l1 texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

29
PARTE I [RE] DISCUTIR TEXTO E GÊNERO

Upload: praetece

Post on 07-Jul-2015

1.244 views

Category:

Documents


10 download

TRANSCRIPT

Page 1: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

APRESENTAÇÃO 17

PARTE I

[RE]DISCUTIRTEXTO E GÊNERO

Page 2: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

TEXTO: CONCEITOS, QUESTÕES EFRONTEIRAS [COM]TEXTUAIS1

Anna Christina Bentes (UNICAMP)Renato Cabral Rezende (UNICAMP)

1. LINHAS GERAIS DE UMA NOÇÃO TÃO VASTA

Conceito controverso, mote de disputa teórica de um campo,quando não de domínios teóricos diferentes, quiçá inconci-liáveis. Fenômeno com o qual lidamos cotidianamente emnossas práticas comunicativas, de tal forma que se pode

afirmá-lo parte constitutiva (inalienável?) de nossas vidas. Fenômenoainda cujas diversas manifestações nos são familiares e reconhecíveis,mas para o qual não consta haver uma definição teórica que satisfaçaconcomitantemente a todos os campos de pesquisa que o abordam.

Texto2. Noção que, como sói acontecer com fenômenos muito am-plos, e não raro complexos — veja-se noções como “língua” ou “comuni-dade de fala” —, não prescinde de certas máximas epistemológicas parauma reflexão sistemática a seu respeito. Uma delas deriva do fato de otexto prestar-se a ser objeto de estudo em diferentes disciplinas das ciên-cias humanas, tomadas em separado ou mesmo inter-relacionadas. Sejana filosofia, na lingüística, na sociologia, na filologia ou na antropologia,o objeto textual abre possibilidades de investigação sobre sua estrutura eseu funcionamento internos, sobre a natureza da relação entre texto e

1. Gostaríamos de agradecer as contribuições, os questionamentos e as sugestões de InêsSignorini, Ingedore Koch, Edwiges Morato e Marco Antônio R. Machado, que muito contribu-íram para o formato final deste capítulo. Este trabalho foi realizado com o paoio do CNPq-Processo no 141963/2005-0

2. Empregaremos neste trabalho a palavra texto em referência a texto verbal, nas modalidadesoral e escrita.

Page 3: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

20 [RE]DISCUTIR TEXTO, GÊNERO E DISCURSO | Anna Christina Bentes e Renato Cabral Rezende

contexto e sobre um possível gap entre forma textual e intenção autoral,somente preenchido no momento de sua recepção pelo ouvinte/leitor.

Assim, e se, segundo assinala Hanks ([1989]2008: 118), uma vastagama de disciplinas subjaz a termos como “texto”, “textualidade”, “dis-curso” e “retórica”, parece-nos legítimo pensar o texto, ao menos noâmbito das ciências humanas, como uma espécie de “domínio público”de pesquisa. Por sua própria natureza multimodal e multifacetada, ofenômeno textual não admite “verdades” teóricas (ou políticas) quenão raro insistem em lhe impingir. Em nosso entendimento, vale mais apercepção de Osman Lins:

Os textos: em princípio, doação universal. Se sobre eles opinamos ou se osiluminamos de algum modo — se fazemos com que se ampliem em nós —,operamos sobre um patrimônio coletivo.

Como corolário desta, a de texto como “domínio público” das ciênciashumanas, outra máxima epistemológica tão cara a uma reflexão sistemáti-ca acerca do objeto textual diz respeito à relação entre o objeto texto e ateoria que o propõe. Lidar com a inevitável, mas sempre bem vinda ques-tão “Afinal, o que é mesmo um texto?” não foge ao preceito saussurianode que é o ponto de vista que constrói o objeto (Saussure, [1916] 2000:15). Da mesma forma, trabalhar com o texto constitui-se numa tarefa theorydependent (Titscher et alii 2000: 20), ou seja, é uma tarefa que pode obterdo esforço interdisciplinar para a integração de aspectos da produção, com-preensão e efeitos de sentidos a partir de textos, uma das possíveis chavesepistemológicas para seu empreendimento (van Dijk, 1983).

Neste capítulo, pretendemos apresentar e problematizar o esforçoteórico empreendido por alguns pesquisadores na elaboração do con-ceito de texto verbal no campo dos estudos da linguagem (Hjelmslev,1943; Harris, 1952; Harweg, 1968; Beaugrande & Dressler 1981, 1997;Hanks, [1989] 2008, dentre outros)3 e no âmbito da lingüística antro-

3. Neste capítulo, procuraremos fazer uma discussão a partir de alguns autores que conside-ramos importantes para nossos objetivos, considerando sempre como um diálogo mais de apro-ximações do que de diferenças, a produção teórica brasileira no campo, representada principal-mente pelos trabalhos de Marcuschi (1983), Fávero e Koch (1988), Koch (1989, 1990, 1997,2002, 2004), Marcuschi (2001), que criaram e desenvolveram caminhos e reflexões originais nocontexto brasileiro sobre o objeto textual.

Page 4: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

TEXTO: CONCEITOS, QUESTÕES E FRONTEIRAS [COM]TEXTUAIS 21

pológica (Hanks, [1989, 2006] 2008; Bauman, 2004). Nosso objetivo érefletir acerca do status do texto enquanto artefato lingüístico e en-quanto produto/processo sociocultural (Hanks, [1989] 2008: 119). Paratal, enfocaremos as contribuições de autores em duas frentes.

A primeira dirá respeito às modificações pelas quais passou o conceitode texto no interior do campo da lingüística, a partir de perspectivas que

(i) consideram apenas os fatores lingüísticos internos ao próprio textocomo essenciais e suficientes para a definição do objeto textual;

(ii) postulam o conceito de textualidade de forma a dar conta dofenômeno textual e

(iii) conciliam uma abordagem formalista, que lida com elementosconstitutivos de textos enquanto artefatos fechados, com umaabordagem sociológica do fenômeno, cujo foco central resideno campo da produção, distribuição e recepção de textos emlarga escala.

Em um segundo momento, dando continuidade à última aborda-gem apresentada, trataremos da possibilidade de discutir, a partir de umexemplo, os diversos níveis de interpenetração entre texto e contexto,considerando principalmente

(i) a postulação de um modelo de contexto que auxilie na compreen-são das aproximações e afastamentos entre estes dois conceitos e

(ii) o entendimento de que há um contínuo movimento de“descontextualização/recontextualização” dos textos, ou seja,a existência do potencial de os textos circularem e serem fala-dos e/ou lidos em outros contextos diferentes daquele em queforam produzidos, potencial este que parece dizer algo funda-mental sobre a própria natureza do objeto textual.

2. LÍNGUA, TEXTO E TEXTUALIDADE

Um entendimento satisfatório do fenômeno textual, em qualquerarcabouço teórico, requer que a relação entre teoria e objeto se faça amais clara possível. A imprescindibilidade dessa relação reside no fato de

Page 5: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

22 [RE]DISCUTIR TEXTO, GÊNERO E DISCURSO | Anna Christina Bentes e Renato Cabral Rezende

que o entendimento das diferentes concepções de texto se dá em funçãode que a postulação e o reconhecimento dos elementos constitutivos dofenômeno textual estão previstos nessa relação; é ainda em função delaque a possibilidade de ampliação, ou mesmo de deslocamento, do concei-to se faz plausível. No entanto, torna-se imperativo frisar que a referidarelação se sustenta em função do conceito de língua que subjaz à plata-forma teórica mobilizada para o trabalho de investigação.

De um ponto de vista epistemológico, a língua circunscreve a concep-ção de texto, “mais ou menos como o céu, o solo e a sua unção desenhampara o homem um habitat familiar” (Barthes, 1953: 9). A língua, aindaacrescenta Barthes, “é muito menos uma provisão de materiais do que umhorizonte, isto é, ao mesmo tempo um limite e uma estação”. Em outraspalavras, num dado arcabouço teórico, uma concepção “X” de texto só épossível e concebida tal como este arcabouço a prevê em virtude de umentendimento de língua que favoreça a mobilização, a organização e a pro-pagação de alguns recursos lingüísticos (e/ou de outra natureza) na cons-tituição de uma unidade lingüística de sentido (Koch, 2002).

Em Hjelmslev ([1943] 1975), a relação língua x texto é propositada-mente marcada em virtude de estes conceitos coordenarem a elabora-ção dos objetivos de pesquisa da teoria hjelmsleviana, quais sejam,

(i) a formalização e a descrição exaustiva das relações queestruturam os sistemas lingüísticos e

(ii) ponto fundamental da teoria, a superação dos limites do siste-ma e a compreensão do funcionamento “dessa totalidade glo-bal que é a linguagem” (Hjelmslev, 1975: 23).

