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CORRUPÇÃO DEBATE COM CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA, FÁBIO WANDERLEY REIS, JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI E MARIA HERMÍNI A TAVARES DE ALMEID A 1  Fábio Wander ley R eis — Um ponto de partida para a nossa discussão  poderia ser este: o t ema da corrupção supõe a ref erência a uma condição alternativa, onde teríamos o comportamento orientado por normas que resguardam o interesse público — uma condição cívica, digamos. E surgem algumas questões, como saber até que ponto cabe apostar nas normas e esperar uma espécie de “conversão”, com a difusão de  uma  postura moralis ta ou idealista em que as pes soas passassem a at uar de maneira distinta daquela em que ocorre a corrupção, aderindo estritamente a algumas concepções morais, algumas regras. Essa é a perspectiva do senso comum a respeito do problema. Mas, mais do que isso, há um certo modelo marcado por essa postura moralista e edificante que permeia as ciências sociais, em particular a ciência política, um modelo de “política ideológica no qual as pessoas supostamente  se comportariam por referência a valores e normas, por contraste com a condição em que  buscam estritam ente os interesses, que no nosso vocabulário político recebe rótulos como “fisiologismo”. Entre os economistas temos um contraste marcante entre duas  perspectivas a respe ito da política, que pode ajudar na nos sa discussão. Uma delas eu diria que é uma perspectiva vulgar, que se aproxima do viés idealista. Um exemplo claro é a posição sustentada por Mário Henrique 1 Debate realizado no Cebrap em 8 de julho de 2001. Carlos Eduardo Lins da Silva, jornalista, é diretor adjunto da Redação do jornal Valor ; Fábio Wanderley Reis, cientista político, é professor emérito da UFMG; José Arthur Giannotti, filósofo, é professor emérito da FFLCH-USP; M a Hermínia T. de Almeida, cientista política, é professora da FFLCH-USP. Publicado em  Novos  Estudos CEBRAP , no. 60, julho de 2001. 1

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CORRUPÇÃO

DEBATE COM CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA, FÁBIO

WANDERLEY REIS, JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI E MARIAHERMÍNIA TAVARES DE ALMEIDA1

Fábio Wanderley Reis— Um ponto de partida para a nossa discussão poderia ser este: o tema da corrupção supõe a referência a uma condiçãoalternativa, onde teríamoso comportamento orientado por normas que

resguardam o interesse público — uma condição cívica, digamos. E aísurgem algumas questões, como saber até que ponto cabe apostar nasnormas e esperar uma espécie de “conversão”, com a difusão de uma postura moralista ou idealista em que as pessoas passassem a atuar demaneira distinta daquela em que ocorre a corrupção, aderindo estritamentea algumas concepções morais, algumas regras. Essaé a perspectiva do

senso comum a respeito do problema. Mas, mais do que isso, há um certomodelo marcado por essa postura moralista e edificante que permeia asciências sociais, em particular a ciência política, um modelo de “políticaideológica” no qual as pessoas supostamente se comportariam por referência a valores e normas, por contraste com a condição em que buscam estritamente os interesses, que no nosso vocabulário político recebe

rótulos como “fisiologismo”.Entre os economistas temos um contraste marcante entre duas perspectivas a respeito da política, que pode ajudar na nossa discussão.Uma delas eu diria que é uma perspectiva vulgar, que se aproxima do viésidealista. Um exemplo claro é a posição sustentada por Mário Henrique

1 Debate realizado no Cebrap em 8 de julho de 2001. Carlos Eduardo Lins da Silva, jornalista, édiretor adjunto da Redação do jornalValor ; Fábio Wanderley Reis, cientista político, é professor

emérito da UFMG; José Arthur Giannotti, filósofo, é professor emérito da FFLCH-USP; Ma

Hermínia T. de Almeida, cientista política, é professora da FFLCH-USP. Publicado em Novos Estudos CEBRAP , no. 60, julho de 2001.

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Simonsen anos atrás num artigo de grande repercussão publicado naVeja2.

Por um lado, ele manifesta a ênfase usual dos economistas na atuação dosinteresses na vida econômica. Naturalmente, nenhum economista que se

preze pensaria em recomendar, por exemplo, estratégias dedesenvolvimento econômico que contassem com o altruísmo das pessoas,com comportamento solidário, orientado por valores nobres; ao contrário,realisticamente se conta com a busca do interesse próprio, e na ciênciaeconômica o egoísmo não só faz parte dos seus fundamentos, mas tambémé visto como perfeitamente legítimo e aceitável. Por outro lado, Simonsen

mostra uma clara idealização da esfera da política como a esfera do bem público, onde a busca do interesse próprio aparece como algo a ser denunciado; e como o comportamento dos políticos está longe decorresponder normalmente à busca do bem público, dá-se uma inversão emque a própria política passa a ser algo que merece denúncia, o lugar dacorrupção. Nessa visão a política se transforma em algo vil, na medida em

que não se realiza aí o ideal moralista. Mas há uma outra perspectiva“econômica” sobre a política que se vem tornando dominante nas ciênciassociais, sobretudo na produção corrente dos economistas norte-americanos,e Adam Przeworski, apesar de não ser economista, é um exemplodestacado, em vários trabalhos.3 Aí se trata de presumir os interesses eindagar em que medida seria possível, apostando na mera dinâmica dos

interesses e nos automatismos que são próprios dela, chegar a uma política“boa”, feita de tal maneira que se pudesse obter “automaticamente” arealização do bem público ou do bem comum.

Existe, contudo, a possibilidade de uma perspectiva mais ou menosintermediária entre essas duas, talvez uma postura pragmática, que por um

2 Simonsen, Mário Henrique. “O risco de optar pelo atraso”.Veja, 997, 14 de outubro de 1987,

pp. 24-35.3 Por exemplo, Adam Przeworski, “Democracy as an equilibrium”. Nova York: New York University, manuscrito, outubro de 1995.

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veria contido o comportamento mais negativo, mais deletério. Mas essa perspectiva se envolve em dificuldades. Os trabalhos do Przeworski nessaárea são um exemplo bem claro tanto do que há de positivo nesse esforço

quanto dos limites dele, porque pode haver automatismos que são péssimos. A constituição que resulte da acomodação recíproca dosinteresses pode corresponder, de um ponto de vista normativo, a algonegativo,nasty, para usar a expressão que ele usa, algo detestável. E eleacaba falando de equilíbrio num sentido que contempla a presença dasnormas. O desafio seria como produzir na dinâmica do jogo dos interesses

uma condição normativamente desejável, como fazer uma constituiçãoauto-impositiva, na linguagem dele, indicando aquilo que flui naturalmentedo jogo de acomodação recíproca dos diferentes interesses.

Contudo, não se vai conseguir isso se se tiver de depender de agentes políticos e econômicos que sejam reflexivos, que adiram às normas de umamaneira intelectualmente atenta, sofisticada. Qualquer coletividade que

dependa de que as pessoas estejam a cada momento ponderando qual aforma adequada de agir obviamente é uma coletividade problemática. Aocontrário, é preciso contar com o automatismo no plano das própriasnormas, com umacultura democrática, imersos na qual os indivíduos sejamlevados espontaneamente a agir de acordo com o que a cultura prescreve.Esse é o sentido de ter uma cultura cívica e democrática: as pessoas seriam

levadas naturalmente a agir de maneira convergente comcertos

valores.E aí surge a questão: não estamos voltando para a necessidade de“conversão”, para a reforma moral? É claro que se apostamossimplesmente na penetração e difusão de uma cultura na qual os indivíduosvenham a interiorizar as normas, estamos, sim, no puro terreno daconversão. E acho que a resposta que escapa disso é uma resposta quereivindica o que há de sábio na visão dos federalistas, na perspectivamadisoniana, atenta para a construção institucional num sentido objetivo:

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como construir um aparato institucional que seja capaz de condicionar ocomportamento das pessoas alterando apenas, pelo menos num primeiromomento, a percepção que elas têm de seu próprio interesse. Se houver

uma estrutura institucional montada objetivamente de forma adequada, as pessoas não vão, com a mesma freqüência de antes ou de outras situações, perceber seu interesse como correspondendo à ação pura e simplesmenteegoísta, porque haverá na estrutura institucional sanções que tornam essetipo de ação inconveniente do ponto de vista do interesse próprio. Mastalvez caiba esperar também que a obtenção dessa alteração na percepção

dos interesses venha a associar-se com o aparecimento do elemento deautomatismo no plano das normas, e com a criação de instituições numsentido sociopsicologicamente mais denso. Isto é, a operação do jogo dosinteresses, em condições em que o quadro institucional objetivo estámontado de forma adequada, acabaria por produzir alterações na própriacultura, fazendo com que um tipo particular de sanção, a sanção

correspondente às expectativas dos outros, à reação dos outros diantedaquilo que você faz, viesse a ter um papel singularmente importante.Temos uma literatura interessante com relação a isso, especialmente umlivro do Timur Kuran, economista de origem turca radicado nos EstadosUnidos, intituladoVerdades privadas, mentiras públicas, cujo cerne é precisamente a importância da pressão dos demais5. Ele aplica isso para

entender uma série de situações, como a queda do socialismo, vendo aruptura da ignorância pluralística que existia nos países socialistas sobrequais seriam as opiniões de todos com respeito ao regime como a causa dadébâcle, ao solapar o conformismo criado pela falsa percepção da opiniãodos demais como sendo favorável ao regime. De toda maneira, o pontoaqui é o processo inverso, o processo de construção de um determinadoclima que seja sadio do ponto de vista da questão da propensão à corrupção5 Kuran, Timur. Private truths, public lies: the social consequences of preference falsification.Harvard: Harvard University Press, 1995.

