.O homem atrás do bigodeé sério, simples e forte.Quase não conversa.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 5.

Tem poucos, raros amigoso homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonastese sabias que eu não era Deus,se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundose eu me chamasse Raimundoseria uma rima, não seria uma solução.Mundo mundo vasto mundo,mais vasto é meu coração.Eu não devia te dizermas essa luamas esse conhaquebotam a gente comovido como o diabo.

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4. Como sugere o título, o poema descreve o quê?

5. Esse poema possui vários elementos que são próprios da poética de Adélia Prado. Quais são eles e em quais versos eles se concretizam?

Descritivo

As formigas passeiam na parede, Perto de um vidro de cola que perdeu a rolha. Há mais: um maço e jornais, uma bilha e seu gargalo fálico, um copo de plástico laranjado e um quiabo seco,‘chifre de veado’, guardado ali por causa das sementes. Tudo sobre uma cômoda, num quarto. O vidro de cola está arrolhado com uma bucha de papel. É sábado, é tarde, é túrgida minha bexiga femininae por isso vai ser menos belo que eu me levante e a esvazie. Os analistas dirão, segundo Freud: ‘complexo de castração’. Eu não digo nada, pela primeira vez, humildemente. Vou me deitar pra dormir, não antes sem rezar, pelos meus e os teus.

PRADO, Adélia. Bagagem. São Paulo: Siciliano, 1991. p. 69.

Leia o seguinte poema de Adélia Prado e responda ao que se pede.

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Poemas Como Adélia Prado, Manoel de Barros nasceu em uma cidade pequena e foi profundamente

influenciado pelas coisas simples da vida. Mas o que sobressai no seu trabalho é a relação com a natureza, vivida muito de perto, na fazenda, o que lhe confere a alcunha de “poeta do Pantanal”.

Manoel reinventa a natureza, retrata o ínfimo, as coisas ordinárias por meio de um olhar quase “infantil”, que observa para além do que está posto, dramatizando a formiga, a

lesma, o sapo, a água, etc., figuras constantes em sua produção.

© Wikimedia Commons/Anagoria

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Pulsar Imagens/Mario Friedlander

Kino.com.br/Haroldo Palo Jr.

Manoel de Barros

Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em Cuiabá, em 1916, mas ainda criança foi com a família para uma fazenda do pai, no Pantanal, onde viveu uma vida simples, criando gado

e plantando. Depois, foi enviado para um internato em Campo Grande e, em seguida, a outro no Rio

de Janeiro, onde se deram os primeiros contatos com a escrita e os clássicos da literatura. Seu primeiro livro, publicado em 1937, foi Poemas concebidos sem pecado, feito

artesanalmente por amigos, numa tiragem de 20 exemplares mais um, que ficou com ele. Em 1941, formou-se em Direito e, além de advogado, trabalhou como fazendeiro e

poeta. Quando jovem, envolveu-se com o Partido Comunista, mas se desapontou com a política

e foi viajar durante um período. Passou por Bolívia e Peru e fixou-se por um ano em Nova Iorque, onde conheceu o trabalho de diversos pintores e cineastas, como Pablo Picasso, Marc

Chagall, Joan Miró, Federico Fellini, Jim Jarmusch, Akira Kurosawa, Luis Buñuel, etc. Ao voltar para o Brasil, trabalhou em sua fazenda no Pantanal e nunca chegou a circular pelo Rio

de Janeiro ou São Paulo para divulgar os seus livros. Por esse motivo, só ficou conhecido pelo público quando, na década de 1980, Millôr Fernandes, Carlos Drummond e outras figuras notórias começaram a escrever artigos para diversos jornais falando sobre o poeta recluso.

Ganhou dois prêmios Jabuti e, atualmente, é reconhecido nacional e internacionalmente como um dos poetas mais importantes do Brasil.

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Nesse poema, a vida dos caramujos e a sua insignificância ganham uma dimensão simbólica: seu empenho, sua lentidão e paciência aparecem como valores a serem observados e imitados pelo homem. Há uma inversão da maneira de pensar e olhar para o mundo, e aquilo que normalmente não seria tema de um poema, como um caramujo, aparece agora recheado de beleza e poesia.

O mundo de Manoel de Barros é apresentado sem a lógica racional – tão bem trabalhada por João Cabral de Melo Neto, por exemplo – e surge a ótica da subversão, do jogo com as palavras, do onírico, do surreal e sem sentido. O que antes não poderia ser tema de poema agora é; os animais ganham atributos humanos; a relação entre o homem e a natureza é revista por uma nova ótica; os substantivos viram verbos; os verbos, nomes, e assim por diante.

Depois de ter entrado para rã, para árvore, para pedra– meu avô começou a dar germínios.Queria ter filhos com uma árvore.Sonhava de pegar um casal de lobisomem para irvender na cidade.Meu avô ampliava a solidão.

No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fundos doquintal: Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pradentro.Um lagarto atravessou meu olho e entrou para o mato.Se diz que o lagarto entrou nas folhas, que folhou.

Há um comportamento de eternidade nos caramujos.Para subir os barrancos de um rio, eles percorrem umdia inteiro até chegar amanhã.O próprio anoitecer faz parte de haver beleza noscaramujos.Eles carregam com paciência o início do mundo.No geral os caramujos têm uma voz desconformadapor dentro.Talvez porque tenham a boca trôpega.

Suas verdades podem não ser.Desde quando a infância nos praticava na beira do rioNunca mais deixei de saber que esses pequenosmoluscosAjudam as árvores a crescer.E achei que esta história só caberia no impossível.Mas não; ela cabe aqui também.

Os caramujos

BARROS, Manoel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 31.

BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 21.

Marcos Guilherme. 2013. Digital.

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1. O poema anterior sintetiza o que Manoel de Barros pensa sobre o fazer poético. Com base nas suas informações sobre o escritor e a sua poética, escreva um texto de aproximadamente dez linhas explicando qual é a visão de mundo desenvolvida por Manoel de Barros.

