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Revista Estudos Feministas ISSN: 0104-026X [email protected] Universidade Federal de Santa Catarina Brasil Rodrigues da Silva, Cristina Famílias de militares: explorando a casa e a caserna no Exército brasileiro Revista Estudos Feministas, vol. 21, núm. 3, septiembre-diciembre, 2013, pp. 861-882 Universidade Federal de Santa Catarina Santa Catarina, Brasil Disponible en: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=38129769006 Cómo citar el artículo Número completo Más información del artículo Página de la revista en redalyc.org Sistema de Información Científica Red de Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal Proyecto académico sin fines de lucro, desarrollado bajo la iniciativa de acceso abierto

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Revista Estudos Feministas

ISSN: 0104-026X

[email protected]

Universidade Federal de Santa Catarina

Brasil

Rodrigues da Silva, Cristina

Famílias de militares: explorando a casa e a caserna no Exército brasileiro

Revista Estudos Feministas, vol. 21, núm. 3, septiembre-diciembre, 2013, pp. 861-882

Universidade Federal de Santa Catarina

Santa Catarina, Brasil

Disponible en: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=38129769006

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Estudos Feministas, Florianópolis, 21(3): 496, setembro-dezembro/2013 861

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Copyright © 2013 by RevistaEstudos Feministas.

Cristina Rodrigues da SilvaUniversidade Federal de São Carlos

ResumoResumoResumoResumoResumo: Este artigo pretende abordar um tema ainda pouco estudado nas ciências sociaisbrasileiras: as relações de parentesco e família dos militares, no caso, do Exército. A partir deuma etnografia realizada na Academia Militar das Agulhas Negras (instituição do Exércitobrasileiro) e em sua respectiva vila, entre 2007 e 2008, percebeu-se que entre os militares érecorrente o uso do termo “Família Militar”, que indica ora o contingente militar da instituição,ora a família no seu sentido privado (cônjuge e filhos), ora todos esses elementos juntos. Tal usoda noção de família revelou uma concepção particular, que sugere sua ligação com aspectossociológicos também específicos da vida militar. Com base nisso, este artigo tem como focoas noções e formas de família dos militares e busca analisar as relações e configuraçõesestabelecidas entre exército e família.Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave: militares; família; gênero; parentesco; antropologia.

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

A pesquisa que será abordada neste artigo retomaum estudo antropológico sobre as famílias de militares noExército brasileiro.1 O trabalho se baseia nas experiênciasde pesquisa de campo ocorridas na Academia Militar dasAgulhas Negras (AMAN) e em sua respectiva vila militar,ambas localizadas em Resende/Rio de Janeiro.

A AMAN é um estabelecimento de ensino de nívelsuperior responsável pela formação básica dos oficiaiscombatentes da ativa do Exército brasileiro e, portanto, temcomo função formar o aspirante a oficial do Exército,2 graduá-lo como bacharel em Ciências Militares e iniciá-lo naformação como chefe militar, durante quatro anos de curso. Avila militar de Resende, que faz parte do complexo da AMAN,é uma moradia mantida e organizada pelo Exército brasileiro.Possui 580 casas destinadas a oficiais e praças (cabos esargentos), cujas vagas são destinadas ao militar que possui

1 Este estudo resultou de minhadissertação de mestrado, a qualé fruto de uma pesquisa feita como auxílio da FAPESP. Ver CristinaRodrigues da SILVA, 2010.2 O aspirante a oficial situa-se nabase do círculo hierárquico dos ofi-ciais. O quadro hierárquico do Exér-cito brasileiro, em escala do maispara o menos graduado, compre-ende: OficiaisOficiaisOficiaisOficiaisOficiais: oficiais-generais(marechal, general de exército, ge-neral de divisão e general de bri-gada); oficiais superiores (coronéis,tenentes-coronéis e majores); ofi-ciais intermediários (capitães); ofici-ais subalternos (tenentes e aspi-rante a oficial). Praças:Praças:Praças:Praças:Praças: subtenen-tes e sargentos; cabos e soldados.

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CRISTINA RODRIGUES DA SILVA

família (cônjuge e filhos/as, todos considerados seusdependentes) e que trabalha na Academia.

A pesquisa ocorreu entre 2007 e 2008 e, além daobservação e convivência com famílias, contou com arealização de 19 entrevistas com casais (marido e mulher)que se configuram em três formas de família: casais em quesó o marido é militar; em que ambos os cônjuges são militaresou em que só a esposa é militar. Para este artigo, em funçãode se buscar uma tipologia mais sintética das concepçõesde família entre os militares, privilegia-se uma análise dosdiscursos das famílias e dos militares a respeito do queentendiam e como se configuravam enquanto família.

De maneira geral, esse quadro parte da observaçãode uma concepção comum de que a família, em especiala esposa, configura-se como elemento importante (e,sobretudo, pertencente) ao mundo do quartel. E assim, noestilo de vida e sociabilidade das famílias de militares,verifica-se um “modelo de família” esperado, sendo operado(em alguma medida) pelo Exército, e que reflete, emparticular, o caso das famílias em que só o marido é militar.As demais formas familiais apresentam algumas tensões emrelação a esse modelo nativo, nas quais a principal fissurase dá na configuração de gênero3 da mulher. Mesmo assim,parece haver adaptações a esse modelo, e esses novosarranjos permanecem atrelados à vida militar.

O fato de a corporação entender que a família éuma extensão do quartel fez com que a minha presença emResende e a apreensão dos dados como pesquisadorafossem conduzidas da mesma forma: de modo tutelado einstitucional. Minha inserção ao campo foi marcada porcerto “controle” da instituição, no sentido de que eranecessário ter contato e negociar com a Academia para sechegar às famílias. A questão é que a proposta de meuestudo indicava que eu estava, de certo modo, entrandonas “fronteiras simbólicas” do mundo militar, e era preciso a“supervisão” da instituição sobre o conhecimento que eupretendia adquirir com as famílias. Para a pesquisa,portanto, foi necessário um pedido de autorização docomando da Academia,4 e, depois de autorizada, pudefrequentar a AMAN e a vila militar, quase sempre emcompanhia de uma oficial de ligação (militar encarregadapela instituição de acompanhar e prestar apoio aopesquisador, isto é, responsável por ser meu “contato”propriamente dito no local).

Junto com a oficial de ligação, montei uma lista defamílias que pudessem ser entrevistadas e contatamos umaa uma para confirmar a viabilidade de interlocução. Essalista baseou-se no quadro geral de todos os oficiais queresidiam com seus dependentes na vila da AMAN e procurou

3 Apreende-se gênero numa pers-pectiva relacional, ressaltando-seque são nas relações que ossujeitos se produzem e que sãoatribuídas as percepções domasculino e/ou feminino, deacordo com determinadassituações sociais. Sobre isso, verMarilyn STRATHERN, 2006; e SueliKOFES, 1993.

4 Num primeiro momento do cam-po, tentei realizar a pesquisa con-tando apenas com o contato deum tenente-coronel que servia naépoca na AMAN. No entanto, logofui informada de que a notícia deque eu pretendia realizar umestudo na vila militar havia chega-do ao comando da Academia eque seria necessário um pedidode concessão do comandante.

