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Erotismo, sexualidade e gênero Aula 7 Na aula passada, iniciamos a leitura do primeiro volume de História da sexualidade. Lembrei para vocês este projeto central na filosofia de Foucault deveria ser compreendido à luz da questão referente à produtividade do poder, ou seja, ao problema da maneira com que regimes de saber constituem práticas disciplinares capazes de definir nosso modo de relação a nós mesmos e aos outros. Que este problema seja tematizado de maneira privilegiada quando voltamos os olhos à sexualidade: eis algo que não deve nos surpreender. Pois se há algo que o século XX produziu foi a crença de que o falar franco sobre o que é da ordem do sexual implicaria, por um lado, lançar luz sobre o que somos e como nos relacionamos mas, por outro, transformar o que somos e como nos relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a experiência de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo fundamental de sua auto- determinação. Digamos claramente que seu reconhecimento como sujeito passa necessariamente pela maneira que ele é capaz de subjetivar uma sexualidade.

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Erotismo, sexualidade e gêneroAula 7

Na aula passada, iniciamos a leitura do primeiro volume de História da sexualidade. Lembrei para vocês este projeto central na filosofia de Foucault deveria ser compreendido à luz da questão referente à produtividade do poder, ou seja, ao problema da maneira com que regimes de saber constituem práticas disciplinares capazes de definir nosso modo de relação a nós mesmos e aos outros. Que este problema seja tematizado de maneira privilegiada quando voltamos os olhos à sexualidade: eis algo que não deve nos surpreender. Pois se há algo que o século XX produziu foi a crença de que o falar franco sobre o que é da ordem do sexual implicaria, por um lado, lançar luz sobre o que somos e como nos relacionamos mas, por outro, transformar o que somos e como nos relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a experiência de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo fundamental de sua auto-determinação. Digamos claramente que seu reconhecimento como sujeito passa necessariamente pela maneira que ele é capaz de subjetivar uma sexualidade.

Lembrei ainda que a História da sexualidade podia ser vista, de uma certa forma, como uma silenciosa arqueologia da psicanálise. Como dirá Alain Badiou: “De que Freud se sente responsável quanto à sexualidade? Ele pensa ser o agente de ruptura no real do sexo, para além mesmo da transgressão de alguns tabus morais ou religiosos? Tem a tremenda convicção de ter tocado no sexo, no mesmo sentido que, depois de Vitor Hugo, se tocou no verso?”1. As perguntas não poderiam ser mais claras. Trata-se de afirmar que, depois de Freud, um novo regime relativo à palavra que fala do sexual ganha hegemonia. Um modo de falar que modifica profundamente nosso modo de ser, nosso modo de nos relacionarmos ao desejo.

1 BADIOU, Alain; O século, p. 112

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No entanto, vimos como Foucault participa, neste momento, de uma forte desconfiança do pensamento francês contemporâneo a respeito da psicanálise e de sua maneira de fazer o sexual falar. Esta fala sobre o sexual estaria fundada na temática da repressão. Temática que nos permitira dizer haver uma força de ruptura vinda do desejo que não encontraria lugar nos modos de reprodução social das sociedades capitalistas. Esta será a hipótese a ser criticada por Foucault. Pois, lembrará Foucault, talvez não tenha existido sociedade que mais falou sobre sexo do que a nossa. Por isto:

Trata-se de interrogar o caso de uma sociedade que, desde mais de um século, fustiga de maneira barulhenta sua hipocrisia, fala com prolixidade de seu próprio silêncio, anima-se a detalhar aquilo que ela não diz, denuncia os poderes que ela exerce e promete de se liberar de leis que a fazem funcionar2.

De fato, estranha repressão esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a uma fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo de que somos proibidos de falar e detalhar. Trata-se de afirmar que a “análise crítica da repressão” é, no fundo, inseparável dos “efeitos de poder” induzidos pela “colocação do sexo no interior do discurso”. Tais efeitos são produzidos pelo nosso modo de falar, de intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque Foucault poderá explicar seu projeto da seguinte forma:

O ponto importante não consistirá em determinar se tais produções discursivas e seus efeitos de poder conduzem a formular a verdade sobre o sexo ou, ao contrário, a formular mentiras destinadas a ocultá-lo. Trata-se de expor a ‘vontade de saber’ que lhe serve, ao mesmo tempo, de suporte e de instrumento3.

