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R I O D E J A N E I R O • S Ã O PA U L OE D I T O R A R E C O R D

2009

Tradução deJOANA ANGÉLICA D’ÁVILA MELO

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À minha mãe

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“Eu nasci muito sensível, muito altiva mas, muito frágil.”De uma carta inédita de Maria Callas, escrita a bordo do Christina, 12 de junho de 1963.

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Sumário

Prólogo 11

Uma janela para o mundo 19

Três mestres excepcionais 29

Um lencinho de renda 36

Bem-vinda à Grécia 42

Cinco dracmas e um prato de sopa 51

A mais bela das criaturas 62

Uma virgem na caserna 72

À conquista da América 79

Objetivo: Metropolitan 84

O trunfo Bagarozy 93

“Prazer, comendador Meneghini, eu sou Maria Callas” 105

Giuseppina, a primeira inimiga 118

Enfim, marido e mulher 127

“Accetta il dono” 133

O Scala aos seus pés 142

No mito, como Audrey 147

À conquista do Metropolitan 156

Elsa, meu amor 160

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Tudo por culpa de um grego 167

A primeira crise 175

473 rosas vermelhas de amor 178

A tragédia bate à porta 183

No Christina 186

Titta, adeus 205

O primeiro Natal com Omerino 209

A rejeição 214

Omero, e depois a escuridão 217

O último adeus 219

Projeto Kennedy 221

Marilyn e Maria: o encontro de duas almas 226

Jackie, bem-vinda a bordo 229

A viúva 234

Bodas à vista 236

Um casamento amaldiçoado 241

De novo com Ari 245

A vingança de Medeia 250

Uma pré-estreia para recomeçar 254

Alguém retorna do passado 257

Os últimos instantes de felicidade 263

O voo de Alexandre 268

O início do fim 274

Cinquenta anos de amor 279

Crônica de uma morte anunciada 282

O rei de Skorpios 283

A vida se vai 287

Juntos por toda a eternidade 295

Epílogo 299

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Prólogo

Milão, segunda-feira, 5 de setembro de 1977

Senza mamma, o bimbo, tu sei morto...*

GIACOMO PUCCINI, Sóror Angélica

Luigi estava nervoso. Eram 11h05 e “La Signora” ainda não ti-

nha chegado. Aquela cena se repetia a cada primeira segunda-

feira do mês. Havia 17 anos. Era o seu pequeno, grande segredo.

Uma vida honesta, a sua: ao longo de quarenta anos, para todo

mundo ele era só “o Ginetto”, o velho vigia do cemitério de

Bruzzano, na periferia norte de Milão. Ginetto não temia os

mortos. Gostava de caminhar pelas vielas de cascalho entre

os túmulos, falando com eles em voz alta. Trabalhava até de-

pois do anoitecer, para ajeitar flores e acender velas, murmu-

rando com convicção que no mundo “só se deve ter medo dos

vivos”. Todos o consideravam doido, mas, para ele, assim esta-

va bom: no fundo, sua vida, afora duas ou três escapadelas com

alguma viúva audaciosa, nunca sofrera grandes abalos. Passar

*“Sem mamãe, oh filhinho, você morreu...”, ária da ópera em um só ato Sóror Angéli-ca. (N. da T.)

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por esquisitão até lhe era cômodo. Sobretudo depois daquele

dia. O dia em que um grande segredo começara a fazer parte

da sua vida. “São 11h30 e ela ainda não apareceu. Nunca chegou

atrasada. É muito estranho”, resmungava de si para si.

Ainda recordava como se fosse ontem aquela manhã de 17

anos antes. Era uma segunda-feira. A primeira segunda-feira

de maio. O frio continuava, o céu não prometia nada de bom.