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ou à conduta “apropriada”. Acho que isso contém, por contraste com aidéia pura e simples da conversão, da interiorização de normas, o elementocognitivocomo componente particularmente importante: é o conjunto de

percepções e expectativas que vai ser decisivo para produzir alterações nasdisposições das pessoas. Se se presume que o negócio é incutir certasnormas nas pessoas, corre-se o risco de deixar de perceber o que podehaver de oportunidade para a manipulação (legal, “institucional”) deaspectos “objetivos” da situação, manipulação que, além de alterar ocálculo de cada um, eventualmente altere a psicologia social ou a cultura

envolvida.Há um desdobramento especial da perspectiva exemplificada pelo

Simonsen, propensa à idealização da política. Simonsen presumenitidamente que a atitude dos agentes muda conforme eles se aproximemou se afastem do Estado. Por contraste com o “capitalista verdadeiro”, quese move no espaço privado dos interesses, tem-se o capitalista que depende

do Estado e que se torna parte de algo vicioso e corrupto. Na medida emque o jogo dos interesses se dá na ausência do Estado, pode-se contar coma operação da “mão invisível” para extrair um produto positivo, mas se oEstado se faz presente os mecanismos benignos de mão invisíveldesaparecem e tudo é visto de maneira negativa. Evidentemente, issoenvolve suposições gratuitas: basta que se conceba o Estado como incapaz

de coordenar e dar um rumo ao jogo dos interesses para que, se vamos ser coerentes, se possa imaginar a “mão invisível” e os resultadossupostamente benignos daquele jogo mesmo com a participação do Estadoou dentrodo Estado. É claro que não dá para fazer a aposta nesses termos, porque assim se estaria transformando em ideal a condição em que oEstado se vê destituído da capacidade de perseguir autonomamentedesígnios coletivos e democráticos e consagrando a apropriação privatizante do Estado, a feudalização do Estado, a situação em que cada

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um mete a mão num pedaço do Estado. Ora, isso é a forma mais acabadado pretorianismo, da ausência de operação adequada das instituições. Masassim como não temos como fazer essa presunção que estou atribuindo ao

Simonsen, também não temos critérios, na perspectiva dele, paradiferenciar e apreender matizes importantes que surgem nas relações entreos interesses privados e o Estado. Há claramente um critério que é o dalegalidade: num caso como o do Banpará-Sudam, com apropriação privadade recursos públicos feita “ao arrepio da lei”, tem-se corrupção. Mas e todauma série de casos em que do ponto do vista legal a questão é duvidosa, ou

mesmo clara no sentido de que não haveria “arrepio da lei”? Por exemplo,um Proer, um Marka-FonteCindam, em que o Estado aparece socorrendo bancos privados, ou o dinheiro dado generosamente para financiar privatizações, os empréstimos a juros reais negativos do BNDES, queresultam em autênticas e volumosas doações de recursos públicos a gruposempresariais poderosos — e aí, como ficamos? Essa é a questão tratada

frequentemente como a dependência do Estado perante os interesses doscapitalistas, que envolve uma ambigüidade muito grande: pode-se pretender que o interesse público justifique que se faça esse tipo detransferência, mas cria-se uma área de articulação escusa entre Estado einteresses privados que pode resultar em coisas das mais inconvenientes.Qual o ponto de equilíbrio?Carlos Eduardo Lins da Silva

— Nessa intervenção inicial pretendo falar um pouco sobre o papel da imprensa nesse processo de debate sobre acorrupção no país. Com freqüência se esquece que o jornalismo acima detudo reflete, e tem de refletir, o estado de espírito do leitorado de cada umdos veículos — embora, na minha opinião, ele não deva nunca ser escravodesse estado de espírito. É lógico que os donos de jornais e emissoras derádio e televisão têm uma forte influência sobre o que vai ser publicado eeditado, mas não é um poder absoluto. O veículo que se distancia muito do

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que seu público pensa para atender interesses, caprichos ou convicções dosseus proprietários ou editores com certeza será punido mais na frente porque vai deixar de atender às expectativas que o público deposita nele.

No entanto, acho também que não se faz jornalismo lendo pesquisas deopinião e fazendo aquilo que elas indicam, assim como acho que não segoverna dessa maneira. Há um papel de liderança, e até de confrontamentocom as convicções do público, que cada veículo deve assumir, sob pena dese tornar escravo do desejo do público e acabar não oferecendo a ele nadade estimulante, nada que realmente faça que ele se sinta crescendo ao

consumir aquele veículo, com o que ele se torna algo desnecessário e será punido pelo mercado.

Nos últimos vinte anos tem havido na imprensa brasileira umagrande mudança de atitude com relação a essas questões de corrupção, queé resultado da mudança que também tem havido na atitude do público emrelação a isso. Na década de 1970 houve uma publicidade de cigarros muito

bem vista, com aquela célebre história da “lei de Gerson”: o cinismo, oconsenso em torno de que “levar vantagem em tudo” era algo tão positivoque ajudava a vender um produto. Mas as coisas mudaram tanto nestesanos que alguém que vá citar a lei de Gerson com certeza vai ser escorraçado por qualquer grupo diante do qual ele se manifeste dessamaneira. Acho que estamos caminhando para um espírito quase

inquisitorial, em que o ídolo, em vez do Gerson, passa a ser o promotor Luiz Francisco, e a imprensa tem refletido essa mudança de atitude do público. Mas de novo faço a ressalva: se a imprensa se tornar vassala dessesentimento, com certeza estará prestando um desserviço a si própria etalvez à sociedade também. Como em outras situações, ela deve ter umdesempenho crítico em relação àquilo que a opinião pública acredita ser amelhor conduta.

Minha experiência de muitos anos nos Estados Unidos sempre me

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força a fazer comparações entre o Brasil e aquele país, o que pode ter alguma utilidade porque a sociedade brasileira toma a sociedade americanacomo modelo, e cada vez mais procura se espelhar nela. No entanto,

algumas lições americanas estão muito longe de terem sido aprendidasaqui. Por exemplo, essa questão do interesse público, do interesse próprio eda corrupção. Não há povo mais moralista que o americano, e o casoClinton demonstra isso: um presidente que quase perde o mandato porquecometeu uma infidelidade conjugal, quando não havia, pelo menos duranteo mandato dele, nenhuma acusação de improbidade. Esse incidente

demonstra que se trata de uma sociedade extremamente moralista. Noentanto, quando Clinton e Gore pressionaram o Congresso americano paraaprovar projetos em que o Poder Executivo se comprometia a fornecer verbas para a construção de obras nos distritos eleitorais que determinadosdeputados representavam, ninguém acusou o governo de corrupção, porqueisso não é considerado corrupção no jogo político americano. Considera-se

defesa legítima dos interesses dos eleitores de um deputado que ele negocieseu voto numa questão nacional em troca de benefícios para seus distritoseleitorais. Quer dizer, mesmo numa sociedade extremamente moralistacomo a americana as situações em que um representante conseguevantagens para um grupo de eleitores (evidentemente, não para si) não sãoconsideradas um ato de corrupção, ao contrário do que costuma ocorrer no

Brasil. Talvez porque essas sociedades sejam tão diferentes, e porque o processo de tomada de consciência em relação a esses fatos de corrupçãofoi tão diferente ao longo do tempo, a imprensa brasileira não esteja muitomadura com relação a esses assuntos. O sucesso doimpeachment do Collor é comparável ao sucesso doimpeachment do Nixon: da mesma forma queeste resultou numa febre de jornalismo investigativo lá, oimpeachment doCollor resultou num desejo muito grande de quase todos os jornalistas de produzir o seu Collor também, o seu escândalo que vá derrubar alguém

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muito poderoso.Há um outro problema sério atualmente que é a utilização da

imprensa por parte da Justiça. A relação entre promotores públicos e a

imprensa é muito complicada do ponto de vista ético e acho que merece umestudo muito cuidadoso, porque é perigoso, a meu ver, que investigaçõescriminais que ainda estão em andamento ou às vezes apenas no princípiosejam vazadas propositalmente para a imprensa. E um outro problema quevejo é que o jornalismo com freqüência atribui-se o papel de promotor, de juiz, de júri e de executor da sentença, o que também é perigoso porque a

imprensa não é nenhuma dessas coisas: a imprensa não é polícia, não é promotoria, não é juiz, júri ou executora. A imprensa deve retratar edivulgar os fatos que são de interesse público e que estejam devidamenteapurados e comprovados.