2. O próximo poema de Manoel de Barros explica um pouco a concepção de linguagem desenvol-vida por ele. Qual é essa ideia e como ela se relaciona com a escrita de João Guimarães Rosa?

Tributo a J. G. RosaPassarinho parou de cantar. Essa é apenas uma informação. Passarinho desapareceu de cantar. Esse é um verso de J. G. Rosa.Desapareceu de cantar é uma graça verbal. Poesia é uma graça verbal.

BARROS, Manoel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 23.

PoemaA poesia está guardada nas palavras – é tudo queeu sei.Meu fado é o de não saber quase tudo.Sobre o nada eu tenho profundidades.Não tenho conexões com a realidade.Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.Para mim poderoso é aquele que descobre asinsignificâncias (do mundo e as nossas).Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.Fiquei emocionado e chorei.Sou fraco para elogios.

BARROS, Manoel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 19.

O uso de termos em contextos inusitados, a criação de novas palavras e o uso de substantivos como verbos e vice-versa fizeram com que Manoel de Barros fosse considerado o Guimarães Rosa da poesia. Essa liberdade formal pode ser observada na ideia de que o avô “entrou para rã, para árvore, para pedra”, isto é, que o avô se tornou esses elementos naturais, talvez por se relacionar intimamente com eles e lhes ter grande apreço, o que se torna uma defesa da vida simples e do uso da imaginação. Há também uma defesa desse novo olhar sobre as coisas simples e sobre a natureza. O avô do “eu lírico” era capaz de ver e criar um mundo que não precisava ser lógico e materializado conforme as regras padrões.

Essa exploração linguística e imaginativa fez com que ele se aproximasse do falar típico da região do Pantanal, bem como permitiu que recriasse aquele cenário, retirando um sentimento universal de coisas específicas e mínimas.

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Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Midubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 29. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 8-9.

3. (UFMT) Leia o poema de Manoel de Barros, extraído do Livro das Ignorãças (1993):

“Ocupo muito de mim com o meu desconhecer. Sou um sujeito letrado em dicionários. Não tenho mais que 100 palavras.Pelo menos uma vez por dia me vou no Moraisou no Viterbo.

A fim de consertar minha ignorãça, mas só acrescenta.Despesas para minha erudição tiro nos almanaques:– Ser ou não ser, eis a questão.Ou na porta dos cemitérios:– Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás.Ou no verso das folhinhas:– Conhece-te a ti mesmo.Ou na boca do povinho:– Coisa que não acaba no mundo é gente besta e pau seco.Etc Etc Etc Maior que o infinito é a encomenda.”

Assinale a alternativa correta.

a) Esse poema faz uma crítica a escritores que se utilizam de frases feitas para escrever.

b) Há um despertar crítico valorizando o conhecimento extraído da ignorância.

c) É preciso consultar os dicionários para fugir da ignorância.

d) Um sujeito letrado é o que sabe consultar o dicionário, ser erudito ao colecionar almanaques e calendários com expressões famosas.

e) No poema, é recusado o desconhecer pela cultura: nos dicionários, almanaques, folhinhas, na porta do cemitério, na boca do povo.

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4. (ITA – SP) O poema a seguir faz parte da obra Livro sobre nada (1996), de Manoel de Barros:

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá mas não pode medir seus encantos. A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá.

Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare.

Os sabiás divinam. É certo dizer que estamos diante de um poema:

a) que mostra que o estudo dos sabiás tem mais a ver com adivinhação do que com informação;

b) no qual o autor mostra que a ciência é muito limitada para entender a anatomia do sabiá;

c) segundo o qual a ciência consegue entender a anatomia do sabiá, mas não explicar por que ele nos encanta;

d) que mostra que há mistérios na natureza que a ciência tenta desvendar, como o encanto de um sabiá;

e) que afirma ser impossível um saber acerca do sabiá.

5. (UNEMAT) Leia o poema “As lições de R. Q.”, de Manoel de Barros, abaixo transcrito, e resolva o que se pede.

“Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano):A expressão reta não sonha.Não use o traço acostumado.A força de um artista vem das suas derrotas. Só aalma atormentada pode trazer para a voz umformato de pássaro.Arte não tem pensa:O olho vê, a lembrança revê, e a imaginaçãotransvê.É preciso transver o mundo.Isto seja:Deus deu a forma. Os artistas desformam.É preciso desformar o mundo:Tirar da natureza as naturalidades.Fazer cavalo verde, por exemplo” [...] (p. 75).

Considerando o poema no contexto das tendências dominantes da poesia de Manoel de Barros, no Livro sobre nada, pode-se afirmar que, neste texto, o “eu lírico” vê o mundo como:

a) oportunidade de manifestar seu desapego, tanto pelo sagrado como pelo profano;

b) ânsia de integração em uma sociedade em que o sujeito só é reconhecido pela excentricidade e estranheza;

c) transfiguração do mundo, que corresponde à experiência dos próprios sentidos.

d) frustração, uma vez que o artista é um derrotado e Deus, uma ameaça;

e) esvaziamento do sentido de Arte, de Natureza e da ausência de sonhos.

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José Paulo Paes

José Paulo Paes (1926-1998) foi poeta, tradutor e crítico literário. Nascido em São Paulo, mudou-se para Curitiba a fim de estudar Química Industrial e acabou colaborando com o jornal modernista

Joaquim, organizado pelo escritor Dalton Trevisan, sendo essa a sua estreia como poeta. Em 1947, publicou seu primeiro livro – O aluno – em Curitiba. Em 1949, mudou-se

para São Paulo, onde colaborou com diversos jornais, como a Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, O Tempo, etc. Conheceu os escritores modernistas da Geração de 45, como Graciliano Ramos e Jorge Amado. Aproximou-se bastante do poeta Carlos Drummond, que lhe ofereceu conselhos como escritor. Foi nesse período também que elaborou trabalhos de caráter mais concretista, o que tornou a sua relação mais estreita com Haroldo de Campos e Décio Pignatari.