E ele se mantinha grudado ao pequeno aquecedor de sua

guarita, lendo o jornal. Como em todas as manhãs de segun-

da-feira, não tinha nada para fazer: o cemitério estava fechado

ao público. Já ia quase adormecendo, pedindo ao bom Deus

que não mandasse chuva. Teria de renovar todos os vasos de

flores dos túmulos, já que os rapazes da manutenção estavam

derrubados pela gripe. A perspectiva não o alegrava. De repen-

te, o rumor de um automóvel, daqueles potentes. Ginetto não

acreditava nos próprios olhos. Diante do portão havia uma

berlina, daquelas que se viam somente nas festas dos mortos

no Monumentale, o cemitério dos ricos: azul, com cortininhas

cinza para proteger a privacidade dos “patrões”, brilhante como

nova. Ele jamais tinha visto algo semelhante em toda a sua vida.

— O senhor é o vigia? — Um homem alto, magro, num ele-

gante terno cinzento interrompeu de repente seus pensamentos.

— Agora está tudo fechado aqui. Voltem depois, à tarde —,

respondeu Ginetto, aborrecido com aquela intrusão que que-

brava a monotonia do seu início de semana.

— Sabemos disso. Mas “La Signora” precisa visitar o ce-

mitério de qualquer jeito. Isto aqui é pelo incômodo — disse

o motorista sem se alterar, metendo-lhe rapidamente um en-

velope nas mãos e olhando ao redor com ar circunspecto, por

medo de que algum olhar indiscreto pudesse assistir à cena.

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Ginetto abriu às pressas o envelope: havia 500 mil liras,

em espécie. Uma enormidade. Jamais tinha visto tanto dinhei-

ro de uma vez só. Com as gorjetas, algum regateio sobre o

preço das velas e o salário da prefeitura, a muito custo con-

seguia juntar 180 mil liras no fim do mês. Aquele homem lhe

oferecia o salário de três meses. E ele não teria sequer de pa-

gar imposto. Estava ali contando, ainda incrédulo com toda

aquela dádiva de Deus, quando o anônimo motorista o in-

terrompeu de novo.

— E então? Vai nos deixar entrar? Se souber manter este

segredo, o senhor nos verá chegar às 11 horas da manhã de toda

primeira segunda-feira do mês. Nós lhe garantimos esta ren-

da, em troca da mais absoluta reserva. Nenhum comentário.

Com ninguém. Aceita?

Ginetto fez um rápido cálculo: aquela seria a grande virada

em sua vida. O 13 da loteria esportiva, com o qual sempre so-

nhara. Não era honesto? Bem, no fundo não estava roubando

nada de ninguém. Fazia apenas uma gentileza a uma “Signora”

desconhecida. Sem pensar duas vezes, abriu o pesado portão do

cemitério.

— Vou acompanhá-los. Aonde querem ir? Aqui é como se

fosse a minha casa — ofereceu-se.

— Não se preocupe. “La Signora” sabe o caminho.

Gostaria de agradecer a essa “Signora”. Mas uma cortininha

cinzenta a escondia do resto do mundo. E assim vinha sendo,

havia 17 anos. Todos os meses. Pontual como um relógio suí-

ço, a berlina azul chegava às 11 horas. A janelinha descia auto-

maticamente, a mão do motorista estendia o envelope, Ginetto

o metia furtivo no macacão, sentindo-se um ladrão, mas só por

alguns segundos, e meia hora depois, quando o automóvel ar-

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rancava às pressas, deixando para trás um rastro de poeira,

voltava a fechar o bendito portão.

As cortininhas cinza nunca haviam sido afastadas, nem

uma só vez. Ele daria a vida para saber quem se escondia na-

quele carro. Mas o pacto fora claro. Sem perguntas. Nenhuma

curiosidade. E, até então, valera a pena. Em poucos anos, con-

seguira fazer um discreto pé de meia. Ninguém sabia do seu

segredo, nem sequer a esposa Stefania e os três filhos. O dinhei-

ro estava escondido numa pequena filial do Banco de Lugano,

à qual ele comparecia todo mês, dizendo a Stefania que ia à

Suíça para comprar dados e chocolate. E quando a dor nos

ossos se tornasse insuportável, iria se despedir de todo mundo

e voar para o Caribe, como faziam Mike Bongiorno e as gê-

meas Kessler. Tinha lido isso na revista Gente.