Agora, a partir dessa autocrítica vem uma defesa bastante arraigadada minha parte de que a imprensa possa fazer o que tem feito, mesmo

quando tem feito errado. Tenho uma repulsa muito grande a qualquer tipode iniciativa que vise tolher a liberdade de imprensa, sua liberdade decolher informações onde quer que seja, inclusive com promotores públicos.Para mim, qualquer lei de mordaça, qualquer lei que modifique o direito do jornalista de preservar o sigilo de suas fontes deve ser rechaçada. Por maisque o jornalismo brasileiro tenha errado — e tem errado com freqüência

nesses casos de denúncia de corrupção, em muitos casos denúnciasinfundadas e sem nenhuma comprovação —, o valor da liberdade deimprensa tem de ser defendido da maneira mais radical possível, porque éum dos garantidores de qualquer sociedade democrática. E de novo mevalho do exemplo americano: o caso dos papéis do Pentágono. Poucasvezes ficou tão evidente o interesse público na opinião do governo. Mesmosendo claramente ilegal a forma como aquela documentação revelada pelos jornais foi obtida — aqueles documentos foram roubados do Pentágono —,

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houve um consenso nacional que reflete uma jurisprudência que tem pelomenos cem anos, segundo a qual ninguém poderia impedir que aquelesdocumentos fossem revelados ao público, mesmo que pudessem colocar

em risco a segurança nacional americana — já que eram documentosrelativos à guerra, embora sobre fatos passados já há alguns anos, e poderiam eventualmente ser de proveito dos inimigos dos Estados Unidos.Esse consenso garante a possibilidade de continuação da democracia vívidacomo existe lá, e acho que nesses pontos deveríamos nos mirar no exemploamericano e nunca pretender corrigir os erros da imprensa com medidas

que cerceiem sua liberdade. José Arthur Giannotti— Eu gostaria de começar falando de um ponto devista do senso comum. Historicamente, sabemos que o Brasil sempre foium país com enorme corrupção: a nossa corrupção é cavalar desde ostempos de Colônia. E não podemos deixar de levar em consideração quequanto mais a corrupção aumenta mais aumenta também o discurso

moralista. Tem-se uma espécie de compensação: rouba-se o cofre público esai-se na rua e na procissão fazendo a apologia da moral. Esse é um processo de conversão muito comum, e também nas famílias: pais ladrõesgeram filhos moralistas. Isso para dizer que o interesse próprio e o interesse puramente privado estão sempre vinculados a uma exteriorização dointeresse público, e que o homem vive essa contradição. É por isso que

pensar o problema da corrupção é pensar também a dualidade na qual ohomem se insere entre fato e norma. E desde que não se tenha uma visão platônica da norma — que é mais ou a menos aquela descrita no primeiromomento da fala do Fábio, isto é, a idéia de que a norma por si só tenha acapacidade de aspirar ao fato e transformá-lo em cada vez mais próximo danormatividade —, se tivermos uma perspectiva mais moderna, talvez maiscondizente com o que sabemos do funcionamento das estruturas da lógica,diríamos que toda norma, para poder funcionar, implica uma espécie de

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relaxamento em torno. É muito interessante o exemplo de Wittgenstein: para que um êmbolo funcione, não pode estar inteiramente ajustado noentorno, pois se assim não for não se tem movimento. Essa é a questão:

precisa-se de um certo jogo para que o movimento exista. O problemaentão é entender esse espaço necessário ao desenvolvimento do jogo.

Ora, do ponto de vista prático isso tem conseqüências imediatas.Temos de ter instituições moralizantes, e historicamente sabemos que associedades têm patamares de tolerância da imoralidade. O Carlos Eduardoestava mostrando como é que funciona nos Estados Unidos a relação entre

a acusação e a tolerância, que é diferente no Brasil. Aqui estamos passandode um nível de tolerância que era muito relaxado para um nível muito maisestrito. Com a própria modernização e americanização do país, estamosentrando num processo em que você pode cuidar dos seus interesses privados, pode arriscar-se a burlar por seus interesses, mas se você for pegoserá necessariamente punido. Isto é, você aceita o risco e ao mesmo tempo

cria mecanismos de punição do risco. A única maneira, creio eu, de retomar uma posição madisoniana, como o Fábio disse, seria justamente incorporá-la como tarefa nossa, criar instituições de contraposição e de guarda danormatividade, ao mesmo tempo que admitimos a existência do risco. Emoutras palavras, a corrupção é condição da liberdade humana — você nãoencontra formigas corruptas no formigueiro. É a liberdade em relação à

norma que nos permite sermos corruptos. Não estou fazendo a defesa dacorrupção, não estou dizendo que quanto mais livre mais corrupto; masapenas que para que possamos ser livres tem de ser permissível quebrar anorma, e para quebrar a norma pode-se portanto entrar na corrupção. Um país cujo nível de instituições vigilantes estreita de tal maneira as possibilidades de corrupção é um país em que a liberdade perece. Esse jogo, a meu ver, é fundamental, porque implica uma relação pública com anorma que não pode ser de intolerância. Noutras palavras, não pode haver

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uma política de governo ou de oposição que tenha na bandeira contra acorrupção sua linha fundamental. Isso sim seria muito mais um movimentoantiliberdade: na democracia, esse é um processo de destruição das

liberdades democráticas, porque promete algo que a democracia não podedar, isto é, uma sociedade não-corrupta.

Chegamos a uma situação em que, do ponto de vista prático, temosde combinar instituições que tenham um caráter público e privado. Eu diriamais: não preciso partir da idéia de um indivíduo que sempre age privadamente; posso imaginar que, na medida em que o homem age

livremente, ele também se ponha valores altruístas. Não precisamos partir do individualismo possessivo e depois criar comportamentos públicos egeneralizados: o homem, naturalmente, vive nessa dualidade. E selevarmos em conta essa dualidade, podemos pedir duas coisas da política.Uma, que existam mecanismos de apontar e punir todas as vezes em quehouver corrupção. Donde a enorme importância da mídia, mas ela tem de

ser republicana, e acho que aí o Carlos Eduardo disse muito bem: a mídianão pode imaginar que possa, porque cobre todos os eventos, cumprir o papel de guardiã de todas as normas. Pois o que significa a políticarepublicana senão que cada um funcione dentro dos limites do seucontrapeso? Que a universidade tenha um nível natural de corrupção queseja, quando possível, sempre combatido; que isso, quando for para a

mídia, vá de tal forma que se compreenda a especificidade da vidauniversitária para que não se compare a moral do professor com a moral deuma sociedade celerada — até os presos e bandidos têm certas regras demoralidade... Então, é fundamental voltar à idéia de república, no sentidoem que uma sociedade republicana é uma sociedade cheia de teias, e é preciso fazer com que por essas teias passe um sangue vivo.