Na década de 1960, começou a trabalhar na editora Cultrix e abandonou a pro-fissão de químico farmacêutico por completo. Executou essa tarefa até a década de

1980, quando se aposentou e começou a traduzir diversos clássicos para o português, de autores muito renomados, como Lewis Carroll, Ovídio, Charles Dickens, Friedrich

Hölderlin, Rainer Maria Rilke, etc. Por conta de sua extrema habilidade como tradutor e do reconhecimento nacional, tornou-se

diretor da oficina de tradução do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), na Unicamp. Na década de 1990, produziu poesia infantil e acabou participando de diversos lançamentos na

área da literatura, tanto no campo do ensaio como de crítica e compilações.

Poemas Os poemas de José Paulo Paes se caracterizam pela sua concisão. Seguindo o modelo já desen-

volvido por Oswald de Andrade, nos poemas pílulas, a forma condensada toma novos rumos, muitas vezes se revestindo do ideal concretista de aproveitamento do espaço e do jogo de palavras.

Ele retomou a epigrama em sua forma mais espontânea, que é a ironia, e deixou entrever o mundo por meio de uma ideia diminuta, que expõe somente a essência das coisas.

Epigrama é uma forma poética breve de origem grega que apresenta uma ideia de forma engenhosa e concisa, como no seguinte exemplo de José Paulo Paes:

Fêtes galantesUm dia é da caça O outro do caçador

PAES, José Paulo. Os melhores poemas de José Paulo Paes. 3. ed. São Paulo: Global, 2000. p. 163.

Fête: é uma palavra

francesa, que signi-fica festa,

celebração.

Seguindo uma tendência da produção desse período, José Paulo Paes se volta para as coisas simples, porém sem a visão feminina de Adélia Prado ou o mundo pantaneiro de Manoel de Barros. Reaparecem a casa, a infância, o quintal, o fósforo, etc. por meio de uma linguagem precisa e enxuta.

Há uma recusa do sentimentalismo, predominando uma visão irônica e desmitificadora sobre o mundo. Nesse sentido, vários temas são desconstruídos por meio do humor e do chiste – a repressão do Golpe Militar, o milagre econômico, outras estéticas literárias, o ideal de amor, etc.

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A paródia também é um recurso muito utilizado por esse autor. Veja o diálogo entre José Paulo Paes e Gonçalves Dias:

Canção de exílio facilitada

lá?ah!

sabiá...papá...maná...sofá...sinhá...

cá?bah!

PAES, José Paulo. Os melhores poemas de José Paulo Paes. 3. ed. São Paulo: Global, 2000. p. 130.

Canção do exílio

Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabiá.

Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar – sozinho, à noite, Mais prazer eu encontro lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabiá.

Não permita Deus que eu morra, Sem que volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu'inda aviste as palmeiras, Onde canta o sabiá.

DIAS, Gonçalves. Canção do exílio. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000100.pdf>. Acesso em: 1 abr. 2012.

Anatomia do monólogo

ser ou não ser? er ou não er? r ou não r? ou não? onã?

PAES, José Paulo. Anatomia do monólogo. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/jpaulo1.html#anatomia>. Acesso em: 14 jul. 2012.

AcidenteAtirei um pau no gato, mas o gato não morreu, porque o pau pegou no rato que eu tentei salvar do gato e o rato (que chato!) foi quem porreu.

PAES, José Paulo. Acidente. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/jpaulo1.html#acidente>. Acesso em: 14 jul. 2012.

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José Paulo Paes usa paródia como forma de desconstruir um ideário padrão, muitas vezes por meio da ironia e da síntese, e de propor algo novo, mais moderno e atualizado. A “Canção de exílio facilita-da” é uma reescrita breve do poema “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. Cada verso é sintetizado por meio de uma única expressão, que carrega a ideia central. Mantém-se a oposição entre a terra (cá) e o exílio (lá), porém as descrições e a exaltação dos sentimentos são outras – o que define o Brasil agora não são mais as palmeiras e os sabiás, mas o sofá, a sinhá, o papá e o maná, conferindo humor ao poema de José Paulo Paes. E a repetição da vogal a em todos os versos cria não só uma musicalidade, mas também funciona como um chiste, uma brincadeira com a interjeição “ah” e “bah”.

Leia o seguinte poema de José Paulo Paes e res-ponda ao que se pede.

Epitáfio para um banqueiron e g ó c i o

e g o ó c i o c i o 0

PAES, José Paulo. Os melhores poemas de José Paulo Paes. São Paulo: Global, 2006. p. 115.

1. O texto de José Paulo Paes dialoga com qual das estéticas a seguir?

a) Romantismo. b) Concretismo.

c) Tropicalismo. d) Realismo.

e) Parnasianismo.

2. Pesquise em dicionários ou na internet o signi-ficado do termo “epitáfio”.

3. Explique qual é a relação entre cada uma das palavras elencadas nos versos e a sua relação com a profissão de banqueiro.

4. Levando em conta as respostas para as ques-tões anteriores, qual é a relação entre a forma e o conteúdo do poema?

5. É correto afirmar que o poema traz:

a) um elogio à vida dos banqueiros, que se de-dicam à sua profissão durante a vida toda;

b) uma crítica aos banqueiros e ao sistema ca-pitalista que aliena o homem;

c) somente um levantamento descritivo sobre o que consiste a vida de um banqueiro;

d) um ponto de vista humorístico sobre o siste-ma capitalista, exaltando as suas qualidades;

e) uma visão romanceada e longe da realidade sobre o que consiste a vida de um banqueiro.

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6. O seguinte poema dialoga diretamente com as propostas da Primeira Geração Modernista, em especial com a poética de Oswald de Andrade. Explique de que forma esse diálogo se realiza.