“São quase 11h30. O que terá acontecido?”, pensou Ginetto,

começando a se preocupar seriamente. Em tantos anos, “La

Signora” nunca havia faltado ao compromisso.

Era um belo dia de setembro, quente, luminoso. O céu

límpido e uma leve brisa tornavam até agradável a perspectiva

dos ciprestes. “Este cemitério é mesmo um paraíso...”, refletia ele.

Depois, de repente, o ruído da berlina. Ginetto deu um suspi-

ro de alívio. Também naquele mês, sua renda estava garantida.

— Desculpe o atraso, Luigi. “La Signora” está mortifica-

da. Isto não vai se repetir — disse o motorista, estendendo o

envelope para fora da janela.

“Não vai se repetir... Não vai se repetir... Não vai se repe-

tir...”. Essas palavras tinham se insinuado como um martelo nos

pensamentos de Maria. Dentro de seu cérebro, maltratado por

intermináveis noites insones, soavam como um terrível pres-

ságio. “Não vai se repetir...”

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— Chegamos, “Signora” — disse Ferruccio, abrindo a

porta do veículo.

Nessa manhã, Maria estava elegantíssima: como sempre,

para aquele compromisso. Uma blusa de seda creme de Hermès

com estampa em caxemira, uma pantalona marrom e uma

levíssima echarpe de caxemira para proteger a garganta. Ain-

da que não existisse mais nada a proteger, porque sua voz ti-

nha sumido havia algum tempo.

— Espere por mim aqui, Ferruccio.

Enquanto subia lentamente a escada do escuro columbário,

bem agarrada ao corrimão, com medo de cair por causa de suas

tonturas repentinas, Maria se perguntava o que diria o mun-

do, se soubesse. Se soubesse que ela, a divina, a incensada Maria

Callas, naquela manhã anônima de setembro, se encontrava

num cemitério na periferia de Milão. Estava cansada de se fa-

zer perguntas. Cansada de se perguntar o que o mundo pensa-

va dela. No fundo, só se sentia bem ali dentro. No meio daquelas

intermináveis fileiras de nichos, no meio daqueles rostos anô-

nimos, que a fitavam sem expressão, sem querer indagar a seu

respeito. Somente os mortos não pesavam sobre sua alma.

— Aqui estou, meu amorzinho. Mais uma vez juntos,

Omerino.* Nós dois sozinhos e lá fora o mundo, como canta a

Butterfly ao seu Pinkerton.

Maria chorava, como todas as vezes. Deixava as lágrimas

correrem ao longo de suas faces escavadas pela solidão. Por trás

daquela pequena foto de um recém-nascido morto, por trás

daquele nome, Omero, gravado no mármore em letras de ouro,

escondia-se um pedaço da sua vida. Um segredo. Seu filho.

*“Homerinho”, diminutivo de Homero. (N. da T.)

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Sim, aquele filho que ela fora obrigada a esconder aos olhos

do mundo; aquele filho que mandara sepultar às escondidas

num subúrbio remoto de Milão, como se devesse envergonhar-

se dele. Aquele filho que ela não pudera abraçar sequer uma

vez por causa da crueldade do pai, Aristóteles Onassis. O ho-

mem a quem amara perdidamente, o homem que a fizera es-

quecer que era A Callas. Enquanto desempoeirava a lápide

com o lencinho de renda do qual nunca se separava, Maria

repetia como um canto fúnebre o seu acalanto: “Se solo fossi

qui ad abbracciare la tua mamma. La tua mamma così sola...

Ah, dimmi quando potrò vederti in cielo”.* Havia cantado mui-

tas vezes essa romança da Sóror Angélica de Puccini, e a cada

vez a respiração lhe travava a garganta. Somente naquele lon-

go corredor do cemitério de Bruzzano, centenas de peque-

nos nichos, de rostos sem alma, tinham o privilégio de escutar

sua voz. Estendida em toda a sua potência, exatamente como

outrora. Somente Omero podia fazer aquele milagre. Somente

diante da lápide daquele montinho de ossos Maria voltava a

ser A Callas, a mãe, a mulher.