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FAMÍLIAS DE MILITARES: EXPLORANDO A CASA E A CASERNA NO EXÉRCITO BRASILEIRO

atender a um dos meus objetivos de pesquisa: contemplarum universo de famílias de oficiais das mais variadaspatentes e idades. A oficial de ligação tinha familiaridadeapenas com alguns dos entrevistados, mas a aprovaçãodo meu trabalho pelo comando foi a condição essencialpara que as famílias permitissem o contato. A opção porfazer entrevistas foi uma forma de ter acesso ao campo, ealgumas foram realizadas nas casas das próprias famíliasna vila militar; outras, na biblioteca da Academia. A maioriadas entrevistas contou com marido e esposa juntos; masalgumas, por indisponibilidade da agenda de ambos, foramrealizadas separadamente. Dessa maneira, frequentei tantoo ambiente do quartel quanto o da vila militar, participei deeventos sociais e militares da Academia (formaturas e bailescomemorativos, churrasco de confraternização de cursos,reunião do grupo beneficente das esposas de militares5) etive uma proximidade maior com a rotina e com a família daoficial de ligação designada para a minha pesquisa.Ressalta-se que algumas dessas atividades foram convitesque recebi dos meus interlocutores ao longo do campo.6

Assim, nesse caso etnográfico específico, a ideia deque a instituição militar “engloba” a família dos militares érevelada até pelo próprio modo de acesso ao campo,porque, além de todo o “cuidado” que a corporaçãomostrou com relação ao tema, mesmo que eu só entrevistasseesposas “civis” (não militares) – como era um dos objetivoscentrais do meu projeto na tentativa inicial de contato como campo –, eu precisaria de um consentimento da Academia.

Vale dizer que a própria noção de “Família Militar” éum termo nativo que se refere a uma autorrepresentação dainstituição militar e de seus membros, incluindo-se aícônjuges e filhos de militares. Assim, quando estivermos nosreferindo ao termo “Família Militar”, esse estará em aspas emaiúsculas. A ideia nativa de “Família Militar” tambémevidencia um universo de relações dentro do Exército quepode ser caracterizado como segmentário, isto é, o termopode indicar o todo (o Exército) e/ou suas partes (seções,Armas, quadros, as famílias, etc.) dependendo do contextoem que é evocado. De acordo com a fala de uma tenenteda AMAN:

Quando o general fala em ‘Família Militar’, ele abrangetoda a AMAN; senão todo o Exército. Ele entende afamília como algo gigantesco. Quando é meu chefede seção que fala a ‘Família Militar’, normalmente eleestá se referindo aos militares da seção e aos seusdependentes.

Para explorar esses aspectos da “Família Militar”, otexto seguirá a seguinte estrutura: num primeiro momento,

5 O grupo Serviço de AssistênciaSocial da AMAN (SASAMAN) écomposto de esposas de militarese presidido pela esposa do co-mandante da Academia. Objetivaa integração entre as esposas ea ajuda a famílias carentes daregião.6 Sobre as experiências de outrosautores na pesquisa com milita-res, bem como uma discussãomais detalhada de minha trajetó-ria etnográfica nesse meio, verCelso CASTRO e Piero LEIRNER,2009.

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CRISTINA RODRIGUES DA SILVA

apresentaremos de maneira sintética a bibliografia acercados estudos em antropologia sobre militares e, em particular,sobre a família militar. Num segundo momento, apontaremosas características das formas de família encontradas noestudo, sobretudo o “modelo de família militar”, para, emseguida, tecermos algumas considerações finais a respeitoda relação entre casacasacasacasacasa (aqui entendida como a família domilitar – relação cônjuge e filhos/as, e parentes próximos) ecasernacasernacasernacasernacaserna (relações do quartel).

Esclarece-se também que as noções de gênero,parentesco e família7 são compreendidas como relações etratadas de forma dinâmica e contextual, seguindo assim adiscussão iniciada por Claude Lévi-Strauss8 ao procurardesnaturalizar e colocar no plano sociológico a noção defamília. A partir disso, procuraremos também levar em contao debate e problematização que apareceu, sobretudo, apartir dos anos 70 (marcado em especial pela crítica dosestudos feministas) e que se preocupou com uma análisecontextualizada das múltiplas formas familiais de modo aquestionar visões eurocêntricas e buscar abordagens queinterliguem família, raça, gênero, parentesco.9

No entanto, embora a atual preocupação teóricaseja a de desnaturalização da família, temos que levar emconsideração que os grupos sociais podem, e às vezestentam, naturalizar uma ideia de família e que isso pode edeve ser analisado como dado nativo. Esse parece ser ocaso das famílias de militares: o grupo estudado, fortementemarcado por uma ideologia holista, ao se autorreferir como“A Família Militar”, concebe a família como unidade natural,homogênea. Assim, neste trabalho, de forma contextual,estamos lidando com a ideia de que a família é uma noçãonaturalizada pelos agentes estudados e procuraremosperceber que relações, posições e estratégias estão sendoconstruídas para que se reproduza essa imagem e, enfim,para tentar entender, através dos discursos das famílias, ascaracterísticas e o modelo que há de família militar.

Mil itares como objeto de estudo noMilitares como objeto de estudo noMilitares como objeto de estudo noMilitares como objeto de estudo noMilitares como objeto de estudo noBrasil: problematizando a análise daBrasil: problematizando a análise daBrasil: problematizando a análise daBrasil: problematizando a análise daBrasil: problematizando a análise dafamília militarfamília militarfamília militarfamília militarfamília militar

As Forças Armadas (FFAA) como objeto de estudo dasciências sociais brasileiras foram inicialmente estudadaspela ciência política e sociologia. O interesse por partedessas grandes áreas geralmente decorreu a partir doadvento do golpe militar no Brasil na década de 1960 e dasucessão, nessa mesma época, de governos militares emquase toda a América do Sul. A maioria da produçãoacadêmica nesse período tratou de estudos sobre o

7 Sobre isso, ver os estudos de JanetCARSTEN, 2004; MarilynSTRATHERN, 1992. As autorasdefendem a ideia de que osestudos de parentesco devemvoltar sua atenção ao que cha-mam de relatedness (relacionali-dades ou conectividades), numaperspectiva em que as relaçõespodem produzir parentesco paraalém das relações consanguíneas.8 Claude LÉVI-STRAUSS, 1956.9 Cláudia FONSECA, 2007.

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FAMÍLIAS DE MILITARES: EXPLORANDO A CASA E A CASERNA NO EXÉRCITO BRASILEIRO

envolvimento militar na política, abordando as relaçõesentre as Forças Armadas (em especial o Exército) e o Estadobrasileiro (destacam-se discussões acerca dos golpes deEstado; da presença dos militares como atores políticossignificativos em vários períodos de crise política no Brasil;da transição do regime militar para a democracia; e dasrelações civis-militares).10

Por volta dos anos 90, surgiram novas questões e umaoutra perspectiva de análise, cujo foco incidia na visãointerna da organização militar. Tratava-se de compreendera rotina cotidiana dos militares e a construção da suaidentidade, a partir de uma perspectiva antropológica quepartia de um recorte e uma análise proveniente da interaçãoentre antropólogo e nativos. Nesse momento, portanto,buscava-se compreender como as categorias dos própriosmilitares estruturam sua visão de mundo de maneirarelativamente autônoma a outros dados sociológicos, como‘classe social de origem’ ou ‘função política’ dos militares.11

Celso Castro e Piero Leirner12 foram os primeiros aadotarem essa perspectiva. Castro buscou uma análisesobre a formação da identidade social do militar, o quechamou de “espírito militar”, realizando uma etnografia naAMAN. Ao entrar na academia militar, o cadete13 vivencia,através de uma série de ritos expiatórios (formaturas,exercícios físicos, inspeções, manobras, etc.), um processode socialização profissional: a apreensão de valores,atitudes e comportamentos adequados à vida militar, taiscomo disciplina, hierarquia, precisão, rapidez, vigor físico esolidez moral. Essas condutas e princípios acabam porcondicionar tanto a vida profissional quanto a vida pessoaldo cadete, num processo que ocorre em relativo isolamentoou autonomia (em regime de internato), proporcionando apassagem do cadete de uma “vida civil” para uma “vidamilitar”. Assim, há uma distinção simbólica construída evivenciada pelos militares entre “eles” (militares) e os “civis”(os não militares), que acaba sendo um passo primordialpara a formação de uma identidade, de um “espírito militar”nos futuros oficiais de carreira.