2 FOUCAULT, Histoire de la séxualité, p. 163 Idem, p. 20

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Ou seja, trata-se de mostrar quais efeitos de poder são derivados de certas modalidades de vontade de saber, como uma vontade de saber é um instrumento silencioso de “técnicas polimórficas de poder”. Não se trata assim de negar a repressão, mas de negar que sua temática possa dar conta da maneira com que o poder sobre a vida age e produz. Trata-se de levar a sério a constatação de que:

Desde o fim do século XVI, a “colocação em discurso” do sexo, longe de submeter-se a um processo de restrição foi submetida, ao contrário, a um processo de incitação crescente. As técnicas de poder que se exercem sobre o sexo não obedeceram um princípio de seleção rigorosa mas, ao contrário, a disseminação e a implantação de sexualidades polimórficas. A vontade de saber não parou diante de um tabu a ser respeitado, mas ela se animou a constituir uma ciência da sexualidade4.

É da arqueologia desta estranha “ciência da sexualidade”, deste regime de discurso que vê o sexual como objeto de uma ciência (e não necessariamente de uma ética, de um conjunto de técnicas e de práticas etc.) que será questão na História da sexualidade. Na verdade, apenas o ocidente conhecerá esta idéia do sexo como objeto de uma ciência. Uma ciência que visa, por exemplo, gerir as populações já que, no coração do problema político das populações encontra-se o sexo. Se um país rico e forte era um país populoso, então algumas questões centrais de administração pública serão: a análise da taxa de natalidade, a idade do casamento, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relações sexuais, o efeito do celibato e das interdições, a incidência de práticas contraceptivas, entre outros. Pela primeira vez, uma sociedade reconhece que seu futuro e fortuna está ligado à maneira com que cada um faz sexo. Esta transformação do sexo em objeto de uma pedagogia, mutação que acompanha sua transformação em objeto de uma medicina, de uma economia e de uma reflexão 4 Idem, p. 21

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jurídica: eis, muito mais do que a “hipótese repressiva”, a verdadeira mola produtiva do poder.

De toda forma, isto permite a Foucault colocar em questão este tema tão freqüente que define o sexo como o que está fora do discurso e que apenas a ruptura de seu segredo poderia abrir o caminho que nos leva à sua verdade. Na verdade, não seria o caso de dizer que a sexualidade nada mais é do que um “efeito do discurso”, uma produção discursiva que nada teria a ver com a liberação de alguma forma bruta de “energia libidinal” ou “força pulsional”? Nossa experiência sexual, a maneira que constituímos objetos de nossos desejos, que nos deixamos incitar por interdições e proibições não seria apenas a produção de um modo de funcionamento dos discursos médicos, pedagógicos, jurídicos e econômicos? Maneira de dizer que não há nada de natural no campo da sexualidade, não há nenhuma normatividade vital operando no seu interior. Ela seria apenas a dimensão de uma normatividade social que não se diz enquanto tal.

Uma ciência da sexualidade

Há historicamente dois procedimentos para produzir a verdade do sexo. De um lado, as sociedades (e elas são numerosas: a China, o Japão, a índia, Roma, as sociedades árabo-muçulmanas) que se dotaram de uma ars erótica. Na arte erótica, a verdade é extraída do próprio prazer, tomado como prático e recolhido como experiência. Não é em relação a uma lei absoluta do permitido e do proibido, não é em absoluto por um critério de utilidade que o prazer é levado em conta (...) Nossa civilização, ao menos sob um primeiro ponto de vista, não tem uma ars erótica. No entanto, ele é a única a praticar uma scientia sexualis. Ou melhor, ao ter desenvolvido no decorrer dos séculos procedimentos que se ordenam essencialmente a uma forma de poder-saber rigorosamente

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oposta à arte das iniciações e ao segredo magistral: trata-se da confissão5.

Esta distinção entre arte erótica e ciência da sexualidade é central para Foucault. Ela nos remete claramente a Georges Bataille, haja vista a maneira foucaultiana de lembrar que, na arte erótica, desconhecemos relação: “a uma lei absoluta do permitido e do proibido, não é em absoluto por um critério de utilidade que o prazer é levado em conta”. Sabemos como esta crítica à lógica utilitarista no campo do erotismo vem de Bataille, assim como a compreensão de uma dinâmica de interdição e transgressão que não se baseia no respeito absoluto a uma lei. Como dissera na aula passada, tudo se passa como se Foucault procurasse desenvolver, através do conceito de “sexualidade” o tipo de experiência sexual própria às sociedades dos indivíduos e seu regime de fala.

