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A MULTIPLICIDADE DE ENFOQUES SOBRE O AMOR NA NARRATIVA BRASILEIRA Por JANAINA FERNANDES REBELLO Departamento de Letras Vernáculas Tese de Doutorado apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Professor Doutor José Maurício Gomes de Almeida. Faculdade de Letras/ UFRJ. Rio de Janeiro, 1 0 sem. de 2006.

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A MULTIPLICIDADE DE ENFOQUES SOBRE O AMOR NA NARRATIVA BRASILEIRA

Por

JANAINA FERNANDES REBELLO

Departamento de Letras Vernáculas

Tese de Doutorado apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Professor Doutor José Maurício Gomes de Almeida.

Faculdade de Letras/ UFRJ. Rio de Janeiro, 10 sem. de 2006.

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Ao meu filho Manoel, que passou a existir no percurso

destes estudos e que, perdoem-me o clichê, tomou conta

do meu ser.

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SINOPSE

O amor como representante das diversas posturas na literatura brasileira. O erotismo

como representação do amor em alguns momentos da prosa nacional. A dicotomia

carne X espírito e suas influências sobre o enfoque do amor na prosa romântica. O

Naturalismo e a limitação ao amor sensual. Amos e desgaste em machado de Assis:

ceticismo. Egoísmo e solidão: a impossibilidade da realização amorosa em Graciliano

Ramos. O amor na literatura amadiana: liberdade e alegria. Guimarães Rosa e os

estágios do amor: a busca da completude cósmica.

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SUMÁRIO

1 – INTRODUÇÃO ........................................................................................... 7

2 – O PAPEL DO AMOR ROMÂNTICO E SUAS DIMENSÕES ............... 13

2.1. Amor romântico e modernidade em Inocência............................. 13

2.2. Exaltação do amor e transcendência: desejo satisfeito X mundo real .

................................................................................................................. 21

2.2.1. O obstáculo à realização do amor em Lucíola:

desejo X virtude .......................................................... 32

2.2.2. Lucíola: a exaltação do amor através da ótica do narrador -

personagem .................................................................... 43

2.3 – Amor e sensualidade na prosa romântica brasileira..................... 48

2.4 – A relação romantismo – realismo no sentimento amoroso ......... 55

3 – REALISMO: O MITO DO AMOR POSTO EM QUESTÃO................... 65

3.1 –Naturalismo: a visão materialista do amor – O cortiço................. 68

3.1.1 – Os casais n’O cortiço .................................................... 72

3.1.1.1 – A relação entre Jerônimo e Rita Baiana .......... 73

3.1.1.2 – João Romão, Bertoleza e o egoísmo ............... 78

3.1.2 – O discurso do amor erótico: marcas da linguagem simbó-

lica................................................................................... 82

3.1.3 – O amor em O cortiço: império dos instintos eróticos ....... 85

3.2 – Memórias póstumas de Brás Cubas: a desmitificação do amor ....... 87

3.2.1 – A ironia mordaz no tratamento do amor ............................ 96

3.2.2 – Virgília e Brás .................................................................. 101

3.2.3 – Dom Casmurro: diminuição da impassibilidade e esva-

ziamento do amor ............................................................. 105

4 – O AMOR NA FICÇÃO DE 30 ...................................................................... 110

4.1 – Graciliano Ramos e o aspecto reduzido do amor ............................ 111

4.1.1 – Amor X dominação em São Bernardo ............................. 113

4.1.1.1 – Paulo Honório e a visão do casamento-empresa. 117

4.1.1.2 – Nascimento e morte prematura do amor .............119

4.1.1.3 – As justificativas presentes ...................................121

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4.1.2 – Angústia: a degradação do amor no mundo desencantado

de Luís da Silva ..................................................................125

4.1.2.1 – A imaginação deformadora ..................................132

4.1.2.2 – O amor sádico e egoísta ....................................... 135

4.1.2.3 – A unicidade do amor-desejo doentio em

Angústia................................................................ 139

4.1.2.4 – O universo fragmentado de Luís da Silva ........... 149

4.1.2.5 – Luís da Silva e Paulo Honório ............................. 152

4.2 – Jorge Amado e a essência do amor romântico .................................. 158

4.2.1 – A Bovary das terras do cacau ............................................ 164

4.2.2 – Gabriela: amor à liberdade ................................................. 168

4.2.3 – Dona Flor: uma análise à parte .......................................... 181

4.2.4 – Tereza Batista: amor e superação ...................................... 184

5 – O enfoque do amor na obra de Guimarães Rosa ............................................ 192

5.1 – Apenas comparações ....................................................................... 198

5.2 – Amor e erotismo em “A estória de Lélio e Lina” ............................ 200

5.3 – O amor erótico em “Buriti” .............................................................. 210

5.4 – A permanência .................................................................................. 211

6 – CONCLUSÃO ................................................................................................. 212

7 - BIBLIOGRAFIA ............................................................................................... 221

8 – APÊNDICE ....................................................................................................... 232

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Convencionou-se utilizar no desenvolvimento desta dissertação, as seguintes

siglas para identificar algumas obras em análise, já que serão constantemente citadas:

DC, para Dom Casmurro; MPBC, para Memórias póstumas de Brás Cubas; SB, para

São Bernardo; GCC, para Gabriela cravo e canela; TSF, para Terras do sem fim; DF,

para Dona flor e seus dois maridos; TB, para Tereza Batista cansada de guerra e GS:V,

para Grande sertão: veredas.

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“As pessoas – baile de flores degoladas que

procuram suas hastes” .

(Rosa, Guimarães, “Buriti” , in.: Corpo de

Baile)

“O signo artístico, opaco e denso, recusa-se à

entrega e exige ser interpretado.”

(BOSI, Alfredo. “Prefácio” , in.: LEITE,

Dante Moreira. O amor romântico e outros

temas)

“O desejo expressa-se pela carícia como o

pensamento pela linguagem”

(SARTRE, Jean Paul)

“(…) nessas altas idéias navego mal.”

(Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas)

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1- INTRODUÇÃO

O amor é, talvez, o sentimento que mais aproxima o ser humano da arte, visto

que o faz encontrar-se nesta. Sendo assim, é tema constante na Literatura, cuja função,

muitas vezes, é servir como reflexo do homem e veículo de aperfeiçoamento humano.

Qualquer que seja a forma com que se apresente, o amor perpassa a matéria

romanesca, posto que é um dos elementos essenciais da vida; é universal porque é uma

expressão de humanidade. E os romances nascem justamente “de todas as fontes de

emoções e de conflitos do homem, mesmo que sem perder a natureza de obra de arte1” .

Percebendo tal sentimento como aspecto literário universal, como ícone para

representar posturas literárias diversas, este estudo pretende enfocar esta diversidade na

prosa literária brasileira. Dentro dessa frouxa unidade essencial que é o amor, grande é

a pluralidade de caminhos, de pontos-de-vista, de modos de escrever e de sentir.

O amor dá margem a um vasto campo de pesquisas ligadas à literatura e também

a outras expressões culturais. Poetas, romancistas, filósofos, psicólogos freqüentam

com certa insistência o tema, discutindo-o e enriquecendo-lhe o sentido com estudos

que bem demonstram a sua importância. Não se trata de um assunto simples, não

obstante esteja sempre em evidência. As questões literárias que envolvem o tema do

sentimento amoroso só se resolvem à luz das tendências individuais dos autores e do

código de valores de sua época ou do movimento a que estão atrelados.

A autora deste estudo considerou imprescindível levar em conta a história

literária, mas não só este fator. As doutrinas estéticas e o elemento subjetivo, fundidos,

apresentam-se como relevantes nas análises, mas nem sempre com o mesmo peso. Ora

atribui-se maior importância às circunstâncias do tempo e do meio, ora ao espírito

criativo, individual, do autor. O amor é encarado aqui como um significante literário e

procura-se buscar e delinear o seu significado em cada época da prosa nacional, como

os diferentes sentidos, dependentes das variações já citadas.

São correntes as análises que contrapõem a visão idealista do amor romântico à

materialista do amor realista. Porém, não são usuais as que contrastam a visão

individual dos autores de uma mesma época, ou ainda as que enfocam o tema do

1 PEREIRA, 1950: p. 10.

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sentimento amoroso em obras do Modernismo, por exemplo. Para ratificar a tese da

multiplicidade de enfoques, serão mostrados estes contrastes menos privilegiados nos

estudos literários. A análise de obras literárias se deterá na forma como é desenvolvido

o sentimento amoroso em cada uma delas, ao mesmo tempo em que tecerá um estudo

comparativo entre a diversidade desses enfoques.

Ainda que, como foi dito, ressaltem-se estilos de época e individuais, neste

trabalho partiu-se sempre do texto literário como fonte das análises possíveis do tema.

No entanto, não se pode prescindir do conjunto de relações que a obra estabelece com o

meio e a sociedade em que se insere. Sendo assim, o estudo foi delimitado por épocas

porque se acredita que o texto, ainda que seja a parte prioritária do fenômeno literário,

não representa toda a sua realidade, fazendo-se mister contextualizá-lo.

Luís Felipe Ribeiro, autor de Mulheres de Papel, obra muito utilizada em nossos

estudos, que analisa o papel feminino nas narrativas de Alencar e machado de Assis,

participa deste ponto de vista e, em seus escritos, afirma: “ (...) a materialidade do texto

é uma relação social, uma confrontação histórica e uma prática humana” .2 O tipo de

abordagem do amor não depende unicamente de fatores literários ou artísticos, mas

também daqueles de ordem sócio-cultural, vigentes em cada época de produção.

Para a análise tomaram-se como ponto de referência autores e obras que

desenvolveram de maneira mais original ou mais literariamente perfeita o tema do amor

em suas épocas. Destarte, fugiu-se ao simples arrolamento de obras e autores para o

qual resvalaria a tese se se propusesse a abordar a história do tema em toda a prosa

literária nacional.

A descrição e a comparação do tema em diversas obras proporciona seu melhor

conhecimento como fato isolado e sua representação histórica, através de um conjunto

de produções subseqüentes.

Em muitos momentos, durante a pesquisa, foi preciso tratar não só do amor,

mais próximo e palpável, como também do desejo, que com ele se identifica em sua

forma potencial. Esta ramificação do estudo proposto, como será visto, é muito

esclarecedora quanto às vertentes diversas que se quer afirmar existirem. Nesse sentido,

enveredou-se, em alguns pontos pelo campo da filosofia ou mesmo da psicologia como

coadjuvantes na comprovação da tese defendida.

2 RIBEIRO, 1996: p. 24.

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O próprio verbo “amar” é proveniente do verbo paradigmático da primeira

conjugação latina “amare” , que significa realizar o ato sexual, em seu primeiro sentido;

e o segundo sentido de “amare” é o gostar, estar apaixonado. Sendo assim, até levando

em conta a etimologia, é coerente enfocar a questão do desejo neste estudo sobre o

amor na narrativa brasileira.

Devido à extensão do material a ser estudado, no percurso da prosa literária

brasileira, optou-se nesta tese por não operar um estudo em profundidade das obras,

mas um panorama do próprio tema, evidentemente enfatizando alguns romances,como

já se esclareceu. Seguindo esta lógica, foi possível não abrir mão do tema que tanto

atrai a autora, devido à enormidade do corpus que se apresentava. A pretensão deu

lugar à possibilidade.

Tencionou-se, portanto, desenvolver a tese fazendo-se referência a diversas

obras, sem que delas fosse feita uma análise detalhada, porém de modo que se possa

perceber o tema em diferentes momentos, de maneira satisfatória. Procuramos sempre

fundamentar as conclusões na análise das obras, de seu tecido narrativo, razão pela qual

são freqüentes e abundantes as citações. A intenção é que se realize uma exposição

clara, sem o falso hermetismo que dificulta o acesso ao texto crítico.

O material selecionado permite uma panorâmica abrangente do imaginário

básico na constituição do tema do amor na prosa romântica. Pode-se argumentar que

outras obras conduziriam às mesmas conclusões, o que tem fundamento, visto que

muitas se inserem no mesmo panorama sócio-cultural que as escolhidas, ou são

produzidas pelos mesmos autores, o que é fundamental para o desenvolvimento do tema

em questão. Contudo, as que aqui figuram, além de representarem a mais alta

qualidade dentro de seus estilos, comprovada por afamados críticos, abordam o tema da

maneira mais característica de cada época.

Para o aparato teórico utilizaram-se, principalmente, os estudos literários de

Heron de Alencar e de Antônio Cândido, principalmente no que diz respeito ao

Romantismo; de Sônia Brayner, sobre O Cortiço, de José Maurício Gomes de Almeida,

sobre a prosa regionalista em geral e de Luís Filipe Ribeiro, sobre o papel feminino em

Machado de Assis e em José de Alencar.

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Embora obedeça na sua orientação geral à sucessão cronológica, este trabalho,

tendo tido também em mira agrupar escritores por tendências, pode apresentar

anteposições ou posposições destes e de suas obras.

O estudo apresentará a análise do amor visceralmente romântico de Lucíola, que

aborda aquela que parece ser a divisão humana mais profunda: o embate entre o ser

público e o ser privado, entre a sociedade e o sentimento, e entre amor-sentimento e

amor-atração física, carnal. Alencar é de grande interesse para a tese, em especial seus

romances urbanos, porque se filiam às características comuns do romance sentimental

ou lírico do Romantismo europeu. Sendo assim, a trama desenrola-se, invariavelmente,

a partir do amor e suas complicações. A escolha do autor se dá também porque ele

sintetiza seu tempo. Seu posicionamento literário frente à abordagem de vários temas,

inclusive o que enfocamos, é exemplar para entender as tendências românticas.

Em meio às análises, surgirão considerações sobre uma particularidade narrativa

bastante significante para o desenvolvimento do tema : narradores-personagens que,

com distanciamento temporal, fazem críticas às próprias atitudes no passado, como uma

pseudo-autobiografia. Alguns o fazem por um viés mais racional, como o narrador de

Memórias póstumas de Brás Cubas, outros, por um viés mais sentimental, como Paulo,

de Lucíola.

O enfoque literário do amor como fixação no desejo corporal, fisiológico, será

analisado tanto na estética naturalista, representada por O cortiço, como em Angústia,

de Graciliano Ramos. Embora no segundo haja a obsessão pelo corpo, típica do

Naturalismo, encontra-se uma construção ambivalente: não descarta os psicologismos.

O fisiologismo, aliás, está a serviço da análise psicológica, ainda que para comprovar o

desajuste do protagonista.

É importante ressaltar que esta tese toma como de suma importância as idéias de

Sônia Brayner, em sua obra A metáfora do corpo no romance naturalista, para o

desenvolvimento do tema do amor neste período da prosa brasileira. As conclusões da

autora acerca do tema vêm exatamente ao encontro do que será aqui defendido.

Ao abordar o Naturalismo, Angústia, de Graciliano Ramos, e as obras de Jorge

Amado, percebemos que o amor tem em seu cerne ou tangencia o desejo-apetite, o que

no homem é visceral e reclama reiteradamente satisfação momentânea. Nesses casos,

não se fugirá à abordagem do tema do desejo.

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Na última parte do estudo, retoma-se a relevância do amor propriamente dito,

com a análise de algumas obras de Jorge Amado e de Guimarães Rosa. As primeiras

trazem à baila novamente o enfoque romântico deste sentimento ou ainda sua

apresentação como uma espécie de metáfora da vida, como alegria incomensurável. As

de Rosa operam uma integração que une perfeitamente no amor o erotismo e o

sentimento, e o tema aparece com grande carga mítico-simbólica. Há também um

aspecto positivo inegável do amor na narrativa rosiana.

Ao longo da análise do tema, do Romantismo até Jorge Amado, pode-se

observar um ininterrupto processo de afirmação e negação do sentimento amoroso em

obras de épocas sucessivas.

Há, na obra de Jorge Amado, certa volta às teses românticas do século XIX:

trata-se da afirmação dos valores positivos do Brasil e dos brasileiros. Esta tendência,

assumida pelo escritor, tem raízes profundas no imaginário popular, ao qual se relaciona

sua obra. A alegria dos seus personagens, que se afirma a despeito de tudo e de todos,

coaduna-se com a autovisão do brasileiro. E o amor, romântico ou erótico, vem a

serviço desta alegria. Boa parcela da obra amadiana gira em torno de um processo que

mistura amor, vida e erotismo. O amor erótico é, inclusive, uma espécie de filosofia

inerente às personagens de Jorge Amado.

Na geração seguinte, a visão positiva do amor, dominante em Jorge Amado, vai

reaparecer sob diferente enfoque, na obra de Guimarães Rosa.

A centralização no amor “misturado” , erótico, sentimental e mítico,

desenvolvido de maneira bastante peculiar, fez com que se escolhessem para análise as

narrativas “Buriti” , “Dãolalalão” e “A estória de Lélio e Lina” , todas de Corpo de Baile.

Será dado destaque também na obra deste autor ao papel do erotismo que, assim como

em Jorge Amado, tem uma função positiva. Representa, em seus enredos, o alicerce

para a completude buscada pelas personagens, muitas vezes recebendo uma conotação

filosófico-existencial, já que, em essência, sua obra caminha nesta vertente. O autor

desenvolve a capacidade da narrativa de promover o adentramento no universo

simbólico.

Esta visão positiva do erotismo, presente tanto em Amado quanto em Rosa

contrapõe-se ao que ocorre em Aluísio de Azevedo e Graciliano Ramos, dando

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oportunidade a um estudo comparativo sobre o tema do amor na tradição narrativa

brasileira.

Se os clássicos mundiais têm Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Paulo e Virgínia,

a Literatura Brasileira está igualmente representada por Lucíola e Paulo, Inocência e

Cirino, Lívia e Guma, Bentinho e Capitu. O amor, é, de fato, tema eterno e fascinante.

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2 – O PAPEL DO AMOR ROMÂNTICO E SUAS DIMENSÕES

2.1. Amor romântico e modernidade em Inocência

Em literatura, quando se fala em amor, a referência é indubitavelmente o

Romantismo. A motivação é óbvia: o amor é matéria importantíssima no romance

romântico, visto que este é essencialmente lírico. No processo de afirmação e negação

do sentimento amoroso na narrativa brasileira, o Romantismo constitui o momento por

excelência da sua exaltação.

Engana-se quem pensa que os romances regionalistas têm a atenção voltada

apenas para a natureza interiorana brasileira. O fato de Inocência ser obra escolhida

para figurar na apresentação do tema aqui estudado é mais do que um indício: os

românticos que se dispuseram a desenvolver o romance regionalista tomaram a região

como cenário, como quadro natural e social para atos e, principalmente, sentimentos

sobre os quais se voltava realmente a sua atenção. O amor entre Cirino e Inocência é de

fato o foco central da obra. O desenvolvimento do tema segue o mesmo caminho de

toda a prosa romântica, não se diferenciando por estar inserido num complexo de

características geográficas e culturais peculiares.

O tradicional obstáculo à representação plena do amor não é aqui o dote ou a

prostituição, mas o casamento “arranjado” entre famílias, muito comum na sociedade

patriarcal do interior.

A atração e o amor entre Inocência e Cirino simbolizam o caráter sonhador e

idealista da heroína: o elemento estrangeiro representa para ela a possibilidade de uma

vida diferente, a aspiração a um mundo novo que se descortina; Inocência é, para

Cirino, não muito diferente disso: o mito da mulher interiorana, pura, bela e a ser

“desbravada”, assim como a natureza da região. Representam, um para o outro, o

exótico, tão cultuado pelo temperamento romântico.

Além disso, assim como a figura da índia, em Iracema, a da interiorana, em

Inocência, é retocada e aformoseada, bem ao gosto romântico. Inocência representa,

assim como Iracema, a pureza não influenciada pela cultura europeizada do litoral; por

isso inseri-la num ambiente sertanejo, que ressalta tais peculiaridades. Trata-se também

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de um dos pressupostos básicos do Romantismo: a busca da nacionalidade, de

características próprias, não contaminadas pela cultura estrangeira.

O gosto pelo pitoresco das terras distantes existe em Cirino, mas não só por elas.

Inocência também é, a seus olhos, o pitoresco, e como tal, transforma-se em expressão

de lirismo, pureza e sentimento. Na terra desconhecida, que naturalmente deixa o

estrangeiro desperto para as novas sensações, surge Inocência. “ O pitoresco e a cor

local tornaram-se um meio de expressão lírica e sentimental,e, por fim, de excitação de

sensações.” 3

É interessante interromper aqui , por alguns momentos, a análise de Inocência,

para ressaltar que essa predisposição referida no parágrafo anterior é também

demonstrada por Paulo, de Lucíola, com o propósito de justificar o enlevo ao ver Lúcia

pela primeira vez, na carruagem:

Acabava de desembarcar; durante dez dias de viagem tinha-me saturado da poesia do mar, que vive de espuma, de nuvens e de estrelas; povoara a solidão profunda do oceano, naquelas compridas noites veladas ao relento de sonhos dourados e risonhas esperanças; sentia enfim a sede da vida em flor que desabrocha aos toques de uma imaginação de vinte anos, sob o céu azul da corte. (Lucíola, cap. II p. 126)

O amor de Inocência e Cirino obedece rigorosamente, portanto, ao exagero e à

busca da perfeição, ao ideal romântico. O enredo se desenrola no inóspito sertão do

Mato Grosso, e Inocência representa a heroína não “contaminada” pela sociedade e,

assim, também a lealdade, o amor e a pureza de uma mulher de perfeição e sonho, num

lugar distante, onde os sentidos do “estrangeiro” Cirino estão aguçados para o pitoresco.

A heroína é parte da natureza primitiva idealizada e, no romance, vive em

conformidade absoluta com esta. O cenário é de uma beleza tão ímpar que há um

estrangeiro (Meyer) instalado na fazenda do pai de Inocência para estudar espécimens

raros de borboletas.

Os elementos naturais conspiram a favor dos encontros entre o casal.

Supervalorizados pelo Romantismo, têm grande valor nesta obra, pois ocultam,

facilitam e servem de refúgio aos amantes; também metaforizam e exacerbam os

3 COUTINHO, 2002: p. 10

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sentimentos. No exemplo abaixo, a natureza participa do cenário amorosa e, de certa

forma, antecipa os acontecimentos fúnebres, já que a aurora “sondava a profundidade

das trevas...” :

E assim abraçados, quedaram eles inconscientes, enquanto a aurora vinha clareando o firmamento e desferindo para a terra raios indecisos como que a sondarem a profundidade das trevas; enquanto os pássaros chilreavam à surdina, preparando as gargantas para o matutino concerto; enquanto o orvalho subia da terra ao céu molhando o dorso das folhas das grandes árvores e suspendendo, às das rasteiras plantinhas, gotas que cintilavam já como diamantes Ao longe, à beira de algum rio, as aracuãs levantavam a sonora grita, e o macauã atirava aos ares os pios prolongados da áspera garganta. (Inocência, cap. XXIII, p. 91)

E o laranjal, durante toda a narrativa do idílio, servirá de cúmplice ao casal:

- Xi! Observou ela, cuidado! Se ele nos acha aqui nos mata logo... Olhe, vá-me esperar junto ao corguinho para lá do laranjal... daqui a nada vou ter com mecê... A porta está só encostada. O moço fez sinal que obedecia e sumiu-se incontinenti na escuridão do pomar. (Inocência, cap. XXIII, p.89)

O tema do amor desenvolve-se entre folhagens, pios noturnos de pássaros,

borboletas que desviam a atenção do pai de Inocência para que este não interfira

negativamente enquanto o sentimento amadurece...

A inclinação de ressaltar a natureza não é particular de Taunay e muito menos

dos romancistas brasileiros, ainda que nos restrinjamos à época romântica. José

Maurício Gomes de Almeida, abordando o sertanismo romântico de Alencar, em sua

obra A tradição regionalista no romance brasileiro, nos diz: “O culto da natureza não

constituía em si uma novidade. Já no Romantismo europeu ocupava lugar de destaque,

representando uma relação do indivíduo (do artista) contra o caráter cada vez mais

opressor da sociedade industrial-capitalista” 4.

4 ALMEIDA, 1999: p. 49

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No entanto, citando Heron de Alencar, o autor mostra que, se o culto da natureza

não é original, a função que exerce no romance brasileiro é diferente: “O nosso

sentimento da natureza era menos individualista e mais de afirmação nacional. O

nosso Romantismo engrandece a natureza brasileira, para nela projetar e ampliar o

mundo ideal que constrói acima do real, que é dominado pelos colonizadores” 5.

Sobre as tendências realistas de observação e análise da natureza em Taunay,

Heron de Alencar, colaborador de Afrânio Coutinho em A literatura no Brasil, se

expressa da seguinte forma, reiteradora da análise aqui realizada: “ Sua concepção do

mundo tem muito de romântico, pela dominância do idealismo sentimental sobre a

observação e a análise; nos valores secundários da história, porém, predominam

estas” .6

Portanto, o ambiente sertanejo, se dá originalidade à obra, não toma o lugar da

trama amorosa tão prezada pelo Romantismo. Se em Inocência, “a preocupação de

fidelidade ao dado observável torna-se manifesta, especialmente no tocante à paisagem

e ao ambiente social em que se desenrola a ação7” , quanto ao desenvolvimento do tema

amoroso e do próprio enredo, a idealização romântica permanece. O amor é narrado em

tom lírico, dramático.

Essa imutabilidade na escolha e no enfoque do tema central também é

considerada por heron de Alencar, que a aborda com muita propriedade. O excerto é

longo, mas muito proveitoso para o nosso assunto:

No romance urbano, perfil de mulher quase sempre, bem como no regionalista, constroem-se as intrigas em torno de três elementos fundamentais: a família, o casamento e o amor. É do conflito desses três elementos que resulta a história, a novela. Bons observadores, os nossos romancistas nunca se desligaram da realidade, e nessa espécie de romance a realidade nacional da época se encontra bem desenhada, na forma por que todos eles reproduziram os conflitos resultantes do jogo de interesse no problema do casamento e do amor. O patriarcalismo da sociedade brasileira do século passado regulava a constituição da família e legitimava a intervenção discricionária dos pais no casamento ou nos projetos de casamento dos filhos; para defesa da família e da sociedade, os casamentos tinham de ser ditados não pelo amor, mas pelos interesses familiares e sociais; a

5 ALMEIDA, 1999: p. 49 6 ALENCAR, 2002: p. 283 7 ALMEIDA, 1999: p. 100

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mulher deveria desposar e amar aquele que lhe indicassem os pais, pois sua posição na sociedade lhe exigia o papel de guardar e transmitir riqueza, através do casamento de conveniência. Contra essa moral burguesa é que lutam os românticos, heróis ou heroínas, defendendo os direitos do sentimento e do coração. Essa luta é feita de sofrimentos e provações, servindo-lhe de contraponto a permanente idéia de que a união de duas almas, pelo amor, poderá ser conseguida na morte, caso os conflitos não se resolvam romanticamente, como ocorre quase sempre.8

Trata-se da exata descrição do enredo de Inocência, que luta contra a

intervenção do pai, que exige seu casamento com Manecão, não aceitando Cirino. O

conflito se resolve de maneira também romântica, pois Cirino praticamente caminha

para a morte, em nome do amor, o que representa parte essencial da visão romântica. A

morte, aliás, é cogitada várias vezes pelos amantes, diante da impossibilidade de

realização do amor, antes de ocorrer de fato. Isso confirma a tendência romântica:

Oh não! Essa menina é a minha vida! É o meu sangue... o meu farol para os céus... Quem ma rouba mata-me de uma vez. Venha a morte... fique ela para chorar por mim... um dia contará como um homem soube amar!... (Inocência, capítulo XV, p. 99) - Ah! Exclamou Cirino, o Sr. sente a consciência bater-lhe que sua afilhada está desamparada, que vai ser sacrificada... e agora tapa os ouvidos e diz: Não quero ouvir, não quero cumprir a minha palavra! Por que a deu então o Sr.... essa palavra de honra de que tanto fala?... Nossa Senhora que a proteja... que a tire deste mundo... Isto há de pesar-lhe no peito... e, quando um dia tiver notícia que Inocência morreu de desgostos, há de dizer lá consigo que ajudou a cavar-lhe a sepultura. (Inocência, capítulo XXVIII, p. 108)

E ainda, na hora da morte, Cirino, mesmo dizendo-se já morto (usa o

verbo no pretérito: “mataste-me”), afirma com convicção de que Inocência é sua,

o que aponta para a infinitude do amor:

8 COUTINHO, 2002: p. 302

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Matador!... vil!... sim!... conheço Inocência... Ela é minha... Infame!... Mataste-me... mas mataste também a ela!... Que te fiz eu?... Deus te há de amaldiçoar... sim, meu Deus, meus Santos... maldição sobre este assassino... Foge, foge... minha sombra há de seguir-te sempre...” (Inocência, capítulo XXX, p. 115)

E todas as predições acerca da morte dos amantes se realizam.

Afora os capítulos iniciais, alguns outros apresentam, disseminados na narrativa,

trechos de indiscutível realismo. No entanto, estes não parecem ter preocupação

documental – sua função é outra: retardar os acontecimentos, a fim de que

amadurecessem e se intensificassem os sentimentos entre Cirino e Inocência.

A característica alencariana de “pintar” quadros com as palavras também está

presente em Taunay, mas com diferente propósito. Alencar descreve cenas em Lucíola,

por exemplo, para melhor caracterizar personagens e sentimentos. Já Taunay aproxima-

se da precisão científica ao descrever detalhes geográficos e botânicos da região central

do Brasil.

Se, sob o aspecto amoroso, o enredo de Inocência segue exatamente o

paradigma romântico, por outro lado, na economia total da obra, o sentimentalismo é

arrefecido pelo aspecto cômico que a pontua. Nisso, Inocência realmente se difere das

demais obras românticas nacionais, em que impera a idealização amorosa, sem haver

focos de diverso interesse. Aqui, não podem passar despercebidas as hilárias figuras de

Pereira e Meyer, assim como a relação de desconfiança entre ambos.

Há ainda um outro fator: se a morte de Cirino causa o clímax da comoção, esta

também perde intensidade, só que por meio de um novo capítulo, no qual a morte de

Inocência é sucintamente narrada, precedida de uma irônica epígrafe, que sequer diz

respeito à heroína, mas ao reconhecimento científico de Meyer no exterior: “Possui-te

de justo orgulho e coroem os louros de Apolo tua cabeça. – Horácio. (Inocência,

Epílogo, p. 117). E só no final do capítulo cita-se o falecimento da mocinha, como uma

nota sem importância num jornal: “Exatamente nesse dia dois anos faziam que seu

gentil corpo fora entregue à terra, no imenso sertão de Sant’ana do Parnaíba, para aí

dormir o sono da eternidade.” (Inocência, epílogo, p. 118)

Caso a intenção fosse de perpetuar o sentimentalismo, Taunay teria finalizado a

obra com a morte de Cirino. A mistura entre sentimentalismo, comicidade e tragédia é

analisada com exatidão por José Maurício Gomes de Almeida: “Pelo dosado

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contraponto entre amor e humor, mais do que pela preocupação documental – de resto

discreta -, Inocência se afasta dos padrões correntes no Romantismo brasileiro e

aponta para a fase seguinte.”9

Conclui-se que o tratamento do tema do amor em Inocência segue ainda o

paradigma romântico, e o caráter de modernidade não se dá pela preocupação

documental e descritiva, mas pela mistura de gêneros e tons narrativos. A preocupação

realista não alcança o tema que nos interessa de maneira significativa. Embora a

formação do ambiente crie certos questionamentos acerca desta classificação realista ou

romântica, as figuras humanas criadas para personagens de Inocência estão imbuídas do

convencionalismo romântico, assim como o relacionamento principal, que caminha

para um fim trágico.

José Maurício Gomes de Almeida, em sua obra A tradição regionalista no

romance brasileiro, na parte em que analisa Inocência, chama a atenção também para a

importância das epígrafes nos capítulos da referida obra literária. O crítico interpreta-as

como “um discurso paralelo, em contraponto textual com o corpo principal da obra” 10

com a função de facilitar o ‘diálogo’ do narrador com a própria narrativa, sem ser

necessária uma intervenção pessoal.

As epígrafes que importam para esta tese são as de Shakespeare, que inclusive

predominam na obra de Taunay: são seis. Tal ênfase nos dá a certeza de que este é o

modelo seguido pelo autor para tecer o fio do enredo amoroso entre Inocência e Cirino.

Antecipa, inclusive, o desfecho da morte dos amantes, o impedimento familiar, não

exatamente igual à célebre Romeu e Julieta, mas claramente embasado em tal obra.

No que tange ao relacionamento amoroso, a seleção de epígrafes é, portanto,

mais um indício de que não há fundamentação realista neste, a despeito de outros

aspectos da obra. Taunay bebeu no Romantismo clássico como inspiração, dizem-nos

tais epígrafes.

O que confere certa modernidade a Inocência é o caráter cômico que a permeia,

tanto na construção de personagens importantes como Pereira e Meyer, como na própria

relação irônica entre algumas das epígrafes e o enredo.

9 ALMEIDA, 1999: p. 121. 10 ALMEIDA, 1999: p.106

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Aqui, nos deteremos em analisar brevemente apenas aquelas que remetem à

relação amorosa, pela pertinência com o tema desenvolvido: as passagens de Romeu e

Julieta, presentes nos capítulos XVIII e XXIII, de Inocência.

No capítulo XVIII, a relação entre a epígrafe e a narrativa de Inocência

propriamente dita, é muito próxima, representando a segunda quase uma paráfrase da

primeira, em linguagem mais simples, característica da personagem Cirino, o “Romeu”

de Inocência. Transcrevemos em primeiro lugar a epígrafe: “Mas que luz é essa que ali

aparece, naquela janela? A janela é o oriente, e Julieta o sol. Sobe, belo astro, sobe e

mata de inveja a pálida lua” . (SHAKESPEARE, Romeu e Julieta, ato II (Inocência,

XVIII, p. 73)). Agora, a o trecho que parafraseia a epígrafe, no interior do capítulo da

referida obra nacional: “Deixa-me ver bem o teu rosto, dizia Cirino a Inocência. Para

mim, é muito mais bela que a lua e tem mais brilho que o sol.” (Inocência, XVIII, p.

76).

A semelhança não se detém na semântica, mas o fato de o trecho, em Inocência,

aparecer no discurso direto, o aproxima do gênero dramático de Romeu e Julieta. Tal

recurso confere modernidade à narrativa, inovando na Literatura Brasileira.

As cenas em que aparecem as respectivas falas também se delineiam de maneira

bem semelhante: ambas se dão à noite, quando todos dormem e, tanto Inocência quanto

Julieta estão à janela, enquanto seus amados, Cirino e Romeu, respectivamente,

colocam-se sob suas janelas, numa postura apaixonada, e proferem as declarações

transcritas acima.

Se a referida cena é famosa em Romeu e Julieta, em Inocência, sua importância

não é pequena: Cirino começa a dar vazão a sua paixão reprimida e tem a certeza da

correspondência da amada. O período de “preparação” do relacionamento amoroso

acaba e inicia-se de fato a complicação do romance.

Como já acenou José Maurício Gomes de Almeida, tal “aproximação aponta

para o potencial de universalidade contido na narrativa de Taunay11” . Esta análise

combina perfeitamente com a universalidade do tema amoroso proposta nesta tese, e a

visão romântica do amor, embora não seja a única, é, até hoje, a mais popular na

literatura em geral.

11 ALMEIDA, 1999: p. 115

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Já no capítulo XXIII, a epígrafe de Shakespeare anuncia o desfecho trágico da

relação entre Cirino e Inocência: “Mais cresce a luz, mais aumentam as trevas das

nossas desgraças” (Inocência, XXIII, p. 88)

O capítulo narra exatamente o último encontro entre Cirino e Inocência, quando

decidem que ele irá usar todos os recursos para revogar a obrigação de casamento dela

com Manecão. E este encontro termina justamente com a “aurora clareando o

firmamento” (Inocência, XXIII, p. 91)

Todos os aspectos apontados demonstram, então, a permanência da tradição

romântica no desenvolvimento do tema amoroso em Inocência, com traços de

modernidade que não estão ligados aos aspectos realistas ‘salpicados’ pela obra.

2.2. Exaltação do amor e transcendência: desejo satisfeito X mundo real

No desenvolvimento das diferentes narrativas do Romantismo, o tom dominante

é o da exaltação do amor. Considerem-se três obras com desenlaces diferentes, para que

este fator seja comprovado.

Em Senhora, o desfecho agrada às “almas sensíveis” , e deixa mais clara a

exaltação do amor. O obstáculo vencido pelo sentimento é bastante considerável: o

casamento por interesse.

Porém, em obras como Lucíola e Inocência, em que o enredo é desenvolvido em

torno do amor impossível, a não-rendição do sentimento às exigências sociais se dá

através da morte de protagonistas. Mas há fatores que distanciam tais obras entre si.

Em Lucíola, a contraposição da família, tradicional nos enredos românticos, é

substituída pela da sociedade, cuja “moral e bons costumes” estão arraigados na própria

personalidade da protagonista. Os elementos do conflito amoroso, nesta obra, são

originais para a época, embora o problema permaneça o mesmo.

Lúcia tem seu amor correspondido e chega a vivê-lo por um curto espaço de

tempo, quando Paulo instala-se em sua casa.

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(...) Só há de entrar aqui duas vezes por semana: na segunda e na quinta-feira. Ia interrompê-la recusando; ela tapou-me a boca. E há de sair nos mesmos dias; porém em vez de entrar de manhã e sair de tarde, entrará de tarde e sairá de manhã. Não lhe agrada? Então à exceção desses dois dias toda a semana é minha? disse não me cabendo de contente. Sua, não senhor, minha. Deixo-lhe dois dias para ver seus amigos... E não acha que é muito? Bastava um! (...) Bem, Lúcia, tu que queres que eu viva quase em tua casa. Mas é preciso saber o que eu serei dela? Olhou-me com expressão que mostrava ter lido no meu pensamento: O mesmo que de mim: dono e senhor. (...) As nossas relações duravam um mês; apenas algumas ligeiras nuvens, das que achamalotam o azul da atmosfera nas tardes calmosas, toldaram por vezes o nosso céu risonho. (Lucíola, cap. X p.174-175)

No entanto, a sociedade preconceituosa e a própria consciência de Lúcia

afastam-na da realização plena do amor.

Saí bem decidido a pôr um termo à situação vergonhosa e humilhante em que me achava colocado. As palavras de Sá me queimavam os ouvidos. Eu vivendo à custa de Lúcia, eu que esbanjava a minha pequena fortuna por ela! Mas as calúnias tinham razão em um ponto; não exibia a minha amante como um traste de luxo, ou um manequim da moda; roubava o bem que lhes pertencia, visto que não era milionário para ter o direito de possuí-la exclusivamente.(Lucíola, cap.XI, p. 181)

Alencar situa muito bem a obra no tempo e no espaço: seu romance urbano

funda-se na sociedade do Segundo Império brasileiro. Por estar assim contextualizado,

a sociedade não aceitaria um relacionamento legitimado entre Lúcia e Paulo, assim

como o público da época em que a obra foi produzida não conceberia como “normal”

um desfecho que anulasse a separação entre os dois. Sobre esta atitude, versa

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acertadamente Roland Barthes, em seu O prazer do texto12: “O Bom-senso é sempre

uma violência ideológica que procura promover como normal algo que é apenas uma

imposição regulada por interesses de grupo ou de classe” .

A transformação do amor de Lúcia em transcendental, através da morte da

personagem, representa o resultado deste choque cultural:

De fato, tudo se passa como se o mundo fosse muito estreito para a presença simultânea da consciência desejante, do objeto desejado e do testemunho severo. Seu afrontamento provoca um mal-estar intolerável. É preciso que um dos três se dissimule, transforme-se ou desapareça.13

O contato com a realidade concretamente demarcada no espaço e no tempo

serviu de limite e, muitas vezes, até de corretivo à fantasia exacerbada do Romantismo.

Não se trata, porém, de uma reprodução minuciosa de tal realidade, nem de substituição

do caráter inventivo pela observação e descrição: o trabalho artístico imaginativo

continua prioritário, não ferindo assim a concepção de romance, em prol da História.

A verdade, porém, é que a eminência literária vem ligada, freqüentemente, em matéria de romance, à possibilidade de dar certo toque de ficção à realidade sentida e compreendida à luz de um propósito ideológico. Este não basta, mas sem ele não há romance duradouro.14

O fato de Lúcia sentir-se indigna de se unir a Paulo, ou de ser mãe de um filho

seu pode parecer, numa leitura menos atenta, a derrocada de um sentimento verdadeiro,

o que seria um engano.

O amor, em Lucíola, é redentor da alma da protagonista; aponta para a

transcendência na medida em que vai a pouco e pouco afastando-a da prostituição, e

fazendo-a libertar-se do corpo maculado até virar alma pura, o que se dá com sua morte.

Esta saída, aliás, não representa uma inovação. Parece mesmo que Lúcia vai se

entregando a tal fatalidade no desenrolar do romance, não sendo algo inesperado ou

súbito.

12 BARTHES, 1974: p. 13 13 NOVAES, 1990:p. 12.

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Lúcia expandia-se com tal efusão de contentamento, que, se há felicidade neste mundo, devia ser a que ela sentia. Entretanto, passada essa primeira e fugace irradiação, achei-a fria, quase gelada; apenas respondia às minhas carícias ardentes e impetuosas. Naquele momento atribuí à prostração natural depois de tão fortes emoções; porém me enganava. A frieza continuou aumentando de dia em dia, até que uma vez não me pude conter: - Parece que já te aborreceste de mim, Lúcia! - Creio que estou doente! Sofro tanto! - De quê? Dessa moléstia do coração que me há de matar! (Lucíola, XIV, p. 200)

Heron de Alencar aponta para a possibilidade de que o exemplo de Romeu e

Julieta tenha invadido sobremaneira a prosa romântica no sentido de conduzir amantes

que não realizam seu intento amoroso à imolação em nome do sentimento primordial

que norteia a narrativa.

No estudo do amor romântico, há um aspecto que merece particular atenção: é a permanente vinculação do amor à idéia da morte. E não somente à idéia ou à consciência da morte, mas, muita vez, à própria necessidade da morte. A partir do gesto desesperado de Werther, o Romantismo, na vida real ou na literatura, foi inundado de suicídios e de mortes.15

A idéia de purificação, que impregna a morte de Lúcia, representa a

subjetividade extrema, já que é ela mesma quem não aceita a plenitude do amor em

vida. Sobre o aspecto purificador da morte para os românticos, Heron de Alencar nos

diz: “ (...) carregado sempre de violenta paixão e de subjetivismo extremo, o amor

romântico, que independe do objeto amado, encontra na morte a forma mais pura de

realização.” 16

A permanência do amor no post-mortem fica clara na seguinte frase do narrador:

“Há seis anos que ela me deixou; mas eu recebi a sua alma, que me acompanhará

eternamente.” (Lucíola, cap. XXI , p. 250 – grifos nossos)

Em Alencar mesmo, a entrega à morte, tão subjetivamente realizada quanto em

Lucíola, acontece também em Iracema. A índia, incapaz de superar o próprio

14 CANDIDO,1979: p. 303. 15 ALENCAR, 2002: p. 304 16 Idem, p. 304

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preconceito, sempre se achando inferior às mulheres brancas da terra do amado e

sentindo-se sempre na iminência de perdê-lo, morre.

Em Inocência, a narrativa também aponta para uma entrega à morte diante da

impossibilidade de realização do amantes. De maneira muito mais branda que em

Lucíola, Cirino praticamente entrega-se à morte pelas mãos de Manecão, ao imaginar

que o padrinho de Inocência não intercederia em favor de seu amor. A possibilidade de

encontro espiritual, já que o amor não se extingue, segundo a visão romântica, é já

revelada no capítulo XIX, de maneira exemplar, por Inocência:

Parece-me que Nossa Senhora há de ter pena dos que ama... mas desampara com certeza os que erram... Se não houver outro remédio, temos que nos lembrar que as almas, quando se acaba tudo neste mundo, vão pelos céus, cheios de estrelas, passeando como num jardim... Se eu me finasse e mecê também, punha-se a minha alma a correr pelos ares procurando a de mecê, procurando, procurando, e então nós dois juntinhos íamos vu viajando ora para ali, às vezes pelo carreiro de S. Tiago, às vezes baixando a este ermo a ver onde é que botaram os nossos corpos... Não era tão bom? (Inocência, capítulo XIX, pág. 80)

Retomando a questão em Lucíola, um outro símbolo da transformação, ou

melhor, da purificação de Lúcia, é o desvelamento de seu verdadeiro nome,

representação do que seria ela sem a mácula da prostituição.

Com tudo isso, afirma-se a exaltação do amor não só como foco temático, mas

como elemento positivo dentro da narrativa.

Este amor como força redentora, sublime, aparece de maneira ainda mais

idealizada na novela Cinco Minutos. Em seu enredo, a protagonista consegue

restabelecer-se até fisicamente, curando-se da tuberculose, graças ao sentimento

amoroso, que recebe caráter transcendental e transformador na narrativa alencariana.

Sobre os romances urbanos do período, Heron de Alencar afirma que o escritor

“Sublinhou (...) o caráter do amor romântico como retificador de conduta e portador de

substância, que é o tema central de todos os seus romances desse grupo” 17.

17 ALENCAR, 2002: p. 262

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Inocência segue o mesmo paradigma: com a morte de Cirino, que só endossa a

impossibilidade de encontro dos amantes, Inocência ainda assim fica solteira, morrendo

depois. Mas final trágico não é antitético à existência do amor.

O desafio da tradição da escolha do noivo pelo pai constitui um choque cultural

que apresenta como solução o desaparecimento (morte) de Cirino, consciência

desejante, mas não a ausência do amor. Comprova-se que o Romantismo prima pela

exaltação deste sentimento: tanto em Lucíola quanto em Inocência ele é vítima da

sociedade.

Além de Lucíola e Inocência, pode-se citar também Iracema como exemplo de

que há, no Romantismo, uma tendência à inadequação do desejo satisfeito com o mundo

real. Nesta obra, o choque entre a cultura européia e a indígena, que aparentemente se

resolveria com a fuga de Iracema com Martim e se consumaria com o nascimento de

seu filho, acaba por mostrar-se mais profundo e causar a morte da índia, insegura quanto

ao amor de Martim e sentindo-se solitária, longe dos seus, e inadequada ao mundo do

amado. Opera-se esta análise sem perder de vista a noção de que o amor, em Iracema,

aparece transformado em teoria social, porque põe a nu o choque cultural entre índios e

brancos europeus, ainda que se reafirme a atração entre ambos.

Embora Iracema seja classificado pelo próprio autor, no prefácio de seu Sonhos

d’Ouro, como obra indianista, a abordagem do amor na obra a aproxima do período

considerado por ele como histórico. No referido prefácio, o escritor nos diz sobre esta

fase: “O segundo período é histórico: representa o consórcio do povo invasor com a

terra americana, que dele recebia a cultura, e lhe retribuía nos eflúvios de sua natureza

virgem e nas reverberações de um solo esplêndido”18

Analisando-se tais considerações do autor e contrapondo-as ao romance,

percebe-se que o amor em Iracema não envolve simplesmente uma personagem: na

verdade, tal sentimento é que propicia e representa o “consórcio do povo invasor com a

terra americana” . Trata-se de uma expressão metonímica da história da colonização

brasileira: não é Martim, e sim o povo colonizador, e não é Iracema, e sim a terra

brasileira, que se casam. E ela é a “mãe fecunda” que vai gerar Moacir, o símbolo da

união da nossa natureza com a cultura lusa.

18 ALENCAR, 1977d, v.6:p. 165-166

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A virgindade de Iracema pode ser interpretada como a terra ainda não

colonizada, intocada por quaisquer outros povos que não os selvagens, que a

preservavam. Sendo assim, Iracema-terra está pronta para receber o novo povo, fruto

desse amor que a faz sofrer e a mata, fazendo-a existir apenas na mistura com o homem

branco, em Moacir. A ficção de Iracema imita, portanto, o percurso histórico da

colonização brasileira, a formação da nova nação.

Ainda que a contribuição indígena para a cultura nacional seja importante, é

modesta frente à colonização européia: embora Moacir tenha sangue indígena em suas

veias, Iracema morre após a sua gestação, reafirmando a preponderância da cultura

branca, que sobrevive na figura do guerreiro Martim e no sangue do filho. O amor e a

união entre Iracema e Martim são mais prejudiciais ao indígena que o amor entre Peri e

Ceci, de O Guarani.

Em Iracema, Martim precisa tirar a amada de sua cultura, de sua tribo, e não a

compreende. Iracema morre. Já Ceci, em O Guarani, ao final, consegue perceber a

beleza e a grandeza do selvagem, exatamente como ele é, despindo seus olhos do

preconceito formado pelo berço europeu:

Contemplando essa cabeça adormecida, a menina admirou-se da beleza inculta dos traços, da correção das linhas do perfil altivo, da expressão de força e inteligência que animava aquele busto selvagem moldado pela natureza. Como é que até então ela não tinha percebido naquele aspecto senão um rosto amigo? Como seus olhos tinham passado sem ver sobre essas feições talhadas com tanta energia? É que a revelação física que acabava de iluminar o seu olhar não era senão o resultado dessa outra revelação moral que esclarecera o seu espírito; dantes via com os olhos do corpo, agora via com os olhos da alma. Peri, que durante um ano não fora para ela senão um amigo dedicado, aparecia-lhe de repente como um herói; no seio de sua família estimava-o, no meio dessa solidão admirava-o. Como os quadros dos grandes pintores que precisam de luz, de um fundo brilhante, e de uma moldura simples, para mostrarem a perfeição de seu colorido e a pureza de suas linhas, o selvagem precisava do deserto para revelar todo o esplendor de sua beleza primitiva. No meio de homens civilizados, era um índio ignorante, nascido de uma raça bárbara, a quem a civilização repelia, e marcava o lugar de cativo. Embora para Cecília e D. Antônio fosse um amigo, era apenas um amigo escravo. Aqui, porém, todas as distinções desapareciam; o filho das matas, voltando ao seio de sua mãe, recobrava a liberdade: era o

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rei do deserto, o senhor das florestas, dominado pelo direito da força e da coragem. As altas montanhas, as nuvens, as catadupas, os grandes rios, as árvores seculares, serviam de tronco, de dossel, de manto e cetro a esse monarca das selvas cercado de toda a majestade e de todo o esplendor da natureza. (O Guarani, XI, p. 191-192)

Durante toda a narrativa é certo que Peri assume uma posição servil frente a

Ceci, típica dos cavaleiros medievais, que adoravam as amadas como a santas,

colocando-se a seus pés. Entretanto, no final, a relação entre o selvagem e a mocinha

ganha um novo aspecto, na medida em que ele se torna seu salvador, e a admiração fica

recíproca.

Essa posição de Ceci era necessária para que houvesse a fecundação das duas

culturas que dariam origem à nova nação. Nenhum “ filtro” alucinógeno, ou mesmo a

morte do herói foram necessários para que o indígena fosse aceito. Os exterminados

aqui pertencem ao povo português (a família de Ceci) e é este fator que a aproxima de

Peri. Em Iracema, a perda é indígena: perdem a virgem mantenedora do segredo da

jurema, portanto, parte de sua cultura; e Iracema, apartada de seu povo, acaba por perder

a vida.

* * *

Não só no desfecho se demonstram os diferentes meios narrativos para a

exaltação do amor no Romantismo. Ainda contrapondo Lucíola e Inocência, é possível

perceber como a construção da primeira faz-se de maneira bem mais complexa, talvez

pela genialidade de Alencar. Por outro lado, Inocência segue à risca o paradigma da

heroína pura, idealizada, do amor inocente, e esta idéia realiza-se desde o título.

O enredo desta obra remete também a narrativas tradicionais, e mais diretamente

a Romeu e Julieta, que traduz o mito do amor impossível, só cristalizado na morte.

Taunay retoma este mito, deslocando-o para o sertão do Mato Grosso.

Já em Lúcia, coexistem pureza e pecado, devido à díade corpo X alma, aceita

pelos românticos. A protagonista chega a apresentar dois nomes para reafirmar tal

separação. Sua condição de prostituta é fruto do meio e de aspectos sociais, mas, como

típica heroína romântica, ela possui a qualidade essencial da lealdade. Mesmo se

prostituindo continua leal aos preceitos morais e é por isso que não aceita a realização

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amorosa integral ou mesmo ser mãe. Há, portanto, uma linearidade de caráter na

personagem.

Paulo, na verdade, apaixona-se por Maria da Glória. Pode-se fazer tal afirmativa

levando-se em conta que a primeira aparição da moça na obra se dá no Outeiro da

Glória, e ela está, como se saberá depois, mirando a infância em sua velha casa, do

outro lado da Baía de Guanabara. É como se, naquele momento, sem que ele o

soubesse, ela se transportasse à infância que tanto preza, voltando a ser a impoluta

Maria da Glória que fora antes da prostituta Lúcia e ele enxerga sua alma, transmutando

para seu corpo a castidade e a ingenuidade, como se vê no excerto:

A lua vinha assomando pelo cimo das montanhas fronteiras; descobri nessa ocasião, a alguns passos de mim, uma linda moça, que parara um instante para contemplar no horizonte as nuvens brancas esgarçadas sobre o céu azul e estrelado. Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe esbelto e de suprema elegância. O vestido que o moldava (...) dava esquisito realce a um desses rostos suaves, puros e diáfanos, que parece vão desfazer-se ao menor sopro como os tênues vapores da alvorada. Ressumbrava na sua muda contemplação doce melancolia e não sei que laivos de tão ingênua castidade, que o meu olhar repousou calmo e sereno na mimosa aparição. (Lucíola, cap. II, p. 124)

Bem mais à frente, quando já estavam envolvidos Lúcia e Paulo, é que se

descobre o que, de fato, por que Paulo a havia visto desta forma, como já apontamos na

análise:

Partimos às 4 horas da madrugada numa falua, que atravessou rapidamente a baía e levou-nos à praia de Icaraí. Não sei se ainda aí perto existe um velho casebre, escondido no mato e habitado por uma velha e dois filhos, que nos hospedaram, ou por outra, nos deram sombra e água fresca. Quando Lúcia pôs o pezinho calçado com a botina de duraque preto na areia úmida da praia, pareceu que a mobilidade e agitação das ondinhas que esfrolavam murmurando, comunicou-se-lhe pelo contato. Em um instante chegou à casa, abraçou a velha, correu todos os recantos, o terreiro, o quintal e o mato que se estendia em roda. Ora suspendia-se aos ramos das árvores e colhia os frutos verdes que saboreava com delícia; ora pulava sobre a relva soltando gritos de prazer como as aves quando atitam ao raiar da manhã. E no meio de tudo isso voltava para mim, e me obrigava a tomar a minha parte do prazer que ela sentia. O meio de não

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comer frutas verdes quando elas nos são apresentadas entre duas linhas de pérolas e à sombra de lábios vermelhos, que fugiam furtando o beijo que prometiam? O meio de não fazer toda a sorte de loucuras, quando um talhe esbelto suspende-se ao vosso flanco, e uma voz aveludada murmura uma prece ao ouvido? Almoçamos. Lúcia contentou-se com uma côdea de pão e um copo de leite, que bebeu sentada sobre a pedra.

Depois do almoço ela tomou-me pelo braço: - Foi nesta casa que eu nasci, disse-me ela. Não era então velha como hoje está. Tudo muda; tudo passa! Mostrou-me o lugar onde seu pai costumava trabalhar, onde sua mãe cosia; lembrava-se de todos os cantos, do lugar de cada móvel, da idade de cada fruteira, dos menores incidentes passados nesta área de terra. - Faz sete anos que deixei este lugar; parece-me que foi ontem. Quando venho aqui alguma vez, acho ainda viva e fiel a minha infância tão feliz! Recorda-se da Glória? De lá olhei para esta praia. O senhor estava perto de mim. Mal pensava que três meses depois viríamos aqui juntos! (Lucíola, XVIII, p. 224-225)

A santidade do lugar e a atitude de Lúcia/Maria da Glória neste momento são

sintomáticas: no momento em que Paulo se vê embevecido, aproxima-a mais de sua

‘ identidade pura’ . Ou seja, a visão do narrador é que faz tal aproximação.

O grande problema, e, aliás, o conflito do enredo é exatamente o fato de a

sociedade só enxergar Lúcia. Logo após Maria da Glória ‘nascer’ aos olhos de Paulo, o

Sá derruba toda possibilidade de idealização, fazendo com que Paulo sinta-se um

ingênuo:

- Quem é esta senhora? – perguntei a Sá. A resposta foi o sorrido inexprimível, mistura de sarcasmo, de bonomia e fatuidade, que desperta nos elegantes da corte a ignorância de um amigo, profano na difícil ciência das banalidades sociais. - Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecê-la?... Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana, que confundira a máscara hipócrita do vício com o modesto recato da inocência. Só então notei que aquela moça estava só, e que a ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão, devia-me ter feito suspeitar a verdade. (Lucíola, I, p. 124)

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A beleza, sendo identificada com o prazer, acaba por ofuscar qualquer valor

moral de Lúcia, na visão da sociedade. Sobre esta fala de Sá, discorre brilhantemente

Luís Felipe Ribeiro, ao analisar Lucíola, em seu Mulheres de Papel, num capítulo

intitulado “A virgindade da alma”:

Como num passe de mágica, o narrador passa do embevecimento à indignação. Quando os valores sociais se interpõem entre ele e Maria da Glória, passa a ver nela a figura de Lúcia. O preconceito social se exprime na observação de que uma mulher desacompanhada só poderia ser o que o seu desamparo social revelava. Por outro lado, a observação de Sá, enciclopédia de mundanidade, revela uma outra faceta do mesmo problema. Ao afirmar que ela não era uma senhora, desqualificava-a social e moralmente; mas, ao dizer que é, ao contrário, uma mulher bonita, está sugerindo que a beleza, o erotismo e o prazer só se encontram nessas mulheres “perdidas”. Tese, aliás, que será sustentada por muitas outras narrativas, e não só dentre as pertencentes ao chamado Romantismo. O prazer e a instituição não podem ser encontrados juntos nesse universo de convenções e repressões que se chama a “boa sociedade”.19

Levando-se em consideração que houve a própria “queda do anjo” , na visão de

Paulo, neste momento, a derrubada foi operada por Sá, representante da “boa

sociedade”. Mas Paulo não se conforma e a decepção é tanta que o acontecimento é

reiterado em outros momentos da narrativa, ainda que de forma metafórica:

Nunca lhe sucedeu, passeando em nossos campos, admirar alguma das brilhantes parasitas que pendem dos ramos das árvores, abrindo ao sol a rubra corola? E quando ao colher a linda flor, em vez da suave fragrância que esperava, sentiu o cheiro repulsivo de torpe inseto que nela dormiu, não a atirou com desprezo para longe de si? (Lucíola, II, p. 127)

Na casa de Sá, durante uma orgia, há o ponto culminante da degeneração de

Lúcia. A partir daí, se dá o encontro das almas entre ela e Paulo, num ‘crescendo’

redentor: a descoberta do amor, o afastamento do ambiente de luxúria da cidade para o

retiro purificador – uma chácara em Santa Teresa e, enfim, a morte, que, assim como no

19 RIBEIRO, 1996: p. 94-95.

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Simbolismo, liberta a alma pura de um corpo-cárcere para sempre marcado pela

prostituição.