Herdeiro do estruturalismo saussuriano, Hjelmslev, no entanto, acres-centa-lhe um avanço teórico-analítico. Apesar de ter como foco a langue,uma teoria da linguagem para o autor deve também abordar a parolesaussuriana como fonte de fenômenos de observação e análise. Hjelmslevpostula a possibilidade de que fenômenos do uso lingüístico tidos comoheteróclitos em Saussure, possam ser analisados teoricamente com vistasa sua sistematização. Sua proposta consiste em encontrar em toda mani-festação empírica da língua princípios de regularidade organizacional ecombinatória dos elementos em uso que reflitam a própria regularidadedestes elementos no interior da estrutura do sistema lingüístico:

Page 6: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

TEXTO: CONCEITOS, QUESTÕES E FRONTEIRAS [COM]TEXTUAIS 23

A teoria da linguagem se interessa pelo texto, e seu objetivo é indicar umprocedimento que permita o reconhecimento de um dado texto por meio deuma descrição não contraditória e exaustiva do mesmo (Hjelmslev, 1975: 19).

A relação entre língua e texto em Hjelmslev consiste em uma deter-minação direta: é impossível a existência de um texto — qualquer mani-festação verbal empírica com certa regularidade organizacional ecombinatória dos elementos em uso — sem a existência de uma línguaque fundamente essas relações (Hjelmslev, 1975: 44). A partir de dadaseleção de textos, o analista desenvolve um “fundo de conhecimentos”que dizem respeito aos processos ou aos textos aos quais eles se aplicam,de modo que, a partir desses conhecimentos, torne-se possível explicar o“sistema ou a língua que preside à estrutura de todos os textos de mesmanatureza, e que nos permite construir novos textos” (Hjelmslev, 1975:20). Mais do que isso, acrescenta o autor, “é preciso, ainda que, sobre abase de um conhecimento da linguagem, ela [a teoria da linguagem] pos-sa fazer o mesmo para os textos de qualquer língua” (ibidem).

Não obstante sua preocupação em, a partir da relação texto x língua,entender a linguagem como um todo, Hjelmslev não foca, e não definediretamente, o texto como uma unidade lingüística. Qualquer ato delinguagem — incluindo-se aí textos empíricos, os diferentes gênerostextuais — é um texto para Hjelmslev. O autor chegou a considerar queo conjunto de todos os enunciados emitidos por um indivíduo em suavida seria um texto. Como assinalam Fávero & Koch (1988: 30), paraHjelmslev, o texto é uma “mera forma de existência da língua”, de for-ma que, se se pensar em termos da relação língua e texto, “o texto éuma estrutura sintagmática, ao passo que a língua é uma estruturaparadigmática” (ibidem). Há, portanto, uma correlação estrutural en-tre texto e língua no pensamento hjelmsleviano. Todo texto é tido comouma manifestação estruturada, cujas partes são dependentes entre sina composição do todo, semelhantemente à língua. Como diz o autor,“tanto quanto suas partes, o objeto examinado só existe em virtudedesses relacionamentos ou dessas dependências [mútuas entre as par-tes]” (Hjelmslev, 1975: 28).

Duas observações se fazem necessárias acerca dos postuladoshjelmslevianos. Apesar da observação de Fávero & Koch (1988: 30) so-

Page 7: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

24 [RE]DISCUTIR TEXTO, GÊNERO E DISCURSO | Anna Christina Bentes e Renato Cabral Rezende

bre o conceito de texto hjelmsleviano, é interessante também observarque o autor prevê a existência de algum princípio organizacional internoa essas manifestações de língua (textos), princípio que os categoriza emclasses a partir de seus fatores estruturais. A segunda observação vem naesteira da anterior: embora se saiba que tanto a língua quanto o texto sãoconstituídos por relações de ordenação e/ou dependência entre suas par-tes, a escolha de Hjelmslev pelo texto como ponto de partida analíticorevela um fator de pioneirismo do autor ao iniciar uma reflexão teóricasistemática sobre língua em uso, denominada por ele de texto.

De igual importância para a construção de um estatuto teórico parao texto é o artigo de Z. Harris, Discourse Analysis (1969 [1952]). Harrispropõe a aplicação do método distribucionalista — análise de ocorrên-cias e distribuição de morfemas4 — não apenas à frase, mas ao énoncésuivi, ao discurso, considerado como um todo específico. Esse ponto departida teórico é determinante para a construção do texto como unida-de singular. Harris pressupõe a linguagem em uso como fonte de obser-vação: “A linguagem [langue] não se apresenta por palavras ou frasesindependentes, mas em discurso concatenado [discours suivi], seja umenunciado reduzido a uma palavra ou uma obra de dez volumes, ummonólogo ou uma discussão política”. Dado que não há outra via pelaqual a linguagem intermedeies as relações entre os sujeitos que não soba forma de textos, Harris discrimina o texto, atribuindo-lhe fenômenospróprios em meio aos demais fenômenos da língua.

Em vez de propor a análise de uma frase isolada, como já dito, umaexpressão lingüística independente (independent linguistic expression),Harris propõe o texto como unidade distinta da frase, e privilegiada,portanto, para a aplicação do método distribucionalista: [o texto] “com-põe-se de uma seqüência de expressões ou sentenças ligadas, podendoir desde sentenças de uma só palavra até uma obra em vários volumes”(Harris, 1952 apud Marcuschi, 1983: 5).

4. Diz o autor: “Buscamos estabelecer empiricamente como eles [elementos lingüísticos notexto] aparecem — quais são os que sempre se encontram próximos de outros, ou no mesmoambiente que outros —, quer dizer, a ocorrência relativa desses elementos uns com relação aosoutros. Neste sentido, nosso método se aproxima mais daquele utilizado na elaboração dagramática de uma língua (que estabelece as relações distribucionais entre os elementos) do queaquele utilizado na elaboração de um dicionário” (Harris, 1969: 14).

Page 8: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

TEXTO: CONCEITOS, QUESTÕES E FRONTEIRAS [COM]TEXTUAIS 25

Nota-se nesta definição a vontade de especificar elementos textuaisem relação mútua. Em Hjelmslev, como visto, prevêem-se relações entre“partes do texto”; em Harris, são contempladas as ligações entre as fra-ses/orações do objeto textual, constituindo procedimentos que assegu-ram ao objeto sua existência enquanto fenômeno lingüístico organizadoe limitado extensionalmente. Definitivamente, em Harris, aprofunda-se arelação do texto com seus elementos constitutivos, tornando-a mais or-gânica e independente do sistema lingüístico, o que o diferencia deHjelmslev. Não significa a total negação da relação língua e texto, masnão mais a determinação direta do sistema sobre o processo — a “ocor-rência de elementos no texto só é feita em função deste próprio texto;quer dizer, em função dos outros elementos deste mesmo texto, e não emfunção do que existe alhures na língua” (Harris, 1969: 11).

Em Harweg (1968 apud Fávero & Koch, 1988) prevalece o interes-se pela investigação da existência de elos necessários entre frases naconstituição do fenômeno textual. O texto, no entendimento do autor,consiste numa sucessão de unidades lingüísticas constituída mediante umaconcatenação pronominal ininterrupta. Segundo explica Koch (2004: 4),nos termos de Harweg, o termo “pronome” significa toda expressão lin-güística (substituens) que retoma outra expressão lingüística correfe-rencial (substituendum), de modo que um texto resulta de um “múlti-plo referenciamento”. São os pronomes, portanto — entendidos segun-do a concepção do autor —, os mecanismos que estabelecem relaçõesde correferência no interior do texto, convertendo uma seqüência defrases em uma estrutura coesa na qual os mesmos objetos, lugares oupessoas são retomados e referidos mediante expressões diversas.

É notável nos autores um percurso comum, qual seja, a busca decerta noção de “coesão” entre partes de um texto. Seminal em Hjelmslev,essa organicidade necessária entre partes do texto se especifica em Harris(por meio das ligações entre palavras e sentenças) até ser filigranadaem Harweg. Não é gratuito o fato de este autor definir o texto comocomplexo lingüístico que dispõe de recursos de retomada, antecipaçãoou reelaboração da informação, recursos que condicionam sua consti-tuição enquanto objeto lingüístico dotado de sentido. Revela, ao con-trário, a disposição para a formulação e a investigação de fenômenos

Page 9: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

26 [RE]DISCUTIR TEXTO, GÊNERO E DISCURSO | Anna Christina Bentes e Renato Cabral Rezende

especificamente textuais. Como explica Koch (2004), as relaçõesreferenciais, a correferência, a seleção do artigo, concordância dos tem-pos verbais, relações entre enunciados não ligados por conectores ex-plícitos, todos estes (e outros) fenômenos foram elencados para a in-vestigação das relações que visam à estruturação interna de texto(s) —os mais diversos possíveis —, na tentativa de construção de uma coe-são relacional entre suas partes constitutivas e uma coerência para oobjeto. Aqui, o objeto textual é, segundo Hanks ([1989] 2008), umatext-language, que, numa perspectiva lingüística, como as apresentadasacima, é vista como a realização da língua por meio de uma manifesta-ção (oral ou escrita) coerente e contextualmente interpretável.