Se, como vimos na aula passada, a ciência da sexualidade baseava-se em um modo de falar sobre o sexo que encontra suas raízes no sacramento da confissão, nada disto será encontrado fora do ocidente. Foucault chega a dizer que estamos diante de duas formas de relação entre sexo e verdade: uma que privilegia a confissão (que Foucault define como modelo jurídico-religioso, ou ainda, jurídico-discursivo de enunciação da verdade) e outra que seria uma pedagogia da iniciação. Ou seja, o ocidente seria, entre outras coisas, uma maneira peculiar de definir o sexual através da “expressão obrigatória e exaustiva de um segredo individual”6. O que não poderia ser diferente já que, para Foucault, a razão moderna ocidental é, antes de mais nada, uma forma disciplinar de poder baseada em uma estilística disciplinar do fazer falar. “Diga-me como você fala e te direi como você se submete”. Por isto, Foucault se pergunta: “Pode-se articular a produção da verdade segundo o velho modelo jurídico-religioso da confissão e a extorsão da confidência segundo a regra do discurso científico?”7. Na verdade, nossas sociedades não teriam feito outra coisa. Foucault chega a descrever 5 FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, pp. 77-786 Idem, p. 827 Idem, p. 86

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algumas características maiores da nossa ciência da sexualidade que permitiram tal sobreposição.

Primeiro, a codificação clínica do “fazer falar” através do desenvolvimento de um conjunto de signos e sintomas decifráveis (questionário, interrogatório, amanese, hipnose etc.). Segundo, o postulado de uma causalidade geral e difusa, como se o sexo fosse dotado de um poder causal inesgotável e polimórfico. “Não há praticamente doença ou problema físico ao qual o século XIX não imaginou ao menos uma parte de etiologia sexual”8. Terceiro, o princípio de latência intrínseca à sexualidade, como se a sexualidade fosse naturalmente dotada de uma clandestinidade, de uma obscuridade que faria de sua confissão uma tarefa sempre difícil. Quarto, o método de interpretação, como se a confissão trouxesse uma regra de decifragem que reforça o poder daquele que ouve a confissão. Por fim, a medicalização dos efeitos da confissão. Este é um ponto fundamental pois:

O domínio do sexo não será mais colocado sob os registros da falta e do pecado, do excesso ou da transgressão, mas sob o regime do normal e do patológico. Define-se pela primeira vez uma morbidade própria ao sexual, o sexual aparece como um campo de alta fragilidade patológica9.

O que temos, ao final deste processo, não é apenas um modelo de produção da relação entre sexualidade e verdade. Para Foucault, este é um setor fundamental de uma “ciência do sujeito”, já que a causalidade do sujeito, o inconsciente do sujeito, a verdade do sujeito se encontrará desdobrada no interior do discurso do sexo. De fato, depois da psicanálise, não há teoria do sujeito sem que levemos em conta a clivagem que a experiência da sexualidade nos impõe.

Mas voltemos à distinção entre ciência da sexualidade e arte erótica. Será pelas vias da tematização desta arte erótica, em uma chave neste caso bastante diferente da sugerida por Bataille, que os

8 Idem, p. 889 Idem, p. 90

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dois outros volumes da História da sexualidade caminhará. Para Foucault, a função deste dois livros é clara: mostrar como há uma produção de si que obedece a uma lógica distinta daquela em operação nas práticas disciplinares e na submissão a um modelo jurídico de relação a si que aparece claramente, por exemplo, nas discussões morais sobre autonomia. Discussões que determinam meu modo de ser a partir do respeito a normas universais, categóricas e incondicionais transcendentalmente asseguradas. Como se esta estratégia transcendental fosse um modo de produção de sujeitos.

A partir disto, Foucault organizará uma dicotomia entre o transcendental como modelo jurídico de relação à si e o cuidado de si enquanto modo de relação do sujeito à verdade, cuidado este que estará tematizado no terceiro volume da História da sexualidade sob a forma da arte erótica greco-romana. O modelo jurídico do transcendental está presente, por exemplo, nas temáticas da lei moral, do tribunal da razão, no regime de universalidade categórica, na temática das condições normativas de possibilidade etc. Já o cuidado de si não teria parte com tal modelo por ser composto por prescrições que não podem ser compreendidas se admitirmos a dicotomia entre empírico e transcendental.