A tão estudada dualidade entre corpo e espírito faz com que um realmente

exclua o outro, pois quando Lúcia assume completamente o seu lado Maria da Glória,

retirando-se para a casa de Santa Teresa, são excluídos também os contatos físicos entre

o casal, como se estes fossem próprios da cortesã Lúcia e conspurcassem a alma “Maria

da Glória” . Tal como os simbolistas desenvolverão mais tarde, no caso desta, o corpo é

o cárcere da alma e é por isso que ela morre: liberta o espírito para amar Paulo.

Nas influências sofridas por Alencar em Lucíola, vale que se ressalte A Dama

das Camélias, de Dumas, que apresenta muitos pontos de contato com o romance do

escritor brasileiro: a protagonista prostituta dividida entre a pureza do amor e a mácula

do corpo é o tema decalcado.

Assim, Lucíola, Inocência e Iracema constituem o paradigma do amor

idealizado, romântico, trágico, na Literatura Brasileira.

2.2.1 - O obstáculo à realização do amor em Lucíola: desejo X virtude

Lucíola representa o verdadeiro embate entre a visão de “amor ferinus” , que a

sociedade imputa tradicionalmente às prostitutas, e “amor divinus” , aquele

experimentado em relação a Paulo. Tal divisão é conceituada pela estudiosa Marilena

Chauí em um ensaio intitulado “O fogo escondido” , e publicado na coletânea O Desejo,

organizada por Adauto Novaes, que demonstra o tema-título sob diversas óticas, de

correntes diversas da psicologia e da filosofia: “ amor ferinus, desejo sensual para

sempre carente e insatisfeito, e amor divinus, desejo intelectual destinado à bem-

aventurança da plenitude” 20. Segundo o conceito da autora, com o qual fazemos coro,

o amor e a morte de Lúcia representariam não apenas a purificação da alma, mas

também a realização da plenitude amorosa, não significando, portanto, um desfecho

trágico.

20 CHAUÍ,1990: p. 23

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Tão pungitivo poderia ser o desejo e tão íntima a contemplação, que desprendesse completamente e retirasse a alma do corpo, enquanto os espíritos se desligam, devido à sua forte e apertada união, de tal forma que a alma, prendendo-se ternamente no desejado e contemplando o objeto, poderia em breve tempo deixar o corpo de todo exânime [...] Por isso os sábios declaram que os bem-aventurados morrem beijando a divindade [ morte per bocha di Dio], arrebatados pela amorosa contemplação e união divina21

Sobre este ponto, também nos fala Antonio Candido: “A imagem da mulher

triparte-se na mulher-pureza que enobrece com o seu amor sincero; na mulher-sedução

que se torna corruptora; e naquela que, envilecida, pode ser redimida pelo amor.”22

O crítico relaciona o primeiro tipo a Aurélia, de Senhora, e os outros dois a

Lúcia/ Maria da Glória, de Lucíola. No entanto, a última consegue, na verdade,

concentrar os três tipos, já que aparece envilecida pela posição de prostituta, como por

exemplo na orgia em casa de Sá; como possuidora de um sentimento puro, quando se

dedica exclusivamente a Paulo, sem trocas monetárias, e redimida ao renunciar à vida e

tornar-se só amor, só espírito.

O Romantismo brasileiro apresentava uma tendência à religiosidade cristã. Esta,

por sua vez, herdou do estoicismo romano a concepção de que ao desejo está ligada à

perda da virtude. Nos estudos sobre o tema, diz-se até que a expressão “prazeres

vergonhosos” seria um pleonasmo.

Marilena Chauí, ainda no ensaio anteriormente referido, cita Sêneca, e nos diz

que o pensador “ realça com ainda mais força essa associação de ‘prazer’ com ‘maus

costumes’ :

[...] O prazer habitualmente se esconde e procura as trevas, fica nas vizinhanças das casas de banho, das saunas e dos lugares que temem a polícia; é mole, não tem força, é úmido de vinhos e perfumes, pálido ou pintado, embalsamado com ungüentos como um cadáver23

Diante de tais proposições e das considerações sobre a tendência religiosa do

período literário em que a obra está inserida, pode-se entender porque Paulo evita Lúcia

21 CHAUÍ, 1990:p.23 22 CANDIDO & CASTELLO, 1987: p. 159. 23 CHAUÍ, 1990: p. 67

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com todas as suas forças e, como, ao narrar, usa as mesmas tintas de Sêneca ao falar do

prazer. O capítulo VI de Lucíola, que compreende algumas das descrições mais ricas da

obra, exemplifica bem a idéia do prazer escondido, embalsamado por bebidas, comidas

e perfumes. Trata-se do capítulo destinado a narrar a festa em casa do Sá. O primeiro

fator enfatizado é exatamente o isolamento da casa em que se dará a orgia, para que

nada de vergonhoso/ prazeroso ‘escape’ do ambiente:

Sá habitava, num dos arrabaldes da corte, uma chácara, que caprichara em preparar. (...) A sua casa de moço solteiro estava para isso admiravelmente situada entre os jardins, no centro de uma chácara ensombrada por casuarinas e laranjeiras. Se algum eco indiscreto dos estouros báquicos ou das canções eróticas escapava pelas frestas das persianas verdes, confundia-se com o farfalhar do vento na espessa folhagem; e não ia perturbar, nem o plácido sono dos vizinhos, nem os castos pensamentos de alguma virgem que por ali velasse a horas mortas.(Lucíola, cap.VI, p. 145)

Quanto à citada ‘umidade’, o capítulo é rico em exemplos de embriaguez, sendo

citadas várias bebidas alcoólicas: o borgonha, o porto, ‘kirsch’ , ‘ rum’, gengibrada,

assim como há referências às cores, sabores e aromas marcantes:

Não lhe falo da ceia que nada tinha de especial. Suntuosa e delicada, como a sabem preparar aqui, sorria aos olhos e trescalava de aromas penetrantes e deliciosos, que iam prurir as fibras gástricas. Esse perfume sibárico e o aspecto brilhante das iguarias esquisitas, entre as irradiações do cristal e os reflexos áureos, rubros ou violáceos do madeira, do porto e do borgonha, é talvez o mais delicado acepipe que um anfitrião de gosto oferece aos seus hóspedes; porque nesse bocado homérico os olhos e o olfato servem com fartura ao paladar um pouco de tudo; um primor de todos os manjares que a capacidade do estômago não permite absorver. .(Lucíola, cap.VI, p. 145)

Quanto à palidez e à maquiagem, há exemplos em capítulos diversos: “Estava

excessivamente pálida, e cor escarlate do vestido ainda lhe aumentava o desmaio(...)

Entretanto nunca essa mulher me pareceu tão bela” .(Lucíola, cap.XIII, p. 190)

Toda a obra é pontuada desses exemplos, representando, a um tempo, a época

em que foi produzida e todo o preconceito da sociedade, ao qual não ficaram refratários

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os próprios protagonistas. Os estudos de Antonio Candido corroboram esta visão, o que

se comprova quando este diz que “(...) o Romantismo aparece realmente com o

Cristianismo; com a noção de pecado, os dramas da consciência, o dilaceramento

interior.”24

José de Alencar assume a moral cristã, presente desde o início do Romantismo,

em contraposição aos ideais clássicos de literatura. O cristianismo prega a castidade

feminina antes do casamento, havendo, inclusive, na cerimônia religiosa, uma

simbologia que a representa: vestido branco, flores de laranjeira... e sendo a mácula do

corpo motivo para anulação da união religiosa, caso o noivo a pleiteie. E Lúcia

cristaliza esta moral e todo o preconceito arraigado na sociedade: como a perda da

virgindade é irrevogável, assim como o seu passado de comércio do corpo, ela está

eternamente condenada a não se unir a ninguém por amor, ainda que tal união passe

longe da igreja. Segundo a própria Lúcia, “essa palavra divina do amor, minha boca

não a devia profanar enquanto viva” (Lucíola, XXI , p.249 )

Confirma-se tal perspectiva quando Lúcia oferece a mão de sua casta irmã Ana

em casamento a Paulo: ela estaria pronta a desposá-lo. E o discurso acena exatamente

com a impossibilidade que a interdita ao amor integral de Paulo:

Porque este sonho não se realizaria, querendo tu? Seria a consagração da minha felicidade. Sim; não há sacrifício de minha parte. Ana te daria os castos prazeres que não posso dar-te; e recebendo-os dela, ainda os receberias de mim. Que podia eu mais desejar neste mundo? Que vida mais doce do que viver da ventura de ambos? Ana se parece comigo; amarias nela minha imagem purificada, beijarias nela os meus lábios virgens; e minha alma entre a sua boca e a tua gozaria dos beijos de ambos. Que suprema delícia... (Lucíola, XXI, p. 246)

O desespero de Lúcia faz com que, em nome da moral, faça a Paulo uma

proposta completamente amoral como sendo algo simples e comum. Ela busca uma

forma de não transformar a autopunição em castigo a ele também.

Há que se destacar que a idéia de que Lúcia está completamente perdida parte de

sua própria ótica, não sendo compartilhada por Paulo. Ele, por sua vez, se compara a

24 CANDIDO, 1979: p. 300.

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ela e confessa não ser puro nem de alma. Mas Lúcia não leva isso em consideração,

pois os costumes machistas vigentes não prescrevem a castidade masculina. Pelo

contrário: para preservar o casamento e a pureza de suas noivas e esposas é necessário

que freqüentem as mulheres de vida fácil a fim de saciar-se dos prazeres mundanos, -

como numa questão de equilíbrio necessário. Alencar, decididamente, cendossa a moral

vigente, nesse aspecto. Mas não só a impossibilidade do matrimônio pune Lúcia pela

mácula física: seu corpo não pode também abrigar a pureza de um filho com aquele a

quem ama com toda a alma, matando este fruto, pois.

Se Lúcia não pode ser perdoada e, portanto, está definitivamente impedida para

o matrimônio e para a maternidade, social e religiosamente, é como se o seu amor e o de

Paulo não existisse, ainda que ele tenha aceitado a relação sem contato carnal,

convivendo diariamente com a amada, felizes, enfim. Dada a falta de saída, de frutos,

de continuidade mesmo, para esse amor cheio de obstáculos, morre o corpo de Lúcia,

para que estes sejam eliminados de vez.

Não é incomum, no Romantismo, a exclusão da relação física no amor –

cultuam-se amores puros e idealizados, e a sexualidade é, não raro, a parte “suja” das

relações amorosas. Em Lucíola é descartado o sexo entre Maria da Glória e Paulo, para

viverem em paz; em O Guarani, Loredano é o único personagem portador de um desejo

sexual desvelado – e é o vilão.

O homem romântico expressa uma nova ordem social e, se exprime a sua

experiência individual, é porque se deixa envolver pelo clima do momento. Caso o

autor se mostre muito inovador, questionando sobremaneira a realidade circundante, a

obra não é bem aceita, como aconteceu com a peça teatral alencariana As asas de um

anjo, embora Lucíola seja construção quase idêntica. O fato é que condizia muito mais

com o momento social que a relação entre Paulo e Lúcia não passasse dos domínios da

alcova. Seria inaceitável que um homem constituísse família com uma prostituta e

circulasse incólume na sociedade. E se a vida resolvesse imitar a arte?

Há uma aproximação das linhas gerais da peça teatral As asas de um anjo e do

romance Lucíola. Em ambos uma moça oriunda de família pobre perde-se na

prostituição, mas conserva um amor puro, resguardado de toda a sujeira mundana.

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Ainda assim, a protagonista da peça, Carolina, delineia-se muito mais pérfida

que Lúcia. Em contrapartida, o herói, Luís, é muito mais puro e nobre que o Paulo do

romance.

Outras diferenças importantes distanciam tais obras de diferentes gêneros: Lúcia

já surge na narrativa quando prostituta; Carolina, ainda pobre, sonhando com riquezas e

com um tal moço da sociedade, o Ribeiro, que foge com ela. Em Lucíola, a

protagonista interdita seu corpo à concepção; na peça, Carolina chega a ter uma filha,

mesmo que de outro homem que não Luís.

Apesar destes distanciamentos há pontos de contato inegáveis, talvez cenas

inspiradoras do romance, já presentes no texto dramático. Os sonhos de festas, jóias e

luxo, reiterados por Carolina, transformam-se na realidade repudiada por Lúcia.

Vejamos a semelhança entre este trecho da peça e a cena da orgia em casa do Sá, que

acontece exatamente após uma apresentação teatral, em Lucíola:

RIBEIRO: Tu és bonita, e Deus criou as mulheres belas para brilharem como as estrelas. Terás tudo isso, diamantes, jóias, sedas, rendas, luxo e riqueza. Eu te prometo! Quando apareceres no teatro, deslumbrante e fascinadora, verás todos os homens se curvarem a teus pés; um murmúrio de admiração te acompanhará; e tu, altiva e orgulhosa, me dirás em um olhar: Sou tua. CAROLINA: Tua noiva? RIBEIRO: Tudo, minha noiva, minha amante. Depois iremos a nossa felicidade e o nosso amor num retiro delicioso. Oh! Se soubesses como a vida é doce no meio do luxo, em companhia de alguns amigos, junto daqueles que se ama, e à roda de uma mesa carregada de luzes e flores!... o vinho espuma nos copos e o sangue ferve nas veias; e os olhares queimam como fogo; os lábios que se tocam esgotam ávidos o cálice de champagne como se fossem beijos em gotas que caíssem de outros lábios... Tudo fascina; tudo embriaga; esquece-se o mundo e suas misérias. Por fim as luzes empalidecem, as cabeças se reclinam; e a alma, a vida, tudo se resume em um sonho (As asas de um anjo, p.227/228)

Também em As asas de um anjo toca-se na divisão corpo X alma, tão cara ao

Romantismo. Na voz da protagonista Carolina, lemos: “- E que zombem, não faz mal.

Toda a criatura boa tem seu fraco; assim, toda a mulher, por mais desgraçada que

seja, conserva sempre um cantinho puro onde se esconde a sua alma. “ (As asas de um

anjo, p. 263)

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Em gérmen, há também, em As asas de um anjo, o destino de Lúcia, em Lucíola.

A sociedade e, com ela Paulo e própria Lúcia não perdoa a mácula do corpo à mulher.

Na fala de Carolina é possível apreender tal posicionamento social que, se não é efetivo

em relação a esta (pois ela não é abandonada pelos amigos e todos estão sempre à sua

volta, dispostos a perdoá-la), põe-se no tocante a Lúcia, no romance de Alencar.

Vejamos o trecho da peça que diz respeito a isso:

LUÍS – Não fale assim, Carolina; a sociedade perdoa muitas vezes. CAROLINA – Perdoa a um homem como este; recebe-o sem indagar do seu passado, sem perguntar-lhe o que foi; contanto que tenha dinheiro, ninguém se importa que a origem dessa riqueza seja um crime ou uma infâmia. Mas, para a pobre moça que cometeu uma falta, para o ente fraco que se deixou iludir, a sociedade é inexorável! Por que razão? Pois a mulher que se perde é mais culpada do que o homem que furta e rouba? MENESES – Não, decerto! CAROLINA – Entretanto, ele tem um lugar nessa sociedade, pode possuir família! E a nós, negam-nos até o direito de amar! A nossa afeição é uma injúria! Se alguém se arrependesse, se procurasse reabilitar-se, seria repelida; ninguém a animaria com uma palavra; ninguém lhe estenderia a mão... (As asas de um anjo, p. 274)

As asas de um anjo está muito mais inserida nos moldes cristão do Romantismo

do que Lucíola, embora a peça tenha sido proibida após apenas três exibições. Vejamos

um dos trechos exemplares de tal afirmação:

MENESES – (...) Há criaturas neste mundo que se tornam instrumentos da vontade superior que governa o mundo. Não foi Carolina que o arruinou, que do moço rico fez um cocheiro de tílburi; foi, sim, a vaidade, a imprudência, e o desregramento das paixões, sob a forma de uma moça. Incline-se, pois, diante da Providência; e respeite na mulher desgraçada a vítima do mesmo erro, e o agente de uma punição justa. (as asas de um anjo, p. 276)

A crítica social alencariana condiz com o desenvolvimento do Romantismo não

só no Brasil, como também na Europa. As mudanças sócio-econômicas imprimiram no

estilo certas aspirações reivindicatórias, principalmente contrárias às bases sobre a qual

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se estruturava a sociedade. E José de Alencar reflete a tendência questionando

costumes.

O amor-paixão, neste contexto, “reclama seus direitos e sua liberdade em face

de restrições ou preconceitos de ordem moral e social” 25 e é, em Alencar,

importantíssima peça do já citado questionamento. O amor puro entre Lúcia e Paulo,

por exemplo, inconcebível pela sociedade pelo fato de ela ser uma prostituta, realiza-se,

a despeito da ordem moral estabelecida.

É certo que triunfem a intuição e a fantasia no Romantismo, mas ainda assim o

questionamento da sociedade é feito sob os limites do bom senso do autor, para que sua

obra não seja relegada à marginalidade. Autor, personagens e sentimento amoroso

vêem-se sob o jugo da opinião pública, ou seja, a liberdade criadora dos artistas é, em

parte, condicionada por normas sociais. Eles têm a escolha das situações e dos choques,

mas estas provêm do aspecto cultural.

O amor entre Paulo e Lúcia, ainda que não ofereça ao leitor o “ final feliz” ,

exprime o questionamento, a insatisfação com o estado de coisas: é uma expressão de

inconformismo social e de ideal libertário. Lúcia só retrocede na luta pelo amor porque

reconhece que a pressão social faria Paulo infeliz, se assumissem tal sentimento. Além

disso, ela também internalizou o preconceito acerca da sua condição, visto que também

fazia parte da sociedade (aliás, a função social da prostituta, de equilíbrio da libido, é

histórica). A não aceitação do amor de Paulo por Lúcia justifica-se pelo fato de a

prostituição ser tida como irremediável, maculadora até mesmo da alma.

A aceitação total do amor, da maternidade, da carnalização unida ao espírito

aproximaria Lúcia da realidade, destituindo-a do caráter de heroína romântica e, ainda

mais, alencariana.

Alencar não opera o questionamento social através da trajetória de Lúcia,

propriamente, mas através da narração e do amor de Paulo. Os laivos de preconceito

que aparecem neste narrador são, geralmente, exteriores, impostos por marcadores

sociais, como o Sá. A sua recusa de fato se mostra tênue, mas inteligível dentro do

contexto da obra: diferentemente do Luís, de As asas de um anjo, Paulo sequer sugere

um casamento regular, porque ele também, de certa forma, internalizou os preconceitos.

25 ALENCAR, 2002: p. 232

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A revelação do interior dos protagonistas coloca o leitor a seu favor e talvez por

esse motivo a renúncia de Lúcia à vida não revele uma aceitação passiva da

infelicidade.

Diz-nos Antonio Candido, sobre o Romantismo, que, “ao ideal de pureza do

amor, junta-se a noção dos direitos do coração, o que freqüentemente vai de encontro

aos valores sociais e morais” .26 E continua, numa análise passível de ser relacionada ao

amor, conforme apresentado em Lucíola: “nesse caso, chega-se mesmo à defesa do

amor livre de conveniências ou convenções, só justificado perante Deus.”27

Tu me purificaste ungindo-me com os teus lábios. Tu me santificaste com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o consórcio de nossas almas se fez no seio do Criador. Fui tua esposa no céu! E contudo essa palavra divina do amor, minha boca não a devia profanar, enquanto viva. Ela será meu último suspiro. .(Lucíola, cap.XXI, p. 249)

O fato de Lucíola, de Alencar, e Inocência, de Taunay romperem com os

padrões sociais, não só representa uma crítica a tais padrões, conforme já era usual na

literatura alencariana, como também reforça a característica do individualismo

romântico. O destino de cada personagem, sendo uno, separa-o da sociedade,

contrapondo-se mesmo a ela.

O individualismo, destacando o homem da sociedade ao forçá-lo sobre o próprio destino, rompe de certo modo a idéia de integração, de entrosamento – quer dele próprio com a sociedade em que vive, quer desta com a ordem natural entrevista pelo século XVIII. Daí certo baralhamento de posições, confusão na consciência coletiva e individual, de onde brota o senso de isolamento e uma tendência invencível para os rasgos pessoais, o ímpeto e o próprio desespero.28

É este individualismo que será especialmente rejeitado pelos realistas. Nas

obras românticas citadas, o ímpeto de Inocência, de querer desafiar a tradição do

casamento arranjado e o amor puro entre a prostituta Lúcia e um rapaz da sociedade são

26 CÂNDIDO & CASTELLO, 1987: p.159 27 CÂNDIDO & CASTELLO, p. 159 28 CÂNDIDO, 1979, p. 23.

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mais uma autêntica prova do individualismo romântico de que estão imbuídas tais

personagens. E a temática amorosa é o instrumento desta reiteração.

A dialética perceptível no conflito entre indivíduo e grupo, apresentada em

Lucíola (a prostituta que se apaixona X toda a sociedade em que está inserida) é muito

cara à imaginação romântica. É fruto da transfiguração normal operada na realidade

para o romance; realidade essa, observada, herdada e transmitida.

A atitude de recusa de Lúcia é tipicamente romântica por significar a dolorosa

consciência do irreversível.

Além disso, o desfecho romântico pode ser trágico, desde que sentimental, já

que, em geral, os românticos buscam uma desobediência a regras, contrapondo-se à

fixidez do neoclassicismo. Imprime-se a perspectiva pessoal do autor, o que exclui a

necessidade de desenlaces perfeitamente felizes como o de A moreninha, de Joaquim

Manuel de Macedo.

Lúcia, assim como o eu-lírico das poesias ultraromânticas, prefere abandonar-se

à morte, oferecendo a irmã a Paulo, a macular sentimento tão puro com seu corpo

marcado pelo passado de prostituição. Destarte, em nome do amor, Lucíola vai do

vulgar ao sublime, do poético ao sarcástico e prosaico. “De qualquer forma, o que há

de substancial na temática romântica é a reivindicação da liberdade de exprimir a vida,

a partir da condição individual, surpreendendo a sua riqueza interior e a sua

inadequação à realidade”29

A entrega da personagem à morte corresponde ao sentimento dos poetas do Mal

do Século: em parte, o desejo de fuga, bastante encontradiço na literatura romântica; em

parte uma significativa manifestação de associação do sentimento amoroso à idéia de

morte, representando a libertação da alma e do sentimento puro do corpo-cárcere

(metáfora tão cara, posteriormente, aos simbolistas).

A fuga se justificaria exatamente pela irreversibilidade das marcas deixadas pela

vida mundana: por não se considerar e não ser considerada digna de usufruir de um

amor verdadeiro.

Já a associação entre amor e morte sugere a transcendência, a purificação a que

os dois podem levar. Segundo esta abordagem, Lúcia segue o paradigma romântico do

sentimentalismo masoquista, morrendo por amor. A morte, inclusive, a transforma em

29 CANDIDO & CASTELLO, 1987: p. 162.

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uma espécie de heroína, como se seu caráter ilibado e seu puro amor ficassem mais

convincentes se postos acima da harmonia sentimental.

Se não há lógica na atitude de Lúcia ao oferecer sua irmã para casar-se com

Paulo, esta é exatamente uma atitude em conformidade com o estilo romântico. Trata-

se ao mesmo tempo de uma ação simbólica da recusa a si própria e de profundo amor a

Paulo, por querer oferecer-lhe o que via de melhor no mundo: a pureza . O ilogismo, o

desrespeito às tradições e convenções são algumas das tônicas do espírito romântico.

Na verdade, a tentativa de se fazer “trocar” por Ana na união com Paulo

representa o ápice do delírio doloroso de Lúcia, a exacerbação do sentimento e da

paixão, que, bem ao estilo romântico, contraria qualquer atitude racional ou previsível.

O desfecho representa um meio-termo entre o que constituiria a verdade

sentimental e o que seria a verdade histórica. Vale lembrar que, além da nobreza de

sentimentos e da elevação de caracteres, são características do Romantismo os detalhes

de costumes e de cor local, assim como o fornecimento de uma ilusão do verdadeiro,

real e acontecido. Sendo assim, nem Lúcia vence a sociedade tradicional, nem

Inocência e Cirino, da obra de Taunay vencem os costumes patriarcais. A realidade,

nesses casos, é bem idealizada, assim como a perfeição do sentimento amoroso. Mas o

desenlace, não.

Antonio Candido, ao analisar os pontos-de-vista de Machado de Assis, produz

um trecho que explica bem o compromisso a que se atam tais finais de obras:

Entendeu que os estilos sucessivos, através do tempo, representam, do ponto de vista histórico, compromissos circunstanciais com o momento e a ideologia dominante, o que determina o tratamento temático, enquanto se processa o aprimoramento dos recursos expressivos.30

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2.2.2. Lucíola: a exaltação do amor através da ótica do narrador –personagem

Através das lentes de Paulo, em Lucíola, percebe-se que a imagem da

protagonista depende de como ele a julga em determinado momento. Ela aparece

abatida, doente, quando os acontecimentos fazem-na sofrer; descrevê-la assim é uma

espécie de preparação realizada pelo narrador, que sabe antecipadamente de sua morte

ocasionada pelas ‘chagas da alma’. Por outro lado, muito bela aparece Lúcia ao

entregar-se a Paulo por amor. Quanto a esta reprodução física de Lúcia, feita por ele,

pode-se aproximar do conceito de “ imagem criada” , de Bachelard. Segundo ele, há um

distanciamento entre a imagem percebida e a imagem criada, como duas instâncias

psiquicamente diferentes e, para explicitar o conceito, o mesmo autor cita Novalis: “Da

imaginação produtora devem ser deduzidas todas as faculdades, todas as atividades do

mundo interior e do mundo exterior”31

É exatamente impregnando a imagem de Lúcia com seus próprios sentimentos

que Paulo produz determinadas imagens.

O rosto cândido e diáfano, que tanto me impressionou à doce claridade da lua, se transformara completamente: tinha agora uns toques ardentes e um fulgor estranho que o iluminava. Os lábios finos e delicados pareciam túmidos de desejos que incubavam. Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da narina que tremiam com o anélito do respiro curto e sibilante, e também nos fogos surdos que incendiavam a pupila negra. .(Lucíola, cap.IV, p. 136)

A forma autobiográfica forjada por Alencar na narração de Paulo dá ao leitor de

Lucíola a ilusão de que o romance penetra diretamente no coração da personagem,

apenas com a intermediação do tempo.

Aliás, esta prática pode ser considerada típica da narrativa romântica, que

permeia a narrativa de subjetividade. Antonio Candido versa sobre o assunto da

seguinte maneira: “Se em primeira pessoa, sobretudo quando o romance, novela ou

conto são em forma epistolar, adquirem ênfase o subjetivismo e a sentimentalidade,

30 CANDIDO & CASTELLO, 1979: p. 299. 31 NOVAES, 1990: p. 13

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assim como o tom confidencial da narrativa” 32. E é exatamente desta forma que se

constrói Lucíola: Paulo como narrador em primeira pessoa, fazendo ainda a introdução

à narrativa na forma epistolar, embora o desenrolar do enredo se distancie desta, tal o

envolvimento com os fatos narrados.

De acordo com as impressões de Paulo, dá-se mais ou menos relevo às cores

com que Lúcia está vestida, variando, inclusive, com a cena narrada. O ‘quadro’

pintado tem ligação direta com o aspecto psicológico do narrador, assim como com o

posicionamento da protagonista nas diferentes partes da narrativa. Como afirma Helmut

Hatzfeld:

A exaltação da visão e a ênfase na sensação (...) recorrem a substantivos vistosos e a epítetos coloridos, os quais acabam, afinal, mudando a tônica de um estilo verbal, necessariamente mais pálido, para um estilo nominal pictórico, no qual até as nuances psicológicas só logram expressar-se por traços e gestos fisionômicos.33

Em Lucíola tal estratégia é recorrente, chegando a criar certa curiosidade no

leitor no que diz respeito à simbologia das cores e sua relação com os sentimentos

suscitados em determinados trechos da obra. No momento em que Paulo vê Lúcia no

Outeiro da Glória, desconhece sua posição social. As cores com que a envolve são

sóbrias, elegantes, em nada lembram a volúpia daquela que virá a conhecer, tanto que

diz realçarem pureza, suavidade. A natureza condiz com essa atmosfera e o céu mostra-

se limpo: azul e estrelado, como mais um elemento identificador do estado de espírito

do narrador. Na verdade, a visão de Paulo é que, ainda pura, pinta um quadro de pureza

naquilo que vê.

A lua vinha assomando pelo cimo das montanhas fronteiras; descobri nessa ocasião, a alguns passos de mim, uma linda moça, que parara um instante para contemplar no horizonte as nuvens brancas esgarçadas sobre o céu azul e estrelado. Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe esbelto e de suprema elegância. O vestido que o moldava era cinzento com orlas de veludo castanho e dava esquisito realce a um destes rostos suaves, puros e diáfanos, que parecem vão desfazer-se ao menos sopro, como os tênues vapores da alvorada. Ressumbrava na sua muda contemplação doce melancolia e não sei quê laivos de tão ingênua castidade, que o meu olhar repousou calmo e sereno na mimosa aparição. (Lucíola, cap. II p. 124 - grifos nossos)

32 CANDIDO & CASTELLO, 1979: p. 166 33 COUTINHO, 2002: p. 10.

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Depois, durante a sua relação com Lúcia, Paulo traz à baila rendas, penas

escarlates, ornatos caríssimos, jóias... tudo o que identificaria a cortesã, (“Júbilo

satânico dava a essa criatura ares fantásticos e sobrenaturais entre as roupas de negro

e escarlate” 34 – Lucíola, XIV, p. 195) para, ao final, destruir essa imagem e voltar à

moda da virgem pura, a renascida Maria da Glória, no retiro de Santa Teresa, “ com a

timidez de seu olhar velado pelos longos cílios, com o modesto recato de sua graça e o

seu vestido de cassa branca, Lúcia parecia-me agora uma menina de quinze anos, pura

e cândida” .( Lucíola, cap. XVIII p. 224)

O romancista usa como pretexto o amor de Paulo para fazê-lo porta-voz de cenas

detalhadíssimas e, segundo Heron de Alencar, “ para ele a arte de narrar consistia em

pintar com as palavras. Daí o predomínio do elemento descritivo, a descrição tendo

mais importância do que a coisa descrita” 35.

Para a construção do sentimento amoroso, tais observações são cruciais, pois “a

passagem da imagem à imaginação traz uma diferença fundamental para a questão do

desejo” 36 Paulo ama a Lúcia que criou em sua imaginação, o que a aproxima do padrão

da heroína romântica, idealizada, já que a história passa por ele, que funciona como

‘ filtro’ do que seria a imagem. Sobre imagem e imaginação, levamos em conta aquí o

conceito adotado por Adauto Novaes, que cita, por sua vez, Marilena Chauí:

A imaginação é idéia imaginativa , como escreveu Marilena Chauí: “A imagem tem uma origem corporal (imago) e uma réplica anímica (imaginatio) – é uma afecção do corpo e uma representação dessa afecção. Quando imagina, a alma não tem idéia da imagem; simplesmente possui uma representação da imagem, razão pela qual ‘ reproduz figuras das coisas’ . A imaginação não é imago nem figura, é idéia imaginativa37

A construção de Lucíola tendo Paulo como narrador-personagem faz com que a

liberdade de expressão da paixão avassaladora seja maior, de um colorido mais vibrante,

excluindo qualquer tom de objetividade.

A tradução deste trecho, originalmente em inglês, encontra-se na página 10 da mesma obra. Os grifos são nossos.

35 COUTINHO, 2002: p. 268 36 NOVAES, 1990:. p. 13 37 NOVAES, 1990: p. 52.

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Como Paulo está num tempo posterior ao do enunciado, vale-se da memória e do

sentimento de reviver situações através da narrativa, portanto a figura de Lúcia é

imaginação de Paulo e não imagem, tamanho o envolvimento do narrador.

Sendo assim, Paulo se apaixona ao ver Lúcia na carruagem, antes de conhecê-la.

A imagem que faz da amada cai por terra, ‘morre’ , ao se deparar com a realidade de que

é uma prostituta. Ainda assim a imaginação romântica acena com a possibilidade de

que o seu amor por ele seja puro, diferente. Esse embate é gerador da complicação do

enredo e fonte das idéias contraditórias de Paulo à época do enunciado.

Na verdade, o que muitas vezes não se percebe é que ‘puro’ mesmo é Paulo,

cujo coração não consegue aceitar os motivos racionais que lhe impõe a sociedade e,

embora hesite, acaba por aceitar Lúcia/Maria da Glória (mesmo sem assumir uma

relação formal, é bom ressaltar) já que é a segunda que o seu coração enxerga.

Mesmo que ao Romantismo seja permitido qualquer tipo de idealização, Alencar

cria uma provável motivação para esta pureza d’alma de Paulo: ele não foi criado na

Corte e não está acostumado a certas mundanidades, ainda que não desconheça de todo

os prazeres efêmeros, não reconhece quem se dedica a ele.

A própria Lúcia percebe o que/quem Paulo vê nela e, como prova deste

reconhecimento, ela lhe diz, à beira da morte: “Tu me santificaste com o teu primeiro

olhar” (Lucíola, XXI , p.249 )

Ainda que enxergue o caráter primordial da amada, ele a deseja, e só deixa de

lado o prazer de tê-la para não torturá-la:

A sua saída repentina fora um ato de desespero para vencer o gélido espasmo que a marmorizava. Tinha quase esvaziado uma garrafa de kirsch. Acreditei enfim na sinceridade da repugnância de Lúcia; renunciei de uma vez ao meu desejo. Sentia profunda compaixão por essa mulher. O seu pranto me enterneceu; chorei com ela. (Lucíola, XVIII, p. 222)

Paulo, além de enxergar Maria da Glória, narra para consolidar o seu amor e

para trazer a público esta faceta de Lúcia, redimindo-a perante a sociedade.

No tempo da enunciação, pode-se considerar que tudo é imaginação de Paulo,

visto que os fatos em sua totalidade dependem apenas da memória. A metaforização,

comum nas obras alencarianas, pode, em Lucíola, ser interpretada como uma

confirmação de que os acontecimentos e o próprio caráter da protagonista são revestidos

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da imaginação romântica do narrador. Estão intimamente ligados, portanto, à

imaginação ao amor e ao desejo.

Discursar sobre a natureza das coisas por meio de metáforas e alegorias nada mais é do que se divertir e jogar com palavras vazias porque esses esquemas não exprimem a natureza das coisas, mas apenas suas semelhanças e aparências [...] Todas as teorias, na filosofia, expressas somente com termos metafóricos, não são verdades reais, porém meros produtos da imaginação38

Assim sendo, infere-se que o sentimento amoroso é de suma importância na

narrativa romântica pela razão de despertar facilmente a capacidade de identificação no

leitor. Sua força, aliada à linguagem rica em imagens e comparações, diminui a

importância significativa da própria palavra.

Tal sentimento, assim como todas os outros que evocam emoções, é fundamental

para tal estilo, em que qualquer palavra parece não exprimir o que vai n’alma: há no

espírito romântico uma profunda vocação lírica. Antonio Candido versa sobre essa

incapacidade de expressão frente às emoções, tendência romântica: “Entende-se bem

que um movimento literário, marcado pelo sentimento de inferioridade da palavra ante

o seu objeto, tendesse à aliança com a música como verdadeiro refúgio: a música, que

exprime o inexprimível, poderia atenuar as lacunas do verbo”39

As evocações sentimentais para fins de identificação do leitor com a obra eram

não só uma questão de estilística, mas pragmática, devido à circunstância da falta de

leitores e de difusão intelectual satisfatória. E a receita para se alcançar o intento era:

emoção fácil e amor em detalhes.

38 CHAUÍ, 1990: p. 52 39 CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira, vol.II, p. 35

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2.3 – Amor e sensualidade na prosa romântica brasileira

José de Alencar ousa tratar em Lucíola do aspecto carnal do amor de maneira

bastante direta, pois, à época, este era retratado nos romances como um sentimento

quase assexuado. Mesmo assim, tais imagens só foram evocadas por Lúcia ser uma

prostituta, ainda que “vitimada” pelo sentimento verdadeiro.

Lucíola apresenta uma forte marca de sugestão sensual. No entanto, as cenas

que sugerem maior sensualidade não estão ligadas diretamente ao amor e ao desejo, e

sim à revolta de Lúcia por sua condição. Uma delas é o já citado episódio da festa na

casa do Sá, em que Lúcia faz um strip-tease; a outra se dá ao perceber as intenções

pouco louváveis de Paulo nas primeiras vezes em que vai a sua casa:

Passei-lhe o braço pela cintura e apertei-a ao peito; eu estava sentado, ela em pé; meus lábios encontraram naturalmente o seu colo e se embeberam sequiosos na covinha que formavam nascendo os dois seios modestamente ocultos pela cambraia. Com o seu primeiro movimento, Lúcia cobriu-se de ardente rubor; e deixou-se ir sem a menor resistência, com um modo de tímida resignação. Quando porém os meus lábios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as formas encantadoras que debuxavam a seda, pareceu-me que o sangue lhe refluía ao coração. As palpitações eram bruscas e precípites. Estava lívida e mais branca do que o alvo colarinho do seu roupão. Duas lágrimas em fio, duas lágrimas longas e sentidas, como dizem que chora a corça expirando, pareciam cristalizadas sobre a face, de tão lentas que rolavam. (...) Acabemos com isso, Lúcia. Sabes o que me traz à tua casa: se te desagrado por qualquer motivo, dize francamente que eu tomo o meu chapéu e não te aborrecerei mais. Se pensas que valho tanto como os outros, não percas tempo a fingir o que não és. Esta comédia de amor pode divertir os mocinhos de dezoito anos e os velhos de cinqüenta; mas afianço-te que não lhe acho a menor graça. (...) Não me ofendi; e a prova é que não lhe dei sinal de desagrado, nem conservo o menor ressentimento. Não me conhece!... Sei o que valho, e não sou capaz de iludir a ninguém, muito menos ao senhor. (...) Era uma transfiguração completa. Enquanto a admirava, a sua mão ágil e sôfrega desfazia ou antes despedaçava os frágeis laços que prendiam-lhe as vestes. À mais leve resistência dobrava-se sobre si mesma como uma cobra, e os dentes de pérola talhavam mais rápidos do que a tesoura o cadarço de seda que lhe punha obstáculos. Até que o penteador de veludo voou pelos ares,

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as tranças luxuriosas dos cabelos negros rolavam pelos ombros arrufando ao contato a pele melindrosa(...) eu vi aparecer aos a meus olhos pasmos, nadando em ondas de luz, no esplendor de sua completa nudez, a mais formosa bacante que esmagara outrora com o pé lascivo as uvas de Corinto. (...) É que as carícias de Lúcia vinham impregnadas de uma irritabilidade que cauterizava. (...) De repente surgiu lívida, estendeu a mão aberta. Ouvi uma palavra soluçada, voz opressa, que não entendi, mas adivinhei. (...) me precipitei sobre minha carteira para atirá-la à face dessa mulher. (Lucíola, cap.IV, p. 135-137)

Toda a volúpia apresentada por Lúcia veio precedida de uma dor muito forte,

causada pelo fato de Paulo tratá-la como todos os outros homens, como mera prostituta,

quando estava oferecendo seu amor puro, e não pretendendo vender seu corpo a ele.

Sendo assim, mostrou-se como aparecia para os outros, de forma sarcástica, encenada, e

não por amor de fato. Desta maneira, uma das cenas mais sensuais da obra de Alencar

não tinha finalidade amorosa, mas vingativa, e deu-se como mera encenação da

personagem.

A lembrança de uma inocência perdida é não apenas possibilidade permanente duma pureza futura (que desabrocha ao toque do amor), mas a própria razão do seu asco à prostituição. A vigorosa luxúria com que subjugava os amantes é um recurso de ajustamento por assim dizer profissional, que consegue desenvolver; uma espécie de auto-atordoamento; quase de imposição, a si mesma, duma personalidade de circunstância que se amoldasse à lei da prostituição, preservando intacta a pureza que hibernava sob o estardalhaço da mundana. Por outras palavras, a sua sensualidade desenfreada nos aparece como técnica masoquista de reforço do sentimento de culpa, renovando incessantemente as oportunidades de autopunição. Este processo psíquico, admiravelmente tocado por Alencar no mais profundo de seus livros, reduz-se – em termos da presente análise – a uma dialética do passado e do presente, cujo desfecho é a redenção final.40

Tal análise de Antonio Candido esclarece muito apropriadamente a percepção de

Paulo de uma Lúcia transfigurada em poucos minutos. Ao ser tratada como prostituta,

40 CANDIDO, 1979: p. 228.

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Lúcia se impõe uma personalidade que se amolda ao tratamento recebido, quando antes

apresentava a pureza do ser apaixonado.

Já no que diz respeito a Paulo, neste trecho, mostra-se o embate entre o amor e o

drama da convenção que amarra o burguês ao seu papel e que, neste episódio, aliena-o

do que, no tempo da enunciação, reponta nele de autêntico... só que tarde demais. Toda

a resistência inicial dá-se em benefício da coerência exigida pela posição na sociedade.

A complexidade da personagem Lúcia reside exatamente na aparente

contradição que há na mistura da pureza e da mundanidade num só ser. A

temperamental personagem vai da raiva, da perfídia, ao amor puro, magoado, à

fragilidade total, em minutos. A importância desta complexidade para o tema é que, a

partir do amor, surge Maria da Glória. A sociedade só conhecia uma faceta de Lúcia, a

que demonstrava frieza, a de sentimentos embotados pela prostituição, pela reificação.

Ressalte-se que, tanto o retrato social verossimilhante, de que falaremos adiante,

como esta união de características contrastantes em uma mesma personagem são

comuns no drama teatral romântico. E, como já vimos, Lucíola é obra baseada em peça

teatral do autor, censurada na época: As asas de um anjo, apresentando o romance

enredo bastante semelhante ao da peça.

Conhecendo-se, ainda, as considerações gerais de Heron de Alencar sobre o

gênero dramático no Romantismo, ainda que neste momento não faça referência direta à

obra de Alencar, é possível perceber a aproximação entre Lucíola e as tendências de tal

gênero:

Foi a própria exigência do drama romântico – de fundo histórico, reunindo problemas sociais, políticos, morais, psicológicos, religiosos, assuntos vastos, personagens numerosas tratadas na sua evolução, sem saltos – que impôs a ruptura das unidades, pela necessidade de maior margem de tempo e lugar para movimentar a ação. Renunciando a essas unidades, o drama romântico virou-se para o passado nacional e para a história moderna, em lugar da Antigüidade greco-latina, em busca da forma nova, a “ cor local” , os costumes, base da realidade e característica essencial da sociedade. Mas o drama romântico distingue-se ainda pela união do nobre e do grotesco, do grave e do burlesco, do belo e do feio, no pressuposto de que o contraste é que chama a atenção, além de assim mostrar-se mais fiel à realidade41

41 ALENCAR, 2000: p. 231

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Ainda assim, através da análise, observa-se que o amor, em Lucíola, não fica

devendo nada ao amor retratado em outras obras do Romantismo, ou ainda do próprio

Alencar, em que as heroínas são moças castíssimas, virgens que nem sequer intentam o

contato carnal com os amados. Lúcia, se tem o corpo conspurcado pela prostituição, é

construída com uma alma virgem, possibilitada, como se viu, pelo dualismo romântico.

Seu amor por Paulo faz com que tórridas cenas de amor carnal (assim classificadas de

acordo com a época em que são publicadas) estejam muito aquém da entrega espiritual,

emocional. A entrega do corpo ocorre, inclusive, mais em rompantes de raiva que de

amor propriamente. No entanto, as cores com que Paulo descreve tais cenas, por seu

lado, são apaixonadas e eróticas.

A pureza de Lúcia, Alencar não nos deixa deduzir ou interpretar, pois, na nota

introdutória, já a põe a nu, valendo-se para isso de uma pseudo-editora que veicula sua

visão da obra. Antecipa-se, assim, ás possíveis críticas dos leitores e tenta reduzir o

impacto na sociedade que o lerá no século XIX: “Lucíola é o lampiro noturno que

brilha de uma luz tão viva no seio da treva e à beira dos charcos. Não será a imagem

verdadeira da mulher que no abismo da perdição conserva a pureza d’alma?” (Lucíola,

Ao autor, p. 120)

As imagens dicotômicas neste trecho apontam mais uma vez para a dualidade

corpo X espírito: luz viva X charcos; abismo de perdição X pureza d’alma; nudez do

corpo X vestes de virtude.

Se em Lucíola, para se aproximarem os amantes Maria da Glória e Paulo faz-se

necessário anular a relação carnal, em Senhora, a distância racional imposta por Aurélia

vai se estreitando de acordo com o aumento do desejo carnal por Fernando, ainda que

totalmente metaforizado no romance:

Chegados à saleta, onde costumavam despedir-se, Aurélia dirigiu-se para o toucador. Na porta, Fernando parou. -Leve-me que eu não posso comigo, disse Aurélia atraindo-o a si brandamente. O marido levou-a ao divã onde ela deixou-se cair prostrada de fadiga ou de sono. Não tendo soltado logo o braço do Seixas, este reclinou-se para acompanhar-lhe o movimento, e achou-se debruçado para ela. Aurélia conchegou as roupas, fazendo lugar à beira do divã, e acenando com a mão ao marido que se sentasse. Entretanto, com a cabeça atirada sobre o recosto de veludo, o colo nu

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debuxava sobre o fundo azul um primor de estatuária cinzelado no mais fino mármore de Paros. Seixas desviou os olhos como se visse diante de si um abismo. Sentia a fascinação e reconhecia que faltavam-lhe as forças para escapar à vertigem. - Até amanhã? – disse ele hesitando. - Veja se não tenho febre! Aurélia procurou a mão do marido e encostou-a na testa. Debruçando-se para ela com esse movimento, Seixas roçara com o braço o contorno de um seio palpitante. A moça estremeceu como se percutisse uma vibração íntima, e apertou com uma crispação nervosa a mão do marido que ele conservava na sua. - Aurélia, balbuciou Fernando, que a pouco e pouco resvalara do divã, e estava de joelhos, buscando os olhos da mulher. Ela ergueu de leve a cabeça, para vazar no semblante do marido a luz dos olhos, e sorriu. Que sorriso! Uma voragem onde submergiam-se a razão, a dignidade, todas essas arrogâncias do homem. (Senhora, p. 303-304)

Ou, em alguns trechos, de maneira mais sensual e direta:

Aurélia fitou o retrato com delícia. Arrebatada pela veemência do afeto que intumescia-lhe o seio, pousou nos lábios frios e mortos da imagem um beijo fervido, pujante, impetuoso; um desses beijos exuberantes que são verdadeiras explosões da alma irrupta pelo fogo de uma paixão subterrânea, longamente recalcada. (...) Aurélia acabava de voltar-se para ele (Seixas), soberba de volúpia, fremente de amor, com os olhos em chamas, os lábios túrgidos, e o seio pulando aos ímpetos da paixão. (Senhora, p. 306)

Se a interdição ao erotismo é definitivamente estabelecida por Maria da Glória,

em Lucíola, Aurélia, de Senhora, sucumbe ao desejo, libertando-se da interdição,

unindo corpo e alma à do amado. Aliás, Aurélia encarna bem a teoria de Georges

Bataille sobre o erotismo: o interdito é, na verdade, o que o cria e o que o intensifica.

Em Lucíola, a união não é plena devido à impossibilidade do amor conjugal,

único a possibilitá-la.

Releva acentuar também, no que tange ao desejo, que, em Senhora, o tema do

relacionamento amoroso aponta para uma certa liberação da mulher, em que ela tenta

impor o interesse, consciente pelo próprio destino. Ainda que tal fato represente uma

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tendência renovadora, ainda se percebe o compromisso com a realidade social brasileira

que, à época, ainda conspira pela autonomia feminina definitiva.

Por mais fortes e cheias de personalidade que sejam as personagens femininas

alencarianas, no amor, ainda acabam por submeter-se. Iracema abandona sua cultura

para seguir Martim, ainda que não sobreviva; Lúcia enterra-se para renascer Maria da

Glória, casta e simples; Aurélia casa-se com Fernando pretendendo vingança e acaba

por legitimar a união, perdoando-o; Emília joga-se literalmente aos pés de Augusto,

sacrificando seu caráter divino (altivo e casto)... mas o papel social da mulher era

mesmo este: submeter-se. Neste ponto, Emília, de Diva, que talvez se mostrasse a mais

altiva, é a que mais se submete, visto que verbaliza esta subalternidade quando

maltratada, como se esperasse todo o tempo por isso:

Que suprema delícia, meu deus, foi para mim a dor que me causavam os meus pulsos magoados pelas tuas mãos! Como abençoei este sofrimento!... Era alguma coisa de ti, um ímpeto de tua alma, a tua cólera e indignação, que tinham ficado em minha pessoa e entravam em mim para tomar posse do que te pertencia. Pedi a Deus que tornasse indelével esse vestígio de tua ira, que me santificara como uma coisa tua! (Diva, XX, p. 244)

É importante ressaltar que, enquanto as mulheres não assumem este “seu papel”

na narrativa, a relação amorosa não se concretiza. Sobre este papel e a sua inversão,

que impossibilita a união em Senhora, Luís Filipe Ribeiro faz uma análise acertada:

A imagem da noite do casamento, com o homem aos pés da senhora, agride os valores da sociedade patriarcal, em que o homem é naturalmente superior e a mulher deve-lhe submissão codificada desde sempre. O narrador encarrega-se de não só invertê-la, colocando Aurélia aos pés de Fernando, mas fazendo-a, de sua própria voz, enunciar as regras de sua voluntária submissão.42

Iracema, ainda que represente a terra idealizada, também obedece ao padrão de

submissão feminina em relação ao homem amado. Esta análise não se deve apenas à

representação que faz a personagem da terra. Poti, amigo de Martim, também é

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selvagem e, nem por isso, coloca-se como ou é inferiorizado em suas relações com

Martim. O trecho a seguir, de Iracema, revela tal posicionamento desnivelado:

Poti cantava: - Como a cobra que tem duas cabeças em um só corpo, assim é a amizade de Coatiabo e Poti. Acudiu Iracema: - Como a ostra que não deixa o rochedo, ainda depois de morta, assim é Iracema junto a seu esposo. Os guerreiros disseram: - Como o jatobá na floresta, assim é o guerreiro Coatiabo entre o irmão e a esposa: seus ramos abraçam os ramos do ubiratã, e sua sombra protege a relva humilde.(Iracema, XXIV, p. 82)

Enquanto Poti e Martim estão representados num só corpo, o da cobra, Iracema é

apenas uma relva humilde protegida pela árvore, que é Martim, abraçado a outra árvore,

Poti.

O desfecho simbólico da morte de Iracema, como a morte da raça indígena para

o nascimento de uma etnia híbrida é, ao mesmo tempo, a suprema submissão. Iracema,

ainda que personagem carregada de simbologia, renuncia a si mesma pelo bem de

Martim, a quem reconhece não amá-la, e do filho Moacir.

De qualquer forma, vale trazer à baila uma interessante teoria tecida por Heron

de Alencar a respeito da idéia central do nosso romance romântico, exatamente no que

diz respeito ao amor, que vem ao encontro do que aqui se diz: “(...) todo ser tem direito

de realizar a felicidade pelo amor, tem direito a escolher, sem constrangimento, o

companheiro ou a companheira da sua vida. Tal é a conclusão que se pode tirar do

exame de conjunto do romance romântico, seja ele urbano, histórico ou regionalista.”43

42 RIBEIRO, 1996: p. 209 – grifos do autor. 43 ALENCAR, 2002: p. 302

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2.4 – A relação romantismo – realismo no sentimento amoroso

Se comparado a outros autores românticos, como Joaquim Manuel de Macedo,

José de Alencar propõe uma visão inovadora do amor em sua obra. Não se detém em

retratar o amor porque este leva ao matrimônio, finalidade de toda moça burguesa,

personagem constante nas obras, pois que representava o próprio público leitor,

proporcionando-lhe identificação com o enredo. Ao invés disso, questiona a lógica,

criando um Paulo apaixonado por uma prostituta, uma Aurélia que se vinga de um

homem através do casamento (“sonho” de toda mulher), uma Iracema que abandona a

cultura de sua tribo, que a considerava intocável, para seguir um grande amor. É este

sentimento ainda o “mote” para o desenvolvimento da história, mas a ótica alencariana

é, de certa forma, particular. A forma lírica e a preocupação ornamental de Alencar

concorrem positivamente para a feição geral do romance romântico brasileiro, e a

intriga sentimental, dada em diferentes espaços (urbano, campesino, silvícola),

minuciosamente descritos, é, invariavelmente, a temática preferida.

Suas personagens, sob uma ótica moderna e libertadora de preconceitos, não

valorizam nem mesmo a castidade como condição sine qua non para o amor. Lúcia

oferece a pura irmã para desposar Paulo, que acha a oferta um despropósito: o

sentimento não pode ligar-se a amarras sociais.

O realismo na descrição de costumes escapa mais de Alencar exatamente no

romance histórico de cunho indianista (considera-se aqui a classificação feita por Heron

de Alencar44). Nele, apresentava grande idealização da vida indígena e dos seus

costumes, e nessa análise incluem-se os enredos de amores exageradamente poetizados

entre representantes do povo colonizador com os nativos da terra americana. Mas o fato

de, especialmente no romance histórico, apresentar-se tamanha idealização, é reflexo do

desejo de apartar-se o Brasil cultural e politicamente de Portugal. Nesse ponto,

concordamos com a análise realizada por Heron de Alencar: “ Seria através da

valorização poética das raças primitivas no cenário grandioso da natureza americana,

que alcançaríamos aquele nível mínimo de orgulho nacional de que carecíamos para

uma classificação em face do europeu.”45

44 ALENCAR, 2002. 45 ALENCAR, 2002: p. 259

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Embora José de Alencar já mostrasse em suas narrativas uma descrição bem

realista dos costumes da sociedade de sua época, mesmo que para criticá-los, como fez

em Lucíola, tal tendência só é efetivamente desenvolvida no Realismo. Além desta

característica, a relação entre os sexos em particular rejeita a idealização romântica,

adotada inclusive por Alencar. A ruptura também ocorre na adoção de um senso menos

convencional de estilo e de uma análise mais fria e objetiva dos caracteres.

Infere-se que, se Alencar reproduz em suas obras traços observados no mundo

real, em particular no que diz respeito ao comportamento social, o mesmo não acontece

com a abordagem dos relacionamentos amorosos, que obedece às leis da fantasia, em

que se cria um mundo novo, menos cruel que o real. Nesse âmbito (e em vários outros

não cruciais para este estudo), opõem-se radicalmente Romantismo e Realismo.

O retrato social realista em Alencar influi diretamente no desenvolvimento do

tema amoroso, na medida em que o desnivelamento nas posições sociais dos

personagens de Lucíola e Senhora, por exemplo, afeta a própria afetividade entre eles,

assim como a realização ou não da união (em Lucíola) ou ainda a sua postergação

(Senhora). O nível econômico influi diretamente no relacionamento dos casais em

ambas as obras. Em Senhora é o cerne do enredo. Em Lucíola, é parte dele.

A questão econômica, questão delicada em que se chocavam o seu nobre interesse e a minha dignidade, havia sido felizmente resolvida. Tinha visto Lúcia esconder num vaso do toucador a chave da gaveta onde guardava o seu dinheiro. Cometi a indiscrição de abrir uma vez por semana essa gaveta, e deitar a soma que comportava com a minha fortuna e com o luxo em que ela vivia. (...) A consciência que eu tinha, de não ser bastante rico para essa mulher, pungia-me tanto e a cada momento, que à menor palavra dúbia, ao menor gosto equívoco, os meus brios se revoltavam. Farejava uma ironia até no seu próprio desinteresse, que podia ser inspirado pelo conhecimento de minha pobreza. (Lucíola, capítulo XI, p. 176-177)

Trata-se de uma preocupação real e temporal. O enredo de Lucíola, por exemplo,

se passa num espaço que é o simulacro da vida social em 1855, época em que o narrador

diz ocorrerem os fatos que narra. Antonio Candido afirma, sobre várias outras obras de

Alencar, que “o movimento narrativo ganha força graças aos problemas de

desnivelamento nas posições sociais, que vão afetar a própria afetividade dos

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personagens.”46 A explicação para a centralização dos romances românticos de

aspecto urbano ser o amor reside neste aspecto e é simples: no casamento ou união de

pessoas sempre se questiona a existência ou não deste sentimento, e a instituição

matrimonial, no século XIX, principalmente, concorria para decidir muitos outros

aspectos da vida. A mulher, como não representava força de trabalho, só poderia

classificar-se socialmente através do casamento, e o homem de classe baixa,

eventualmente, também era alçado a níveis superiores por intermédio deste. Sendo

assim, o amor poderia dificultar ou facilitar a ascensão social e econômica, não se

tratando, portanto, de um enfoque filosófico.

Nos romances urbanos de José de Alencar a visão das relações amorosas com

mulheres de classes inferiores passa, via de regra, pela exploração sexual, como será

comum nas mesmas relações entre classes díspares durante o Naturalismo. Em

Senhora, tal característica é posta a nu quando a mãe de Aurélia a faz expor-se à janela,

em busca de um noivo:

Não tardou que a notícia de menina bonita de Santa Teresa se divulgasse entre certa roda de moços que não se contentam com as rosas e margaridas dos salões, e cultivam com ardor também as violetas e cravinas das rótulas. A solitária e plácida rua animou-se com um trânsito desusado de tílburis e passeadores a pé atraídos pela graça da flor modesta e rasteira, que uns ambicionavam colher para transplantar ao turbilhão do mundo, outros apenas se contentariam de crestar-lhe a pureza, abandonando-a depois à miséria. (Senhora, p. 236)

Mas cenas em que tal classe ganhe destaque não são comuns nos romances

românticos, porque estes têm como característica o cenário aristocrático e são lidos

exatamente pela burguesia da época.