Para o aprofundamento das reflexões acerca de fenômenos textu-ais, é de inegável valor o projeto coletivo de elaboração, descrição eformalização de regras inerentes a um dado sistema lingüístico que per-mitam a geração de textos. Trata-se de um projeto investigativo coleti-vo de elaboração de gramáticas textuais5.

Análogas às gramáticas da frase propostas por Chomsky, as gramáti-cas textuais definem o conjunto finito de regras que os falantes nativosde dada língua possuem, um conhecimento de natureza intuitiva (umacompetência textual, semelhante ao conceito de competência lingüísti-ca), que gera a estrutura subjacente de todos os textos, os não-textos ouos textos agramaticais (Beaugrande, 1997). Ainda segundo Beaugrande(1997), a visada do projeto é em prol da reconstrução do texto como umsistema uniforme, estável e abstrato. Significa dizer que mais do que en-tender o fenômeno textual da maneira como o compreendia Harweg,“simplesmente como uma seqüência de cadeias significativas” (Koch,2004: 6), busca-se, com essa tentativa, entender o conceito de texto comoa “unidade lingüística mais alta, superior à sentença”; o “signo lingüísticoprimário”, cujos componentes são tidos como signos parciais (Hartmann,1968 apud Koch, 2005: 7). Em contrapartida, Beaugrande & Dressler(1981) avaliam que o projeto das gramáticas textuais é tributário da pro-posta de Harris (1952) e argumentam que com as gramáticas textuais

5. Para uma história do campo, cf. Beaugrande & Dressler (1981), Fávero & Koch (1988),Bentes (2001), Koch (2004).

Page 10: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

TEXTO: CONCEITOS, QUESTÕES E FRONTEIRAS [COM]TEXTUAIS 27

não se provou nada, exceto que as sentenças partilham propriedades es-truturais tanto no texto quanto na gramática da língua. Não foram des-cobertos padrões para distinguir os textos dos não-textos.

A partir de então, o esforço dos autores passa a se concentrar nabusca de uma propriedade distintiva do texto, a textualidade. A noçãode textualidade de Beaugrande & Dressler (1981), pensada em termosde procedimentos que asseguram ao objeto textual sua existência en-quanto fenômeno lingüístico estruturado, orientado para o estabeleci-mento de relações de sentido, conjuga elementos lingüísticos e extralin-güísticos em sua composição, como veremos.

Antes, esclareça-se que esse deslocamento teórico — de ampliaçãoda relação língua x texto para língua x texto x contexto — a partir do qualemerge a noção de textualidade, proposta por Beaugrande & Dressler(1981), é caudatário do desenvolvimento de uma nova percepção teóri-ca sobre a própria noção de linguagem, fato que culmina em uma novaabordagem do fenômeno textual, a partir das influências da teoria daatividade verbal e da teoria dos atos de fala. Na avaliação de Koch (2004:14), estas teorias constituíram os “impulsos decisivos” no desenvolvi-mento dos novos programas de pesquisa sobre o texto.

Grosso modo, a linguagem, no arcabouço teórico de ambas, é en-tendida como uma forma de atividade humana construída nas/pelasinterações sociais estabelecidas por interlocutores dotados de objeti-vos comunicativos. A linguagem é uma atividade interacional,estabelecida segundo as intenções de seus participantes e realizadapor/através de um conjunto de operações verbais. Como já propunhaSchmidt (1973 apud Koch, 2004: 16), a língua é menos “um sistemade signos, denotativo, mas um sistema de atividades ou de operações,cuja estrutura consiste em realizar, com a ajuda de um número abertode variáveis e de um repertório fechado de regras, determinadas ope-rações ordenadas, a fim de conseguir dado objetivo, que é informa-ção, comunicação, estabelecimento de contato”. Se a língua pode servista como um sistema de atividades e operações, é possível atribuiraos textos a qualidade de formas de ação verbal? Schmidt (1973) res-ponde afirmativamente:

Page 11: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

28 [RE]DISCUTIR TEXTO, GÊNERO E DISCURSO | Anna Christina Bentes e Renato Cabral Rezende

Texto é qualquer expressão de um conjunto lingüístico num ato de comunicação

(no âmbito de um jogo-de-ação comunicativa), sendo tematicamente orientado

e preenchendo uma função comunicativa reconhecível, ou seja, realizando um

potencial ilocutivo reconhecível (Schmidt, 1973 apud Marcuschi, 1983: 9).

Não é gratuito, portanto, que Beaugrande & Dressler (1981) postu-lem a textualidade como um princípio organizacional e comunicativodo texto. Se, como escrevem, “a questão mais urgente é como os textosfuncionam na interação humana”, o “status de texto” só é alcançadomediante a satisfação de sete padrões para seu funcionamento, os pa-drões de textualidade6:

(i) coesão(ii) coerência, estes dois centrados no texto;(iii) intencionalidade,(iv) informatividade,(v) aceitabilidade,(vi) situacionalidade(vii) intertextualidade, estes dois centrados nos interactantes.

Contemplados como uma totalidade, os sete padrões aliam a organi-zação interna a uma função comunicativa do texto.

Um texto será definido como uma OCORRÊNCIA COMUNICATIVA que satisfaz a setepadrões de TEXTUALIDADE. Se qualquer um desses padrões não é considerado, otexto não será comunicativo. Portanto, textos não-comunicativos são tratadoscomo não-textos (Beaugrande & Dressler, 1981).

Ambas as definições de Schmidt (1973) e Beaugrande & Dressler(1981) revelam a força teórica da teoria da atividade verbal e da teoria

6. “Estes padrões funcionam com princípios constitutivos (depois de Searle, 1969: 33s.) dacomunicação textual: eles definem e criam a forma de comportamento identificável como comu-nicação textual e, se desafiados, aquela forma de comportamento não mais funciona. Devemexistir princípios reguladores (novamente seguindo Searle) que controlem a comunicação tex-tual mais do que a definam. Vislumbramos pelo menos três princípios reguladores: a eficiência dotexto depende de seu uso em comunicar com o mínimo de esforço por parte dos participantes; aefetividade do texto depende de ele conseguir deixar uma forte impressão e de criar condiçõesfavoráveis de forma a atingir o objetivo desejado; a adequação de um texto diz respeito àconcordância entre o contexto e as formas por meio das quais os padrões de textualidade sãosustentados” (Beaugrande & Dressler, 1981).

Page 12: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

TEXTO: CONCEITOS, QUESTÕES E FRONTEIRAS [COM]TEXTUAIS 29

dos atos de fala em mostrar a natureza actancial da linguagem, por meioda qual os sujeitos podem interagir socialmente e assim atingir suasfinalidades comunicativas. Mais do que afirmar que o texto é estruturadolingüisticamente, as definições valorizam o fato de que a estrutura tex-tual — “qualquer expressão de um conjunto lingüístico” — é determi-nada por aspectos pragmáticos, visto que deve atender a uma funçãocomunicativa, a realizar “um potencial ilocutivo reconhecível”.

Ora, o desafio da proposta conceitual de Beaugrande & Dressler (1981)está em proceder para que ela — na qual se inclui a noção de textualidade— seja uma continuidade, mais do que uma confrontação, ou mesmorefutação, de teorias e métodos que a antecederam. Ao mesmo tempo,como proceder, valendo-nos de uma indagação de Hanks ([1989] 2008:130), para que a textualidade não seja concebida apenas como uma pro-priedade de objetos simbólicos (textos), mas também como um instru-mento, um produto e um modo de ação social por meio de textos?

De fato, não escapa aos autores a preocupação de assegurar em suasreflexões espaço para a unidade composicional do texto. Das definiçõesde texto até agora vistas, como as de Harris ou Harweg — e, mais distan-ciadamente, de Hjelmslev —, advém uma percepção de “organicidade”semântica e lingüística entre as partes do texto que Beaugrande &Dressler (1981) nomeiam como o princípio da coesão textual. A coesãodepende de relações gramaticais entre os elementos da superfície textu-al e diz respeito aos “procedimentos por meio dos quais os componen-tes da superfície do texto são mutuamente conectados no interior de umaseqüência” (Beaugrande & Dressler, 1981). Para os autores, é a coesãoque oferece “estabilidade ao texto enquanto sistema, via a continuida-de de ocorrências”7.

Já em Beaugrande (1997), o duplo caráter do texto enquanto arte-fato lingüístico e processo sociocultural é aprofundado. Resta claro porque o autor concebe a textualidade então como um princípio de duploalcance. Por um lado, não é negada à textualidade o status de “qualida-

7. A noção de “continuidade”, como empregada pelos autores, baseia-se na suposição de queas várias ocorrências no interior de um texto e sua situação de utilização estão relacionadas umasàs outras. (...) Ao usar o termo “coesão” (“junção”), os autores querem enfatizar essa função dasintaxe na comunicação (Beaugrande & Dressler, 1981).