E, em segundo lugar, esperamos que os partidos políticos não entremnuma velha história, que é a denúncia não só da corrupção mas da própria

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política. E nisso nós temos uma longa tradição. Lembremos que osocialismo do século XIX foi antipolítico por excelência, quer dizer, a idéiade que se convivia com uma política na qual havia um jogo, e portanto um

nível de corrupção e de violência, sempre foi posta pelos socialistas — seja por Proudhon, seja por Marx e assim por diante — como uma etapa da vidahumana a ser transposta, já que depois da revolução teríamos a substituiçãoda política pela administração racional das coisas, uma idéia aliás de Saint-Simon. Essa idéia permanece muito viva em determinados partidos deesquerda, não só no Brasil: a idéia de que você tolera a política, você faz a

política porque no horizonte teria a possibilidade de ultrapassar o nível da política. Ora, se não tivermos no horizonte essa negação da política, e pensarmos que a política é uma condição humana, e mais ainda, que aliberdade humana implica a política, e que a liberdade implica em seu conede sombra um nível de corrupção, temos então de contrabalançar essastendências todas da vida em sociedade, e é preciso conviver com as

contradições, sabendo que muitas vezes elas são dolorosas. Maria Hermínia T. de Almeida— Vou começar por algo que o Gianotticolocou, mas que eu gostaria de abordar de uma outra maneira. Gostemosou não, queiramos ou não, a denúncia da corrupção e alguma forma demoralismo político são hoje um dos eixos do conflito nesta sociedade: há partidos e atores políticos que estão se colocando no âmbito do conflito

político cada vez mais como os agentes da luta contra a corrupção ou osdefensores de princípios éticos na política. Algo disso ocorria também no período 1945-64, sobretudo com a UDN. E o caso brasileiro não é o único: basta olharmos o que está acontecendo na América Latina, bastalembrarmos como o sistema político italiano afundou; ali o sistema políticodo pós-guerra se desfez num processo em que a luta contra a corrupção erauma questão central, mas mesmo assim a democracia na Itália não caiu.Carlos Eduardo — Lá a corrupção venceu a eleição...

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Gianotti— Operaçãomani politidá Berlusconi... Maria Hermínia — Sim, dá Berlusconi, mas não dá necessariamente emderrubada da democracia... Vemos então que o que está acontecendo com o

PT é isso: está progressivamente caminhando de um discurso classista paraum discurso da moralidade. Foi assim na campanha para a prefeitura deSão Paulo, e acho que vai ser também na campanha para a Presidência. Por mais que haja discussões de programas, neste momento a moralidade é umeixo importante do conflito político, e há muitas possibilidades de perguntar as causas disso. Obviamente, o moralismo político tem a ver com

a expansão dos processos de democratização, mas pode também ter a ver com outras coisas. O Ted Lowie, no último encontro da Anpocs, fez umaexposição em que levantava a hipótese de que a transformação dacorrupção em questão política tem menos a ver com os níveis de corrupçãodo que com o nível de conflito entre as elites, a existência de elitesdispostas a usar esse instrumento na luta contra outras. É uma idéia

bastante interessante, e talvez nos sirva para pensar a situação presente.Talvez valesse a pena tentarmos pensar quais são os âmbitos em que o temada corrupção tem aparecido no contexto da política, até para pensarmoscom mais precisão isso dos limites frouxos. Por onde esse tema temaparecido? Primeiro, na relação dos políticos com seus eleitores: tende-se aatribuir um caráter basicamente corrupto a todas as formas de relação entre

políticos e eleitores que não sejam baseadas na adesão a programas e princípios. Trocar votos por benefícios é em geral percebido comocorrupção ou está ali no limite, e a nossa ciência política tende a perceber dessa forma, bem como os brasilianistas: para o Barry Ames, por exemplo,o sistema político se sustenta em algo que é basicamente corrupto, porquese trata de um tipo de relação de clientelismo. Segundo, na relação dos políticos com seus financiadores, que é claramente uma área de sombraneste país. Isso nos leva à discussão dorent seeking , ou seja, das

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oportunidades que são abertas pelo acesso político privilegiado. Terceiro,na relação dos políticos eleitos, ou do Executivo, com a coalizão degoverno no Congresso. Hoje em dia, qualquer forma de negociação de

apoio político é percebida como forma de intercâmbio não lícita. E,finalmente, a relação dos políticos, no Executivo ou no Congresso, com osrecursos públicos, a maneira como esses recursos públicos são ou nãoapropriados para fins privados.Carlos Eduardo — Acho que falta aí a relação entre o Estado e osinteresses privados, como por exemplo na questão dolobby. Aqui olobbyé

sinônimo de corrupção, mas nos Estados Unidos é institucionalizado, comcanais próprios, com regulamentação própria, feito às claras: o lobista vaiao Congresso, vai ao Executivo, vai ao Judiciário, mostra seus pontos devista, faz pressão, e é algo legítimo. Maria Hermínia — Você tem razão. Subsumi de alguma maneira oslobistas entre os financiadores, mas o problema realmente é mais amplo.

Então, acho que esses são âmbitos importantes, e no debate brasileiro nãohá consenso sobre quais são os limites e o grau de flexibilidade entre o queé lícito e o que não é. Obviamente, transferir milhões da conta do Banpará para sua a conta, isso todo mundo sabe que é contra a lei, mas tem todo umconjunto de relações cujos limites não estão claros, e o discurso moralistatende a colocar tudo no saco das atitudes que beiram a corrupção ou que

são diretamente corrupção. Acho que é impossível pensar o funcionamentodo sistema político brasileiro sem pensar a imprensa em geral, já que adependência da população em relação à informação via rádio e televisão é brutal. A população brasileira é excepcionalmente informada, mas ainformação vem toda dessas fontes. Fiquei muito espantada, e não é a primeira vez, com a rapidez com que a população se informou sobre aatitude a tomar no caso da energia elétrica — isso porque os meios decomunicação martelam. Da mesma forma, todo mundo sabe mais ou

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menos, ou tem alguma versão, sobre as coisas que estão acontecendo nomundo da política. Carlos, você tem razão ao dizer que o jornal reflete oudeve refletir o estado de ânimo dos seus leitores, mas ele de alguma

maneira devolve essa percepção de forma mais elaborada e mais ampliada.Então, ajuda a constituir, ou pelo menos reforça, esse estado de espírito.Portanto a imprensa tem um papel político que é mais ativo do que a suaexposição dá a entender. E como em todas as atividades que têm a ver como mundo público, com o mundo da política, na imprensa também tem umaárea de sombra, em particular na relação com suas fontes. Você citou o

caso dos procuradores, mas não é só isso: as fontes plantam coisas, e neste país a disputa política, inclusive a disputa política interna, é pública numgrau que você não vê em muitos outros países. Aqui a primeira coisa que a pessoa que está brigando dentro de um partido faz é ir à imprensa plantar sua versão daquela briga. Há uma relação de troca da informação por alguma leniência com relação à fonte informada, que não é inusual — no

livro do Mário Conti6

fica claro um grau de conivência e intimidade entre aimprensa e o poder político.

Estou de acordo com o Fábio em que instituições alteramexpectativas e portanto podem alterar comportamentos, mas o fato é quenão se sabe bem como é que isso funciona. Sabe-se muito pouco sobrecomo produzir os efeitos que se quer produzir com a construção

institucional. O tema das instituições entrou na moda na ciência política,mas, tirando algumas coisas que sabemos mais ou menos — quais são osefeitos de certas reformas, por exemplo —, quanto ao resto não temosmuita noção. Então, é necessário refletir um pouco mais, fazer mais pesquisa. Não sabemos sobretudo qual é o efeito combinado de diversasinstituições, e como elas nunca atuam isoladas nunca sabemos a que sedeve uma coisa e a que se deve outra. Se a discussão passa por mudanças6 Conti, Mário. Notícias do Planalto — a imprensa e Fernando Collor . São Paulo: Companhiadas Letras, 1999.

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de tipo institucional, temos de entender um pouco mais como é que issofunciona, e acho que entendemos bem menos do que a literatura ou odiscurso dos cientistas políticos podem fazer crer. Ttampouco sabemos por

que algumas instituições “pegam” e outras não — ou melhor, regras, poisaí não são nem instituições. Algumas iniciativas de constituição deinstituições, por meio da definição de normas legais, funcionam, e outrasnão. A visão culturalista, que tem uma tradição forte no Brasil e passa peloOliveira Vianna, diz que só “pega” aquilo que tem a ver com padrõesculturais enraizados. Mas as visões culturalistas em geral dificultam muito

nosso entendimento de como é que as coisas mudam. Elas são boas paraexplicar como é que em certas circunstâncias as coisasnãomudam. Háuma cisão muito radical no debate interno à ciência política, entre os queapostam na instituição e os que dizem que se pode resolver tudo pelasnormas que estão enraizadas e que têm uma dimensão cultural, mas achoque isso não nos leva muito longe.