Alencar desnuda, inclusive, este estado de coisas, questionando o dote, o

casamento por interesse em Senhora. Um grande amor chega a ser interrompido por

conta deste costume social, que avilta a figura feminina por descartar o valor de seu

caráter, e a moral masculina, por fazer do homem simples objeto comercializável.

É interessante perceber como a questão pecuniária difere em Lucíola e Senhora,

no que diz respeito às relações entre homem e mulher, pela origem do dinheiro.

46 CÂNDIDO, 1979: p. 225.

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Fernando não se sente logrado em casar-se pelo maior dote; no entanto, Paulo vexa-se

de ser sustentado por Lúcia, já que sua riqueza é oriunda da prostituição.

No primeiro caso, o de Senhora, tal questão é primordial para o

desenvolvimento do enredo. Já em Lucíola, é parte da problemática e mais um motivo

das brigas que distanciam o casal várias vezes durante a trama. Lúcia, para poder viver

mais próxima ao amado, renuncia ao luxo, mudando-se para uma outra residência,

passando a viver um cotidiano simples de dona-de-casa. Sua fortuna, passa-a à irmã.

Num enredo tipicamente romântico é preciso que o herói, ainda que o dote seja

aceito na sociedade do século XIX, prove de todas as maneiras seu amor sincero, a

despeito de qualquer interesse monetário. Este fator aparece em Senhora, em Lucíola e

também em Diva, em que a protagonista Emília testa de todas as formas o pretendente

que lhe atrai para que ela própria não seja usada como simples degrau para ascensão

social.

Em Alencar, portanto, os valores econômicos e sociais sempre aparecem

interligados aos afetivos, ainda que para serem negados, ou como forma de pôr os

segundos à prova. Tal dependência não pode ser ignorada, de tão presente na

sociedade. Mas, para se caracterizarem como heróis românticos de fato, suas

personagens precisam sobrepor as questões afetivas às pecuniárias. A prostituição, a

venda de si próprio, não é, na literatura romântica, aceita nem para homens nem para

mulheres. Se a instituição do dote é comum na sociedade, nesta literatura ela só é

legitimada se for secundária, sendo o amor o motivo primordial da união. Legitima-se,

assim, o amor de Augusto por Emília, em Diva, e pune-se Fernando Seixas, de Senhora,

por se casar primordialmente por dinheiro.

A honra de Fernando só é resgatada após muita humilhação e uma prova cabal

de que ama Aurélia, a despeito de seu dinheiro.

A de Lúcia, em Lucíola, , no entanto, só a morte é capaz de resgatar, devido à

castidade a que se obrigam as mulheres e que, após perdida, é irrevogável.

No entanto, o questionamento social operado pelo autor em suas obras não

destoa dos preceitos da estética romântica, visto que é uma forma de repúdio às

obrigações exteriores, no intuito de fazer prevalecer o sentimento, o mundo interior. Eis

aí o que faz do tema do amor algo primordial no Romantismo.

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Além disso, o leitor se identifica facilmente com as intrigas amorosas, e o

recurso de desenvolvê-las, assim como aproximar as obras do estilo folhetinesco, serviu

às intenções do Romantismo de ampliar deveras o público leitor. Resguardado o

distanciamento histórico entre a crítica atual e o Romantismo, pode-se afirmar que estas

técnicas, em princípio ingênuas, alcançaram o seu intuito.

Verifiquemos, sobre este aspecto, a morte de Lúcia, na obra em que é

protagonista. Embora aponte para a continuidade do amor, sua morte, que é a única

maneira de realização deste, causa uma certa frustração no leitor. Mas, na verdade, a

personagem funciona quase como um exemplo, uma ameaça às moças da época:

mostra-lhes o que acontece com quem não segue uma conduta baseada na moral - é um

processo moralizador. A descarnalização do amor, se é sublime, idealista, amedronta os

apaixonados que sempre querem ficar juntos.

Sobre a constância do tema do amor na prosa romântica brasileira, Heron de

Alencar tece considerações que reiteram o que aqui se afirma:

No Brasil, todos os românticos elegeram o amor tema fundamental de suas obras e, do ponto de vista do romance, é possível afirmar que foi esse tema que forneceu substância a todos os demais (...)todo ser tem direito de realizar a felicidade pelo amor, tem direito a escolher, sem constrangimento, o companheiro ou a companheira da sua vida. Tal é a conclusão que se pode tirar do exame de conjunto do romance romântico, seja ele urbano, histórico ou regionalista.47

Mas não só no autor de Lucíola opera-se a mistura do real com o idealizado, e tal

tendência não é sequer inaugurada pelo escritor. Stendhal e Balzac já o faziam, ainda

que tanto estes quanto aquele fundissem heróis e situações idealizadas a uma sociedade

circundante de aspecto bastante realista. A descrição da sociedade e da paisagem

geográfica obedecem a uma característica muito realista; já o amor, a relação entre os

protagonistas e a construção destes é que são completamente idealizados na maioria das

obras românticas. Há, no interior dos romances da época, um embate entre tendências

que, em princípio, seriam opostas: a realidade e a fantasia. O Romantismo não é, como

julga o senso comum, unicamente composto de idealizações. Tal assertiva corrobora

estudos anteriores de Antonio Candido:

47 ALENCAR, 2002: p. 302

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Este acentuado realismo (em nada inferior muitas vezes ao dos nossos naturalistas modernos, tão marcados de romantismo) estabelece no romance romântico uma contradição interna, um conflito por vezes constrangedor entre a realidade e o sonho.(...) A cada momento a tendência idealista rompe nas junturas das frases, na articulação dos episódios, na configuração dos personagens, abrindo frinchas na objetividade da observação e restabelecendo certas tendências profundas da escola para o fantástico, o desmesurado, o incoerente, na linguagem e na concepção.48

O trecho abaixo disserta também sobre a mistura de traços no Romantismo:

Mais ou menos eqüidistante da pesquisa lírica e do estudo sistemático da realidade, opera a ligação entre dois tipos opostos de conhecimento; e como vai de um pólo ao outro, na gama das suas realizações, exerce atividade inacessível tanto à poesia quanto à ciência. O seu fundamento não é com efeito a transfigurada realidade da primeira, nem a realidade constatada da segunda; mas a realidade elaborada por um processo mental que guarda intacta a sua verossimilhança externa, fecundando-a interiormente por um fermento de fantasia que a situa além do quotidiano, - em concorrência com a vida. Graças aos seus produtos extremos, embebe-se de um lado em pleno sonho, tocando de outro no documentário. Os seus melhores momentos são porém aqueles em que permanece fiel à vocação de elaborar conscientemente uma realidade humana que extrai da observação direta, para com ela construir um sistema imaginário e mais durável.49

Com palavras brilhantes, Antonio Candido atesta, então, que o Romantismo não

exclui a realidade: apenas alia a ela doses de fantasia. A justificativa mais palpável para

esta mistura, a despeito de toda a idealização da proposta romântica original, é a

influência da fase decadente do Romantismo europeu, já embebido no Realismo. Sobre

esta influência, nos fala Heron de Alencar:

A observador mais atento, e que não pretenda previamente adaptar conceitos e critérios de classificação europeus ao processo de desenvolvimento da nossa literatura – mas estudar nos textos brasileiros de que modo assimilamos as características da literatura européia, transformando-as nacionalmente – não será permitido ignorar que o nosso romance, filho do Romantismo, dele não herdaria senão aquelas tendências mais populares, mais exteriores, que pertenciam à fase de plena decadência do Romantismo e de transição para o Realismo.50

48 CANDIDO, 1979: p. 115. 49 CANDIDO, 1979: p. 109. 50 ALENCAR, 2002:p. 240

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A diferença entre o romance romântico europeu em seu pleno desenvolvimento e

sua fase decadente é que, inicialmente havia uma tendência à confissão pessoal, um

excesso de sensibilidade do indivíduo frente à nova condição histórica, não havendo

destaque para a observação da realidade. No segundo momento é que passou a

preocupar-se com a recriação do passado histórico e, depois, com a sociedade

contemporânea. E é dessa fase decadente, que retrata e questiona a sociedade

contemporânea, que o Romantismo brasileiro assimila as características, não só por

mera cópia, mas porque as tendências desta fase combinavam mais com a condição

política e literária do Brasil àquela época: uma nação que precisava afirmar-se como

independente. Havia a intenção velada de que o leitor brasileiro se identificasse na

literatura de seu país, num momento de emancipação. Sobre este último fator, nos diz

Heron de Alencar:

Dominou mais o nosso Romantismo, na poesia e no romance, a tendência orientada pela filosofia e pela estética dos socialistas utópicos, embora a sua aclimação ao nosso meio sofresse transformações muita vez desfiguradoras. E dominou porque o seu conteúdo reivindicador e reformador melhor atendia às nossas necessidades de nação que procurava afirmar-se e resolver problemas graves que herdara de sua recente condição de colônia.51

O enfoque crítico-social apresentado nos romances de Alencar, principalmente

nos urbanos, como Lucíola e Senhora, justifica-se pelo contexto político em que estava

inserido o próprio Romantismo: a Revolução burguesa, a recente independência e o

movimento pela democracia eram influências evidentes no meio artístico e cultural.

Alencar refletiu, portanto, um momento de efervescência social, através do

questionamento dos costumes em seu fazer literário. Lúcia Miguel pereira, em seus

estudos sobre a história da prosa de ficção na Literatura Brasileira faz uma afirmação

simples e significativa: “Há um clima, uma atmosfera moral e intelectual peculiar a

cada época, que impregna quantos nela vivem” .52

Da importação resulta também a visão paradigmática de amor presente nas obras

do Romantismo brasileiro, descartando problemas mais profundos, específicos ou

51 ALENCAR, 2002: p. 241 52 PEREIRA, 1988: p. 28

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filosóficos. É uma convenção neste estilo de época, no Brasil, desenvolver o enredo

em torno de um amor supremo, cheio de obstáculos à sua realização. O conflito

alimenta-se basicamente das aspirações sentimentais das personagens, contrapondo-se à

realidade imediata, tão prezada pelo estilo romântico no Brasil. O lugar-comum no

enfoque do amor confere, por vezes, ao tema, um sentido um tanto inautêntico e

repetitivo.

Se Alencar já desmascarava convenções e punha a nu certos preceitos da moral

burguesa, o mesmo não fez ao retratar o amor. Na verdade, carregou no idealismo

como instrumento básico para contrastar o amor com a sociedade constituída. Tal

sentimento serviu, portanto, como ferramenta para se questionar um estado de coisas, e

aproximar o romance da tendência moralizante tão em voga na época. Segundo esta

análise, pode-se dizer que a objetividade em José de Alencar é, via de regra, o ponto de

partida para a transfiguração operada pela subjetividade. E o amor não integra este

ponto de partida: está muito mais próximo da chegada.

Pode-se dizer, também, que através de Lúcia apresentou-se um dilema amoroso

mais profundo que de costume, existencial, em que a própria personagem não se sente

digna de desfrutar do sentimento de modo efetivo.

Ainda assim, os traços realísticos estiveram presentes na não-realização de fato

do amor entre Lúcia e Paulo: “Esta exigência de realismo, que assinala a maior parte

da novelística moderna, conduz, no Brasil, ao romance de costumes e ao romance

regional, que dentro do Romantismo limitam o vôo lírico (...) ”53

Na construção de Lucíola subjaz uma crítica do autor: nem sempre o elemento

discordante da sociedade é a representação verdadeira do mal. Sempre há uma

possibilidade de redenção, mas a comprovada reabilitação só é possível através da

análise psicológica. Em Lucíola, tal recurso preconiza, de maneira menos elaborada, a

técnica de Machado de Assis.

Ainda no que diz respeito à abordagem realística dos romances românticos,

ressalta-se que na obra Os dois amores, de Joaquim Manuel de Macedo, um diálogo

entre dois personagens aborda argutamente a questão da realidade de que estão

imbuídos os romances românticos, no que diz respeito à ordem social:

53 CANDIDO, 1979: p. 25.

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(...) pensas que os romances são mentiras?... Tenho certeza disso.

Neste ponto está muito atrasada, D. Celina; os romances têm sempre uma verdade por base; o maior trabalho dos romancistas consiste em desfigurar essa verdade de tal modo, que os contemporâneos não cheguem a dar os verdadeiros nomes de batismo às personagens que aí figuram.54

Uma das maiores provas da realidade na obra romântica está, no entanto, em

Inocência. Para Antonio Candido,

o valor da obra dependia da autenticidade dos modelos(...) ele vira o ambiente, quase os personagens de Inocência, para onde os transpôs, diretamente e sem retoque, tipos observados em Santana do Paranaíba (...). Portanto, não apenas o quadros naturais e os costumes, mas várias das pessoas que viu, foram reproduzidas com uma fidelidade que dá valor documentário à sua ficção55

O crítico cita inclusive algumas pessoas que inspiraram Taunay para compor

alguns personagens, como a jovem leprosa de extraordinária beleza, Jacinta, que

inspirou a criação de Inocência. O autor alia a veracidade a um trabalho fabulador.

Ainda assim, há a supremacia do sentimento e das paixões sobre a razão, e da

maneira como estes se desenvolviam, da sua grandiosidade, dependia a popularidade

das obras da época. A utilização da objetividade como ponto de partida para o romance,

ainda que depois ele se desenvolva da forma mais subjetiva, é histórica: trata-se de uma

característica da maioria dos autores brasileiros. Lúcia Miguel Pereira aborda o assunto

da seguinte maneira:

Acusava-se Euclides da Cunha de ser uma ave de vôo rasteiro, que precisava subir a um arbusto para ganhar as alturas. Com essa confissão, definiu uma das características da grande maioria de nossos escritores. Quase todos se servem da realidade como de um trampolim indispensável, de um ponto de apoio; ela representa um meio, e não um fim. Por isso tivemos românticos fazendo, sem dar por isso, romances de costumes (...)56

54 CANDIDO, 1979: p. 139-40. 55 CANDIDO, 1979: p. 310. 56 PEREIRA, 1988: p. 26

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Os elementos sociais, culturais, ideológicos, econômicos e políticos da época do

Romantismo começaram a ser questionados na 2a metade do século XIX, na Europa e,

no Brasil, só a partir dos anos 70 e, sobretudo, 80: “o positivismo e a vanguarda

filosófica alemã fizeram adeptos ávidos de uma nova interpretação de mundo”57

A partir dos românticos passa a haver uma compreensão mais minuciosa do

mundo interior com Machado de Assis e com alguns modernistas. Mas isto não

significa crescimento da importância da temática amorosa. Tanto no que diz respeito a

ela, como a muitos outros aspectos literários, retomam-se sempre características

românticas ou realistas. Afrânio Coutinho versa de maneira sensata sobre estas

influências para a Literatura Brasileira posterior:

Substituindo a visão idealizada do mundo, que vigorou no Classicismo, em todas as suas variedades, por uma imagem real e direta, inclusive captando a atmosfera local interior e exterior, o Romantismo possui em germe – como traço essencial e primitivo – o princípio realista, depois desenvolvido na forma superior de ficção brasileira. Desta sorte, é no período que vai do Romantismo ao Realismo que se deve focalizar o estudo compreensivo da literatura brasileira, para interpretar sua natureza e qualidades. Sobretudo, releva acentuar, apesar da aparente oposição, o engavetamento, a continuidade, mesmo a identidade em muitos aspectos, dos dois estilos no Brasil.58

57 BRAYNER, 1973: p.17. 58 COUTINHO, 2002: p. 30.

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3 – REALISMO: O MITO DO AMOR POSTO EM QUESTÃO

Na medida em que se cristaliza uma nova interpretação de mundo, fundada nas

teorias científicas que se afirmam na Europa, na segunda metade do século XIX,

também o amor vai ser enfocado sob uma nova ótica, bem diversa da que vigorava até

então. Não há dúvida de que, na fase subseqüente ao Romantismo, há uma nítida

redução da importância da temática amorosa no universo literário.

A corrente estética canônica do período, o Naturalismo, vai apresentar o amor

degradado, na medida em que o reduz a uma dimensão fisiológica.

Por outro lado, em Machado de Assis, o processo de dessacralização do amor

segue outra trajetória: embora se apresente igualmente reduzido e corroído, o fato se dá

por razões mais éticas do que biológicas, mais psicológicas do que fisiológicas. Tais

enfoques, bastante diversos entre si, se dão mesmo não havendo distanciamento

cronológico entre a produção machadiana e a naturalista. Comprova-se aqui que a

diversidade de pontos de vista depende não só da época literária, mas também dos

autores, dos indivíduos que produzem as obras (Machado de Assis e Aluísio Azevedo,

por exemplo, escrevem contemporaneamente, embora o segundo seja de uma geração

mais jovem).

Em Machado, tanto o mito do amor romântico a idealização da mulher aparecem

corroídos por uma visão cética. É um enfoque bem diverso daquele praticado pelos

naturalistas, como Aluísio Azevedo, que retrataram as relações amorosas de maneira

mais postiça, mais exagerada que o idealismo romântico, sem deformar, mas anulando o

sentimento nelas.

Machado de Assis dirigiu uma crítica à estética de seu tempo, particularmente a

Eça de Queiroz, que ainda hoje nos serve de caracterização do Naturalismo. Na época,

o crítico Machado produzia ainda obras românticas, o que não anula a pertinência de

seu texto que, referindo-se a O Primo Basílio, pode ser estendido a toda a estética

naturalista. Machado de Assis condenava a tendência naturalista à redução das relações

aos sentidos, ao “espetáculo dos ardores, exigências e perversões físicas” 59, a “um

fenômeno animal e nada mais” 60. Julgava também inadequada a estética de inventário,

59 ASSIS,1980: p. 952 60 Idem

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apontando como defeito o descritivismo de Eça. O próprio Machado, mesmo após

superada sua fase romântica, sempre adotou uma perspectiva mais ontológica de temas

como o amor, por exemplo.

Em um dos trechos de crítica de Machado ao Naturalismo, representado neste

momento por Eça de Queiroz, nos diz:

Não se conhecia no nosso idioma aquela reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis. Pela primeira vez aparecia um livro em que o escuso (...) e o torpe eram tratados com um carinho minucioso e relacionados com uma exação de inventário.61

E ainda, sobre a hipertrofia do corpo em que se apóia todo o Naturalismo e, mais

especificamente a obra criticada, O Primo Basílio, de Eça de Queiroz: “Com tais

preocupações de escola, não admira que a pena do autor (...) nos talhe as suas

mulheres pelos aspectos e trejeitos da concupiscência; que escreva alusões e

reminiscências de um erotismo que Proudhon chamaria oni-sexual e onímodo”62.

Mas o perturbador preconceito de que qualquer interesse amoroso é falso, pois

que baseado em outros, egoístas, capitalistas, não é particularidade da obra de Azevedo

nem mesmo do Naturalismo: é comum também na literatura realista machadiana.

A corrente dominante do Realismo não admite a existência do dualismo corpo X

alma, freqüente em obras românticas como Lucíola, em que a protagonista figura como

uma alma pura num corpo corrompido. O Naturalismo despreza qualquer teoria

espiritualista, ignorando tudo o que não seja matéria, corpo. Rompe-se a tradição que

concebia a relação entre a alma e o corpo como hierarquia do superior sobre o inferior.

O que há em relação ao amor é, portanto, a materialização, sem complexidade

psicológica.

A visão machadiana já se contrapõe à do Romantismo pela condição moral do

homem e, através dela, realiza a derrocada do amor sublime e redentor. Qualquer que

seja o ponto-de-vista do narrador das diferentes obras de Machado aqui analisadas, de

marido ou de amante, ele nunca está imbuído do tom apaixonado. O que ajuda nesta

construção é o distanciamento temporal, que permite visão crítica até dos prováveis

61 Idem, p. 948 62 Idem, p. 952

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sentimentos. Em Memórias póstumas de Brás Cubas ainda maior é o afastamento, pois

a morte destrói qualquer comprometimento do narrador para com a sociedade em que

esteve inserido em vida, liberando-o de sanções, independentemente do que diga.

Como se vê, não é possível versar sobre tema algum em Machado de Assis sem

considerar a técnica narrativa, sempre peculiar, aliás.

A visão cética e degradada da natureza humana se reflete no modo como não se

desenvolve o amor: ele é degradado porque o homem é degradado.

Sendo assim, em sua posição dessacralizadora do amor, Machado de Assis

assume uma atitude objetiva diante do sentimento: em momento algum a racionalidade

de Brás Cubas é posta à prova. Virgília, embora figura quase constante na vida afetiva

do protagonista, não chega a ‘ tirá-lo dos eixos’ . Ele não alimenta sonhos e não há a

mínima idealização; portanto, não há surpresas ou ‘queda de ídolo’ quando ela resolve

se casar com Lobo Neves.

Seja em Machado, seja no Naturalismo, o desmoronamento do amor é a

tendência dominante na fase Realista, e essa redução do seu papel na narrativa fica mais

evidente por suceder à inequívoca idealização no Romantismo.

Portanto, trata-se não da ausência do sentimento amoroso, mas da negação da

visão romântica do amor, da perda de sua aura por tal sentimento, que é trazido para seu

aspecto humano. O anti-romantismo é, assim, assíduo em Machado de Assis, e sua

atitude cética ante o sentimento amoroso, operando uma desmitificação, é uma das

maneiras de afirmar esta posição anti-romântica.

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69

3.1 – Naturalismo: a visão materialista do amor – O Cortiço

Durante o Naturalismo é abandonada qualquer visão de cunho espiritualista em

relação ao amor. Se no Romantismo casavam-se as almas, no Naturalismo há a fusão

material, a posse imediatista. Este posicionamento fica muito claro em O livro de uma

sogra, onde Aluísio Azevedo põe na fala de uma das personagens a concepção

naturalista da união de um casal, excluindo o sentimento: “ (...) aqui somos apenas um

casal que se ligou pelos únicos laços que Deus criou para unir o homem à mulher – a

cópula! Aqui somos o macho e a fêmea” .63

Muito mais clara fica esta concepção se nos lembrarmos da visão de amor

romântico, como “consórcio de almas” , nas palavras de Lúcia, de Lucíola:

Tu me purificaste ungindo-me com os teus lábios. Tu me santificaste com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o consórcio de nossas almas se fez no seio do Criador. Fui tua esposa no céu! E contudo essa palavra divina do amor, minha boca não a devia profanar, enquanto viva. Ela será meu último suspiro. (Lucíola, p. 249 – grifos nossos)

O desprezo pelos valores do amor romântico, que aspirava à pureza do corpo e

da alma, ao sentimento acima das convenções sócio-econômicas, deve-se às tendências

histórico-filosóficas surgidas na Europa e com grande receptividade no Brasil:

O espírito do tempo, agitado por poderosa geração intelectual, caracterizou-se, a partir de então, pelo predomínio das idéias do materialismo, cientificismo, laicização, anticlericalismo. Procedeu-se a uma vasta revisão de valores e postulados, que colocou em primeiro plano o pensamento “ moderno” : as doutrinas positivistas, de Comte e Littré, o biologismo de Darwin, o evolucionismo de Spencer, o determinismo de Taine, a concepção historiográfica de Buckle, o monismo de Kant, Schopenhauer, Haeckel.64

O sentimentalismo amoroso é substituído, no Naturalismo, pela redução ao

aspecto físico, pela reiteração obsessiva do sexo. Esta transformação se dá devido à

63 AZEVEDO, 1973: p. 122.

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preocupação científica, ao empirismo materialista e ao determinismo causal,

características do estilo herdado da França. Sendo assim, o amor naturalista é tão

artificial quanto o romântico, visto que segue prescrições, substituindo o sentimento por

instintos.

Na análise do amor, figura aqui mais o campo semântico sexual que o

sentimental. Escreve Lúcia Miguel Pereira, sobre a disparidade de abordagens das

relações amorosas:

E o sexo, que dantes fora banido das narrativas, entrou a ocupar uma posição exagerada, refletindo talvez uma mudança de ponto de vista em relação às mulheres. O determinismo biológico então em voga e as lições de Charcot sobre a histeria transformaram, efetivamente, em fêmeas os antigos anjos. Os estudos de temperamento desbancaram os casos puramente sentimentais. Ao mesmo tempo em que penetrava na fisiologia com Aluísio Azevedo e seus companheiros, e na psicologia com Machado de Assis (...)65

O esquematismo que, forçosamente, tenta comprovar teses científicas através do

enredo mostra-se incapaz de apreender a complexidade do real. A atração entre os

sexos não pode ser reduzida, na realidade palpável, a uma questão instintiva, animal,

que exclua sentimentalismo ou psicologismos.

De acordo com a estética naturalista, o amor espiritual não existe de fato, pois

ele se reduz a uma expressão violenta dos instintos.

Não há individualidade no Naturalismo: as emoções e reações da coletividade

são fruto da fraqueza humana em geral, e não de encantamentos particulares. Para

representar tais emoções são criados “tipos” , evitando assim que se caia em qualquer

visão particularizante.

É difícil falar em amor quando a personagem é a multidão, a coletividade.

Sendo assim, o sentimental, o psicológico, o individual perdem terreno para o

sociológico, o coletivo, e é este fator que limita a análise de nosso tema nesta estética.

O Cortiço é, das obras naturalistas brasileiras, umas das que menos tende a

centralizar-se nos casos patológicos limitados à alcova. Ainda assim, pertencem a este

âmbito as cenas de maior crueza e detalhismo. Mas neste romance os temperamentos

64 COUTINHO,2002: p. 27 65 PEREIRA, 1988: p. 30

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doentios não estão condicionados apenas pelo sexo, mas também pela ambição

desmedida, que não reconhece qualquer barreira ética.

Em outros, contudo, os instintos sexuais depravados tornam-se o tema único e

obsessivo da obra, como A carne, de Júlio Ribeiro e O Homem, do próprio Aluísio

Azevedo.

Provavelmente, por retratar além do sexo outras relações e outros problemas que

não os da alcova, O Cortiço tenha ganho destaque entre os romances naturalistas.

A ótica sob a qual não só o amor, mas toda a vida é encarada no Naturalismo

está perfeitamente expressa na já citada crítica feita por Machado de Assis, em 1878, a

O Primo Basílio. Estendendo as considerações do autor para toda a estética, e não só

para a referida obra, tem-se, ainda assim, uma percepção adequada de suas

características. Machado acusava o Naturalismo de só se preocupar com a parte

biológica, sensorial do homem, encarando a vida como “um fenômeno animal nada

mais” , tendo sido os personagens construídos apenas para representar o “espetáculo

dos ardores, exigências e perversões físicas” . Sobre a fixação no tema do sexo, diz que

se trata de “um erotismo que Proudhon chamaria de onissexual e onímodo” . 66

Tais argumentos ou acusações são bastante pertinazes ao presente trabalho, na

medida em que avaliamos como estreita a análise do amor no estilo em questão. A

união dos seres se dá pela atração dos corpos, por ganância ou ainda por instintos

patológicos.

Falar de amor em O Cortiço aponta-nos a ambição, a escalada por posições

sociais (como é o caso de João Romão e do próprio Miranda) e, principalmente, o

envolvimento com a questão erótica.

Para os estudos sobre o amor em o Cortiço, utilizaremos várias vezes a obra A

metáfora do corpo no romance naturalista, da professora Sônia Brayner. Nela, quando

se aborda tal tema, adota-se uma visão coincidente com a deste trabalho. As numerosas

citações desta obra justificam-se, portanto, por conter a expressão, de forma clara e

incisiva, da análise mais acertada sobre o sentimento amoroso em O Cortiço.

Para reiterar a ausência de idealização amorosa e a aproximação do amor com

instintos humanos básicos, cita-se a referida autora e alguns trechos de O Cortiço, em

que se faz uma comparação semântica comprobatória do que aqui se afirma:

66 ASSIS, 1980, p. 947 a 958.

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A área semântica do instinto sexual é nesta nominação (zoológica) muito explorada, quase sempre para representar a relação sexual em um estágio primitivo, sem qualquer tintura amorosa mais idealizante:67 Não podia chegar à janela sem receber no rosto aquele bafo, quente e sensual, que o embebedava com o seu fartum de bestas no coito (O cortiço,cap. II, P. 29) E gozou-a [Miranda], gozou-a loucamente, com delírio, com verdadeira satisfação de animal no cio (O cortiço,cap. I, p. 18) ... e outros ferreiros e hortelões, e cavouqueiros, e trabalhadores de toda espécie, um exército de bestas sensuais... (O cortiço,cap. XII, p. 213)

E com um arranco de besta-fera caíram ambos prostrados, arquejando (O cortiço,cap. XV, p. 258) A afetividade também é identificada às reações animais, de forma indeterminada: ... sem uma palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dor silenciosa e quieta de animal ferido, que a amava muito... (O cortiço,cap. XI, p. 190)

A preocupação com o caráter psicológico é bem menos aprofundada no

Naturalismo, tanto assim que, em O Cortiço, seres humanos são identificados como

“machos e fêmeas” em seus afetos e sentidos. Em outro aspecto são seres, mesmo

animais, ainda incompletos, não formados, posto que comparados a larvas, o que

diminui ainda mais a possibilidade de qualquer psicologismo ou requinte sentimental.

Tais seres não são fruto do amor, como se comprova na seguinte passagem:

E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. (O cortiço, cap. II, p. 27)

67 BRAYNER, 1973, p. 95

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O amor não é o encontro de seres. O desejo nasce em um deles, e o outro é

como objeto receptor, já que a natureza é a causa: “dir-se-ia que não era contra o

marido que se revoltava, mas sim (...) contra aquele sol crapuloso que fazia ferver o

sangue aos homens e metia-lhes no corpo luxúrias de bode” (O cortiço, cap. XVI, p.

144)

3.1.1 – Os casais n’O cortiço

Mesmo em se tratando de uma coletividade, a relação entre os casais, movida

ora pelo desejo, ora pela ambição é importante para o desenvolvimento de O Cortiço e

das teses naturalistas nele apresentadas. Neste ponto, a obra em destaque é bastante

pertinente ao tema aqui abordado.

O desejo e a sensualidade que cercam os brasileiros “tropicais” , Rita Baiana e

Firmo, são exatamente os elementos desestruturadores do enredo. Veja o que diz

acertadamente Sonia Brayner sobre este tópico:

Os pares Jerônimo/Piedade, João Romão/Bertoleza, Firmo/Rita Baiana, Miranda/ Dona Estela reúnem o enfoque principal das intenções deterministas de Aluísio Azevedo. Representam os três estágios do imigrante português e suas possibilidades de destino; o tropicalismo surgirá como eixo dinâmico para a modificação da estabilidade, na presença da sensualidade de Rita Baiana e no capoeira Firmo.68

O amor/ atração física é, de acordo com a visão naturalista, um dos fenômenos

inerentes ao Homem, e o importante é procurar ou demonstrar a causa que determina

seu desenvolvimento. Estão completamente abolidos a casualidade e o idealismo

românticos.

68 BRAYNER, 1973: p. 46

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3.1.1.1 – A relação entre Jerônimo e Rita Baiana: determinismo e sensorialidade

Assim, Rita Baiana é desejada por Jerônimo e por Firmo, em O cortiço, por sua

sensualidade quente, instintiva, como sugerem as metáforas animalizantes de um dos

trechos mais citados e famosos da obra, quase um clichê em termos de estudos

literários:

Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: (...) ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno de Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca. (O cortiço, cap. VII, p. 68)

Sônia Brayner, sobre o referido trecho, nos diz que:

A imagem da cobra ou serpente é a mais importante do texto, atingindo nível simbólico. Rita Baiana é o termo de comparação, símbolo do envolvimento sexual, sinuoso por excelência, trazendo para sua área semântica música, sons, frêmitos, identificáveis aos vários aspectos da cobra. Veneno e prazer, voluptuosidade e morte são constantes dessa simbologia.69

A autora chama a atenção, portanto, para a reiteração semântica e imagística da

cobra, como simbologia suscitadora de idéias ligadas ao sexo, confirmando a tese do

determinismo ambiental.

E a atração do português pela mulata, a tendência para o adultério, a

sensualidade, é “causada” pela tropicalidade brasileira. Aluísio Azevedo segue a

cosmovisão determinista de Taine. O envolvimento crescente de Jerônimo por Rita

significa para a economia da obra o determinismo do meio tropical sobre a frieza do

europeu; a adaptação deste à nova cultura.

69 BRAYNER, 1973: p. 100

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É a ordem natural dos acontecimentos, e não uma particularização. Sobre estes

‘ tipos’ gerais, tão caros ao Naturalismo, citemos novamente a crítica de Machado de

Assis a O Primo Basílio, exatamente no que tange à construção das personagens:

“Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo

outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência.”70

As leis da natureza, irrevogáveis, fazem surgir as generalizações. A ótica

sensorial pela qual é apresentado este conjunto, ou os tipos que o formam, é destacada

por Sônia Brayner:

A sensualidade está diretamente implicada na imposição de um sol abrasador que cedo desenvolve os instintos: a imagem da crisálida a transformar-se em borboleta à luz do sol é representativa dessa preocupação. O olfato possui uma distribuição quase animal na identificação da brasileira, sempre rescendendo a baunilha ou almíscar, em contraposição à portuguesa, com seu cheiro azedo. Observe-se que a distribuição temática acha-se polarizada de forma bastante ostensiva. Sinestesias ratificam essa dicotomia, na medida em que “aquela música embalsamada de baunilha” refere-se à Rita Baiana e por conseguinte, ao trópico. A sinestesia supre a necessidade de simultaneidade de sensações exacerbadas, na tese ambientalista explorada. Ao conjugar cheiros e ruídos, cores e sonoridades, intensifica o poder operatório dos sentidos sobre a linearidade da palavra, suprindo uma dificuldade na procura de maior expansão perceptiva. A necessidade de conjunto é imposta no nível vocabular, saturando significantes quase até à redundância. Este testemunho dos sentidos depõe a favor da obsessão corporal dominante no romance: uma contradição mal esboçada e não problematizada surge no corpo, que é criador da vida e da morte.71

O amor é, portanto, despertado pelos sentidos humanos e a sinestesia representa

esta característica do enredo na narrativa. A descrição das personagens envolvidas com

o amor erótico segue um ritual fetichista, que detalha movimentos, danças, cores, roupas

e cheiros, além das metaforizações. É um olhar muito preciso no enfoque dos objetos

eróticos.

Essa minúcia investe o narrador da atitude naturalista, que realiza uma nítida

composição plástica, sensorial, de cenas e objetos eróticos. Este fazer literário

70 ASSIS, 1980: p.949. 71 BRAYNER, 1973: p. 43

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aproxima-se do voyeurismo, de acordo com a visão de Marcelo Bulhões (autor de

Leituras do desejo: o erotismo no romance naturalista brasileiro), da qual partilhamos:

Tudo isso quer dizer que no romance naturalista não são somente os corpos desnudados, as cenas eróticas que se realizam, a ação das personagens, as manifestações sexuais; não é apenas a matéria que é erótica, mas também o movimento da focalização narrativa que a recolhe. Erótica é a procura do narrador para focalizar o universo sexual. Com isso, a prosa naturalista cai numa espécie de armadilha: revela, desvenda e “estuda” a perversão voyeurista e se transforma em veículo e expressão do próprio voyeurismo.72

Percebe-se também que, apesar de estar imbuído de um caráter vital, o amor, na

maioria das vezes, não é redentor. Pelo contrário: levou Jerônimo a arriscar-se, por

envolver-se numa briga por Rita Baiana e Piedade a desvios de conduta.

O tema da traição, tão caro à literatura romântica e às narrativas machadianas,

mostra-se importante também no desenvolvimento do enredo de O cortiço e na

pretensão do autor de comprovar as teses científicas da época através deste mundo

narrado que é sua obra.

Sobre o s casais de maior destaque, seguem algumas considerações acerca deste

assunto:

Jerônimo é o português trabalhador, “pescoço de touro e cara de Hércules”. Piedade, sua mulher, traz as características da camponesa “um todo de bonomia toleirona, desabotoando-lhe pelos olhos e pela boca numa simpática expressão de honestidade simples e natural” . Rita Baiana, a mulata sensual, amante de pagodes e alegria, surge como o eixo dinâmico que vai transformar a situação pacífica do casal de portugueses. A ela junta-se o companheiro Firmo, tipo do capadócio brasileiro.

Também Aluísio Azevedo sabe que esta é uma fórmula eficaz de manter o leitor

atento; é necessário despertar emoções que o puro discurso científico não despertaria.

O gérmen da ligação amorosa está, na verdade, na relação entre Rita e Jerônimo.

O português já não demonstra interesse algum por sua mulher, e Firmo, na verdade,

exerce sobre Rita Baiana um domínio de medo e de sensualidade, mas não propriamente

72 BULHÕES, 2003: p.187.

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da atração erótica. Há momentos em que todos, indiscriminadamente, são arrastados

pelos impulsos: Rita Baiana, Jerônimo, Firmo... todos agem de forma pulsional e

passional.

Como todos os acontecimentos na obra naturalista obedecem a certas leis

biofisiológicas, assim também ocorre com a atração entre os sexos.

A tropicalidade, a natureza brasileira, é fundamental na exacerbação do

erotismo, da promiscuidade. Sobre esta tendência de atribuir ao meio natural a

responsabilidade pelas transgressões das personagens, pondera Antonio Cândido, em

seu ensaio sobre o romance:

Mas além e acima dele (do ambiente) o romancista estabeleceu outro meio mais amplo, a “natureza brasileira” , que desempenha papel essencial, como explicação dos comportamentos transgressivos, como combustível das paixões e até da simples rotina fisiológica. Aluísio aceita a visão romântico-exótica de uma natureza poderosa e transformadora, reinterpretando-a em chave naturalista. Para ele, é como se a nossa fosse incompatível com a ordem e a ponderação dos costumes europeus; e ao cair nessa falácia mesológica, que tanto perturbou naquele tempo a vida intelectual brasileira e a própria definição de uma consciência nacional, ele deixa transparecer o pessimismo, alimentado pelo sentimento de inferioridade com que a sua geração retificou a euforia patriótica dos românticos.73

Tal prática tinha base em teorias científicas da época, que acabavam por

inferiorizar o meio tropical em relação ao ambiente europeu, mas eram aceitas por

estarem na Europa as culturas matrizes.

Mas não só a Natureza justificava as transgressões. As diferenças raciais tinham

também um peso considerável nas teorias da época. Rita Baiana, exalando

sensualidade, é o motivo de brigas e separações – e é mulata. Ela representa sua raça,

elemento transgressor e desagregador: “No Brasil, quero dizer, n’O Cortiço, o mestiço

é capitoso, sensual, irrequieto, fermento de dissolução que justifica todas as

transgressões e constitui em face do europeu um perigo e uma tentação.”74

73 CÂNDIDO, 1993: p. 138 74 Idem, p. 139.

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Assim, Jerônimo e Rita Baiana não se atraem de maneira consciente, mas são

impulsionados pelo determinismo do meio e do sangue (raça), de maneira irresistível.

João Romão, única personagem da obra a superar a força deste determinismo,

não se apaixona e suas relações se justificam apenas pelo dinheiro e nunca por qualquer

sentimento ou atração física.

A atração de Rita por Jerônimo também serve a propósitos ideológicos, mesmo

que representados pela fisiologia determinante e preconceituosa que faz da mestiça

mulher de “sangue quente” . A ideologia veiculada é a da atração de povos menos

desenvolvidos pelo europeu, visto como superior: “o sangue da mestiça reclamou os

seus direitos de apuração e Rita preferiu no europeu o macho da raça superior” . (O

cortiço, cap. IX, p. 81)

A aproximação entre Jerônimo e Rita Baiana segue uma funcionalidade um

pouco diversa da dos outros casais: é a corroboração do “abrasileiramento” do

português, a suplantação da cultura européia pela tropicalidade. Jerônimo é ‘objeto de

experimentação’ da prosa naturalista como criatura dominada pela irresistibilidade do

desejo sexual, expressão das pulsões, exacerbadas pelo clima tropical. O viés do sexo,

do desejo por Rita Baiana, é um dos fatores da queda de Jerônimo, que “abrasileirou-

se” . Já Rita aparece como elemento de sedução erótica. Sendo assim, a força da atração

entre ambos não se deteriora até o final do enredo. Este caráter transformador dos

trópicos, representado principalmente por Rita Baiana, está bem exemplificado no

seguinte trecho:

O português abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e deu-se todo, todo inteiro, à felicidade de possuir a mulata e ser possuído só por ela, só ela, e mais ninguém. (O cortiço,cap. XIX, P. 156)

Além de tudo o que foi apontado, Rita Baiana também está imbuída de toda uma

simbologia. Assim como Iracema representava a Terra em narrativa romântica, aqui,

com a personagem Rita, também é possível tal transposição. Antônio Cândido, em O

discurso e a cidade, faz uma aproximação brilhante, cuja explicação é bastante

concernente ao nosso tema:

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O abrasileiramento de Jerônimo é regido quase ritualmente pela baiana, que o envolve em lendas e cantigas do Norte, dá-lhe pratos apimentados e “ o corpo lavado três vezes ao dia e três vezes perfumado com ervas aromáticas”; e este abrasileiramento é expressivamente marcado pela perda do “ espírito da economia e da ordem”, da “esperança de enriquecer” . É que a sua paixão violenta é apresentada pelo romancista como conseqüência das “ imposições mesológicas”, sendo Rita “o fruto dourado e acre destes sertões americanos”. Sob tal aspecto há n’O Cortiço um pouco de Iracema coada pelo Naturalismo, com a índia = virgem dos lábios de mel + licor da jurema, transposta aqui para a baiana = corpo cheiroso + filtros capitosos, que derrubam um novo Martins Soares Moreno finalmente desdobrado, cuja parte arrivista e conquistadora é João Romão, mas cuja parte romântica e fascinada pela terra é Jerônimo. Iracema e Rita são igualmente a Terra. Lá, com o filtro da jurema, aqui, com o do café, que tem um sentido afrodisíaco e simbólico de beberagem através da qual penetram no português as seduções do meio: “ (...) a chávena fumegante da perfumosa bebida que tinha sido a mensageira dos seus amores”.75

O erotismo era a maneira mais legítima, à época, de o brasileiro envolver o

branco europeu. Este, por sua vez, atraía o brasileiro, no caso representado pela mulata

Rita Baiana, simplesmente porque pertencia à “raça superior” .

3.1.1.2 - João Romão, Bertoleza e o egoísmo

Quanto ao casal João Romão e Bertoleza, a relação funciona muito mais como

um acordo comercial do que por qualquer interesse erótico-amoroso. Bertoleza serve de

“amante e besta de carga” 76 a João Romão em troca de uma falsa alforria. Em nenhum

momento ela aparece como objeto de desejo ou veículo de sensualidade, o que distancia

o relacionamento do casal do tema abordado neste estudo.

A relação entre João Romão e Bertoleza foge a toda classificação sentimental/

amorosa. Enquanto no Romantismo os heróis e heroínas lutavam contra o casamento

realizado apenas por motivações econômicas, que acabava por modelar todo o

organismo social, no Naturalismo buscam-se exatamente tais motivações para a união,

em sua maioria. O exercício sexual dá-se por pura necessidade fisiológica e não há

instituição que una as duas personagens: trata-se apenas de exploração. A união dos

dois representa a lógica capitalista – Bertoleza serviu a ele como degrau na fase em que

75 CÂNDIDO, 1993: p. 142. 76 Idem, p. 127.

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São Romão ainda era cortiço. Com a ascensão para avenida, o papel da negra foi

dispensado, assim como “as primitivas noventa e cinco casinhas” .

E o desejo de João Romão de se casar com a filha do Miranda é oriundo apenas

da ambição de galgar a uma classe social superior à sua. Bertoleza, por sua vez, era

grata por estar liberta, mas quando soube-se ludibriada, porque ainda era escrava,

matou-se por sentir-se usada e traída e porque não aceitaria novamente tal condição.

Seu desespero não inclui nenhuma razão lírico-amorosa. Percebe-se, portanto, que,

tanto na união informal com Bertoleza, quanto na perspectiva de casar-se com a filha do

Miranda, João Romão, como personagem tipicamente naturalista, exclui qualquer

relação afetiva, visando apenas enriquecer, no primeiro caso, e ascender socialmente, no

segundo.

O autor utiliza um recurso bastante interessante para não resvalar para o

sentimentalismo, ou ainda despertar no leitor arroubos emocionais: intervenções do

narrador com justificativas generalizantes, que endossam os valores aceitos na época:.

Bertoleza aceita unir-se a João Romão, “porque, como toda cafuza, [...] não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua” (capítulo 1). Rita Baiana é “volúvel como toda mestiça”, Jerônimo modifica-se no Brasil, “ vencido, às imposições do sol e do calor” . Basicamente, toda ação e seu personagem-agente possui uma interpretação assertiva feita pelo narrador, que através dessa avaliação controla a emotividade do leitor.77

O egoísmo humano é outro aspecto nulificador de qualquer sentimentalismo em

O cortiço. João Romão só se preocupa com sua ascensão social e permanece unido a

Bertoleza enquanto ela serve de instrumento à realização de seu intento, como força de

trabalho e válvula de escape para seus instintos sexuais. Ao passar de instrumento a

obstáculo, na iminência de realização do sonho de Romão, este a descarta, pois nenhum

laço afetivo se criou em meio ao egoísmo exacerbado.

No universo de O cortiço, o egoísmo e o interesse aparecem como forças

determinantes. O egoísmo de Miranda, por exemplo, mais do que mostrado, é

verbalizado, quando passa a cobiçar o título de barão:

77 BRAYNER, 1973: p. 54-55

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(...) e desde então principiou a sonhar com um baronato, fazendo disso o objeto querido de sua existência, muito satisfeito no íntimo por ter afinal descoberto uma coisa em que podia empregar dinheiro, sem ter, nunca mais, de restituí-lo à mulher, nem ter de deixá-lo a pessoa alguma. (O cortiço,cap. II, p. 30)

Cabe ainda ressaltar a relação inequívoca de interesse que constitui o elo do

casal Miranda. Na burguesia também se observa a falta de sentimento e a ausência de

idealismo. Sônia Brayner, em A metáfora do corpo no romance naturalista, traça um

interessante paralelo entre os casais Miranda /Dona Estela, e Bruno/Leocádia. Ao final

de tal análise, percebe-se uma relação muito mais próxima do sentimento amoroso entre

os últimos.

As seqüências narrativas do casal Miranda/d. Estela contrastam com as soluções dadas para o casal do cortiço Bruno/Leocádia. O flagrante adultério é a mesma razão para o afastamento, entretanto o português não quer escândalo e perda de situação financeira e social: acomoda-se entregando-se apenas a uma relação carnal desprovida de afeto, odiada na sua inevitabilidade. Leocádia é expulsa e apontada publicamente como adúltera: o nível é popularesco, instintivo, escandaloso na seqüência da quebra dos bens jogados pela janela. Entretanto, o afeto existe em Bruno, enquanto o interesse domina Miranda. 78

A acumulação de capital e o prestígio social, além de estarem acima de qualquer

outro valor, fazem com que aqueles tipos neguem a existência de familiares e

enxerguem quem quer que seja como degrau, mesmo suas companheiras. As

divagações de João Romão comprovam esta tese: “Teria ânimo de dividir o que era seu,

tomando esposa, fazendo família e cercando-se de amigos?” (O cortiço, cap. X, p. 96)

João Romão, na verdade, é agente da redução naturalista sofrida mais

diretamente por Bertoleza e indiretamente pela escória do cortiço, como Jerônimo, Rita

Baiana e Firmo, que os equipa a animais explorados. E a sexualidade, da forma como é

exercida pelos pares, é mais um indício desta redução animalizante.

Tais tendências de abordagem não são individuais; pelo contrário: respeitam

fielmente os pressupostos do movimento naturalista. Vejamos a clara definição de

78 BRAYNER, 1973: p. 56

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Naturalismo fornecida por Antonio Candido, para que se comprove o elo entre tais

conceitos e o que aqui fora afirmado:

“Naturalismo”, no sentido mais amplo, significou a busca de uma explicação materialista para os fenômenos da vida e do espírito, bem como a redução dos fatos sociais aos seus fatores externos, sobretudo os biológicos, segundo os padrões definidos pelas ciências naturais. As instituições da sociedade, principalmente as jurídicas, deixaram de ser consideradas como manifestações da Providência, ou da razão humana, para serem interpretadas como produtos, como conseqüência necessária de certos fatores condicionantes, dos quais se destacam o meio físico e a raça. O romantismo foi combatido, entre outras coisas, no que tinha de compromisso com as filosofias de cunho espiritualista, e no que tinha de idealização da realidade. E os partidários das novas idéias foram levados a investigar os caracteres originais da nossa sociedade, à luz do determinismo da raça e do ambiente(...)”79

O erotismo exacerbado de Jerônimo é uma das maneiras de demonstrar que este

português cedeu aos impulsos instintivos, nivelou-se aos nativos da terra e perdeu a vez

na luta por acumulação. O mesmo não acontece com João Romão, que, portador de

uma ambição cruel, não perde de vista seus objetivos de ascensão social, não se deixa

vencer pelos instintos baixos, “usando as forças do meio, não se submete a elas”80.

O egoísmo de Jerônimo percebe-se em relação à mulher e companheira fiel,

Piedade, traída, como a cultura portuguesa, pelo marido.

Por outro lado, a narrativa não apresenta indícios de que Piedade permaneça

todo o tempo ao lado do marido, por paixão ou por amor incondicional, ainda que ele a

traia. É mais uma fidelidade animal, obrigatória, da esposa ao provedor, que

propriamente amor. Trata-se de uma espécie de dependência: “E Piedade, assentada à

soleira de sua porta, paciente e ululante, como um cão que espera pelo dono... (O

cortiço, cap. XVI, p. 143)

Não há sexualidade na obra que não envolva dinheiro, comércio, posição social.

Miranda permanece unido à mulher adúltera, que seduz subalternos, devido às

interligações entre seus bens e os dela; João Romão “compra” Bertoleza para que faça

as vezes de amante e criada. E o desejo de ascensão de Rita é um fator que a atrai para

Jerônimo.

79 CANDIDO & CASTELLO, 1987: p. 283 80 CÂNDIDO,1993: p. 135.

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3.1.2 – O discurso do amor erótico: marcas da linguagem simbólica

Se a representação do erotismo já assume dimensão importante na corrente

naturalista desde a obra de seu iniciador, Zola, no Brasil impregnou-se de lirismo e

sensualismo, como bem demonstra a construção da personagem Rita Baiana. Ainda que

o discurso da ciência esmere-se para encontrar um efeito de objetividade, muitas cenas

em O Cortiço, principalmente as que flagram a descrição de Rita, adotam o discurso da

transfiguração simbólica, promovendo uma abertura para a conotação e a polissemia.

Um outro aspecto da linguagem na obra de Aluísio Azevedo que interessa ao

nosso tema é que, embora haja expressões lexicais colhidas do plano da animalidade,

confirmando a concepção homem-besta, nota-se a ausência de vocabulário chulo

mesmo para representar situações de caráter sexual.

Embora Zola tenha demonstrado que, para o Naturalismo, deve-se procurar

produzir o efeito sistematizador da ciência, a representação do erotismo em algumas

obras naturalistas, como O Cortiço, aproxima-se, neste aspecto, muito mais do figurado,

do metafórico, do que do científico.

A linguagem científica procura ser antipolissêmica e anticonotativa, para fugir

da ambigüidade, por meio de termos com significado único e universal. Não é o que se

vê nas comparações e zoomorfizações presentes na obra. Há nela uma simbiose entre

os dois modos de representação, tendendo o discurso erótico-amoroso ao aspecto

transfigurador da linguagem. O corpo não é retratado apenas como organismo, mas

como ‘corpo erotizado’. Aliás, no Naturalismo, os sentimentos são dependentes dos

corpos.

Vejamos a figura da serpente, utilizada para a caracterização de Rita Baiana:

(...) feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher. Mas ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; ela era a cobra verde e traiçoeira (...) picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional” (O CORTIÇO, cap. VII, p. 68)

Tal imagem é tomada como exemplo de transfiguração simbólica, na obra já

citada do professor Marcelo Bulhões. Segundo ele, a imagem é captada nos romances

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naturalistas pelo privilégio que o próprio símbolo confere à temática da sexualidade e

do erotismo:

A serpente é uma imagem simbólica das mais poderosas a aplicadas ao contexto do erotismo e da sexualidade, não apenas no que se refere à prosa naturalista, mas à tradição remota da literatura e da mitologia. O aspecto demoníaco associado à serpente por ser responsável pelo pecado original, seu poder de hipnotizar e seduzir, sua forma fálica de sugestão libidinosa e obscena, tudo isso encontra oportunidade de atualização nos romances naturalistas. Ela está presente em O Cortiço, associada à sensualidade de Rita Baiana.81

Esta é apenas uma das palavras que tornam possível o exercício do potencial

lexical sugestivo e polissêmico , colocando a nu a citada relação entre o nível simbólico

e o científico do amor-erótico na obra naturalista.

Na zoomorfização destacam-se outros elementos de associação fálica, como a

lagarta e a muriçoca. Como um todo, o discurso converge para a construção de um

efeito baseado em movimentos eróticos, associados a uma dança cadenciada, em

rebolados, subidas e descidas. Assim, o prazer sexual na obra, é encarnado pelo

discurso do prazer, distanciado do discurso do saber científico.

Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra titilando. (O cortiço, capítulo VII, p. 67)

O discurso que mostra os objetos do prazer, como vimos na caracterização de

Rita Baiana, parece mergulhado no simbólico e animado de visualidade; é sedutor.

A música é um outro fator que exacerba a sensualidade nas personagens de O

Cortiço. Esta também apresenta-se desvinculada de qualquer cientificismo:

81 BULHÕES, 2003: p. 137

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Nada mais que os primeiros acordes da música crioula para que o sangue de toda aquela gente despertasse logo, como se alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas bravas. E seguiram-se outras notas, e outras, cada vez mais ardentes e mais delirantes. Já não eram dos instrumentos que soavam, eram lúbricos gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesi de amor, música feita de beijos e soluços gostosos; carícia de fera, carícia de doer, fazendo estalar de gozo. (O cortiço, capítulo VII, p. 66)

Marcelo Bulhões ressalta também, em sua obra, a simbiose que existe no

Naturalismo entre o discurso literário e o discurso científico na exposição do amor-

erótico. Seu ponto-de-vista parece-nos bastante coerente:

No entanto, é preciso instaurar a percepção do estado de ambivalência discursiva no interior da prosa naturalista brasileira na consideração do corpo e de sua expressão erótica e sexual; ambivalência que não compromete o projeto naturalista. Ao lado do efeito de sistematização, o discurso encaminha-se na direção da produção de efeito em sentido contrário: lirismo e transfiguração em matizes simbólicos e metafóricos. Aqui, a busca do conhecimento carnal segundo o paradigma científico se recolhe e cede espaço às investidas da linguagem metafórica e simbólica, ao mesmo tempo em que as situações narrativas se envolvem com os componentes da imaginação e da fantasia. Desse modo, num aparente paradoxo, o senso do real da prosa naturalista precisa se impregnar do elemento metafórico como motor para a eficácia da comunicação.82

Ainda que o Naturalismo condene a imaginação, é difícil, no fazer literário,

manter-se dela distante, principalmente em relação ao tema do erotismo, dentro do qual

se identifica comumente o binômio imaginação-desejo como parte dos arranjos

romanescos. É assim no romance de que tratamos.

Se não houvesse a transmutação metafórica operada por Aluísio Azevedo em O

Cortiço, haveria na obra, assim como ocorre em todas as narrativas naturalistas em que

essa não se opera, um Eros deformado, camuflado em saber científico. O prazer, aqui,

não é disfarçado de discurso científico puro.

Apesar de tudo o que se disse sobre o discurso simbólico acerca do amor erótico,

não há afastamento dos aspectos naturalistas típicos, no que diz respeito à intriga: o

impulso sexual de contingência biofisiológica, o condicionamento do meio e o atavismo

82 Idem, p. 117

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da fêmea e do macho estão presentes de forma marcante. O impulso irrefreável do

desejo se mostra, principalmente, no par Jerônimo-Rita, conforme já foi visto.

Vê-se que as motivações para a formação e dissolução de pares no Naturalismo

são inúmeras, mas todas excluem o sentimento amoroso de fato. A redução à fisiologia

opera esta transposição do sentimental para o instintivo, o que, para o tema aqui

enfocado, resulta num sensível esvaziamento.

3.1.3 – O amor em O cortiço: império dos instintos eróticos

Na maneira de encarar o amor em O Cortiço reside uma das características

naturalistas mais marcantes, que distancia tal estética da romântica: a anulação da

dialética corpo X alma. Não há, na visão naturalista, o senso de transcendência das

essências em relação aos objetos físicos. As imagens belas e prazerosas, o agradável faz

o homem cativo de seu corpo.

No entanto, o exagero do concreto, da falta de psicologismo e de lirismo opera

tantas distorções na realidade quanto o idealismo romântico. O sentimento amoroso não

é encarado pelo homem de maneira tão crua quanto quer o “cientificismo naturalista” .

Além disso, nem a vida, nem a ficção, nem mesmo o sentimento amoroso resume-se à

alcova, via única encontrada por muitos dos romances naturalistas. Tal deformação se

dá porque os autores forçam situações narrativas para que favoreçam à estética

fisiológica.

Assim, a finalidade de desmascarar o sentimentalismo em favor da razão é

ideologicamente alcançada, mas a razão naturalista também é deturpadora da realidade,

só que por vias diversas das do Romantismo. Percebe-se que as paixões em O Cortiço

são todas comprometidas com vícios e estão a serviço do determinismo cultural e

fisiológico, assim como das ideologias estereotipadas.

No Naturalismo, foge-se à regulação normativa do amor sexual. A instituição

do casamento, por exemplo, a coabitação, desgasta o desejo, assim como a “ fidelidade

genital” . Tal ponto de vista pode ser exemplificado não só pelo afastamento de

Jerônimo e Piedade, como também pela repulsa do Miranda pela mulher que, no

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entanto, envolve-se com os caixeiros. Faz-se apologia da sexualidade liberta e

espontânea da natureza, não deixando de retratar os entraves sociais interpostos a esta.

Nota-se através de toda esta análise sobre o amor, então, que o tratamento do

tema, em O Cortiço, é utilizado como meio para a comprovação de algumas das teses

defendidas no Naturalismo, como a influência do meio sobre o homem.