Page 13: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

30 [RE]DISCUTIR TEXTO, GÊNERO E DISCURSO | Anna Christina Bentes e Renato Cabral Rezende

de de todos os textos”. Por outro, acrescenta-lhe Beaugrande a condi-ção de “um empreendimento humano quando o texto é textualizado,isto é, quando um ‘artefato’ de sons ou marcas escritas é produzido ourecebido como um texto”:

Percebemos que a textualidade não é apenas uma propriedade ou traçolingüístico (a), ou ainda, um conjunto desses, mas um modo múltiplo de cone-xão ativado toda vez que eventos comunicativos ocorrem. (...) Fomos impeli-dos a restaurar a conexão social do texto com o contexto e dos produtores ereceptores do texto com a sociedade, formalmente eclipsadas por nosso fococonvencional no autor e no indivíduo (Beaugrande, 1997: I.41-43, II. 5).

Resta claro, sobretudo, que a guinada teórica, como já dito, advindada teoria da atividade verbal ou da teoria dos atos de fala empreendida nointerior do campo dos estudos textuais revela a saudável inquietação docampo em não aceitar uma suposta vocação para análise de elementosestritamente semântico-formais em detrimento de fatores pragmáticos. Amudança na concepção de textualidade, de propriedade interna a um“texto-artefato” para “princípios de textualidade” como empreendimen-to conjunto entre interactantes (em Beaugrande 1997, como visto aci-ma), é um passo decisivo da pesquisa nos estudos textuais para o estabe-lecimento de uma ligação visceral entre língua x texto x contexto.

Ainda assente na idéia de textualidade ou tessitura (e da próprianoção de texto) como empreendimento conjunto, é também de inesti-mável valor teórico para o campo dos estudos textuais a passagem, pro-posta por autores como Mondada (1994), Mondada & Dubois (1995),Marcuschi e Koch (1998), Marcuschi (2000), Koch (1997, 2002, 2004),da noção de referência (tão cara à semântica formal) para a noção dereferenciação. No lugar de uma relação referencialista do “texto-obje-to” com o mundo empírico, esses autores teorizam sobre a construçãode relações discursivas, nas quais os referentes “situados” no mundoganham existência discursiva própria; uma relação de texto-processo,portanto, em que “objetos de discurso” são criados e (re)categorizadosno fluxo discursivo com vistas ao estabelecimento de relações de senti-do. Em Koch (2002, 2004), por exemplo, procede-se a uma reformulaçãocompleta do conceito de coesão textual, sendo que, atualmente, para aautora, o texto deve ser pensado nos termos de dois “grandes movi-

Page 14: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

TEXTO: CONCEITOS, QUESTÕES E FRONTEIRAS [COM]TEXTUAIS 31

mentos” — o de retroação (os processos de referenciação)8 e o de pros-pecção9 (os processos de progressão textual) — que “presidem à cria-ção da tessitura textual” (Koch, 2002: 121).

Partindo para uma perspectiva que leve em conta as relações entreos processos de produção e de recepção de textos como inescapavelmenteimbricados, Hanks ([1989] 2008: 119-120) assume que “texto” e“textualidade” são termos pertencentes a uma “família de conceitos li-vremente interconectados”. Conforme argumenta o autor, texto, aindaque definido de modo pouco preciso, pode ser designado como “qual-quer configuração de signos coerentemente interpretável por algumacomunidade de usuários”.

De tal formulação, explica Hanks, se obtêm alguns pontos-chave parao entendimento da natureza do objeto. O termo “signo”, por exemplo,abre questões tais como tipologia textual, meio e unidades composicionais;já o qualificador “coerentemente” distingue o texto de um amontoado defenômenos não textuais ou antitextuais; por fim, a interpretabilidade poruma comunidade de usuários desloca, segundo o autor, a reflexão sobreo fenômeno de uma preocupação com a estrutura imanente do discursopara a matriz social em que o discurso é produzido e compreendido, des-tacando o texto como um fenômeno comunicativo.

Hanks ([1989] 2008: 118-168), por seu turno, se propõe o desafiode conciliar uma abordagem formalista, que lida com elementosconstitutivos de textos enquanto artefatos fechados, com uma aborda-gem sociológica do fenômeno, cujo foco reside no campo da produção,distribuição e recepção de textos em larga escala, assumindo a posiçãode que se as propriedades formais e funcionais de signos complexospodem auxiliar no estabelecimento da textualidade, é o ajuste entre aforma do signo e algum contexto mais amplo que determina sua coe-rência fundamental.

8. Os estudos sobre a problemática da referenciação têm tido um grande desenvolvimentono Brasil. A esse respeito, cf. as obras de Koch (2002, 2004) e as obras organizadas por Cavalcan-te, Rodrigues e Ciulla (2003) e por Koch, Morato e Bentes (2005).

9. A respeito dos estudos desenvolvidos no Brasil sobre, por exemplo, os processos deprogressão tópica (um dos procedimentos da progressão textual), cf. Koch (1992, 2002, 2004),Pinheiro (2005), Jubran (2006) e Koch, Bentes e Rezende (2006).

Page 15: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

32 [RE]DISCUTIR TEXTO, GÊNERO E DISCURSO | Anna Christina Bentes e Renato Cabral Rezende

Assim, para o autor, a noção de “con-texto” é constitutiva das e cons-tituída pelas noções de texto e textualidade, estando ambas em diálogoainda com outras noções como “co-texto”, “meta-texto”, “pré-texto” e“sub-texto”. Diz Hanks que a nuança semântica precisa e a extensão dotermo ‘texto’ mudam segundo quais porções desta gama de conceitos seescolhe abranger. Uma pergunta torna-se inevitável então: como proce-der para que a textualidade seja concebida não como uma propriedade deobjetos simbólicos (textos), mas sim, e ao mesmo tempo, como um ins-trumento, um produto e um modo de ação social por meio de textos?(Hanks, [1989] 2008: 130).

Fica evidente nessa perspectiva teórica o vigor da alteridade na cons-tituição da unidade textual. A interação10 — escutar/ler um texto —dos sujeitos com o texto torna-se de fundamental importância para con-ferir completude ao fenômeno textual. Recorreremos ao argumento dateoria fenomenológica do texto literário, apresentada por Ingarden (1973apud Hanks, [1989] 2008: 131), para explicar a interação entre aspec-tos concretos e aspectos potenciais dos processos de produção e de re-cepção dos textos.

Hanks explica que, segundo Ingarden, a obra literária pressupõe doismomentos; o primeiro, abstrato, esquemático11 e potencial; o segundo,concreto, atual e totalmente especificado. Na base do primeiro momen-to, está a concepção de que toda representação é inerentemente incom-pleta, plena de espaços de indeterminação; estes últimos são espaços embranco em que detalhes são omitidos, conexões são elididas e conheci-mentos de mundo são requeridos, de forma a se chegar de forma maiscompleta a uma especificidade semântica. Abstrato e incompleto, por-tanto, o texto só adquire especificidade semântica, “concretude” (comoo próprio autor designa), quando esses detalhes são (re)construídos pelo

10. Koch & Travaglia (1989) e Koch (1990), com base em autores como Michel Charolles, jádiscutiam esses aspectos da interação entre sujeito, texto e leitor com base na postulação de quea coerência textual é um “princípio de interpretabilidade.”

11. Hanks ([1989] 2008) chama a atenção para o fato de que a idéia de estruturas esquemáticasapresentada por Ingarden (1973) pode ser também encontrada em outras reflexões tais como asproduzidas nas teorias do discurso (Brown & Yule, 1983; Cicourel, 1985; Hanks, [1987] 2008;Lakoff, 1987), assim como nas teorias literárias da recepção (Jauss, 1982), nos estudos etnográficossobre os gêneros (Bauman & Sherzer, 1974).

Page 16: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

TEXTO: CONCEITOS, QUESTÕES E FRONTEIRAS [COM]TEXTUAIS 33

ouvinte/leitor; ou quando ele se engaja no estabelecimento de conexõesentre idéias; ou ainda, quando seu conhecimento de mundo é requerido.

O foco no status esquemático do artefato textual nos força a repen-sar a idéia de que os limites entre o que pertence e o que não pertenceao texto é fixo. Assim, ainda segundo Hanks ([1989] 2008), a idéia deque a estrutura do trabalho textual é apenas parcialmente determinadatambém contradiz a noção formalista-estruturalista de texto como umsistema funcional e completo internamente e traz, como conseqüência,uma visão do status do texto como uma realidade inescapavelmentehistórica, já que recepções concretas ocorrem em contextos sócio-his-tóricos e encontram-se sujeitas a convenções interpretativas.

Neste sentido, Hanks afirma que as fronteiras textuais podem serdialeticamente constituídas na interpenetração entre os momentosesquemáticos e aqueles concretizados, entre os elementos intratextuais e osextratextuais. Ou ainda, alternativamente, pode-se conceber, segundo o au-tor, que essas fronteiras são gradientes, mostrando que existe um leque defatores que dependem das combinações de possíveis traços esquemáticos ede traços específico-concretos, ou seja, que as fronteiras do texto são maisbem concebidas se as considerarmos como extremamente permeáveis, in-completas e momentaneamente estabelecidas (Hanks, [1989] 2008: 132-3).