À moda da casa

feijoadamarmeladagoleadaquartelada

PAES, José Paulo. Os melhores poemas de José Paulo Paes. 3. ed. São Paulo: Global, 2000. p. 121.

7. O poema acima faz um levantamento sobre a cultura nacional. Como o Brasil é representado poeticamente?

Hilda Hilst

Hilda Hilst (1930-2004) nasceu em Jaú, mas ainda jovem mudou-se para Santos com sua mãe, por conta da sua separação com o pai da escritora, que foi diagnosticado como esquizofrênico.

Em 1937, foi para o colégio interno Santa Marcelina, onde estudou por oito anos. E em 1945, matriculou-se no curso clássico da escola Mackenzie. Seu desempenho foi

considerado brilhante. Matriculou-se no curso de Direito da Faculdade do Largo São Francisco em 1948.

Nesse período, iniciou uma vida boêmia, assumindo um comportamento transgres-sor que causava escândalo à sociedade da época. Conheceu muitos poetas e fez amizade com Lygia Fagundes Telles, de quem se tornou muito próxima.

Seu primeiro livro – uma compilação de poemas intitulada Presságio – foi publicado em 1950. Nos anos seguintes, Hilda estreou também como romancista e dramaturga, destacando-se em todas as áreas como uma escritora excepcional. Sua obra foi traduzida para diversas línguas e recebeu inúmeros prêmios, inclusive

o Jabuti, por duas vezes. Na década de 1960, mudou-se para a Casa do Sol, com o escultor Dan Casarini,

com quem passou a viver. O espaço é uma chácara criada para receber outros artistas, tendo como finalidade a criação literária.

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Casa do Sol – local que funcionava como ateliê

de criação de Hilda Hilst e onde a escritora recebia

vários artistas

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Alguns comportamentos da autora, como o isolamento na Casa do Sol, a gravação das vozes de pessoas mortas ou a visão de discos voadores, aumentaram ainda mais a polêmica sobre sua obra e sua vida.

Depois da sua morte, o amigo Mora Fuentes ficou encarregado de cuidar do Instituto Hilda Hilst, que funciona na Casa do Sol, e da manu-tenção e divulgação da obra da escritora.

Oficinas de criação literária

As oficinas de criação literária se tornaram cada vez mais comuns no país a partir da década de 1980. Esse sistema já existia nos EUA desde a década de 1930 e só chegou mais tarde ao Brasil, fazendo muito sucesso entre indivíduos com pretensões diversas, desde apenas a de melhorar a sua escrita até a de se tornarem grandes escritores.

A proposta das oficinas é apresentar algumas ferramentas básicas de escrita, ajudando os alu-nos a se expressarem literariamente. Normalmente, os palestrantes são escritores ou professores renomados, que falam muitas vezes de seu processo de escrita, ajudam na leitura de outros livros e oferecem meios de expressão. Ao longo do curso, os alunos leem as suas produções para o professor e os demais colegas, sendo avaliados pelo grupo.

No Brasil, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) oferece uma oficina, desde 1985, com o professor Luiz Antonio de Assis Brasil. A Universidade de Nova Iorque tem cursos mais antigos e renomados, de onde saíram grandes e bons escritores da nova narrativa estadunidense.

PoemasHilda Hilst foi uma das poucas artistas nacionais que circulou por diversas formas de expressão.

Começou escrevendo poesia, mas também produziu oito peças de teatro, além de romances e outros textos em prosa, como a crônica.

Por conta dessa variedade, pode-se perceber que a escritora é multifacetada, desenvolvendo aspectos muitos diferentes em sua obra. Mas, de modo geral, o que se percebe com recorrência é a negação da poesia de “bom tom”. Trabalhando sempre no limite da paixão, com uma temática obs-cena e controversa por natureza, aborda questões existenciais, como a solidão do homem, o caos, a obsessão, a dissolvência do corpo, o apodrecimento da matéria, a busca de compreensão da vida e, em contraponto, o humor.

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Nesse poema, observa-se que a carne – como símbolo do corpo, do material e do terreno – tem uma função primordial de mostrar a morte, ao mesmo tempo que é dela que advém a vida, como desejo. No texto, há exemplos de vários temas caros à autora, como a morte, o erotismo, a brevidade, a putrefação da carne e a vida; em especial, nos versos finais, quando há uma exaltação do cantar, como deleite, da alegria de viver.

Hilda ficou famosa pelo erotismo, que foi trabalhado com excesso em sua célebre “trilogia obscena” (1990-1991): O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d’escárnio: textos grotescos e Cartas de um sedutor. Em tais textos, ela procura atingir o leitor ao chamar a atenção para comportamentos transgressores, questionando os padrões de comportamento da sociedade. Pode-se dizer que a autora faz um jogo, trabalhando o gênero erótico de forma mais elaborada e questionadora.

Em decorrência da sua reflexão sobre os limites da vida, aparece o tema da loucura, que ganha um grande peso por causa da doença de seu pai, diagnosticado com esquizofrenia. Nas obras de Hilda Hilst, não se trata apenas de uma loucura diagnosticada medicamente, mas da loucura no sentido de libertação do homem comum, que busca por um desregramento, pelo que está fora da ordem e se liberta dos padrões, abrindo espaço para novas ideias, fontes de inspiração para a criação literária.

Nesse sentido, a loucura e o erotismo são vistos como forma de religiosidade, no sentido de que eles são capazes de fazer o homem transcender, ir além, conhecer novos caminhos para alcançar a sua essência.

Leia o seguinte poema de Hilda Hilst e depois responda às perguntas.

Só eu não durmo Pra te pensar.

E agora escuraDo jugo dos sentimentosIrreversiva, suicidaTateio aquele rochedoDo ódio de desamar.

HILST, Hilda. Cantares. São Paulo: Globo, 2004. p. 84.