Castro define a instituição militar como “totalizante”:

[...] uma experiência singular e básica para aidentidade militar, com a precedência da coletividadesobre os indivíduos. O resultado é a representação dacarreira militar como uma ‘carreira total’ num mundocoerente, repleto de significação e onde as pessoas‘têm vínculos’ entre si.14

O autor nota que a instituição detém certo controle econhecimento da vida do indivíduo que nela está inserido.O “espírito militar”, portanto, compreende valores de preemi-

14 Castro, 2004, p. 46, grifos doautor.

10 Há duas revisões bibliográficassobre o estudo das Forças Armadassob o viés da ciência política esociologia: Edmundo CamposCOELHO, 1985; e Jorge ZAVERUCHAe Helder TEIXEIRA, 2003.

11 Celso CASTRO e Piero deCamargo LEIRNER, 2009.12 CASTRO, 2004; e LEIRNER,1997.

13Cadete é o grau pelo qualpassam os alunos que se tornarãoos futuros oficiais de carreira.

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CRISTINA RODRIGUES DA SILVA

nência da coletividade, hierarquia, espírito de união ecamaradagem entre os militares e acaba se estendendo paraalém das fronteiras profissionais do quartel, abarcando a vidapessoal e familiar, o círculo de amigos, etc. dos militares.

Seguindo essa problemática, Piero Leirner15 realizouuma pesquisa na Escola de Comando e Estado-Maior doExército e procurou mostrar que o registro central na vidamilitar é operado pela hierarquia, estabelecida como umaespécie de fato social total: ela representa um princípioformador de identidade coletiva que estabelece umafronteira clara com o mundo “de fora” (“mundo civil”), aopasso que também estruturaria as relações internas aospróprios militares.

O modo de constituição da hierarquia militar16 partiriada articulação numa única forma hierárquica de dimensõesditas holistas e individualistas: uma “hierarquia específica”,na qual há uma organização sociologicamente holista(reforçada pela existência de uma série de normas para ocomportamento em todos os setores da vida militar, comregras prescritas para a entrada em recintos fechados eabertos, o estabelecimento de uniformes específicos paracada tipo de ocasião, uma maneira específica para agirem cada situação da vida militar) que se combina, aomesmo tempo, a elementos individualistas, tais como aabertura a estratégias individuais de ascensão na cadeiade comando, a adesão a mecanismos universalistas comoo mérito, e a aplicação de preceitos individualistas como aigualdade de direitos, entre outros.

Toda essa discussão sobre a organização e formaçãoda identidade militar nos leva a uma primeira observaçãosobre as famílias de militares: se há uma relação particularentre indivíduo e instituição, traduzida pelo caráter totalizanteda organização militar, também podemos falar que há umarelação peculiar entre FFAA e família.

Assim, de modo geral, enquanto no universoindividualista a família é tomada como algo externo àscarreiras, profissões e a uma dimensão pública da vidasocial, podemos notar que na vida militar a família é vistacomo interior à instituição. E daí o termo “Família Militar” serfrequentemente evocado pelos militares, para indicar ora ocontingente militar da instituição (o elemento “profissional”– todos os militares); ora a família no seu sentido “privado”(cônjuge e filhos/as) e ora todos estes elementos juntos (agrande “Família Militar” – militares e seus dependentes).

Essa ideia também foi percebida em uma dasprimeiras conversas que tive com o subcomandante daAMAN, que na ocasião pronunciou: “Estudar a família militaré querer saber as entranhas da instituição”. Essa fraseapontava duas premissas da visão de mundo dos militares

15 LEIRNER, 1997.

16 Para pensar sobre a hierarquiamilitar, Leirner apoiou-se nosestudos de Louis DUMONT (1992,1993).

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FAMÍLIAS DE MILITARES: EXPLORANDO A CASA E A CASERNA NO EXÉRCITO BRASILEIRO

que acabaram por conduzir o meu trabalho, tanto analíticaquanto metodologicamente:17 a concepção (deles) de quea família do militar é parte interna, central e emocional dainstituição e, consequentemente, a ideia de que é precisoescondê-la, mantê-la sob controle, na sua privacidade.

Logo, nesse caso, falar de família é também falar dainstituição, ou melhor, segundo a fala do subcomandante,é revelar intimidades que possam mostrar fragilidades (o“coração”) de um corpo que se quer forte e guerreiro, aopasso também que é revelar que até as intimidades (a vidapessoal do militar – relações: casa, lazer, esposa e filhos/as)podem ser tuteladas pela instituição.

Desse modo, problematizar um estudo sobre as famíliasde militares é importante para um maior entendimento ereflexão dessa conexão da instituição militar com as famílias.Um dos primeiros esforços para compreender essa temáticano Brasil veio de um artigo de Celso Castro,18 que, preocupadocom a origem social dos militares, buscava refletir sobre um“recrutamento endógeno” da instituição, ou seja, um númerosignificativo de filhos de militares ingressados na AMAN querevelavam uma influência familiar – direta ou não – para aescolha de suas carreiras. Essa endogenia é compreendidapelas formas de socialização que se verificam entre oambiente do quartel e as famílias de militares, isto é, pelainserção destas numa rede de sociabilidade específica (quea profissão militar possibilita ou até mesmo impõe a elas) queas identificam com o mundo da caserna.

Alexandre Barros,19 em um apêndice da sua tese dedoutorado, também procura expor os padrões derelacionamento afetivo entre militares do Exército brasileiro,atentando para uma tendência de casamento de oficiaiscom filhas de seus superiores ou irmãs de colegas deprofissão, bem como uma presença significativa de filhos demilitares seguindo a mesma carreira que o pai nos anos de1961 a 1972. Minha pesquisa também compreende, empartes, os padrões mencionados acima: dos 19 casaisentrevistados, 35% são filhos de militares (dessa porcentagem,há cinco homens militares). Com relação aos casamentos,há dois em que a esposa é filha de oficial superior do marido;e com relação aos filhos/as desses entrevistados, há dois filhosque são militares e duas filhas que têm um relacionamentoafetivo com oficiais subalternos dos pais.

O que observamos aqui, portanto, é que a famíliatoda, de certa maneira, está envolvida com o Exército: vemosque não só os filhos estão seguindo carreira militar, comotambém as filhas estão se relacionando com militares. Háuma “produção” de militares e esposas em potencial queconfigura esse caráter de “fechamento” da instituição militare de um envolvimento entre Exército e família.

17 As condições de campo forambrevemente abordadas na introdu-ção deste artigo. No entanto, ca-be esclarecer que o “controle” eas disposições de militares em se-rem pesquisados também foramobjeto de reflexão de outras etno-grafias. Sobre as experiências deoutros autores na pesquisa commilitares, bem como uma discus-são mais detalhada de minha tra-jetória etnográfica nesse meio, verCastro e Leirner, 2009.