Por fim, a incompletude do texto devido à indeterminação é apenasum dos sentidos propostos por Ingarden. Se a incompletude textualrelativa à indeterminação consiste em ser parcial, conforme comenta-do acima, a incompletude textual devido à constante revisão das suces-sivas concretizações que fazem a história desse objeto consiste justa-mente em ser provisória. Assim, segundo Hanks ([1989] 2008: 134), oque é relativamente permanente em um texto é necessariamente par-cial, ou seja, apenas parte daquilo que se deseja como completude, en-quanto a totalidade assumida nos modelos estruturais é apenas umarealização momentânea, um preenchimento provisório dos espaços embranco. Hanks ([1989] 2008) dá continuidade a essa discussão fazendoa seguinte pergunta: como um intérprete/leitor faz para derivar umacompleta ou, pelo menos, adequada recepção de um texto? Para o au-tor, uma resposta (mesmo que parcial) pode ser dada: “Embora qual-quer fragmento de texto possa ser interpretado de múltiplas formas (por

Page 17: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

34 [RE]DISCUTIR TEXTO, GÊNERO E DISCURSO | Anna Christina Bentes e Renato Cabral Rezende

meio de centrações alternativas), a gama de possibilidades nunca é infi-nitamente aberta no mundo social real. Ao contrário, ela se encontraem parte inscrita na forma textual, e também é em parte debatida pelosatores” (Hanks, [1989] 2008: 136). É sobre essa maneira dialética deperceber o texto que discorreremos na próxima seção.

3. TEXTO E CONTEXTO: UMA RELAÇÃO CONSTITUTIVA

Até aqui, fizemos um percurso que procurou centrar-se na apresen-tação do(s) conceito(s) de texto e, por conseqüência, na construção doque o campo acabou por denominar textualidade. Nesta seção, faremos,em um primeiro momento, uma breve discussão do conceito de contextoa partir de reflexões recentes no campo da lingüística antropológica. Emum segundo momento, apresentaremos uma breve análise de um dado,de forma a exemplificar as interpenetrações entre texto e contexto e paraque possamos compreender o contínuo entextualização/descontextualiza-ção /recontextualização postulado por Bauman (2004).

Segundo Hanks ([2006] 2008), um dos focos principais na pesquisaem linguagem nas últimas décadas têm sido as relações entre linguageme contexto. Vários trabalhos têm demonstrado uma ampla variedade deformas por meio das quais a linguagem é “formatada” ou mesmo “mol-dada” por contextos sociais e interpessoais no interior dos quais os even-tos comunicativos ocorrem.

Para o autor, o foco no contexto, seja como um fator de restrição/delimi-tação da produção do discurso, seja como um produto mesmo do própriodiscurso, levou ao desenvolvimento de abordagens detalhadas da produçãode linguagem, já que é principalmente na elaboração de enunciados faladose/ou escritos que linguagem e contexto se articulam (Hanks, [2006] 2008).

Goodwin e Duranti (1992) concebem o contexto como um frameque envolve um determinado evento/objeto, mas que, principalmente,fornece subsídios para uma interpretação adequada deste evento. Con-forme analisa Koch (2002), para esses autores, a idéia de contexto deverecobrir tanto o entorno sociocultural no qual a atividade comunicati-va se desenvolve (macrocontexto), quanto seu cenário imediato de

Page 18: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

TEXTO: CONCEITOS, QUESTÕES E FRONTEIRAS [COM]TEXTUAIS 35

ocorrência (microcontexto). Além disso, os conhecimentos prévios dosparticipantes (contexto sociocognitivo) e a própria linguagem (co-tex-to) — “o modo como a fala mesma simultaneamente invoca contexto efornece contexto para outra fala” (Koch, 2002: 23) — também são en-tendidos como elementos contextuais.

Schiffrin (1994) afirma que os lingüistas freqüentemente assumemque a produção de enunciados se dá nas/através de interações entredois tipos diferentes de informação, a saber:

1) informação semântica ou informação textual, isto é, o con-junto estável de enunciados significativos transmitidos pelaprópria língua;

2) informação contextual, que, conforme a autora, é sempreidentificada como secundária, pois está ligada a algum elemen-to de maior evidência e que, por este motivo, atrai a atençãodo ouvinte/leitor.

Para a autora, contexto é entendido como um conjunto heteróclitode elementos, podendo “alterar-se conforme o foco de nossa atenção”.O contexto não é dado a priori, mas construído segundo as negociaçõesefetuadas pelos sujeitos durante sua própria atividade comunicativa.Trata-se de um conceito dinâmico, portanto, cuja determinação éininterruptamente reconstruída nas/por atividades lingüísticas a seremrealizadas ou interpretadas pelos sujeitos:

Contexto é, portanto, um mundo preenchido por pessoas produzindo enuncia-dos: pessoas que possuem identidades sociais, culturais e pessoais, conheci-mento, crenças, objetivos e necessidades, e que interagem entre si em váriassituações definidas socialmente e culturalmente (Schiffrin, 1994: 364).

De acordo com Hanks ([2006]2008), determinadas abordagens12

teóricas desenvolvidas no campo dos estudos da linguagem, incluindoas exemplificadas acima, possuem em comum o fato de tratarem o con-texto como uma estrutura radial, cujo ponto central é o enunciado ver-

12. Cf. Hanks ([2006] 2008: 169-203) para uma melhor compreensão das diferentes abor-dagens do contexto pressupostas pela teoria dos atos de fala, pelas abordagens griceanas à con-conversação, pela teoria da relevância, pela etnometodologia e pela análise da conversação, consi-deradas pelo autor, conforme veremos adiante, como abordagens “individualistas“ do contexto.

Page 19: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

36 [RE]DISCUTIR TEXTO, GÊNERO E DISCURSO | Anna Christina Bentes e Renato Cabral Rezende

bal. Ainda para o autor, elas compartilham um compromisso com oindividualismo metodológico, que prioriza o individual acima do coleti-vo, e procuram reduzir as estruturas sociais a comportamentos indivi-duais. Essas abordagens partem sempre da perspectiva dos produtoresdo discurso, derivam “contexto” de “relevância” (que diz respeito aoproblema do “foco” apresentado por Schiffrin acima) e da emergênciamomentânea da situação comunicativa. Nessa perspectiva, contexto éum concomitante local da fala e da interação, efêmero e centrado emprocessos discursivos emergentes.

Continuando sua discussão sobre a noção de contexto, Hanks afir-ma que outros autores desenvolveram abordagens13 sobre a linguageme o discurso nas quais o contexto não é nem local, nem efêmero, masglobal e durável, apresentando um escopo social e histórico maior doque qualquer ato localizado. Enquanto as primeiras abordagens encon-tram-se baseadas na lingüística, na psicologia e na microssociologia,denominadas pelo autor como “individualistas”, outras abordagens ba-seiam-se em teorias sociais e históricas de larga escala, abordagens de-nominadas “globais”. Neste sentido,

A produção de enunciados não é tomada como sendo o centro gerador docontexto, como o é para as abordagens individualistas. Ao invés disso, ossistemas de referência explicativos são as condições sociais e históricas ante-riores à produção do discurso e que o restringem. A descrição lingüísticaconvencional é um exemplo porque postula que os usos individuais da lin-guagem, para sua inteligibilidade, dependem dos sistemas lingüísticos (gra-matical e semântico) que sejam logicamente anteriores a qualquer ato de fala.Na medida em que estas perspectivas tratam da produção do discurso comoum todo, as unidades relevantes são ou abstrações analíticas (o falante idea-lizado da lingüística) ou coletividades (comunidades, classes, redes sociais,tipos de agentes definidos por sexo, idade, profissão, local onde moram etc.)

13. Hanks ([2006]2008) chama a atenção para o fato de que há várias abordagens globais.Como exemplos, ele apresenta a perspectiva foucaultiana de discurso, a perspectiva bourdiesianade mercados lingüísticos e de capital simbólico e cultural e a perspectiva da Critical DiscourseAnalysis (CDA), esta última envolvida principalmente com três questões: poder, exploração edesigualdade. Podemos ainda incluir aqui como exemplo de abordagens gerais sobre o contextoa teorização de van Dijk (1977, 1981, 1983), apresentada ao grande público por meio do livroCognição, discurso e interação, organizado por Koch (1992). A chamada “virada cognitivista”,muito tributária das reflexões desenvolvidas pelo autor, é postulada por Koch (2004).

Page 20: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

TEXTO: CONCEITOS, QUESTÕES E FRONTEIRAS [COM]TEXTUAIS 37

Do mesmo modo, o quadro temporal da produção do discurso não é o desen-rolar momentâneo dos enunciados que os defensores do individualismo cha-mam de tempo real, mas o tempo conjuntural dos sistemas coletivos e dosprocessos históricos (Hanks, [2006] 2008: 171-175).