Fábio — Uma questão importante que se conecta com vários aspectos detodas as intervenções é a idéia colocada pelo Gianotti da corrupção comocondição da liberdade humana, de não haver como ser livre sem a possibilidade de quebrar a norma. Há um sentido em que isso é muitoclaro: se você está completamente determinado, obviamente você não élivre, e o livre-arbítrio supõe que você possa quebrar a norma. Mas o

desdobramento que surge disso e que é interessante para a nossa discussãoé que isso evidentemente não pode ser entendido como a geléia geral, comose tudo se equivalesse. Deve haver a possibilidade de diferenciar situaçõesdiversas, de distinguir o Brasil da atualidade de uma Suíça ou um Canadá,de países onde se pode contar com que certas práticas cívicas tenham maior penetração, sejam um fator mais efetivo de orientação do comportamentodas pessoas. A maneira como eu leio o que está sendo sugerido peloGianotti é que há uma dialética na qual o jogo dos interesses está

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necessariamente presente, mas sob o desafio para a construção política demitigar o que há de mais áspero nesse jogo.Giannotti— Eu diria que além disso existe uma espécie de lei de

compensação entre o grau da infração da norma e a idealização de um rigor na guarda da norma — isto é, um país que é inteiramente esculhambadotende a encontrar Savonarolas, defensores da norma. Então, esse jogo éfundamental justamente para encontrar os meios-termos, sem o que nósadentramos ou o moralismo ou a sociedade celerada. Fábio — Se entendo bem, esta é uma forma de expressar algo que

corresponde exatamente ao que eu pretendia sugerir: aquela receita derealismo no processamento dos interesses, contar com as bestas em vez decontar com anjos, contar com os interesses no seu aspecto mais áspero,mais cru, mais negativo, e tratar de edificar instituições nas quais esseinsumo possa ser processado de maneira positiva. Uma forma de colocar aquestão seria usar a velha idéia do Samuel Huntington da sociedade

pretoriana, em que há instituições débeis, com pouca penetração, poucaefetividade para a orientação do comportamento das pessoas, portanto comnormas que não “pegaram”, como disse a Maria Hermínia. E isso semanifesta em planos diversos, incluindo a da corrupção diretamente. Nalinguagem que o Huntington utiliza — isso é coisa de mais de trinta anosatrás7 —, cada um vai para a arena política levando os recursos que tem à

mão: você é plutocrata, rico, você corrompe; você é operário, então fazgreve, greve política se for o caso; você é militar, tem os fuzis eocasionalmente dá golpes. Aqui, há dois níveis: o nível da corrupção nosentido mais convergente com o tema da nossa discussão e um níveltotalmente diferente, que é quando o fato de as normas serem precáriasredunda em comprometer a democracia, comprometer a viabilidade ou aestabilidade de instituições políticas democráticas. E também podemos7 Huntington, Samuel P. Political Order in Changing Societies. New Haven: Yale UniversityPress, 1968.

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ligar isso com o fato de que as normas têm pouca vigência no plano quecorresponde aos comportamentos violentos, à criminalidade comum. Entãotemos níveis diferentes, que vão da violência comum, passam pela

corrupção em nosso sentido e chegam à inviabilidade da democracia, ao pretorianismo no sentido político do Huntington, níveis que têm a ver como fato de que normas não penetram.

Acho que isso permite apontar um aspecto importante da dinâmica brasileira. Não sei até que ponto seríamos peculiares a este respeito, masme parece ser um traço relevante o que há aqui de banal na desatenção com

respeito às normas. Nós nos indignamos quando as grandes maracutaiasexplodem, mas nos esquecemos — nós, classe média — de como écorriqueiro em nosso cotidiano o comportamento corrupto, desatento anormas. As férias desfrutadas na praia e que se “vendem” nasuniversidades públicas, reforçando os salários; as diárias indevidas que secobram; o funcionário público que coloca na conta da “viúva” as pequenas

despesas sempre que pode; os impostos que se sonegam; as regras detrânsito para as quais ninguém dá bola se tem a chance de se escafeder semobservá-las; e por aí vai. Na verdade, há umaculturacorrupta que pode ser ligada tanto à criminalidade comum e à violência, que encontram condiçõesmais favoráveis no meio popular e nas populações periféricas(especialmente agora, com o narcotráfico e a deterioração social da nova

dinâmica econômica), quanto à instabilidade no plano das instituições políticas. E creio que a intuição que a Maria Hermínia trouxe, citando oLowi, sobre a corrupção como tema político em conexão com a intensidadedo conflito, é da maior relevância nessa perspectiva. O alcance político do pretorianismo, o fato de que de repente os militares estão dando o golpecom o respaldo da federação das indústrias, tem a ver com o fato de haver um foco saliente de conflito, e isso explica boa parte das vicissitudes políticas brasileiras ao longo do último século, durante a maior parte do

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qual o foco de conflito era percebido como correspondendo à ameaça dasubversão socialista. O fato de que o Brasil tem sido uma sociedadecorrupta é da mesma natureza, é outra face daquilo que se expressa no fato

de que o país sofreu golpes sucessivos durante o século XX, de que os períodos de tentativa de acomodar institucionalmente o conflito político sealternaram com períodos de irregularidade, com quarteladas e golpes,inclusive com nosso último experimento autoritário, que durou nada menosque 21 anos e é recentíssimo.

Então, acho que isso se desdobra no desafio, que enunciei

genericamente antes, de como mitigar o jogo dos interesses, o que vaiexigir a construção de instituições. O Carlos Eduardo falava da aceitaçãodo lobbynos Estados Unidos em contraponto ao fato de que aqui seconsidera olobbyilícito, mas há um detalhe para o qual ele mesmo chamoua atenção, que é o fato de que lá olobbyestá regulamentado,institucionalizado. Você constrói instituição quando regula o jogo dos

interesses, mesmo na forma dolobby, da tentativa aberta de assegurar que o poder público aja em proveito de determinado conjunto de interesses particulares. A presunção tem de ser naturalmente de que se trata, sim, deinteresses particulares, mas não caberá mais falar de corrupção (se nãoquisermos diluir a idéia de corrupção na geléia geral de que tudo écorrupção) na medida em que o jogo que busca a afirmação dos interesses

não seja um jogo desenfreado, mas regulado por normas que sejam objetode acatamento efetivo.É importante, naturalmente, a indagação que a Maria Hermínia

coloca: como é que se faz para que essa construção seja efetiva e bem-sucedida? Não vejo saída fora da visão realista que encontramos nosfederalistas: é preciso algum tipo de esforço de conciliação da construçãoinstitucional e da elaboração de normas com o lastro cultural — por exemplo, uma Constituinte que não tenha correspondência com a sociedade

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que ela pretende regular não vai ter condições de fazer regulação efetiva —, como também com o jogo dos interesses. Uma Assembléia Constituinteque tenha pretensão de ser bem-sucedida não pode se dissociar dos

interesses e da correlação de forças na sociedade. Essa é seguramente umadas razões pelas quais a expectativa excessiva que criamos em torno dasnossas sucessivas Constituintes tende a se frustrar, e talvez as Constituintestendam a se reproduzir, entre outras coisas, justamente porque há a posturamilenarista de fazer Constituição para durar trezentos anos, quando talvezfosse uma perspectiva muito mais compatível com o realismo sociológico

pensar em Constituição para os próximos vinte ou trinta anos, com sorte. É bem ilustrativo disso o caso da nossa Constituição de 1988, que já passou por todas as revisões imagináveis e é vista como um embaraço mais quecomo um respaldo real para um jogo positivo e construtivo.Carlos Eduardo — Vou levantar dois pontos na forma de perguntas, que é amelhor coisa que um jornalista sabe fazer. Primeiro, eu queria saber na

opinião de vocês qual a importância que tem o grau de corrupção. Como bem estava dizendo o Fábio, na nossa cultura a corrupção é algo que está presente desde cedo: todo mundo faz suas corrupções desde criança emcasa e na escola, e isso é considerado natural. “Colar” é quase natural.“Quem não cola não sai da escola” — isso estava na capa de uma revistaeducativa há uns três anos, uma revista importante dirigida a adolescentes,

com nítido objetivo de educar e informar, e a reportagem principal erasobre dicas de como colar melhor, como colar mais eficientemente naescola. Outro caso: uma pessoa brasileira passou por teste de habilitação para dirigir nos Estados Unidos, e embora dirigisse muito bem foireprovada. Perguntou por que e lhe disseram que diante de uma placa de parar ela não parou. Ela falou: “É claro, não havia nenhum carro, nenhuma pessoa, por que eu haveria de parar?”. “Porque a placa manda você parar,então você pára”. Para um brasileiro que freqüenta pequenas cidades