18 CASTRO, 1993.

19 Alexandre BARROS, 1978.

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CRISTINA RODRIGUES DA SILVA

As características da profissão militar como uma vidade risco, com transferências territoriais frequentes, separaçãotemporária da família, treinamentos intensivos, disciplinasevera, exposição a perigos, autorrepresentação de solidezmoral e obediência acima de qualquer direito ou deverpessoal20 determinam e influenciam as condições de vidadas famílias nesse meio. Assim como a mudança constantede residência marca uma dificuldade de adaptação a cadanovo lugar e emprego para as esposas e a ausência domarido/pai no núcleo familiar. Há também uma série deconstrangimentos que incidem sobre as famílias e definemseus papéis frente à comunidade militar, através de regras econdutas, formais ou informais, que visam a uma boaconvivência entre essas famílias, a fim de evitarcomportamentos tidos como “inadequados” e que possamvir a comprometer a carreira do marido militar.

Essas características são encontradas nas pesquisasde Fernanda Chinelli,21 sobre esposas de oficiais-alunos daEscola de Comando e Estado Maior do Exército – RJ, e deJuliana Cavilha,22 que, embora tenha um trabalho sobre osoficiais aposentados do Exército, anuncia alguns modos devida das famílias de militares. Ambos os estudos só estãoconsiderando famílias cujo marido é militar e, mesmo tratandode ambientes distintos (e idades diferentes dos informantes),apontam para uma permanência na configuração dessasfamílias: a alta mobilidade geográfica, a solidariedade eunião entre as famílias de militares e o papel da esposa comocolaboradora da profissão do marido (desempenhando umpapel doméstico como “distinta” mãe e esposa e tambémrealizando um papel público enquanto responsável por reuniras pessoas da rede social da qual faz parte). As autorastambém apontam que a configuração familiar no meio militarsegue a tradicional divisão sexual do trabalho e que, emboraa esposa identifique-se como colaboradora ativa do marido,o casal configura-se no esquema da “família nuclear”.

A minha pesquisa também revelou essas caracte-rísticas, principalmente nos casais em que só o marido é militar.Dessa maneira, é possível notar que os trabalhos brasileirossobre famílias de militares tratam, sobretudo, de discursoscoletados entre esposas e/ou maridos militares, que mostramum discurso “marcado” pela presença da instituição,revelando-nos que, em alguma medida, as famílias demilitares se pensam enquanto tais mais pelo discurso do quepelas práticas cotidianas. Há um intenso cuidado epreocupação dos membros da instituição militar e de seusdependentes ao se falar sobre família e ao se viver enquantofamília. Assim, a princípio, a vida das mulheres e filhos demilitares estaria vinculada à profissão de seus maridos de talmodo que, a meu ver, se verifica um “modelo de família

21 Fernanda CHINELLI, 2008.

20 Maria Celina D’ARAÚJO, 2004.

22 Juliana CAVILHA, 2002.

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FAMÍLIAS DE MILITARES: EXPLORANDO A CASA E A CASERNA NO EXÉRCITO BRASILEIRO

militar” sendo operado (em alguma medida) pelo Exército epelas famílias.

O “modelo de família militar” encontrado nos estudossupracitados (e que inclui minha pesquisa também)compreende: a)a)a)a)a) a ideia de que a mulher (esposa) deve“acompanhar o marido”, pelo fato de que o militar (emespecial o oficial de carreira) tem como característica o ethosnômade (movimentação pelo território brasileiro a cada doisou três anos) e, portanto, a família viveria em trânsito constante;b)b)b)b)b) a ideia de que a mulher, mesmo que exerça uma profissãoou trabalho, deve ser uma “boa” mãe e esposa, deve mantera família unida, administrando quase que sozinha oscuidados com a casa e os filhos, para que o maridodesenvolva a sua carreira; c)c)c)c)c) a esposa ter que, emdeterminados momentos da carreira do marido, assumirpapéis “públicos”, como organizar eventos para promover aintegração da “Família Militar” e participar de organizaçõesfilantrópicas; d)d)d)d)d) a presença da esposa em todos esses eventos;e)e)e)e)e) uma convivência “cordial” e “solidária” com outras famíliasde militares; f)f)f)f)f) um controle e comedimento de palavras econdutas, isto é, uma vida discreta e sempre “com muitocuidado” para que “não se fale demais” e não se comprometaa carreira do marido; g)g)g)g)g) uma vigilância das e entre as própriasesposas como forma de evitar posturas tidas como“inadequadas”; e h)h)h)h)h) uma conduta que deve seguir similitudesem relação ao modus operandi das relações profissionaisdo cônjuge, isto é, observando os protocolos e prescriçõesinerentes à hierarquia militar.23

O que se observa desses aspectos é que fazer partedo “mundo militar” – marcado por preceitos de hierarquia edisciplina, condutas ponderadas, linguajar e códigos pró-prios com gírias e insígnias, cerimoniais; enfim, com cosmo-logia, temporalidade e historicidade próprias24 – implicaincorporar nas famílias um estilo de vida marcado por valorese comportamentos imprescindíveis aos militares, como a“distinção de caráter”, a “retidão moral”, a “solidariedade” eo “companheirismo”, de modo a procurar reforçar o que seentende como um conjunto de características produtoras decoesão no Exército. Logo, esse modelo de família seria umaespécie de modelo ideal da instituição, que expressa eestende o padrão das relações e normas do quartel para oespaço da casa.

As relações entre família e Exército se intensificamdentro das vilas e prédios militares – moradias mantidas eorganizadas pelas FFAA, que são destinadas a militares eseus dependentes. É nas vilas, principalmente, que as esposaspassam a vivenciar a idealizada “Família Militar”, que, nessecontexto, se refere ao fato de que o espaço da vila com-preende famílias que compartilham os mesmos tipos de expe-

23 Cristina Rodrigues da SILVA,2010.

24 Há uma intensa marcação depresença em eventos e cerimô-nias de fatos históricos conside-rados como importantes para asFFAA, como, por exemplo, o des-file do 7 de Setembro. Sobre essastradições militares no Brasil, verCASTRO, 2002.

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riências, anseios e dificuldades e que acabam reconhecendoseus vizinhos (outras esposas e filhos de militares) comoparentes circunstanciais, pessoas às quais se poderãoprocurar apoio no dia a dia. Essa ideia reflete característicasencontradas na caserna (a predominância da coletividade,o espírito de união e a camaradagem) e, portanto, numsentido mais geral, abrange o Exército como umacoletividade, procurando estabelecer uma forte identidadedo grupo.

Assim, pode-se pensar que, uma vez que a instituiçãomilitar naturaliza a família, ela estimula um modelo de famíliapara os militares e também para os seus dependentes. Essaidealização é criada e reforçada nas famílias no convívionas vilas e organizações militares, de modo a “convertê-las”em famílias militares. Logo, pelo discurso das próprias famílias,elas parecem se representar por esse modelo, o que garantiriauma coesão no contexto geral da “Família Militar”, e tambémnas famílias no sentido “privado”. Desse modo, o Exércitocondiciona a família e a torna também uma justificativa paraque os militares exerçam devidamente suas funções – comoum oficial afirma, “a pátria é a sua família”.

A seguir, evidenciaremos as formas familiais encon-tradas no meio militar, de modo a comparar e revelar carac-terísticas de como elas se compõem. Começaremos com aconfiguração familiar mais comum desse meio: as famíliasem que o marido é militar e a esposa é “civil” – a famíliamodelo.

1 A família modelo1 A família modelo1 A família modelo1 A família modelo1 A família modelo

Neste tópico, apresento como se configuram asfamílias cujo marido é oficial de carreira do Exército brasileiro.Trato-as como a “família modelo”, pois é a formação familiarmais encontrada na instituição militar, pelo fato de que,substancialmente, há um número maior de homens servindoo Exército do que de mulheres, bem como por ser a formaçãoque reflete e pela qual se baseia o modelo descritoanteriormente. Foram analisadas 11 entrevistas, divididasentre seis casais mais antigos (casados há mais de 17 anos)e cinco casais mais novos (casados há menos de 11 anos).25

Essas duas gerações de famílias de militares apontam paramuitas similitudes nos estilos de vida e mostram que podemosfalar num modelo nativo da família militar.