No cuidado de si, a força formadora do transcendental daria lugar a uma forma de ajuste entre práticas sociais e “disposições naturais” singulares e que constituem, para um sujeito, algo como uma dimensão de verdade. No entanto, os termos deste ajuste nunca são completamente definidos por Foucault. Ele fala, em vários momentos, de uma: “intensificação da relação à si através da qual alguém se constitui como sujeito de seus atos”10, de uma forma “ ao mesmo tempo particular e intensa de atenção ao corpo”11 ou ainda de “ soberania” do indivíduo sobre si mesmo. “ Intensificação” porque o problema está ligado à força, à moderação e à incontinência. Daí porque: “o excesso e a passividade são, para um homem, as duas formas maiores da imoralidade na prática dos aphrodisia”12. 10 Histoire de la séxualité III, p. 57 11 Idem, p. 7812 Histoire de la séxualité II, p. 65

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Nota-se que esta constituição soberana de si passa por um deslocamento do si mesmo, da dimensão da autonomia individual à reconciliação com o corpo. De toda forma, tal soberania precisaria ser melhor definida. Ela é compreendida como uma transformação que não pode ser vista como resultado de procedimentos disciplinares. Daí a definição de tal soberania como uma arte da existência composta por:

práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não apenas fixam para si mesmos regras de conduta, mas procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e a fazer de suas vidas uma obra que porta certos valores estéticos e responde a certos critérios de estilo13.

Tal soberania, que levará Foucault a dizer que o homem mais real é rei de si mesmo, implica capacidade de constituição de si como sujeito moral, mas esta moralidade não pode ser compreendida sob o modelo da autonomia. Uma moral cujo assento deve ser pensado no ajustamento ao código. Na verdade, tal soberania leva a uma moral orientada, não para o código, mas para o ético. Assim, ao invés das interdições e fronteiras, a teríamos definições das modalidades de uso dos prazeres que seria capaz de levar em conta as circunstâncias, posição pessoal e ajuste. Note-se como a figura de uma certa “individualidade” é aqui necessária.

O dispositivo da sexualidade

No capítulo central de seu livro, Foucault se propõe a falar do “dispositivo da sexualidade”. Esta noção é central e explica claramente o que Foucault entende por sexualidade. A propósito da noção de “dispositivo”, ele dirá:

Ce qui j’essaie de réperer sous ce nom (...) c’est premièrment un ensemble résolument hétérogène, comportant des discours,

13 Idem, p. 18

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des institutions, des aménagements, d’architectures, des décisions réglementaires, des lois, des mésures administratives, des énoncés scientifiques, des propos philosophiques, morales, philatrophiques, bref : du dit aussi bien que du non dit, voilà les éléments du dispositif. Le dispositif lui-même, c’est le réseau qu’on peut établir entre ces éléments14.

Nós vemos como Foucault se serve da noção de dispositivo para definir o espaço da normatividade social, para além das imposições dos enunciados. Um dispositivo é uma rede heterogênea de normas sociais. Nada estranho para alguém, como Foucault, para quem a sexualidade é simplesmente uma normatividade social, para quem não há normatividade vital alguma que deva ser levada em conta na nossa compreensão da sexualidade. Neste sentido, o conceito de dispositivo tem uma função maior: ela nos permite de pensar e tematizar aquilo que muda, de uma época histórica a outra, no interior de nossa experiência da sexualidade. Ele nos libera, por exemplo, de procurar alguma forma de “instinto sexual” imutável, impulso natural que apareceria como uma espécie de substância primeira a fundar uma normatividade vital no interior do corpo.

No entanto, talvez a noção de dispositivo não nos permita pensar de maneira adequada exatamente aquilo que teria a estranha força de permanecer invariável no sexual, aquilo que, como dizia Lacan, tende a voltar sempre ao mesmo lugar. Para Foucault, assumir algo desta natureza nos obrigaria a assumir alguma forma de normatividade vital em operação na sexualidade, algo que, como vimos, o filósofo francês deve recusar expressamente. Ele deve recusar a idéia de que, talvez, aquilo que nomeamos “sexualidade” é uma estranha articulação entre normatividade vital e normatividade social.