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americanas é patético ver aquilo: vem um carro pela rua e não há um ser humano por perto; diante da placa de parar o sujeito pára, fica ali unsquinze segundos e só então segue. Então, numa cultura tão enraizadamente

corrupta, quando é que, do ponto de vista do jornalista, a corrupção se torna pauta? Será que o José Roberto Arruda tem razão? Ele não matou, nãoroubou, não fez nada de errado a não ser ter pedido a tal lista de votação.Isso é pauta para jornal ou não é? Eu vi senador americano perder omandato porque cobrava diárias quando ia viajar e em vez de ficar em hotelficava em casa de amigos. Isso é pauta jornalística ou é udenismo

moralizante? Onde é que está o limite a partir do qual o jornal deve entrar com pauta de corrupção? Ou vou ficar indo à universidade para ver se o professor está indo dar aula ou não: “Professor disse que ia dar aula e estánum congresso em Paris...”. Isso é corrupção ou não? Ou só quando serouba mais de um milhão de dólares, como no caso Banpará? Minhaquestão, portanto, é muito prática: para o jornalista, o grau de corrupção

deve ser uma medida? Qual a medida do que deve ser revelado ao públicocomo ato de corrupção? E uma segunda questão é se está em risco aliberdade de imprensa, pois vemos cada vez mais essas propostas de lei demordaça, e está se criando uma cultura de que a imprensa, por ser moralistademais, deve ser punida com mais restrições. Ou isso é um risco que nãocorremos?Gianotti

— Em relação à posição do Fábio, a posição tradicional liberal,creio que nós estamos numa situação complicada para aplicar esse esquemarapidamente. Se é o interesse privado o que temos de levar em conta, estáse coletivizando conseqüências que são contraditórias com as que poderíamos imaginar nessas intenções. O que temos hoje é muitaconseqüência contrária à intenção com a qual se age. Isto é, existe umaespécie de proporção tal que o grau de infração da norma tambémcorresponde a um grau de idealização da guarda da norma. Essas

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contradições que estamos vivendo no Brasil, como não são mediadas por outras formas de sociabilidade — as contradições aqui são muito maisduras —, estão levando a uma espécie de idealização de sociedades que

funcionam em vista da infração. Eis o que o Carlos Eduardo lembrouagora: se quem não cola não sai da escola, então institucionaliza-se amaneira pela qual se cola... Fábio — Nas grandes cidades brasileiras vêem-se atualmente muitosanúncios de firmas antimultas: “não pague multas”. Esse é um exemplo bom, não?

Gianotti — Sim, claro! Quando a instituição guardiã passa a ser extremamente rigorosa no regulamento e na aplicação dela... Por exemplo,fui multado várias vezes porque o limite de velocidade era de 50quilômetros por hora e cheguei a 57, 58, e não há maleabilidade para eusaber a que velocidade devo andar, porque em São Paulo as placas vãoindicando 50, 70, 60, 70 de novo: ou você olha para as placas ou para o

velocímetro. E isso vai aumentar o desastre ou vai diminuir o desastre? Vaiaumentar o desastre! Nós temos um tipo de organização do espaçoregulador que é feito para ser contrário àquilo que foi organizado. Nós temos um outro processo preocupante que é o crime organizado. Em particular, temos de examinar o que está acontecendo com o Poder Judiciário: é o lugar onde se combina de maneira mais fraternal a infração

da norma com a idealização do rigor da norma, talvez seja hoje o poder mais corrupto que temos na República. Aquilo que deveria guardar a normana verdade faz que os interesses privados corrompam a possibilidade deuma coletivização, não porque cada juiz fica isolado, mas porque seestabelece por exemplo uma institucionalização da corrupção que se chamaliminar. Da mesma forma que temos uma institucionalização virtuosa dasociedade brasileira, estamos assistindo a uma institucionalização perversade vários esquemas da nossa sociedade. E aí acho que a imprensa entra. Em

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primeiro lugar, porque ela tem em relação à notícia um papelextraordinário: a imprensa não apenas dá a notícia: ela a encena. Natelevisão é mais forte ainda: a notícia aparece encenada, e já aparece no seu

caráter ideal de tempo real em que está acontecendo o fato. Evidentemente,estamos em uma sociedade em que a imprensa televisiva tem um caráter paradigmático que é absolutamente extraordinário: as pessoas aprendem afalar pela televisão, aprendem a se vestir pela televisão, aprendem a secomportar pela televisão, mas tudo isso por meio da encenação da mídia. O problema é que nós não temos mídia propriamente: temos órgãos

competidores, e numa batalha feroz. E essa batalha não é encenada; pelocontrário, é escamoteada o mais possível. À medida que o Ratinhocomeçou a colocar em perigo a audiência da Rede Globo, esta reagiu baixando o nível de sua programação. As estações de TV em geral, que decerto modo pretendem ser educativas na sua encenação, passam a ser deseducativas na medida em que começam a encenar o mundo-cão, a

infração e assim por diante. O problema é saber se a encenação da mídiavai caminhar na organização das sociedades celeradas ou das sociedadesvirtuosas, e a mídia está inteiramente livre para fazer essa opção. Embora,como o Carlos disse, a mídia reflita o seu público, ela pode puxar para cimaou para baixo. E aí a responsabilidade é da mídia, e não nossa. O problemanão é o grau, mas o tipo de corrupção que se deve investigar, noticiar e

controlar. Se é essa corrupção do tipo “quem não cola não sai da escola”,isto é, que tenha a possibilidade de formar uma sociabilidade perversa,então é fundamental que seja denunciada e analisada. Mas as pequenascorrupções que não têm efeitos socializantes, que são restos dasocialização, aí eu tenho a impressão de que é possível pautar sem imprimir dimensões muito grandes.Carlos Eduardo — Você poderia dar um exemplo desse tipo?Giannotti— O Dossiê Cayman, por exemplo, é das coisas mais

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interessantes como fenômeno midiático. Era um dossiê montado, e amaioria das pessoas sabia disso. Bastava pensar na inviabilidade de umaconta conjunta envolvendo quatro pessoas que tinham posições políticas as

mais diversas: imagine só se Sérgio Motta e Mario Covas poderiam ter umaconta conjunta... Isso podia ser perfeitamente anunciado, encenado edenunciado rapidamente, se a investigação fosse feita em vista de mostrar aquilo que era óbvio, mas como foi feita em vista de aumentar avisibilidade política dos agentes e da própria mídia, como arma para que oslíderes políticos aparecessem como corruptos, como pessoas com as quais a

gente não pode contar e assim por diante, o Dossiê Cayman teve umaduração muito maior, creio eu, do que podia se a mídia tivesse como formade denúncia e de noticiário uma outra intenção, mais educativa e menosteatral e encenatória.

Em relação à questão da mordaça, não vejo grande perigo para aimprensa, como não vejo grande perigo para a sociedade brasileira hoje de

um retrocesso autoritário. O perigo que eu vejo, isto sim, é que apareçamsalvadores da pátria, que se encene a solução de tal maneira num políticomessiânico, fazendo obypasspelo sistema político e negando a política — um filme que já conhecemos há muito tempo. Fábio — Mas isso só é um perigo se redundar em retrocesso autoritário...Giannotti— Não: isso é perigo se tivermos esse tipo de reação política à

crise institucional presente, porque assim diminuímos o papel do jogo político. E como você e eu somos democratas, sabemos que o que importanão é este partido ou aquele personagem salvador que ganhe a eleição, masque o jogo de alternância possa cumprir a tarefa a que ele se propõe. Essetipo de aventureirismo político pode não gerar uma reação autoritária, mas pode desembocar num esgarçamento da política e numa despolitização dasociedade. Enfim, a crise, em vez de reforçar a política democráticarepublicana, pela qual acho que deveríamos nos bater, pode resultar numa

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volta a formas pré-republicanas.Carlos Eduardo — Concordo com você em que não há, pelo menosaparentemente, qualquer perigo de retrocesso autoritário, mas estou

surpreso como algumas pessoas do governo estão batendo nessa tecla.Fiquei abismado quando ouvi o ministro Weffort num seminário emOxford fazer um discurso inteiramente na linha “a democracia está em perigo no Brasil”. Achei que isso tinha sido algo extemporâneo dele, masna volta vejo o próprio presidente falando isso repetidamente, e outrostambém. Não entendo qual a racionalidade desse tipo de argumentação

neste momento.Giannotti — Eu entendo nisso não a racionalidade, mas a perversão. Namedida em que você tem um discurso profundamente moralista eintegrador, você o inverte e diz que é totalização e totalitarismo. Não estoudefendendo o governo, nem Weffort nem o presidente quando dizem isso,mas retoricamente o discurso moralizante e unificante dá uma contrapartida

perversa, uma retórica perversa também na base da integração: “ademocracia está em perigo”. Eu não vejo esse perigo, como também nãovejo a necessidade de termos bandeiras políticas cujo eixo seja amoralidade pública, porque isso é, antes de tudo, uma mentira: nenhuma política que pretenda conseguir a governabilidade pode se estruturar emface da moralidade pública. Maria Hermínia

— O tema que está faltando aqui ao lado da corrupção é otema da impunidade, de que não falamos até agora. E talvez o tema sejamenos a corrupção e mais a impunidade, que neste país é claramenteclassista: da classe média pra cima somos todos impunes....Giannotti — Eu diria que o tema da impunidade está ligado justamente aessa exacerbação da idealização da norma, porque no Brasil a norma estáde tal forma longe, idealizada, que não chega a mim. Eu nunca sou caso danorma.