O som da buzina trouxe-a bruscamente à realidade. E a feri-

da se reabriu. Mais uma vez aquele som, que ecoava no longo

columbário, iria separá-la de Omero, o único amor verdadeiro

da sua vida. De repente a cantilena ressurgiu e lhe martelou o

cérebro: “Isto não vai se repetir... Não vai se repetir... Não vai se

repetir...”. De repente aqueles rostos emoldurados dos mortos

ganhavam vida. Também Omero abria repentinamente os olhos,

e em sua mirada não havia amor. Havia apenas a reprovação pelo

*“Se pelo menos estivesses aqui para abraçar tua mamãe. Tua mamãe tão sozinha... Ah,diz-me quando poderei ver-te no céu.” (N. da T.)

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abandono. Maria já não podia suportar tudo aquilo. E, como

sempre lhe acontecia na primeira segunda-feira do mês, correu

gritando toda a sua loucura, e seus gritos ribombaram tremen-

dos naquele longo corredor de mudas presenças. Queria apenas

ir embora dali o mais depressa possível. Queria apenas fechar o

mundo atrás de si.

Ao abrigar-se em sua berlina, gritou histérica: “Ferrucio,

vamos a Paris. A Paris!”, enquanto metia na boca três ou qua-

tro comprimidos de sonífero, com seus longos dedos afuselados

e trêmulos. Começou a respirar profundamente. Aos poucos

se acalmaria, tudo desapareceria. O torpor se apossaria do seu

corpo. Gotas de suor gelado perolavam sua testa. Maria tirou

da bolsa o lencinho de renda com o qual, minutos antes, aca-

riciara o rosto do seu pequeno Omero. Enxugou-se. Subita-

mente, foi invadida por aquele perfume inconfundível. Naquele

lencinho de renda, sua governanta, a fiel Bruna, costumava

pingar todas as manhãs umas gotas de Roger&Gallet. Bastou

esse perfume, de que Maria tanto gostava, para lhe dar um

pouco de tranquilidade. Fechou os olhos e deixou que sua

mente vagueasse. Dentro em pouco, também iria embora para

sempre aquela última, debilíssima voz, que se esforçava por sair

do seu cérebro enfermo: “Não vai se repetir... Não vai se repe-

tir... Não vai se repetir...”.

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Uma janela para o mundo

Nova York, quarta-feira, 29 de outubro de 1929

— Não vai se repetir. Entendeu?

Mamãe Litsa mal acabara de desafogar toda a sua ira contra

aquela monstrinha de filha, e esta já havia desaparecido. Tam-

bém nessa tarde Maria batera a porta da casa e descera corren-

do até a rua, a Washington Heights, para esfriar sua raiva. Ainda

não tinha 6 anos, mas já sabia o que fazer. As ruas de Nova York

não lhe davam medo e eram um paraíso em comparação às la-

múrias de sua mãe. E, também, era tudo calculado: cinco minu-

tos de corrida, com os punhos cerrados, sem olhar ninguém, dois

semáforos a atravessar, e entraria na botica do papai, onde os

perfumes das ervas do farmacêutico se misturavam aos do áci-

do fênico e do tabaco. Que serenidade. Aquela era sua verdadei-

ra casa: sem os gritos da mãe, sem os caprichos e manhas de

princesa da irmã Jackie, que parecia se divertir fazendo-a sentir-

se a Gata Borralheira da família. Ali, ela era a rainha, acarinhada

por todos: pelos clientes da loja, em sua maioria imigrantes gre-

gos, que lotavam aquela pequena farmácia porque só confiavam

nos conselhos do “tatá Geo”, como chamavam seu pai. Ele tinha

uma palavra e um remédio adequados para todos: meio mago,

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meio médico, meio confessor, George Callas era um homem de

bom coração, nunca perdia a paciência. Seus modos gentis, seu

ar senhoril e seu bigode bem tratado e fino deixavam enamora-

das muitas senhoras.