Mas se voltarmos à reflexão sobre o dispositivo da sexualidade, veremos como Foucault insiste que sua análise continua fundada, de maneira equivocada, nas temáticas próprias ao poder soberano. Por isto, ele precisa afirmar que nossa representação 14 FOUCAULT, Michel; Le jeu de Michel Foucault

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do poder continua assombrada pela monarquia jurídica. Daí a importância dada aos problemas do poder e da violência, da lei e da ilegalidade, da vontade e da liberdade. No entanto, há séculos entramos: “em um tipo de sociedade na qual o jurídico pode, cada vez menos, codificar o poder ou lhe servir de sistema de representação”15. Daí a necessidade de uma analítica do poder que não tome mais o direito por modelo, mas o dispositivo. Só assim Foucault encontrará o campo para afirmar:

Por poder, parece-me que devemos inicialmente compreender a multiplicidade de relações de força que são imanentes ao domínio no qual elas se exercem, e que são constitutivas de sua organização; o jogo que pela via das lutas e afrontamentos lhes transformam, reforçam, invertem; os apoios que tais relações de força encontram umas nas outras de maneira a formar cadeia ou sistema ou, ao contrário, as defasagens, as contradições que isolam umas das outras; a estratégias enfim nas quais elas encontram efeito e cujo desenho geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, na hegemonia social16.

Esta idéia de poder é onipresente não porque ela tudo engloba em uma unidade, mas porque ela vem de todos os lugares. Ela não depende de uma intencionalidade consciente para funcionar, ela não resulta de decisões e escolhas de um sujeito individual. Se ele vem de todos os lugares, é fácil perceber também que a noção mesma de resistência é um movimento interno ao poder. O próprio poder só pode existir em função de uma multiplicidade de pontos de resistência. Como se a ausência de unidade do poder nos permitisse pensar um movimento que está, a todo momento, prestes a inverter seus sinais, prestes a produzir outras dinâmicas. Como se a disciplina e seus dispositivos apenas no limite pudessem garantir sua eficácia. Como se estivéssemos diante de : “um campo múltiplo e

15 Histoire de la séxualité I, p. 118 16 Idem, p. 122

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móvel de relações de força no qual se produzem efeitos globais de dominação, mas jamais totalmente estáveis”17.

Assim, a sexualidade poderá aparecer como um ponto de passagem particularmente denso para as relações de poder entre homens e mulheres, entre jovens e velhos, pais e filhos, educadores e alunos, administradores e população. Ela se desenvolve no momento em que o dispositivo de aliança, com seus sistema de casamento e de transmissão, perde importância por servir mais de suporte suficiente para os processos econômicos e as estruturas políticas. O dispositivo de aliança funcionaria a partir de regras estritas, já o dispositivo de sexualidade conheceria técnicas móveis e conjunturais. Tal dispositivo de aliança nunca será ultrapassado completamente, mas e le funcionará a partir de novas dinâmicas. Daí a transformação da família em espaço de constituição da sexualidade e de seus jogos. Transformação tão presente na psicanálise e suas noções ligadas ao complexo de Édipo.

Foucault chega a descrever quatro grandes dispositivos que, a partir do século XVIII se constituirão como eixos desta relação de poder no interior da sexualidade: a) a histerização do corpo feminino, b) a pedagogização do sexo infantil, c) a socialização das condutas de procriação e d) a psiquiatrização dos prazeres perversos. Nestes quatro casos, tratam-se de formas de produção da sexualidade seja através da definição do feminino, da criança, da norma e do desvio.

Weber e Foucault

Aqui, podemos sentir a peculiaridade da posição de Foucault. Por exemplo, Max Weber, ao insistir que a racionalidade econômica dependia fundamentalmente da disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta, lembrava que nunca haveria capitalismo sem a internalização psíquica de uma ética protestante do trabalho e da convicção, estranha ao cálculo utilitarista e cuja gênese deve ser procurada no calvinismo. Ética esta que Weber encontrou no ethos 17 Idem, p. 135