A inexistência de uma dimensão espiritual ao tratamento do amor, a redução

deste à pura atração carnal, no Naturalismo, se prende também à desvalorização do

indivíduo pela ciência da época. As personagens sofrem da ausência de qualquer

questionamento existencial, pois são expressões da coletividade, de o que é ser humano,

em geral. São representações do agrupamento social, jamais indivíduos, daí a anulação

das sentimentalidades, tão contrária à posição romântica que afirmava a autonomia do

indivíduo.

Em tais representações concentram-se os valores dominantes no espaço

histórico-social do final do século XIX. As personagens não são dotadas de consciência

subjetiva, de tão próximas à pura animalidade. Na verdade, grande parte do contexto de

produção de obras como O Cortiço foi gerada pela ciência da época, e, para o tema aqui

abordado, o determinismo de H. Taine é a tendência mais importante, pois que parte do

princípio de que o comportamento humano é determinado por três aspectos básicos: o

meio, a raça e o momento histórico. Sob a sua influência, o Naturalismo crê na

subordinação da psicologia à fisiologia, e desta ao meio, portanto, na influência

determinante deste sobre o comportamento e a psicologia das personagens.

Contudo, em que pese a estreiteza de sua moldura ideológica, o Naturalismo,

pelo tratamento mais livre da sexualidade, pela ênfase concedida à dimensão erótica do

amor, terminou deixando um legado importante para o romance posterior, mormente o

da geração de 30.

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3.2 –Memórias póstumas de Brás Cubas: a desmitificação do amor

Machado de Assis aliou a consciência crítica à inspiração. Após superada a fase

romântica de sua obra, não seguiu todas as características comuns à estética realista

subseqüente: antes, questionou-a. A presença do narrador interveniente é um exemplo

de tal questionamento. O Realismo tinha por princípio criar uma ilusão de verdade nos

acontecimentos narrativos e este tipo de narrador, arcaísmo que acredita-se tenha sido

influência de Sterne, é sempre um lembrete ao leitor do caráter ficcional da obra.

Machado, na verdade, absorve e transfigura as tendências realistas da época. Na

genealogia de sua obra encontra-se o romance inglês do século XVIII (Sterne, Fielding)

e ainda do português Garret. Por outro lado, a importância crescente do ponto de vista

em seus romances aponta para a prosa impressionista e moderna.

Talvez a forma literária mais eficaz de dessacralização do amor tenha sido a sua,

mais particularmente em Memórias póstumas de Brás Cubas. O processo se concretiza

paulatinamente durante a narrativa, da maneira mais racional possível A finalidade do

distanciamento temporal, neste caso, é de ironia crítica à sociedade e ao próprio

sentimentalismo hipócrita, e não traduz um mea culpa.

Em sua obra, Machado de Assis desvenda as fraquezas da humanidade, e esta

tendência se reflete na perspectiva com que aborda o amor: ele existe, de fato, em certo

momento, entre Virgília e Brás, entre Bentinho e Capitu; no entanto, não da forma

inesgotável como acreditavam os românticos. A ambição de Virgília, o ciúme de

Bentinho, são algumas das fraquezas que esvaziam-no, aproximando-o da realidade

cotidiana do homem comum.

Em Dom Casmurro e em Memórias póstumas de Brás Cubas pode-se fazer a

análise das experiências sentimentais e amorosas de seus narradores através dos

meandros do discurso. Quanto às demais personagens, principalmente Virgília e

Capitu, é possível apenas uma visão exterior, a partir da perspectiva dos narradores.

O autor não se prende aos lugares comuns da observação geral e adota um

discurso, uma retórica, que particulariza sua visão de mundo. Sendo assim, as relações

amorosas são observadas por pontos-de-vista incomuns, imbuídos de um sarcasmo sem

par.

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O casamento, por sua vez, é mais uma necessidade, pelo menos feminina, do que

uma questão de sentimento. A mulher solteira é mal vista pela sociedade do século XIX

e, Machado de Assis, assim como Alencar já o fazia, reproduz este preconceito em sua

obra.

Em Quincas Borba, vale ressaltar, ainda que não nos aprofundemos no assunto,

a relação entre Sofia e Cristiano Palha: os dois acertam-se muito bem, mas o que os une,

claramente, não é o amor. São mais cúmplices, comparsas nos negócios, do que marido

e mulher amantíssimos. Ele dispensa os ciúmes e age como um agenciador da própria

mulher, em nome do dinheiro. Ainda assim, são só insinuações e o adultério não se

consuma.

O adultério, aliás, na obra machadiana, assume uma estreita ligação com o tema

do amor. A não-idealização da mulher faz com que as mulheres solteiras busquem o

casamento por motivos unicamente sócio-econômicos. No entanto, as casadas buscam a

realização amorosa, ainda que fora do casamento. O amor é importante sim, mas não é

a intenção primeira - por isso, pensa-se nele após o casamento. Virgília é a prova cabal

desta tese. E mais: demonstra-se que mesmo este amor adúltero não é intenso – tende

ao esvaziamento e não dispõe os amantes a lutarem contra tudo e contra todos. Virgília

e Brás separam-se sem dores, sem culpas, sem desespero.

A efemeridade do amor, o distanciamento dos amantes, não se dá pela morte,

mas pela própria instabilidade humana, pelos diferentes interesses e pontos-de-vista das

personagens. Através delas, o autor questiona a validade de muitos sentimentos e das

próprias relações: “Há um gosto de cinza nos seus livros, as cinzas da inanidade de

tudo (...)” 83

O esvaziamento do amor é o mesmo esvaziamento de todos os sentimentos e da

vida; Bentinho termina a narrativa levando uma existência sem sentido; e Brás Cubas,

que não tem mais existência física, traduz esta falta de sentido nulificando toda a vida

passada, reduzindo-a à miséria:

Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive

83 PEREIRA, 1955: p. 27

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filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. (MPBC, capítulo CLX, p. 208)

Lúcia Miguel Pereira, na biografia de Machado, diz, sobre as reflexões do autor,

quando ensimesmado: “ (...) um abismo se abria a seus olhos: o nada, a obsessão do

nada, ‘a voluptuosidade do nada’ ”84 – e sua obra parece imbuída desta mesma

obsessão.

Para o esvaziamento de que falamos construiu-se Brás Cubas um perfeito

egoísta: só se preocupava com a satisfação das suas vontades, fossem elas cavalgar o

moleque Prudêncio na infância ou dissipar o dinheiro do pai na tentativa de se tornar o

preferido da prostituta Marcela. Nas relações com Virgília não foi diferente, embora

esta lhe disputasse o cetro do egocentrismo. O amor de Brás era um teatro: ia do

apaixonado ao indiferente em dois atos e, se a indiferença se faz mais forte, opõe-se a

ela o fato de o protagonista não ter se casado com nenhuma outra mulher, mas ter

montado uma casa para viver os amores espúrios com Virgília, ainda que Lobo Neves

tenha aparecido quando os dois já namoravam. Ou o amor, apesar de disfarçado pelo

tom de desdém, era tanto que suplantou o orgulho, ou, de fato, Virgília não tinha para

ele significativo valor, não se importando o narrador em partilhá-la com outro homem.

Crê-se, pelo egoísmo que transparece no longo diálogo com a vida que é a narrativa de

Memórias póstumas de Brás Cubas, que a indiferença suplanta o amor. Sobre este

egoísmo, nos fala Lúcia Miguel Pereira:

Cada criatura é um mundo fechado, impenetrável aos outros, que abalroa se os encontra em seu caminho. O egoísmo, ora cínico, ora hipócrita, ora ingênuo, é um dos móveis mais freqüentes nas ações. O universo de Machado de Assis é, em grande parte, uma expressão do egoísmo. Egoísmo da natureza, que sacrifica o indivíduo à espécie; egoísmo da sociedade que, ara manter os seus estatutos, não hesita em acorrentar as criaturas a situações desgraçadas; egoísmo da família, tudo subordinado às suas conveniências; egoísmo de cada ser, exigindo sempre dos outros muito mais do que lhes dá.85

De qualquer forma, o tempo e o tédio arrefecem as relações entre os amantes,

nulificando a função deste sentimento. Este esvaziamento, que serve de tema a esta

84 Idem, p. 151

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parte do trabalho, fica muito claro no capítulo VI, quando Brás Cubas faz uma análise

de sua relação com Virgília, vinte anos após terem namorado:

Virgília deixou-se estar de pé; durante algum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dous grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dous corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados. (MPBC, cap. VI, p. 20)

A perenidade do sentimento, a falta de grandeza e a facilidade com que a volúvel

Virgília casou-se com outro esvazia o sentido de sentimento sólido que seria o amor de

fato. Nem o desejo restou, já que a expressão “saciados” tem clara conotação negativa,

de fastio mesmo, e não de satisfação.

As boas memórias afetivas são, não à toa, as mais distantes, como se a

juventude, e não o amor, colorisse um pouco mais o mundo e as relações. Mas ainda

assim, nada muito esfuziante. Para Machado, “o tempo é um rato roedor das coisas” 86,

e isso fica claro também na passagem em que Brás Cubas, ao encontrar uma antiga carta

de Virgília, já quando estavam por se separar, acha-a “descomunalmente audaciosa, mal

pensada e até ridícula” (MPBC, cap. CXI p. 161), por pensar que fora escrita em época

recente. É a prova de que o tempo corrói os sentimentos, dissolvendo-os e fazendo

nascer o tédio.

O romance entre Brás e Virgília é tão ziguezagueante quanto a narrativa. Nesta,

o caráter é dado pelas delongas, pelas intromissões do autor, pelo tempo psicológico.

Naquele, há a interrupção, com o casamento de Virgília, a retomada após este, a nova

interrupção, com a transferência de Lobo Neves para outra província e o reaparecimento

da amante nas últimas horas de vida de Brás.

Entre os dois houve amor: pálido, sem entusiasmo, sem frutos, mas houve.

Chama também a atenção para as intenções do autor em Memórias póstumas de

Brás Cubas o fato de a biografia da personagem ser apresentada por partes justapostas,

não obedecendo à ordem cronológica, para abordar determinados aspectos humanos

85 PEREIRA, 1988: p. 77-78 86 ASSIS, Esaú e Jacó: p. 70.

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com ironia mordaz. Este fator reitera a importância da crítica, ficando esta acima

mesmo do enredo.

A separação entre o tempo da enunciação e o tempo do enunciado tem uma

importante função em Memórias póstumas de Brás Cubas. A ótica racional pela qual é

visto o amor e muitos outros temas, na obra de Machado, tem como elemento

fundamental o ponto-de-vista do personagem-narrador, que avalia tudo com

distanciamento temporal, sem estar emocionado pelo “calor da hora” . Este recurso dá a

ele a autoridade de analisar a vida e a sociedade em que esteve inserido, e de optar pela

adoção de um enfoque objetivo, no lugar da sentimentalidade de Paulo, em Lucíola. Tal

opção deixa clara a tendência da época e dos romances em estudo.

Os enredos de Memórias póstumas de Brás Cubas e de Dom Casmurro

representam uma espécie de resgate das relações vividas e, como estas não deram certo,

há toda a visão cética que os perpassa. Muito mais ceticismo ainda há na visão de Brás

Cubas, seja acerca do amor ou de qualquer outro sentimento positivo, já que, como está

morto, desvincula-se de qualquer amarra ou compromisso social: não precisa responder

a cobranças. A estratégia de fazer de um defunto o narrador-personagem tem a função

de livrar-se da visão comprometida com aquilo que é socialmente aceito, típica de

autores românticos, como comprovou a análise dos romances de José de Alencar.

Assim, o narrador fica fora do alcance das pressões sociais. Legitima-se, a partir

daí, desta situação ‘post mortem’ , o caráter cético e descomprometido da ótica do

narrador, ainda que ele próprio seja um ‘ filtro’ dos acontecimentos narrados, fator que

relativiza seu ponto-de-vista.

Desta forma, conclui-se que o distanciamento entre narrador e matéria narrada

minimiza os laivos de sentimentalismo típicos do momento dos acontecimentos, e talvez

seja por isso que o autor assim constrói duas de suas obras mais significativas na

abordagem das relações homem-mulher, ou do casamento: Memórias póstumas de Brás

Cubas e Dom Casmurro.

Não se pode deixar de notar, porém, que um narrador-personagem como

Bentinho procura, através da narrativa, reviver a história, de forma a convencer e

convencer-se do que acredita ter acontecido. O jogo verbal de Bentinho procura

permear de um caráter inequívoco sua visão da trajetória de seus amores com Capitu.

Sobre este tipo de construção, Luís Filipe Ribeiro diz, em sua obra já aqui citada:

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Mas, para o analista, o perigo reside em confundir as imagens que, depois de provocadas pelo verbo, se alojam em sua imaginação, no indispensável amálgama texto-leitor que é o próprio sangue e carne da grande literatura, com a totalidade do fenômeno literário. Na tarefa analítica há que se separar, sempre que possível, os dois pólos do processo87

Bentinho prende-se à sua visão unilateral e constrói o mundo narrativo de Dom

Casmurro, que é aquele que chega ao leitor. A ótica narrativa não é, portanto, objetiva

– o narrador em primeira pessoa a trai.

Todo esse processo narrativo é importante na discussão do tema do amor em

Machado. Bentinho, o ciumento marido que analisa até o olhar da esposa no enterro do

melhor amigo, julgando-o um olhar traidor, só narra sua história depois de Capitu

morta, assim como todas as outras personagens que pudessem contradizê-lo. A traição,

assim como as feições do amor entre as duas personagens, faz parte de uma construção

discursiva intrincada, que ilude o leitor. Bentinho enfatiza os momentos em que não

passava com Capitu, ocultando detalhes do tempo em que estiveram casados. Este

procedimento intenta camuflar o amor e as possíveis provas de inocência da esposa.

Sua opção foi, então, pelo silenciamento, não só dela, em toda a narrativa, mas, neste

período de suposta harmonia, dele também. Relatou apenas o que importava à sua

versão da história: a dúvida.

Já em Memórias póstumas de Brás Cubas a história se cria não a partir de um

marido possivelmente traído, mas do próprio amante.

Virgília e Capitu são retratadas como dissimuladas pelos narradores de MPBC e

de Dom Casmurro, respectivamente. No entanto, o narrador de MPBC mostra fatos para

denunciar a dissimulação da primeira: ela assume um noivado com Lobo Neves quando

já conhecia Brás Cubas, apenas porque aquele tem uma carreira política promissora. E

depois torna-se amante de Brás. Ao receber as visitas deste, muitas vezes está presente

o filho legítimo de seu casamento, inclusive depois de adulto. Brás Cubas apresenta

cenas inequívocas da mais alta dissimulação.

Já Bentinho só apresenta suposições, não havendo fatos palpáveis que

justifiquem a acusação de dissimulada feita a Capitu.

87 RIBEIRO, 1996: p. 237

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Mas nossa intenção não é de descobrir “verdades” no texto machadiano, tarefa

de impossível realização e até de pouca valia, já que ele aponta, indubitavelmente, para

os desmembramentos interpretativos.

Além disso, a derrocada do amor na narrativa machadiana tem estreita ligação

com o “narrador volúvel” das obras do autor, assim denominado por Roberto Schwarz.

Este tipo de narrador desqualifica quaisquer posições ideológicas, ainda que sua própria

perspectiva, às vezes, precise ser mutante. Tal processo “consiste em (o narrador) não

se dar jamais por achado, a olhos alheios ou aos próprios, e (que) se afirma através da

desidentificação sistemática de si mesmo, cuja contrapartida é a constante adoção de

novos papéis, logo postos de lado outra vez.”88

Brás Cubas é um narrador que hostiliza o sentimentalismo, apresentando uma

visão não só racional, como também pessimista em relação ao sentimento amoroso.

Trata-se da desmitificação do amor, realizada através da ironia, do exame social e moral

do ser humano. A construção de tal personagem exclui quaisquer fumos românticos,

pois ele não assumiria sentimentos que o deixassem à mercê de alguém. Sua

superioridade é proclamada através da crítica a tudo e a todos.

É apagado qualquer resquício de sentimentalidade, como o fato de Virgília estar

presente até o dia de sua morte é rebatido com ironia, revelando-se intenções e atitudes

ocultas que devem ser desmascaradas, expostos sarcasticamente os defeitos de

caracteres:

Tenham paciência! Daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era cousa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção. Morto! Morto! Dizia consigo. (...) Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. (MPBC, capítulo I, p. 14)

88 SCHWARZ, 1990: p.32.

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Nessa passagem, o fato de se dirigir à Virgília de maneira bastante impessoal e

de colocá-la de lado para só apresentá-la depois, relegando-a ao segundo plano, tem a

função de relegar também ao limbo o lirismo.

Este mesmo capítulo, em que apresenta Virgília como um detalhe, o narrador de

MPBC conclui com a frase “ Imagine o leitor que nos amamos” , como se amar fosse

algo absurdo, digno de incredulidade.

Virgília demonstra-se dissimulada e rende-se à vaidade ao aceitar o casamento

com Lobo Neves:

Então apareceu o Lobo Neves, um homem que não era ais esbelto do que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura, dentro de poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano. Não precedeu nenhum despeito; não houve ao menos violência de família. Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a candidatura de Lobo Neves era apoiada por grandes influências. Cedi; tal foi o começo da minha derrota. Uma semana depois, Virgília perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando seria ele ministro. Pela minha vontade, já; pela dos outros, daqui a um ano. Virgília replicou: Promete que um dia me fará baronesa? Marquesa, porque eu serei marquês. Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão com seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera. (MPBC, Cap.XLIII, p. 81)

Brás Cubas, por sua vez, também não sofre de amor, como seria de se esperar

num romance romântico. Quando toma conhecimento do noivado de Virgília com Lobo

Neves, e vê seu pai arrasado com a perda da oportunidade de seu casamento com o

filho, tem uma crise de insônia. Com toda a objetividade que lhe é peculiar, o narrador

justifica a vigília com o despeito e não com o sentimento amoroso:

Não foi alegre o almoço; eu próprio estava a cair de sono. Tinha velado uma parte da noite. De amor? Era impossível; não se ama duas vezes a mesma mulher, e eu, que tinha de amar aquela, tempos depois, não lhe estava agora preso por nenhum outro vínculo, além de uma fantasia passageira, alguma obediência e muita fatuidade. E isto basta a explicar a vigília; era despeito, um despeitozinho agudo como ponta de alfinete, o qual se desfez, com charutos, murros, leituras truncadas, até romper a aurora, a mais tranqüila das auroras. (MPBC, Cap.XLIV, p. 82)

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As personagens, então, aproximam-se em frieza, reiterando o caráter racional de

sua construção. As relações amorosas estabelecidas no enredo de MPBC são

conveniências sociais e o amor entre Virgília e Brás Cubas é tão lasso que ela não se

torna vilã por, teoricamente, fugir à ética (do ponto de vista romântico, inclusive) e

casar-se com Lobo Neves. É apenas o desvendamento das relações, esperado em

narrativas realistas. Para mais uma vez negar o sentimento amoroso, o narrador insere

uma passagem em que afirma ser tal sentimento exclusividade das mulheres, porque nos

homens ele recebe uma conotação de mérito por manifestar a sua superioridade sobre os

outros homens:

A razão desta diferença é que a mulher (salva a hipótese do capítulo CI e outras) entrega-se por amor ou seja o amor-paixão de Stendhal, ou puramente físico de algumas damas romanas, por exemplo, ou polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras raças civilizadas; mas o homem, - falo do homem de uma sociedade culta e elegante – o homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Além disso (e refiro-me sempre aos casos defesos), a mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem, sentindo-se causa da infração e vencedor de outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos ríspido e menos secreto – essa boa fatuidade, que é a transpiração luminosa do mérito.(MPBC, capítulo CXXXI, p. 181)

O amor é reduzido, enquanto prevalecem o amor-próprio, a vaidade, a sedução.

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3.2.1 – A ironia mordaz no tratamento do amor

É muito interessante contrapor, ainda que esta não seja a relação central de

MPBC, os amores de Brás Cubas por Marcela à romântica relação entre Paulo e Lúcia,

em Lucíola. A escolha se faz pela ‘vida fácil’ que levam ambas (Lúcia e Marcela).

O narrador de MPBC faz desse relacionamento uma das análises mais irônicas

de toda a obra, sendo impiedoso ao mostrar a unilateralidade do amor que nutria por

Marcela. Mas este “amor” mais parecia uma disputa pela posse de um objeto com um

tal Xavier, que à época era quem pagava mais por ter Marcela.

A espanhola era mais um jogo, uma disputa por ostentação do que um amor, e

Brás Cubas nem nomeia sentimentos por ela ou mesmo a relação entre ambos:

Teve duas fases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que eu de nomes não curo; teve a fase consular e a fase imperial. Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que ele jamais acreditasse dividir comigo o governo de Roma; mas, quando a credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier pôs as insígnias, e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi a fase cesariana. Era meu o universo; mas, ai triste! Não o era de graça. (MPBC, cap. XV, p. 41)

O já citado distanciamento temporal entre o narrador e a matéria narrada torna a

crítica mais mordaz, pois que afasta qualquer sentimentalismo que pudesse haver à

época dos acontecimentos. Não há uma réstia de piedade na visão do narrador sobre

Marcela – só o dinheiro era capaz de angariar-lhe os amores:

Era uma boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tísico, - uma pérola. (MPBC, cap.XIV, p. 40)

Comparar um tísico a uma pérola, pelo seu poder financeiro para manter

Marcela, não é, nem de longe, a expressão mais fria do narrador. Sem eufemismos, ele

diz sobre sua própria relação com a meretriz: “Marcela amou-me durante quinze meses

e onze contos de réis; nada menos.” (MPBC, cap. XVII, p. 44)

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Narrando um encontro acontecido mais tarde, Brás Cubas mostra nela as chagas

físicas da vida mundana, evidenciando aqui que não há mais a divisão corpo X alma, tão

cara ao Romantismo. Se um dos dois vai mal, tudo se estraga – e Marcela lhe aparece,

anos após terem sido amantes, como uma visão grotesca, de total degradação: feia,

oferecida e cheia de bexigas – uma mulher marcada, de quem ele se afasta, evitando

qualquer contato. Nem piedade lhe suscita.

Dadas as voltas, ao passar pela rua dos Ourives, consulto o relógio e cai-me o vidro na calçada. Entro na primeira loja que tinha à mão; era um cubículo, - pouco mais , - empoeirado e escuro. Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarelo e bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo que se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita; mas a doença e uma velhice precoce, destruíram-lhe a flor das graças. As bexigas tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa, enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto, logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais da loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis, pósteros? Essa mulher era Marcela. (MPBC, cap. XXXVIII, p. 75)

Apesar de longa, a citação dispensa extenso comentário, pela sua transparência e

exatidão.

Sobre a moléstia de Marcela, pode-se dizer que, através da análise do que lhe

acontece, é possível também diferenciar a visão de Machado, ou ainda do próprio

Realismo, da visão naturalista. Em determinado momento o narrador diz sobre a

personagem: “Entrei a desconfiar que não padecera nenhum desastre (salvo a

moléstia), que tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava com o único fim de

acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor daquela existência; foi isso mesmo

que me disseram depois” . (MPBC, cap. XXXIX, p. 77). Vê-se, pela citação, que o

interior é que faz o homem: seus aspectos psicológicos, sua moral, e não o exterior é

que o determina. Não é o meio que o define, e sim seus próprios sentimentos e índole.

Já no Naturalismo é o exterior que opera esta transformação.

O conceito de amor em Machado de Assis é esvaziado porque tal sentimento

resulta, no senso comum, em sacrifícios, atos grandiosos em seu nome, e as personagens

do autor são carentes de grandeza, porque é assim que a Humanidade é vista por ele. O

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final de MPBC é sintomático neste aspecto: “ porque ao chegar a este outro lado do

mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo

de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa

miséria” . (MPBC, cap. CLX, p. 208).

O segundo interesse de Brás por uma moça não passa de um flerte sem

conseqüências (para ele) e o sentimento não pode desabrochar devido a um obstáculo

físico que se interpõe à visão potencialmente enamorada da personagem: o fato de

Eugênia ser coxa e filha de uma relação ilegítima. A moça é caracterizada com mais

frieza ainda que Marcela, pois nada faz para merecer a culpa dos defeitos que carrega.

Recebe adjetivos impiedosos: “Vênus manca”, “ flor da moita” (porque fruto de uma

relação adúltera, às escondidas), “ filha espúria e coxa” .

Por tudo isso, e pela falta de conveniência financeira, a relação amorosa não se

consuma em nenhum âmbito. E Brás ainda afirma ter “recebido” , pelo tempo que

perdeu com a moça, o justo pagamento de um beijo: “Com efeito, foi no domingo esse

primeiro beijo de Eugênia, - o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe tomara, e

não furtado ou arrebatado, mas candidamente entregue, como um devedor honesto

paga uma dívida” (MPBC, Cap XXXIII, p. 71).

A linguagem do autor corresponde às suas intenções, excluindo ambigüidades e

sobejos da alma, pois é precisa, prima pela concisão, tornando as expressões

inequívocas, ajustadas à reflexão e à análise. Um dos momentos mais interessantes

nesse sentido, em que o narrador ironiza o sentimentalismo é quando descobre que

Eugênia era manca: “O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão

fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a

natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se

bonita? ” (MPBC, Cap.XXXIII, p. 70)

O tom de mofa é tão proposital que num capítulo posterior o narrador debocha

do leitor que pudesse estranhar ou se sentir incomodado por tais considerações atrozes

sobre o defeito da moça, e mais uma vez põe à luz o que sempre se esconde, na medida

em que diz pensar assim por ser homem. Ou seja, todos pensam, mas poucos assumem

tal pensamento.

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Há aí entre as cinco ou dez pessoas que me lêem, há aí uma alma sensível, que está decerto um tanto agastada com o capítulo anterior, começa a tremer pela sorte de Eugênia, e talvez... sim, talvez, lá no fundo de si mesma, me chame cínico. Eu cínico, alma sensível? (...) Não, alma sensível, eu não sou cínico, eu fui homem (...) (MPBC, Cap.XXXIV, p. 72)

É o total desmascare da hipocrisia social. Aliás, o comportamento psicológico-

social é a base das criações de Machado, já que ele recusa a manutenção das aparências,

através da crítica. Enfim, fica a idéia de que qualquer homem evitaria Eugênia, sendo

ela coxa e estando numa situação social inferior à dele. Ou seja: algum benefício há de

existir para que se realize uma união. Ressalte-se também o humor irônico presente no

trecho. É sempre em tom de mofa que o autor faz tais comentários, como que para

alertar o leitor a possibilidade real de estes julgamentos serem feitos na sociedade, ainda

que não admitidos. É como se o narrador apenas verbalizasse o que todos sabem.

Crê-se que a visão machadiana exagera no ceticismo em relação ao amor,

através da trajetória de suas personagens, creditando quaisquer fumos sentimentalistas à

hipocrisia ou à competição. No entanto, alguns outros pensamentos e sentimentos

embotados por máscaras sociais são trazidos à tona com crua veracidade. Nesse

aspecto, a literatura de Machado de Assis exerce uma interessante função para o leitor,

não moralizadora, mas de autoconhecimento:

Esta experimentação com o personagem é que o torna tão vivo e próximo da nossa vida profunda, na qual vai provocar o estremecimento de atos virtuais, de pensamentos sufocados, de toda uma fermentação obscura e vagamente pressentida. Na medida em que atua deste modo, o romance tem para nós uma função insubstituível, auxiliando-nos a vislumbrar em nós mesmos, e nos outros homens, certos abismos sobre os quais a engenharia da vida de relação constrói as suas pontes frágeis e questionáveis.89

O autor, não satisfeito em fazer um retrato moral desanimador do homem, e do

seu egoísmo exacerbado; mostra também a decadência física, derrubando a idealização

romântica, mostrando personagens doentes, como o próprio protagonista; pessoas à

89 CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira, p. 213.

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morte, como Marcela e Dona Plácida; defeituosos, como Eugênia, e ainda a velhice

decrépita.

No capítulo LXXV, intitulado “Comigo” , desmonta-se por completo qualquer

tese romântica acerca do encontro entre duas pessoas. Brás Cubas, ao versar sobre a

origem de Dona Plácida, ressalta a falta de sentido da vida. A ironia feita à própria

existência, como um todo, resume a união de um casal a uma conjunção carnal e

passageira, que não dá bons frutos, devido à nulidade social do ser que dela pode provir.

O suposto amor entre o pai e a mãe de Dona Plácida é nomeado pelo narrador de

“conjunção de luxúrias vadias” e de “momento de simpatia” (MPBC, cap. LXXV, p.

121). A história, na verdade, endossa a visão filosófica da obra, através dos

comentários do narrador, que ironiza a insensatez humana. A união, assim como sua

própria existência, é inócua para os próprios seres, que vêm ao mundo apenas para

sofrer e servir. A falta de sentimentalismo deste trecho da narrativa funciona como

veiculadora desta visão filosófica, que termina por ser reiterada como fechamento do

livro, em que o narrador, no Capítulo de Negativas, reflete sobre sua própria nulidade.

Negando novamente a possibilidade amorosa, mais tarde, ao narrar um

envolvimento de Dona Plácida com um carteiro que lhe deu “o golpe do baú” , em

nenhum momento Brás Cubas afirma ter ela se apaixonado, ou amado o carteiro. Os

termos usados são “espertar-lhe os sentidos ou a vaidade” (MPBC, cap. CXLV, p. 194)

Eugênia e Marcela são usadas e descartadas, tanto no plano dos acontecimentos

como no da construção das personagens, tal é a degradação física e moral que as faz

serem repelidas pelo protagonista de maneira irremediável. E aquela a quem oferece o

matrimônio o repele em prol da ascensão social – Brás Cubas é vítima da própria

sociedade que reproduz em seus atos e escolhas amorosas, ainda que faça outras

vítimas. É um círculo do qual as personagens não fogem, visto que não há idealizações.

Os amores de Brás Cubas esterilizam e matam os envolvidos, mas não de

paixão. Há uma decadência, não em conseqüência direta, de todas as mulheres com

quem se envolveu, exceto de Virgília, porque nunca foi exclusivamente sua. No

entanto, Dona Plácida, que lhes facilitou o romance, morreu em estado deplorável.

Assim também Marcela. Na miséria ficou e foi esquecida “a flor da moita” , Eugênia; e

morta também ficou Nhã-loló no fim da narrativa.

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Ainda que seja uma escolha por motivações sociais, Virgília apresenta-se como

um divisor de águas nas memórias de Brás Cubas. Há o período antes dela,

resumidamente contado; o período em que o protagonista retorna ao Brasil, em que a

conhece, namora e é repelido como seu pretendente; depois, o longo período em que

Brás é seu amante (11 anos) e, por fim, o período que compreende desde o seu

reencontro com ela, no leito de morte, até o desenlace fatal.

3.2.2 – Virgília e Brás

Quando se dá o primeiro reencontro de Virgília com Brás, a partir do qual se

tornam amantes, ainda assim não se admitem sentimentalismos: para o narrador é como

se se apropriasse de um valor de outrem. Durante dois capítulos ele faz um jogo

semântico entre Virgília e uma moeda achada e um pacote de dinheiro. No caso da

moeda, o artifício discursivo deixa bastante clara a comparação. O final do capítulo L

de MPBC coincide com o final de um baile em que Brás Cubas valsou com Virgília; e o

capítulo subseqüente inicia-se com um pensamento recorrente na idéia de Brás Cubas: “

– É minha.”

Percebe-se, neste momento, a consciência de posse de Virgília; logo depois, a

frase é dita com o mesmo tom para uma moeda encontrada na rua. A reificação da

mulher é clara, assim como o seu valor comercial. Mas Brás devolve a moeda ao dono,

assim como, na juventude, perde Virgília para Lobo Neves porque, como este era mais

proeminente, mais abastado, ela lhe pertencia “de direito” .

Entretanto, ao encontrá-la mais tarde, casada, também abastada, não é mais uma

moeda, e sim um pacote de dinheiro. Dessa vez ele se apropria dela, não como um

‘dono’, mas como amante, e sem culpa, visto que ela está a sua mercê pela falta de

cuidados de quem a possuía. Machado recria a trajetória do casal de maneira

completamente metafórica.

O interdito aumenta o desejo, ou melhor, desperta-o. Essa idéia fica clara em

MPBC quando, ao narrar a época em que se torna amante de Virgília, o narrador-

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personagem afirma: “Sim, senhor, amávamos. Agora, que todas as leis sociais no-lo

impediam, agora é que nos amávamos deveras” (MPBC, cap. LVII, p. 97).

Para a abordagem do tema do amor em Machado de Assis é imprescindível o

capítulo LXVII – “A casinha” . O início do capítulo mostra a desconfiança de Lobo

Neves acerca do romance entre Virgília e Brás Cubas. Ela envia ao amante uma caixa

de charutos, com fita cor-de-rosa e um bilhete, avisando a ele sobre as suspeitas do

marido. A partir daí, desvela-se a ambição de Virgília, para quem, sem dúvida, a

posição social vale tanto quanto qualquer sentimento pelo protagonista:

- O melhor é fugirmos, insinuei. - Nunca, respondeu ela abanando a cabeça.

Vi que era impossível separar duas cousas que no espírito dela estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração pública. Virgília era capaz de iguais e grandes sacrifícios para conservar ambas as vantagens, e a fuga só lhe deixava uma. Talvez senti alguma cousa semelhante a despeito; mas as comoções daqueles dous dias eram já muitas, e o despeito morreu depressa. Vá lá; arranjemos a casinha. (MPBC, cap. LXVII, p. 112)

Brás, por sua vez, diante da tomada de consciência (mais uma vez) de seu valor

para Virgília, sente apenas um rápido despeito, o que indica que, para ele, não fazia

tanta diferença assim. O jogo das conveniências é muito mais importante que o amor

que possa haver entre as personagens em questão.

A partir da compra da casinha que garantiria a manutenção do romance, o

narrador constrói um discurso falsamente romântico, esvaziando-o através do caráter

irônico, em algumas passagens. Diz, por exemplo, ter desfrutado não só da mulher

como da casa e do conforto do marido traído, dizendo-se cansado de tanto fazê-lo: “Já

estava cansado das cortinas do outro, das cadeiras, do tapete, do canapé, de todas

essas cousas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa duplicidade.” (MPBC,

cap. LXVII, p. 113)

Fala ainda de um “mundo superior” , e aí é o extremo destroçamento do discurso

romântico, quando se refere à casa que servirá ao desfrute carnal de uma mulher

adúltera e seu amante. Não há nada de superior nisso, e, principalmente, no fato de

representar a casinha a própria recusa de Virgília em abrir mão de um mundo de

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aparências em prol do sentimento, o que legitimaria o discurso romântico. Este é

negado a partir da sua própria utilização que, dentro do contexto, é uma farsa.

Se Virgília se preocupa em manter sua posição social, Brás não pensa muito

diversamente: além de rapidamente providenciar a casinha, afirma que, para ele, esta

representaria “alguma coisa que o faria adormecer a consciência e resguardar o

decoro” (MPBC, cap. LXVII, p. 112). Tal trecho evidencia que também ele se prende às

normas sociais e às conveniências e certamente não estaria disposto a, de fato, opor-se

frontalmente a elas.

Lobo Neves, por sua vez, também se acomoda à situação, para não ferir seu

prestígio político e evitar escândalos que o expusessem à crítica da sociedade. Todos

compactuam da hipocrisia, secundarizando sentimentos. Assim, um trecho do capítulo

CXII sugere a falta de amor de Lobo Neves por Virgília, ou melhor, a sobreposição da

importância social a qualquer sentimento, assim como acontecia com Virgília e Brás:

Pareceu-me então (e peço perdão à crítica, se este meu juízo for temerário!) pareceu-me que ele tinha medo – não medo de mim, nem de si, nem do código, nem da consciência; tinha medo da opinião. Supus que esse tribunal anônimo e invisível, em que cada membro acusa e julga, era o limite posto à vontade do Lobo Neves. Talvez já não amasse a mulher; e, assim, pode ser que o coração fosse estranho à indulgência dos seus últimos atos. Cuido (...) que ele estaria pronto a separar-se da mulher; mas a opinião, essa opinião que lhe arrastaria a vida por todas as ruas, que abriria minucioso inquérito acerca do caso, que coligiria uma a uma todas as circunstâncias, antecedências, induções, provas, que as relataria na palestra das chácaras desocupadas, essa terrível opinião, tão curiosa das alcovas, obstou à dispersão da família. (MPBC, cap. CXII, p. 162-163)

O fim do romance entre Brás e Virgília tem caráter prático e nada sentimental e

é, mais uma vez, ditado pelas conveniências sociais: Lobo Neves, após descobrir o

romance através de um bilhete anônimo, interroga Virgília; esta nega tudo. Mesmo

assim, pouco tempo depois, o marido, alegando necessidade política imperiosa (a qual

já havia recusado anteriormente), afasta a mulher da cidade, dando fim a onze anos de

traição. Não há desvarios praticados por nenhum dos três envolvidos que justifiquem

paixão ou ciúmes desmedidos.

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O relacionamento aponta, aliás, para o fastio, a nulidade, e a metáfora da mosca

e da formiga, no capítulo CIII simboliza este cansaço ou esvaziamento, bem antes de a

narrativa chegar ao fim, ainda que esta não obedeça à marcação cronológica do tempo.

Tal capítulo trata de uma briga entre Brás e Virgília por conta de um atraso. Ele, sem

dar muita importância ao que ela diz, faz considerações acerca de dois insetos que, na

narrativa representam-nos:

Virgília dizia-me uma porção de coisas duras, ameaçava-me com a separação, enfim louvava o marido. Esse sim, era um homem digno, muito superior a mim, delicado, um primor de cortesia e afeição; é o que ela dizia, enquanto eu, sentado, com os braços fincados nos joelhos, olhava para o chão, onde uma mosca arrastava uma formiga que lhe mordia o pé. Pobre mosca! Pobre formiga! - Mas você não diz nada, nada? Perguntou Virgília, parando diante de mim. - Que hei de dizer? Já expliquei tudo; você teima em zangar-se; que hei de dizer? Sabe o que me parece? Parece-me que você está enfastiada, que se aborrece, que quer acabar... - Justamente! (...) Sentei-me ao pé dela, disse-lhe muitas cousas meigas, outras humildes,outras graciosas. Não afirmo se os nossos lábios chegaram à distância de um fio de cambraia ou ainda menos; é matéria controversa. Lembra-me, sim, que na agitação caiu um brinco de Virgília, que eu inclinei-me a apanha-lo, e que a mosca de há pouco trepou ao brinco, levando sempre a formiga no pé. Então eu, com a delicadeza nativa de um homem do nosso século, pus na palma da mão aquele casal de mortificados; calculei toda a distância que ia da minha mão ao planeta Saturno, e perguntei a mim mesmo que interesse podia haver num episódio tão mofino. Se concluís daí que eu era um bárbaro, enganas-te, porque eu pedi um grampo a Virgília, a fim de separar os dous insetos: mas a mosca farejou a minha intenção, abriu as asas e foi-se embora. Pobre mosca! Pobre formiga! E Deus viu que isto era bom, como se diz na Escritura. (MPBC, capítulo CIII, p. 153-154)

Na verdade, Brás era a mosca que tinha a formiga, Virgília, no pé. Neste

‘episódio tão mofino’ (ambigüidade entre os insetos presos e a briga com Virgília), ele

demonstra a tentativa de separar-se/ separar os insetos, mas a mosca abriu as asas e foi

embora, não realizando Brás os eu intuito. Ainda assim, o capítulo mostra o fastio e a

condição dos dois: um já ‘carregando’ o outro.

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3.2.3 – Dom Casmurro: diminuição da impassibilidade e esvaziamento do amor

O escritor traz uma discussão sobre a validade do sentimento amoroso, através

de uma perspectiva filosófico-existencial cética. Nesta, demonstra-se que o tempo

dissolve tudo. Se em Memórias póstumas de Brás Cubas há a dissolução da relação

entre o protagonista e Virgília pelo cansaço do tempo em que sua situação permaneceu a

mesma, em Dom Casmurro percebe-se que a própria vida, o tempo, são uma traição.

Ainda que este último seja um drama de amor e de ciúme, há ainda a tentativa de manter

certa impassibilidade, presente em Memórias póstumas de Brás Cubas. Mas os

sentimentos de Bentinho, já que ainda vivo, marcam a narrativa e deixam-na mais

dolorida, mais inquietante do que irônica. Bentinho nem de longe fica impassível diante

da sedutora Capitu; não há a indiferença de Brás Cubas. “E há no livro um calor de

vida, uma transpiração de contato humano que raramente apareceu em Machado, e

nunca tão longamente” 90

O amor é traduzido, em Dom Casmurro, por sensações; descrevem-se os

recônditos psicológicos do adolescente apaixonado: “a sensação de um gozo novo, que

me envolvia em mim mesmo, e logo se dispersava, e me trazia arrepios, e me derramava

não sei que bálsamo interior” (DC, capítulo XII , p. 27 ).

Mas com o correr da narrativa, morrem os envolvidos na trama de ciúme, não

sem antes se separarem irremediavelmente, e Bentinho cai no nada, na ausência de

sentimentos, e fica ‘casmurro’ .

Antes disso, porém, a questão do triângulo amoroso fica mais patente, pois

Bentinho, no capítulo X, chega a afirmar que não só há uma pessoa a mais entre ele e

Capitu (Escobar, como ele cansará de afirmar mais à frente), mas duas. “Eu, leitor

amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é

muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um

duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor...” (DC, cap. X, p. 25) Sancha e

Bentinho ensaiam, no capítulo que antecede a morte de Escobar, uma traição. Mas esta

não interessa confirmar, já que não seria condizente acusador e acusado serem a mesma

pessoa: Bentinho não poderia confirmar o próprio delito.

90 PEREIRA, 1955: p. 239.

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Sancha não tirava os olhos de nós durante a conversa, ao canto da janela. Quando o marido saiu, veio ter comigo. Perguntou-me de que é que faláramos; disse-lhe que de um projeto que eu não sabia qual fosse; ela pediu-me segredo, e revelou-me o que era: uma viagem à Europa dali a dois anos. Disse isto de costas para dentro, quase suspirando. O mar batia com grande força na praia; havia ressaca. - Vamos todos? Perguntei por fim. - Vamos. Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças às relações dela e de Capitu, não se me daria beijá-la na testa. Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expressões fraternais, pareciam quentes e intimativos, diziam outra coisa, e não tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo. A noite era clara. Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros, uns esperando que os outros passassem, mas nenhuns passavam. Tal se dá na rua entre dois teimosos. A cautela desligou-nos; eu tornei a voltar-me para fora. (...) Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A mão dela apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume. (DC, cap. CXVIII, p. 156-157)

Constrói-se, então, o enredo em torno do trio Capitu – Bentinho – Escobar, que

vitimiza Bentinho, eximindo-o de qualquer culpa. Mas a narrativa não isenta a

citação anterior do erotismo.

Apesar de toda a crítica do narrador a Capitu, havia, sem dúvidas, muito

sentimento, à época em que eram jovens. A despeito do marcado desnível social

entre ambos, apontado no discurso de José Dias e pelo próprio narrador, na

descrição física de Capitu,

Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água de poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos. (DC, cap.XIII, p. 27-28 – grifos nossos)

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apesar da oposição de Dona Maria da Glória, Bentinho abandona o seminário e casa-se

com ela. E as convenções sociais eram dificilmente transponíveis àquela época. Ainda

que o relacionamento esboroe-se depois, não se pode negar a forte atração inicial.

Uma inversão inovadora marca a relação inicial entre Bentinho e Capitu,

pois é ela, a mulher, que aparece como superior, mais forte, ativa, frente a um passivo

Bentinho. Sendo assim, o ser feminino prepondera sobre o masculino nesta relação, o

que não é comum nas narrativas do século XIX. Bentinho resume a superioridade de

Capitu em uma frase: “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais

mulher do que eu era homem” .(DC, cap. XXXI, p. 52)

Capitu exerce sobre o companheiro uma atração à qual este não consegue resistir e

que o narrador traduz na descrição dos olhos da adolescente:

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podia chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que... Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. (DC, cap. XXXII, p. 55)

Os adjetivos “misterioso” , “enérgico” e “escura” , e a força dos movimentos

“arrastava” , “envolver” , “puxar” , “tragar” mostram o poder de Capitu frente à fraqueza

e à impossibilidade de resistência de Bentinho.

Mas talvez a construção de Capitu tenha sido assim realizada para, no decorrer

da narrativa, não restar dúvidas ao leitor de que Bentinho fora vítima da dissimulação e

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da traição da mulher: ardis narrativos que o caracterizam como digno de piedade – não

vos enganeis, leitores.

Luís Filipe Ribeiro, em Mulheres de papel, vê ainda um outro aspecto do trecho

em que Bentinho analisa se os olhos de Capitu são de cigana oblíqua e dissimulada:

Por outro lado, existe aí uma expressão literária admirável do medo adolescente diante da voragem sexual. O grande mistério abria suas fauces para o inexperiente Bentinho e o narrador aproveita o ensejo para marcar a mulher como devoradora e ameaçadora, como mistério e desejo, como aventura e aniquilação. O homem apenas aventura-se nas trilhas do desconhecido e não se pergunta nunca pelas dúvidas, anseios e medos da parceira. Que parceira não é; é ameaça e sabedoria. Desde Eva, aliás... 91

Estão presentes, portanto, o medo adolescente e a preparação para o que virá, na

narrativa. Esta superioridade é, primeiramente, motivo de admiração, e a dissimulação

de Capitu, vista como inteligência e astúcia. Com o passar do tempo, a ótica é outra: há

inveja e ciúmes, que desencadeiam toda a complicação do enredo, embora a inocência

do leitor possa enredá-lo nas tramas de Bentinho e fazê-lo esquecer de todos esses

capítulos iniciais, acreditando que a traição é a verdadeira desencadeadora dos

acontecimentos.

A superioridade conferida a Capitu, na adolescência, por Bentinho, não condiz

com o posicionamento da personagem feminina quando do pedido de separação. O

discurso é direto, portanto lhe é dada a voz, e não a interpretação de Bentinho. Ele é

quem se decide pela separação, acusa, dá a sentença, exila a condenada. Ela apenas

aceita a decisão e cumpre-a. O homem reassume seu lugar social, também no enredo.

De qualquer maneira, os ciúmes, a certeza da traição, separaram as personagens

Capitu e Bentinho definitivamente e apagaram os vestígios do amor adolescente. Se

Bentinho revive os acontecimentos através da narrativa, a falta de comoção e mesmo a

displicência com que narra a morte de Capitu evidenciam o desamor e a pouca

importância que dá à imagem da ex-amada. Ao reencontrar o filho depois de anos sem

vê-lo, dá a notícia da morte de Capitu : “Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou

quinze minutos na sala. Só depois é que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e

91 RIBEIRO, 1996: p. 318

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correr, abraçá-lo, falar-lhe da mãe... A mãe, - creio que ainda não disse que estava

morta e enterrada. Estava; lá repousa na velha Suíça.” (DC, cap. CXLV, p. 180)

Dom Casmurro é, enfim, muito mais uma história sobre a descrença no ser

humano do que uma história sobre amor, ciúmes e traição. O desfecho assemelha-se à

visão pessimista do poeta Augusto dos Anjos:

É bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! (DC, cap. CXLVIII)

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão – esta pantera Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que nesta terra miserável, Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro. A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija!92

Transparece, portanto, no conjunto da obra de Machado, desencantamento em

relação não só ao amor, mas ao ser humano.

92 ANJOS, Augusto dos: 1965, p. 146. (grifos nossos)

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4 – O AMOR NA FICÇÃO DE 30

Na geração de 22, a ficção teve um papel relativamente menos destacado e, nela,

o amor, conquanto aparecesse, raramente funcionou como tema central.

Já no romance de 30, o tema foi bastante desenvolvido e, como o nosso corpus é

limitado, optamos por analisar alguns romances desta geração, que apresenta

concepções unânimes no que diz respeito à problemática da terra, à denúncia social. No

entanto, no tratamento de outros temas, como o do amor, ou no posicionamento diante

da existência, há enfoques bastante particulares. Seus autores abordam o sentimento

amoroso muitas vezes de maneira divergente. Jorge Amado e Graciliano Ramos, por

exemplo, adotam atitudes divergentes na construção do sentimento amoroso no mundo

ficcional. Essa divergência é a formadora do nosso material básico de análise.

Dentro da obra do próprio Graciliano, o amor ganha enfoques tão diversos

quanto o caráter das obras que são aqui analisadas. Em São Bernardo, o protagonista se

volta sobre a realidade de sua vida com um distanciamento quase tão intenso quanto

Brás Cubas, tal é o repúdio à sua vida. Passa a ter horror ao universo que ele próprio

representa, a seus sistemas de valores, porque tem a certeza de não ter sido traído pela

mulher e de tê-la levado ao suicídio. Mesmo quando a personagem sente ciúmes, a

narrativa tende à objetividade.

Já em Angústia, há uma tendência ao subjetivismo expressionista. A narrativa

está imbuída de uma visão sombria, degradada do homem, e o amor é traduzido pelos

impulsos sexuais. O protagonista desta obra tampouco apresenta arrebatamento ou

ilusão em relação ao amor, apesar da obsessão pela personagem Marina.

Antonio Candido já havia ressaltado esta diversidade de que falamos nas obras

de Graciliano, atentando também para o fato de que, ainda assim, ela nos conduz a um

mesmo ponto-de-vista pessimista:

Para ler Graciliano Ramos, talvez convenha ao leitor aparelhar-se do espírito de jornada, dispondo-se a uma experiência que se desdobra em etapas e, principiada na narração de costumes, termina pela confissão das mais vívidas emoções pessoais. (...)

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Se quisermos sentir esta unidade na diversidade, para reviver a experiência humana que ela comporta, é aconselhável acompanhar a evolução da sua obra ao longo dos diversos livros 93

Para perceber um pouco desta ‘unidade na diversidade’, em relação ao tema do

sentimento amoroso resolvemos aborda-lo em São Bernardo e em Angústia.

A visão do amor em Jorge Amado se opõe frontalmente a essas. É um enfoque

que confere luminosidade, alegria, ao sentimento. Bem diferente da visão de

Graciliano, que aponta sempre para a não-realização deste. A obra amadiana é um

libelo à alegria e à liberdade.

Essa diferença de pontos-de-vista entre autores e de diferentes tendências de

abordagem até em obras do mesmo autor foi o que nos fez seleciona-los para o estudo a

que nos propusemos.

4.1 – Graciliano Ramos e o aspecto reduzido do amor

Graciliano Ramos mantém-se numa perspectiva pessimista de mundo, e uma

das características que comprova tal afirmação é o fato de ele apresentar o amor numa

dimensão empobrecida em relação à visão idealizada da estética romântica ou mesmo

de outros autores seus contemporâneos. Tal visão não é negativa, mas é cética quanto à

possibilidade de realização.

Poder-se-ia dizer que o ceticismo do enfoque amoroso na obra deste autor é tão

nítido quanto o da obra de Machado de Assis. Todavia, as duas possuem propostas

diferentes. Machado de Assis segue o pessimismo schopenhaueriano: é cético quanto

ao próprio homem, visto como indiferente, egoísta. Tal ceticismo impregna também o

amor, abordado numa perspectiva filosófico-existencial. Em Memórias póstumas de

Brás Cubas, aborda-se a dissolução pelo cansaço do tempo; em Dom Casmurro, tanto a

vida quanto o próprio tempo são considerados uma espécie de traição. Por outro lado,

Graciliano Ramos envolve o amor num questionamento de natureza social, abordando

temas como o ciúme aliado ao sentimento de inferioridade, por exemplo, como reflexo

de um choque de valores sociais.

93 CANDIDO, 1992: p. 13.

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Nos interessam São Bernardo e Angústia, pois em ambas o amor, assim como

todas as outras relações, é uma relação conflituosa.

Em São Bernardo, o tema central, que se desenrola através da história de Paulo

Honório, é a crítica à desumanização associada ao capitalismo. Sendo assim, o amor se

torna um meio de abordagem crítica da realidade social desumanizadora, o que

confirma a perda de importância deste sentimento em relação aos românticos, que

sempre o utilizavam como tema central no desenvolvimento do enredo. Parte-se, nesta

obra de Graciliano, do individual, para analisar o social.

Em Angústia, embora haja o problema social como pano de fundo, a questão

enfocada através da personagem Luís da Silva é muito mais de caráter psicológico do

que sócio-cultural. A sua personalidade doentia faz com que o amor esteja imbuído de

um caráter neurótico, destrutivo.

Em São Bernardo, o psicológico, as atitudes de Paulo Honório, são

determinados pelo sócio-cultural, por suas metas e planos de ascensão social e

econômica. O acontecimento do amor significa na narrativa o momento de ruptura, em

que o protagonista não mais consegue subjugar plenamente seus pensamentos e

vontades. Antes de se descobrir apaixonado por Madalena, o amor era

instrumentalizado, fazendo parte de um planejamento material em que ela (ou qualquer

outra mulher) funcionaria apenas como reprodutora, para que houvesse um herdeiro que

perpetuasse o nome e as conquistas de Paulo Honório.

Com o amor, porém, a função inicial de Madalena passa a um papel secundário,

na medida em que ele começa a sentir ciúme da esposa, o que, na obra, está diretamente

ligado ao desejo e não à atividade procriadora. “ (...) o fracasso de Paulo Honório é de

natureza sobretudo existencial – a constatação do vazio dos valores pelos quais lutava

– e, pouco tem a ver com a problemática socioeconômica da região.” 94

O sentimento não prevalece, mas faz com que Paulo Honório, a posteriori,

reavalie sua postura e desloque suas prioridades. Há, portanto, componentes novos,

como a atração erótica, não mais despreocupada e inevitável como a apresentada pelo

Naturalismo, mas ligada à problemática social.

O amor está, em São Bernardo, sob a luz da crise. Crise instaurada também pela

diferença de essências entre Paulo Honório e Madalena: ele, desumanizado pela vida;

94 ALMEIDA, 1999. p. 290

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ela, humana, mesmo sem ser romântica (visto que aceita as justificativas racionais de

Paulo Honório para seu pedido de casamento), não concebe viver sem considerar que há

pessoas ao seu redor.

A morte de Madalena representa o fracasso do projeto de vida de Paulo Honório

e aponta também para a falta de saída para a crise do sentimento.

É importante destacar que o protagonista não é construído como um mau-

caráter, mas como alguém endurecido pelas regras do jogo, que, por sinal, não foram

por ele estabelecidas ( “a culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste que

me deu uma alma agreste” (SB, p. 100). É também este fator, o de ser bruto todo o

tempo, que gera uma certa inconsistência na construção psicológica da personagem, já

que, passados apenas dois anos da morte de Madalena, faz uma autocrítica muito

sensata, como se nesse curto espaço de tempo ele adquirisse um distanciamento capaz

de lhe apontar todos os erros e a parcela de culpa que lhe cabia pelo fracasso coma

mulher.

4.1.1 – Amor X dominação em São Bernardo

Em alguns momentos, pensar no amor em relação São Bernardo, causa

uma certa inquietação, tal o esvaziamento de seu sentido primordial em grande parte da

obra.

E, de fato, o relacionamento entre os protagonistas Madalena e Paulo Honório

não é passível, a um primeiro olhar, da classificação de amoroso, mesmo que esta se

afaste da tradicional ótica romântica. Ele está muito mais próximo de um princípio

comercial, capitalista, de um contrato, do que de um sentimento. Mas Graciliano é

muito perspicaz: traduz o sentimento nas entrelinhas narrativas.

É interessante notar que, ao contar fatos importantes, como o modo com que se

apoderou de São Bernardo, Paulo Honório o faz em trecho narrativo bastante breve; no

entanto, nos capítulos referentes ao seu relacionamento com Madalena, tudo se narra de

forma mais morosa, descritiva.

Para teorizar um pouco sobre o assunto, utilizemos a concepção de narrativa

sumarizante (“summary”), utilizada por Norman Friedman: “é a exposição generalizada

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de uma série de eventos, abrangendo um certo período de tempo e uma variedade de

locais” 95. Trata-se de uma exposição muito geral, que indica uma atitude quase

desinteressada, ou prática demais, do narrador. Este seria o método utilizado quando

Paulo Honório narra como fez com que Padilha se endividasse e perdesse São Bernardo.

Assim também é feito no capítulo 3, onde, em poucas páginas, o narrador descreve os

empregos por que passou, fala da velha Margarida, antes e na atualidade, de Germana e

de João Fagundes, da prisão, dos barulhos no sertão (que narra com uma rapidez e uma

frieza incríveis): “Sofri de sede e de fome, dormi na areia dos rios secos, briguei com

gente que fala aos berros e efetuei transações de armas engatilhadas” (SB, p. 12), do dr.

Sampaio e da surra que mandou lhe aplicar, e, por fim, de Casimiro Lopes. Em

capítulos como esse, o que importa é a atitude dominadora e dura que Paulo Honório

assume diante das dificuldades, arrostando-as e vencendo-as. Ao final, lembramo-nos

menos dos acontecimentos que das atitudes violentas de Paulo Honório. A ação só

acontece para iluminar o agente, graças à modulação do tom narrativo. Nestas partes,

Paulo Honório mostra-se um rolo compressor, um elemento dinâmico por natureza, que

arrasta o mundo atrás de si, imprimindo-lhe seu ritmo.

Para diminuir a mortalidade e aumentar a produção, proibi a aguardente. Concluiu-se a construção da casa nova. Julgo que não preciso descrevê-la. As partes principais apareceram ou aparecerão; o resto é dispensável e pode interessar apenas aos arquitetos, homens que provavelmente não lerão isto. Ficou tudo confortável e bonito. Naturalmente deixei de dormir em rede. (...) Aqui existe um salto de cinco anos, e em cinco anos o mundo dá um bando de voltas. (SB, capítulo 8, p. 38)

Esta atitude de condensação traduz um certo desencanto, presente no tempo da

enunciação. Antonio Candido, sobre esta característica de Graciliano em São Bernardo

analisa: “A vocação para a brevidade e o essencial aparece aqui na busca do efeito

máximo por meio dos recursos mínimos” 96.

Em contraposição, nos capítulos em que Madalena está presente, a narrativa se

desenvolve de maneira bem diferente, sob a forma de cenas plenamente desenvolvidas,

e não como simples sumários. Nessas cenas há a apresentação de detalhes concretos e

95 FRIEDMAN, 1967. 96 CANDIDO, 1992:p. 16

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específicos, dentro de uma estrutura bem determinada de tempo e lugar, o que mostra o

crescimento da importância da mulher para Paulo Honório.