1. Como o “eu lírico” se descreve nesse poema?

IXIlharga, osso, algumas vezes é tudo o que se tem. Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso. E pensas maravilha quando pensas anca Quando pensas virilha pensas gozo. Mas tudo mais falece quando pensas tardança E te despedes. E quando pensas breve Teu balbucio trêmulo, teu texto-desengano Que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha. E quando pensas VIDA QUE ESMORECE. E retomas Luta, ascese, e as mós vão triturando Tua esmaltada garganta... Mas assim mesmo Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas... Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade A esperança.

HILST, Hilda. Cantares. São Paulo: Globo, 2004. p. 25.

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2. Os versos “Só eu não durmo/pra te pensar” pos-suem outros sentidos implícitos, além do fato de que o “eu lírico” não conseguia dormir. Quais são eles?

3. No segundo parágrafo, o que significa dizer que ela estava “escura do jugo dos sentimentos”?

4. Em “Tateio aquele rochedo”, a expressão “ro-chedo” pode se referir:

a) a uma grande rocha escarpada;

b) aos sentimentos do “eu lírico”;

c) à cama em que ela dormia;

d) ao amor que ela sentia;

e) ao escuro que está a sua volta.

5. A expressão “rochedo” é uma metáfora para indicar o estado em que o “eu lírico” se encon-trava. Que estado era esse?

6. O uso do termo “desamar” é um neologismo da língua portuguesa. Com base no poema, qual é o seu sentido? Se você pudesse trocar por uma palavra ou expressão de uso corriquei-ro, qual seria?

DesafioDesafio

7. (UNICAMP – SP) Considere o seguinte poema de Hilda Hilst:

PassaráTem passadoPassa com a sua fina faca.

Tem nome de ninguém.Não faz ruído. Não fala.Mas passa com a sua fina faca.

Fecha feridas, é unguento.Mas pode abrir a tua mágoaCom a sua fina faca.

Estanca ventura e vozSilêncio e desventura.ImóvelGarroteAlgoz

No corpo da tua água passaráTem passadoPassa com a sua fina faca.

HILST, Hilda. Da morte: odes mínimas. São Paulo: Globo, 2003. p. 72.

a) Tendo em vista que esse poema faz parte de uma série intitulada “Tempo-morte”, indique de que maneira a primeira estrofe exprime certo sentido de absoluto associado ao título.

b) Nesse poema há pronomes de 2.a e 3.a pessoas. Transcreva uma estrofe em que constem am-bas as pessoas pronominais e diga a que se referem.

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O escritor Fabrício Carpinejar ficou famoso ao publicar diariamente uma série de textos

extremamente curtos em seu Twitter e depois compilá-los em uma publicação para divulgação

e venda

Oswald de Andrade e a brevidadeNeste volume, foi estudada a influência de Oswald de Andrade em vários poetas desse período

por meio da ironia, mas ainda mais por conta da concisão, como nos poemas de José Paulo Paes. A brevidade difundida por Oswald de Andrade nos poemas pílulas e nos epigramas passou

a ser um valor cada vez mais exaltado pela produção contemporânea. Os poemas compostos de dois, três ou, no máximo, cinco versos, proliferaram-se. É a literatura do mínimo.

Essa tendência vai aparecer também em outros gêneros, como na prosa, com o miniconto e as narrativas do Twitter, de 140 caracteres.

Há também exemplos de textos teóricos curtos, normalmente ensaios, cujo maior exemplo é Formas breves, de Ricardo Piglia, ganhador do Prêmio Bartolomé March, na Espanha. O livro esta-

belece relações entre diferentes autores por meio de textos concisos, fragmentos de pensamentos.

ANDRADE, Oswald de. Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade. 2. ed. São Paulo: Globo, 1994. p. 26.

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(UFAP) Sabemos que a língua se concretiza nos usos que dela fazemos, procurando refletir nos textos os momentos sócio-históricos. Desse modo, considere os textos I e II para resolver as proposi-ções que seguem das questões 1 e 2.

Texto I

Só amor não basta

Cláudia Jordão

Romeu e Julieta não foram os únicos a crer que o amor era capaz de mover montanhas, so-breviver às diferenças e passar incólume pelas adversidades. No auge da paixão, essas sensa-ções são comuns a todos os amantes. Mas esse poderoso sentimento não tem sido suficiente para garantir casamentos bem-sucedidos e dura-douros. Com o tempo e a rotina, as divergências vêm à tona e nem sempre os casais estão prepa-rados para lidar com os percalços. É o que revela o estudo “O que o amor tem a ver com isso?”, da Universidade Nacional da Austrália, divulgado na semana passada. Durante seis anos, os pes-quisadores australianos observaram a rotina de 2.482 casais – casados de papel passado ou que moravam juntos. Descobriram qual o perfil de relação com maiores perspectivas de sucesso, as de maior probabilidade de fracasso e elencaram uma série de variáveis que sabotam as relações.

Mais da metade dos casais monitorados ter-minou a relação durante o período da pesquisa. Em geral, homens e mulheres de baixa renda e casais em que o marido está desempregado são os modelos de casamento que mais fracassam. “Isso ocorre por causa do alto nível de estresse”, analisa a cientista social Rebecca Kippen, técnica do Instituto de Pesquisa Social e Demográfica da Austrália. “Na ponta inversa, casais da mesma idade e com projeto de família semelhante, que pode ou não incluir filhos, têm mais chance de manter o casamento.”

[...] “Antes de subir ao altar, as pessoas de-vem atentar para os riscos que podem levá-las à separação”, aconselha a pesquisadora austra-liana Rebecca Kippen. “Isso pode reduzir os da-nos.”

JORDÃO, Claudia. Só amor não basta. IstoÉ, São Paulo, 29 jul. 2009. (Texto com adaptação).

Texto II

O sempre amor

Adélia Prado

Amor é a coisa mais alegreamor é a coisa mais triste

amor é coisa que mais quero.Por causa dele falo palavras como lanças.