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Maria Hermínia — Mas eu também, porque sou branca, de classe média,tenho recursos, e assim ela não vai recair sobre mim.Carlos Eduardo — Se bem que isto está mudando: temos um juiz preso...

Giannotti— Três senadores cassados... Maria Hermínia — Não tenho nenhuma dúvida de que está mudando.Como vocês dois, não tenho a percepção negativa com relação aos riscosda democracia. E acho também, Fábio, que as instituições do país já forammuito mais pretorianas do que são hoje. Há uma leitura mais positiva do processo pós-1988, deste ponto de vista. As instituições políticas

agüentaram um tranco considerável nesta última década — o que éimpedir, num processo absolutamente legítimo e transparente, o primeiro presidente da República eleito diretamente depois de tantos anos?Agüentaram muitas crises de mau funcionamento e reagiram com reformas. No caso do escândalo dos “anões do orçamento”, por exemplo, a Comissãode Orçamento reformou suas regras e limitou consideravelmente a

possibilidade de que aquilo ocorra outra vez. Também nunca vi um juizgraúdo como o Nicolau dos Santos Neto na cadeia. As políticas e normasque criaram mecanismos automáticos de transmissão de recursos estãotapando um ralo que é monumental, e houve uma série de mudanças quelimitaram as possibilidades de distribuição política de recursos em políticasque transferem uma quantidade significativa de recursos em várias áreas,

como o Fundef e o SUS. A Constituição de 1988 também crioumecanismos importantes. Então, mesmo do ponto de vista da construçãoinstitucional, acho que houve um avanço considerável. Podemos achar queo promotor Luiz Francisco é um candidato a Torquemada, mas seobservarmos a atuação dessa ala jovem do Ministério Público, veremos queem muitos lugares ela está fazendo coisas muito positivas, como ir aosmunicípios ver se o prefeito está gastando o que tem de gastar emeducação. Esse papel é menos visível do que quando o Luiz Francisco faz o

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seu show, mas não podemos julgar o Ministério Público por isso, senão nãoestaremos percebendo o progresso institucional dos controles e daresponsabilização — e o Ministério Público tem funcionado como um

instrumento de responsabilização. Acho que há também uma evoluçãomuito positiva na imprensa. É verdade que se trata de empresas quecompetem como qualquer empresa capitalista, mas uma relação como a doGetúlio Vargas com oÚltima Hora, um jornal importante entre 1945 e1964, isso já não existe.Carlos Eduardo — E essa relação existe em quase todos os países da

América Latina. Compare-se a imprensa brasileira com outras imprensas daAmérica Latina: a qualidade da imprensa brasileira é radicalmente superior. Maria Hermínia — Eu queria fazer mais duas considerações. Primeiro,sobre essa linha tênue entre a legítima crítica ao moralismo político, peloque ele tem de fundamentalista e essencialista, e o discurso de que essagente está afundando a democracia. Não acho que a democracia esteja

afundando, mas se ela afundar, vai ser por causa dessas pessoas e tambémdas que estão jogando do lado da impunidade, porque às vezes têm faltadorespostas mais nítidas com relação a certos casos, o que talvez tivessetirado muito espaço desse discurso moralista. É uma linha muito fina, esempre se pode cair de um lado ou de outro. Eu tenho receio do discurso domoralismo político porque ele é eleitoralmente eficaz: faz a ponte eleitoral

da esquerda com a classe média, que não gosta de um discurso do tipo“trabalhador vota em trabalhador”, mas de um discurso da moralidade. Émuito difícil para a esquerda escapar de se mover nessa direção se esseespaço não for reduzido por alguma atitude mais firme com relação aoscasos. O Dossiê Cayman é de fato inacreditável — como é que uma coisacompletamente falsa ficou durante tanto tempo na manchete dos jornais? —, mas uma atitude mais rápida por parte das autoridades para apurar ocaso talvez tivesse reduzido o espaço daquilo.

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Carlos Eduardo— Eu não tenho familiaridade com o caso para falar arespeito, mas me parece que quem jogou o Dossiê Cayman no colo daimprensa foi alguém do governo, foi uma operação preventiva, não foi?

Fábio— Mas a oposição, o PT, não comprou a pauta... Maria Hermínia— Quem comprou foi a imprensa, e manteve lá durantemuito tempo. Acho que não se trata de lei da mordaça, mas tinha de haver uma boa legislação que protegesse os indivíduos e os interesses individuais.Suponha que o Francisco Lopes não tenha feito o que fez: quem é queagora vai acreditar que ele não fez o que fez? Porque depois de ele ter esse

grau de exposição na mídia, mesmo que ganhe na Justiça, a reputação deleacabou.

Só queria fazer uma última observação, a respeito das perspectivaseleitorais. O jogo político neste país se chama presidencialismo decoalizão: ninguém vai administrar com um governo unipartidário no próximo futuro, e duvido que alguém governe o país sem uma aliança com

o centro. Fábio— Portanto a democracia está em perigo sim... (risos). Maria Hermínia— Mas começa a ficar claro que há mecanismos legítimosde negociação política do governo com suas bases, ou a tentação doExecutivo em enfrentar o Congresso é grande. As condições externas sãomuito desfavoráveis para ditaduras, embora não o sejam para coisas como

fujimorismo, e estas também não têm vida muito longa, não conseguem sesustentar, se institucionalizar como sistema, mas esse risco eu acho queexiste sim, porque tudo o que é negociação é hoje percebido comocorrupção.Giannotti— E como imoralidade... Maria Hermínia— E os deputados serão aproximadamente os mesmos;haverá uma certa renovação do Congresso, o Hildebrando Pascoal não seráeleito, mas alguém parecido com ele ou com o Geddel de Lima vai ser

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eleito, e tem uma negociação para fazer aí. Fábio — Uma palavra a respeito do rótulo que o Giannotti aplicou a minha posição, que seria a “posição liberal tradicional”. Pretendo que o que estou

propondo redunde numa espécie de síntese de pressupostos liberais comum republicanismo que não queira ser apenas um idealismo inconsequente.Mas pondo isso de lado, vejo também um certo avanço no processo que agente está vivendo, algo como uma dialética das instituições que envolveum jogo entre as manifestações de corrupção e a explosão de denúncias.Bem ou mal, acho que são institucionalmente positivas as experiências que

a Maria Hermínia mencionou, como o ineditismo doimpeachment de um presidente num quadro institucional tranquilo, o expurgo dos anões doorçamento, a própria lavagem de roupa suja do Senado, com essas sessõesdo Conselho de Ética transmitidas ao vivo na televisão — no jogo com aopinião pública, isso é claramente estimulado, o que redunda numa pressãoimportante. Não acredito que haja risco de mordaça para a imprensa,

porque isso teria um impacto extremamente negativo de qualquer ponto devista, suscitaria resistências tais que dificilmente prosperaria. Acho tambémque o Ministério Público representa algo muito positivo. Enfim, temos umavanço importante no processo de institucionalização, mas é preciso trazer algumas reservas aqui, algumas qualificações. Por exemplo, com respeito àidéia de pretorianismo do Huntington, que remete à possibilidade da

presença mais decisiva dos militares. Aí há uma ponderação inevitável, queé o fato de que afinal de contas estamos vivendo num mundo pós-socialista,e o grande fator responsável por boa parte das idas e vindas no século queacaba de se encerrar, entre presença e refluxo da intervenção militar, era aameaça da revolução socialista, que certamente está cancelada nos termosem que se colocava, por exemplo, no imediato pré-64. A mobilizaçãogolpista se fez com o objetivo de deter uma suposta mobilização que levavana direção da revolução comunista, e isso claramente não existe mais. Mas

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uma abordagem um pouco mais matizada justifica algumas reservas quantoa saber até que ponto existe algum perigo para a democracia, por conexãocom outras coisas que estão em cena. Uma delas é o fato de que a nossa

democracia, pós-socialista ou não, não passou ainda pelo teste de ver aeleição de uma esquerda à maneira do PT, que, bem ou mal, é uma herançado mundo anterior ao pós-socialismo, que é originalmente revolucionária eque me parece ainda ser objeto de resistências importantes na sociedade brasileira. Nós vivemos durante um tempo uma espécie de complexo desublevação, que está em boa parte dissipado, mas não sei até que ponto.