Maria amava perdidamente o pai: gostava de correr para

os braços dele, de respirar seu perfume Roger&Gallet. George

usava-o com parcimônia, só umas gotinhas de manhã, depois

da barba: mas era sua marca inconfundível. Quando ele estava

ocupado com algum fornecedor, Maria, às escondidas, tirava

da prateleira o vidrinho e pingava no lenço algumas gotas.

Assim, tinha a impressão de ter o pai sempre ao seu lado: quan-

do o aspirava com força, todos os medos iam embora, até

mesmo os berros incessantes de Litsa desapareciam.

— Mary, o que houve? Aposto que foi sua mãe, de novo.

Ela mal entrara na loja e o pai já a lia por dentro. Não era

preciso dar explicações. Ele tinha o dom inato de decifrar no

seu rosto qualquer pensamento.

— Tenho ódio dela, não a suporto mais, papai. Desde hoje

de manhã, grita que estou gorda como um cordeiro. Que, em com-

paração com Jackie, pareço uma vaca leiteira. Que não tenho

amigos porque sou feia e nunca vou arrumar um noivo quando

crescer, porque ninguém vai se interessar por alguém como eu. E

também diz que eu tenho péssima índole, ou melhor, que tenho a

mesma índole nojenta que você. E isso eu não engulo.

Maria era uma torrente na cheia. Não chorava, isso era di-

fícil. Mas, sempre que Litsa a comparava negativamente com

o pai, sentia-se como um animalzinho ferido. Seus olhos gran-

des e negros viravam de repente lagos escuros e transforma-

vam aquela menina gorducha, de longas tranças cor de corvo,

numa pequena adulta de sombrios pensamentos.

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— Disse que o pai dela era um general, que o tio-avô era

o médico particular do rei da Grécia... — continuou.

— E terminou xingando o destino, que a fez se casar com um

falido do Peloponeso, um farmacêutico ordinário de Meligala, que

vem a ser o seu pai! — concluiu Geo, com uma gargalhada sonora.

— Pois é, disse isso mesmo. Mas não importa, porque ela

não entende nada. Você é o meu papai e eu gosto de você —

sorriu Maria.

— Sim, mas para deixar sua mãe tão enfurecida, afinal você

deve ter feito alguma.

— Apenas mandei para os diabos nossa vizinha, a Raynes.

Estávamos comendo, você sabe que a mamãe quer que eu espere

até Jackie voltar da escola. Ela tinha acabado de servir a mussaca

quando chegou aquela lá, pedindo agulha e linha para costurar.

E ela, como sempre, correu para buscar: eu não entendo, mas basta

essa senhora pedir alguma coisa e logo se desdobra para contentá-

la. Conosco, não faz isso nunca. Então, quando ela estava lá den-

tro, eu disse à Raynes que fosse comprar agulha e linha e nos

deixasse comer em paz. Nunca a vi tão furiosa. Me disse coisas

terríveis, na frente de todo mundo. Não aguentei e fugi para cá.

Você gosta de mim? Vai me defender das pessoas más?

Maria sabia como conquistar seu tatá Geo: era uma meni-

na de menos de 6 anos, mas já conhecia muito bem as artes da

sedução e da adulação.

— Sabe de uma coisa? Só a perdoo se você cantar para o

papai a canção que Rosalinda lhe ensinou.

Rosalinda era a faz-tudo da botica: uma esplêndida moça

de Assunção que duas vezes por semana dava uma ajuda ao

senhor Callas na loja, para engordar o magro salário do mari-

do, camareiro-mor no Hotel Plaza.

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“Fique longe daquela puta. Só um imbecil como o seu pai

pode se deixar engambelar por uma meretriz daquele tipo”, re-

petia Litsa sem parar. Maria, teimosa, dava um jeito, e por fim

Rosalinda se tornara uma de suas melhores amigas. A menina

gostava de escutar as histórias dela: de como, ainda garota, aju-

dava a mãe no trabalho numa fazenda perdida nos campos do

Paraguai, da maldade da dona da casa, ou de quando, com 15

anos incompletos, fugira para Nova York com aquele que viria a

ser seu marido, depois de se apaixonar perdidamente por ele.