Amor é a coisa mais alegreamor é a coisa mais triste

amor é coisa que mais quero.Por causa dele podem entalhar-me,

sou de pedra-sabão.Alegre ou triste,

amor é coisa que mais quero.

1.

(01) É possível afirmar que nos dois textos, a con-cepção de amor está predominantemente ligada ao aspecto sensorial, intuitivo e reli-gioso, como preconizava o Simbolismo.

(02) É possível estabelecer uma relação de inter-textualidade genérica e tipológica entre os dois textos.

(04) A partir dos textos I e II podemos estabele-cer relações com o Expressionismo europeu, que dramatizou nas pinturas as emoções e os sentimentos humanos.

(08) A intertextualidade que marca ambos os textos é temática.

(16) Os textos I e II são da esfera literária de co-municação.

2.

(01) A linguagem do texto I é predominante-mente denotativa, que difere da linguagem do texto literário onde prevalece a plurali-dade de sentidos.

(02) A opção da autoria do texto II em não marcar com o determinante (artigo) o termo amor pode ser compreendida como forma de mos-trar que tal sentimento tem diversas nuances.

(04) O texto II pertence ao Modernismo brasilei-ro, escola em que os artistas plásticos de-senvolviam uma pintura capaz de expressar

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a cultura, as emoções e, portanto, o amor à pátria brasileira.

(08) O texto I explica que o sucesso de um ca-samento depende exclusivamente do amor que une o casal.

(16) No uso da conjunção alternativa “ou”, no pe-núltimo verso do texto II, pode-se inferir que para a autoria existe mais de um tipo de amor.

(FGV – SP) Texto para as questões 3 a 5.

Ensinamento

Minha mãe achava estudoa coisa mais fina do mundo.Não é.A coisa mais fina do mundo é o sentimento.Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,ela falou comigo:“Coitado, até essa hora no serviço pesado.”Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.Não me falou em amor.Essa palavra de luxo.

PRADO, Adélia. Bagagem. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p. 124.

3. Que palavra do poema melhor sintetiza seu títu-lo? Justifique sua escolha.

4. O poema revela traços psicológicos que permi-tem a caracterização da mãe do “eu lírico”. Que verso é mais apropriado para que se comprove essa afirmação? Justifique sua escolha, valendo--se, também, de outras partes do texto.

5. A expressão em negrito do trecho “Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, / ela falou comigo: / ‘Coitado, até essa hora no serviço pesado.’” foi usada de maneira singular.

Explique essa singularidade e comente o efeito de sentido gerado no poema. Classifique sintati-camente a expressão destacada.

6. (UESC – BA) O velho da roça perguntou: – Quanto é a ba-

tata, moço? – É dez. – Lá embaixo tem de oito, falou querendo mais parecer cidadão. – Por que não comprou lá embaixo, então? O velho aco-modou aquilo como pôde na capanga vazia e engoliu em seco, de repente mais fino, mais murcho, a cabeça dele parecendo a cabecinha de um boneco com um chapéu. Deu um passo

atrás, ainda olhando pro dono, e saiu como um cachorro. Glória largou suas compras no balcão, enojada de suas batatas, de seu pacote de man-teiga, do seu miserável poder de comprar coisas a Cr$10,00 o quilo e ser tratada como primeira--ministra pelo boçal avarento.

PRADO, Adélia. Cacos para um vitral. 4. ed. São Paulo: Siciliano, 1991. p. 124-125.

O narrador evidencia:

a) o seu ponto de vista segregador do homem sertanejo, ao considerá-lo incapaz de reação, quando provocado;

b) uma denúncia das péssimas condições de tra-balho do homem rural;

c) um confronto de natureza ideológica entre comprador e vendedor;

d) a captação de uma realidade social em trans-formação;

e) uma atitude de contestação à discriminação social.

7. (UEPA) Leia o poema abaixo, de Manoel de Barros, e, sobre ele, assinale a alternativa incorreta.

Deus disse: Vou ajeitar a você um dom: Vou pertencer você para uma árvore. E pertenceu-me.Escuto o perfume dos rios. Sei que a voz das águas tem sotaque azul. Sei botar cílio nos silêncios. Para encontrar o azul eu uso pássaros. Só não desejo cair em sensatez. Não quero a boa razão das coisas. Quero o feitiço das palavras.

BARROS, Manoel de. O retrato do artista quando coisa. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 61.

a) Promove a irracionalidade e a perda de juízo no uso da palavra, possibilitando experiências e resultados inusitados.

b) Tem fortes tendências simbolistas, pois se uti-liza de uma linguagem fluida e musical, e é marcado por figuras como a aliteração, pre-sente no último verso.

c) Empreende uma experiência com a palavra, utilizando-a como objeto possível de ser ex-plorado de vários ângulos, tanto pela denota-ção quanto pela conotação.

d) Subverte as normas da gramática em constru-ções como as dos dois primeiros versos.

e) No 4.º verso, há uma sinestesia.

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8. (UFT – TO) Leia os dois poemas a seguir, do livro Poe mas rupestres, de Manoel de Barros.

Os dois

Eu sou dois seres.O primeiro é fruto do amor de João e Alice.O segundo é letral:É fruto de uma natureza que pensa por imagens.Como diria Paul Valéry,O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéue vaidades.O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidadesFrases.E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.

Garça

A palavra garça em meu perceber é bela.Não seja só pela elegância da ave.Há também a beleza letral.O corpo sônico da palavraE o corpo níveo da aveSe comungam.Não sei se passo por tantã dizendo isso.Olhando a garça-ave e a palavra garçaSofro uma espécie de encantamento poético.