Giannotti— A eleição do PT seria diferente da eleição do Jospin? Fábio— Eu não sei. Você sabe? Neste país, ainda não sei...Carlos Eduardo— Acho que depende do candidato a presidente. Fábio— Não sei se um Lula na Presidência, dependendo dascircunstâncias, justifica a aposta de plena governabilidade e ausência deriscos de desestabilização... Há muito tempo não se ouve falar, apesar de

certas manifestações do pessoal da reserva, das disposições no âmbito dasForças Armadas. Em 1994, que não está tão longe assim, o ministro-chefeda Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República sesentia à vontade para afirmar que o regime civil brasileiro atual não é aderrota das Forças Armadas, mas apenas um armistício — dito com todasas letras. Acho bem claro que existe uma espécie de veto difuso a um

petista na Presidência, o que se articula com o estreitamento do espaçoideológico — porque se ninguém está contemplando a revolução socialista,a própria social-democracia passa a ser vista como um extremismo, ou algoimpróprio e oneroso, no mundo da hegemonia do mercado. E umadisposição mais experimental do PT, no sentido de tentar fazer certascoisas, pode suscitar reações com respaldo internacional, dependendosobretudo de como se dispõe o cenário internacional, de como se dispõe aeconomia. Mas mesmo se deixamos de lado o PT e a inspiração

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revolucionária de suas origens recentes, que dizer do Itamar Franco? Itamar na Presidência, com o que tem de imprevisível, com o risco Brasil pulandolá pra cima, com ameaça de moratória... Ele já está propondo

expressamente soluções alternativas para a crise de energia que envolvemdeslocar recursos do pagamento da dívida externa para aplicação na áreaenergética. Não estou aqui dizendo que Itamar redunda em golpe, mas achoque temos elementos suficientes de incerteza para não ter como favascontadas a nossa conquista democrática, que é muito recente. Isso se juntacom o tema específico da corrupção através da denúncia do “denuncismo”

que o presidente estava verbalizando outro dia. O Fernando Henrique temestado claramente alarmista, e acho que um presidente da Repúblicaalarmista, que fala em democracia ameaçada, é boa razão de alarme, sejamquais forem seus motivos subjetivos. Ele se transforma num fator objetivoda própria configuração da situação: o risco Brasil tende certamente aaumentar diante desse discurso do presidente e da percepção, certa ou

errada, das razões que levam a ele. De certa maneira é até irresponsável queo presidente, na situação atual, convoque alguém para falar de golpe, dedemocracia em risco.

Queria acrescentar duas coisas. Com relação ao tema geral dacorrupção, andei falando com insistência do esforço realista de construçãoinstitucional, e gostaria de apontar um elemento que tem a ver com a

atuação do governo FHC e seu déficit simbólico. Tenho lembrado comalguma freqüência o fato de que Fernando Henrique, como candidato,acenou com a refundação política do país, e depois, no esforço de“realismo” para tratar de administrar –– e de ser reeleito, supostamente para continuar a obra administrativa ––, esqueceu ou pôs de lado ocomponente simbólico que esse esforço de refundação exigiria. Em nomeda governabilidade e da eficiência administrativa ele fez, por exemplo,alianças que aparecem como precárias e comprometedoras do ponto de

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vista simbólico, que comprometem uma certa exemplaridade que se poderiaesperar de uma presidência Fernando Henrique, e que certamente ajudarama solapar o capital que a expectativa inicial representava para o esforço de

mobilização do país numa direção diferente. O que estou sugerindo é que o papel que uma liderança exemplar exerce pode ser um fator importante naconformação daquele esforço de construção institucional objetiva,ajudando a trazer certa consistência sociopsicológica e cultural àsinstituições. Acho lamentável que tenhamos aprendido com o governo FHCque charme não é carisma: o charme está lá, mas ficamos com um déficit

de carisma (naturalmente num sentido nobre e ambicioso da expressão).Houve uma capitulação clara quanto a esse aspecto: abriu-se mão docomponente simbólico e do papel de exemplaridade que caberia esperar daliderança presidencial. É irônico, como vemos agora com a crise do apagão,que o custo disso tenha se estendido ao próprio plano da eficiênciaadministrativa.

A outra coisa que eu queria acrescentar tem a ver com o aspectocognitivo. Em relação a um processo de institucionalização que alterasse adinâmica corrupta ou pretoriana, mencionei antes que é importante que nãose trate de conversão, de reforma moral, mas que se possa contar com oselementos reais, o que implica a apreensão adequada desses elementos e portanto uma aposta que é de natureza cognitiva. Eu queria chamar a

atenção para certos dados de uma pesquisa nossa que estão relatados numartigo recente8, que contém algumas sugestões talvez importantes.Procuramos ali observar como se relacionam o civismo e o grau desofisticação e informação das pessoas — mediante um índice complexovoltado para a dimensão cognitiva e intelectual, que chamamos lá desofisticação política —, e constatamos, como era de se esperar, que quanto

8 Reis, Fábio W. e Castro, Mônica M. M. de. “Democracia, civismo e cinismo. Um estudoempírico sobre normas e racionalidade”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo:Anpocs, vol. 16, no 45, fevereiro de 2001.

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mais sofisticadas são as pessoas (ou quanto mais pertencem ao mundo daclasse média ou acima, dada a correlação de sofisticação com posiçãosocioeconômica), tanto mais cívicas elas são. Isso tem uma implicação

ruim no sentido de que a grande massa eleitoral é pouco cívica, e daí é possível explorar implicações importantes do ponto de vista da corrupção eda criminalidade. Os dados mostram, por exemplo, que, em proporçõesassustadoras, as pessoas de pouca sofisticação, de pouca educação einformação política são favoráveis a coisas como a ação dos “esquadrõesda morte”, o linchamento de bandidos, a tortura policial, o que diminui à

medida que você sobe na escala socioeconômica ou de escolaridade(embora ainda exista fortemente até no nível universitário). Mas o ponto para o qual eu pretendia chamar a atenção é outro: quando você introduzuma cláusula que qualifica a definição da situação, que torna mais problemático obter os frutos positivos da convergência cívica, então quantomais sofisticadas as pessoas, mais prontas elas estão a correr para o

cinismo, a modificar sua disposição cívica na direção de uma disposiçãocínica, de se defender, de prontamente se aproveitar da situação dada emtermos de interesse pessoal, egoísta. Em outras palavras, nas situaçõesadversas, que podem ocorrer com freqüência, em situações em que agir solidária ou civicamente poderia aparecer como “bancar o otário”, tantomais prontos os cívicos e sofisticados estão a se deslocar na direção do

cinismo, muito mais do que os pouco informados, os singelos.Giannotti— Isso mostra que esse civismo nada mais é que uma idealizaçãode si mesmo, não é? Fábio— Em boa medida, sem a menor dúvida. Os dados permitem umaaferição da consistência da adesão ao civismo. Várias pesquisas recentesmostram, no plano internacional, que as pessoas tendem a verbalizar apoioao ideal democrático em termos político-eleitorais, mas tendem a ter uma percepção muito negativa do desempenho das autoridades, dos partidos,

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das instituições da democracia representativa. No Brasil há claramente essamesma síndrome. Mas a peculiaridade brasileira consiste no desapego pelos valores cívicos de que eu acabo de falar (que até onde sei é singular,

pelo menos não conheço dados de outros países que mostrem o mesmo):apóia-se a democracia, gosta-se de eleições, mas isso não impede que aschacinas sejam vistas com naturalidade. E isso se combina com algo que poderíamos chamar o substrato sociopsicológico do populismo, formandoum caldo de cultura perigoso do ponto de vista de eventuais aventureiros:não só as pessoas têm pouco apego à idéia dos direitos civis, como estão

prontas para o cesarismo. Diante de um enunciado mais ou menos assim:“Em vez de partidos políticos, o que este país necessita é um grandemovimento de unidade nacional dirigido por um homem honesto edecidido” — a aprovação é simplesmente avassaladora, sobretudo nosestratos mais numerosos do eleitorado pouco educado e sofisticado.

De qualquer forma, diante da maneira complexa pela qual os

aspectos normativos e cognitivos parecem articular-se (sobretudo com asofisticação que ora reforça o civismo, ora o suspende), o processo deconstruir instituições para a superação da condição corrupta, e da condição politicamente precária e exposta a atropelos, talvez não dependa tanto deque se difundam valores e normas de certo tipo, mas antes de que se criemexpectativas que convirjam de maneira propícia. E acho que nesse sentido

pode ser crucial o papel de exemplaridade da liderança, do efeito dechamamento que a liderança pode cumprir — uma expectativa que no casodo governo Fernando Henrique, até onde eu percebo, frustrou-se.