A maioria dos casais se conheceu na época deformação inicial dos militares, principalmente na fase dosmaridos enquanto cadetes (alunos da AMAN). Houve doiscasos em que o casal se relacionou depois de alguns anosda formação do marido. O casamento indicava, para asmulheres, o distanciamento de suas famílias de origem e a

25 Os casais mais antigos referem-se a famílias de oficiais superiores(coronéis; tenentes-coronéis); en-quanto os mais novos indicamfamílias de oficiais intermediários(capitães). A classificação, longede realizar generalizações, foiutilizada para mostrar compa-rações entre duas gerações deoficiais.

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FAMÍLIAS DE MILITARES: EXPLORANDO A CASA E A CASERNA NO EXÉRCITO BRASILEIRO

valorização do que eles (o casal entrevistado) concebemcomo família nuclear (marido, esposa e filhos).

Com relação aos casais antigos, os filhos eramadolescentes ou já “quase” adultos e estavam começandoa vivenciar seus projetos e aspirações individuais: saindo decasa para cursarem faculdades ou, no caso de algumasfilhas, saindo de casa quando se casam. Nota-se que, dasseis histórias referentes aos casais mais velhos, há dois casosem que os filhos estão seguindo a carreira militar (e um terceiroque está preparando-se para segui-la) e há dois casos emque a filha tem um envolvimento afetivo com um militar (umaé casada e outra é noiva, ambas com militares recém-formados da AMAN). A opção dos filhos/as pela carreira oupelo casamento com militares, segundo os pais, não teveuma “pressão direta” da família e foi vista como uma escolhamarcada pelo convívio que seus filhos tiveram com o meiomilitar e, enfim, com militares. Já com relação aos casais novos,das cinco histórias, apenas um casal não possui filhos, e orestante apresenta uma grande preocupação, principal-mente por parte das esposas, com o cuidado dos filhospequenos.

As famílias mais antigas passaram, em média, porcerca de dez transferências e, exceto o caso de uma famíliaque passou somente por uma transferência (e que, por isso,consideram-se um “caso raro”), todas as outras passaram pormudanças pelas várias regiões do Brasil. Segundo as famílias,as transferências passaram a ser um problema para os filhosà medida que eles cresciam e apresentavam certa resistênciaem deixar colégios e amigos para uma “nova vida” em outrolugar. Pelo que me foi relatado, em dois casos nos quais esseproblema parecia ocasionar maiores transtornos, decidiu-seque a esposa permaneceria com os filhos num localseparado do marido, enquanto ele cumpriria as exigênciasda carreira no local delimitado pela profissão.

As famílias novas passaram por poucas transferências,e as esposas pareciam que ainda estavam se adaptando aeste constante aspecto da vida militar. As esposas, em suamaioria, indicaram a primeira mudança como a mais difícil,pois era normalmente a primeira vez em que elas iam morarlonge dos pais e em regiões que não conheciam anterior-mente. Com relação à questão do emprego para as esposase da dificuldade em exercê-lo mediante as constantestransferências, a profissão mais recorrida das esposas doscasais antigos era a de professora, porque, segundo elas,permitia a opção de trabalhar em alguns lugares sem umvínculo exclusivo. Algumas esposas tiveram uma formaçãoprofissional antes do casamento, outras aperfeiçoaram oucomeçaram uma formação recentemente. Em um caso, houveum processo de se voltar exclusivamente aos filhos e à família,

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fazendo com que a esposa optasse por ser “mãe” em tempointegral.

De modo geral, trabalhando ou não, essas esposaspriorizavam, e ainda priorizam, o cuidado com a família(pai, mãe e filhos) e foram responsáveis pela manutençãodesse núcleo, referido como “doméstico” por elas, enquantoos maridos seguiam suas carreiras como militares no meio“público”. As que trabalharam ou trabalham, portanto,deixaram o exercício de uma profissão para segundo plano,em prol de uma constituição “estruturada” da família nuclear.Assim, elas viveram suas vidas “acompanhando” as carreirasmilitares dos maridos em função das suas constantestransferências territoriais, priorizando o cuidado com os filhose a manutenção da família unida.

As esposas dos casais mais novos aparentavam umaapreensão com relação à formação profissional: há três casosem que elas se graduaram antes de se casarem e um casoem que, mesmo casada, houve uma preferência por terminara faculdade para depois ter filhos. No entanto, todas, mesmoformadas, não estavam trabalhando na época dasentrevistas, pois a maioria estava atenta à formação eeducação dos filhos pequenos. Mesmo assim, todas tinhama intenção de começar e/ou voltar a trabalhar em breve.

De modo geral, as trajetórias dos casais novosparecem indicar uma estrutura de família nuclearsemelhante à encontrada nos casais antigos. Apesar de asesposas ainda estarem vivenciando alguns dilemas eadaptações com relação à mudanças e ao trabalho, todascompreendem que o casamento com um oficial de carreirado Exército implica ter “sempre que se estruturar em funçãoda carreira deles” e, por consequência, ter que exercer umtrabalho (caso queiram) de forma limitada.

Logo, a ideia de que é preciso “acompanhar omarido”, presente em todos os 11 casos, configura, de certaforma, uma relação entre marido e mulher na qual o empregodo marido (oficial de carreira do Exército brasileiro) seria oponto de convergência da família: é preciso adaptar a famíliaàs exigências impostas ao marido pelo Exército, visto queestas são condições para que a família seja formada. Asdificuldades com as mudanças, com o emprego e a solidãoque muitas esposas sentem pelo fato de que os maridosmilitares quase sempre estão cumprindo atividades emlugares distantes são consideradas características própriasda vida militar, pelas quais essas famílias precisam passar e,sobretudo, às quais precisam se adaptar.

Essas famílias, na maior parte de suas trajetórias, mora-ram em vilas militares, e o próprio círculo de amizades delastambém é composto por outras famílias de militares, quenormalmente são os seus vizinhos de vila. Sobre isso, é impor-

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FAMÍLIAS DE MILITARES: EXPLORANDO A CASA E A CASERNA NO EXÉRCITO BRASILEIRO

tante ressaltar alguns dados sobre a vida nas vilas militares.Como moradia militar, a vila está sujeita às regras impostaspelo Exército, e as famílias também estão expostas a essasimposições. Assim, há regulamentos formais para manter obom convívio e a padronização das casas, como o caso denão ser permitido barulho das 22 às 7 horas no local, nãopoder ser alterada a arquitetura da casa (para realizarmelhorias no lar é necessária autorização da Academia) ede os jardins e quintais da moradia terem que ser mantidossempre bem cuidados. O fato de a vila estar localizada noterritório da AMAN e ser organizada pela instituição faz comque o marido (militar) não consiga se desprender do trabalho,e isso é visto como uma desvantagem tanto por ele quantopor seus familiares.

Esse caráter da moradia como uma espécie de exten-são do quartel acaba gerando um ambiente de vigilânciana vila da Academia. Há, de acordo com os entrevistados,uma constante afirmação de que o oficial tem que ser, durantevinte e quatro horas, o “exemplo” para o cadete, visto que afunção primordial da AMAN é formar o oficial combatente doExército brasileiro. “Ser o exemplo”, segundo os interlocutores,é ser um “militar ideal”, adotar uma conduta “ética e correta”,sempre calcada na disciplina e na hierarquia e reproduzidatambém no modo de o oficial se vestir e se apresentarpublicamente fora do seu horário de serviço, isto é, mesmoquando não estiver fardado. Assim, se quiser sair de casanum fim de semana, o oficial homem “não deve estar com abarba por fazer, usar camisa regata ou chinelo”, e a oficialmulher “não deve usar chinelo, blusa de alcinha, shorts muitocurto ou blusa muito decotada.” No limite, parece haver navila um dever institucional de que não se deve ser o exemplosó para os cadetes, mas mostrar que está sendo o exemplopara os demais oficiais.