Comprovando este posicionamento está o fato de que a utilidade inicial de

Madalena era dar ao protagonista um filho. No entanto, sempre que se refere a este

filho, o narrador o faz por sumário narrativo. Percebe-se isso quando ele informa que

Madalena está grávida:

- Por que foi aquela brutalidade? Madalena estava prenhe e eu pegava nela como em louça fina. Ultimamente dizia-me coisas desagradáveis, que eu fingia não compreender. Via a barriga crescer-lhe. Uma compensação. Sentei-me e, para não desgostá-la: - Foi realmente brutalidade. Brutalidade necessária, mas enfim brutalidade. É uma peste recorrer a isso. (SB, p. 113)

Ou ainda ao comunicar tardiamente, e com maus modos, que o filho nascera:

“Madalena tinha tido menino” . (SB, p.124)

Madalena torna-se, a partir de certo momento, um objetivo em si própria, pois o

filho fica em lugar totalmente secundário, seja no plano estrutural, seja no modo como

se refere a ele, que nem ao menos compaixão demonstra. Em relação a ela, ainda

chegam a ser feitos elogios, como num ‘cochilo sentimental’ :

Madalena soltava o bordado e enfiava os olhos na paisagem. Os olhos cresciam. Lindos olhos. Sem nos mexermos, sentíamos que nos juntávamos, cautelosamente, cada um receando magoar o outro. Sorrisos constrangidos e gestos vagos.(SB, p. 135 – grifo nosso)

Ao filho só são destinadas palavras de agressividade, mesmo porque, a partir de

certo momento, ele passa a ter com este a mesma relação de rejeição nutrida por

Bentinho em relação ao filho Ezequiel, em Dom Casmurro, quando o protagonista passa

a ver no filho a prova de uma traição. Os dois personagens-narradores rejeitam os filhos

pelo que representam representam. Os trechos mais extensos de São Bernardo,

portanto, em relação à criança, são aqueles em que Paulo Honório só consegue vê-lo

através do que sente pela mãe. Mais uma vez Madalena ocupa o tema principal da

narrativa:

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Afastava-me, lento, ia ver o pequeno, que engatinhava pelo quarto, às quedas, abandonado. Acocorava-me e examinava-o. Era magro. Tinha os cabelos louros, como os da mãe. Olhos agateados. Os meus são escuros. Nariz chato. De ordinário as crianças têm o nariz chato. Inter rompia o exame, indeciso: não havia sinais meus; também não havia os de outro homem. E o pequeno continuava a arrastar-se, caindo, chorando, feio como os pecados.(...) (SB, p. 137, grifo nosso)

As verdadeiras ‘cenas’ da obra são, portanto, dedicadas a Madalena. A mudança

de tema é, então, concomitante com a mudança de estilo: o tom sumarizante cede lugar

a uma narrativa desenvolvida, voltada para a caracterização do dia-a-dia na fazenda.

Isso começa a acontecer a partir do capítulo nono (em que os homens elogiam ‘uns

peitos e uma bunda’.(SB, p. 44)) .

Tudo isso porque Madalena, avançada, revolucionária, não podia simplesmente

submeter-se a ser um mero acessório ‘arrastado’ pelo marido. E, por não submeter-se,

foi esmagada: mas levou-o consigo. O rolo compressor de Paulo Honório esmagou o

Padilha, os Mendonça, Marciano, Dona Glória, Madalena, e a si próprio. Sobre este

dilaceramento, o crítico Carlos Nelson Coutinho faz a seguinte análise:

Personagem trágica, dilacerada entre um mundo vazio e alienado e um ideal (ainda) utópico de solidariedade, Madalena recusa o compromisso com a inautenticidade e se suicida. Este ato repercute, na vida de Paulo Honório, através de uma dolorosa tomada de consciência: sua solidão ainda mais se acentua (inclusive entre o abandono da fazenda por parte dos outros personagens), e ele percebe a inutilidade de seus esforços na busca de uma valor humano que se apoiasse na pura ambição egoísta; seu “pequeno mundo” revela-se como um cárcere, como uma “ danação”. O momento trágico encerra o romance: nem Paulo Honório nem madalena conseguem se realizar humanamente.97

Pode-se avaliar também a mudança narrativa como um indício de sentimento ou

de mea culpa de Paulo Honório em relação a Madalena, e não somente por ela

representar um obstáculo difícil de transpor.

97 COUTINHO, 1977: p. 73

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A divisão entre os pontos-de-vista do tempo do enunciado e do tempo da

enunciação traz à tona algum sentimento. Na verdade, a história relatada é revivida, por

isso o tom seco e direto cede lugar às lamentações ao se tornar linguagem, no relato, no

momento da escrita. Tal processo denuncia muito mais culpa do que amor.

4.1.1.1- Paulo Honório e a visão do casamento-empresa

Para analisar o amor em São Bernardo é preciso primeiramente deter-se na

personalidade do narrador-protagonista Paulo Honório, porque, sendo ele o “dono” da

narrativa e de tudo o mais, a questão do amor deve a ele ser reportada.

Tanto no nível narrativo, quanto no dos personagens, fica claro o papel

representado pelo egoísmo. Paulo Honório, seja o eu-narrador ou o eu-narrado, dispõe

das pessoas que o cercam. É um homem empreendedor, dinâmico, dominador,

obstinado, que concebe uma empresa, trata de executá-la, utiliza as pessoas para isso e

não capitula diante dos fracassos (pelo menos dos pequenos fracassos). Esta

manipulação das pessoas diz respeito mais ao “eu” vivido, do que ao “eu” narrador, já

então consciente do seu fracasso. Aliás, esta passagem de um ao outro constitui o ponto

pouco convincente do romance, pois a mudança de ponto-de-vista foi muito radical para

ter ocorrido no curto espaço de tempo existente entre a época dos acontecimentos e a

época da narração.

Madalena foi a pessoa “necessária” à realização do projeto-casamento

concebido por Paulo Honório com o intuito de dar-lhe um herdeiro. Mas a empresa cai

por terra a partir do momento em que a vê e esquece o projeto inicial, porque ela lhe

‘agradou’.

Há, em São Bernardo, um trecho que denuncia o quanto o amor e o casamento

estão apartados na visão do protagonista: “Amanheci um dia pensando em casar. Foi

uma idéia que me veio sem que nenhum rabo-de-saia a provocasse. Não me ocupo com

amores, devem ter notado(...)” (SB, p. 57).

Para confirmar a idéia de que, para ele, o casamento era uma espécie de negócio,

vejamos como, inicialmente, mistura os assuntos, no parágrafo final do capítulo onze:

“Recalquei as idéias violentas e esforcei-me por trazer de novo ao espírito as tintas e os

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ss de d. Marcela. Vieram. Mas afastavam-se de quando em quando – e nos intervalos

apareciam Marciano, a Rosa com o meninos, Luís Padilha e Costa Brito” (SB, p. 62)

Porém, sem que se dê conta, sua escolha realizou-se em desacordo com os

métodos racionais a que estava tão acostumado: foi feita com base no sentimento,

contrariando, como ele próprio admitiu, os parâmetros estabelecidos anteriormente para

a mulher ideal, inclusive os físicos – morena, alta, sadia, trinta anos: “De repente

conheci que estava querendo bem à pequena. Precisamente o contrário da mulher que

eu andava imaginando – mas agradava-me, com os diabos. Miudinha, fraquinha. D.

Marcela era um bichão. Uma peitaria, um pé-de-rabo, um toitiço!” (SB, p. 67)

No campo intelectual a distância entre Madalena e a mulher que almejava era

maior ainda: seu pensamento independente e renovador em nada coadunava-se com a

idéia de uma mera máquina procriadora. Ela aludiu a isso, na medida em que disse que

precisavam conhecer-se melhor para se casarem; mas ele estava resoluto. Ao aceitar a

proposta, mesmo admitindo não amá-lo, Madalena também se deixa levar pela idéia de

casamento- negócio: ela também admite, em sã consciência, que o ‘contrato’ seja feito.

- Parece que nos entendemos. Sempre desejei viver no campo, acordar cedo, cuidar de um jardim. Há lá um jardim, não? Mas por que não espera mais um pouco? Para ser franca, não sinto amor. - Ora essa! Se a senhora dissesse que sentia isso, eu não acreditava. E não gosto de gente que se apaixona e toma resoluções às cegas. Especialmente uma resolução como esta. Vamos marcar o dia. - Não há pressa. Talvez daqui a um ano... Eu preciso preparar-me. - Um ano? Negócio com prazo de ano não presta. Que é que falta? Um vestido branco faz-se em vinte e quatro horas. (SB, cap. 16, p. 93)

Talvez a resolução de Paulo Honório se devesse exatamente ao fato de ter ela

alguma formação intelectual, representando um desafio ao seu desejo de dominação

constante. Seria uma dificuldade a mais a ser transposta, o que daria mais gosto à

vitória. Este pensamento encaixa-se perfeitamente no mundo de Paulo Honório (que no

final da obra, ele diz ter-se tornado um “horrível estrupício”): um mundo que, em

última análise, se reduz à sua voz áspera, ao seu comando, à sua maneira de enfrentar os

obstáculos e vencê-los.

O fracasso do casamento como Paulo Honório o havia concebido é perceptível

mesmo antes das primeiras desavenças com Madalena. É interessante perceber como o

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próprio objetivo da empresa perdeu-se. Como já foi assinalado, o filho, razão

principal, é relegado a um plano completamente secundário, passando Paulo Honório a

importar-se muito mais com Madalena.

O aludido fracasso escapava ao seu domínio. Dedicou-se, então, a tentar reduzi-

lo. Desconhecia, contudo, que não só não conseguiria, como também que o fato de

nunca retroceder significaria a destruição de Madalena e de si próprio.

4.1.1.2– Nascimento e morte prematura do amor

Em princípio, como já abordamos, a visão de Paulo Honório sobre o casamento,

ou melhor, sobre a escolha da mulher para se casar, tinha bases semelhantes às

naturalistas: “Tentei fantasiar uma criatura alta, sadia, com trinta anos, cabelos

pretos(...).(SB, p. 57).

Mas Paulo Honório não leva a cabo sua empresa de casar-se com uma mulher

com este aspecto, pois, neste ínterim, aparece-lhe Madalena e, embora seu coração

esteja bastante embrutecido, ela o arrebata. Numa das poucas vezes em que se

considera vencido, contrariada a sua razão, diz-nos: “Precisamente o contrário da

mulher que andava imaginando – mas agradava-me, com os diabos. Miudinha,

fraquinha.” (SB, p. 67)

Mesmo com toda a dureza e embrutecimento, percebe-se o aflorar dos

sentimentos rejeitados, nos elogios esparsos dedicados a Madalena (nunca revelados a

ela) ou, ainda, nos diminutivos utilizados na sua primeira visão da “amada”: “A loura

tinha a cabecinha inclinada e as mãozinhas cruzadas, lindas mãos, linda cabeça.” (SB,

p. 65)

Não se pode dizer que o amor romântico suplantou a visão realista,

dessacralizada, pois isso seria exagero. Não chega a ser o amor à primeira vista, fatal,

dos românticos, mas o interesse foi crescendo num curto espaço de tempo, o que é

possível notar pela própria maneira de narrar, sem que isso seja dito claramente:

primeiro a presença de Madalena insinua-se por entre retalhos de conversa banal e

interesseira na casa do juiz. A primeira notação sobre ela é precisa e seca, como de

hábito: “(...) uma senhora de preto, alta, velha, magra, outra senhora moça, loura e

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bonita.” (SB, p. 63). O segundo olhar já é mais detido, avaliador: “D. Marcela sorria

agora para a senhora nova e loura, que sorria também mostrando os dentinhos

brancos. Comparei as duas, a importância da minha visita teve uma redução de

cinqüenta por cento” .(SB, p. 63) A partir daí, Paulo Honório mostra um certo grau de

envolvimento e de fascinação: “A loura tinha a cabecinha inclinada e as mãozinhas

cruzadas, lindas mãos, linda cabeça.” (SB, p.67) Por fim, Madalena arrebata-o de vez,

fazendo-o, numa atitude única na obra, assumir um sentimento propriamente amoroso:

“De repente conheci que estava querendo bem à pequena” (SB, p. 67). Madalena torna-

se, então, o lugar central dos acontecimentos, a narrativa passando a existir em função

dela.

Significativa, também, no trecho acima, é a diferença de linguagem empregada

em relação a Madalena e em relação a D. Marcela: “miudinha, fraquinha” , contra “um

bichão, uma peitaria, um pé-de-rabo, um toitiço” . D. Marcela estaria para Paulo

Honório, assim como ele mesmo se via, como um animal, enquanto Madalena parecia

mais humana, atraindo-o por oposição.

Como já foi dito, o mundo de Paulo Honório curvava-se à sua vontade. Este é o

motivo que o faz dedicar-se a matar o amor que nele nascia por Madalena; ou ainda, a

extirpar toda possibilidade de amor que ela pudesse dedicar-lhe. O amor iria deixá-lo à

mercê da mulher.

Num primeiro olhar, ingênuo, a morte da mulher poderia parecer a vitória de

Paulo Honório sobre sua alma aparentemente frágil: perante sua obstinação, o amor

arrefece e dá lugar à tragédia, com o suicídio de Madalena. Contudo, analisando-se

melhor, foi sua derrota, pois ela preferiu sacrificar-se a submeter-se, e o rolo compressor

do marido ficou emperrado: não conseguiu esmagá-la. Embora esta seja uma visão

idealista, a morte significou a liberdade para Madalena.

A morte, de certa forma, é também redentora, mas não do amor ou da própria

Madalena. Tem, em São Bernardo, o valor simbólico do nascimento da escrita. É a

partir da perda da esposa que Paulo Honório sente uma necessidade interior de escrever

e de refletir. Este tema é capital na obra de Graciliano Ramos: a função reveladora da

literatura aparece aqui não apenas através da trama criada pelo autor, mas também no

nível do personagem, como numa sublimação positiva dos sentimentos por que este

passou. O impulso da escrita pode representar a própria salvação. “A solidão do

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indivíduo aparece na opção de escrever, dada a impossibilidade de um encontro

satisfatório com outro ser humano.”98

A arte, tendo seu nascimento ligado à morte de Madalena, funciona como uma

vela, utilizada, aliás, como símbolo, de forma reiterada na obra, como no seguinte

trecho: “Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo, acendo-a. Sinto um arrepio. A

lembrança de Madalena persegue-me.” (SB, cap. 36, p. 188).

Embora o espaço de tempo que separa o narrador dos acontecimentos narrados

seja muito curto para a tomada de consciência e assunção da culpa, ainda assim escrever

é viver outra vez os acontecimentos, dando-lhes, porém, outra significação.

Corrobora-se a idéia de que a arte é redentora, e Paulo Honório, a julgar pelo

“capítulo de negativas” com que é encerrada a obra, já havia iniciado o processo de

reflexão...

4.1.1.3- As justificativas presentes

Um dos fatores perceptíveis na análise de São Bernardo é que a sede de

dominação do protagonista é fruto de um grande sentimento de inferioridade, gerado

pela infância miserável, pela falta de pais, pelo embrutecimento do corpo. Para

neutralizar todos estes fatores era preciso mandar em todos e ter muito dinheiro, já que

não alcançaria a cultura para suplantar ninguém, e achava-se feio como um animal:

Ocupado com o diabo da lavoura, ficava três, quatro dias sem raspar a cara. E quando voltava do serviço, trazia lama até nos olhos: dêem por visto um porco. Metia-me em água quente, mas não havia esfregação que tirasse aquilo tudo.

Que mãos enormes! As palmas eram enormes, gretadas, calosas, duras como casco de cavalo.(SB, p. 140)

Sendo assim, não achava possível que alguém o amasse, começando a desconfiar

estupidamente de Madalena, imaginando-lhe amantes. Faltava-lhe, na verdade, amor

próprio. Não se permitia o amor por não se achar capaz de ser amado.

98 BRAYNER, 1977: p. 213.

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A negação do sentimento em Paulo Honório já é anunciada no final do capítulo

3, quando ele diz que, ao sair da cadeia, não pensava mais em Germana, só pensava em

ganhar dinheiro (SB, p. 12). Aí é mostrada a incapacidade de unir os dois pólos, como

se prazer e progresso jamais pudessem andar juntos. Sobre tal impossibilidade,

Marcuse, em seu Eros e Civilização, nos diz: “ A livre gratificação das necessidades

instintivas do homem seria incompatível com a sociedade civilizada: dilação e renúncia

da satisfação constituem pré-requisitos do progresso” 99 e, ainda, que: Enquanto o

trabalho dura, o que praticamente, ocupa toda a existência do indivíduo amadurecido,

o prazer é suspenso e o sofrimento físico prevalece.100

O grande problema é que Paulo Honório não reserva tempo para o prazer: tudo é

trabalho e planejamento.

O amor que poderia ter frutificado entre Madalena e o protagonista ‘gorou’ ,

passando a fazer parte também de seu jogo de poder e dominação infindável. Há uma

tendência, em Paulo Honório, de afastamento de toda qualidade sensível das coisas, que

é substituída pela noção de quantidade ou de utilidade. A de Madalena era dar-lhe um

herdeiro, ou em última circunstância, conferir a ele, por associação, algum status

intelectual. O sentimento de propriedade significa, portanto, uma das linhas mestras

que norteiam a obra, esteja ele ligado à fazenda S. Bernardo ou à mulher com quem

pretende se casar, num processo de reificação desta. Mesmo tendo se interessado

afetivamente por ela, continua tratando o casamento como um negócio. E toda relação

humana se transforma, destruidoramente, numa relação entre coisas, entre possuído e

possuidor.

Depois da posse de São Bernardo, o novo desafio é, então, a posse de Madalena.

É possível fazer inclusive um paralelo entre a ‘negociação’ das duas ações. Na

negociação de São Bernardo, Paulo Honório, após enredar Padilha em dívidas, vai à sua

casa no dia do vencimento de uma promissória. A visita se dá da seguinte forma: Paulo

Honório encontra Padilha dormindo, cobra-lhe a dívida e os dois discutem. Padilha

pede mais prazo: “- Tenha paciência, seu Paulo. Com barulho ninguém se entende. Eu

pago. Espere uns dias. A dívida só é ruim para quem deve.” (SB, p. 22). E Paulo

Honório insiste: “Não espero nem uma hora (...)” (SB, p. 22). A negociação que se

99 MARCUSE, 1968, p.27 100 MARCUSE, 1968, p.51

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segue é um jogo de negaceios, avanços e recuos, propostas e contrapropostas.

“Debatemos a transação até o lusco-fusco” (SB, p. 23). Afinal, mais forte nesta

disputa, Paulo Honório vence. Com Madalena, a história não foi muito diferente. Para

comprovar, transcreve-se o diálogo da forma como é narrado:

– (...) Vamos marcar o dia.

- Não há pressa. Talvez daqui a um ano... Eu preciso preparar-me. - Um ano? Negócio com prazo de ano não presta. Que é que falta? Um vestido branco faz-se em vinte e quatro horas.

Ouvindo passos no corredor baixei a voz: - Podemos avisar sua tia, não?

Madalena sorriu, irresoluta. Está bem.

(...) - D. Glória, comunico-lhe que eu e sua sobrinha dentro de uma semana estamos embirados. Para usar linguagem mais correta, vamos casar (...)” (SB, p. 93)

Um indício da redução de Madalena à condição de simples propriedade está na

irritação de Paulo Honório por achá-la uma revolucionária. No discurso sobre a mulher,

aparecem palavras que costumamos ver ligadas ao tema propriedade: comunismo,

corrupção, dissolução da família, ausência de religião, materialismo. Logo depois, vem

Paulo Honório com um assunto que, embora não esteja diretamente ligado a tais

características, tem com elas uma relação indireta: o ciúme, conseqüência do fato de ele

considerar Madalena, em última análise, sua propriedade. O trecho específico a que

nos referimos é este: “Comunista, materialista. Bonito casamento! (...) Que haveria

nas palestras? Reformas sociais, ou coisa pior. Sei lá! Mulher sem religião é capaz de

tudo.” (SB, p. 133, cap. 24)

O sentimento de posse fica mais evidente no desejo de exclusividade, retratado

através do ciúme doentio que Paulo Honório sente de Madalena, em relação a tudo e a

todos: tem ciúme com os caboclos, com o Padre e, embora não o admita, de D. Glória,

por Madalena tê-la em alta consideração.

Por fim, o próprio Paulo Honório se reconhece deformado por este sentimento

doentio de posse de pessoas e coisas, − “Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou

um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos

nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.” (SB,

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cap. 36, p. 188) − vendo a si como aquele que não tem sentimentos, e que quer engolir e

pegar tudo o que for capaz. Seu desejo de subjugar Madalena é tanto, que ele não

consegue enxergá-la. É incapaz de senti-la em sua integridade humana, em sua

liberdade, considerando-a apenas uma coisa a ser possuída.

A morte de Madalena destrói também Paulo Honório, porque representa a

tomada de consciência de que a propriedade e o poder não constituem tudo, e que um

amor (ou algo muito próximo dele) de fato existia. A falta de humanidade e de afeto é

que passa a avultar, fazendo-o questionar sobre a validade de seu poder, de sua

perseverança, de seus esforços, e mesmo de São Bernardo.

Além disso estou certo de que a escrituração mercantil, os manuais de agricultura e pecuária, que forneceram a essência da minha instrução, não me tornaram melhor do que eu era quando arrastava peroba. Pelo menos naquele tempo não sonhava ser o explorador feroz em que me transformei. Quanto às vantagens restantes – casas, terras, móveis, semoventes, consideração de políticos, etc. – é preciso convir em que tudo está fora de mim. (SB, cap. 36, p. 186)

Este capitalismo selvagem que o transformou no explorador feroz é o culpado

pela deformação que ele próprio encontra em si. Mas a tomada de consciência, a ponto

de fazê-lo reduzir a nada o valor que sempre deu a seus bens, foi rápida demais para um

homem tão deformado.

De qualquer forma, São Bernardo não é a história de um amor, mas a história da

derrota de um homem, ou antes, de seu projeto de vida.

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4.1.2 - Angústia: a degradação do amor no mundo desencantado de Luís da Silva

A segunda obra aqui abordada de Graciliano Ramos segue uma linha bem

diversa de São Bernardo, embora ambas cheguem a um lugar-comum: o enfoque

pessimista em relação ao amor, o desencanto no que diz respeito às possibilidades de

sua realização plena ou mesmo parcial. Este caráter de, por diferentes perspectivas,

chegar ao mesmo aspecto empobrecido do amor, nos despertou a vontade de descrever

e analisar como se desenvolve o sentimento em Angústia. A perspectiva desta obra é

filosófico-existencial, diversamente da aproximação com o aspecto sociológico presente

em São Bernardo.

Antonio Candido apresenta a referida obra da seguinte forma:

O leitor chega a respirar mal no clima opressivo em que a força criadora do romancista fez medrar o personagem mais dramático da moderna ficção brasileira – Luís da Silva. Raras vezes encontraremos na nossa literatura estudo tão completo de frustração (...) um frustrado violento, cruel, irremediável, que traz em si reservas inesgotáveis de amargura e negação.101

Por ser Angústia uma obra imbuída desse negativismo, resolvemos estudá-la

para analisar até que ponto o amor é também negado ou se, em vez disso, é deformado.

A narrativa, na verdade, aproxima-se do estilo expressionista que, “no seu

sentido amplo, caracteriza a arte criada sob o impacto da expressão, mas da expressão

da vida interior, das imagens que vêm do fundo do ser e se manifestam

pateticamente.”102

Tanto a aproximação com os animais, como algumas imagens recorrentes, como

a da corda/cobra que Luís passa a levar no bolso, antecipando a todo momento o crime

que cometerá, caracterizam a sua obsessão, manifestação interior que dá a obra o

caráter de subjetividade, de maior importância ao mundo interior da personagem do que

aos acontecimentos, conferindo a similitude com a literatura expressionista. O narrador

exerce, em Angústia, não a função de comunicar idéias, mas e distorcer o mundo

101 CANDIDO, 1992: p. 34.

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objetivo, apresentando uma reação pessoal. Segundo Antonio Candido: “Um zero

anterior anula os valores propostos ao pensamento: nele [Luís da Silva] , há

depravação dos valores, sentimento de abjeção ante o qual tudo se colore de tonalidade

corrupta e opressiva” 103.

Embora se sinta excluído da sociedade, Luís da Silva parece um vocacionado

para o isolamento, já que repele a todos que dele se aproximam. A obra trata da solidão

da personagem e da angústia que representa para ela o sexo, já que este lhe confere certa

conotação de culpa. Novamente Luís encarna a consciência pessoal expressionista, que

parte de fatores objetivos, personagens ou ações, interioriza-os, dando ao leitor uma

interpretação interior. Sua interpretação do amor é distorcida, não só por apresentar

um obsessão pelo aspecto erótico, mas por associá-lo a um sentimento doloroso ou sujo:

O amor para mim sempre fora uma coisa dolorosa, complicada e incompleta (Angústia, p. 110) De todo aquele romance [com Marina] as particularidades que melhor guardei na memória foram os montes de cisco, a água empapando a terra, o cheiro dos monturos, urubus nos galhos da mangueira farejando ratos em decomposição no lixo. Tão morno, tão chato! (Angústia, p. 98)

Portanto, solidão e culpa turbam a alma do protagonista. Sua relação com a

realidade e com o amor, que é parte dela, é dolorosa e traumática e ele nunca consegue

encarar tal realidade: esconde-se atrás de cercas, paredes, janelas, ou, como aconteceu

no caso extremo, aniquila o ‘adversário’ .

O aspecto confessional, introspectivo, domina o romance, formando-se, assim,

traços individualizantes do narrador-protagonista. Mas esta introspecção tem um limite,

delineado de maneira clara por Nelly Novaes Coelho da seguinte maneira:

102 TELLES, 1986, p. 104 103 CANDIDO, 1992: p.34.

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Contudo, nesta sondagem interior [em Angústia], Graciliano não ultrapassa a área psicológica, não chega, como outros pesquisadores da mesma problemática, à especulação do transcendente. Nele o que temos é o mundo objetivo visto através do prisma da alma humana: mundo fragmentado, distorcido, dissolvido em emoções e sensações. E da complexa riqueza dessa alma, Graciliano fixa, principalmente, duas forças que se tornam obsessivas em toda sua obra: a Solidão interior do homem e sua Luta pela afirmação da própria individualidade. 104

Toda a realidade aparece sempre filtrada pela sensibilidade deste, e o mundo

ficcional, assim como o retrato da amada Marina, se constrói aos olhos do leitor, a partir

da perspectiva deturpadora de Luís da Silva.

Não se pode, por exemplo, analisar o amor a partir de Marina, já que o que se

tem na obra é quase um monólogo de Luís; todas as demais personagens se tornam

dependentes do ponto-de-vista do narrador-personagem. Marina, além de secundária na

obra, não possui voz própria: funciona apenas como fator desagregador, que detona a

‘bomba’ Luís da Silva e todas as frustrações reprimidas da personagem.

Luís da Silva não realiza bem, em nenhum ambiente, a convivência com o outro,

seja em meio à família de Marina, seja em casa com Vitória, ou ainda no ambiente

profissional. Se ele vê deformidade em tudo e em todos, fica claro que sua visão é

deformadora.

Angústia contém uma manifestação de inconformismo com os valores sociais,

através da revolta e do pessimismo do protagonista. Sob esta justificativa aparece na

obra um mundo caótico, que não se move com regularidade; a narrativa, embora parta

da realidade que circunda a personagem, apresenta apenas suas reflexões acerca dessa

realidade, revelando, assim, sua mente, seu pensamento (caótico, aliás). Opera-se tudo

isso numa espécie de processo de livre associação de idéias. É o realismo escondido

atrás de uma abstração, às vezes simbolizada por algumas imagens concretas. O

inconformismo desta maneira expresso é, também, uma particularidade expressionista:

o desespero em relação a alguns aspectos da vida. Em suas considerações sobre o

expressionismo, o crítico Addison Hibbard faz a seguinte colocação:

104 COELHO, 1977: p. 61

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In general, expressionistic writers seem to despair of life: spciety, government, industry, religion, man himself, are presented as in a chaotic state. This impression of chaos is, at least parcially, inherentn in the subjective quality of expressionism.105

Luís da Silva nunca satisfaz o desejo, estando sempre vazio. O impulso de frustração,

decorrente deste vazio, acaba por cristalizar-se no ódio a Julião Tavares, que leva o

protagonista a matá-lo. O assassinato, clímax do enredo, desencadeia um processo de

doença em Luís da Silva, e esta é o elo de ligação entre desfecho e início da narrativa,

conferindo a Angústia uma estrutura circular. O romance inicia-se com o

restabelecimento do protagonista:

Levantei-me há cerca de 30 dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.(...) Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram.(Angústia, p. 19)

Ao chegar ao final, nota-se que a doença que o acomete e que o deixa acamado,

delirante, é o último fato da obra. Otto Maria Carpeaux, em tom de conselho ao leitor,

fala sobre este caráter circular de Angústia: “Após ter lido Angústia até o fim, é preciso

reler as primeiras páginas, para compreendê-las. É um mundo fechado em si

mesmo.” 106

O narrador-personagem tinha a ilusão de que sua existência não seria mais

definida nem condicionada por qualquer outra pessoa que não ele próprio, mas a

memória, a consciência está lá. O devir é convertido no círculo que se move em si

mesmo: passado e presente estão encerrados no círculo. O enredo tem por limite

temporal o momento exatamente anterior ao início do ato de narrar. A estória passada

deságua no presente, de forma que as temporalidades se apresentam misturadas: não há

limites claros entre o passado remoto, o passado próximo e o presente. Esta mistura é

exposta por Antonio Candido da seguinte forma: “A narrativa não flui, (...) constrói-se

aos poucos, em fragmentos, num ritmo de vaivém entre a realidade pressente, descrita

105 HIBBARD, 1967: p. 1170.

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com saliência naturalista, a constante evocação do passado, a fuga para o devaneio e a

deformação expressionista” .107

Luís da Silva se afoga na corrente da consciência, e busca a claridade através da

narrativa, que é, de certa forma, busca de auto-conhecimento. A escrita é uma espécie

de purgação para a personagem. O pessimismo da obra se exprime na própria

circularidade de sua estrutura: não se vê saída para o personagem-narrador, preso em si

mesmo. No exercício da linguagem, o protagonista persegue em seu interior sua

significância. Às vezes, a narrativa de Luís da Silva mistura ação e contemplação,

como conseqüência da sua personalidade conturbada.

Esse mergulho profundo no inconsciente faz com que a estória de Angústia não

seja assumida como uma narrativa, pois está misturada com a própria vivência de Luís

da Silva: sua visão é mais importante que o fato que narra.

A personagem é o retrato da desagregação do eu social, e o desajuste no âmbito

amoroso, sentimental, é um dos aspectos desta desagregação. Para que o leitor

acompanhe o processo mental doentio de Luís da Silva, a estória se centra no seu

pensamento; portanto, há participação total do sujeito na narrativa, através da técnica

do monólogo interior, utilizando o fluxo da consciência.

Estas últimas considerações fazem-se importantes neste estudo, pois é através

deste fluxo de consciência que se pode avaliar a natureza dos sentimentos de Luís da

Silva, inclusive daquele que nutre por Marina, evidencia-se o desequilíbrio e a

dissolução psíquica da personagem, reproduzindo com mais intensidade o desespero e a

derrota. Sobre o fluxo da consciência, citamos um trecho breve, mas bastante

esclarecedor, de Roger Shattuck: “O estilo narrativo conhecido como fluxo da

consciência consiste no puro ponto de vista, sem nenhum outro processo além do eu

lutando para atingir o âmago do sentimento (ou para escapar dele) em cada sucessivo

momento”108

O discurso “colado” à introjeção nos dá a impressão de que “ouvimos” a mente

de Luís da Silva enquanto ele pensa, planeja, julga... Sendo assim, os estados pré-

lógicos da consciência da personagem marcam, para o leitor, seu desajuste, inclusive no

plano sentimental.

106 CARPEAUX, 1977: p. 30 107 CANDIDO, 1992: p.80. 108 SHATTUCK, Roger, 1964, p.68. Trad. Luiza Lobo.

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O fracionamento da consciência de Luís da Silva decompõe, então, a própria

narrativa. Ainda que ele nos comunique ações e pensamentos, estes parecem integrados

numa expressividade primitiva, como num fluxo inconsciente, sem “vestir-se” da

narrativa objetiva, de composição escrita de fato. Não se trata de uma questão

vocabular, léxica, mas da ‘ lassidez’ da coesão da estrutura, do pensamento da

personagem. E o amor, por doentio que se apresente, também é construído dessa forma:

os dados expostos à maneira intuitiva carecem ser unificados pelo leitor, que encontra e

interpreta a patologia.

Toda essa construção revela um grande trabalho de criação e estruturação da

obra, para dar-lhe um sentido. Há um movimento de interiorização da personagem,

passando sempre o real por sua consciência.

Luís da Silva, indivíduo frio e melancólico, parece particularmente disposto ‘por

natureza’ , à mania, entendida aqui como a espécie de loucura que a Renascença chamou

de furor e que era inseparável do amor e do desejo. Com o aparecimento da

personagem Marina, tal tendência torna-se fato e o enredo passa a girar em torno dessa

mania-angústia, até que Luís torna-se um assassino e adoece.

Se, como já foi dito, em São Bernardo, o psicológico é determinado pelo sócio-

cultural, em Angústia, o caráter psicológico, ainda que intimamente ligado ao recalque

social, sobrepõe-se a qualquer outro. O fator social reside na derrocada sócio-

econômica da família, comprovada pela perda de sobrenomes com o passar das

gerações:

Volto a ser criança, revejo a figura do meu avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcanti e Silva, que alcancei velhíssimo. Os negócios na fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios do copiar, cortando palha de milho para cigarros, lendo o Carlos Magno, sonhando com a vitória do partido que Padre Inácio chefiava. Dez ou doze reses, arrepiadas no carrapato e na varejeira, envergavam o espinhaço e comiam o mandacaru que Amaro vaqueiro cortava nos cestos. O cupim devorava os mourões do curral e as linhas da casa. No chiqueiro alguns bichos bodejavam. Um carro de bois apodrecia debaixo das catingueiras sem folha. Tinham amarrado no pescoço da cachorra Moqueca um rosário de sabugos de milho queimados(...) Eu andava no pátio, arrastando um chocalho, brincando de boi. Minha avó, sinhá Germana, passava os dias falando só, xingando as escravas, que não existiam. (Angústia, p. 23)

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E também pelo distanciamento social entre Luís da Silva e Julião Tavares. Tais

fatores funcionam como elementos da frustração necessária ao desenvolvimento da

complicação narrativa. A reflexão de José Maurício Gomes de Almeida corrobora esta

análise:

O núcleo dramático de Angústia, de natureza psicológico-existencial, tem entretanto sua raiz sociológica no sentimento de frustração social de Luís da Silva, descendente de uma família rural outrora próspera, que veio decaindo ao longo de duas gerações, até atingir o estado de quase privação em que vive o personagem, pequeno funcionário com pretensões intelectuais.109

Antonio Candido situa da seguinte forma o problema da família na formação da

personalidade torturada de Luís da Silva:

A decadência do avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, e a do pai, “ reduzido a Camilo Pereira da Silva”, criaram um ambiente de derrota prévia para a sua carreira; e a educação, forçando-o a refugiar-se no próprio eu, transformou as pessoas em seres agressivos.110

O amor é tratado também sob a luz da eterna insatisfação. A visão degradada

deste sentimento como um desejo erótico sempre impedido demonstra que é também

esta uma relação de dimensão frustrada. Diz-se “uma” porque na verdade toda relação

de Luís da Silva com o real é doentia, perseguida, humilhada. Em princípio, pode-se até

confundi-la com loucura; mas, numa segunda análise, descarta-se esta hipótese, visto

que o louco apresenta uma ruptura com o real, e o protagonista não chega ao

distanciamento total, e sim, como já foi dito, tem uma relação problemática com a

realidade. Através da narrativa percebe-se, inclusive, uma tentativa de justificar tal

problematização, que, no entanto, é apenas seu ponto de partida: a decadência familiar.

O problema reside, de fato, no próprio Luís da Silva.

109 ALMEIDA, 1999, p. 291. 110 CANDIDO, 1992: p.38.

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4.1.2.1 – A imaginação deformadora

No mundo de Luís da Silva, a racionalidade é anulada. Montaigne, nos Ensaios,

narra de maneira minuciosa a força da imaginação: “Sou desses sobre os quais a

imaginação tem um grande domínio. Todos são atingidos por ela, mas alguns há que

ela derruba. Ela me persegue e eu me esforço por fugir da impossibilidade de lhe

resistir” 111

A realidade passada ao leitor é fruto da mente conturbada do protagonista, seu

reflexo. Pode-se ponderar que a imaginação de Paulo, de Lucíola, também “cria” Lúcia,

mas, se ambos os narradores são dominados pela imaginação, Luís da Silva é daqueles a

quem ela derruba. A sua falta de controle em relação à fantasia e aos instintos, assim

como o aspecto degradado destes, direcionam-no para a tragédia.

Luís da Silva sente-se impelido para Marina mesmo após perceber que ela

desejava o mundo que ele sempre repudiou. Acaba por persegui-la e desejá-la de

maneira infrene. A tragédia consuma-se com o assassinato de Julião.

O mundo burguês que repudia é, na verdade, aquele do qual não consegue fazer

parte por impotência, inadequação. O desejo por Marina seria, no fundo, um desejo de

inserção social e, como a consciência de Luís responsabiliza a burguesia, na figura de

Julião Tavares, por todos obstáculos neste âmbito (as dívidas, o fracasso profissional...),

responsabiliza-o também pela perda de Marina. O protagonista é a imagem do

ressentimento e, para tal tentar anulá-lo, cria uma solução destrutiva e fatalista: o

assassinato daquele que representava a burguesia e, conseqüentemente, a interdição de

todos os seus sonhos, segundo sua consciência doentia. Tal representação é também

apontada por Antonio Candido:

[Em Luís da Silva] A misantropia deságua em asco ou agressiva indiferença, pelos homens do Instituto Histórico, os ricaços, os altos funcionários, os literatos. E tudo converge para Julião Tavares, “patriota e versejador” , caricatura do tipo que lhe desagrada e intimida – desde a capacidade de comunicação fácil até a ligação entre literatura e arrivismo.112

111 NOVAES, Adauto. p. 12 112 CANDIDO, 1992: p.42-3.

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Embora procure atribuir características grotescas a Julião Tavares, é o próprio

narrador-personagem quem se impregna destas, como aponta, por exemplo, sua relação

problemática com o sexo e com as mulheres.

Há indícios de que o amor é ideologicamente repudiado por Luís da Silva, por

considerá-lo um sentimento ‘contaminado’ também pelo caráter capitalista, burguês. O

casamento, mais ainda, pois é visto como um jogo de interesses.

A inacessibilidade amorosa é ditada pelo próprio Luís da Silva e a decadência

social parece ser o início de todos os traumas, por tê-lo feito sentir-se inferiorizado ou

mesmo incapaz de casar-se ou mesmo relacionar-se de maneira natural com uma

mulher.

No entanto, à margem de sua consciência, também deseja ser burguês, na

medida em que inveja Julião Tavares a ponto de exterminá-lo. Ao pensar em se casar,

Luís vê na iniciativa uma forma de se aproximar da sociedade que o excluía. Por outro

lado, Marina só se preocupa com a parte material, que enquanto solteira, não possui

nem pode almejar: alianças, enxoval sofisticado... negligenciando qualquer tipo de

envolvimento amoroso de fato.

Como a distância entre Luís e a sociedade burguesa é essencial, e não passível

de ser anulada pelo simples casamento com Marina, ele acaba por se distanciar da moça,

embora continue a vê-la como única maneira de inclusão; ela, por sua vez, aproxima-se

de Julião com o mesmo intuito.

O fato que demonstra mais claramente as intenções de Marina, no que diz

respeito aos relacionamentos, é a sua admiração por Dona Mercedes: “Dona Mercedes é

linda, parece uma artista de cinema.” (Angústia, p. 93). E é também essa admiração

que faz cair por terra o idealizado retrato de Marina feito por Luís da Silva.

Para Luís, a idéia de alcançar uma mulher que desejava estava sempre ligada a

gastos, o que o desanimava. Por outro lado, não percebia outra forma de fazê-lo. Numa

das primeiras passagens em que aventa a possibilidade de se casar, demonstra

pensamento quase idêntico ao de Paulo Honório, em São Bernardo: o casamento como

necessidade social e econômica.

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Considerava-me um valor, valor miúdo, uma espécie de níquel social, mas enfim valor. O aluguel da casa estava pago. Andava em todas as ruas sem precisar dobrar esquinas. Por uma diferença de dois votos, tinha deixado de ser eleito Secretário da Associação Alagoana de Imprensa. Quinhentos mil-réis de ordenado. Com alguns ganchos, embirava uns setecentos. Podia até casar. Casar ou amigar-me com uma criatura sensata, amante da ordem. Nada de melindrosas pintadas. Mulher direita, sisuda. (Angústia, p. 67)

Assim, Luís critica Marina por ela gastar demais, por dar excessivo valor à

aparência, por ser fútil, e, além de não querer, não se vê em condições de satisfazer

esses caprichos. Todavia, não consegue desatar-se dela, pois a deseja mesmo assim.

Quando Julião Tavares se aproxima, acenando com tudo o que Luís da Silva não

podia oferecer-lhe, Marina rapidamente faz sua escolha por ele. Luís afrouxa então e

abandona a disputa, responsabilizando Julião também pela perda da noiva.

Reconhece-se a paixão obsessiva de Luís por Marina no fato de, mesmo estando

apartado dela, sua ausência ser sentida em todos os seus atos, desde que a vê pela

primeira vez, até o desfecho.

O amor, como movimento ascensional de purificação, não existe em Angústia,

visto que não passa da esfera sensual, semelhante à naturalista. Se o romantismo

exacerbado beira a irracionalidade, também o faz Angústia, que é o oposto desta

tendência. O desejo irracional é o sentimento privilegiado na obra, expressão de um

mundo desencantado e do conseqüente desencantamento do amor, ainda que através de

um processo diferente do machadiano.

O assassinato de Julião é a conseqüência do caráter destrutivo do desejo

insatisfeito, associado à imaginação exacerbada do protagonista. E a imaginação aqui é

levada ao paroxismo da desagregação moral. O comportamento doentio do protagonista

deve ser entendido como instância última de sua degradação física e mental.

Luís tenta culpar Marina e Julião por seus problemas, chegando à anulação do

rival pela morte. No entanto, a amada não representa o início de sua vivência erótica.

Antes mesmo já apresentava uma sexualidade problemática, como confirmam os

trechos que se referem ao rápido flerte com a neta de Dona Aurora.

Fantasiar, antecipar a relação sexual, para Luís da Silva, não é uma experiência

prazerosa, mas dolorosa: a experiência erótica é vivência do mal-estar. Para isso usa a

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imagem de ratos a roerem-lhe as entranhas, por exemplo. O caráter punitivo imputado

ao sexo pelo protagonista se dá como afirmação da própria animalidade, mesmo no

interior da realização imaginária.

A partir do aparecimento de Marina, a imaginação de Luís volta a se manifestar

para a consecução do prazer, como elemento de excitação e é, ao mesmo tempo, afetada

pela insatisfação do desejo, a partir do rompimento das relações do casal, atingindo o

paroxismo do delírio, do desequilíbrio.

4.1.2.2 - O amor sádico e egoísta.

Percebe-se, através das narrativas de diferentes épocas, que o amor, ao se

aproximar do máximo de desejo, tende a uma aproximação com a morte. Daí,

figurarem, nas mais diversas obras, exemplos de sadismo, que podem ser

compreendidos como amor ardente e incontrolável. No próprio Romantismo, numa das

passagens mais significativas da narrativa, Paulo demonstra tal característica para

expressar todo o amor dedicado a Lúcia e todo o ciúme, já que os amantes em geral

desejam a posse exclusiva:

Entrei no baile aspirando no ar um faro de sangue. É verdade, tinha frenesi de matar essa mulher; porém matá-la devorando-lhe as carnes, sufocando-a nos meus braços, gozando-a uma última vez, deixando-a já cadáver e mutilada para que depois ninguém mais a possuísse.(Lucíola, p. 193)

Paulo desejava, na verdade, matá-la de amor, e o trecho denuncia a incapacidade

de manter-se racional diante do sentimento amoroso.

Em quase todas as obras em que há um amor exacerbado, ou um sentimento

doentio em relação ao próximo, reponta o sadismo ou o masoquismo, ainda que de uma

forma dissimulada. Em Lucíola, a maneira como a protagonista se castiga, entregando-

se à luxúria contra a vontade, de maneira aparentemente voluptuosíssima, ou ainda

quando propõe a Paulo que se case com sua irmã, é uma forma de masoquismo.

(...) Há sentimentos e gozos que ainda não sentiste, e só uma esposa casta e pura te pode dar. Por mim te havias de privar de tão santas afeições, como são o amor conjugal e o amor paterno?

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Assim, eram estes os projetos que fazias sobre a nossa felicidade? Repliquei com um sorriso amargo.(...) Escuta-me primeiro, Paulo, meu amigo; depois pune-me, se eu merecer, mas não retires de mim o teu olhar. Pensas que essa idéia de que um dia me poderás abandonar por uma mulher a quem deverás consagrar toda a tua vida, não me tortura? Se assim fosse, por que me preocuparia com isto? É porque temo essa desgraça, que refletia no meio único de evitá-la.

E esse meio?... Qual é ele? Dize-me. Ana! Respondeu Lúcia timidamente.(...) Poderias escolher uma noiva rica, de alta posição, porém não acharás alma tão pura, nem mais casto amor. Queres casar-me com Ana? Com tua irmã, Maria? (Lucíola, p. 193)

Já em Senhora, há um requinte sado-masoquista, na medida em que Aurélia faz

sofrer o arrependido Fernando ao lembrar a todo momento que o comprou e ao mesmo

tempo a si mesma, já que, apaixonada por ele, não consegue acreditar na autenticidade

de seu sentimento, por tê-lo “negociado” . A cena que se desenrola na câmara nupcial,

logo após o casamento, é uma das mais ricas neste aspecto:

Tornemos à câmara nupcial, onde se representa a primeira cena do drama original, de que apenas conhecemos o prólogo. Os dois atores ainda conservam a mesma posição em que os deixamos. Fernando Seixas, obedecendo automaticamente a Aurélia, sentara-se e fitava na moça um ar estupefacto. A moça arrastou uma cadeira e colocou-se em face do marido, cujas faces crestava o seu hálito abrasado. (...) Aurélia calcou a mão sobre o seio para comprimir a emoção que a ia dominando.(...) - A riqueza que Deus me concedeu chegou tarde; nem ao menos permitiu-me o prazer da ilusão, que têm as mulheres enganadas. Quando a recebi, já conhecia o mundo e suas misérias; já sabia que a moça rica é um arranjo e não uma esposa; pois bem, disse eu, essa riqueza servirá para dar-me a única satisfação que ainda posso ter neste mundo. Mostrar a esse homem que não me soube compreender que mulher o amava, e que alma perdeu. Entretanto ainda eu afagava uma esperança. Se ele recusa nobremente a proposta aviltante, eu irei lançar-me a seus pés. Suplicar-lhe-ei que aceite a minha riqueza, que a dissipe se quiser; mas consinta-me que eu o ame. Essa última consolação, o senhor a arrebatou. Que me restava? Outrora atava-se o cadáver ao homicida, para expiação da culpa; o senhor matou-me o coração; era justo que o prendesse ao despojo de sua vítima. Mas não desespere, o suplício não pode ser longo: esse constante martírio a que estamos condenados acabará pa por extinguir-me o último alento; o senhor ficará livre e rico.

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Proferidas as últimas palavras com um acento de indefinível irrisão, a moça tirou o papel que trazia passado à cinta e abriu-o diante dos olhos de Seixas. Era um cheque de oitenta contos sobre o Banco do Brasil. - É tempo de concluir o mercado. Dos cem contos de réis, em que o senhor avaliou-se, já recebeu vinte; aqui tem os oitenta que faltavam. Estamos quites, e posso chamá-lo meu; meu marido, pois é este o nome de convenção. (Senhora, última parte da “Quitação”, p. 105/106)

Em São Bernardo, o caráter sádico é mais perceptível que o masoquista.

Paulo Honório maltrata Madalena após se casarem, inventando-lhe amantes ou

fazendo-lhe proibições esdrúxulas; tratando-a com desdém ou fazendo desfeitas

à tia que a criou.

E se eu soubesse que ela me traía? Ah! Se eu soubesse que ela me traía, matava-a, abria-lhe a veia do pescoço, devagar, para o sangue correr um dia inteiro. Mas logo me enjoava do pensamento feroz. Que rendia isso? Um crime inútil! Era melhor abandoná-la, deixá-la sofrer. E quando ela tivesse viajado pelos hospitais, quando vagasse pelas ruas, faminta, esfrangalhada, com os ossos furando a pele, costuras de operações e marcas de feridas no corpo, dar-lhe uma esmola pelo amor de Deus.(SB, p. 150/151) D. Glória chegou à porta, assustada. - Pelo amor de Deus, estão ouvindo lá fora. Perdi a cabeça: - Vá amolar a puta que a pariu. Está mouca, aí com a sua carinha de santa? É isto: puta que a pariu. E se achar ruim, rua. A senhora e a boa de sua sobrinha, compreende? Puta que pariu as duas.(SB, p. 141)

Já o caráter masoquista reside nos ciúmes e no sentimento de inferioridade que o

acomete por ser um homem sem instrução, frente à sensível e instruída Madalena.

Com o dr. Magalhães, homem idoso! Considerei que também eu era um homem idoso, esfreguei a barba, triste. Em parte, a culpa era minha: não me tratava. (...) Que mãos enormes!As palmas eram enormes, gretadas, calosas, duras como cascos de cavalo. E os dedos eram também enormes, curtos e grossos. Acariciar uma fêmea com semelhantes mãos! As do dr. Magalhães, homem de pena, eram macias como pelica, e as unhas, bem aparadas, certamente não arranhavam. Se ele só pegava em autos! (SB, p. 140)

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Em Angústia, o caráter sado-masoquista perpassa toda a obra, e está muito mais

evidente que nas outras obras em estudo, visto que tais idéias estão ligadas também ao

corpo, elemento importante nesta narrativa. A sexualidade surge nela exatamente como

a projeção sado-masoquista de uma culpa patológica, sem sentido racional.

São, enfim, incontáveis, os exemplos que demonstram tais perversões sexuais, e

a reiteração do rato roer as entranhas, na narrativa de Luís da Silva, suscita a idéia de

masoquismo, no sentido freudiano de psicopatologia. Mas além da evocação zoológica

há passagens de evidente sadismo, como aquela já citada em que imagina Marina

serrada viva. Muitas outras são masoquistas, porque é recorrente a identidade com

bichos. O caráter inferior que atribui a si mesmo já é uma tortura à própria consciência:

Quando avisto essa cambada, encolho-me, colo-me às paredes como um rato assustado. Como um rato, exatamente. (Angústia, p. 6) Os olhos estão quase invisíveis por baixo da aba do chapéu, e uma folha da porta oculta-me o corpo. Uma criaturinha insignificante, um percevejo social, acanhado, encolhido para não ser empurrado pelos que entram e pelos que saem.(Angústia, p. 24) Com os olhos arregalados e os queixos contraídos, o que me dava à boca uma aparência de focinho, era como um rato, um rato bem-educado, as patas remexendo o maço de cigarros.(Angústia, p. 178) Eu e Julião Tavares éramos umas excrescências miseráveis. (Angústia, p. 217)

Se levarmos em conta que Julião Tavares representava tudo quanto Luís repelia,

abominava, igualar-se a ele era, de fato, uma tortura. E toda esta identidade com bichos

também o afastava de qualquer possibilidade de realização amorosa, o que aumenta o

sofrimento da personagem. Antonio Candido corrobora esta visão afirmando que “(...)

vemos em Luís da Silva uma fúria evidente contra a sua vida e a sua pessoa, pelas quais

não tem a menor estima.”113.

A solidão a que de condenam as personagens de Graciliano também é uma

espécie de tortura, e não são deixadas possibilidades reais de evasão desta condição,

visto que o egoísmo é inerente a elas. Os temas da solidão e do egoísmo são assim

relacionados por Nelly Novaes Coelho:

113 CANDIDO, 1992: p.34.

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Na verdade, o Egoísmo está constantemente presente nas personagens de Graciliano, as, a nosso ver, não é ele a mola propulsora do comportamento e das reações a que assistimos, mas sim, uma das conseqüências do estado de solidão a que está condenado o Homem114

A descoberta do Outro, tanto para Luís da Silva quanto para Paulo Honório, dá

uma sensação de asfixia, de impossibilidade de convivência. Isso acontece, inclusive

em relação a Madalena e marina, o que acaba por anular também a possibilidade de

realização do sentimento amoroso. O pessimismo expressa-se, finalmente, na solidão

inevitável, Tanto em São Bernardo, na fala final de Paulo Honório: “ É horrível! Se

aparecesse alguém!... Estão todos dormindo. Se ao menos a criança chorasse... Nem

sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria! Casimiro Lopes está dormindo.

Marciano está dormindo. Patifes!” (SB, p. 191), quanto em Angústia: “Desejava ser

como um bicho e afastar-me dos outros homens (...)” (Angústia, p. 233)

Paulo Honório destrói a única possibilidade de evadir-se da solidão, mas o

drama de Luís da Silva ainda é mais grave, porque este sofre a rejeição afetiva, não

sendo apresentada a ele sequer tal possibilidade.

4.1.2.3 - A unicidade amor-desejo doentio em Angústia

Luís da Silva, com sua visão deturpada, percebe o amor como desejo carnal. Ao

referir-se a todas as mulheres com quem se relacionou descreve coxas, pernas,

preliminares de relações sexuais que não acontecem, e os gastos ‘desnecessários’ que

advêm da conquista, do flerte.

Ora, um dia, sem motivo, convidei D. Aurora para o cinema. Tenho desses rompantes idiotas. Faço uma tolice sabendo perfeitamente que estou fazendo uma tolice. Quando tento corrigir o disparate, caio noutro e cada vez mais me complico. Foi o que se deu. Convidei D. Aurora e a neta para o cinema. Arrependi-me e ofereci-lhes refrescos. Aceitaram tudo – e começou a minha tortura. Lá fui com elas, capiongo, pagar bonde, sorvetes e três cadeiras. Tipo besta. −Agüenta, maluco, trouxa, filho de uma puta.(Angústia, p. 47)

114 COELHO, 1977: p. 62

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O desejo sem sentimento, sem grandeza, de Luís da Silva, apresenta-se também

em relação a Marina. Embora mais pungente e obsessivo, também se reduz ao aspecto

físico desde o princípio. Sua paixão surge ao olhá-la no quintal e ele alimenta uma

espécie de voyeurismo, mesmo após o término da relação.

Ao espiá-la pela primeira vez tenta negar o interesse. No entanto, em dois dias,

já se mostra atraído, a deduzir pelo vocabulário utilizado para fazer referência à

“pequena”. Luís da Silva lia no quintal e espiava para a casa de Marina; em vez de ver

sua mãe, naquele dia, avistara Marina e, observando-a, primeiro imprimiu-lhe defeitos

e um tom irônico, sarcástico:

O vulto que se mexia não era a senhora idosa: era uma sujeitinha vermelhaça, de olhos azuis e cabelos tão amarelos que pareciam oxigenados. Foi só o que vi, de supetão, porque não sou indiscreto, era inconveniente olhar aquela desconhecida como um basbaque. Demais não havia nada interessante nela. (...) - Sim, senhor, disse comigo, muito poética, aí entre as roseiras, com os cabelos pegando fogo e a cara pintada. Sentia a ausência da senhora idosa, cheia de rugas, tranqüila, um pano amarrado à cabeça e o regador na mão, movendo-se tão devagar que era como se estivesse parada. Essa outra estava em todos os lugares ao mesmo tempo, ocupava o quintal inteiro. Um azougue. - Que diabo tem ela? E mergulhava na leitura, desatento, está claro, porque o livro não valia nada. Virava a página muitas vezes, e quando isto não acontecia, olhava, fingindo desinteresse, a mulher dos cabelos de fogo. Tinha as unhas pintadas. - Lambisgóia! (Angústia, p. 45)

E, em pouco tempo, ainda durante o mesmo momento de observação, começou a

se interessar por ela:

Era engraçada o diabo da pequena. Para o inferno. Um homem lido e corrido, pegando trinta e cinco anos, preocupando-se com aquela guenza ! (...) E foi exatamente por me correr a vida quase bem que a mulherinha me inspirou interesse.(Angústia, p. 46)

Assim como a paixão, o voyeurismo de Luís da Silva prossegue após o

rompimento, ressaltando a obsessão, já que agora nem em seu discurso há a tentativa de

dissimulação do real interesse. Aliás, utilizamos aqui o termos “voyeurismo” de um

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modo deslocado, porque no romance, muitas vezes não se trata do ato de ‘olhar’ , mas de

ouvir. Os detalhes sórdidos da descrição do que ouve e do que imagina vêm comprovar

o distanciamento do amor e a aproximação do comportamento cada vez mais

patológico.

O banheiro da casa de Seu Ramalho é junto, separado do meu por uma parede estreita. Sentado no cimento, brincando com uma formiga ou pensando no livro, distingo as pessoas que se banham lá. (...) Marina entra com um estouvamento ruidoso. Entrava. Agora está reservada e silenciosa, mas o ano passado surgia como um pé-de-vento e despia-se às arrancadas, falando alto. Se os botões não saíam logo das casas, dava um repelão na roupa e largava uma praga: - “Com os diabos!” Lá se iam os botões, lá se rasgava o pano. Notavam-se todas as minudências do banho comprido. Gastava dez minutos escovando os dentes. Pancadas de água no cimento e o chiar da escova, interrompido por palavras soltas, que não tinham sentido. Em seguida mijava. Eu continha a respiração e aguçava o ouvido para aquela mijada longa que me tornava Marina preciosa. Mesmo depois que ela brigou comigo, nunca deixei de esperar aquele momento e dedicar a ele uma atenção concentrada. Quando Marina se desnudou junto de mim, não experimentei prazer muito grande. Aquilo veio de supetão, atordoou-me. (...) A espuma entrando nos sovacos e na virilha fazia um gluglu que me excitava extraordinariamente (...) Nunca tive o desejo de vê-la nesse estado. No alto da parede há um tijolo deslocado que se pode retirar facilmente (...) A experiência não me tentou.(...) Contentava-me com aqueles rumores, e percebia-a como se a visse. (Angústia, p. 144/145 – grifos nossos)

Para a psicanálise, “o ato de olhar – que deriva do tocar – pode ser considerado

uma perversão quando ocorre um prolongamento dessa atividade sem que o ato social

prossiga. Assim, o olhar deixa de ter uma função preparatória para a realização

sexual, terminando por suplantá-la” .115 No caso de Luís da Silva, o obstáculo que se

interpõe é ainda maior, porque ele não tenciona sequer vê-la, contentando-se em ouvi-

la.

