(kant) a paz perpetua[1]

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IMMANUEL KANT A PAZ PERPTUA UM PROJETO FILOSFICO (1795/96)Pode deixar-se de lado a questo de se esta inscrio satrica na tabuleta de uma pousada holandesa, em que estava pintado um cemitrio, interessa aos homens em geral, ou aos chefes de Estado em particular que nunca chegam a saciar-se da guerra, ou exclusivamente aos filsofos que se entregam a esse doce sonho. Mas o autor do presente ensaio pe como condio o seguinte: em virtude de o poltico prtico estar em bons termos com o terico e com grande autocomplacncia o desdenhar como a um sbio acadmico que, com as suas idias ocas, nenhum perigo traz ao Estado (este deve antes basear-se em princpios empricos) e a quem se pode permitir arremessar de uma s vez os onze palitos sem que o estadista, conhecedor do mundo, com isso se preocupe, no caso de um conflito com o terico, ele deve proceder de um modo consequente e no farejar perigo algum para o Estado por detrs das suas opinies, aventuradas ao acaso e publicamente manifestadas com esta clausula salvatoria, quer o autor saber-se a salvo expressamente e da melhor forma contra toda a interpretao maliciosa.

KANT, Immanuel. A Paz Perptua e Outros Opsculos. Lisboa : Edies 70, s/d. Trad. De

55 PRIMEIRA SEO QUE CONTM OS ARTIGOS PRELIMINARES PARA A PAZ PERPTUA ENTRE OS ESTADOS 1. No deve considerar-se como vlido nenhum tratado de paz que se tenha feito com a reserva secreta de elementos para uma guerra futura. Pois, seria neste caso apenas um simples armistcio, um adiamento das hostilidades e no a paz, que significa o fim de todas as hostilidades. A juno do epteto eterna j um pleonasmo suspeitoso. As causas existentes para uma guerra futura, embora talvez no conhecidas agora nem sequer para os negociadores, destrem-se no seu conjunto pelo tratado de paz, por muito que se possam extrair dos documentos de arquivo mediante um escrutnio penetrante. A restrio (reservatio mentalis) sobre velhas pretenses a que, no momento, nenhuma das partes faz meno porque ambas esto demasiado esgotadas para prosseguir a guerra, com a perversa inteno de, no futuro, aproveitar para este fim a primeira oportunidade, pertence casustica jesutica e no corresponde dignidade dos governantes, do mesmo modo que tambm no corresponde dignidade de um ministro a complacncia em tais dedues, se o assunto se julgar tal como em si mesmo. Se, pelo contrrio, a verdadeira honra do Estado se coloca, segundo os conceitos ilustrados da prudncia poltica, no contnuo incremento do poder seja por que meios for, ento, aquele juzo afigurar-se- como escolar e pedante.

56 2. Nenhum Estado independente (grande ou pequeno, aqui tanto faz) poder ser adquirido por outro mediante herana, troca, compra ou doao. Um Estado no patrimnio (patrimonium) (como, por exemplo, o solo em que ele tem a sua sede). uma sociedade de homens sobre a qual mais ningum a no ser ele prprio tem que mandar e dispor. Enxert-lo noutro Estado, a ele que como tronco tem a sua prpria raiz, significa eliminar a sua existncia como pessoa moral e fazer desta ltima uma coisa, contradizendo, por conseguinte, a idia do contrato originrio, sem a qual impossvel pensar direito algum sobre um povo1. Todos sabem a que perigo induziu a Europa at aos tempos mais recentes o preconceito deste modo de aquisio, pois as outras partes do mundo jamais o conheceram, isto , de os prprios Estados poderem entre si contrair matrimnio; este modo de aquisio , em parte, um novo gnero de artifcio para se tornar muito poderoso mediante alianas de famlia sem dispndio de foras e, em parte tambm, serve para assim ampliar as possesses territoriais. Deve tambm aqui englobar-se o servio das tropas de um Estado noutro contra um inimigo no comum, pois em tal caso usa-se e abusa-se dos sditos vontade, como se fossem coisas de uso. 3. Os exrcitos permanentcs (miles perpetuus) devem, com o tempo, desaparecer totalmente. Pois ameaam incessantemente os outros Estados com a guerra em virtude da sua prontido para aparecerem1

Um reino hereditrio no um Estado que possa ser herdado por outro Estado; um Estado cujo direito a governar pode dar-se em herana a uma outra pessoa fsica. O Estado adquire, pois, um governante, no o governante como tal (isto , que j possui outro reino) que adquire o Estado.