Na busca por uma integração do que chama de diferentes níveis deanálise, Hanks chama a atenção para o fato de que as abordagens “indi-vidualistas” são, em grande medida, complementares às abordagens “glo-bais”. Uma primeira motivação para a tentativa de integração dessasduas abordagens reside no fato empírico de que as práticas de lingua-gem (incluindo-se aqui, a produção e a recepção de textos) são “formata-das” pelos contextos e ajudam a formatá-los em vários níveis. O outro éa patente inadequação de todas as abordagens dicotômicas que, segun-do o autor, inevitavelmente distorcem a significação dos traçoscontextuais e produzem um vácuo entre um nível e outro.

A partir do posto de observação da lingüística antropológica, que oautor assume ser uma empreitada interdisciplinar, Hanks ([2006] 2008)afirma que o foco na linguagem requer uma análise detalhada de fatoslocais emergentes, tanto os lingüísticos como os etnográficos (micro),enquanto o foco em sistemas socioculturais e lingüísticos requer umaanálise igualmente cuidadosa das regularidades formais e funcionais, cujasmotivações encontram-se bem distantes dos indivíduos e de suas ações(macro). Assim, a busca de uma articulação entre esses diferentes níveisé o que nos leva necessariamente a uma rejeição dessas divisões familia-res (micro & macro) no curso de qualquer investigação sobre o contextoque procure dar conta, ao mesmo tempo, das especificidades formais daspráticas enunciativas e da sua incorporação14 social.

Sabemos que não há uma única definição de quais tipos de e doquanto do contexto se fazem necessários para o enfrentamento do de-safio de uma descrição lingüística adequada. No entanto, sabemos tam-bém que existem princípios e tipos de relações que recorrentementeorganizam contextos. É esse tipo de conhecimento que possibilita aemergência de perguntas teóricas tais como as feitas por Hanks:

‡‡‡‡‡‡

14. O termo utilizado por Hanks ([2006] 2008) é embedding, e foi traduzido ao longo destecapítulo e de Hanks (2008) como incorporação e/ou encaixamento.

Page 21: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

38 [RE]DISCUTIR TEXTO, GÊNERO E DISCURSO | Anna Christina Bentes e Renato Cabral Rezende

(i) quais unidades contextuais e que níveis de contexto precisa-mos distinguir de forma a dar conta da língua como prática?

(ii) quais são as relações e os processos que permitem o estabeleci-mento de diferentes níveis e unidades contextuais?

(iii) como se pode analisar contextos atuais sem se deixar levar por umagrande quantidade de particularidades? (Hanks, [2006] 2008: 175).

Para construir um pano de fundo teórico a partir do qual começa aformular as respostas para as perguntas elaboradas, o autor enfoca, emprimeiro lugar, o que ele chama de duas grandes dimensões do contexto:a emergência (emergence) e a incorporação/encaixamento (embedding).Assim, a emergência diz respeito a aspectos do discurso que surgem nointerior dos processos de produção e de recepção em curso, inserindo-se,portanto, no campo das atividades, das interações, das temporalidades,da co-presença verbais mediadas, em contextos “rápidos”, mostrando-secomo uma atualidade ao mesmo tempo fenomenológica, social e históri-ca. A incorporação ou encaixamento (embedding) designa a relação en-tre aspectos contextuais que pertencem ao enquadramento, centraçãoou embasamento do discurso em quadros sócio-históricos mais amplos.

Uma primeira diferenciação postulada por Hanks entre os diferen-tes níveis contextuais é aquela entre uma situação (situation) e umcenário (setting). Para ele, uma situação é um espaço de possibilidadesde monitoramento mútuo, no interior do qual todos os indivíduos co-presentes têm acesso sensorial uns aos outros por meio de seus senti-dos. As seguintes condições se aplicam a uma situação:

(i) há pelo menos duas partes que co-ocupam o mesmo tempoobjetivo no interior do qual as percepções e os gestos expressi-vos ocorrem seqüencialmente;

(ii) cada parte da situação encontra-se presente corporalmente,ambas perceptíveis e percebendo o outro;

(iii) a situação é um campo de possibilidades de mútuo monitoramento,que permite que seus co-ocupantes notem uns aos outros.

É importante perceber, segundo Hanks ([2006] 2008), que uma si-tuação não é um campo atual de mutualidade, reciprocidade e co-ocu-pação, mas um campo nos quais essas características são potenciais;

Page 22: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

TEXTO: CONCEITOS, QUESTÕES E FRONTEIRAS [COM]TEXTUAIS 39

ela também é minimamente estruturada e naturalmente anterior a qual-quer enunciado, sendo que estão ausentes quaisquer objetos além daspartes co-presentes. De uma forma resumida, Hanks afirma que a situa-ção provê um tipo de “exterior a priori” no interior do qual a fala e alinguagem são projetadas por meio de atos de enunciação.

No entanto, Hanks afirma que, como um mero campo de co-presen-ça, uma situação não tem uma estrutura significativa em si. Sendo as-sim, de forma a não nos deixar levar por um “mar”de particularidades,se faz necessário acrescentar à situação social os julgamentos dos parti-cipantes sobre o que é relevante e sobre “o que está acontecendo aquie agora”. Isto ilustra a mudança de uma situação para um cenário social.

Para o autor, introduzir o conceito de relevância é transformar funda-mentalmente a idéia de contexto porque, se por um lado, os julgamentosde relevância implicam um tema ou um ponto focal de interesse a partir doqual a relação de relevância é estabelecida, por outro, a relação de relevân-cia estabelecida encontra-se ancorada nas experiências prévias dos sujei-tos, à luz das quais ela emerge. Isto implica que qualquer contexto no quala relevância temática opera é uma estrutura com dois níveis: um temáticoe um de conhecimento prévio (foreground/background, ou theme/horizon).Em relação aos tipos de relevância, Hanks defende o ponto de vista deSchutz, para quem há três tipos de relevância: topical, interpretativo emotivacional. A combinação desses três tipos de relevância tem como prin-cipal efeito criar um sistema de relevância multifacetado, pertinente para ocenário e suficiente para enfatizar que o contexto interativo, mesmo nonível relativamente primário, é hierárquico ao longo de várias dimensões,tanto as co-presentes locais como as não-locais.

Para incorporar um componente de natureza semiótica ao modelo deanálise de contexto que elabora, Hanks ([2006] 2008), com base na teoriade Karl Buhler (1990 [1934]) sobre o contexto, postula um campo semiótico,de natureza simbólica e indexical/demonstrativa, constituído de todos ostraços do cenário (setting) que, por sua vez, são transformados imediata-mente por signos (simbólicos, indiciais e icônicos), pelas relações entreestes signos (sintáticas, semânticas e pragmáticas), pela manutenção deobjetos e por várias funções, incluindo a referência e a diretividade indivi-duais (orientação da atenção do interlocutor por meio de palavras e ges-

Page 23: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

40 [RE]DISCUTIR TEXTO, GÊNERO E DISCURSO | Anna Christina Bentes e Renato Cabral Rezende

tos). Sendo assim, o campo semiótico converte o cenário interativo em umcampo de signos que inclui os gestos e outros aspectos perceptíveis dosparticipantes, tais como a postura, o apontar, os olhares diretos e o som davoz do falante, tudo isso orientando o foco de atenção subjetiva dos parti-cipantes. No interior desse cenário, os enunciados (ou os textos), em suasdimensões simbólica e indicial, refletem e transformam o contexto. Elesorientam a atenção dos participantes, tematizam os objetos de referência,formulam, invocam e constroem o contexto, operam sobre os sistemas derelevância, em resumo, produzem o contexto.

Assim, para o autor, a situação, o cenário e o campo semiótico sãoemergentes no sentido de que se desenvolvem no tempo. A existência des-sas diferentes formações contextuais não implica nem a existência deuma seqüência temporal entre elas, nem tampouco um conjunto derelações de inclusão. Vejamos como o autor nos explica o relaciona-mento entre esses níveis:

A progressão da situação para o cenário e deste para o campo demonstrativo nãoé nem uma seqüência temporal nem um conjunto de relações de inclusão. É umproblema de ordenamento lógico, a partir de um nível relativamente primitivoda esfera da consciência perceptual através do campo demonstrativosemioticamente complexo. O cenário herda os traços de co-presença da situação,transformando-os por meio de relações de relevância e de unidades de açãosocialmente reconhecidas. O campo demonstrativo simbólico herda do cenárioum sistema de relevância interperspectival, mas o transforma por meio de siste-mas semióticos multifuncionais (sendo a linguagem o mais notável). O modelode contexto implícito no campo demonstrativo é ponto de partida mínimo parao estudo do discurso. O que quer que seja verdadeiro sobre o contexto discursivo,então, engloba corpos e campos perceptuais, sistemas de relevância, tipos de atose as expectativas que eles engendram, sistemas semióticos e as transformaçõesque eles produzem (Hanks, [2006] 2008: 183-184).