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protestante da acumulação de capital e do afastamento de todo gozo espontâneo da vida. O trabalho que marcava o capitalismo como sociedade de produção era um trabalho que não visava exatamente o gozo do serviço dos bens, mas a acumulação obsessiva daqueles que: “não retiram nada de sua riqueza para si mesmo, a não ser a sensação irracional de haver ‘cumprido’ devidamente a sua tarefa” (Weber, 2001, p. 56). Weber chega a falar em uma “sanção psicológica” (p. 102) produzida pela pressão ética e satisfeita através da realização de um trabalho como fim em si, ascético e marcado pela renúncia ao gozo. O que o leva a insistir que: “O summum bonum desta ‘ética’, a obtenção de mais e mais dinheiro, combinada com o estrito afastamento do todo gozo espontâneo da vida é, acima de tudo, completamente destituída de qualquer caráter eudemonista ou mesmo hedonista” (p. 42). A irracionalidade deste processo de racionalização do trabalho, ao menos a partir de uma lógica eudemonista ou hedonista, pode nos indicar como toda socialização é normativa, ela é normatividade que se impõe à vida com suas exigências de satisfação pulsional. Max Weber não havia mostrado outra coisa ao insistir que a gênese da ética protestante do trabalho na constituição da racionalidade do capitalismo era solidária do ascetismo e da restrição ao gozo.

No entanto, conhecemos várias críticas à plausibilidade desta “hipótese repressiva”, sendo que uma das principais vem de Michel Foucault. Em História da sexualidade, Foucault não deixa de criticar este vínculo entre ascetismo e consolidação da sociedade capitalista de produção. Ele insiste que as tecnologias de si próprias ao mundo burguês moderno não podem ser compreendidas como simples dispositivos repressivos montados contra um corpo libidinal metafisicamente pressuposto, substrato natural que apareceria como base para as operações do poder. Ao contrário, deveríamos: “abandonar o energitismo difuso que sustenta o tema de uma sexualidade reprimida por razões econômicas” (Foucault, 1976, p. 151). Só assim poderíamos compreender que a modernidade foi um longo processo de constituição (e não de repressão) da sexualidade, implementação de um poder disciplinar que constituiu tanto

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mecanismos de incitação a modos de investimento libidinal reconhecidos socialmente quanto figuras de resistência; já que o verdadeiro poder não se funda apenas em operações de gestão coercitiva de padrões normativos de conformação, mas, principalmente, na produção dos próprios modos de resistência à “dominação”. Foucault quer liberar a reflexão do poder de temáticas vinculadas à opressão, isto a fim de permitir a melhor compreensão do caráter criador de um poder que engendra, um bio-poder que incita modos de investimento libidinal, assim como modos de conflito.

Tendo isto em vista, Foucault pode dizer, por exemplo, que os processos de entificação do ascetismo e da desqualificação da carne analisados por Max Weber eram inicialmente, na verdade, técnicas de: “intensificação do corpo, de problematização da saúde e das suas condições de funcionamento” (2001, p. 162). Maneira de assegurar a longevidade e a não-corrupção da descendência. Contra estas práticas disciplinares que constituem a sexualidade não se trataria de consolidar críticas aos processos de interversão das expectativas de racionalidade em regimes de dominação de si. A verdadeira crítica consistiria em, de uma forma ou de outra, “desativar” os dispositivos de sexualidade, cortando o vínculo tacitamente aceito entre sexo e lugar da verdade, suspendendo a economia libidinal alimentada por processos disciplinares.

No entanto, há duas considerações a fazer a respeito desta perspectiva de Foucault. Primeiro, uma análise psicanaliticamente orientada não teria maiores dificuldades em aceitar a temática de um bio-poder que engendra dispositivos de sexualidade. Lembremos que o problema maior levantado por Freud a respeito dos modos de internalização da Lei através do supereu consiste exatamente em mostrar como dinâmicas de repressão se transformam em modo neurótico de satisfação, mostrar como aquilo que nos adoece é fonte de gozo. Neste sentido, a hipótese repressiva é apenas a descrição de um modo de internalização de práticas disciplinares.

Mas é fato que a temática da “repressão” nos leva á pressuposição de um corpo libidinal “naturalizado”, isto no sentido

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de não ser totalmente redutível à condição de efeito da ordem do discurso. Não há porque negar este ponto, assim como não há porque negar sua importância em temáticas, como a adorniana, de interversão da razão em procedimento de dominação da “natureza interna”. Melhor seria mostrar como o próprio Foucault é muitas vezes obrigado a retomar um substrato corporal para além da esfera da ordem do discurso, isto a fim de sustentar procedimentos de crítica ao poder18. Ou seja, melhor seria mostrar como não é fácil se livrar da “hipótese repressiva”.

18 Judith Butler percebeu claramente esta ambigüidade de Foucault, principalmente em um pequeno texto dedicado ao caso de uma hermafrodita, Herculine Barbin, que é descrita como vivendo no “limbo feliz da não-identidade” (Ver Butler, 1999).