Esse discurso da instituição acaba, em algumamedida, incorporado pelos familiares dos oficiais, “criando”um mecanismo de vigilância sobre todas as pessoas queresidem na vila, sejam militares ou não.26 Há, segundo osentrevistados, algumas condutas que serão impostas aosfamiliares, de maneira informal ou através de regras, masque são reflexos do próprio comportamento que a instituiçãoespera do oficial: “ser discreto em suas atitudes e maneiras eem sua linguagem falada.”27 Portanto, há toda uma postura,modo de vestir e comportamentos semelhantes aos que osoficiais são submetidos, que às vezes os cônjuges têm queadotar para manter os padrões de boa conduta que sãoesperados pelo Exército. Essas posturas acabam sendomecanismos de coerção social da instituição para e com afamília do militar; logo, há um controle social/constrangimentoa que os familiares são submetidos. O uso da fofoca é umadas ferramentas que garante a prática dessas condutas.

26 É preciso deixar claro que esta-mos tratando do discurso das famí-lias de militares. Todas essas reco-mendações e prescrições da vidamilitar (como a questão da vigilân-cia e regras de vestimenta) foramressaltadas pelos interlocutores nasentrevistas realizadas.27 BRASIL, 1980.

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Outro dado interessante é que esse envolvimento dafamília com a instituição pode estabelecer relações entre asesposas pautadas pelas hierarquias dos maridos militares.No caso, criam-se constrangimentos entre as esposas deoficiais mais novos com as esposas de oficiais mais antigos,e a amizade entre elas é marcada por condutas ponderadas.

Com relação às esposas, como já indicam Chinelli eCavilha,28 elas acabam tornando-se uma personagemativa e relevante no desenvolvimento da profissão domarido. Esse papel de colaboradoras faz com que elastambém assumam funções externas ao ambiente da casa ede sua vida particular, para que seja reforçado o carátertotalizante da “Família Militar”; é o caso, principalmente,das esposas cujos maridos exercem algum cargo decomando na Academia. É esperado que essas mulheres sevoltem a atividades assistenciais, organizem eventos ereuniões para integrar as outras esposas e, enfim, transmitamconselhos e experiências às mulheres recém-casadas paraque, num sentido mais amplo, seja cultivado e valorizado oespírito de união e solidariedade entre as famílias.

Por fim, a vida na vila – com o convívio entre as famíliasde militares e os papéis e posturas que a esposa do militarassume –, em conjunto com a experiência das constantestransferências que marcam a configuração dessas famíliascujo marido é militar, garante a formação do que chamamosde “modelo de família militar”. A seguir, mostramos algumasvariações desse modelo ideal, com a presença de casaisem que a mulher também é militar.

2 Uma nova família militar?2 Uma nova família militar?2 Uma nova família militar?2 Uma nova família militar?2 Uma nova família militar?

Neste tópico apresento características de famílias emque a esposa é oficial do Exército. Foram analisados oitocasos, dos quais cinco se referem a casais em que ambossão militares e três a casais em que só a mulher é militar.29

2.12.12.12.12.1 Casais militaresCasais militaresCasais militaresCasais militaresCasais militares

Das cinco entrevistas, podemos destacar três arranjosdos casais: a) dois casos em que a esposa se tornou militarpor causa do marido militar, isto é, a escolha pela carreirateve como influência o marido e o modo de vida militar, ehouve a identificação da esposa com esse mundo, ao mesmopasso que a opção pela carreira foi vista como um meio de“facilitar” e “complementar” a vida da família; b) outros doiscasos em que o casal se conheceu durante o curso da Escolade Administração do Exército (ESAEx) e se casaram logo apósa formação como oficiais; e c) um caso em que o casal seconheceu dentro do Exército, ou seja, os dois já eram oficiaise se conheceram no ambiente de trabalho.

28 CHINELLI, 2008 e CAVILHA, 2002.

29 No Brasil, as FFAA passaram aadmitir mulheres em sua corpora-ção, de forma voluntária, a partirde 1980 na Marinha, 1982 naAeronáutica e 1992 no Exército.Há a integração, mas ainda háuma série de limitações para umdesenvolvimento pleno dacarreira como militares. Sobre isso,ver SILVA, 2008. Para uma análisemais detalhada sobre o processode integração das mulheres nosquartéis em diversos países, ver:Mady SEGAL, 1999; HelenaCARREIRAS, 2006; D’ARAÚJO,2004; e Suzeley K. MATHIAS, 2005.

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FAMÍLIAS DE MILITARES: EXPLORANDO A CASA E A CASERNA NO EXÉRCITO BRASILEIRO

Esses casais se ‘movimentaram’30 pouco pelo país eisso se deve ao fato de a maioria ser oficial do QCO31 ou desaúde,32 quadros que não exigem uma alta mobilidadeterritorial. Diferente dos casais em que o marido é oficialcombatente (formado pela AMAN), os casais militarespuderam “fixar-se” mais numa região.

Há, nessas trajetórias, um caso que diverge dosdemais: um casal em que ambos estão no segundocasamento. Nesse caso, a esposa (uma major) indica que orompimento do seu primeiro matrimônio partiu do ex-maridoque era civil. Ele parecia não ter se adaptado à cargaabsorvente de trabalho da mulher militar e não suportou asconstantes ausências, desmanchando o casamento. Amajor ficou quatro anos divorciada e relata que, nessaépoca, o “estranho” era ir aos eventos sociais dos militaresem que todos tinham os seus “pares” (cônjuges) e ela iasolteira. Por conta disso, acabava ficando mais na “rodinhados homens” e escutava comentários das esposas civis demilitares de que ela “não gostava de conversar sobre coisasde mulher”. Esse fato nos leva a pensar na questão dasmasculinidades e feminilidades da mulher no meio militar;nesse momento relatado, a mulher era vista pelas esposascivis dos militares como “mais masculinizada”,principalmente por não ter marido e por se socializar maiscom os homens militares.33

Mas em todas as histórias configuram-se rotinas devida parecidas: o casal, na maior parte dos casos, está emtempo integral na AMAN realizando o serviço e dispõe depouco tempo para administrar a casa e o cuidado com osfilhos (nota-se que todos têm filhos/as). Essas tarefas ficamdestinadas aos parentes de um dos cônjuges, empregadasou babás, mas os casais também procuram dividir entreeles algumas tarefas relacionadas ao âmbito “privado”,como buscar e levar os filhos para a escola, fazer compras eajudar as crianças nas tarefas escolares.

O dia a dia de trabalho é absorvente, mas os casaistambém “priorizam” estar com a família e procuram reuni-la(cônjuges e filhos) em horários de refeições (almoço e jantar,por exemplo) e aproveitar os horários “livres” para fazerematividades com os filhos, como forma de “compensar” aausência cotidiana. A ideia de não estar sempre disponívelpara os filhos é uma das constantes preocupações dasmulheres militares que veem o papel de “mãe” comoimportante, mas nem sempre conciliável com a rotina rígidado quartel. “É uma luta diária”, como define uma das esposas.