Foi justamente Rosalinda quem primeiro percebeu, dia

após dia, a voz estranha daquela menina difícil. Colocava-a

sobre os joelhos e a convidava a cantar com ela sua canção

preferida, “La paloma.”

“Una paloma blanca...” Quando Maria começava a cantar,

a loja inteira parava. Ela se levantava, plantava-se no centro da

botica e acompanhava seu canto suave imitando com os braços

o voo livre e despreocupado da pombinha branca. Voava e

cantava, esquecida de todo o resto. E, no final da canção,

acompanhava com os olhos aquele espírito livre, celestial,

saudando o elegante voo com um rápido movimento da mão.

E conquistava o aplauso de todos.

Naquela tarde, porém, alguma coisa não funcionou. No en-

tanto, Maria havia cantado melhor do que nunca. Desta vez, sua

exibição não foi seguida de nenhum aplauso. Na loja, não havia

nem sombra de clientes. De fato, fazia alguns dias que só se fala-

va daquilo, inclusive em casa: desde quando, na quinta-feira

anterior, a Bolsa de Nova York despencara, ninguém aparecera

mais na botica. Mamãe Litsa havia sido a primeira a comentar

isso. Mas papai George logo minimizara: “Bobagem. Com ou

sem Bolsa, as pessoas vão continuar adoecendo. Não há o que

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temer.” O fato é que, por todo o fim de semana e até aquela quar-

ta-feira, o pai não tinha levado para casa sequer um dólar.

Em família, a tensão era de se cortar com faca: Litsa e Jackie

não faziam outra coisa além de falar daquilo, de toda aquela

gente que se matara, mergulhada no desespero e na mais ne-

gra miséria. Um destino atroz, que mais cedo ou mais tarde

também os transtornaria, disso tinham certeza. Mas Maria não

queria escutar. Preferia não pensar na realidade, no futuro.

Tinha aprendido que a melhor maneira de resolver os proble-

mas era não pensar neles. Grudava-se ao rádio, escutando a

famosa cantora Rosa Ponselle, transmitida do Metropolitan de

Nova York: gostava muito da história de uma princesa etíope

chamada Aída, obrigada pela guerra a ser escrava de Amnéris,

filha de um faraó, e perdidamente apaixonada por um coman-

dante egípcio, inimigo do seu povo.

Também ela, um dia, seria uma princesa, estava certa dis-

so, e viveria a mais bela história de amor já concedida a uma

princesa. Seu noivo a livraria daquela casa e dos gritos de sua

mãe, e construiria um castelo só para ela.

— Chega. Não quero mais que você saia. Entendeu?

Maria, ainda absorta em acompanhar com o olhar o voo

da sua Paloma, não tinha acabado de ouvir esses gritos quan-

do de repente foi tomada por uma dor violenta. Um tapa

fortíssimo, que atingiu sua cabeça e a fez balançar por alguns

segundos. Mamãe Litsa, chegada de surpresa à loja do papai,

estava furiosa. Parecia mesmo fora de si.

— Não suporto mais seus caprichos de menina mimada.

E tampouco vocês dois, você e essa puta barata, que a defendem

— berrou, dirigindo-se a Rosalinda e George, que haviam fi-

cado atordoados e sem palavras. — Não aguento mais. Quando

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é que você vai entender? — urrava Litsa, virando-se para o ma-

rido. — Não consigo tocar a casa com o dinheiro que você me

traz. Nossas filhas estudam, precisam comer. Jackie tem aulas de

piano e eu não sei como pagar à professora. Ela é empolgada com

nossa filha, diz que Jackie vai ser uma grande concertista. E eu,

faço o quê? Sempre que a aula acaba, finjo estar ao telefone,

porque não tenho nem um dólar na bolsa. Não podemos ser a

vergonha do bairro inteiro. Quer saber? Nós vamos voltar para

a Grécia. Lá, eu sou para todos a senhora Dimitriadis, filha do

general Dimitriadis. Vou embora. Sim, vou embora com as mi-

nhas filhas. Não sei o que fazer de um fracassado como você.