É importante chamar a atenção para o fato de que o campo semióticoseria para Hanks a unidade contextual mínima, a partir da qual se podeproduzir qualquer análise de fenômenos de linguagem que considere ocontexto. Outro aspecto importante a ser acentuado é o que diz respeitoao fato de que as três formações (ou níveis) contextuais distintas(os)(situação, cenário e campo semiótico/simbólico) encontram-se combina-das(os) entre si de tal forma que, no curso da vida social, não há situação

Page 24: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

TEXTO: CONCEITOS, QUESTÕES E FRONTEIRAS [COM]TEXTUAIS 41

que não esteja ligada a um cenário e não há cenário que possa ser separa-do das semioses. É essa relação ordenada de envolvimento e de ligaçãoentre os níveis que o autor denomina incorporação (embedding). Paraele, estudar as relações entre a produção de linguagem e o contexto, éestudar essas relações de incorporação social.

Faz-se necessária uma última observação antes de partirmos para a análisede um exemplo que tem por objetivo principal procurar demonstrar comoa produção e a recepção de textos, em suas dimensões simbólica e indicial,refletem e constroem o contexto: nenhum campo semiótico existe em umvácuo social. Se assumirmos que os níveis se interpenetram e herdam aspropriedades uns dos outros, propiciando transformações no nívelcontextualizador (aquele que herda as propriedades do que foi por eleincorporado), sendo que este último funciona como um horizonte operativoa partir do qual o nível incorporado é compreendido, poderemos dizer quequalquer campo semiótico pode ser incorporado/contextualizado por umou mais campos sociais15. Vamos agora a nosso exemplo.

Há algum tempo, eu e uma colega pesquisadora fomos a uma conferência jun-tos. Nós tínhamos dado entrada no hotel e eu, assim que entrei no meu quarto,descobri que este tinha uma sacada [balcony] que permitia uma bonita visão deuma parte da cidade. Meia hora depois, eu e minha colega nos encontramos nosaguão do hotel e saímos para jantar. Enquanto caminhávamos para fora dohotel, eu perguntei a ela: “Você tem uma sacada tão bonita assim também?” Otermo balcony, em nossa língua nativa, o holandês, é, entre outras coisas, umtermo rude e profundamente machista/sexista usado para se referir aos seiosfemininos. Enquanto fazia a pergunta, eu não observei uma mulher que vinhacaminhando na direção oposta a nossa, usando um “top” de verão bem decota-do, expondo parte de seus seios. Infelizmente, minha colega pesquisadora no-tou essa mulher — minha colega percebeu uma pista de contextualização — eo termo balcony rapidamente adquiriu um significado muito sugestivo, sexual-mente ofensivo, que me demandou uma explicação detalhada e tentativas dereparo pela ofensa feita (Blommaert, 2005: 42).

15. Hanks ([200] 2008: 187) assim define campo social: “O termo ‘campo social’ tal comoé usado aqui é adaptado da sociologia da prática e designa um espaço delimitado de posições e detomadas de posição por meio das quais valores circulam, no interior do qual agentes possuemtrajetórias ou carreiras e se engajam em vários footings (a saber, competitivos, colaborativos,estratégicos etc.). Assim definido, o campo social não é nem radial, nem baseado no discurso(embora o discurso circule na maioria dos campos), existindo sim cenários interativos incorpo-rados em qualquer campo social.

Page 25: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

42 [RE]DISCUTIR TEXTO, GÊNERO E DISCURSO | Anna Christina Bentes e Renato Cabral Rezende

Antes de iniciar uma análise das relações entre texto e contexto apartir da narrativa acima, é importante reafirmar um princípio básicoda perspectiva teórica postulada por Hanks (1996: 1): a linguagem hu-mana não é nem a causa nem a medida do mundo tal como o vivenciamos.Nessa perspectiva16, apesar do reconhecimento de que o fenômenolingüístico permeia nossas vidas em todos os seus aspectos, é precisoreconhecer também que, para estudar a maneira como as diferentesdimensões contextuais formatam a produção, a circulação e a recepçãoda linguagem/dos textos, dever-se-ia considerar que os enunciados e/ou textos não são os elementos a partir dos quais todo o contexto seorganiza, mas verdadeiramente constituem a interação entre a lingua-gem, a cultura e o mundo individual vivido pelos sujeitos.

A história contada e analisada por Blommaert pode nos levar a umbom exercício de análise do modelo de contexto postulado por Hanks([2006] 2008), de sua contribuição para a compreensão do fenômenotextual e das relações de mútua constitutividade entre texto e contexto.

Em um primeiro nível de análise, devemos considerar que o textoacima — a narrativa produzida pelo personagem masculino, TEXTO 1A

— descreve uma situação, ou seja, “um espaço de possibilidades demonitoramento mútuo no interior do qual todos os indivíduos co-pre-sentes têm acesso sensorial aos outros por meio de seus sentidos”. Ofato de dois colegas de trabalho, um homem e uma mulher (que estãoviajando juntos a trabalho) se encontrarem no lobby do hotel em queestão hospedados, dirigindo-se a um jantar em um restaurante, é umasituação porque pelo menos duas partes co-ocupam o mesmo tempoobjetivo no interior do qual as percepções e os gestos expressivos ocor-rem seqüencialmente e porque cada parte da situação encontra-se pre-sente corporalmente, ambas perceptíveis e percebendo o outro.

Em um segundo nível de análise, podemos focar no enunciado ou TEX-TO 1B “Você tem uma sacada tão bonita assim também?” (se considerarmos

16. Hanks (1996, [1987, 1989, 2006] 2008) postula uma teoria da prática comunicativaque procura articular as duas principais tradições de estudo da linguagem: as teses internalistas,ou da irredutibilidade do fenômeno lingüístico, e as teses externalistas, ou da relacionalidade.Uma tentativa de unificar e de transcender esses aspectos é o que o autor procura fazer em suaobra Language and Communicative Practices (1996). No Brasil, o debate sobre as teses externalistase internalistas é feito por Morato (2002, 2004), Salomão (2003), Koch e Cunha-Lima (2004).

Page 26: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

TEXTO: CONCEITOS, QUESTÕES E FRONTEIRAS [COM]TEXTUAIS 43

as definições de texto de Harris, 1952; Schmidt, 1973; Hanks, [1989] 2008;Beaugrande, 1997; Koch, 2002) proferido pelo personagem masculino danarrativa. Além disso, podemos considerar a pergunta feita como um textoem função da definição de Bauman (2004: 4), para quem todo texto pres-supõe uma operação de descontextualização porque, ao retirar um trechodo discurso de seu contexto, tornando-o internamente coerente, procede-mos de forma a objetivá-lo como uma unidade textual discreta, à qual po-demos nos referir, e que podemos descrever, nomear, citar, exibir, tratan-do-a como objeto. Para o autor, essa operação de descontextualização pres-supõe necessariamente uma nova recontextualização, o que revela o po-tencial dos textos de serem (re)produzidos em outro contexto, no caso emquestão, um contexto de análise.

Se uma das características da textualidade apontadas por todos osautores é a conectividade, podemos perguntar: com que se conecta oTEXTO 1B,”Você tem uma sacada tão bonita assim também?”, produzido pelopersonagem masculino? Podemos dizer que, em termos co-textuais, al-guns outros enunciados devem ter sido pronunciados antes (nem quetenham sido as fórmulas típicas de início de encontros), mas como elesnão foram descritos, inferimos que devem ter existido, tanto da parte doprofessor quanto da parte da pesquisadora. No entanto, o que mais nosinteressa descrever é justamente como o TEXTO 1B, ao ser enunciado, re-vela a mudança de uma situação, tal como a que o TEXTO 1A descreve,para um cenário social, já que a enunciação do TEXTO 1B revela justamen-te que uma relação de relevância é estabelecida: um dos participantesjulga o que deveria ser um tema ou ponto focal de interesse de ambos (nocaso, a vista bonita propiciada pela sacada do apartamento do professor).

Voltando à questão da conectividade, nosso ponto aqui é o de que aconectividade do TEXTO 1B “Você tem uma sacada tão bonita assim tam-bém?” parece não ocorrer com o que foi enunciado antes (o co-texto),mas com o conhecimento prévio do ator sobre o tema enfocado (suaexperiência ao chegar ao quarto do hotel e se deparar com a bonita vistapropiciada pela sacada) e com o tipo de pressuposição que o ator tinha deque sua colega teria tido a mesma experiência que ele. A enunciação doTEXTO 1B, neste sentido, seria apenas um “pretexto” para que, por exem-plo, ambos pudessem comentar essa experiência (a de cada um ter umquarto com uma bonita vista propiciada por uma sacada).

Page 27: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

44 [RE]DISCUTIR TEXTO, GÊNERO E DISCURSO | Anna Christina Bentes e Renato Cabral Rezende

Mas se considerarmos em nossa análise a descrição feita no TEXTO

1A do campo semiótico no qual os participantes estão inseridos no mo-mento em que o TEXTO 1B é enunciado, veremos como os sentidos pro-duzidos pelo TEXTO 1B são modificados, assim como também são modifi-cadas as expectativas dos participantes em relação ao que foi dito. Istoocorre em função tanto da forma lingüística utilizada (o uso do termo“balcony”, que tem duplo sentido, e a mobilização de uma estruturasintática também ambígua, que pergunta se a interlocutora “tem” um“balcony” “bonito assim”), como do campo de signos no qual os parti-cipantes estão imersos, o que inclui o direcionamento do olhar do per-sonagem feminino na direção de um objeto (uma mulher que caminhaem direção a eles portando um generoso decote), objeto que não foipercebido pelo personagem masculino que produziu o TEXTO 1B. Emoutras palavras, o sentido do TEXTO 1B, para a interlocutora, se dá noajuste entre o que é lingüística e concretamente estruturado e sua per-cepção de determinados índices de contextualização/indexicalização dapalavra balcony enunciada por seu interlocutor.