Além de ter que conciliar o papel de mãe, as mulheresmilitares, em algumas situações, têm que desempenhar afunção de “esposa de militar”, como por exemplo, no casode uma capitão. O marido dela obteve um cargo de chefia

30 O termo ‘movimentar’ é umagíria usualmente dita no meio mili-tar, que designa o ato de transfe-rência/mudança geográfica dosmilitares e de suas famílias.31 O quadro complementar de ofi-ciais (QCO) compreende oficiaisde ambos os sexos, que já pos-suem um curso superior realizadoem uma universidade civil. A for-mação do oficial do QCO é reali-zada na Escola de Administraçãodo Exército (ESAEx) em Salvador/BA.32 O oficial do serviço de saúdetem formação na Escola de Saú-de do Exército (EsSEx), localizadano Rio de Janeiro/RJ.

33 Por um lado, as mulheresmilitares consideram que, paraserem mais vistas como militares,precisam apresentar menos qua-lidades tidas como femininas(fragilidade, delicadeza) e incor-porar qualidades “naturalmente”masculinas (liderança, coragem);por outro lado, elas reconhecemque o fato de serem mulheresproporciona algumas mudanças,principalmente em atitudes ecomportamentos, gerando umamaior flexibilidade e sentimenta-lismo no meio militar (SILVA, 2008).

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na instituição militar, e ela tinha que assumir o papel deesposa de militar em determinados eventos, como nocerimonial de passagem de comando do marido e naorganização de atividades que reunissem as esposas dosmilitares da guarnição. Nessa perspectiva, vemos que oExército tem dificuldades em lidar com a mulher no ambientede trabalho e, em determinados contextos, “resgata-a” para“assumir” funções tradicionais das esposas “civis” de militares,como meio de evitar possíveis tensões desses dois arranjosda família militar. Parece que há circunstâncias, como asvivenciadas por essa capitão, que a mulher como militar setorna incompatível com a estrutura, organização eprevisibilidade do Exército. Como forma de resolver essesimpasses, o Exército “feminiliza” a militar.

Voltando aos casais, apesar da dificuldade deestarem sempre disponíveis para a casa e os filhos, eles veemuma grande vantagem em ambos serem militares: “acompreensão mútua” que há pelo trabalho e responsa-bilidades profissionais. Eles consideram que o fato decompartilhar o mesmo universo de trabalho melhora oentendimento do casal.

Todas as famílias já tiveram alguma experiência emmorar nas vilas militares, o que reforça o fato do círculo deamizades ser composto por militares, principalmente oscolegas da seção em que trabalham na Academia. Asesposas, em especial, têm maior amizade com as colegasde seção e alegam isso pelo fato de conviverem mais como pessoal do trabalho e de terem pouco tempo paraatividades sociais das quais as esposas civis participam.

Destaca-se, de modo geral, que, com respeito a essescasais militares, ambos têm um entendimento e importânciada carreira um do outro, e isso seria um fator de coesão dafamília. Os casais exercem uma profissão e também dividemtarefas relativas ao âmbito privado da família, bem comocompartilham de todas as esferas individuais de cada um(mesmo ambiente de trabalho, mesmo ambiente de lazer,mesma casa), ao passo que também estão lidando no diaa dia com uma ausência no lar e na criação dos filhos –cuidados que passam, em partes, a serem administradospor terceiras pessoas: parentes, babás ou empregadas. E,no caso de serem parentes, não deixam de ser uma extensãoda própria família.

2.2 Casais em que a esposa é militar e o2.2 Casais em que a esposa é militar e o2.2 Casais em que a esposa é militar e o2.2 Casais em que a esposa é militar e o2.2 Casais em que a esposa é militar e omarido é civilmarido é civilmarido é civilmarido é civilmarido é civil

Nos casos em questão, todas as mulheres militares sãodo QCO e, portanto, pouco ‘movimentadas’ durante a carreiramilitar. No entanto, mesmo com poucas transferências, a vida

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FAMÍLIAS DE MILITARES: EXPLORANDO A CASA E A CASERNA NO EXÉRCITO BRASILEIRO

da família é pautada em torno da profissão militar da esposa.Em todos os casos, o marido deslocou-se para “acompanhara esposa”, seja no processo dela de formação como oficial,seja na transferência para a cidade da organização militarque ela foi designada a servir. Inclusive, nota-se que maridoe mulher já tinham alguma relação afetiva ou eram casadosantes de a esposa tornar-se militar.

Há um casal, por exemplo, que chegou a fazer umamudança de cidade para que seu filho ficasse mais pertoda família de origem da esposa, e isso acabou tambémpromovendo uma facilidade para o trabalho do marido(proximidade da universidade em que trabalha). No entanto,essa situação acabou prejudicando o modo como a mulherconduzia a rotina do dia a dia: como o quartel em quetrabalhava ficava distante da casa, ela passou a ficar muito“ausente” da família, tendo pouco tempo disponível parapassar com o marido, filho e outros parentes. Assim, o casalrepensou a mudança e voltou para a cidade onde a esposatrabalhava.

Todos os maridos trabalham, mas a carga de trabalhodas esposas é maior. Para administrar a casa, há, em doiscasos, uma empregada, mas o marido também pareceassumir mais funções domésticas do que a esposa. Nos doiscasos em que as famílias possuem filhos, há (como nashistórias dos casais militares) uma preocupação da esposamilitar em não ter maior disponibilidade no processo deformação e criação das crianças. Nessas famílias, as criançasficam na creche ou em berçários particulares em tempointegral durante a semana, mas dormem em casa.

O círculo de amizades dos casais se efetiva mais commilitares; no caso das esposas, a amizade é maior entre as/oscolegas de trabalho e, no caso dos maridos, a amizade podeexpandir para militares que eles conheçam por frequentaremo clube militar da vila ou devido à convivência com outrosmilitares por conta do trabalho que exercem, como no casode um marido que é técnico em informática e tem umaclientela de militares.

De modo geral, podemos dizer que essa configu-ração da família inverte, em parte, a tradicional divisãosexual do trabalho: vemos a rotina da família adaptada àprofissão militar da mulher, em que a mulher é dedicada àprofissão, e o marido, mesmo que trabalhe, executa partedas tarefas domésticas e apoia o trabalho da esposa.

As duas formas familiares vistas neste tópico destoam,em parte, do modelo padrão das famílias de militares,alterando os arranjos dos casais, sobretudo, nas percepçõesde masculinidades e feminilidades dos indivíduos (emespecial das mulheres). Assim, podem-se gerar desconfortose tensões entre o que é “tradicional” no Exército e o que é

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“novidade” (como o caso do casal militar); todavia, comoestratégia, o Exército constrói relações que se adéquam, emalguma medida, às regras e normas da instituição. Logo,apesar de estes casais (em que os dois ou só a mulher émilitar) serem arranjos novos para o Exército, ainda seprocura manter o “modelo de família militar” em evidência.

Casa e caserna: considerações finaisCasa e caserna: considerações finaisCasa e caserna: considerações finaisCasa e caserna: considerações finaisCasa e caserna: considerações finais

Com o intuito de investigar mais a respeito de umobjeto de estudo ainda não muito explorado nas ciênciassociais brasileiras – as famílias de militares –, mostramosneste texto as trajetórias de três formas familiais que se situamno universo militar: a) casais em que só o marido é militar; b)casais em que ambos os cônjuges são militares e c) casaisem que só a esposa é militar.