Além do desejo desmedido, percebe-se no trecho destacado que o imaginário em

Luís da Silva sobrepõe-se ao desejo de realização, sendo ele mesmo o responsável pelo

distanciamento daquilo que supostamente gostaria de concretizar. Ou seja, embora

apresente manifestações aberrantes do desejo, nesse âmbito suas ações não são tão

115 FREUD, Sigmund. s/d. Vol 1., p. 197

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passionais: o potencial de sexualidade fica restrito ao plano do pensamento e a

personagem não dá vazão aos instintos. Talvez essa interdição voluntária aumente-lhe o

caráter obsessivo.

Sobre o mesmo aspecto, mas sem citar o termo ‘voyeurismo’, Antonio Candido

faz a seguinte análise: “Luís tem a obsessão da intimidade dos outros. Fareja

safadezas, vê em tudo manifestações eróticas e vestígios de posse” 116.

Marina não poderia ser simplesmente aquilo que Luís dela esperava, porque

segundo ele próprio, parte dela era uma construção sua:

Naturalmente gastei meses construindo esta Marina que vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas se confunde com ela. Antes de eu conhecer a mocinha dos cabelos de fogo, ela me aparecia dividida numa grande quantidade de pedaços de mulher, e às vezes os pedaços não se combinavam bem, davam-se a impressão de que a vizinha estava desconjuntada. (Angústia, p. 79)

Ver Marina por pedaços acentua o voyeurismo, pois faz parte de um sedutor

processo de velamento-desvelamento do corpo feminino. Trata-se de pedaços de nudez,

vistos pelas fendas. A própria fragmentação dos pensamentos do protagonista favorece

este movimento de mostrar-esconder que o deixa numa postura sempre contemplativa.

Seu olhar ‘ recorta’ as partes sensuais do corpo despido: coxas, nádegas...

Luís da Silva procura perceber Marina através dos objetos: das portas das

alcovas, das paredes dos ambientes íntimos (como o banheiro), dos locais que recolhem

os desejos, os corpos e os movimentos erotizados, como o de ensaboar-se. Ele atualiza

seu desejo sexual através da atitude perversa de conduzir o ‘ouvido’ indiscreto ‘pelo

buraco da fechadura’ , ou melhor, pela fenda da parede.

Este narrador efetua um olhar “por dentro”, perscrutador e auscultador de si

próprio, pondo a nu para o leitor a região de desejos, fantasias eróticas e paranóias. O

fato de estar em primeira pessoa auxilia no processo. O narrador não apenas adentra o

local de banho de Marina, por exemplo, mas dá acesso também às imagens de sua

própria fantasia sexual.

116 CANDIDO, 1992: p.37.

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Há, em Luís, o eterno conflito entre o impulso e o recalque, que aponta para o

caráter inalcançável da realização erótica. Esse é um dos motivos que imprime no

enredo um conteúdo trágico, que impele o protagonista ao assassinato.

A consciência da personagem Luís da Silva é atormentada por medos e

ansiedades neuróticas, e sua própria vida interior o degrada. A incapacidade de

desatrelar-se do meramente sensorial e sua consciência deturpadora fazem com que veja

as mulheres sempre ligadas à devassidão e aos interesses materiais, sejam elas

prostitutas ou mulheres comuns, como a neta de dona Aurora, a própria Marina, dona

Mercedes, a datilógrafa dos olhos verdes ou a vizinha que fazia ruídos na cama com o

marido.

A moral sexual do protagonista é responsável pelas frustrações e por uma

sexualidade perturbada, que atrapalha a realização amorosa e outros aspectos sociais.

Ele vive no ambiente claustrofóbico da moral restritiva. Obedecer às prescrições dessa

moral resulta em sofrimento, perversão, ou mesmo no crime.

A insistência no aspecto físico do amor leva-nos à tentativa de aproximação com

o Naturalismo, além de remeter a devaneios verdadeiramente obsessivos de Luís da

Silva. Angústia reitera, inclusive, a animalização das personagens no que tange ao

desejo sexual. Luís da Silva faz menção a ratos e outros bichos sempre que se vê

acometido por tal desejo e, no Naturalismo, a referência é freqüente, até mesmo no trato

de outros temas. Estes trechos simulam o próprio pensamento da personagem através

de suas percepções mais existenciais, atemporais e íntimas, num processo de livre

associação de idéias.

Estava linda. Tinha corrido por ali alguns minutos, como um rato, chiando. Eu era um gato ordinário. Podia saltar em cima dela e abocanhá-la. (Angústia, p. 72)

As ruas estavam cheias de mulheres. E o rato roía-me por dentro.(...)Na sala de projeção a neta de D. Aurora abriu um leque enorme em cima das coxas e meteu a minha perna entre as dela. Subitamente o rato deixou de roer-me. O que eu estava era indignado(...) As coxas da moça eram frias. Com certeza fazia aquilo por hábito. Naquele tempo eu andava como um bode.Mas esfriei também. (Angústia, p. 47)

- Chi, chi, chi.

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O cochicho risonho afastava-se, chegava-me aos ouvidos como o chiar de um rato. Chiar de rato, exatamente. Chiar de rato ou carne assada na grelha. Parecia-me que aquilo estava chiando dentro de mim, que a minha carne se assava e chiava. Os tacões vermelhos viravam-se para o outro lado. As biqueiras surgiam e avançavam. Lá vinham pedaços de canelas. As mãos puxavam a saia para trás, distinguiam-se os joelhos e as coxas. Como vinha curvada para a frente, a barriga desaparecia. - Chi, chi, chi. O rato roía-me por dentro. Senti cheiro de carne assada. Não, cheiro de fêmea, o mesmo cheiro que antigamente me perseguia, em meses de quebradeira. (Angústia, p. 72)

Antigamente era uma existência de cachorro. As mulheres tinham cheiros excessivos, e eu me sentia impelido violentamente para elas. (Angústia, p. 46)

Um galo no galinheiro pôs-se a arrastar a asa a uma franga. Eu estava fazendo ali a mesma coisa, apenas com mais habilidade e mais demora. A franga não aparecia(...) De repente a franguinha surgiu dentro do meu reduzido campo de observação (...) Para ir ao quintal, sapato de sair e meia de seda esticada no pernão bem feito. Ótimas pernas. As coxas e as nádegas, apertadas na saia estreita, estavam com vontade de rebentar as costuras. Talvez a franguinha tivesse percebido que eu fingia dormir: pôs-se a ciscar por ali, rindo baixinho, avançando, recuando, mostrando-se pela frente e pela retaguarda.” (Angústia, p. 69)

Há, nas referências a animais, um trecho sobre Marina, que dialoga com uma das

caracterizações de Rita Baiana em O Cortiço. A aproximação não é com cobras ou

lagartas, como nesta, mas com formigas. No entanto, o veneno de que as mulheres são

possuidoras é uma reiteração.

Como já se viu, na obra naturalista há muitas dessas alusões no que tange ao

desejo suscitado por Rita Baiana, como na passagem que se segue, em que Jerônimo se

vê acometido pelas “cobras” do desejo: “ (...) e compreendeu perfeitamente que dentro

dele aqueles cabelos crespos, brilhantes e cheirosos da mulata, principiavam a formar

um ninho de cobras negras e venenosas” (O cortiço, p. 69)

Já em Angústia, vemos:

Marina apareceu, enroscando-se como uma cobra de cipó (...) Ao pegar-me a mão, ficou agarrada, os dedos contraídos, o braço estirado, mostrando-se, na faixa de luz que entrava pela janela. Isto me dava a impressão de que o meu braço havia

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crescido enormemente. Na extremidade dele um formigueiro em rebuliço tinha tomado subitamente a conformação de um corpo de mulher. As formigas iam e vinham, entravam-me pelos dedos, pela palma e pelas costas da mão, corriam-me por baixo da pele, e eram ferroadas medonhas, eu estava cheio de calombos envenenados. Não distinguia o movimentos desses bichinhos insignificantes que formavam o peito, a cara, as coxas e as nádegas de Marina, mas sentia as picadas – e tinha provavelmente os olhos acesos e esbugalhados. (Angústia, p. 81)

O descritivo está entrelaçado a um sensualismo exagerado em Angústia e em O

cortiço. No entanto, “a falta de coração”, a insensibilidade está muito mais presente em

O cortiço. O sofrimento lancinante de Luís da Silva, que acaba por fazê-lo assassinar

Julião Tavares, não tem lugar no Naturalismo. Em O cortiço, percebe-se nas atitudes

violentas de Firmo contra Jerônimo, por exemplo, ou no suicídio de Bertoleza, que as

situações incômodas são resolvidas num impulso imediato, para garantir a neutralidade

sentimental.

Ainda que haja aproximação entre a forma como se apresenta o desejo nesta

obra de Graciliano e no Naturalismo, não há identificação total entre as abordagens.

O distanciamento reside no fato de que, no Naturalismo, a animalização não

aparece como um problema. O homem é mesmo visto como um ser composto de

impulsos e necessidades fisiológicas, e o lado psicológico não é sequer levado em conta.

A sexualidade é fator unicamente externo, biológico. Já em Angústia, a animalização

ganha dimensão psicológica, visto que o próprio narrador se identifica como animal ou

vítima de animais que o torturam por um desejo sexual problematizado, não aceito com

naturalidade. As metáforas animalizantes em Angústia são representativas da

humilhação e da degradação de que se faz vítima o próprio protagonista. É, portanto,

uma ótica inversa à do Naturalismo.

Nelly Novaes Coelho, num ensaio sobre a obra de Graciliano ramos aponta para

o caráter distanciador que assinalamos:

Através de suas personagens, Graciliano vai oferecendo aquele complexo mundo posto em voga pelo Modernismo, isto é, o mundo debruçado nas surpreendentes galerias do espírito

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humano. Mostrar a realidade filtrada pelas fendas dessas galerias é o que vem sendo a desesperada tentativa da ficção universal, da arte contemporânea. A esta já não interessa o homem inteiriço, uno, visto em bloco de fora para dentro, como o que nos ofereceu o naturalismo, mas sim o homem fragmentado, complexo, feixe de múltiplas reações e impulsos contraditórios que brotam da misteriosa fonte vital, cuja profundidade e segredos ele tenta sofregamente tocar.117

A visão biológica, materialista, do amor, na referida obra de Graciliano, embora

difira da naturalista, ainda assim remete a um aspecto do pensamento literário do século

XIX, que é a metáfora orgânica. A animalização do desejo, de si próprio e da mulher,

operada pela mente de Luís da Silva, harmoniza-se perfeitamente com o elemento

metafórico utilizado pelo Naturalismo.

A literatura realista-naturalista é puramente fisiológica, já que exime-se das

reflexões psicologizantes ou tentativas de justificar atitudes e necessidades, como as

apresentadas pelo narrador em Angústia. O próprio caráter obsessivo e reiterado de

certas imagens aponta para uma estrutura pessimista, desregrada, de associações

caóticas. Antonio Candido analisa bem tais devaneios de Luís da Silva, que aqui

delineiam-se através da obsessão pelo sexo deformado, subvertido por sua mente:

(...) o devaneio chegará em Angústia ao crispado monólogo interior, onde à evocação do passado vem juntar-se uma força de introjeção que atira o acontecimento no moinho da dúvida, da deformação mental, subvertendo o mundo exterior pela criação de um mundo paroxístico, tenebroso, que, de dentro, rói o espírito e as coisas.118

A atitude em Angústia, diferentemente das obras naturalistas, aponta, como já

dissemos, para o expressionismo, na medida em que o conturbado mundo interior do

narrador-protagonista opera uma transmutação no mundo exterior. Não é o mundo

exterior que determina suas atitude e visões.

Uma outra característica que confirma este afastamento é o contraste entre o

objetivismo da estética naturalista e a visão subjetiva de Angústia, que, como já

117 COELHO, 1977: p. 60-1 118 CANDIDO, 1992: p. 20.

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vimos,contém muito de expressionismo, que é uma exacerbação da tendência

romântica. O narrador externo e onisciente em O cortiço concorre para a representação

da realidade como algo exterior, com uma existência em si, captável pelo artista. Já o

ponto de vista subjetivo de Angústia subverte de forma radical a pretensão objetiva dos

naturalistas: representa-se não o real, mas a visão que dele tem o narrador-personagem.

Tal distanciamento é evidente também na utilização da linguagem. A serviço da

representação do que é mais próximo ao real, a literatura realista-naturalista sofre a

influência do pensamento científico, onde clareza é a palavra de ordem. Em

contraposição, desde a narrativa circular à consciência conturbada de Luís da Silva,

Angústia enreda o leitor no mundo fechado da personagem, distanciando-se da relativa

simplicidade do texto naturalista. “Zola afirma categoricamente que ‘o Naturalismo nas

letras é a anatomia exata, a aceitação e a pintura do que existe’ . Com isso a

proposição estética é o sacrifício da ficção em favor da observação” .119

Angústia segue alguns dos pressupostos do Naturalismo, na medida em que

descarta a paixão espiritual, o amor romanesco, e privilegia nervos, sentidos, reações de

temperamento. No entanto, não há identidade completa, ou retomada integral, pois não

se pode afirmar, em relação à obra de Graciliano, que as análises psicológicas cedem

lugar à mera descrição comportamental, como ocorre nas obras naturalistas.

A diferenciação primordial se dá por serem as bases ideológicas de Aluísio

Azevedo e Graciliano bastante diversas. As influências sofridas por este são marxistas e

psicanalíticas, pois que em sua obra estão indissociáveis amor e sociedade; enquanto

naquele, o darwinismo, o determinismo, a hereditariedade fazem do amor e do próprio

homem objeto de estudo fisiológico, que serve de base à criação literária. Portanto, no

Naturalismo sobressaem o impulso biológico e as forças atraentes do meio, enquanto na

obra de Graciliano dominam as relações entre o social e o psicológico. Esta confluência

resulta numa duplicidade das visões de mundo, sendo uma delas a do questionamento da

organização social, de raiz marxista; a outra é uma sondagem do ego, com um

delineamento cuidadoso das motivações psicológicas. Em São Bernardo estão

presentes também o psicológico e o sociológico, como expõe José Maurício Gomes de

Almeida em sua análise de São Bernardo:

119 BRAYNER, Sonia. 1973, p. 11-12.

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(...) o conflito psicológico reflete em São Bernardo uma problemática mais ampla, de raiz sociológica, que constitui o seu verdadeiro tema: a desumanização a que o homem inevitavelmente se submete, quando o ter passa a predominar, na escala dos valores vitais, sobre o ser. No final do romance, depois da crise existencial provocada pelo suicídio de Madalena, o personagem finalmente descobre a verdade.120

O que caracteriza a concepção naturalista do amor é que nela predomina uma

visão determinista, onde fatores externos, de natureza biológica e sociológica definem a

vida e os sentimentos humanos. Já na obra de Graciliano, o amor é gerado não apenas

por ação de fatores externos, mas impulsos e frustrações forjados pela consciência

conflituada do protagonista.

No Naturalismo, “os seres aparecem, então, como produtos, como

conseqüências de forças preexistentes, que limitam a sua responsabilidade e os tornam,

nos casos extremos, verdadeiros joguetes das condições.”121

A zoomorfização a que o próprio Luís da Silva se submete no que diz respeito ao

sexo, por exemplo, revela uma visão degradada de si próprio, mas trata-se aqui de uma

degradação de caráter psico-social: a própria personagem se vê como a escória da

sociedade. O isolamento social a que se condena não é imposto por fatores externos e a

sua visão deformada do sexo não aparece condicionada por nenhuma hereditariedade ou

experiência traumática.

120 ALMEIDA, 1999. p. 289. 121 CANDIDO, Antonio, Presença da Literatura Brasileira, p. 286.

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4.1.2.4 – O universo fragmentado de Luís da Silva

A narrativa de Angústia, construída como uma projeção da consciência do

narrador, revela a tendência à fragmentação, ao caos. Em seu delírio, Luís da Silva

apresenta fatos e pessoas a partir de elementos parciais que marcaram a sua experiência

e fixaram-se na sua memória: o pai, Marina, enfim, todas as lembranças chegam ao

leitor decompostas, para que o quebra-cabeças da construção da personagem seja por

ele, leitor, recomposto. A narrativa introspectiva contribui para tal fragmentação, assim

como o tempo psicológico.

O ponto-de-vista de Luís da Silva é fracionado, tem múltiplos cortes, e a

narrativa apresenta uma estrutura circular. Tal fracionamento também se dá nas suas

relações sociais, a exemplo daquela que travou com Marina e que funciona como

indicador da instabilidade do protagonista.

Em determinado momento, o próprio narrador afirma a fragmentação da sua

existência: “Encolhi os ombros, olhei os quatro cantos, fiz um gesto vago, procurando

no ar fragmentos da minha existência espalhada” . (Angústia, p. 57)

A construção de Marina é tão fragmentária que, fisicamente, esta chega a ser

apresentada pela consciência doentia do narrador numa espécie de esquartejamento:

Nesse ambiente gelatinoso Marina se movia, nadava, desesperadamente bonita, o peitinho redondo subindo e descendo, a querer saltar pelo decote baixo, pimenta nos olhos azuis, os cabelos de fogo desmanchando-se ao vento morno e empestado que soprava nos quintais. Veio-me o pensamento maluco de que tinham dividido Marina. Serrada viva, como se fazia antigamente. Esta idéia absurda e sangüinária deu-me grande satisfação. Nádegas e pernas para um lado, cabeça e tronco para outro. A parte inferior mexia-se como um rabo de lagartixa cortado. Mas eu não reparava na parte inferior, que tanto me perturbara: recebia as faíscas dos olhos azuis e desejava enxugar com beijos a saliva que umedecia os beiços um pouco grossos da minha amiga. (Angústia, p. 57)

Na totalidade da narrativa, falta a Marina consciência, voz, consistência

psicológica, já que é apresentada apenas pela visão de Luís da Silva. Marina aparece na

narrativa com a função de demonstrar e exacerbar as características do narrador-

personagem. A partir da presença da moça se desenrola a complicação do enredo, mas

suas ações só chegam ao leitor filtradas pela interpretação do narrador.

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Luís da Silva, tendo transformado a potencialidade em realidade concreta,

colocou em prática o seu ‘projeto’ de ser: matar o padrão burguês, na figura de Julião,

que, em sua psique atormentada bloqueava até a possibilidade de um relacionamento

amoroso bem sucedido.

Com a liberação dos instintos mais baixos percebe-se também o início do

processo de auto-destruição da personagem, simbolizado pela perda de capacidade para

o trabalho, representante sempre do equilíbrio:

Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas, inúteis. (...) Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório, para datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante a cara balofa de Julião Tavares aparece em cima do original, e os meus dedos encontram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão, capricho em não usar a borracha. Concluo o trabalho, mas a resma de papel fica muito reduzida. À noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal.(...)

Em duas horas escrevo uma palavra: Marina (...) Não posso pagar o aluguel da casa.(...) O artigo que me pediram afasta-se do papel.(...)

Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições, as duas colunas mal impressas, caixilho, Dr. Gouveia, Moisés, homem da luz (...) (Angústia, p. 19/20)

Tal processo comprova-se em Angústia não só pela presença dos pensamentos

violentos, admitida pelo narrador, mas também pela obsessão pelo nome de Marina no

momento em que deveriam aparecer pensamentos produtivos.

Já que a narrativa é posterior ao crime, o personagem-narrador problemático faz

com que imagens se tornem recorrentes. A maioria destas recorrências está ligada ao

seu desejo. São constituídas principalmente pelas cenas em que este é representado por

animais, significando um desejo culpado, doentio: “As ruas estavam cheias de

mulheres. E o rato roía-me por dentro” (Angústia, p.47). As citações que

exemplificam esta característica são inúmeras e muitas já foram citadas ao longo deste

estudo.

Luís da Silva critica Marina e a identifica com mulheres vulgares, mas ainda

assim procura ouvi-la através das paredes, persegue-a quando desconfia que ela vai

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fazer um aborto e mata Julião Tavares para vingar-se e para vingá-la. Vejamos um dos

momentos em que associa Marina a uma mulher que identifica como vulgar:

Que estaria fazendo Marina? Pensei em D. Mercedes. Vida bem sossegada a dessa galega. Um sem-vegonha o figurão que a sustentava, um caloteiro: devia os cabelos da cabeça e dava festas, punha automóveis à disposição da amásia. Como diabo podia um macho gostar daquela tipa de carnes bambas? (Angústia, p. 67)

Este embate já foi estudado por Marilena Chauí, em “Laços do Desejo” : “ (...) os

desejos imaginários nos arrastam em sentidos opostos e nos deixam desamparados,

amando e odiando as mesmas coisas, afirmando-as e negando-as ao mesmo tempo”122.

Reitera-se a análise de que o protagonista nos apresenta uma visão deformadora

da realidade e, sendo assim, vários acontecimentos ganham ares de alucinação, como

por exemplo a evocação da história contada por seu Ramalho, em que Luís mistura

imagens trágicas e deprimentes a outras ligadas a mulheres, de maneira sádica:

Seu Ramalho deu um suspiro e empurrou a história do moleque da bagaceira, o que havia arrancado os tampos da filha do patrão (...) Nunca pude saber com precisão a data da morte do moleque (...) Enquanto ele batia na testa, avançava e recuava, eu ia pouco a pouco distinguindo uma figura nua e preta estirada nas pedras da rua. O ventre era uma pasta escura de carne retalhada; os membros, torcidos na agonia, estavam cobertos de buracos que esguichavam sangue; a boca, sem beiços, mostrava dentes acavalados e vermelhos, numa careta medonha; os olhos esbugalhados tornavam-se vermelhos. O negro arquejava. Corria sangue entre as frestas dos paralelepípedos e empoçava na sarjeta. A poça crescia, em pouco tempo transformava-se num regato espumoso e vermelho. (...) A vitrola de D. Mercedes rodava marchas de carnaval; D. Adélia abriu os postigos: - Hum, hum!”; a cabeça de D. Rosália tinha os cabelos vermelhos. Antônia, pintada de vermelho, as pernas abertas, passou bamboleando-se. Das saias dela desprendeu-se um cheiro forte de sangue. Provavelmente estava menstruada e não se lavava. Os arames do Nordeste balançavam como cordas. Eu receava que os transeuntes tropeçassem no moleque estendido no calçamento.(...) Mas a figura continuava a escabujar no chão. Agora não era preta nem estava nua. Pouco a pouco ia embranquecendo e engordando, o sangue estancava, as feridas saravam.123

122 CHAUÍ, 1990, p. 62

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Posteriormente, fica-se sabendo que a culpa produz tais alucinações em Luís da

Silva, e que elas se encontram no tempo da enunciação, quando já acontecera o

assassinato. No entanto, isto não exime Luís do crime premeditado, que culminou com

a morte de Julião Tavares.

As forças obscuras da alma destroem a superfície da lógica. O discurso

fragmentado é reflexo da maneira também fragmentada e confusa com que o narrador-

personagem apreende a realidade. Luís da Silva isola-se num mundo próprio e não

verbaliza de modo completo seus pensamentos e ações. São frases soltas e idéias

repetitivas, obsessivas, fruto do desajuste social e da personalidade doentia. Assim

também é seu amor: desajustado e deformado.

4.1.2.5 –Luís da Silva e Paulo Honório

A diversidade entre a atração de Paulo Honório, em São Bernardo, por

Madalena, e de Luís da Silva por Marina em Angústia é perceptível desde a construção

das cenas em que se deparam pela primeira vez com suas “amadas” , embora ambos

fiquem imediatamente atraídos por elas. Paulo Honório encanta-se pela delicadeza, e

até demonstra uma certa ternura por Madalena. Já Luís da Silva, em princípio, nega de

maneira vã a atração, mas acaba, através do discurso, rendendo-se aos encantos físicos

de Marina. Mas, neste caso, o que sobressai é o desejo carnal. Por outro lado, em

momentos diferentes, tanto Paulo Honório quanto Luís da Silva reagem de maneira

submissa em seus discursos: ambos depreciam-se, e mostram considerar-se inferiores,

principalmente em aparência, a elas.

O protagonista de Angústia demonstra seu sentimento de inferioridade logo nas

primeiras vezes em que observa Marina: “A pequena estouvada não me prestava

atenção: descontentara-a provavelmente o exame da véspera. Um sujeito feio: os olhos

baços, o nariz grosso, um sorriso besta e a atrapalhação, o encolhimento que é mesmo

uma desgraça” . (Angústia, p. 46)

123 RAMOS, Graciliano, Angústia, p. 121/122.

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A necessidade de casar-se, aliada a uma situação financeira estável estão

presentes tanto nas justificativas de Luís da Silva como nas de Paulo Honório para um

pretenso envolvimento amoroso. O último, antes mesmo de conhecer Madalena,

pensou em procurar uma candidata à união, apenas para perpetuar seu nome, deixando

herdeiros para São Bernardo. Neste caso, a idéia de casar-se estava, em princípio,

totalmente apartada de qualquer sentimento amoroso, já que surgiu antes mesmo de ter

visto aquela por quem se interessaria.

Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma idéia que me veio sem que nenhum rabo-de-saia a provocasse. Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito de governar. (SB, p. 57)

O discurso representa uma fuga daquilo que significaria uma fragilidade, uma

queda: não dominar os próprios sentimentos, estar vulnerável, ao pé de alguém. Por

isso, o medo da mulher, “bicho difícil de governar” , expressão profética do que seria a

relação entre Paulo Honório e a futura esposa.

Já Luís da Silva, embora apresente tendência similar, e na narrativa justifique o

fato de pensar em se casar com uma certa “sobra” de economias, é um pouco menos

racional do que denota no nível do discurso. Não possui herança que justifique o desejo

de perpetuação de seu nome, e só apresenta a motivação de um possível casamento

quando já está sendo arrebatado por Marina:

Apesar destas desvantagens, os negócios não iam mal. E foi exatamente por me correr a vida quase bem que a mulherinha me inspirou interesse – novidade, pois sempre fui alheio aos casos de sentimento. Trabalhos, compreendem? Trabalhos e pobreza. (Angústia, p. 46)

O fato de, tanto Paulo Honório, quanto Luís se dirigirem nestes momentos ao

leitor possui uma significação singular: há uma tentativa de convencer de que o

arrebatamento foi consentido, quase planejado e de que não estavam sendo enlaçados ou

submetidos ao jugo de um sentimento, e muito menos de uma mulher. No entanto, com

o decorrer da narrativa, prova-se o contrário.

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Ambos são arrebatados, mesmo que de formas diversas. Paulo Honório,

aparentemente tão rude, fica enternecido por Madalena. O afeto logo transpira através

de diminutivos, carregados de afetividade, da adjetivação e da mudança repentina de

objeto de interesse.

Luís da Silva, no entanto, desde o momento em que põe os olhos em Marina,

deseja-a da maneira mais carnal, tentando também negar o arrebatamento, o interesse,

mas não consegue desprezar sua presença.

A adjetivação presente no seu discurso também difere bastante da adotada no

discurso de Paulo Honório: em Angústia são palavras fortes, agressivas, e os

diminutivos são pejorativos. Em momento algum o narrador demonstra ternura ao

referir-se à pretendida: são sempre imagens grosseiras, animalizantes, que a aproximam

da vulgaridade ou mesmo da prostituição: “Era engraçada o diabo da pequena (...) Um

homem lido e corrido, pegando trinta e cinco anos, preocupando-se com aquela guenza

(...) E foi exatamente por me correr a vida quase bem que a mulherinha me inspirou

interesse.” (Angústia, p. 45-46)

A submissão amorosa fica patente quando tanto Luís da Silva quanto Paulo

Honório demonstram uma certa autodepreciação diante das mulheres, como se não

fossem dignos delas ou de serem amados. Luís da Silva o faz logo que avista Marina

pela primeira vez, como já citamos.

Paulo Honório sente-se desvalorizado ao comparar-se com outros homens de

suas relações. A autodepreciação vem acompanhada, portanto, dos ciúmes, como se vê

no excerto abaixo:

Procurei Madalena e avistei-a derretendo-se e sorrindo para o Nogueira, num vão de janela. Confio em mim. Mas exagerei os olhos bonitos do Nogueira, a roupa bem-feita, a voz insinuante. Pensei nos meus oitenta e nove quilos, neste rosto vermelho de sobrancelhas espessas. Cruzei descontente as mão enormes, cabeludas, endurecidas em muitos anos de lavoura. (SB, p. 133)

Mas percebe-se que a auto-depreciação é muito mais por sentir-se culturalmente

inferior do que apenas por uma questão física. Isso fica claro no trecho em que Paulo

Honório, enciumado, compara-se ao dr. Magalhães:

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Com o dr. Magalhães, homem idoso! Considerei que também eu era um homem idoso, esfreguei a barba, triste. Em parte, a culpa era minha: não me tratava. Ocupado com o diabo da lavoura, ficava três, quatro dias sem raspar a cara. E quando voltava do serviço, trazia lama até nos olhos: dêem por visto um porco. Metia-me em água quente, mas não havia esfregação que tirasse aquilo tudo. Que mãos enormes! As palmas eram enormes, gretadas, calosas, duras como casco de cavalo. E os dedos eram também enormes, curtos e grossos. Acariciar uma fêmea com semelhantes mãos! As do dr. Magalhães, homem de pena, eram macias como pelica, e as unhas, bem aparadas, certamente não arranhavam. E ele só pegava em autos! (SB, cap. 26, P. 140)

A ambição desmedida acabou pro deformar não só o pensamento de Paulo

Honório, como também passou a refletir no seu aspecto físico, ao menos de acordo com

sua própria visão.

O pessimismo que unifica a obra de Graciliano Ramos é sinalizado por Antonio

Candido: “A decisão de encarar pela frente, sem ilusões, a vida interior, completa-se

nele com a decisão simétrica de encarar do mesmo modo a vida social, permitindo-lhe

em ambos os casos uma corajosa amargura.124”

Os caminhos contrários tomados nas obras aqui estudadas (todos desembocando

no pessimismo) também são opostos em relação à trajetória das personagens e à

justificativa de sua relação problemática com o sentimento amoroso. Enquanto Paulo

Honório é violento na imposição de suas vontades e só enfraquece após suplantar

Madalena, que representava a possibilidade de realização amorosa, Luís da Silva sofre

com a ausência de vontade e de crença em si próprio, que o afasta de qualquer

possibilidade positiva de realização assim que ela se apresenta. Antonio Candido

também aponta este fator:

É, portanto, como se houvesse um sistema de barreiras que apenas a determinação da vontade permite transpor; conseqüentemente, e de acordo com a atitude pessimista, o homem se agita entre dois limites: abulia e violência; isto é, a ausência mórbida de vontade e vontade desvirtuada pela força. No entanto, a realidade não é simples: ordena-se conforme um

124 CANDIDO, 1992: p.60.

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espectograma onde vemos o violento e arbitrário Paulo Honório abalar-se até a fraqueza; o abúlico Luís da Silva embeber-se longamente na idéia de assassínio, até afirmar-se no delírio com que ilumina o rival pela força.125

Diante das análises feitas acerca da obra de Graciliano Ramos, consideramos

acertada uma crítica feita por Antonio Candido, que sintetiza muito bem não só a

questão do pessimismo que permeia o sentimento amoroso em tais romances, como

também o que está presente no conjunto da obra:

Os livros de Graciliano Ramos se concatenam num sistema literário pessimista. Meninos, rapazes, homens, mulheres; pobres, ricos, miseráveis; inteligentes, cultos, ignorantes – todos obedecem a uma fatalidade cega e má. Vontade obscura de viver, mais forte nuns que noutros, que os leva a caminhos pré-traçados pelo peso do meio social, físico, doméstico. A vida é um mecanismo de negaças em que procuramos atenuar o peso inevitável dessas fatalidades: e parecemos ridículos, maus, inconseqüentes. Às vezes somos fortes e pensamos esmagar a vida; na realidade, esmagamos apenas os outros homens e acabamos esmagados por ela. Nada tem sentido, porque no fundo de tudo há uma semente corruptora, que contamina os atos e os desvirtua em meras aparências.126

Tanto em Angústia quanto em São Bernardo, tanto no aspecto social como no

filosófico-existencial, a tendência unificadora da obra de Graciliano Ramos é a

derrocada dos valores burgueses. Em São Bernardo Paulo Honório questiona a

validade de tais valores, que sempre julgara primordiais, até a perda de Madalena; em

Angústia, o estrangulamento de Julião Tavares simboliza a vontade de aniquilá-los. A

relação entre este questionamento e a questão do sentimento amoroso é bem expressa

por Carlos Nelson Coutinho em seu ensaio sobre Graciliano:

É sem dúvida um fato importante, digno de registro, que tanto em São Bernardo como em Angústia tenha sido a tentativa mais imediata de superar o isolamento e a solidão, a ligação amorosa individual, a causa imediata da tragédia de Paulo Honório e Luís da Silva.127

125 CANDIDO, 1992: p.62-63. 126 CANDIDO, 1992 127 COUTINHO, 1977: p. 96

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As obras demonstram a incapacidade das personagens em superar o egoísmo e,

conseqüentemente, a solidão. A inabilidade para o amor traduz-se em uma confusão

entre casamento e aquisição de propriedade em Paulo Honório e em Luís da Silva, no

puro e estanque erotismo.

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4.2 – Jorge Amado e a essência do amor romântico

A obra de Jorge Amado figura neste estudo por ter no amor um dos principais

motivos de complicação em seus romances. Além disso, este sentimento recebe um

tratamento diferenciado no universo literário amadiano, principalmente se levarmos em

conta a sua produção inicial em relação à época em que está inserida.

O romance modernista de 30, fase em que está incluída a primeira parte da

produção literária do autor, apresenta um perfil dominantemente neo-realista, em que se

sobrepõe a preocupação com o questionamento social e político da realidade

representada. Em Jorge Amado, contudo, o tratamento do amor parece fugir a esse

tendência, pois ele apresenta uma visão neo-romântica para exprimir o impulso afetivo.

Realiza-se uma retomada vigorosa e nada antiquada do sentimento amoroso na literatura

brasileira.

A dualidade de tendências apontada nesta tese aproxima o modernista Jorge

Amado da estética romântica: são marcadamente românticas algumas obras que, num

primeiro momento, são encaradas como documentos sociais. A diferença primordial é

que nessa época todos os assuntos são admitidos, possibilitando maior compreensão do

meio e dos relacionamentos. Finalmente o corpo ganha uma aceitação como

possibilidade saudável, libertadora. Se no Naturalismo havia uma tendência obsessiva,

unívoca, patológica, em Jorge a sexualidade ganha um caráter positivo, como

conseqüência natural do amor.

Jorge Amado realizou uma longa trajetória ficcional e, por isso, em seus

romances, podem ser percebidos certos conjuntos de características relativamente

variáveis de acordo com a época. Para figurar em nosso trabalho, de sua primeira fase,

selecionamos Terras do sem fim, pertencente ao “ciclo do cacau”. Gabriela cravo e

canela figura como o início de uma fase menos marcadamente política e, como a

questão do amor é imprescindível para o desenvolvimento da ideologia libertária

veiculada neste romance, não pudemos deixar de analisá-lo.

A essência da atitude psicológica e literária própria dos românticos está mais

marcadamente presente em Mar Morto, romance em que o amor transcende todos os

limites, o que fez com que este romance fosse um dos selecionados para estudo.

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Dona Flor e Teresa Batista adotam uma visão mais despreocupada em relação à

política e pertencem à fase posterior da produção literária amadiana.

Ainda que se considerem as modificações culturais que se deram, a visão de

amor em Jorge Amado se assemelha à da tradição romântica. Em seu discurso de posse

na Academia Brasileira de Letras, o escritor, ao ressaltar aquelas que considera as linhas

norteadoras da literatura nacional, a primeira, fundada aqui por Alencar; a segunda, por

Machado de Assis, filia-se, ele próprio, à alencariana, ao proferir: “Sou um rebento

baiano da família de Alencar”128. Tal posicionamento confirma nossa análise e aguça a

curiosidade para o enfoque amoroso no romance amadiano.

Quanto ao uso da linguagem, Jorge Amado adota um estilo fluente que o faz

capaz de captar as sensações fortes e carregadas da Bahia, na intenção de “ imitar” o

real. E o amor surge em suas obras como forte e redentor, nunca dissociando os

aspectos carnal e espiritual. Tereza Batista é o exemplo mais claro desta união, pois seu

coração, sua alma, buscam Januário Gereba durante toda a saga e, no final, o encontro

dos corpos, numa cena sensual, é que traduz o fim da busca. Em sua obra, aliás, “o

erotismo adquire um saudável sentido de libertação. Tanto mais quanto, na sociedade

burguesa, a repressão sempre se voltou com particular ferocidade contra o sexo e o

instinto”129.

A construção do romance Mar Morto, como já assinalamos, segue o modelo

romântico, em que o amor sobrevive a tudo, o que faz dele um romance muito popular.

José Maurício Gomes de Almeida diz, sobre tal narrativa: “vem a ser a obra na qual

mais nitidamente transparece a vocação essencialmente romântica e lírica do seu

autor” 130. O casal protagonista luta contra a oposição familiar, fruto da diferença social

entre os dois; contra os problemas de saúde de Lívia; contra a sedutora Esmeralda, que

tenta desestruturar a união dos dois, e ainda contra os desafios diários da profissão de

Guma – e o amor resiste a tudo. O desfecho de Mar Morto significa o resgate

romântico da mulher.

O primeiro obstáculo apresentado é o da origem social diversa dos amantes:

Lívia foi criada dentro dos padrões da classe média pelos tios comerciantes, que

128 AMADO, Jorge. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. In.: ___ Jorge Amado povo e

terra – 40 anos de literatura : p. 14. 129 ALMEIDA, 2004, p. 661 130 ALMEIDA, 1999. p. 255

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vislumbravam para ela um futuro promissor; já Guma sempre fora um ‘marítimo’

simples, muito diferente dos pretendentes almejados pela família da moça. Cria-se aí a

oposição mulher da cidade X homem do mar.

A harmonia do casal é por vezes desestabilizada porque Lívia insiste em que

Guma se aproxime do mundo do qual é oriunda, assumindo a quitanda dos tios. Mas,

para o pescador, a vida burguesa representava a suprema degradação. Lívia acaba

cedendo ao perceber que aquela vida contrariava a natureza do marido, fazendo-o

infeliz. O amor supera este obstáculo, bem aos moldes românticos, em que o

sentimento amoroso suplanta qualquer ambição financeira ou social, por constituir o

valor mais alto na vida das personagens.

Em Mar Morto, a posse antes do casamento se desenrola em uma espécie de

encenação romântica. Tudo é construído de maneira envolvente, desde a expectativa da

posse, iniciada com a interdição que gerou a fuga, até o cenário de perigo, de

tempestade, com um mar bravio, que mais aumenta o desejo de aproximação, e o fato de

afirmar-se a castidade de Lívia. O desejo criara antes o ato, desde que Guma trouxera

Lívia, em fuga, para o mar:

Lívia está cansada do dia inteiro de espera, da angústia de tudo poder fracassar no último momento, se os tios fizessem questão de levá-la com eles, e vem se deitar no madeirame do saveiro, aos pés de Guma que vai ao leme. Ele sente a carícia dos cabelos dela. Muito a deseja e talvez nunca a possua. Talvez sigam os dois para as terras de Aiocá sem que os corpos se unam. A hora de morrer não chegou porque não se possuíram ainda, ainda conservam um desejo nos corpos que estremecem de prazer quando tocam um no outro, apesar da tempestade, do mar bravio em torno. Guma não quer morrer sem a possuir, porque então há de voltar sempre em busca daquele corpo. (Mar Morto, p. 125)

E o momento da posse de fato é tão marcante que se supõe que o amor dos dois

transforme a lenda de um local, e um costume daquele povo ‘marítimo’ sobre as noites

de amor. Dá-se a este sentimento um caráter iluminador, inadiável, idílico. A citação é

longa, mas fala por si só:

Guma sustenta o leme com toda a força, governando o seu barco apesar da fúria do vento e das vagas. Lívia se aperta contra a sua cabeça, suplica: - Se a gente vai morrer, vem ficar com eu... - Talvez a gente se arranje...

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Nem uma estrela no céu, essa noite não é para o amor. Tanto assim que não cantam no cais, só o vento assobia. No entanto eles querem se amar nessa noite que bem pode ser a última. Tudo é rápido e incerto na vida do mar. Até o amor tem pressa. As vagas banham os corpos e o saveiro. Pouco adiantaram em todo esse tempo (...) Só Lívia infunde coragem, só o desejo de tê-la, de viver para ela consegue que ele continue. Nunca teve medo dum temporal. Hoje é a primeira vez. Medo de morrer sem a ter possuído. Conseguiram entrar no rio (...) Guma procura uma pequena bacia onde possa encostar o saveiro. São poucas naquele começo de rio. Só mesmo nas terras onde corre a assombração do cavalo branco existe uma. Porém para um marítimo é melhor ficar em meio à tempestade que parar ali, ouvir o cavalgar do antigo senhor de engenho. Estão perto. Já se ouve perfeitamente o tropel da cavalgada estranha. O cavalo passa, volta, os caçuás batem nas suas costas, os raios desenham seu vulto. Lívia canta baixinho uma canção que é um convite para Guma. Mas o cavalo branco corre, é melhor morrer na tempestade. Mas como deve ser bom possuí-la, apertar o seu corpo contra o corpo virgem de Lívia! Ela vê a bacia à luz do raio que corta a noite: - Espie, Guma... O barco pode ancorar ali. Que importa o cavalo branco? Ele não deixará que ela morra naquela noite que era sua noite de núpcias. O cavalo branco corre, mas Lívia canta e não tem medo dele. Ela teme é a tempestade, o vento sul, o trovão que é a voz colérica de Iemanjá, os raios que são o brilho dos olhos de Iemanjá. E Guma embica o saveiro para a pequena bacia (...) Muitos anos depois um homem (um velho do qual ninguém sabia a idade) contava que não só as noites de lua eram para o amor. Também as noites de tempestade, noites de cólera de Iemanjá, eram boas para o amor. Os gemidos de amor eram música das mais lindas, os raios pairavam no céu e viravam estrelas, as vagas eram ondas pequenas quando vinham bater na areia onde alguém amava. Também as noites de tempestade são boas para o amor. Porque no amor há música, estrelas, bonança. Havia música nos gemidos de dor de Lívia. Havia estrelas nos seus olhos e os raios pararam no céu. O grito de orgulho de Guma calou os trovões. As vagas vieram mansas bater na areia da pequena bacia, mansas como ondas. E eles foram tão felizes, foi tão bela essa noite escura, sem lua e sem estrelas, tão cheia de amor, que o cavalo encantado sentiu que lhe tiravam os arreios e seu castigo terminara. E nunca mais trotou pelos caminhos da margem do rio, onde agora os marinheiros vêm amar. (Mar Morto, p. 126-127)

A estrutura dramática desta cena, assim como a forma de deixar subentendida a

conjunção carnal, a linguagem metafórica (“Porque no amor há estrelas, música,

bonança” ), poética mesmo, a presença do mitológico (“noites de cólera de Iemanjá” , “a

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assombração do cavalo branco” ...) indicam uma nítida aproximação da abordagem

romântica do amor, bem distante do enfoque naturalista.

Além disso, a obra reitera uma concepção idealizada da mulher, típica do

Romantismo: assim, a castidade de Lívia é ressaltada nos pensamentos de Guma.

Entretanto, além deste erotismo que aponta para uma visão luiminosa, de alegria

e amor, também em Mar Morto está presente um tipo de erotismo que contraria aquele

comumente ressaltado nas obras do autor de maneira positiva. Trata-se de um erotismo

destrutivo, presente na relação entre Guma e Esmeralda. A mulata, mulher de seu

amigo Rufino, após provocar Guma insistentemente, oferece-se a ele de tal forma que

ele sente-se seduzido e a relação sexual se consuma. O aspecto diabólico deste erotismo

é tão forte que logo após a posse, como se acordasse de um pesadelo, Guma tenta

enforcar Esmeralda, e só não o faz porque os tios de Lívia chegam para visitá-la neste

momento. A cena foge completamente à idéia positiva que Jorge Amado constrói do

erotismo. Neste caso, sendo Guma um herói bastante humano, não divinizado, cai em

tentação, pondo suas virtudes em jogo. O impulso erótico, nesse caso, torna-se

diabólico porque vai ferir um valor máximo do universo amadiano (e romântico): a

lealdade.

A queda de Guma representa um duplo pecado, porque fere o código ético

dentro do universo romântico, já que ele pratica um crime contra a lealdade ao trair não

só a mulher, como o amigo Rufino, de quem Esmeralda é mulher.

Impõe-se aí mais um obstáculo à plena realização do amor entre os

protagonistas, só que este, imbuído de um caráter muito mais sério, porque mais grave

do que qualquer questão sócio-econômica, põe em xeque o sentimento amoroso e a

lealdade, valores cruciais no modelo romântico. O cenário agrava ainda mais a

situação: Guma possui Esmeralda no cômodo ao lado daquele em que está Lívia,

grávida, muito doente:

(Esmeralda) sentou-se na rede. Agora suas pernas tocam nas de Guma. E de repente ela se atira sobre ele e o morde na boca. Enrolam-se na rede e ele a possui sem sequer a despir, sem pensar. A rede range e Lívia acorda: - Guma! Sacode Esmeralda, que está trepada nas suas pernas. Corre para o quarto. Lívia pergunta: - Tu tá aí?

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- Tou, sim. Ia alisar o cabelo dela, mas sua mão ainda traz o calor do corpo de Esmeralda e ele suspende o gesto. Ela chama: - Vem dormir comigo... Ele fica sem saber o que dizer. Na outra sala Esmeralda o espera para concluírem o que começaram. (...) E recomeçaram. Ele agora está louco, não sabe mais o que faz, não pensa, não se recorda de ninguém. Só do corpo que aperta contra o seu na luta que mais parece de morte. E quando caem um sobre o outro Esmeralda fala baixinho: - Se Rufino visse isso... (Mar Morto, p. 165-166)

A solução para o resgate da dignidade do herói, para que merecesse o amor

eterno de Lívia, foi uma morte heróica.

O amor a Guma fez com que Lívia desafiasse o destino das mulheres que vivem

em torno do cais, porque aquelas que não estão fadadas a esperar os maridos voltarem

de longas viagens, são viúvas transformadas em prostitutas, para sobreviverem na

miséria daquele mundo masculino de marítimos.

A transcendência do amor comprova-se pela profunda identificação dos amantes,

representada pelo fato de Lívia assumir o papel de Guma após sua morte. Esta atitude

leva também à mitificação da heroína, que passa a ser retratada como uma espécie de

Iemanjá:

Suspendem as velas dos saveiros. Lívia inclina o rosto. O vento que passa levanta seus cabelos. Misturou suas lágrimas com o mar, é irremediavelmente dele porque nele está Guma. Para se sentir novamente com Guma terá que vir ao mar. Ali o encontrará sempre para as noites de amor . No mar encontrará Guma para as noites de amor. Em cima do saveiro recordará outras noites, suas lágrimas serão sem desespero. (Mar Morto, p. 251-252) Lívia suspendeu as velas com suas mãos de mulher. Seus cabelos voam, ela vai de pé. (...) Uma vez, quando fez o que nenhum mestre de saveiro faria, ele viu Iemanjá, a dona do mar. E não é ela que vai agora de pé no Paquete Voador? Não é ela? É ela, sim. É Iemanjá quem vai ali. E o velho Francisco grita para os outros no cais:

Vejam! Vejam! É Janaína. Olharam e viram. Dona Dulce olhou também da janela da escola. Viu uma mulher forte que lutava. A luta era seu milagre. Começava a se realizar. No cais os marítimos viam Iemanjá, a dos cinco nomes.(Mar Morto, p. 256-257)

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O amor, que não reconhece limites nem na morte, faz o resgate romântico do

casal, transformando Lívia numa verdadeira heroína e purificando Guma de seu pecado,

através da morte.

4.2.1 – A Bovary das terras do cacau

Terras do sem fim é um romance que desenvolve seu enredo em torno da

problemática da terra, fruto da concepção de uma situação central específica, que é a

luta pelas terras do cacau, próximas a Ilhéus. No entanto, em meio à narrativa,

apresenta-se uma relação interdependente a esta principal, que consideramos importante

para o desenvolvimento do tema do amor nesta parte inicial da obra do ficcionista Jorge

Amado: trata-se da relação de adultério entre Éster e Virgílio que, em princípio parece

aproximar-se do bovarismo.

Ester, a mulher do coronel Horácio, é caracterizada primeiramente como uma

jovem sonhadora, órfã de mãe, criada e mimada pelos avós, e educada em um colégio

de freiras. Nos tempos de estudante, seus planos de futuro eram “casamentos ricos e de

amor, vestidos elegantes, viagens ao Rio de Janeiro e à Europa” (TSF, p. 60-61) . Só

que o destino fê-la casar-se com um coronel das zonas do cacau e viver numa espécie

de prisão em regime semi-aberto, numa fazenda cercada por plantações, capatazes, e

pela mata, que era o que mais a assustava. A posse sexual, pelo marido Horácio, era

violenta, e é tratada metaforicamente, durante boa parte da narrativa, como equivalente

à de uma rã engolida por uma cobra. Não por acaso, Ester ouve os gritos de rã, pela

primeira vez, durante o jantar que antecede sua primeira relação sexual com o marido.

Ao ouvir o barulho, pergunta de que se trata; Horácio lhe responde, com indiferença: -

Uma rã na boca de uma cobra(TSF, p. 63). No parágrafo seguinte acontece a relação

sexual, que se repetiria por muito tempo da mesma forma: “e de repente, mal terminado

o jantar, foi aquele rasgar de vestidos e do seu corpo na posse brutal e

inesperada” (TSF, p. 64). Ester é devorada como uma rã indefesa.

Uma mulher criada na “cidade grande’, como ela, não se contenta com dinheiro,

terras e muito menos com homens que a tratam como objeto (mesmo que seja um

bibelot de cristal). Ela quer amor, paixão, romance.

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Sendo assim, Ester não se acostuma à vida monótona de Ilhéus e o casamento

com Horácio representa a destruição dos seus sonhos românticos de moça. Ele a amava,

mas de uma forma reificada, da mesma maneira que amava suas plantações de cacau:

Tomou do fruto do cacaueiro, sabia que aquilo agradaria ao marido. Horácio sorriu já alegre, já feliz da esposa, os olhos descendo pelo corpo dela. Ali estavam as únicas coisas que ele amava no mundo: Ester e cacau.(TSF, p. 69) E Horácio era visto por ela não como um marido, o que reafirma a relação

reificada, mas sim como “o dono, o patrão, o coronel” (TSF, p. 68). Ela era a mulher

‘com tutano’, ‘adquirida’ pelo coronel, e ambos reconheciam tal relação de posse: Quem

é que tem em Ilhéus e mesmo na Bahia ... uma mulher tão educada?... – não é só

boniteza... – falava com orgulho como um dono falaria de uma propriedade sua.(TSF,

p. 94)

Nesse aspecto, Horácio se identifica com Paulo Honório, tanto por sua posição

social, quanto pela forma como a mulher o via, embora Horácio não negasse que a

amava, mesmo que a seu modo bruto. Força política em Terras do sem fim, ele só se

preocupava em acumular poder e riquezas com as plantações de cacau, e era tão bronco

e ignorante que não atendia às necessidades de romantismo e de amor de Ester: talvez

por isso tenha sido traído. Não se pode atribuir a ele, também, a falta de amor pela

mulher: a incompreensão de um pelo outro, já que eram pessoas de naturezas tão

diferentes, estabeleceu o distanciamento do casal. Até a encomenda da morte de Virgílio

é compreensível dentro do universo em que estava inserido o coronel, e diante dos fatos

que se expunham aos seus olhos. Sobre este fator, discorre José Maurício Gomes de

Almeida:

(...) Horácio não pode de forma alguma ser visto, no episódio, como uma figura grotesca ou odiosa. É necessário situar corretamente a sua posição de homem sem grandes delicadezas de sentimentos, mas movido por um autêntico amor à mulher e atado aos valores rígidos e inapeláveis que governam aquele mundo primitivo, para que se possa sentir a violência do seu drama íntimo e o inevitável de sua atitude. Também ele, a seu modo, foi vítima de uma situação que não poderia jamais compreender. Como nas grandes construções trágicas, os seres humanos estão presos aqui nas malhas de um destino que os envolve a todos e cujo controle escapa às suas mãos.131

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Horácio, desconhecendo o romance de sua esposa, orgulha-se de ela ser tão

inteligente que acompanhe o pensamento e a sensibilidade de um advogado como o dr.

Virgílio. O coronel achava o advogado o amigo perfeito para Ester, já que ele próprio

não sabia conversar sobre livros, moda, e não sabia a língua francesa.

Ao travar conhecimento com o advogado Virgílio, Ester vê seus sonhos de

romantismo renascerem na figura daquele homem sensível e inteligente, vindo da

cidade grande, com modos cosmopolitas, contratado pelo Coronel Horácio. O

advogado também se encanta por ela, e nasce o romance.

Devido à forte atração entre as duas personagens, a análise do amor erótico

ganha um importante momento: o desejo da mulher é retratado de uma forma tão

intensa quanto o do homem, e o autor dedica duas páginas a este momento. Ester passa

inicialmente a entregar-se a Horácio, imaginando-o Virgílio: “ ...esmaga nos lábios de

Horácio os lábios desejados de Virgílio... E vai morrer, sua vida escoa pelo sexo em

chamas” .(TSF, p. 111) Neste episódio, o desejo de Ester, o amor que passa a sentir por

Virgílio faz com que deixe de ser o objeto sexual e passe a sujeito mesmo da ação

erótica. Ela também exterioriza o amor e o prazer que Virgílio lhe desperta, o que

confere um aspecto de reciprocidade ao desejo sexual das personagens.

Em Jorge Amado, a representação do amor erótico feminino, no caso de Ester,

aparece ainda de uma forma poetizada, metafórica.

A construção do enredo de Terras do sem fim, no que diz respeito ao núcleo que

envolve Ester, Virgílio e Horácio, segue uma linha bastante interessante. Jorge Amado

utiliza-se dos mesmos elementos que Flaubert, em Madame Bovary: a insatisfação

feminina com o casamento, o adultério, a descoberta do marido através da leitura de

cartas, a morte da mulher... só que o faz de uma forma diversa. Se a obra francesa é um

marco do Realismo, Jorge Amado cria um enredo romântico.

A trajetória de Ester lembra, até certo ponto, a de Emma Bovary, mas se

constrói de maneira essencialmente romântica. Tanto uma como a outra não realizam as

expectativas que tinham sobre o casamento. No entanto, as compensações que arranjam

são parecidas, mas diferentes em essência. Madame Bovary tem vários amantes, mas

continua um ser não realizado; já Ester encontra um só parceiro, que corresponde aos

131 ALMEIDA, 199. p. 277-278.

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seus ideais românticos. Embora ambas morram, Emma se suicida e passa seus

momentos de agonia sozinha, desesperada, longe de seus amantes, que a abandonaram à

sorte; Ester, pelo contrário, só morre após uma despedida romântica e emocionada

deVirgílio, feliz por amar e ser amada, mesmo na doença. Mas os elementos que

identificam e ao mesmo tempo separam as duas obras não são apenas estes. A

coincidência mais extrema é a descoberta que os maridos de uma e da outra fazem de

seus romances: ambos do mesmo modo – lendo as correspondências das esposas. Mas

ainda assim, a utilização que os autores fazem deste fato é bem diversa. O mote do amor

proibido, do triângulo amoroso fadado a um final trágico, até pela condição de Horácio,

é muito caro aos românticos, enquanto a obra flaubertiana obedece aos moldes

realísticos.

A própria morte de Ester pode ser interpretada como purificadora, já que seu

amor, por ser adúltero, era conspurcado. O encontro transcendental entre os amantes

aponta no mesmo sentido romântico de resgate.

Jorge Amado foi ‘benevolente’ com a personagem, fazendo-a morrer pela febre,

indiretamente por causa de Horácio (que foi o agente da contaminação). A mesma sorte

não teve o doutor Virgílio, que praticamente se entrega a uma tocaia encomendada pelo

coronel, quando seu romance é descoberto após a morte da amada. A cena de sua

morte é poética, visto que ele já a esperava, e de certa forma a desejava. Em Jorge

Amado, a descoberta do romance por Horácio serve como ponto crucial para um

desfecho ainda mais romântico, que o aproxima de Inocência. Em Terras do sem fim, o

‘dono por direito’ de Ester resolve matar o amante da esposa, assim como Manecão

resolve matar Cirino, em Inocência. O que aproxima o desfecho de um e de outro

romance é a atitude adotada pelas vítimas: ambos se oferecem à imolação em nome do

amor. Numa estrada da mata, Cirino declara seu sentimento pela noiva do cruel

Manecão ao próprio noivo, sabendo que morreria; de modo similar, Virgílio toma uma

estrada em Tabocas, adivinhando uma emboscada com a finalidade de matá-lo. O

caráter de entrega à morte fica mais claro em Virgílio, pois as cenas finais são ricas em

metáforas em que a personagem mostra sua crença no encontro com Ester após a morte,

reiterando o romantismo que envolve tal núcleo da história (o amor além de todos os

limites):

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Uma vez Virgílio sonhara um sonho romântico: aparecer à noite, num cavalo preto, na varanda da casa-grande. Seria a enorme lua amarela no céu, sobre os cacaueiros e sobre a mata. Ester o esperaria medrosa e tímida, afoita porém no seu medo e na sua timidez, ele nem pararia o cavalo. Tomaria dela pela cintura e a poria na garupa, partiriam por entre as roças de cacau, cortariam as estradas, os povoados e as cidades. Cortariam no seu cavalo negro o mar dos transatlânticos e dos cargueiros, iriam no seu galope para outras terras distantes. (...) Ester vai na garupa do cavalo, de onde veio ela? Virgílio solta a rédea, segura na sua cintura. Uma história de espantar. Irão para o fim do mundo, os pés livres do visgo de cacau mole que os prende ali...(TSF, p. 293)

A tradicional imagem do ‘príncipe encantado’ que chega a cavalo, arrebata a

princesa e foge com ela, mito do amor romântico, é retomada pela personagem, o que

inegavelmente comprova o caráter neo-romântico sugerido pela análise deste capítulo.