Sem sequer dar tempo ao marido para replicar, Litsa ar-

rastou Maria por um braço para fora da loja:

— Desta vez, você vai ver, sua ranhenta feia. Vai aprender

a não sair batendo a porta. Vai logo perceber quem é que man-

da em casa.

Jackie, sentada ao piano e solfejando, fingindo estar sendo

transportada pela música, acolheu a irmã com o costumeiro

sorriso perdido no vazio, como se Maria fosse transparente.

Litsa tremia como vara verde:

— Jackie, meu bem, vá pegar meus comprimidos. Corra,

antes que essa desgraçada da sua irmã me mate do coração. Oh,

meu Deus! Acho que vou desmaiar. Não suporto mais!

E tome lágrimas. Maria estava habituada. Alguns dias antes,

Litsa dera entrada na emergência do Saint Elizabeth Hospital por

tentativa de suicídio, mas fora liberada menos de meia hora de-

pois. Todos já estavam habituados. Ninguém acreditava mais em

suas ameaças de morte. Até a obsequiosa Jackie, nesse dia, já não

se apressou tanto a buscar os tranquilizantes no aparador.

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Desde então, no entanto, alguma coisa mudou na família

Callas. Litsa se tornou implacável: George e Maria iriam pagar

caro. Ela não dirigiria mais a palavra a nenhum dos dois. Resul-

tado: tatá Geo passava a maior parte do tempo fora de casa. Para

conseguir alguns dólares a mais, tinha decidido deixar na loja a

fiel Rosalinda e transformar-se em representante de remédios.

Seu temperamento cordial lhe garantia um bom círculo de ne-

gócios, e, poucas semanas depois, as contas da casa se acertavam.

Litsa, enternecida, deixava para ele um prato de sopa quente, à

noite. Mas ele chegava tão cansado que quase nunca conseguia

terminá-lo. Uma noite, Maria se levantou para beber às escon-

didas um copo de sidra fresca e encontrou o pai ainda vestido,

com o rosto apoiado à mesa, junto ao prato de sopa, dormin-

do com a boca semiaberta, roncando ligeiramente.

Os dias de Maria corriam todos iguais. De manhã na escola, à

tarde agarrada com o rádio, sonhando com castelos no ar. Ou

então conversando com Vasili, seu irmãozinho falecido alguns anos

antes, na tenra idade de 3 anos. Era seu companheiro predileto de

brincadeiras. Seriam unidos por toda a vida. Seu tio George lhe

confidenciara em grande segredo que Vasili morrera de tifo justa-

mente quando Maria estava na barriga da mãe: os dois tinham

praticamente permutado as vidas. A tal ponto, continuara o tio

George, que Litsa estava convencida de que para o lugar de Vasili

viria um menino. No dia do nascimento de Maria, ela expulsou

do quarto a obstetra que lhe estendia a filha entre os braços. Du-

rante pelo menos uma semana, não quis nem saber daquele bo-

neco de carne, de cinco quilos e meio. “Nunca substituirá o meu

Vasili”, confidenciara, entre lágrimas, ao tio George. Rejeitada desde

o primeiro dia. Condenada à solidão desde a infância. O destino,

para Maria Callas, estava marcado desde o início.

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Na realidade, para a pequena Mary, Vasili jamais tinha

morrido. Simplesmente fora explorar outros mundos, mas

sempre permanecendo ao seu lado. Era esse o universo da pe-

quena Maria. Feito de pequenos grandes sonhos, de castelos

de areia, de fantasmas silenciosos.