Assinale a alternativa correta.

a) No primeiro poema, o ser de “unha, roupa e chapéu” está para o ser “letral” assim como, no segundo poema, a palavra garça está para o corpo sônico da palavra.

b) No último verso do primeiro poema, o verbo “aceitamos” refere-se ao poeta que, vaidoso, desdobra-se em múltiplas personalidades, a exemplo de Paul Valéry.

c) No segundo poema, o corpo níveo da ave cor-responde à sua forma letral.

d) A palavra “letral” possui a mesma acepção nos dois poemas: em “Os dois”, refere-se ao “fruto de uma natureza que pensa por imagens”; em “Garça”, refere-se ao “corpo sônico da palavra”.

e) No poema “Garça”, o encantamento do “eu lírico” advém da observação de que palavra e coisa – “a palavra garça” e a “garça-ave” – es-tão irremediavelmente cindidos.

9. (UFT – TO) Leia os dois poemas de Manoel de Barros a seguir:

1.ª parte – VII No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não

funciona para a cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio.

3.ª parte – I O mundo meu é pequeno, Senhor. Tem um rio e um pouco de árvores. Nossa casa foi feita de costas para o rio. Formigas recortam roseiras da avó. Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas. Seu olho exagera o azul. Todas as coisas deste lugar já estão comprometi- das com aves. Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os

besouros pensam que estão no incêndio. Quando o rio está começando um peixe, Ele me coisa Ele me rã Ele me árvore. De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos.

BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997.

Podemos depreender da leitura dos poemas que:

I. O poeta, na 3.ª parte – I, nos versos “Ele me coisa”, “Ele me rã”, “Ele me árvore”, utiliza substantivos como verbos com a intenção de criar efeitos estilísticos.

II. O autor, na 1.ª parte – VII, provoca a intencio-nalidade intertextual com um texto bíblico.

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III. No verso “No descomeço era o verbo”, 1.ª parte – VII, tendo como base o estudo mor-fológico da gramática normativa, o poeta faz uso do prefixo des- no vocábulo descomeço com a intenção de desconstruir estruturas cristalizadas da língua para construir novas estruturas sintáticas e fonológicas.

Considerando-se as assertivas acima, é correto afirmar que:

a) apenas I e II estão corretas;

b) apenas II e III estão corretas;

c) I, II e III estão corretas;

d) apenas I está correta;

e) apenas II está correta.

(UFPE) Leia o texto para responder às questões 10 e 11.

Retrato do artista quando coisa

A menina apareceu grávida de um gavião.Veio falou para a mãe: o gavião me desmoçou.A mãe disse: Você vai parir uma árvore paraA gente comer goiaba nela.E comeram goiaba.Naquele tempo de dantes não havia limitespara ser.Se a gente encostava em ser ave ganhava opoder de alçar.Se a gente falasse a partir de um córregoA gente pegava murmúrios.Não havia comportamento de estar.Urubus conversavam sobre auroras.Pessoas viravam árvores.Pedras viravam rouxinóis.Depois veio a ordem das coisas e as pedrasTêm que rolar seu destino de pedra para o restodos tempos.Só as palavras não foram castigadas coma ordem natural das coisas.As palavras continuam com seus deslimites,nas suas conchas puras?

BARROS, Manoel de. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1989. p. 77.

10. Uma exploração das pretensões estéticas expres-sas no poema nos faz destacar alguns aspectos relevantes de sua composição. Vejamos.

(0-0) O poema se desenvolve para culminar com a ideia de que a linguagem tem o privilégio de escapar às coerções naturais das coisas.

(1-1) O poema, ele mesmo, já demonstra essa particularidade de a linguagem não ter limi-tes: o poeta inventa palavras.

(2-2) No mundo da poesia, relatar que “A me-nina apareceu grávida de um gavião” não constitui uma incoerência: não prevalece “a ordem das coisas para as palavras.”

(3-3) “Urubus conversavam sobre auroras”, “Pes-soas viravam árvores”: não há absurdos para a criação literária.

(4-4) Não há no poema alguma alusão à passa-gem do tempo: tudo parece ser atemporal; fluido como o limite das coisas.

11. O poema, em sua composição, evidencia o se-guinte:

(0-0) o poema se inicia com características de uma breve narrativa; uma espécie de histo-rinha familiar;

(1-1) sobretudo nos primeiros versos, predomina uma linguagem bem próxima do registro da fala coloquial;

(2-2) como recurso poético, a expressão do eu que fala no poema foi explícita e contundente;

(3-3) há versos que sugerem uma espécie de “sentimento de perda”. (Não havia compor-tamento de estar), por exemplo.

(4-4) mesmo para efeitos literários, a criação de pa-lavras se submete a uma certa regularidade morfológica (analise desmoçou e deslimites).

12. (ITA – SP)

Canção de exílio facilitada

lá?ah!

sabiá...papá...maná...sofá...sinhá...

cá?bah!

PAES, José Paulo. Um por todos. São Paulo: Brasiliense, 1986.

Literatura brasileira – anos 60 a 8054

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O poema do poeta contemporâneo José Paulo Paes se reporta à “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. O texto de José Paulo Paes:

a) faz uma severa crítica ao nacionalismo român-tico, exacerbado na “Canção do exílio”;

b) mostra que cantar a pátria, tal como é ideali-zada na “Canção do exílio”, é algo alienante;

c) reduz de forma humorística a “Canção do exí-lio” a seus traços essenciais;

d) reproduz todo o conteúdo da “Canção do exílio”;

e) mostra que é impossível fazer novas versões da “Canção do exílio”.

13. (UFPR) Segundo o Dicionário Aurélio, a palavra “poética” significa “teoria de versificação”. É co-mum os poetas escreverem suas próprias poéti-cas, nas quais indicam aquilo que valorizam ou rejeitam em sua poesia. José Paulo Paes também escreveu a sua, em forma de poema:

Poéticaconciso? com sisoprolixo? pro lixo

Assinale as alternativas corretas.

(01) O poema ”Poética“ é escrito com um míni-mo de palavras, explorando as semelhanças sonoras e visuais entre elas, um procedi-mento que encontramos na poesia concre-ta, da qual José Paulo Paes se aproximou em alguns de seus poemas.