4.2.2 – Gabriela: amor à liberdade

A partir de Gabriela cravo e canela as relações amorosas desempenham um

papel de maior relevância na obra de Jorge Amado, pois o autor liberta-se um pouco das

amarras partidárias, dos problemas sociais como o da divisão de terras e passa a abordar

valores humanos mais individuais, ainda que digam respeito à posição do indivíduo na

sociedade. A alegria e a liberdade serão, entre tais valores, os de maior peso, e o amor

está, na literatura amadiana, da realização de Gabriela em diante, a serviço do alcance

destes.

A busca pela liberdade a todo custo, seja através do amor, que é a vertente aqui

estudada, ou por qualquer outro caminho, é analisada por José Maurício Gomes de

Almeida como um “ tipo de anarquismo instintivo, de raiz romântica” 132, tal a sua

desvinculação de qualquer preconceito classista.

Sendo assim, Gabriela, como marco inicial de um novo período na obra de Jorge

Amado, foi um dos romances escolhidos para análise em nosso estudo.

As mulheres, na obra do autor, aparecem em defesa de ideais de liberdade

humana pela primeira vez de forma marcante em Gabriela cravo e canela (“É aí que

132 ALMEIDA, 2004. p. 655.

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começa a se afirmar em meus livros o sentimento do amor como uma coisa

inteiramente livre, no melhor sentido da palavra, isto é, livre de qualquer interesse

medíocre.” )133. A busca pela liberdade é tão intensa que em suas obras, há uma

tendência à defesa de um certo anarquismo, pois os valores constituídos, a sociedade

bem pensante, é sempre questionada em suas atitudes e, invariavelmente, retratada

como repressora.

Assim, o autor constrói Gabriela como uma pessoa não criada na sociedade,

portanto portadora de um olhar virgem quando chega a Ilhéus, capaz de servir

inteiramente ao anarquismo amadiano. Sendo estrangeira àquela cultura, está livre de

pré-concepções; a insensatez e o absurdo da moral burguesa, dos comportamentos

convencionais, afloram. Seu erotismo é a forma de desmontar a repressão desta moral.

O desejo de Gabriela independe da representação que a seduz, pois não fica

restrito a apenas um objeto. Em todos os homens que a cortejam ela parece ver beleza,

sedução. O desejo de Gabriela confunde-se com liberdade, constante alegria de viver –

aquela mesma visão positiva de que estão imbuídas tantas outras personagens do autor.

A personagem em questão ama, sem preconceito, do retirante ao burguês, vendo

beleza em todos. O amor e o sexo, nesta obra, despem os homens do papel social, ao

menos aos olhos da heroína. É sintomática a cena em que Sinhazinha Guedes

Mendonça é encontrada morta, em circunstâncias comentadas por todo o povo:

Essa história de amor – por curiosa coincidência, como diria Dona Arminda – começou no mesmo dia claro, de sol primaveril, em que o fazendeiro Jesuíno Mendonça matou, a tiros de revólver, Dona Sinhazinha Guedes Mendonça, sua esposa, expoente da sociedade local, morena mais para gorda, muito dada às festas de igreja e o Dr. Osmundo Pimentel, cirurgião dentista chegado a Ilhéus há poucos meses, moço elegante, tirado a poeta. (GCC, p. 9)

O fato mostra que as pessoas, independentemente da posição social , estão à

mercê dos desejos e podem ficar submissas à paixão, colocando-se em igualdade com

Gabriela ou com qualquer outro ser. A inautenticidade da família burguesa perfeita cai

por terra com este episódio.

133 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990. p.277.

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A imposição de padrões rígidos de comportamento já é questionada pelo autor

desde o princípio da obra, anunciando acontecimentos ulteriores, protagonizados pela

própria heroína.

Gabriela deseja o prazer como uma aspiração à vida e ela exerce essa vitalidade

através dos objetos e atividades que mais aprecia: os homens e o sexo. Contribui para

isso a idéia corrente de que a mulher tem com o amante uma relação baseada no amor,

no sentimento e na entrega de ambos. Já o homem tem com sua amante uma relação de

propriedade.

Das personagens estudadas, Gabriela é a que mais tem os desejos satisfeitos,

pois sua satisfação reside em realizar o desejo dos homens que dela se aproximam,

querendo desfrutá-la.

Mas este caráter peculiar da protagonista faz com que Nacib magoe-se, pois não

se sente reconhecido por Gabriela quando ela busca outros homens: ele encara este

comportamento como falta de respeito da amada. No entanto, Gabriela sente-se plena

relacionando-se com vários homens, já que reconhece neles o desejo por ela e não

consegue recusar sua própria satisfação e a deles.

Tradicionalmente, interpreta-se a expressão do desejo por outro como a negação

do desejo por um primeiro, o que, no caso da personagem em questão, não se confirma.

A livre satisfação é forma inata de alegria e liberdade plena, e a confirmação de que o

sexo, nesta obra, possui uma função alegórica.

O progresso do desejo sensual é fonte de vida e de felicidade para a personagem.

O sentimento de liberdade exige a plenitude da realização sexual e tal realização no

âmbito feminino apresenta-se como uma conjugação de fatos diários, e não apenas o ato

em si. Por isso Gabriela acaba procurando no sexo com Tonico Bastos o meio de se

libertar. As exigências de Nacib tinham-na deixado insatisfeita, o que impedia sua

realização plena e, conseqüentemente, Gabriela via ameaçada sua essência: a liberdade.

A energia do corpo de Gabriela revolta-se contra a repressão intolerável, que é a figura

do ‘moço bom’ Nacib, lançando-se instintivamente contra ele. Um outro ponto

representativo do seu caráter é o fato de ela não se dispor a fazer o papel de propriedade

de poderosos. Esta renúncia está expressa no próprio pensamento de Gabriela, sobre o

fato de Nacib desejar a todo custo casar-se com ela:

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Seu Nacib estava querendo, com medo de perdê-la, dela ir embora. Besteira de seu Nacib. Por que ir embora, se estava contente a mais não poder? Com medo dela trocar a cozinha, a cama e seus braços por casa posta, em rua deserta, por um fazendeiro. Cada velho horroroso, calçado de botas, revólver na cinta, dinheiro no bolso. (GCC, p. 332)

A sexualidade e o idealismo de Jorge Amado em relação à liberdade aparecem

identificados, criando uma leitura alegórica, em que Gabriela figura como a própria

liberdade. Tal figuração oscila entre o literal e o metafórico: aparece em falas claras de

personagens como Fagundes e na própria maneira de ser de Gabriela, sendo que dentro

da trama, ela não prega nada, apenas age, sem maiores intenções . Gabriela é

inconsciente de sua realidade social e pessoal,

“Uma interpretação mais convencional define alegoria como uma narrativa com

dois níveis paralelos de significação” 134. Na obra analisada , um dos níveis é aquele

que concebe a personagem como uma construção ingênua, para puro desfrute do leitor,

que leva em consideração apenas a função lúdica da literatura. Logicamente este é o

mais tênue. O segundo nível concebe a personagem como essencialmente alegórica, na

qual as ideologias são praticamente aparentes; na verdade, não é uma personagem: são

valores com uma roupagem humana. Trata-se de uma articulação entre o romanesco e o

social. “Os dois níveis (...) são diferentes, o que nos permite assinalar uma estrutura

alegórica” 135, como se houvesse ao mesmo tempo um romance-fruição e um romance-

ideologia no mesmo corpo literário. “Nossa maneira habitual de ler envolve os

personagens e a trama. Freqüentemente denominamos ‘política’ a nossa leitura

quando lemos esses dois itens como, grosso modo, alegóricos.” 136 Na verdade, qualquer

tema em Jorge Amado, não se poderia deter no individual, devendo necessariamente

conter uma dimensão político-social, um princípio legitimador. Criam-se, então,

personagens sentimentalizados para representar a alegoria ideológica que deseja trazer à

tona. “A questão da prioridade entre os registros pessoal e político é insolúvel.”137 A

alegoria disfarça o imediatismo das idéias veiculadas.

134 SOMMER, Doris. “Amor e pátria na América Latina”. Trad.: Maria Luiza X. de A. Borges. In.:

Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. p. 170. 135 Idem, p. 169 136 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990. p.265. 137 Idem, p. 277.

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O autor endossa o caráter alegórico, quando diz em entrevista: “Então publiquei

Gabriela – eu decidira escrever uma história de amor, insistindo em que fosse uma

história de amor, mas sem abandonar o contexto social, a questão da realidade

brasileira.” 138 A alegoria e o real, a ideologia e a ficção unem-se na trama deste

romance que é um marco na obra de Jorge Amado. Mas a não-compreensão da

personagem sobre seu papel a isenta de veicular qualquer ideologia propositadamente

na trama.

O amor, da forma como é exercido por Gabriela, tem relação estreita com a

liberdade, valor usualmente representado pelo herói amadiano. Este procura suplantar

qualquer obstáculo à realização plena da individualidade e, no caso de Gabriela, a forma

de afirmação destes valores é, através da livre satisfação do prazer, negar ser

propriedade exclusiva de Nacib. Não pode haver trocas e compromissos que amputem

desejos e expressões. E esses compromissos é que Nacib tentava impor, reproduzindo a

sociedade em que sempre estivera inserido e da qual Gabriela era elemento exterior.

Na metáfora que aproxima a sertaneja do pássaro sofrê, fica patente a intenção

capciosa de Nacib em querer “adestrá-la” , para que só se interesse por ele e se satisfaça

apenas com ele. A característica semi-selvagem da moça não se submete a tal

adestramento e a tristeza de Gabriela é crescente. Para conferir algo de

verossimilhança, Jorge Amado fê-la uma sertaneja retirante da seca que chegou a Ilhéus.

Em princípio, pode parecer apenas uma marcação social, mostrando a questão do êxodo.

Mas com o desenrolar da narrativa desnuda-se o caráter ideológico deste “não-

pertencimento” .

Sendo assim, o amor, em Gabriela, tem o propósito de desrespeitar amarras

sociais, em nome da alegria e da liberdade. Sobre este tema, nos diz José Maurício

Gomes de Almeida, em seu ensaio “Jorge Amado: criação ficcional e ideologia” :

Uma única opção existencial é inaceitável para o herói amadiano: o enquadramento na “normalidade” da máquina social - máquina sinistra que tritura a individualidade e a substância humana das criaturas para reduzi-las à condição passiva de peças de engrenagem139

138 Idem, p. 170. 139 ALMEIDA, 2004. p. 653.

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O fato de Gabriela não ser virgem e ainda assim conseguir um “bom” casamento

mostra o seu valor como mulher capaz de revolucionar costumes, através do amor que

desperta. Mais revolucionário ainda é ela conseguir tal vitória e esnobá-la, por não se

sentir à vontade num relacionamento que tolhe a liberdade.

Em Gabriela, o princípio do prazer se sobrepõe ao princípio de realidade,

propostos ambos por Freud, o que a tornaria um ser à parte, já que “o princípio do

prazer irrestrito entra em conflito com o meio natural e humano” 140. Como para ela

não há valor na produtividade, no esforço e na segurança, estes são superados pela

atividade lúdica, pela satisfação imediata e pela ausência de repressão, o que faz com

que se torne uma personagem especial dentre todas. Ela não consegue tornar-se uma

mulher preparada para uma racionalidade que a sociedade tenta impor: “Se a ausência

de repressão é o arquétipo de liberdade, então a civilização é a luta contra essa

liberdade” 141. A personagem representa, então, a encarnação deste arquétipo, por isso

rejeita todos os símbolos civilizados.

Uma das metáforas mais significativas para a insatisfação de Gabriela por sentir-

se presa se dá quando Nacib presenteia a então esposa com um pássaro sofrê. Como se

sabe, o pássaro é uma metáfora já esvaziada para a liberdade; prender um pássaro na

gaiola é como subtrair-lhe a natureza, pois o que há de mais belo é o seu vôo. Jorge

Amado reconstrói tal metáfora, traçando um paralelo pássaro - liberdade - Gabriela. Ao

mesmo tempo em que Gabriela ganha um pássaro preso, é proibida de ir ao bar.

Demonstra a impossibilidade de viver cativa ao soltar o pássaro, dizendo que ele fugiu.

Quer ser livre sem magoar Nacib, a quem é de fato afeiçoada. Mas Nacib não alimenta

por ela um sentimento tão puro. Ele é humano e, mais do que isso, machista como os

coronéis. Gabriela achava que tudo o que ele fazia era por bondade, no entanto, a

verdade é que ela satisfazia não só aos seus desejos sexuais, mas também, e

principalmente, às suas vaidades. Para prendê-la, ele tentava proporcionar-lhe o que

desejavam as mulheres comuns. Gabriela tornara-se como uma peça rara, uma ‘coisa’

que todos queriam, mas só ele possuía (ou pensava possuir): e de ‘papel passado’. Tal

relação é mais uma forma de Jorge Amado propor uma instigante reflexão sobre a

sociedade da época. O autor denuncia a sordidez da sociedade burguesa, que prioriza o

140 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. p. 19

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sucesso individual e destrói a cooperação e os sentimentos sinceros entre as pessoas.

Gabriela representava quase uma mercadoria, só que Nacib achou que poderia obtê-la

definitivamente através dos meios utilizados para enfeitiçar qualquer outra mulher.

Além do status que ela lhe proporcionaria, tratava-se de uma mercadoria especial: a

força de trabalho. “O caráter especial desta mercadoria reside em que seu valor de uso

para o capitalista é gerar valor de troca ou valor comercial” 142, e Gabriela atraía lucros

para Nacib. E atraía a ele e aos outros também por sua ‘submissão sorridente’ , por

representar a doméstica cobiçada, que servia o homem na cama e na mesa.

O magnetismo exercido sobre os homens, então, não é apenas fruto de seu

comportamento sensual: a personagem não é sujeita ao patrão - ela concede servir, o

que a torna mais atraente aos olhos masculinos. Representa um “ fetichizado ‘sujeito

perfeito’ ”143 do ponto de vista machista, já que tem em seu âmago, por natureza, a

vontade de agradar ao outro. Jorge Amado faz dela uma retirante da seca para justificar

a aceitação do trabalho duro com baixa remuneração, ou ainda a troca desigual de

tempo de trabalho doméstico por subsistência, e retrata a todo momento o zelo com que

cuida da casa, a aptidão na cozinha, que faz o negócio de Nacib crescer, aliada à sua

sensualidade. Mostra ainda, como Gabriela, após todo este trabalho, ainda serve Nacib

fogosamente na cama. Isso tudo sem requerer regalia alguma ou exigir exclusividade.

É a mulher perfeita para qualquer homem inserido numa sociedade patriarcal,

radicalmente machista. “O casamento (...) e o trabalho doméstico são vistos como

parte de uma relação contratual em que os membros do casal buscam atingir

utilitariamente uma situação melhor para ambos,” 144 mas, na verdade, para caracterizar

melhor aquela sociedade, só o homem levava vantagens. “ (...) as mulheres na esfera

doméstica são exploradas por seus companheiros, sejam eles trabalhadores ou até

capitalistas, pois o trabalho doméstico é o tipo mais comum de trabalho não-pago.”145

Do ponto de vista econômico, o homem que estivesse com Gabriela estaria então em

situação privilegiada, pois suas aptidões eram reconhecidas por todos, e o casamento

141 Ibidem 142 MELO, Hildete Pereira de. & SERRANO, Franklin. “A mulher como objeto da teoria

econômica”. In.: Desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres, p. 142 143 HOLLANDA, Heloísa Buarque de. “ Introdução” . In.:Tendências e impasses: o feminismo

como crítica da cultura, p.11 144 Idem, p. 16 145 AGUIAR, Neuma. “Para uma revisão das ciências humanas no Brasil desde a perspectiva

das mulheres” . In.: Desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres, p. 27

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faria com que todo o trabalho estivesse ‘pago’. Não é provável que Nacib tenha sido

construído como um personagem turco em vão. Os elementos desta nacionalidade têm

fama de grandes negociantes, e ele não é uma exceção. Ainda sob o ponto de vista

econômico, pode-se analisar racionalmente o casamento de Gabriela e Nacib:

As pessoas fazem suas escolhas de maneira racional, visando ao benefício próprio, e tais escolhas são afetadas pelos incentivos econômicos que recebem (...) Becker, partindo de uma visão essencialmente econômica, analisa os motivos pelos quais as pessoas se casam, com quem, quando e por que se separam. O casamento é visto como uma relação contratual entre homens e mulheres e estas decisões – casar ou separar – só irão ocorrer se, e somente se, ambos atingirem uma utilidade melhor na nova situação.146

Gabriela, como ser ‘estrangeiro’ foge a este esquematismo. Foi, evidentemente,

prejudicada em sua nova situação de esposa, já que, além de servir a Nacib, teve sua

liberdade tolhida. Para ele, a posição de marido da personagem mostrou-se cômoda e

vantajosa, já que elevava seu nível sócio-econômico e o deixava acima dos outros

homens, seus rivais em potencial.

Há a parte louvável, já que a moça não é todo o tempo submissão e

domesticidade: há uma ‘zona selvagem’ em Gabriela, que talvez a faça mais

interessante aos olhos das personagens masculinas. Ela fascina não só por ser a

empregada que o modelo androcêntrico requer, mas por ter a situação erótica desviada,

segundo este mesmo modelo; esse desvio é representado por sua insaciedade e

liberdade. O desvio, em Jorge Amado, é fascinante, porque sua ideologia não-repressiva

é que desencaixou a experiência feminina de Gabriela dos padrões machistas. Neste

momento, ela representa a revolução dos costumes, chocando, causando dores de amor

e, principalmente, fascinação.

Em certo momento da narrativa, Fagundes, pertencente ao mesmo grupo de

retirantes que Gabriela, faz um discurso a Clemente, em que descreve com precisão a

natureza da personagem-título: “Tu pode dormir com ela, fazer as coisas. Mas ter ela

mesmo, ser dono dela como é de outras, isso ninguém nunca vai ser” (GCC, 141).

146 MELO, Hildete Pereira de. & SERRANO, Franklin. “A mulher como objeto da teoria econômica”. In.: Desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres, p. 141

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Uma outra personagem que fala acertadamente de Gabriela é João Fulgêncio,

comerciante liberto de preconceitos que, poeticamente, de forma metaforizada, adverte

a Nacib: “ – Tem certas flores, você já reparou? que são belas e perfumadas enquanto

estão nos galhos, nos jardins. Levadas pros jarros, mesmo jarros de prata, ficam

murchas e morrem.” (GCC, 268)

Posteriormente, a inadaptação de Gabriela às grades de um casamento, de uma

relação monogâmica e rotineira, faz com que se concretize o que foi profetizado

metaforicamente por João Fulgêncio. Ela não queria ser ‘dona’ de ninguém, mas

também não suportou ter um ‘dono’.

Gabriela acaba despertando sentimentos quase opostos aos seus. Se por um lado

ela era livre e deixava os homens com quem se relacionava livres, não se importando

nem que Nacib se deitasse com raparigas dos cabarés, eles ficavam cada vez mais

presos a ela, queriam-na exclusiva. Ela entregava-se por prazer, sem compromisso,

como um alegre passatempo. Quando retirante da seca, vinda para a Bahia, deitara-se

com Clemente: tinha alegria em fazê-lo. Contudo, atraiu sentimentos possessivos e

mórbidos no negro, que pensou em matá-la e matar-se, por ela não querer acompanhá-lo

na ida para as roças de cacau. Os homens, tão acostumados a terem as mulheres

sempre como seus acessórios ou apêndices, ficavam fascinados ao se relacionarem com

Gabriela.

É demonstrado, através de atitudes ingênuas ou até infantis, que a felicidade e a

liberdade andam juntas. Um dos sinais de tal liberdade é a aversão que Gabriela tem

aos sapatos. Muito mais do que uma condição física, é uma demonstração de repulsa à

civilização, simbolizada por estas peças, que tolhem os movimentos dos pés. A

obrigatoriedade do seu uso foi iniciada após o casamento: sinal de que este era uma

convenção imprópria para a personagem. A todo momento aparecem outros destes

sinais: o riso sem motivo, a dança, a brincadeira de roda em meio às crianças e, por fim,

o que causou a maior polêmica: a sexualidade que não conseguiu reprimir mesmo

estando casada com Nacib. Não era prostituta: gostava da beleza humana. Não ia para

a cama com homem algum por dinheiro e principalmente não aceitava velhos. Amava a

juventude e a beleza masculina. O sexo funciona como sinônimo de festa, de alegria. O

erotismo em relação a esta personagem, é uma experiência ligada à vida, à liberdade.

Gabriela é, enfim, uma ode a tais valores e, segundo palavras do próprio autor, sua

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parcialidade “ tem sido pela liberdade contra o despotismo e a prepotência (...) pela

alegria, contra a dor”147

Gérard Lebrun, em “A neutralização do prazer” , referencia esta idéia de

adestramento e de educação do prazer, a pensadores clássicos: “Se ficarmos apenas nos

pensadores do século IV a. C., em Platão e Aristóteles, podemos afirmar em primeiro

lugar que eles consideram o adestramento em relação aos prazeres uma tarefa

essencial da educação” 148 Assim como Nacib e a sociedade impuseram a Gabriela a ida

a uma tediosa conferência, no lugar da ida ao circo, e o uso de sapatos apertados a pés

que sempre viveram descalços, pretendem também refrear seu desejo sexual.

Desta forma, com a visão de que o prazer é sempre uma espécie de vício a ser

contido pela educação, assim como a liberdade dos pés de Gabriela deveria ser domada

pelos sapatos, corrobora-se sua rejeição pela sociedade, visto que é refratária a tais

modelos.

O discurso de Platão, após a morte de Sócrates, reflete bem o desejo de a

sociedade conformar a seus moldes tudo e todos os que estão em torno:

Restava, assim, o ideal de construir uma nova pólis, regida pela justeza/justiça e pela proporcionalidade, onde o governante fosse um sábio (...), onde a razão se sobrepusesse à insensatez e ao passional, onde o prazer fosse controlado pela medida, onde Apolo contivesse Dioniso. E onde o justo – não réu, mas juiz e métron da cidade – pudesse viver.149

A estas regras não se adapta Gabriela, construída por Jorge Amado como a dos

instintos irrefreáveis, a da liberdade acima de tudo.

Sua vida segue seus próprios parâmetros, pois o único mal de que ela sofre é o

desejo de Nacib em tê-la cativa. O amor erótico que oferece e recebe transfigura-se em

alegria, desde que livre. A ausência do prazer significaria o desequilíbrio, porque seria

geradora de sofrimento.

Gabriela passa a encarnar um valor: a própria liberdade. Não toma partidos para

não estar presa a ninguém e procura viver dentro das leis da boa convivência. O sexo

147 SOMMER, Doris. “Amor e pátria na América Latina” . Trad.: Maria Luiza X. de A. Borges. In.: Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. p. 163. 148 LEBRUN, Gerard. “A neutralização do prazer”, in: O desejo, p. 67 149 PESSANHA, José Américo Motta. “A água e o mel”. In: ___ O Desejo, p. 96

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não é um fenômeno que contribui para ela apenas como prazer físico e emocional, mas,

da forma como o pratica, é a garantia de sua integridade: ela é livre, e não o será de

forma íntegra se for exclusividade de alguém.

Gabriela não cederia por interesse algum às propostas de coronéis, juízes ou de

qualquer poderoso de Ilhéus, de montar-lhe casa para que fosse sua amásia. Como já

foi dito, sujeitar-se a tal papel significava tornar-se bem, propriedade. Jorge Amado

criou-a não com o intuito de mostrar apenas uma mulher forte e participante na

narrativa, mas como uma bandeira simbolizando a liberdade humana, e não só feminina.

Ela fazia tudo o que desejava e era isenta de ambições, de hipocrisia, falsa moral ou

sexualidade reprimida. Não conhecia ou respeitava leis que não fossem as da natureza,

instintivas; não soube viver segundo os padrões de uma sociedade burguesa que

impunha regras que tolhiam as vontades e com isso, a alegria; era uma sociedade, além

de tudo, machista, onde homens podiam tudo e mulheres apenas podiam contentar-se

com a monogamia eterna, caso contrário seriam rejeitadas, degradadas.

A personagem também sofre com o preconceito.. Sua maneira libertária de amar

é malvista por toda a cidade de Ilhéus, já que a sociedade estabelecida funda sua

educação na repressão erótica ou, quando não, na hipocrisia. Mesmo os homens

mantendo amantes fora do casamento e freqüentando as ‘casas de mulheres-damas’,

voltam-se para os ‘maus costumes’ de Gabriela, que, por não dissimular suas vontades,

transforma-se numa ‘ameaça à ‘boa’ sociedade’.

No entanto, Jorge Amado rebate a crítica social, fielmente retratada em sua obra,

com a libertação do amor e da mulher. Gabriela não cede às pressões exteriores e não

renega o seu amor-alegria.

Não será exaustivo lembrar um dos trechos mais importantes em relação à

denúncia de tal hipocrisia: o fato de todos os membros da sociedade, até uma contrafeita

Gabriela casada, terem de comparecer a uma palestra feita pelo poeta Argileu

Palmeira, na qual a maioria das pessoas ficava sem entender nada e estava presente

apenas para manter o status, por pura convenção social. A hipocrisia dos burgueses

(Nacib entre eles) condenava manifestações populares como o circo e o Terno de Reis e

se castigava com uma conferência ininteligível: a imagem perante os outros

predominava sobre a satisfação pessoal, e aí reside a crítica do autor à burguesia. Em

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sua entrevista a Alice Raillard, o autor critica a “pseudo-erudição europeizante” 150, o

que se coaduna perfeitamente com este episódio. Jorge Amado investe Gabriela,

portanto, do caráter popular, que não entende e portanto é contrário a essas expressões

postiças. Eis a idealização do povo como sincero e autêntico, e da burguesia como falsa

e estereotipada, estando assim os noivos Nacib e Gabriela afastados em atitudes, mesmo

antes do casamento.

A personagem recusa aquilo que todas as mulheres da sociedade enfocada

sonhavam: casar-se com um homem próspero, possuir bens materiais que satisfizessem

sua vaidade, freqüentar as rodas sociais; era enfim, sem ter disso consciência, uma

revolucionária.

Gabriela é construída de uma maneira poética, diferente de qualquer outra das

obras estudadas: seu jeito de ser, de falar, sua simbologia. Há trechos que se

assemelham aos típicos de um gênero lírico bastante simples, popular: “Voou o sofrê,

num galho pousou, para ela cantou. Que trinado mais claro e mais alegre! Gabriela

sorriu. O gato acordou.” (GCC, 234) Há metáforas como esta, em que o gato se

incomoda com a liberdade e a alegria do pássaro e de Gabriela; há uma cadência em

muitas das falas da personagem, principalmente quando ela suprime artigos. Há ainda

sinestesias, como a do próprio título, que sugere cheiro e gosto sensuais atribuídos a ela,

e antíteses que sugerem seu trânsito por todos os lados da vida e a aceitação de todos:

calor e frio, doce e amargo, ingenuidade e sensualidade, variação de amores. “A vida

era boa, bastava viver. Quentar-se ao sol, tomar banho frio. Mastigar goiabas, comer

manga espada, pimenta morder. Nas ruas andar, cantigas cantar, com um moço

dormir. Com outro moço sonhar” .(GCC, p. 233)

Em meio a um acontecimento anterior, era anunciada a força de Gabriela, como

símbolo da natureza, do povo, sobre a artificialidade dos burgueses: ela saíra em meio

ao ‘Reveillon’ dos ricos para juntar-se ao popular Terno de Reis, quando de sua

passagem. Contagiados, todos os presentes aderiram também: sinal de que até os

burgueses têm guardada alguma identificação com manifestações populares. Gabriela

funcionou, neste momento, como agente da tentativa de mudança e libertação. Poderia

150 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990. p.105

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dizer-se agente de um ideal igualitário do autor. Se a Sra. Saad prevalecesse sobre

Gabriela, a intenção significativa de Jorge Amado seria outra.

É imprescindível ressaltar que não há mais a separação dicotômica entre carne e

espírito, presente no Romantismo, porém inconcebível no contexto em que está inserida

a obra de Jorge Amado. Retoma-se, portanto, à integração das dimensões biológica e

psicológica. O erotismo, antes degradante, representa agora a afirmação da vida. Em

Gabriela, cravo e canela, ele é característica inata da personagem-título e está a serviço

de um ideal libertário, portanto mostra-se incontrolável. Cercear a sensualidade de

Gabriela, deixando-a cativa de Nacib, tira sua alegria e deforma sua individualidade. O

trecho que melhor comprova esta análise está inserido no capítulo “Suspiros de

Gabriela” , em que os pensamentos da personagem demonstram sua insatisfação com o

casamento:

Por que casara com ela? Era ruim ser casada, gostava não... Vestido bonito, o armário cheio. Sapato apertado, mais de três pares. Até jóias lhe dava. Um anel valia dinheiro, Dona Arminda soubera: custara quase dois contos de réis. Que ia fazer com esse mundo de coisas? Do que gostava, nada podia fazer... Roda na praça com Rosinha e Tuísca não podia fazer. Ir ao bar, levando a marmita, não podia fazer. Rir pra seu Tonico, pra Josué, pra seu Ari, Seu Epaminondas? Não podia fazer. Andar descalça no passeio da casa, não podia fazer. Correr pela praia, todos os ventos em seus cabelos, descabelada, os pé dentro d’água? Não podia fazer. Rir quando tinha vontade, fosse onde fosse, na frente dos outros, não podia fazer. Dizer o que lhe vinha à boca, não podia fazer. Tudo quanto gostava, nada disso podia fazer. Era a Senhora Saad. Podia não. Era ruim ser casada. (GCC, p. 332)

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4.2.3 - Dona Flor: uma análise à parte

O relacionamento de Flor e de Vadinho é algo incomum, se comparado a

qualquer outro retratado na obra de Jorge Amado. Em essência, Vadinho é um símbolo

da liberdade, assim como Gabriela.

Dona Flor é uma apaixonada por ele, mas, de acordo com as idéias de Bataille,

nunca devemos esquecer que, apesar da promessa de felicidade que a acompanhou, a paixão começa por introduzir a perturbação e a desordem. Até a paixão venturosa introduz uma tão violenta desordem que a felicidade em questão, antes de ser uma felicidade desfrutável, é tão grande que é comparável ao seu contrário, ao sofrimento.151

Tomando como verdadeiro tal conceito sobre a paixão, justifica-se o fato de

Dona Flor, desde o primeiro dia de casada, já ter experimentado tais contrários: a

felicidade por ter uma vida em comum com Vadinho e a decepção de ser deixada por

uma roleta, um bacará, ou coisa pior.

A sociedade retratada em Dona Flor e seus dois maridos, embora seja mais

moderna que aquela das primeiras obras em estudo, é quase tão machista quanto esta. A

mulher continua a se submeter ao marido e a ter uma grande capacidade para o

sofrimento e a subserviência. Dona Flor é surrada por Vadinho, trabalha para sustentar

suas jogatinas, é traída e sabe-se traída, mas ainda assim o ama e, ao se ver livre dele,

implora sua volta.

A nítida impressão de que Flor nutre sentimentos muito mais intensos por

Vadinho do que pelo doutor Teodoro é facilmente explicável: “As possibilidades de

sofrer são tanto mais vastas quanto só o sofrimento revela inteiramente a significação

do ser amado” 152 . Sendo assim, se por um lado Vadinho a fazia sofrer, fosse por

atitudes infiéis, fosse pelo vício do jogo, ou pelos maus tratos, cada vez mais as opostas

151 BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 18-9. 152 Idem, p. 19

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atitudes amorosas ‘deste’ marido tinham significado positivo mais marcante. É como

enxergar melhor o objeto branco, quando ele tem a cor preta de fundo.

Em relação ao doutor Teodoro Madureira, não houve a mesma paixão, e sim um

sentimento calmo e estável, já que, (novamente citando Georges Bataille) “uma

felicidade calma em que o sentimento de segurança é dominante só tem sentido quando

vem apaziguar um longo sofrimento que a precedeu”153. Tal sofrimento foi a perda do

objeto de paixão (representada pela morte de Vadinho) e a constatação de que, mesmo

sem ele, ainda tinha desejos vivos.

Dona Flor, ao ficar viúva, tenta suplantar seus instintos sexuais: em vão. O

triunfo do princípio da realidade, que controla a moral, disfarçado de civilização, nunca

é completo sobre o princípio do prazer. Ela tenta dominar e reprimir a si própria, mas

seu desejo acaba por chamar Vadinho para junto de si, tão forte é a natureza. Flor não

podia contentar-se com a ‘economia’ sexual de Teodoro, se já tinha conhecido os

prazeres da carne sem medida, com Vadinho.

“A luta pelo destino da liberdade e felicidade humanas é travada e decidida na

luta pelos instintos” 154 e é esta luta que se trava no íntimo de Dona Flor, só que, sendo

uma personagem especial, consegue, depois de muito sofrer, alcançar a felicidade plena,

conjugando ambos os instintos.

Partindo, portanto, de uma análise de D. Flor à luz das teorias freudianas, que

erguem-se em torno do antagonismo entre os instintos do sexo (libidinais) e do ego

(autopreservação), pode-se levar em consideração que cada um de seus maridos

preenche as necessidades de seus diferentes instintos. Vadinho, as do primeiro, e

Teodoro, as do segundo, já que deixava Flor a salvo de qualquer perigo e era o álibi

irrefutável que a deixava longe das más línguas. D. Flor, ao término da narrativa,

mesmo com dois maridos, não é uma mulher dividida. Pelo contrário: é mais íntegra do

que nunca, levando-se em consideração o sentido literal da palavra: inteira, plena.

Há uma possibilidade de comparar-se as três personagens em questão às

principais camadas de uma só estrutura mental, o que daria a eles uma unicidade, como

se participassem de apenas um todo, tão complementares são, cada um com seus

153 Idem 154 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, p. 41.

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caracteres definidamente marcados. Vadinho sem dúvida seria equivalente ao ‘ id’ , “o

domínio do inconsciente, dos instintos primários” .

O id está isento das formas e princípios que constituem o indivíduo consciente e social. Não é afetado pelo tempo nem perturbado por contradições; ignora valores, bem e mal, moralidade. Não visa à autopreservação: esforça-se unicamente pela satisfação de suas necessidades instintivas, de acordo com o princípio de prazer. 155

As necessidades que Vadinho esforça-se por suprir são jogar e praticar sexo.

Não reconhece mal em surrar a esposa para lhe tirar dinheiro, porque o que importa é a

satisfação do jogo, que tal dinheiro vai lhe trazer; não reconhece erro ou perigo no

adultério, em relação a si próprio ou às mulheres casadas com quem se relaciona.

Vadinho, vivo ou morto, seria a representação do ‘id’ .

D. Flor seria o ‘ego’ , o contato com a realidade, a mediadora dos extremos de

Vadinho e de Teodoro; aquela que recebe influências e estímulos de ambos. Sem ela

não haveria como juntar as partes complementares do todo. Os dois pólos (seus

maridos) só podem unir-se em suas curvas, caso contrário haveria o choque.

Por fim, dr. Teodoro seria o ‘superego’. Jorge Amado parece construí-lo de

forma proposital para que assim seja visto, afinal o “superego tem origem na

prolongada dependência da criança (...) em relação aos pais; a influência parental

converte-se no núcleo permanente do superego” 156, e Teodoro Madureira mantém uma

tardia dependência materna, até pouco antes de relacionar-se com Dona Flor, o que lhe

confere um senso de moralidade acima dos padrões. Tal comportamento faz com que o

personagem seja considerado superior perante a sociedade bem-pensante, representada

no romance pela mãe de Flor e pelos vizinhos. Mas para a própria Flor, em relação à

vida sexual, a união constitui-se num problema.

Prevalece o equilíbrio, a vontade de D. Flor, mesmo que esta seja representada

de uma maneira fantástica, o que se dá pela aceitação da presença constante do

‘ fantasma’ Vadinho: o ‘ id’ , que, mesmo quando vivo, não era socialmente aceito como

indivíduo digno de respeito. D. Flor completa-se com a presença daquele que é

recriminado pela maioria das pessoas centradas, retratadas na obra.

155 Idem, p. 47 156 Idem, p. 48

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O desfecho é interessante: Flor consegue unir a calma e a inquietação, o

sofrimento permanente pela inconstância de Vadinho e a segurança quase monótona do

doutor Teodoro. Pôde ter ao seu lado a vida economicamente estável, a integração social

e a timidez ao lado do novo marido, e o furor sexual, o ciúme e a adrenalina garantidos

por Vadinho, mesmo que em presença espiritual. Situação insólita, que demonstra a

quase impossibilidade de plenitude do indivíduo num relacionamento. O fato de contar

com o sobrenatural é uma prova de que conjugar instintos antagônicos é algo apenas

desejável, mas praticamente irrealizável. Jorge Amado, com este desfecho, ironiza a

sociedade, o casamento, e suas escolhas unilaterais, que deixam-na fadada a um só

caminho, já que cria uma hipótese completamente inusitada em Dona Flor e seus dois

maridos..

4.2.4 - Tereza Batista: amor e superação

Tereza Batista é ainda uma das representantes de Jorge Amado com os pobres e

oprimidos, mas sua construção assemelha-se a uma epopéia individual, em que Tereza

mostra seu caráter meio humano, meio divino. É representado na obra o drama interior

da vida da personagem, acima da caracterização de determinada classe, como costuma

fazer o autor. Ela, assim como alguns outros personagens do autor são uma autêntica

mensagem de otimismo, de que apesar de tudo vale a pena viver: “Os personagens de

Jorge são almas indomáveis, resistentes, que não se deixam vencer pelas misérias do

drama social. As injustiças gritantes, os amores enfrentando as forças do ódio, o amor

unido à liberdade, lutando por fazer da vida o bem-viver (...).”157

Tereza Batista é uma história de superação, que se inicia com o retrato da

problemática da miséria nordestina e se desenvolve de maneira bastante romântica, com

a dialética do bem contra o mal. O desfecho é típico dos de Macedo: após mil

peripécias, a heroína não pode deixar de vencer, o que é um dos aspectos românticos

apontados nesta tese.

157 NERY, Hermes Rodrigues. “A dinâmica criadora de Jorge Amado” . In.: Conversando com Jorge

Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990. p. 10.

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O enfoque do amor na prosa romântica é retomado nesta obra com nova

roupagem. Elementos impostos pela sociedade, como a castidade feminina, não

representam obstáculo ou ainda condição para a realização do amor. A desvalorização

destes elementos para sentimento tão sublime pode ser apontada em Tereza Batista, por

exemplo. Neste romance, a virgindade tem preço, é comercializável, como nuca

poderia ser o amor. O coronel Justo vai à roça negociar a de Tereza com a tia, para

anexá-la à sua coleção.

Tereza Batista não completara ainda treze anos quando sua tia Felipa a vendeu, por um conto e quinhentos, uma carga de mantimentos e um anel de pedra falsa, porém vistosa, a Justiniano Duarte da Rosa, capitão Justo, cuja fama de rico, valente a atrabiliário corria por todo o sertão e mais além. (...) Contavam de morte e tocaias, de trapaças nas brigas de galo, de falsificações nas contas do armazém, cobradas no sopapo por Chico Meia-Sola, de terras adquiridas a preço de banana, sob ameaça de clavinote e punhal, de meninas estupradas no verdor dos cabaços, meninas eram o fraco de Justiniano Duarte da Rosa. Quantas já deflorara menores de quinze anos? Um colar de argolas de ouro, sob a camisa do capitão, por entre a gordura dos peitos, vai tilitando nas estradas que nem chocalho de cascavel: cada argola uma menina – sem falar nas de mais de quinze anos, essas não contam. (TB, p. 68)

Para a realização amorosa de fato, isto não tem o mínimo valor. Pelo contrário:

a liberdade, a entrega e a sensualidade das mulheres de Amado é que as fazem atraentes

a seus pares românticos.

A construção da protagonista sujeita-se docilmente a um padrão ideal e absoluto

de grandeza épica. Tereza luta não só pela realização do sentimento amoroso (com

Januário Gereba), como também por liberdade e justiça social (como no caso da Greve

do Balaio Fechado – em favor das prostitutas). Toda essa trajetória é ocasionalmente

pontuada pelo auxílio sobrenatural das divindades do candomblé. Tais episódios

surgem em meio à narrativa num tipo diferente, como que para ressaltar exatamente um

outro plano, paralelo ao dos acontecimentos humanos.

Milagres demais, na opinião do amigo, descrente dessas abusões. Orixás acontecendo a cada instante, encantamentos e magias. Velho de barbas e bordão surgindo de repente, a fechar os caminhos da polícia, a abrir portas de igreja, poeta morto há cem anos salvando raparigas,

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Ogum Peixe Marinho infundindo confiança, Exu empurrando o revoltado comissário, fazendo-o estatelar-se, quebrando-lhe de vez as duas pernas, Santo Onofre velando no deserto chão da zona o corpo de Vovó – para um materialista é dose bruta, o amigo deseja o relato da verdade pura e não de feitiçarias.(TB, p. 404)

Nunca encontrou em seu caminho, em hora de perigo, um velho de bordão?

É verdade. Nunca o mesmo, mas sempre parecidos. Oxalá cuida de si.(TB, p. 409)

A função do amor na narrativa é representar uma espécie de prêmio: um troféu

ao final de tantas provações. Antes do ‘amor perfeito’ de Janu, Tereza encontra o amor-

gratidão por Emiliano, que acumula também a função de apresentar também um retrato

social. A verossimilhança literária está presente no fato de um coronel influente manter

uma casa com todos os luxos para uma amante, paralelamente a uma família oficial,

constituída.

Em certo momento da narrativa, Tereza é comprada pelo doutor Emiliano

Guedes, que a instala numa casa, transformando-a em uma amante exclusiva. Com o

tempo, surge entre eles um relacionamento diferente do que se instaura geralmente

nestes casos. Entre eles passa a haver amor sincero, sexo, satisfação, aparições públicas

– muito mais do que uma relação para satisfazer vaidades ou demonstrar poder. O

doutor protegeu Tereza de uma vida de desventuras enquanto esteve vivo ( uma espécie

de casamento “até que a morte os separe”), e ela o protegeu dos aborrecimentos de uma

vida atribulada de capitalista. Não houve exploração, mas uma relação de troca justa.

Tereza ganhava sem pedir, não conseguia acostumar-se à boa vida das raparigas

mantidas por coronéis, diferentemente das que foram vistas até então. Tal diferença é

colocada de maneira clara pelo narrador de Tereza Batista: “Afeto, carinho, ternura,

amizade, regalos e dinheiro, com certeza, são moedas correntes no trato das amásias.

Mas amor, desde quando, Emiliano?” .(TB, 274) Tereza é uma personagem construída

de forma mais realística e, talvez por ser a protagonista, o autor pintou-a com tintas

diferentes das raparigas vistas anteriormente. Ser amásia do doutor Emiliano Guedes

representou uma trégua em sua vida de desenganos.

Mas nem por representar um lenitivo às dores de Tereza, Emiliano Guedes é

menos machista. É um capitalista próspero, chefe de um clã, e não poderia ser

diferente, na sua posição. Talvez seu ponto positivo fosse a sinceridade, pois se

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personagens anteriores atuavam de maneira machista maquinalmente, Emiliano fala de

modo claro desses costumes, justificando porque os acata, resumindo em poucas

palavras o que é retratado nas outras obras. Trata-se de um dos discursos mais

machistas da obra de Jorge Amado, que desmascara de forma verbal o pensamento do

macho opressor:

Não quero filho na rua. – a voz educada porém crua, inflexível: Sempre fui contra, é uma questão de princípios. Ninguém tem o direito de pôr no mundo um ser que já nasce com um estigma, em condição inferior. Ademais, quem assume compromisso de família não deve ter filho fora de casa. Filho a gente tem com a esposa, se casa para isso. Esposa é para engravidar, parir, criar filhos; amante é para o prazer da vida, quando tem de cuidar de menino fica igual à outra, que diferença faz? Filhos na rua, não é assim que eu penso. Eu quero minha Tereza para meu descanso, para me fazer a vida alegre nos poucos dias de que disponho para mim, não para ter filhos e amolações. (TB, 264)

São papéis estabelecidos pela sociedade: o do homem, o da esposa e o da

amante, imutáveis, segundo as palavras do doutor. E quem estabelece tais papéis, é

claro, são os homens, pois trata-se de uma sociedade essencialmente patriarcal e as

mulheres não têm livre arbítrio nem mesmo sobre seus corpos. Ainda assim, a relação

de Emiliano com Tereza é apresentada com certa simpatia (não tanto como a que há

entre ela e Januário Gereba, é claro).

O gozo com a esposa nunca é pleno, pois tem finalidade reprodutora,

diferentemente da amante, por isso Emiliano recusou ser pai de um filho de Tereza.

Enfim, todas as mulheres, esposas e amantes, são vistas pela sociedade ( e não só pelos

homens) como bens de utilidade: as primeiras, úteis para dar-lhes filhos; as outras,

prazer e descanso. O dinheiro e a manutenção das necessidades básicas de ambas

(moradia, vestuário, alimentação) são a moeda de troca para o cumprimento de tais

deveres. Sentimentos e insatisfações não são reconhecidos: o das mulheres, porque são

uma subclasse que veio ao mundo para obedecer. Os dos homens, porque têm que

cumprir seu papel aconteça o que acontecer, e este papel inclui fazer filhos na esposa e

abandonar a amante caso sua honra e sua vida pessoal e familiar sejam ameaçadas.

Amor não entra em tais relações: torna as pessoas condescendentes e democráticas

demais.

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Mas, ironicamente, o autor faz com que a personagem Emiliano Guedes

arrependa-se de se fazerem cumprir tais papéis em sua vida. Sua família e seus filhos

são de tal modo ‘podres’ , que ele desejou não ter feito Tereza abortar um filho seu para

fazer jus aos seus princípios. Para aproximar as relações homem-mulher da realidade

moderna, ou ideologicamente desejada, Jorge Amado fez com que Emiliano desejasse

unir em Tereza os dois papéis: o de mulher feita para o prazer, e o de esposa,

companheira, passando a levar em consideração os sentimentos e deixando de lado as

convenções. A personagem não pôde realizar tal intuito: morreu antes; todavia foi dado

o sinal para a mudança das relações e a valorização da mulher, não mais como um bem

material.

Inicialmente, Tereza é símbolo de uma problemática social: a venda de meninas

para a satisfação sexual dos poderosos, como solução imediata para a miséria de suas

famílias. A partir daí, aproximando-se da narrativa neo-romântica, a heroína enceta a

luta perpétua entre o bem e o mal, sendo imbuída de uma dimensão simbólica, quase

mítica. Ainda assim, em substância, permanece o caráter realista do enredo.

A descrição crua dos abusos cometidos pelo Coronel Justiniano da Rosa, das

práticas mundanas das prostitutas e da polícia corrupta (na figura do policial Nicolau

Peixe-Cação) e ainda do aborto a que foi obrigada por Emiliano, além de constituírem

pinceladas realistas, conferem maior força à heroína, que foi capaz de superar todos

esses obstáculos interpostos a sua realização: encontrar com Januário Gereba e se unir a

ele.

É interessante, nessa trajetória, ressaltar alguns pontos: a prostituição em Tereza

Batista não é vista como desequilíbrio moral ou social, como em Lucíola, por exemplo.

A sociedade convive com ela, graças ao sentimento humanitário que perpassa toda a

obra do autor.

Mas a narrativa não apresenta uma Tereza submissa aos desígnios do destino,

como talvez fosse uma heroína tipicamente romântica. Ela é um ser como os demais,

seja no amor, no pranto, no desejo de maternidade, na cólera, na ternura. Não se culpa

todo o tempo pelo destino cruel, como o faz a Maria da Glória, de Lucíola, que também

entregou-se à prostituição diante das circunstâncias adversas. Os tempos são outros. A

literatura amadiana confere a Tereza uma dignidade lírica, incapaz de ser conspurcada.

O seu sentimentalismo amoroso percorre a gama completa da carne e do espírito: é

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adulto. Nisso distancia-se do amor essencialmente espiritual dos românticos

tradicionais.

Pôs a mão sobre a de mestre Januário Gereba, Janu do bem-querer, fazendo-o mover o leme, mudar o rumo do saveiro, dirigindo-se para pequena enseada entre bambus na margem do golfo, escondido remanso. Estende-se Tereza na popa do saveiro: Venha e me faça um filho, Janu. Sou bom nisso como quê. Ali, na barra da manhã, rio e mar.158

O amor tem uma amplitude capaz de transportar Tereza da morte à vida, da treva

à luz, do cativeiro à redenção, da tirania à liberdade. Resulta num movimento

ascensional que completa o seu caminho épico, fazendo-a superar todo o lado negativo

destas antíteses.

Nesta luta pela redenção, Jorge Amado mostra-se tão idealista na construção da

personagem como Castro Alves, seu admirado conterrâneo. E não por acaso, cita-o em

Tereza Batista como um espírito agindo em prol de uma das causas da personagem,

junto a orixás afro-brasileiros:

Já lhe disse como vi naquela noite vazio o pedestal da estátua do poeta Castro Alves, na praça do mesmo nome, onde faço ponto. Pois, ao acordar novamente, bem mais tarde, à passagem dos carros da polícia conduzindo o mulherio preso no fim da briga, tendo levantado os olhos para o monumento, o que vejo? A estátua do poeta em seu lugar de sempre, o braço estendido para o mar e na mão um cartaz rasgado, com figuras de mulheres e palavras sem sentido, todo poder às putas, já pensou? E agora saia dessa se puder, o caro amigo. Boa noite eu lhe desejo, tome cuidado com Exu.159

E o romantismo amadiano acaba por unir os amantes separados pela desgraça.

A criação literária de Jorge Amado, no que diz respeito à liberdade sexual,

assunto aqui abordado, é totalmente legítima. Tal afirmação é feita, partindo-se da

noção de que a fantasia está intimamente ligada à arte, da qual a literatura é uma das

formas:

158 AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de guerra, p. 421. 159 AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de guerra, p. 405.

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A fantasia desempenha uma função das mais decisivas na estrutura mental total: liga as mais profundas camadas do inconsciente aos mais elevados produtos da consciência (arte), o sonho com a realidade, preserva os arquétipos do gênero, as perpétuas, mas reprimidas idéias da memória coletiva e individual, as imagens tabus da liberdade.160

Daí, Jorge Amado fazer do comportamento de Gabriela, do desfecho de Dona

Flor, e dos Romances Tieta e Tereza Batista, verdadeiros símbolos da liberdade sexual,

do desejo sem repressão. Ele utilizou uma ideologia quase utópica, onde as

personagens de comportamento livre são as protagonistas com quem o público, que faz

parte da sociedade criticada, simpatiza. Os padrões sugeridos obedecem ao princípio do

prazer, da liberdade, do desejo e da gratificação desinibidos – mas a realidade funciona

conforme as leis racionais, não vinculada aos instintos.

O desfecho de Tereza Batista não surpreende como o inusitado de Dona Flor e

seus dois maridos. Pelo contrário: o que o leitor sempre espera é o que acontece – a

superação da angústia e da dor, para além de todas as ruínas. É como se Tereza

passasse por um processo de purificação e triunfasse após todos os sacrifícios impostos

pela vida. Depois de tanto lutar, a protagonista tem um final glorioso. É um romance

que segue uma linha neo-realista, com descrições de cenas cruéis, de violência, como as

dos abusos sexuais cometidos pelo capitão Justo. Mas seu desfecho se encaminha

exatamente para a tendência neo-romântica do autor, já assinalada neste estudo.

A sociedade, em Jorge Amado, é apresentada como vilã, interditora, e percebe-

se a intensidade da frustração de algumas personagens femininas, porque o obstáculo à

sua realização é a sociedade dominante. Chega-se à conclusão que o autor pretende que

o leitor, identificando-se com tais personagens, insurja-se contra a burguesia hipócrita e

contra a pseudomoral que esta prega. A tendência às vezes é tão radical que chega ao

maniqueísmo social. Ao se identificar com as personagens, o leitor é levado a se

posicionar social e ideologicamente no mesmo sentido de seu criador. Os romances de

Jorge Amado buscam “corrigir” modelos sociais tidos como negativos ou injustos, ou

pelo menos compensar alguns desejos frustrados do indivíduo reprimido pela sociedade.

Não existe arte isenta na obra deste escritor, pois seu engajamento está presente em toda

a criação, inclusive no desenvolvimento do tema do amor, transformando-o num libelo a

160 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, p. 132.

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favor da liberdade. “Essa liberdade, porém, não é apresentada como um valor

filosófico abstrato, mas como um movimento instintivo do ser em direção à plenitude da

vida”161.

Jorge Amado pertence a uma geração dominantementeneo-realista, mas sua obra

tem fumos românticos, idealizadores, sem se fazer anacrônica. São velhos caminhos

para um novo rumo, já que, apesar de criar heróis e heroínas, esses não são perfeitos,

mas impregnados da imperfeição humana. Ainda assim, há os amores perpétuos, puros,

como o Tereza Batista por Januário Gereba, o Janu do amor-perfeito. Trata-se,

portanto, de um subjetivismo realista.

Nos romances amadianos, o amor é percebido muitas vezes como uma explosão

erótica, sem nada que a contenha. Mas muitas vezes, também, o erotismo ganha força

de patologia, descambando para as taras, como nas personagens Coronel Justiniano da

Rosa e Nicolau Peixe-Cação, em Tereza Batista.

Já o erotismo ligado ao amor sem regime, bem exemplificado por Gabriela, tem

um vitalismo intrínseco a ele, e significa mais uma maneira de defender as bandeiras

ideológicas do autor, libertário que era.

161 ALMEIDA, 2004, p. 660.

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5 – O ENFOQUE DO AMOR NA OBRA DE GUIMARÃES ROSA

Procuramos incluir Guimarães Rosa em nosso estudo, sob o critério

predominante da originalidade no enfoque do amor. Este sentimento recebe na obra do

escritor um valor de totalidade, quando se alcança a realização de todos os seus

aspectos.

O capítulo abrange a análise do sentimento amoroso em tr~es novelas: “Dão-

lalalão” , “A estória de Lélio e Lina” e, mais brevemente, ‘Buriti” . Para algumas

analogias não se pôde dispensar também o romance Grande sertão: veredas. Optou-se

por dedicar-se a estas porque, além de abordarem principalmente este sentido totalizante

que Guimarães dá ao tema, pôde-se fazer uma comparação sobre o seu tratamento nas

três.

Interpretar o sentimento amoroso, assim como outras temáticas, em Guimarães

Rosa, exige algumas chaves para a decifração de enigmas, já que envolve problemas de

plurissignificação e até da mitologia universal. Trata-se de uma linguagem específica e

irredutível ao significado denotativo.

Assim, não é possível analisar “A estória de Lélio e Lina” , no que diz respeito ao

tema aqui abordado, como uma narrativa primária, apenas em seu significado literal. É

preciso encará-lo como uma mensagem comunicativa com um código a ser

reconstruído, abrindo, desta forma, seu sistema para estudo. Como toda obra de

Guimarães Rosa, é preciso decifrá-la.

Para desenvolver esta parte do estudo foram indispensáveis os textos críticos de

Benedito Nunes (“o amor na obra de Guimarães Rosa”) e de José Maurício Gomes de

Almeida, “Buriti: o ritual da vida” .

“Buriti” apresenta ao leitor uma riqueza talvez inigualável entre as obras

abordadas, para a compreensão do amor. Este é visto de forma simbólica, erótica,

através de metáforas que compõem um jogo de velamento desvelamento fascinante.

Em contos como este, o elemento simbólico é mais evidente, embora nem sempre fácil

de ser interpretado. Em outros, ele está bem escondido. Em “ Dão-lalalão” , a

impressão inicial é de que se trata simplesmente da narrativa de estórias da vida de um

sertanejo.

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Embora seja impossível analisar detalhadamente “Buriti” , pois este trabalho se

estenderia demasiadamente, não há como não se referir a tal narrativa quando se aborda

a visão positiva do amor erótico em Guimarães Rosa. Nesta novela, praticamente todos

os aspectos são passíveis de uma segunda interpretação, não sendo ela inteligível num

campo de significação realista. Mesmo assim, sempre restará, na narrativa rosiana, algo

de indefinível, ‘ inanalisável’ .

O tema do amor é desenvolvido de maneira peculiar. O autor introduz

mensagens codificadas num enredo que rompe padrões. Além disso, não há também a

dicotomia presente no Romantismo: o amor é uno; o erotismo não o nega, mas é

intrínseco a ele. Rosa, ao desenvolver tal tema, trabalha com a interpenetração das

diferentes fases de Eros, e esse aspecto confirma-se em várias de suas narrativas.

Grande sertão: veredas apresenta o tema da seguinte forma: Riobaldo tem três

amores, e um não exclui o outro, sendo, pois, complementares. Diadorim é o amor

caótico, sentido mas renegado, porque ele acredita que a personagem é homem;

Nhorinhá representa o amor carnal e, como é recorrente na obra do autor, a personagem

é uma prostituta; por fim , o degrau mais sublime do amor aparece na figura de Otacília,

o amor espiritual, quase divino, e que contém os outros.

A união de todos os aspectos de Eros, ainda que Riobaldo a realize através de

diferentes seres, confirma-se pela reiterada expressão “mundo misturado” que, sendo

plurissignificativa, pode também referir-se ao amor.

O amor, em Rosa, volta a ser força de afirmação da vida, ganhando amplas

dimensões, como na ficção romântica. Só que, na narrativa rosiana, aparece integrado,

numa conjunção carne-espírito e, mais especificamente, numa abordagem filosófica. O

modo de encarar a vida da personagem Soropita, em “Dão-lalalão” , por exemplo, é

desnudado pela sua maneira de considerar o amor, na figura de Doralda.

Nesta novela o caráter de permanência já aparece conjugado num só ser.

Soropita começa a amar Doralda primeiro através do sexo. Continua a amá-la assim até

o tempo da narrativa, mas passa também a amá-la e admira-la pela sua dedicação a ele e

ao lar, pela sua correção de caráter, demonstrada na vida conjugal.

Para que o amor do casal parta, nessa estória, do caráter mais básico de Eros, o

físico, um recurso comum na obra do autor é utilizado: a inserção da figura da

prostituta. Doralda era, antes de se casar com Soropita, uma prostituta.