Por fim, é esse ajuste produzido na recepção do TEXTO 1B que faz emergirum campo social diferenciado daquele no qual inicialmente os dois parti-cipantes pareciam estar inseridos, já que nenhum campo semiótico exis-te em um vácuo social. Assim, conforme Bloomaert (2005), o camposocial no qual os dois interlocutores pareciam estar imersos aprioristica-mente seria o campo profissional, hierarquizado e amistoso. No entanto,a enunciação do TEXTO 1B e o tipo de indicialidade a ele associado promo-ve uma mudança da esfera/campo anteriormente descrito para uma esfe-ra sexualizada, masculina e baseada em relações de poder.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta última parte do capítulo, tentamos exemplificar, por meio daanálise de um exemplo, que as fronteiras dos textos são extremamentepermeáveis, complexas e momentaneamente estabelecidas e reafirmarque, dentre as tantas definições de texto aqui mencionadas, a formula-da por Koch (2002), mantém o espírito da busca de uma melhor com-preensão desse objeto, como diz a autora, multifacetado e complexo:

Page 28: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

TEXTO: CONCEITOS, QUESTÕES E FRONTEIRAS [COM]TEXTUAIS 45

...o texto como lugar de constituição e de interação de sujeitos sociais, comoevento, portanto, em que convergem ações lingüísticas, cognitivas e sociais(Beaugrande, 1997), ações por meio das quais se constroem interativamente osobjetos-de-discurso e as múltiplas propostas de sentidos, como função de esco-lhas operadas pelos co-enunciadores entre as inúmeras possibilidades de orga-nização que cada língua lhes oferece... construto histórico e social, extrema-mente complexo e multifacetado... (Koch, 2002: 9).

Além disso, acreditamos ter mostrado algumas das importantes mu-danças pelas quais passou a compreensão do objeto textual no interior docampo da lingüística textual e da lingüística como um todo ao longo dotempo. Neste texto, apresentamos um primeiro momento, onde o maisimportante era descrever a chamada text-language, principalmente consi-derando fenômenos e recursos que permitissem observar a conectividadeentre as partes internas que constituem o texto. Apesar dessa generaliza-ção, como vimos, vários tipos de estudo e de objetos foram desenvolvidosno campo dos estudos do texto, desde os primeiros estudos sobre fenôme-nos co-referenciais, chegando até a proposta de gramáticas textuais. Emum segundo momento, o conceito de texto passou a estar necessariamenteassociado ao de textualidade, pressupondo assim uma concepção de línguacomo ação e ou atividade e o texto como um lugar de construção de rela-ções e de objetos-de-discurso de naturezas diversas e dependentes do con-texto histórico e social mais amplo. Nossa contribuição mais específica re-side na apresentação de um modelo de contexto que pode ser mobilizadopara o desenvolvimento de análises fundamentalmente voltadas para aconsideração das relações de mútua constituição entre texto e contexto,relações que deixam entrever, por exemplo, que as interpretações múlti-plas de uma porção textual encontram-se parcialmente inscritas na formatextual e são quase sempre parcialmente contestadas pelos atores sociais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, R. (1953/2004). O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes.BAUMAN, R. (2004). A World of Others’ Words: Cross-Cultural Perspectives on Intertextuality. Oxford:

Blackwell Publishing.BEAUGRANDE, R. & DRESSLER, W. (1981). Introduction to Text Linguistics. London: Longman.BEAUGRANDE, R. (1997). New Foundations for a Science of Text and Discourse, in: http: //

www.beaugrande.com/new_foundations_for_a_science.htm. Acesso em 25 de agosto de 2006.

Page 29: L1   texto - conceitos, questões e fronteiras [com]textuais

46 [RE]DISCUTIR TEXTO, GÊNERO E DISCURSO | Anna Christina Bentes e Renato Cabral Rezende

BENTES, A. C. (2001). “Lingüística textual” , in: BENTES, A.C. & MUSSALIM, F. (orgs). Introduçãoà lingüística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez.

____ (2006). Relatório final do projeto de pós-doutorado “Linguagem como prática social: aelaboração de estilos de fala por jovens rappers brasileiros”. Berkeley: University of California(processo no 2005/03186-1), mimeo.

BLOMMAERT, J. (2005). Discourse. Key Topics in Sociolinguistics. Cambridge: Cambridge University PressCAVALCANTE, M. M.; RODRIGUES, B. B.; CIULLA, A. (2003). Referenciação. São Paulo: Editora Contexto.GOODWIN, C.; DURANTI, A. (1992). Rethinking Context: an Introduction, in: DURANTI, A.;

GOODWIN, C. (orgs.). Rethinking Context: Language as an Interactive Phenomenon. Cambridge:Cambridge University Press.

DIJK, T. A. van (1983). La ciencia del texto. Un enfoque interdisciplinario. Barcelona: Paidós.FÁVERO, L. L. & KOCH, I. G. V (1988). Lingüística textual: introdução. São Paulo: Cortez.HANKS, W. (1989). Texto e textualidade, in: BENTES, A. C., REZENDE, R. C. e MACHADO, M. A.

(orgs.). Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir deBourdieu e Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2008.

_____ (2006). O que é contexto?, in: BENTES, A. C., REZENDE, R. C. e MACHADO, M. A. (orgs.).Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu eBakhtin. São Paulo: Cortez, 2008.

HARRIS, Z. (1969). Analyse du discours, in: Langages: l’analyse du discours, nº 13, orgs.: J.Dubois e J. Sumpf. Didier-Larousse, pp. 8-45.

HJELMSLEV, L. (1975). Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva.JUBRAN, C. A. S. (2006). O tópico discursivo, in: JUBRAN, C. A. S. & KOCH, I. G. V. Gramática do

português culto falado no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp.KOCH, I. G. V., TRAVAGLIA, L. C. (1989). Texto e coerência. São Paulo: Cortez.KOCH, I. G. V. (1989). A coesão textual. São Paulo: Contexto._____ (1990). A coerência textual. São Paulo: Contexto._____ (1992). A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto._____ (1997). O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto._____ (2002). Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez._____ (2004). Introdução à lingüística textual. São Paulo: Martins Fontes.KOCH, I. G. V., CUNHA-LIMA, M. L. A. (2004). Do cognitivismo ao sociocognitivismo, in MUSSALIM,

F., BENTES, A. C. Introdução à lingüística: fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez.KOCH, I. G. V. (2006). Lingüística textual hoje: questões e perspectivas, in: SILVA, D. E. G. da

(org.). Língua, gramática e discurso. Goiânia: Cânone Editorial/Grupo de Estudos da Lingua-gem do Centro-Oeste, p. 20-42.

KOCH, I. G. V., BENTES, A. C., REZENDE, R. C. (2006). Cadernos de Estudos Lingüísticos. O TópicoDiscursivo. Campinas, no 48 (1).

KOCH, I. G. V., MARCUSCHI, L. A. (1998). Processo de referenciação na produção discursiva.D.E.L.T.A. 14, pp. 169-190, número especial.

LINS, O. (1976/2005). A rainha dos cárceres da Grécia. São Paulo: Cia. das Letras.MARCUSCHI, L. A. (1983). Lingüística textual: o que é, como se faz. Mestrado em Letras e Lingüís-

tica. Série Debates 1. Recife: UFPE.MORATO, E. M. (2002). O impasse internalismo & externalismo e suas influências sobre os estudos

neurolingüísticos. Veredas. Lingüística e Cognição. Juiz de Fora, vol. 6, no 1- p. 131-139._____ (2004). O interacionismo no campo lingüístico, in: MUSSALIM, F., BENTES, A. C. Introdu-

ção à lingüística: fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez.PINHEIRO, C. L. (2005). Estratégias textuais-interativas: a articulação tópica. Maceió: EDUFAL.SALOMÃO, M. M. M. (2003). Razão, realismo e verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo

da referência, in: MORATO, E. M.; BENTES, A. C.; LIMA, M. L. C. (orgs.). Cadernos de estudoslingüísticos. Campinas, no 44, p. 71-84.

SAUSSURE, F. (1916/2000). Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix.SCHIFFRIN, D. (1994). Approaches to Discourse. Cambridge/Oxford: Blackwell Publishers.SILVERSTEIN, M. & URBAN, G. (1996). Natural Histories of Discourse. Chicago: The University of

Chicago Press.TITSCHER, S; MEYER, M; WODAK, R & VETTER, E. (2000). Methods of Text and Discourse Analysis.

London: SAGE Publications.