No primeiro caso, para além do fato de que as famíliasse arranjam no modelo “clássico” de família nuclear moderna(a mulher como “dona de casa” e o marido como “provedor”),a esposa vivencia uma feminilização de suas ações e rela-ções: temos a esposa como a produtora da casa (relaçõesno âmbito privado), a que faz a comida, que cria os filhos, eque, enfim, cuida de tudo na família para que o maridopossa exercer a profissão. Ela é a peça-chave para a vidaemocional e para a estruturação da vida do militar; portanto,a esposa também não deixa de reproduzir a vida militar, poiscompartilha e está envolvida numa série de atividades queacontecem no quartel, ao mesmo tempo que “sustenta” a casa.

As duas outras formas de família configuram algumasvariações a esse modelo. A principal fissura se dá naconfiguração de gênero da mulher: é como se a esposa semasculinizasse em muitas de suas ações pelo fato de sermilitar, uma profissão que demanda uma alta carga horáriade trabalho e que tem como prioridade o “dever pela pátria”,elemento externo e envolvente da casa. Assim, o papel de“tradicional mulher de militar” é transfigurado numa babá,faxineira, em algum parente próximo (mãe ou irmã) ou passaa ser, em alguma medida, realizado pelo marido não militar.Quando, por exemplo, é a irmã ou mãe que assumem essasfunções, elas aparecem como substitutas femininas“legítimas” da esposa militar, pois operam como uma extensãoda família, sendo, de alguma forma, substância/sangue daesposa. Mas esses novos arranjos não significam que afamília, enquanto relação esposa/marido/filhos, deixe deexistir, pois essa relação é constantemente atualizada nocompartilhar refeições e em momentos como buscar e levaros filhos na escola.

Observa-se que, em todos os casos trabalhados nessetexto, o Exército centraliza grande parte das relações da

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FAMÍLIAS DE MILITARES: EXPLORANDO A CASA E A CASERNA NO EXÉRCITO BRASILEIRO

família, ou melhor, além de ser exigida grande dedicaçãoà corporação por parte do cônjuge militar e relativo “apoio”e acompanhamento do cônjuge não militar, as amizades,de ambos, acabam pautadas pelo ambiente da caserna,e a própria estrutura da família é condicionada ao modode vida e rotina de trabalho do cônjuge militar, ao passoque também é demonstrado que a família é garantia deuma carreira promissora no Exército e que ela também évalorizada e evocada diversas vezes para que se mantenhaa coesão no ambiente militar.

Assim, no que diz respeito à relação entre Exército eFamília, num primeiro momento do texto, mostramos que oExército engloba as famílias, pelo fato de que há a construçãode uma rede de relações no primeiro que definem os papéis,obrigações e benefícios das segundas, fazendo com que osmembros da família se pensem/identifiquem como uma famíliamilitar, e isso parece ser garantido através das relações detroca (princípios de união e solidariedade entre as famílias),dos constrangimentos sociais (a vigilância e a fofoca) e doseventos e cotidiano das vilas e organizações militares.

O “modelo de família militar”, que opera com todo oseu potencial nas famílias em que só o marido é militar, nosmostra essa intenção da instituição, em estimular, de certomodo, nas famílias, uma série de condutas e valores própriosda vida militar (hierarquia, disciplina, retidão moral). Dessaforma, é possível concordar com o que Castro e Leirner34 jádiziam sobre a dinâmica da instituição militar (sobretudo, aprecedência da coletividade sobre os indivíduos e aincorporação de valores como honra e solidariedade) seestender à vida pessoal de seu efetivo – Cavilha e Chinelli35

também já afirmavam isso.No entanto, há também um duplo movimento entre

casacasacasacasacasa (aqui entendida como a família do militar – relaçãocônjuge e filhos/as, e parentes próximos36) e casernacasernacasernacasernacaserna(relações do quartel). Não só a caserna determina relaçõesna casa, como a casa determina relações na caserna; porexemplo, há no Exército a ideia de sempre querer “se familia-rizar”, isto é, de recorrer a um linguajar e valores encontradosna família (confiança, apoio), como o fato de se autointitularcomo “Família Militar” – em que se espera que tanto militarescomo seus dependentes passem a se ver enquanto parentescircunstanciais, pessoas das quais se busca suporte e comas quais se pretende conviver. Esse exemplo nos mostra que oidioma do parentesco é aberto a manipulações etransformações,37 de modo que os militares reconhecem seusvizinhos (outras famílias de militares) como parentes.

Outra situação que vai ao encontro dessasobservações é o uso que os militares atribuem à ideia demoradia e Brasil. Como uma das metas da profissão militar é

36 “Parentes próximos“ se referema pais, mães e/ou irmãs/os dosfamiliares.

34 CASTRO, 2004; e LEIRNER, 1997.

37 Janet CARSTEN, 2004.

35 CAVILHA, 2002; e CHINELLI,2008.

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a “vivência nacional” (circulação por várias regiões do país),em suas constantes transferências geográficas os militares esuas famílias circulam pelas vilas militares (denominadas poreles de PNRs – Próprios Nacionais Residenciais). Essas vilassão padronizadas e, tanto física quando administrativa-mente, seguem uma estrutura prevista pelo Exército. Assim, acirculação por essas PNRs e pelo Brasil produz a ideia de quea casa (moradia) no fim é o Brasil, da mesma forma quetambém estabelece que, em qualquer lugar do país, vocêpode encontrar a “Família Militar”, sendo comum, ao longoda trajetória de vida dessas famílias, elas se reencontraremem uma nova localidade.

Desse modo, casa e caserna estão intimamenterelacionadas a tal ponto que, em certos momentos, elas semesclam, não havendo fronteiras fixas entre a família e oquartel (entre o “privado” e o “público”). No limite, podemosfalar que o Exército é produtor de parentesco/família, mesmoem configurações familiares diferentes. Vimos no texto quehá uma “militarização” da família (esposa e filhos/as), aopasso que alguns se tornam militares e outros/as se casamcom militares. Assim, no interior da família, o Exército produznão só militares como casamentos: filhas que podem setornar esposas de militares em potencial e também militaresque se casam entre si. Inclusive, até irmãs de militares quepassam a conviver na casa cuidando dos/as filhos/as dosoficiais também podem “arranjar” casamento com militares– como encontrei em duas histórias por mim analisadas.

Dessa maneira, a ideia do Exército como uma família,para além do seu uso metafórico, também nos revela quepode se transformar numa realidade muito literal. Nessesentido, e com relação aos dados explorados neste texto,podemos pensar o Exército enquanto relação e, no casoespecífico, pela lógica da família.

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[Recebido em 8 de maio de 2012,reapresentado em 15 de outubro de 2012

e aceito para publicação em 5 de dezembro de 2012]

Families of Families of Families of Families of Families of MMMMMilitary ilitary ilitary ilitary ilitary PPPPPeople: eople: eople: eople: eople: TTTTThe he he he he HHHHHome and ome and ome and ome and ome and TTTTThe he he he he BBBBBarrack arrack arrack arrack arrack IIIIInside nside nside nside nside TTTTThe Brazilian Armyhe Brazilian Armyhe Brazilian Armyhe Brazilian Armyhe Brazilian ArmyAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This article aims to address a topic with little research in Brazilian social sciences:family and kinship relations of military people, in this case, inside the Army. From an ethnographyperformed between 2007 and 2008 at the Agulhas Negras Military Academy (Brazilian Armyinstitution) and inside its village, it was implied that the use of the term “Military Family” is frequentamong the militaries, indicating either the military contingent of the institution, or the family in itsprivate meaning (spouse and children) or both elements together. Such definition of familyrevealed a very particular conception of it, suggesting its connection to sociological aspectsalso specifics for the military life. Based on that, this article focuses on the concepts and forms ofmilitary families and seeks to investigate the relations and configurations established betweenArmy and family.Key WKey WKey WKey WKey Wordsordsordsordsords: Military; Family; Gender; Kinship; Anthropology.