(02) Já em seu primeiro livro, em poemas que homenageiam Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, José Paulo Paes demons-tra estar ligado a um tipo de poesia moder-nista que valoriza o humor e recusa a litera-tura retórica.

(04) Este poema tem um sentido irônico, já que não representa uma tendência geral da obra de José Paulo Paes, que preferiu utilizar for-mas fixas, como odes e baladas, a exemplo do que acontece com poemas como “Balada”, “Madrigal” e “Ode Prévia”.

(08) Em “Poética”, o humor está presente, con-firmando uma prática bastante comum na poesia do autor, que muitas vezes chega mesmo à poesia-piada.

(16) A concepção de poesia sugerida pelo poe-ma indica que José Paulo Paes pertenceu à chamada Geração de 45, o que é confirma-do pelo fato de ele ter feito sua estreia em 1947, com o livro O aluno.

Somatório:

14. (UNIFESP) Leia versos da primeira e da quarta estrofe de poema de Hilda Hilst, publicados no livro Do desejo, em 1992.

IPorque há desejo em mim, é tudo cintilância.Antes, o cotidiano era um pensar alturasBuscando Aquele Outro decantadoSurdo à minha humana ladradura.Visgo e suor, pois nunca se faziam.Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivoTomas-me o corpo. E que descanso me dásDepois das lidas. Sonhei penhascosQuando havia o jardim aqui ao lado.Pensei subidas onde não havia rastros.

IV... Por que não possoPontilhar de inocência e poesiaOssos, sangue, carne, o agoraE tudo isso em nós que se fará disforme?

Leia as afirmações:

I. Os termos “laborioso” e “lascivo” sugerem a frequência, a intensidade e o desejo da práti-ca amorosa.

II. O termo “lidas” pode ser considerado como um eufemismo para indicar a prática sexual.

III. O desejo é algo que se realiza apenas nos so-nhos do “eu lírico”.

Está correto o que se afirma apenas em:

a) I

b) II

c) III

d) I e II

e) II e III

Ensino Médio | Modular 55

LITERATURA BRASILEIRA

Page 56: Literatura brasileira – anos 60 a 80prepapp.positivoon.com.br/assets/Modular/LEITURA BRASILEIRA/SP… · Literatura brasileira entre as décadas de 1960 e 1980 A literatura em prosa

15. (ITA – SP) Leia o texto a seguir e responda à questão seguinte:

Solar Minha mãe cozinhava exatamente:Arroz, feijão-rouxinho, molho de batatinhas.Mas cantava.

PRADO, Adélia. O coração disparado. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

Nesse pequeno poema, a escritora Adélia Prado consegue não só registrar um traço singular do cotidiano da própria mãe, como também cons-trói dessa mulher um retrato, que apresenta duas facetas: uma relativa à posição social e ou-tra, ao temperamento. Particularize essas duas facetas e aponte como a estruturação sintática as instaura.

16. (UFMG) Em todos os fragmentos de Bagagem, o “eu poético” assume uma postura nostálgica em relação ao passado, exceto em:

a) “ai ciganinha, a voz de bambu rachado conti-nua tinindo, esganiçada, linda, viaja pra den-tro de mim, o meu ouvido cada vez melhor. Canta, canta, mulher, vai polindo o cristal, canta mais, canta que eu acho minha mãe, meu vestido estampado, meu pai tirando boia da panela, canta que eu acho minha vida.”

b) “Divido o dia em três partes: a primeira pra olhar retratos, a segunda pra olhar espelhos, a última e maior delas, pra chorar. Eu, que fui loura e lírica, não estou pictural.”

c) “Eu tive um sonho esta noite que não quero esquecer por isso o escrevo tal qual se deu: era que me arrumava para uma festa onde eu ia falar. O meu cabelo limpo refletia vermelhos, o meu vestido era num tom de azul, cheio de panos, lindo.”

d) “Meu Deus, me dá cinco anos. Me dá um pé de fedegoso com formiga preta, me dá um Natal e sua véspera, o ressonar das pessoas no quartinho. Me dá a negrinha Fia pra eu brincar, me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.”

e) “Seria tão bom, como já foi, as comadres se vi-sitarem nos domingos. Os compadres fiquem

na sala, cordiosos, pitando e rapando a goela. Os meninos, farejando e mijando com os ca-chorros. Houve esta vida ou inventei?”

17. (UNIJUÍ – RS) “Ser testemunha de seu tempo, testemunha e participante”. Essa é a expressão tomada emprestada de Maiakovsky que serve como resposta dada por Lygia Fagundes Telles quando questionada sobre a função do escritor. Suas personagens situam-se num espaço essen-cialmente urbano e conduzem enredos que en-cerram a problemática do homem moderno. Dos vários livros que publicou, três são romances. São eles:

a) Seminário dos ratos – Madame Bovary – Galvez, o imperador do Acre;

b) As três mulheres – Laços de família – O 35.º ano de Inês;

c) A força do destino – A casa da paixão – A república dos sonhos;

d) Ciranda de pedra – Verão no aquário – As meninas;

e) Complexo de cinderela – A mulher, a cultura, a sociedade – O segundo sexo.

18. (UNIJUÍ – RS) Zero é um romance que marca a literatura dos anos 70. Embora tenha sido con-cluído em 1969, só foi publicado no Brasil em 1975, após lançamento na Itália, no ano ante-rior. Aqui no Brasil, logo que lançado, foi retira-do de circulação pela censura. Somente em 1979 conseguiu, finalmente, a liberação.

Mesmo sendo um romance marcado pela cen-sura repressora do país, o que, de certa forma, contribuiu para o aumento de sua popularidade junto ao público e para o despertar de um inte-resse mais vivo da crítica, Zero é um texto de res-peitável valor criativo, especialmente por colocar seus desvios formais a serviço de um processo de revelação do real;

Seu autor é

a) Deonísio da Silva.

b) José Clemente Pozenatto.

c) Charles Kieffer.

d) João Antônio.

e) Ignácio de Loyola Brandão.

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