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Tanto em Jorge Amado quanto em Guimarães Rosa há a presença marcante das

prostitutas. Nas obras destes autores, elas não são reduzidas a objetos ou apenas

comerciantes do corpo – há um papel social e, no caso de Rosa, alegórico ou mítico, que

faz muitas diferença no desenvolvimento do enredo, quando não são alçadas a papéis de

destaque, como Tieta e Tereza Batista, em Jorge Amado e a própria Doralda, em Rosa.

A relação entre Doralda e Soropita parte do amor carnal para o amor complexo,

total, a plenitude amorosa. Tal comunhão caracteriza a trajetória ascensional em “Dão-

lalalão, em que, no entanto, não são dispensados os alicerces do amor carnal. Sobre tal

trajetória, ligada ao tema do amor, discorre Benedito Nunes: “O prazer sexual, que

nada tem de obscuro ou de pecaminoso, marca um começo, o início de uma trajetória

(...) o sexo é trânsito, passagem, e as energias primárias do sexo, que lhe dão origem e

que o mantêm, ainda subsistem em seus estágios mais elevados” 162

O fato de, na travessia de Soropita do Andrequicé ao Ão, várias vezes serem

feitas referências à natureza, como em comunhão com seus pensamentos e sentimentos

em relação a Doralda, é mais uma prova de que seu amor, inicialmente carnal, já é

cósmico, pois transubstancia-se e irradia para tudo ao redor. Os seres ficam em

harmonia, como um todo indivisível, no “mundo misturado” .

Em Soropita convivem a violência e a brutalidade de um ‘valentão’ e o lirismo

de um homem apaixonado pela esposa; em Doralda, convivem a respeitabilidade de

uma senhora casada e a experiência nas artes do amor de uma prostituta. Ninguém é

isto ou aquilo, e sim isto e aquilo. Tal comunhão demonstra perfeitamente como na

obra de Guimarães Rosa não se apartam as múltiplas dimensões do amor, mas formam

um todo completo.

A linguagem empregada nesta novela é repleta de uma carga de afetividade,

trazida pelos diminutivos, pela farta adjetivação, pela abreviação, pelos apelidos

carinhosos

Tinha havido, principal, uma rapariga bonita, clara, com os olhos que riam sozinhos – a boca não ria, uma boquinha grande, dadivada de vermelha – o afilado do nariz, um pingo de pontozinho preto por cima de um dos cantos da boca; essa se requebrava, talo de azedim, boneca de cinturinha(...) (CB, p. 301)”

162 NUNES, 1969, p. 148

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Presentes neste aspecto vocabular estão ainda a natureza e os animais (“as borboletas

que são indecisos pedacinhos brancos piscando-se – no roxoxol de poente ou oriente –

o deslim de um riacho.” (CB, p. 289)). O papel da natureza é, aliás, reiterado em todas

as obras do autor.

É possível perceber na narrativa de “Dão –lalalão” uma alusão intertextual,

sinalizada pelo próprio Guimarães Rosa na correspondência com seu tradutor

italiano163, com o Cântico dos Cânticos, de Salomão. Verdadeiro poema de amor, o

texto bíblico conjuga o amor erótico ao espiritual, como ocorre na obra rosiana.

No trecho a que chamam ‘A pastora na vinha” , há certa referência ao caráter

errante da mulher, como na prostituição de Doralda, na novela rosiana, assim como há a

intenção de fugir desta vida para seguir um só amado: “Dize-me, ó tu, que meu coração

ama,/ onde apascentas o teu rebanho,/ onde o levas a repousar ao meio-dia,/ para que

eu não ande vagueando/ junto aos rebanhos dos teus companheiros” 164.

Assim como o interlocutor da mulher no texto bíblico, Soropita também dirigia

rebanhos, era boiadeiro, antes de se casar com Doralda: “Havia mais de três anos

Soropita deixara a lida de boiadeiro, e se casara com Doralda” . (CB, p. 296)

A referência ao casamento é feita, no “Cântico dos cânticos” , da seguinte forma:

“Ele introduziu-me num celeiro165/ e o estandarte, que levanta sobre mim, é o amor.”166

A separação temporária de Soropita e Doralda, em sua viagem ao Andrequicé,

(“Separaçãozinha breve, uma ou outra, meu bem, é a regra de primor(...) ” (CB, p. 290)

também está subentendida em Salomão: “Volta, ó meu amado,/ como a gazela, ou o

cervozinho sobre os montes escarpados./ Durante as noites, no meu leito, busquei

aquele que meu coração ama; procurei-o, sem encontrá-lo.” 167

Quanto ao ciúme de Soropita, que imagina cenas de Doralda com Dalberto, com

o negro Sabará, seu ex-amante e com o negro Iládio, há um trecho figurado que

corresponde ao mesmo tema, no texto bíblico a que nos referimos: “Apanhai-nos as

163 Rosa, s/d: p. 50. 164 Cântico dos Cânticos, 1,7. – Todas as referências ao Cântico dos Cânticos foram retiradas da versão da Bíblia Sagrada constante na Bibliografia Geral. 165 Num celeiro. Outra trad.: “Numa casa onde se bebe vinho em sinal do amor” . 166 Cântico dos Cânticos, 2,4. 167 Cântico dos Cânticos, 2,17.

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raposas/ essas pequenas raposas/que devastam nossas vinhas,/ pois nossas vinhas estão

em flor.”168

A viagem de Soropita e sua aproximação do Ão, trazendo presentes cheirosos

para Doralda, acompanhado de Dalberto e sua comitiva de capangas,tem também uma

correspondência no “Cântico dos cânticos” :

Que é aquilo que sobe do deserto como colunas de fumaça exalando perfume de mirra e de incenso, e de todos os aromas dos mercadores? É a liteira de Salomão, Escoltada por sessenta guerreiros, Sessenta valentes de Israel; Todos hábeis manejadores de espada, E exercitados no combate; Cada um deles leva a espada ao lado Por causa dos terrores noturnos.169

O trecho de Salomão que intitula-se “os encantos da esposa” é tão idílico quanto

aquele que Soropita utiliza para a descrição da esposa. O final do trecho bíblico faz

referência aos amigos e à esposa na chegada do dono-da-casa, assim como acontece na

chegada de Soropita a casa, em “Dão-lalalão” :

Entro no meu jardim, minha irmã, minha esposa, colho a minha mirra e o meu bálsamo como o meu favo com meu mel, e bebo o meu vinho com meu leite. Amigos, comei, bebei, Inebriai-vos ó caríssimos.170

Por fim, ambos os textos estão pontuados por referências eróticas à mulher,

comparáveis em poeticidade. Em “Dão-lalalão” lê-se: “Cruzara as pernas, brincava de

curvar os dedos dos pés. Ela mesma olhou seu umbigo, e meneou o corpo, de

divertimento. Ao fogo dos olhos de Soropita, as pontas de seus seios oscilaram” (CB, p.

335)

168 Cântico dos Cânticos, 2,15. 169 Cântico dos Cânticos, 3,6-7-8. 170 Cântico dos Cânticos, 5,1.

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A curva de teus quadris assemelha-se a um colar, obra de mãos de artista; teu umbigo é uma taça redonda,

cheia de vinho perfumado; teu corpo é um monte de trigo cercado de lírios; teus dois seios são como dois filhotes gêmeos de uma gazela teu pescoço é uma torre de marfim; teus olhos são as fontes de Hesebon junto à porta de Bat-Rabin. teu nariz é como a torre do Líbano, que olha para os lados de damasco; tua cabeça ergue-se sobre ti como o Carmelo; tua cabeleira é como a púrpura, e um rei se acha preso aos seus cachos.171

A narrativa segue um caminho ascensional. Soropita inicia por reafirmar seu

amor por Doralda. Logo depois, apresenta a vida pregressa e preocupante da mulher,

embora ele inicialmente negue tal preocupação, dizendo que tanto ele quanto ela

concordaram em enterrar o passado. Mas a questão da prostituição vira um tema cada

vez mais presente em sua narrativa, aumentando a recorrência a partir do encontro com

Dalberto. Brota a semente da insegurança de que o passado de Doralda venha à tona. A

culminância do movimento ascensional se dá primeiro com o desnudamento total da

mulher, quando ele a faz se despir e falar sinceramente de sua vida no meretrício,

assunto que antes era tabu entre eles. Depois, com a explosão de violência em que ele

ameaça de morte o negro Iládio, que significava, para Soropita, um símbolo dos homens

que possuíram Doralda, embora nem a conhecesse.

Ainda que tenhamos partido da relação amorosa entre Soropita e a esposa, vale

ressaltar que, em geral, a obra de Rosa tem sempre este aspecto ascensional. A vida se

compraz em desarrumar tudo, para revelar a completude existencial.

171 Cântico dos Cânticos, 7, 1-2-3-4-5

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5.1 – Apenas comparações

“Dão-lalalão” é uma narrativa essencialmente sobre o amor. É o sentimento

alimentado por Doralda em Soropita que norteia toda a narrativa. Os trechos de

discurso indireto livre mostram que todas as ações deste sertanejo têm a mulher como

causa e fim. Trata-se de uma narrativa de puro realismo psicológico.

Ao refletir ao longo da estrada acerca da oposição existente entre o universo

árido do trabalho, presente na luta cotidiana, e o universo doméstico do amor e do

prazer, presente na figura da mulher Doralda, a personagem vai embrenhando-se rumo

ao re-conhecimento de si mesma.

Esta novela é um exemplo indiscutível de que o amor ocupa, na narrativa

rosiana, um papel central e positivo, aproximando-a da visão romântica. Em

contrapartida, há um abismo entre o enfoque de tal sentimento em Rosa e a

dessacralização machadiana deste, a animalização naturalista, ou ainda o pessimismo

antológico de Graciliano Ramos.

Doralda é posta por Soropita em um patamar superior aos dos outros seres e a

ele mesmo, que praticamente se coloca numa posição de adoração. O próprio nome da

personagem (quando já casada) remete a este aspecto semântico: Doralda aproxima-se

de Adorada. No entanto, seu amor não é apenas espiritual; tampouco Doralda, ainda

que afastada da prostituição, devota-lhe um amor casto. O amor entre ambos é

plenamente realizado, num Eros combinado que integra os aspectos espiritual e físico.

Nisso há uma oposição básica ao Romantismo, que centraliza seu enfoque apenas no

aspecto espiritual.

O par Soropita e Doralda remete como contraste a Lúcia e Paulo, de Lucíola. O

ponto central, decisivo deste contraste é que não há, em Guimarães Rosa, a oposição

entre o amor físico e espiritual, como nos românticos. Em ambas as narrativas a mulher

amada tem uma história de prostituição que representa um entrave ao relacionamento

perfeito e proporciona a complicação da narrativa.

Como a literatura de Guimarães Rosa prima pela afirmação da vida, e neste caso

o amor incondicional a representa, Soropita casou-se com Doralda na igreja e no

cartório, crendo em sua restituição à vida de mulher honrada.

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Paulo, no entanto, nunca assume de fato Lúcia: não se casa com ela, não a

assume publicamente e, mesmo que não seja sua a decisão, nunca mais realiza a

conjunção carnal após afastá-la do ambiente em que se prostituía.

Isolar a mulher é, aliás, uma atitude comum a estes que, de uma forma ou de

outra, se unem a ex-prostitutas. Soropita chega a considerar a hipótese de se afastar

ainda mais do convívio social, trocando suas terras pelas do Seo Zosímo, num lugar

afastado, chamado Campo Frio:

Jõe Aguial, Seo Zosímo, Campo Frio. Por Doralda, não, pois ela mesma estava em acordo que eles mudassem para lá, para aquele mundo-longe do Goiás, nem ela perguntava bem por que razões principais ele preferia negociar aquela barganha de terras. – “Nunca vi o céu de lá, o chão de lá... Com você, Bem, eu quero ir, eu vou. Pois vamos...” (CB, p. 338)

Lúcia também passa a levar uma vida frugal, numa afastada chácara em Santa

Teresa, afastada dos bailes e do glamour da Corte. Ambas também têm seus nomes

modificados, como símbolo de uma nova vida. Lúcia volta a usar seu nome de batismo,

de antes da prostituição: Maria da Glória. Já Doralda, quando no meretrício, era

chamada de Sucena, quando não apelidada de “garanhã” ou “Dãdã”.

Paulo martiriza Lúcia, chega a abandoná-la, faz-lhe várias acusações injustas;

em contrapartida, Soropita planeja matar qualquer um que descubra o passado

desonrado de Doralda, mas afasta qualquer possibilidade de magoar ou causar dor à

mulher.

O amor em Rosa é gratificante, misto de alegria espiritual e erotismo. Embora

as bases filosóficas deste autor divirjam das de Jorge Amado, os dois chegam a um

ponto em comum: a alegria, constituída dia-a-dia, e não gratuita; a alegria como traço

ético de afirmação, como decisão ética moral do indivíduo. Tais autores abordam temas

concordantes por diferentes vias.

Já a visão romântica, presente em Lucíola traz um erotismo marcado pela

conspurcação, imbuído da visão religiosa, trágica. Não há um aspecto positivo de

encontro com a vida no sexo, envolto sempre na degradação. As personagens, neste

caso, têm uma relação erótica culpabilizada. Esta última análise comparativa é bastante

elucidatória, pois tais obras apresentam uma relação inicial semelhante, com um

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desenvolvimento diverso, a partir do comportamento também divergente das

personagens.

5.2 . Amor e erotismo em “A estória de Lélio e Lina”

Guimarães Rosa, em seu universo ficcional, criou muitas vezes narrativas

passíveis de serem interpretadas de formas diversas, como um poliedro de mil faces. Na

obra Corpo de Baile é assim: há novelas perfeitamente inteligíveis num campo de

significação realista, mas num campo simbólico, é possível identificar um segundo

significado riquíssimo. O primeiro pode parecer suficiente a um leitor ingênuo, mas o

segundo com certeza apresenta-se muito mais fascinante.

O conceito de erotismo, amor e sexualidade, encontrado na obra A dupla chama:

amor e erotismo, de Octávio Paz, serve perfeitamente a este estudo. Ele considera que:

sexo, erotismo e amor são aspectos do mesmo fenômeno, manifestações do que chamamos vida. O mais antigo dos três, o mais amplo e básico, é o sexo. É a fonte primordial. O erotismo e o amor são formas derivadas do instinto sexual: cristalizações, sublimações, perversões e condensações que transformam a sexualidade e a tornam, muitas vezes, incognoscível.172

E filia sua concepção de amor à de Platão, que bem nos serve de guia neste

ponto de nosso estudo: “ Devemos a Platão a idéia do erotismo como um impulso vital

que ascende, degrau por degrau, até a contemplação do bem supremo”173.

O amor na novela A estória de Lélio e Lina pode ser interpretado de uma

maneira geral como a ânsia metafísica de totalidade, no caso, a busca de Lélio, o

protagonista, por essa totalidade.

Esta busca, seja através do amor ou não, já fora anunciada na epígrafe geral da

obra Corpo de baile, no conteúdo do folclórico “Côco de festa” .

172 PAZ, 1999, p. 15.

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Da mandioca quero a massa e o beijú, Do mundéu quero a paca e o tatu; da mulher quero o sapato, quero o pé!

quero a paca, quero o tatu, quero o mundé... Eu, do pai, quero a mãe, quero a filha: também quero casar na família. Quero o galo, quero a galinha do terreiro, quero o menino da capanga do dinheiro. Quero o boi, quero o chifre, quero o guampo; Do cumbuco do balaio quero o tampo. Quero a pimenta, quero o caldo, quero o molho! eu do guampo quero o chifre, quero o boi. Qu’ é dele, o doido, qu’ é dele, o maluco? Eu quero o tampo do balaio do cumbuco... (CB, p. 5)

O que poderia parecer uma ingênua música folclórica apresenta-se como um

texto eivado de significados que revela relação intertextual com a maioria dos contos e

novelas da obra. Mostra a ânsia de posse da totalidade, do absoluto; o eu- lírico quer

tudo: o conteúdo e a própria caixa (até a tampa), seja o que for (“balaio ou cumbuco”).

Tal interpretação foi afirmada pelo próprio Guimarães Rosa na correspondência com

seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri.174

A estória de Lélio e Lina” é a narrativa da busca de Lélio pela completude.

Em princípio, quando Lélio chegou à fazenda do Pinhém, o que buscava era

uma ‘divisão’ das coisas. Tencionava fugir do todo rotineiro de antes:

Antes, nos outros lugares onde morara, tudo acontecia já emendado e envelhecido, igual se as coisas saíssem umas das outras por obrigação sorrateira – os parentes, os conhecidos, até os namoros, os divertimen- tos, as amizades, como se o atual nunca pudesse ter uma separação cer- ta do já passado; e agora ele via que era dessa quebra que a gente preci- sava às vezes, feito um riachinho num ribeirão ou rio precisa de fazer barra. (CB, p. 157)

Pensando desta forma, Lélio faz do amor uma das partes do seu desejo. Só não

percebe que através desta divisão, encontra-se sempre insatisfeito, e inicia uma busca

totalmente contrária àquela a que se propôs.

A personagem passa a diferenciar o amor carnal (“descido no comum da vida” ,

“querendo outras mulheres, de carinhos fortes” (CB, p. 161)) do amor espiritual (Sinhá

173 PAZ, p. 24.

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Linda), mas precisa dos dois para satisfazê-lo. Não se trata de uma simples dicotomia,

já que realmente há diferentes faces do amor, mas Lélio tem para elas sempre objetos

diferentes, e é como se buscasse todas essas faces num só objeto. Daí vem a

insatisfação com cada uma das mulheres com que se envolve, até chegar a Rosalina.

Num primeiro aspecto, aparece a mulher vista de forma pura, angelical, quase

santificada (“adorando como a uma santa”(CB, p. 175)), numa idealização próxima ao

do amor trovadoresco, em que o homem serve à amada inacessível. Neste caso ,ele

deixa claro que a interdição é, principalmente, a desigualdade social. Como nas

cantigas medievais, Lélio em sua narrativa dá diversos nomes à amada, como Sinhá

Linda e Mocinha; mostra subserviência, respeito, vassalagem, servindo à sua dama

(admira seus pés, e traz doce de buriti, que ela repudia e desdenha).

Mas também este amor acaba por não satisfazer Lélio, já que logo depois da

‘oração’ em que compara Sinhá Linda a uma santa, vem a cobiça carnal, representada

por Jiní (CB, p.175). Eis aí uma das tentativas de completude em duas mulheres

diferentes.

Quem sinaliza a incompletude do amor de Sinhá Linda para Lélio, é Rosalina,

numa das vezes em que tenta mostrar-lhe que é necessário que haja unificação dos

diferentes aspectos do amor:

‘Modo outro, meu Mocinho, eu vejo que isso é um madras-

tio que você arranjou para si, nessa Mocinha de fantasma...’ Lélio não respondeu. E ela foi dizendo: ‘Do que estou sabendo, por trás de você, pode ser que essa moça nem seja boa, nem saúde verdadeira de mulher ela não demonstra ter. Escuta: mulher que não é fêmea nos fogos do corpo, essa é que não floresce de alma nos olhos, e é seca no coração... Tira isso. Te esconde do à-vez da tetéia coitadinha, que ela nunca vai saber o que a vida é. Pede a você mesmo para ir se esquecendo dela aos poucos, meu Mocinho... (CB, p. 200)

Deduz-se que esta falta de sexualidade sinalizada por Lina em Sinhá Linda é

representada pela recusa ao doce de buriti, que, como veremos, no tocante à simbologia,

representa o desejo sexual masculino, sendo o buriti, na maioria das novelas e contos de

Corpo de Baile, símbolo de virilidade ( tal fato é mais claramente exposto na última

novela da obra, “Buriti” ).

174 ROSA, s/d: p. 74

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Como este amor trovadoresco de Lélio fica no nível do sonho, ele representa

uma fuga, o que também é traduzido por Rosalina: “Só porque ela está tão fora de

alcances, tão impossível, que você tem licença de pensar nela sem a necessidade de

pensar logo também no que você é e não é, no que você queria ser...” (CB, p. 16)

O protagonista é aos poucos levado a refletir sobre sua própria identidade, a

crescer, e a direcionadora destas transformações é Rosalina, com seus comentários

sobre o amor. O amor é o caminho através do qual Lélio vai pouco a pouco

conquistando a sua maturidade. Essa é uma das possibilidades de leitura do

relacionamento enfocado, pois as várias experiências doamor constituem um caminho

através do qual Lélio vai aos poucos descobrindo e conquistando a plenitude do amor,

que só alcançará no final, com D. Rosalina.

Opostas e complementares a este lirismo representado pelo amor à Sinhá Linda,

vêm a violência e a brutalidade do amor carnal, provocadas pela mulata Jiní.

Quando travou conhecimento com Jiní, vários vaqueiros já haviam comentado

sobre ela, e seu primeiro olhar já fora malicioso. Linda, cobiçada e sensual, todos a

‘viam’ com o sexo; olhavam olhos, pernas, ‘as partes’ . Toda a apresentação já indicia a

metade oposta à Sinhá Linda, e durante algum tempo Lélio vai crer que Jiní é seu

‘ todo’ .

As descrições dos encontros, de fato, misturavam sensações sinestésicas, todas

muito sensuais:

Nem ele pôde abrir nem ouvir palavra nenhuma, ela se abraçou, se agarrou com ele, era um corpo quente, cobrejante, e uma bo-

ca cheirosa, beiços que se mexiam mole molhados, que beijan- do. Ali mesmo, se conheceram em carne, souberam-se. E dali

foram para a casa, apertados sempre, esbarrando a cada passo para o chupo de um beijo, e se pegando com as mãos, retremiam, respiravam com barulho, não conversavam. (CB, p. 202)

Mas toda a empolgação de Lélio, rapidamente se lhe afigura estéril quanto ao

caminho de completude que, inconscientemente, busca. Independente de toda a culpa

que sentia em relação ao marido de Jiní, mas pela própria relação que travou com a

mulata, já se sentia insatisfeito. O amor unicamente sexual também não o satisfazia; era

preciso que houvesse os dois pólos. Erotismo e amor são diferentes da mera sexualidade

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animal. Embora a sexualidade seja o ponto de partida, se for encarada como o ponto de

chegada, fim em si mesma, é estanque. A consciência da incompletude vem também

numa linguagem crua: “Não via o mingo amor, não sentia que ele mesmo fosse para

ela uma pessoa, mas só uma coisa apreciada no momento, um pé de pau de que ela

carecesse.” (CB, p. 203)

Jiní possuía, então, o que Octávio Paz denomina “a chama primordial” 175, que é

a sexualidade, mas não despertou em Lélio o amor, que seria uma sensação mais

requintada, derivada desta primeira e do erotismo. A sexualidade apartada de seus

derivados está próxima do conceito pejorativo de sexo dado por Paz: “o sexo é

subversivo: ignora classes e hierarquias, as artes e as ciências, o dia e a noite; dorme e

só acorda para fornicar e voltar a dormir” 176 Este aspecto é corroborado pelo fato de

Jiní relacionar-se com outros homens, além do marido e de Lélio, concomitantemente.

Seu desejo não é erótico, mas apenas sexual; ela vive num eterno cio.

Lélio, em sua ‘ falta’ inconsciente, procura sempre a casa de Lina para sentir-se

completo, trazendo a satisfação carnal para completá-la com o que não encontra em Jiní:

a conjunção espiritual. Faz isso também quando pensa em Sinhá Linda, ou quando vem

da casa das ‘ tias’ . Essa aspiração à completude é o início do reconhecimento de Lina

como a sua metade, o início do processo de ascensão.

Aliás, ‘as tias’ também representam uma de suas tentativas de preencher o vazio

através da sensualidade. Só que Lélio não se envolve com elas tanto como com Jiní.

Neste dois tipos de amor sensual que se apresentam na narrativa há uma

diferença no aspecto como essas mulheres tratam as relações. As ‘ tias’ exercem o

princípio do amor-alegria, não degradado, tentando satisfazer a todos, como numa

demonstração de amor ao próximo. Já Jiní é uma das poucas personagens rosianas de

erotismo degradado, narcisista, fechado em si próprio (repare que a certa altura Lélio

reclama que ela nem ao menos fala com seu parceiro). Nela, a sexualidade é vista de

forma mesquinha, tanto é que seu desfecho é com um rico fazendeiro, com quem vai

embora, superior e soberba. Não se trata, portanto, do amor desinteressado das ‘ tias’ .

A relação com Jiní é, portanto, mais uma parte da ‘passagem’ de Lélio, quando

ele descobre que sexo é vida, beleza, cor, mas não é tudo.

175 PAZ, 1999, p. 7 176 PAZ, 1999, p. 17

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Conclui-se que há um processo progressivo de crescimento, já que ao resolver

deixar a fazenda do Pinhém, Lélio descobre que sua busca acabou não sendo pela

divisão (“as mulheres para se ver e casar, e as mulheres no simples, para as

necessidades” (CB, p. 161)), como foi citado no início deste tópico, mas sim o oposto.

O Todo original é sua verdadeira meta, e quem vai paulatinamente auxiliando neste

caminho de reconhecimento é Lina.

O ponto máximo, em que Lélio admite a real necessidade, é quando atinge a

maturidade, como se aquele período no Pinhém significasse exatamente uma passagem,

travessia: “Então ele ia; ia. Tinha vivido, extrato, no Pinhém demais, em tempo tão

curto. Ali não cabia. Aquele lugar o repartia em muitos, parava como uma

encruzilhada.” (CB, p. 236)

A modificação radical no interior de Lélio é mostrada exatamente neste trecho,

já que diz exatamente o contrário do que expressara na sua chegada ao Pinhém. Após

atingir a ‘quebra’ que desejava, ele toma consciência de que ela não é satisfatória.

O final da novela é significativo quanto ao desejo de totalidade: “Ele a ela:

“ É nada?” E ela a ele: É tudo. E vamos por aí, com chuva e sol, Meu-Mocinho,

como se deve...” (CB, p. 238).

A união dos opostos, mostrada no trecho acima, reflete bem esta intenção,

sendo mais significativa ainda por estar numa das últimas falas do casal Lélio e Lina.

Estes opostos não estão apenas no campo semântico chuva/sol e nada/tudo; estão

também nas próprias personagens, se levarmos em consideração que a todo momento

chamava-se a atenção para a disparidade entre as idades dos dois, seja no chamamento

de Rosalina (“meu Mocinho”), seja na implicância do filho de Rosalina, Alípio, com o

relacionamento dos dois. A completude se dá na união dos opostos complementares.

O papel central de Rosalina A estória de Lélio e Lina está no fato de que é ela

quem desencadeia o processo de descobrimento protagonizado por Lélio. Ela

representa para Lélio algo próximo do que Dito representa para Miguilim em “Campo

Geral” : são os desencadeadores das percepções iniciais, a sabedoria que faz com que

Lélio e Miguilim, respectivamente, tomem contato consigo próprios e busquem ou

encontrem a tal totalidade.

Lina representa bem a idéia de amor-alegria. Tem sempre um ensinamento,

compreende tudo sem ódios ou mágoas e está sempre com um sorriso estampado no

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rosto. O carinho com que trata “seu Mocinho” nunca é ‘arranhado’. Os conceitos que

profere sobre o amor dão ao sentimento um caráter filosófico e poético.

Em Campo Gera,l Miguilim passa a ver o mundo com novos olhos a partir da

morte de Dito. Do mesmo modo, em A estória de Lélio e Lina, desde que trava

conhecimento com D. Rosalina, Lélio começa a ver o mundo com olhos novos. Esta

visão inicial faz com que Lélio veja Lina como uma moça e experimente uma sensação

de imobilidade neste encontro (“Lélio não se sentia” ) :

E, vai, a solto, sem espera, seu coração se resumiu: vestida de

claro, ali perto, de costas para ele, uma moça se curvava, por pegar alguma coisa no chão. Uma mocinha. (..) E – só a voz – baixinho no natural, como se estivesse conversando sozinha, num simples de delicadeza: - “ ...goiabeira, lenha boa: queima mesmo verde, mal cortada da árvore...” - mas voz diferente de mil, salteando com uma força de sossego. Era um estado – sem surpresa, sem repente – durou como um rio vai passando (...) Lélio não se sentia, achou que estava ouvindo ainda um

segredo (...) e mais ele mesmo nunca ia saber, nem recordar ao vivo exato aquele vazio de momento.” (CB, p. 188)

Neste trecho, a ‘visão de primeira vez’ , extática, está diretamente ligada à

descoberta do amor. Observe-se que Lina é vista por Lélio como diferente de todas as

outras pessoas (“voz diferente de mil” ), e expressão semelhante pode ser encontrada no

corpo da narrativa: “(...) Falava de velha para moço, quase brincalhã. Abria os braços,

mas sem estouvamento nenhum. Era diversa de todas as outras pessoas.” (CB, p. 188)

Os trechos mostram que Lélio encontrou o que não encontrara em nenhuma

outra pessoa.

Há, a serviço da amenização do interdito da diferença da idade, o fato de que

Rosalina mostra entender de homens, seja quando fala do primeiro marido, Izaque (p.

192), ou ainda quando fala dos homens com quem “dançou” na juventude:

Você devia de ter me conhecido era há uns quarenta anos, dan- çar quadrilha comigo... Então, você havia de me chamar de Zá-

lia: como o Major João Pedro, o Doutor Guilherme, o Nhô Eustáquio pai de seo Senclér, o André Faleiros, pai de meu filho Alípio, o Anselmão, o João Toá, o Bóque... (CB, p. 191)

O erotismo nesta novela aparece várias vezes através de metáforas, sendo apenas

descrito de modo mais direto, quando diz respeito ao relacionamento entre Lélio e Jiní.

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Isso se explica pelo fato de Jiní desenvolver apenas uma sexualidade mais próxima à

animal, o que a distancia da forma do erotismo, segundo o conceito de Octávio Paz: “O

erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia, representação. O erotismo é

sexualidade transfigurada: metáfora.”177

Alguns símbolos anunciam o amor de Lélio e Lina, como o papagaio

(anunciando que Lina quer amor), o amor ao entardecer (p.198), o doce de mangabas

de-vez (que será abordado mais à frente) e o vocativo Meu Mocinho para se referir a

Lélio.

A imagem de “um gavião gritando por outro” (CB, p.188) é apresentada

exatamente quando Lélio, não satisfeito com as ‘ tias’ , sai e encontra pela primeira vez

Dona Rosalina. A busca do gavião é a mesma de Lélio, que encontrará sua metade em

Rosalina. Tem o deslumbre de encontrar “o outro” ao vê-la de costas. Mas, como tudo

em sua vida, não foi capaz de perceber o que ela representa. Ele se deixa enganar pela

aparência (velhice) e não ouve sua intuição, que leva à essência de Rosalina: juventude,

mocidade. Destas últimas características, é que vem o simbolismo da cor verde,

sempre presente nas roupas de Rosalina ( o lenço verde na cabeça quando encontra

Lélio pela primeira vez, a roupa e o chapéu verdes quando deixa o Pinhém,

acompanhando-o). Esta cor significa verdor, início, esperança e juventude (“Ela ia no

seu cavalo de silhão, o Mariposo, capaz de todos os passos, e estava com um vestido

verde-escuro, chapéu do mesmo pano veludo, com uma grande pena de pássaro presa

na fivela(...)” - (CB, p. 229)

Ainda sobre o gavião, podemos encontrar no Dicionário de Símbolos algo

significativo:

Em nossa linguagem, o gavião é símbolo de usura, de rapacidade, assim como a maioria das aves da mesma espécie, munidas de gar- ras aduncas. E pelo fato de a fêmea ser mais forte a mais hábil do que o macho, o gavião simboliza também (na França) o casal em que a mulher é quem domina (no Brasil: indivíduo esperto, vivo, fino; propenso a conquistas amorosas). Ave caçadora e agressiva, ele também designa com freqüência o pênis. Na China antiga, foi um gavião que, associado à tartaruga, segun- do o Cho-Ching, ensinou a Ruen a construção dos diques que de- veriam impedir o transbordamento das águas do dilúvio.178

177 PAZ, 1999, p. 12. 178 CHEVALIER & GHEERBRANT, 1996, p. 792

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Sob este aspecto, pode-se ressaltar também a simbologia do gavião na França,

sendo Lina de uma personalidade mais forte que Lélio, que depende desta visão para

‘ traduzir-lhe’ o mundo.

São também utilizadas simbologias para representar o amor sexual feminino e o

masculino. O doce de buriti (a que já nos referimos) representa o amor sexual

masculino, sendo o buriti uma árvore representativa da virilidade. Aparece na recusa de

Sinhá Linda a Lélio, o que se torna mais significativo quando Rosalina, para abrir os

olhos deste, esclarece que a Mocinha de Paracatú não era “Fêmea dos fogos do corpo” .

A recusa do doce está então ligada à recusa sexual.

Num segundo momento aparece o doce de mangaba, como representativo do

amor sexual feminino. Talvez para não modificar o tom simbólico da narrativa e

agredir o leitor, é assim representado o amor de Lina sendo oferecido a Lélio. Ela vai

preparando ‘o doce’ lentamente. E a simbologia fica mais evidente ao dizer que é “doce

de mangaba de vez” , ou seja, madura, assim como a própria Rosalina. Ela diz que este

é o melhor, exatamente quando Lélio está enfeitiçado pela sexualidade de Jiní:

A velhinha estava fazendo doce de mangabas: Você vai pro- var, depois. O doce melhor que tem nesse mundo...”As manga- bas de-vez, muitas mãos, muitos dias, ferventadas, no tacho de

cobre. Com espinhos de laranjeira e palitos de taquara, ela continuava a crivar, uma a uma, devagarinho, para as livrar do visgo borrachento. Lélio olhou, por um momento teve pena de si mesmo, não cabia naquele sossego” (CB, p. 190)

Livrar as mangabas do seu visgo seria o mesmo, neste caso, que livrar Lélio

da sexualidade sem frutos de Jiní, do visgo da mulata.

A dificuldade da busca de Lélio por sua ‘metade’, a penosa ascensão, é

simbolizada por uma reiteração da imagem de um morro/serra muito íngremes, em que

nunca se chega ao topo. Essa figura aparece muitas vezes nas canções de Pernambo. É

interessante o fato de Octávio Paz utilizar a mesma metáfora para simbolizar a visão

platônica do amor: “ À medida que avançamos (no discurso de Diotima), descobrimos

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novos aspectos do amor, como alguém que, ao subir a colina, contempla a cada passo as

mudanças do panorama.” 179

Lélio se une a Lina após descobrir que ela forma o seu “Todo”, o fim de sua

busca. Esta leitura estaria de acordo com teses defendidas por Bataille e Octávio Paz,

segundo os quais haveria uma união entre sexualidade, o amor e o sagrado. Segundo

Paz, “ o erotismo é antes de tudo e sobretudo sede de outridade. E o sobrenatural é a

radical e suprema outridade.”180 Além disso, a conjunção Lélio-Lina está mais ainda

ligada ao erotismo religioso se é levado em conta o caráter de interdição sexual ditado

pela diferença de idade. Bataille nos diz: “No erotismo religioso se inverte

radicalmente o processo sexual: há a expropriação dos imensos poderes do sexo em

favor de fins distintos ou contrários à reprodução” 181 A renúncia à sexualidade carnal é

algo divino.

A visão religiosa do amor consiste na sua raiz de religar (do lat. RELIGARE),

tornando contínuo o ser. Sendo assim, como nos diz também Bataille, “a plenitude

ansiada não é somente uma característica saliente da sensualidade do homem, mas

também da experiência dos místicos.”182

Lélio e Lina encontram-se fora do plano humano, das impossibilidades

concretas. A busca final de um pouso para os dois sugere uma integração harmoniosa,

que significa um coroamento, a completude, a consagração do amor.

Rosalina não é para ser lida em termos biológicos, psicológicos ou sociais. Ela é

a vida, unida em suas duas metades: juventude e maturidade. Integra o sonho: a

sabedoria da velhice e o vigor, o arroubo da mocidade. É uma figura simbólico-mítica.

Lélio e Lina precisam ser lidos como um casal mítico e não realista.

179 PAZ, 1999, p. 44 180 PAZ, 1999, p. 20 181 BATAILLE, 1987, p. 9 182 BATAILLE, 1987, p. 224

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5.3 – O amor erótico em “Buriti”

“Buriti” é uma narrativa que aborda quase que exclusivamente o amor erótico,

sensual. O ponto de partida para que se despertem todas as emoções que já estão

latentes é a chegada de Miguel.

A novela é construída a partir de dicotomias que, aos poucos, vão sendo

resolvidas, até que o final aponta para uma luminosidade. Um exemplo disso é que

Guimarães Rosa leva os encontros de Liodoro e Lalinha ao máximo do jogo erotismo X

repressão. Um outro exemplo está inserido em duas personagens por natureza

dicotômicas: Glória, que representa a vida, e Maria Behú, a morte.

O plano da verossimilhança caminha lado a lado com o simbólico: as mulheres

da cozinha, por exemplo, só tem sentido se relacionadas a este último, assim como o

Buriti-Grande e o Brejão-do-Umbigo, que metaforizam o sexo masculino e o feminino,

respectivamente.

Nesta obra, o caminho para a luminosidade, para a liberação dos aspectos

reprimidos e repressores é demonstrado em várias relações. Os barulhos que o chefe

Zequiel ouve o dia inteiro cessam, apontando para a sua cura: acaba-se a dicotomia

noite/dia e inicia-se um novo dia; dá-se o encontro de Liodoro e Lalinha e também a

morte de Behú, além de a narrativa apontar para a realização plena de Glória, com a

chegada de Miguel. Este último relacionamento, mais do que todos, está imbuído do

Eros complexo, total, de que vimos falando.

Durante a novela, percebe-se que Eros aqui apresenta-se como uma força difusa

que caminha para a consumação positiva. Assim como o Buriti pertence à floresta, o

sexo pertence à natureza humana e a sua busca é a busca da vida, da alegria, da

completude. A necessidade de iniciar tal busca, aliás, é verbalizada pelo narrador ao

refletorizar Lalinha, antes da chegada de Miguel, quando toda a sexualidade ainda

estava reprimida: “Ali nada se realizava, e era como se não pudesse manar – as pessoas

envelheceriam, malogradas, incompletas, como cravadas borboletas; todo desejo

modorrava em semente, a gente se estragava, sem um principiar; num brejo.” (CB, p.

469).

O erotismo, neste narrativa, é, portanto, um ritual do qual participam

personagens, natureza e objetos, como o monjolo, que adquirem sentido simbólico e

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representam a própria essência da vida. Aquelas que se opõem a esta essência, que se

colocam contrárias ao movimento erótico, são anuladas: Maria Behú morre e Dona-

Dona enlouquece.

Sobre a procura da complementaridade nos diz acertadamente José Maurício

Gomes de Almeida:

Tal procura, nem todas conseguem leva-la a termo neste mundo, talvez porque, como Maria Behú (ou o Dito, de “Campo Geral” , atendam ao chamado distante de uma “antiga verdade” , escolhidas para “os claros encantamentos do sofrer” ; mas mesmo estas não renegam, em momento algum, o valor incomensurável da vida-busca. Outras, mais felizes – Maria da Glória e Miguel; Lalinha e Iô Liodoro - , ao deixarem-se conduzir pela força universal de Eros, acabam, depois de muito errarem, por encontrar as hastes perdidas, completando-se: cabe ao amor, entendido aqui em seu sentido mais abrangente, o milagre deste encontro; daí o sentido extremamente afirmativo que o erotismo recebe na novela, como fonte de um autêntico ritual da vida. Longe da negação romântica e da extrema banalidade e degradação a que o reduziu grande parte da cultura contemporânea, o erotismo se alça em Guimarães Rosa a uma dignidade quase mística, caminho necessário para a plenitude da experiência amorosa e parte inseparável de sua realização.183

5.4 – A permanência

Em todas as narrativas rosianas que aqui consideramos para desenvolver o tema

do amor há a correlação, ou melhor, a permanência dos opostos: Soropita vive o

paraíso conjugal e o inferno de ‘os outros’ descobrirem o passado de Doralda, além de

ter em sua casa a experiência sexual da prostituta aliada à correção de uma devotada

esposa; a juventude de Lina está contida na sua velhice; Reinaldo, de Grande sertão:

veredas, contém Diadorim, e Riobaldo contém em si só três amores de natureza diversa.

“Buriti” , além de, no final conjugar o amor idílico ao carnal, na relação entre Miguel e

Glória, contém, na própria narrativa, dois aspectos que se interpenetram: um

‘subterrâneo’, que não se verbaliza racionalmente, e outro mais exterior – o mundo da

natureza, simbólico, e o mundo humano, da realidade visível.

Sendo assim, não só a vida, mas também o amor é uma travessia: este, uma

travessia do amor carnal ao cósmico, em que o percurso não se apaga.

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6 – CONCLUSÃO

Os escritores apresentam as relações sociais de modo que representem sua visão

de mundo e, entre elas, recebem papel de destaque as relações amorosas, por sempre

ocuparem um dos focos principais do imaginário social e, portanto, da atenção do leitor.

Nas obras analisadas, portanto, é em torno de casais que são tecidos os conflitos centrais

– e o amor ou a falta dele – é, invariavelmente, o motivo.

Mesmo em se tratando do mesmo período, da mesma tendência literária, há

maneiras diversas e até contrapostas de apresentar a redução, a exaltação ou até a

anulação do sentimento amoroso na ficção. A personalidade do autor ou as influências

literárias ou sócio-políticas são algumas das razões para tal multiplicidade. Assim, em

função de variadas exigências, o amor sofre tratamentos distintos.

O motivo era tradicional nos românticos, como não o será nos naturalistas ou em

modernistas como Graciliano Ramos. Nesta época, o amor imperava, com uma

exacerbação de demonstrações sentimentais traduzidas em desmaios, suspiros e muito

choro.

O Romantismo é, sem dúvida, a tendência literária onde mais se evidencia o

tema aqui estudado, visto que, no Brasil, os anseios e aspirações de liberdade, o

predomínio do mundo interior, a escolha individual, o mundo ideal são sempre

traduzidos pelo amor. É este o alicerce de todos os romances românticos nacionais.

Alencar, como típico romântico, cria em redor do sentimento amoroso uma

atmosfera de drama social, humano e moral, principalmente em Lucíola e em Senhora.

O tema é importantíssimo nos romances urbanos do autor, pois seu mundo narrativo

gira em torno de namoros e casamento, excluindo trabalho, estudos ou política. Neste

mundo, o amor ajuda a perfazer os desfechos ideais e os conflitos só realçam o triunfo

final da manutenção do sistema. Apontou-se que a ficção romântica, embora retrate

com fidelidade muitos aspectos da sociedade, nunca abandonou a idealização do

sentimento amoroso e de seus heróis e heroínas.

Viu-se também que a literatura alencariana, no que diz respeito ao ambiente

social em que se inserem os personagens, foge um pouco à caracterização típica do

estado de alma ou temperamento romântico. Este último procura idealizar a realidade, e

183 ALMEIDA, 2001, p. 32

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não reproduzi-la, mas os romances urbanos de Alencar, principalmente os que ganham

destaque nesta tese, não só retratam com fidelidade, como também criticam costumes

sociais do século XIX.

Os romances românticos apresentam-se num tom freqüentemente declamatório,

melancólico, numa linguagem cheia de metáforas e hipérboles, em que a descrição é um

dos elementos fortes na elaboração dos quadros onde se processam as ações. Quanto à

temática, as obras deste período exprimem o destino do indivíduo rejeitado pela

sociedade, os amores insolúveis e as paixões que só encontram refúgio na morte.

Como algumas dessas obras, a exemplo de Lucíola, exprimem sentimentos e

idéias particulares sobre o homem e a sociedade, nascem narrativas de cunho

marcadamente social e de costumes, e a maneira como o amor se dá, bem como os tipos

de obstáculos que lhe são interpostos auxiliam na formação deste tipo de panorama.

Em Iracema, o amor tem valor de símbolo, visto que representa a atração entre

colonizado e colonizador; já em Lucíola e em Senhora, está a serviço do

questionamento de costumes sociais. Os romances do século XIX reproduzem a cultura

que via no matrimônio uma relação comercial, legitimada ou não pelo sentimento

amoroso. Em Alencar as relações são idealizadas, portanto marcadas pelo amor; já em

machado de Assis, tais relações não são usualmente permeadas por esse sentimento.

De qualquer maneira, a exposição das “mercadorias humanas” era feita nos

salões de baile e nas casas de família, onde tinham lugar reuniões em que se exibiam os

dotes e a beleza das moças casadoiras, em busca de uniões rentáveis. Matrimônio,

portanto, na prosa literária do século XIX, assim como na sociedade desse tempo, não

era primordialmente uma questão de amor, mas de interesse sócio-econômico.

Alencar reproduz alguns aspectos do sistema social, respeitando sempre os

valores sancionados pela sociedade em relação ao casamento. Prova disto é Lucíola,

que, apesar do amor entre Lúcia e Paulo, não apresenta o matrimônio entre os dois em

seu enredo, devido à impureza da protagonista. É lógico que a forma de vida e de

sociedade é retratada nos romances urbanos. Já nos indianistas, por exemplo, como

Iracema, não há matrimônio, pois embora a “noiva” seja virgem, é uma selvagem, não

cristã. Mas o branco cristão também não a conspurca, só ocorrendo o ato sexual porque

ela lhe dá uma bebida alucinógena. Caso a violentasse, Alencar estaria pondo a perder

toda a idealização de colonização pacífica a que se propõe o Romantismo.

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A questão em Iracema não é, portanto, a do matrimônio, mas a da miscigenação

que deu origem ao povo brasileiro. Nessa obra, o amor funciona como parte da

expressão do nacionalismo literário romântico no Brasil, aproximando culturas e, numa

leitura metonímica, o consórcio entre o povo europeu e a terra brasilis.

Enquanto Alencar sempre associa os interesses econômicos ao casamento,

Machado de Assis denuncia, através de suas personagens que não há trama romântica

que persista quando o que está em jogo são os interesses econômicos. Se por um lado

Alencar “salva” a instituição do casamento, Machado denuncia a sua hipocrisia.

É interessante perceber como as visões do amor podem ser tão contrastantes,

como em Machado e em Aluísio Azevedo, mesmo estando as obras inseridas no mesmo

contexto histórico. O capítulo que enfoca o amor na época realista é um dos que

comprova bem claramente a tese aqui defendida, na medida em que a vertente

naturalista adota o mecanicismo determinista, e Machado de Assis, a tendência

psicologizante, para efetuarem a desmitificação do amor romântico. Machado rompeu

com as limitações da escola dominante, em sua aguda percepção da hipocrisia social e

dos interesses escusos que moviam quaisquer ‘sentimentos’ . O amor é visto por ele com

ceticismo.

A partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis passa a seguir

algumas tendências que nos interessam – o sentimentalismo é esvaziado, assim como o

falso moralismo burguês e as palavras excessivamente melífluas. O amor surge

contaminado na base pelo egoísmo e é corroído pelo tempo. Derruba-se a idéia de

unidade, de constância do ser humano e também a de que o amor predomina sobre todas

as outras paixões, conforme procuramos evidenciar em nossas análises. Surgem

homens e mulheres de fato, e não anjos. Não há personagens exclusivamente boas ou

más, assim como parece não haver o amor eterno e inatingível.

O corrosivo Brás desnuda o jogo dos sentimentos e dos interesses, deixando

claro que se alternam sem a necessária sobreposição dos primeiros, como efeito

moralizador. Tudo eivado de ironia para conferir uma frieza particular e não trair as

intenções.

As relações amorosas retratadas na obra de Machado são mais um motivo para

apreciar o indivíduo em face de si próprio e da sociedade em que se insere. Suas

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personagens não se reduzem a um reflexo mecânico do meio, como as naturalistas, e o

temperamento as faz reagir às situações a que são expostas.

O cinismo com que desvenda as relações amorosas faz com que a narrativa

machadiana contenha em si própria a crítica ao que é narrado. O leitor apreende que se

trata de uma visão cruel, mordaz, desmascaradora, construída como instrumento de

questionamento dos moldes estabelecidos pela sociedade burguesa do século XIX.

A visão naturalista restrita do sentimento amoroso faz com que as obras desse

estilo sejam as de análise mais reduzida neste trabalho. O condicionamento do amor

aos impulsos primitivos dos instintos limita também o desenvolvimento do estudo

acerca dos romances filiados a tal estética.

Ainda assim, as tendências do Naturalismo foram além de sua época e influíram

na formação de alguns romances modernistas, como comprova Graciliano Ramos em

Angústia. O corpo tem presença marcante e predominante na literatura naturalista e

nesta obra, embora estejam longe de se identificar.

Mais distantes ainda, entre si, em relação ao enfoque do sentimento amoroso,

estão alguns romances de Graciliano Ramos e de Jorge Amado.

Graciliano, a partir de bases filosóficas um pouco diferentes, segue uma

tendência comum ao pessimismo machadiano. O seu enfoque sobre o amor é

desencantado, sombrio, amargo.

A opção do autor em Angústia e em São Bernardo é a do esvaziamento do amor,

ou mesmo a de enfocá-lo como um tema secundário para a comprovação de uma tese

maior, principal. No caso de São Bernardo, por exemplo, a da reificação do homem

operada pelo capitalismo. Tais obras trazem , através de novas necessidades e

interesses, a marca das mutilações, das repressões e da inautenticidade que acompanha o

desenvolvimento dos homens na sociedade de classes.

O sofrimento aparece ligado ao sentimento amoroso tanto na literatura

romântica, como também nas obras de Graciliano Ramos enfocadas nesta tese.

Angústia herdou dos realistas o aprofundamento da análise psicológica e, do

Naturalismo, os aspectos sexuais da conduta. Nos romances do autor, predomina, no

enfoque do amor e, permeando o enredo como um todo, uma tendência psicológica e

existencial inegável.

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Já em obras contemporâneas a estas, Jorge Amado prima pela preeminência do

sentimento amoroso como superação, seja da morte ou do sofrimento (Mar Morto,

Tereza Batista), ou como afirmação da alegria (Gabriela Cravo e Canela). Embora

predomine nos ficcionistas da geração de 30 um enfoque de tipo neo-realista, o

tratamento do amor nas narrativas de Jorge Amado manifesta clara tendência neo-

romântica. Conclui-se, a partir da análise, que o autor operou uma renovação da

importância do sentimento amoroso, de maneira bastante fecunda. Fez-se neste

trabalho, inclusive, uma aproximação entre a trajetória da personagem Madame Bovary,

com a Ester, de Terras do sem fim. Comprovou-se que a posição desta no desfecho, no

entanto, difere do realismo flaubertiano, porque Emma Bovary desmorona sozinha,

enquanto Ester e Virgílio correspondem-se no sentimento.

As teorias libertárias de Jorge Amado impregnam o tema do amor, seguindo a

vocação do romance moderno brasileiro de posicionamento crítico em relação às

estruturas sociais tradicionais.

Mesmo que o caráter otimista e resistente das heroínas signifique uma

idealização, isso não representa problema algum, refletindo apenas a faceta romântica

do escritor, trazida à tona. Em Jorge Amado sempre há a mistura da realidade social

com o lirismo. Talvez Tereza Batista seja a maior expressão deste amálgama.

Esta análise confirma o fato de que, ao mesmo tempo que retrata a cultura e a

sociedade brasileira, o autor idealiza a sua camada popular, o que torna acertada a

classificação que faz de si próprio como um “ realista romântico” 184.

A narrativa romântica desenvolvida em torno da temática amorosa é um

questionamento à imposição de limites à expansão do “eu” , realizada pela sociedade.

Mas nessa busca de afirmação do indivíduo e de sua autenticidade, a técnica romântica

atrai como “comparsa” o leitor.

Se o sentimento amoroso é totalmente idealizado, o realismo permeia todo o

resto do romance romântico na medida em que os autores adotam como motivo da

imaginação criadora o quotidiano e a descrição objetiva da vida e dos costumes sociais.

Percebe-se também a recuperação pela memória de alguma vivência que se

perdeu, através do ato de escrever em personagens marcantes de romances distanciados

184 MOTA, Lourenço Dantas. O personagem da semana. Ano V, número 49. O Estado de São Paulo, 17/5/81.

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temporalmente, como Lucíola, Dom Casmurro e São Bernardo, e este aspecto foi

bastante importante na análise de tais obras.

No romance de 30, obras como São Bernardo, Angústia e Gabriela retratam um

mundo onde surge a tensão entre a individualidade pessoal e a entidade social, gerando

conflitos que, nas obra de Graciliano evidenciam a impossibilidade de verdadeira

comunicação e comunhão entre os homens, mas em Jorge Amado, apontam para uma

solução luminosa dada pelo alcance da liberdade individual e social completa.

É interessante notar como, por várias vezes, independentemente da época, a

despeito da morte que separa fisicamente os amantes, o amor vence, como a última

palavra, como transcendência, como redenção. É assim em romances paradigmáticos

do Romantismo, como Lucíola e Inocência; em Mar morto, de Jorge Amado; e em

Terras do sem fim, em relação a Ester e Virgílio.

Percebeu-se também, no desenvolvimento do trabalho, ser necessária a inserção

do tema do desejo, como subjacente à temática amorosa.

Jorge Amado e Guimarães Rosa apresentam muitas diferenças entre si, mas

concordam na visão positiva da vida e do erotismo. Neste aspecto, aproximam-se

Gabriela e “Buriti” . Ambos têm na alegria um tema em comum, embora seus

enfoques sejam bastante diversos.

É ressaltado, na análise do amor em Guimarães Rosa, o valor cósmico,

totalizante, de Eros, em todas as narrativas estudadas. Rosa aponta, ainda, para a

natureza positiva da busca erótica, do sexo como início essencial da completude que

se espera como fim da “ travessia” .

Na literatura romântica, o amor também aparecia como a única força

redentora capaz de conferir sentido pleno à vida. No entanto, a postura ligada à

tradição cristã restringia o amor de fato ao seu aspecto espiritual, de sentimento

casto, e as exigências da carne só poderiam degrada-lo ou maculá-lo, como se pôde

comprovar na análise de Lucíola com bastante clareza, pois que talvez seja o

exemplo mais exacerbado do que ora se afirma. Já Jorge Amado e Guimarães Rosa

concebem, como se viu, sexo e erotismo como componentes da completude

amorosa, finalidade, talvez, da própria vida.

As aproximações e confrontos realizados no desenvolvimento do trabalho

trazem à luz, de forma eloqüente, os múltiplos enfoques que o sentimento amoroso

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219

recebe na narrativa brasileira, conseqüência das mutações culturais, bem como da

postura dos diferentes escritores diante do mundo, da vida. Sendo assim, tal sentimento

torna-se uma importante matriz temática e o seu tratamento ajuda a mapear tendências

literárias ou a caracterizar autores.

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233

8 - APÊNDICE

I – Resumo

II – Abstract

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234

RESUMO

GONÇALVES, Janaina F. Rebello de M. A multiplicidade de enfoques sobre o amor na narrativa brasileira . Rio de Janeiro: UFRJ Fac. De Letras, 2006. 227 fl. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira.

Este estudo procura analisar o sentimento amoroso como representação de

posturas literárias diversas dentro da prosa literária brasileira. Para tanto, é feita a

observação e descrição do sentimento amoroso em algumas obras literárias, ao mesmo

tempo em que se tece um estudo comparativo entre esses enfoques diversos. O

‘corpus’ foi escolhido tomando-se como ponto de referência autores e obras que

desenvolveram de maneira mais original ou mais literariamente perfeita o tema do amor

em suas épocas.

Num primeiro momento, figuram as obras de José de Alencar e de Taunay, já

que, durante o Romantismo predomina o mundo interior, a escolha individual e a visão

de mundo ideal, sempre traduzidos pelo amor. Ele é, portanto, o alicerce de todos os

romances românticos.

Logo depois, aparece no estudo a visão naturalista, que restringe o sentimento

amoroso, direcionando-o apenas para o aspecto sexual e instintivo. Para melhor

observar seus aspectos utiliza-se como exemplo literário O cortiço. Ainda no mesmo

capítulo, analisa-se a produção de Machado de Assis, com destaque para Memórias

póstumas de Brás Cubas. A visão cética deste autor realiza um esvaziamento do

sentimento amoroso, derrubando-se a idéia de unidade, de constância do ser humano e

também de que o amor predomina sobre todas as outras paixões.

No Modernismo, mais especificamente no romance de 30, optou-se por abordar

a literatura de Graciliano Ramos e de Jorge Amado.

A opção de Graciliano em Angústia e em São Bernardo, por vias diferentes num

e noutro, também é a do esvaziamento do amor: um realiza o processo questionando

aspectos sociais; no outro predomina a tendência psicológica e existencial.

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Já as teorias libertárias de Jorge Amado impregnam o tema do amor e o

sentimento, em sua obra, surge revestido de um caráter otimista, muito próximo à

idealizada visão romântica.

Por último, e ainda imbuída de uma alegria incomensurável, fazendo do amor

caminho para a plenitude, vem a obra de Guimarães Rosa, que fecha o ciclo de análises

operando a intersecção de vários aspectos do tema: estão presentes na poética rosiana do

amor erótico, ao mais sublime, espiritual, que aproxima o homem da integração

cósmica.

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236

ABSTRACT

This work tries to analyze the loving feeling as a presentation of various literary

attitudes in Brazilian literary of various literary attitudes in Brazilian literary prose,

through the examinations and the description of loving feeling in some literary works

and also through a comparative study among those different points of view. The

“corpus” was chosen taking as a reference authors and works that developed love theme

in different periods using originality and literary perfection.

Firstly we stand out Jose de Alencar’s and Taunay’s literary works as we can

say that during the Romantism Period, the inner nature, the individual choice and the

ideal world vision were manifested by love. Love is the foundation of all romantic

novels.

After that, we point the naturalist vision that limits loving feeling leading it only

to sexual and spontaneous point of view. Those aspects are analyzed in the novel O

cortiço and we also analyze Machado de Assis’ works, especially Memorias postumas

de Bras Cubas. The author empties loving feeling, destroying the idea that love is more

important than other passions.

In Modernism, especifically in the novels of the thirties, we analyze Graciliano

Ramos’ and Jorge Amado’s works.

Graciliano chose to empty loving using different ways in Angústia and São

Bernardo. One reviews social aspects, the other shows psicological and existencial

tendencies.

Jorge Amado’s libertarian theories were soaked by love theme and we can say

that in his works feeling comes covered by an optimistic view.

At least, we analyze Guimaraes Rosa’s work full of incommensurable joy,

showing love as a way of fullness. His work shows the interesction of some aspects of

the theme – his work goes from the erotic love to the most perfect and spiritual one that

makes man get closer to cosmic integration.