Uma tarde, quando Litsa penteava os cabelos rebeldes da

belíssima Jackie diante do espelho, Maria foi tomada por uma

repentina melancolia. Seu pai passava cada vez mais tempo fora

de casa. Um dia, um dia terrível, ela ouviu a mãe dizer ao tele-

fone que o surpreendera beijando no restaurante aquela ra-

meira da Rosalinda.

— Sabia que o papai tem uma amante? Mamãe disse que

ontem à noite ele nem voltou para casa. Dormiu com a outra.

Jackie estava sempre informadíssima sobre as novidades da

família e havia despertado Maria no meio da noite para lhe

contar isso. Sentia uma satisfação sádica em demolir o pai aos

olhos da irmã, aquele pai que sempre reservara suas atenções

para Maria, e não para ela.

— E como é que você sabe? — perguntou Maria, incrédula.

— Ouvi a mamãe contando à Raynes.

De novo, a maldita Raynes no meio. Maria não queria acre-

ditar naquela notícia. Escondeu a cabeça embaixo do traves-

seiro e se esforçou por não pensar. Mexia-se e remexia-se na

cama, sem conseguir adormecer de novo. Talvez Jackie tivesse

razão. Ou melhor, tinha, e muita. Pensando bem, o tatá Geo

não gostava mais dela. A prova? Já não dedicava tantas aten-

ções à sua Mary: não a abraçava como antes, não a acariciava

mais durante a noite, tentando ler dentro dos seus sonhos. Ele

se tornara um estranho. No dia seguinte, Maria descobriu-se

com ciúme até da bela Rosalinda, que lhe roubara as únicas

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carícias que até então a nutriam. Assim, um pouco por tédio,

um pouco por melancolia, de repente, enquanto a professora

explicava as subtrações, lembrou-se daquela velha canção lati-

no-americana que ela costumava cantar na botica do tatá Geo.

“Una paloma blanca...” Ao voltar da escola, Maria quis

entoá-la à perfeição. No centro do seu quartinho, uma cadeira.

Vazia. Era a cadeira de Vasili. Ela o via. O irmão estava ali. Louro,

olhos azuis, de camisinha branca e gravatinha vermelha: com

essas roupas tinha sido depositado no caixãozinho branco, na

foto que a mãe conservava tão ciumentamente no criado-mudo

e que às vezes lhe dava muito, muito medo. Vasili era seu es-

pectador: mantinha-se de braços cruzados, em religiosa aten-

ção. Maria cantaria só para ele sua “Paloma”. Abriu a janela e

aninhou-se junto ao peitoril para imitar o voo da ave. Apertou

nas mãos o lencinho com o perfume do pai. Aspirou-o mais

uma vez e começou a cantar.

Durante alguns minutos, Washington Heights, a ruidosa via

de Nova York, pareceu deter-se por encanto. Um grupinho se

reuniu abaixo da janela para escutar em silêncio aquela voz ex-

traordinária, infantil, mas já tão dramática e sensual, que se

expandia nas notas da “Paloma”. No fim, um longo, longuíssimo

aplauso. Maria se debruçou à janela e quase não acreditou no

que viu. As pessoas olhavam para cima e lhe sorriam. Aquelas

palmas intermináveis, aquele entusiasmo eram todos para ela.

Um encantamento que durou apenas alguns segundos, mas que

a fez compreender que só desejaria na vida a aprovação dos

outros, o consenso de um público. E lutaria por isso até o fim

dos seus dias.

Enquanto esses pensamentos ganhavam forma desordena-

damente na cabeça da pequena Mary, de repente a porta do

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quarto se abriu: eram Litsa e Jackie. Transtornadas. Haviam com-

preendido tudo. E bem depressa. Desesperada, Maria procurou

Vasili com os olhos, mas ele também fora embora, deixando-a

sozinha e inerme. Diante dela só havia olhares que a perscruta-

vam: os olhos ávidos de lucro, cheios de expectativa, de uma mãe,

e aqueles cheios de rancor e inveja de uma irmã. Desde aquele

dia, desde aquele preciso instante, sua vida mudaria para sem-

pre. E nada voltaria a ser como antes.

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