57 sempre preparados para ela; os Estados estimulam-se reciprocamente a ultrapassar-se na quantidade dos mobilizados que no conhece nenhum limite, e visto que a paz, em virtude dos custos relacionados com o armamento, se torna finalmente mais opressiva do que uma guerra curta, eles prprios so a causa de guerras ofensivas para se libertarem de tal fardo; acrescente-se que pr-se a soldo para matar ou ser morto parece implicar um uso dos homens como simples mquinas e instrumentos na mo de outrem (do Estado), uso que no se pode harmonizar bem com o direito da humanidade na nossa prpria pessoa. Uma coisa inteiramente diferente defender-se e defender a Ptria dos ataques do exterior com o exerccio militar voluntrio dos cidados realizado periodicamente. O mesmo se passaria com a acumulao de um tesouro, pois considerado pelos outros Estados como uma ameaa de guerra for-los-ia a um ataque antecipado se a tal no se opusesse a dificuldade de calcular a sua grandeza (pois dos trs poderes, o militar, o das alianas e o do dinheiro, este ltimo poderia ser decerto o mais seguro de guerra). 4. No se devem emitir dvidas pblicas em relao com os assuntos de poltica exterior. Para fomentar a economia de um pas (melhoria dos caminhos, novas colonizaes, criao de depsitos para os anos maus de fornecimentos, etc.) fora ou dentro do Estado, esta fonte de financiamento no levanta suspeitas. Mas o sistema de crdito, como instrumento de oposio das potncias entre si, um sistema que cresce desmesuradamente e constitui sempre um poder financeiro para exigir no momento presente (pois certamente nem todos os credores o faro ao mesmo tempo) as dvidas garantidas a engenhosa inveno de um povo de comerciantes neste sculo a saber, um tesouro para a guerra que supera os

58 tesouros de todos os outros Estados tomados em conjunto e que s pode esgotar-se pela eminente queda dos impostos (que, no entanto, se mantero ainda durante muito tempo, graas revitalizao do comrcio por meio da retroao deste sobre a indstria e a riqueza). A facilidade para fazer a guerra, unida tendncia dos detentores do poder que parece ser congnita natureza humana, , pois, um grande obstculo para a paz perptua; para obstar a isso, deveria, com a maior razo, haver um artigo preliminar porque, no fim, a inevitvel bancarrota do Estado deve implicar vrios outros Estados sem culpa, o que seria uma leso pblica destes ltimos. Por conseguinte, outros Estados tm pelo menos direito a aliar-se contra semelhante Estado e as suas pretenses. 5. Nenhum Estado deve imiscuir-se pela fora na constituio e no governo de outro Estado. Pois, que que o pode a isso autorizar? Porventura o escndalo que d aos sditos de outro Estado? Mas tal escndalo pode antes servir de advertncia por meio do exemplo do grande mal que um povo atraiu sobre si em virtude da sua ausncia de leis; e, alm disso, o mau exemplo que uma pessoa livre d a outra no (enquanto scandalum acceptum) nenhuma leso. Sem dvida, no se aplicaria ao caso em que um Estado se dividiu em duas partes devido a discrdias internas e cada uma representa para si um Estado particular com a pretenso de ser o todo; se um terceiro Estado presta, ento, ajuda a uma das partes no poderia considerar-se como ingerncia na Constituio de outro Estado (pois s existe anarquia). Mas enquanto essa luta interna no est ainda decidida, a ingerncia de potncias estrangeiras seria uma violao do direito de um povo independente que combate a sua enfermidade interna; seria, portanto, um escndalo, e poria em perigo a autonomia de todos os Estados.

59 6. Nenhum Estado em guerra com outro deve permitir tais hostilidades que tornem impossvel a confiana mtua na paz futura, como, por exemplo, o emprego no outro Estado de assassinos (percussores) envenenadores (venefici), a rotura da capitulao, a instigao traio (perduellio), etc. So estratagemas desonrosos, pois mesmo em plena guerra deve ainda existir alguma confiana no modo de pensar do inimigo j que, caso contrrio, no se poderia negociar paz alguma e as hostilidades resultariam numa guerra de extermnio (bellum internecinum); a guerra certamente apenas o meio necessrio e lamentvel no estado da natureza (em que no existe nenhum tribunal que possa julgar, com a fora do direito), para afirmar pela fora o seu direito; na guerra, nenhuma das partes se pode declarar inimigo injusto (porque isto pressupe j uma sentena judicial). Mas o seu desfecho (tal como nos chamados juzos de Deus) que decide de que lado se encontra o direito; mas entre os Estados no se pode conceber nenhuma guerra de castigo (bellum punitivum) (pois entre eles no existe nenhuma relao de um superior a um inferior). Daqui se segue, pois, que uma guerra de extermnio, na qual se pode produzir o desaparecimento de ambas as partes e, por conseguinte, tambm de todo o direito, s possibilitaria a paz perptua sobre o grande cemitrio do gnero humano. Por conseguinte, no deve absolutamente permitir-se uma semelhante guerra nem tambm o uso dos meios que a ela levam. Que os mencionados meios levam inevitavelmente a ela depreende-se do fato de que essas artes infernais, em si mesmas nunca convenientes, quando se pem em uso no se mantm por muito tempo dentro dos limites da guerra, mas transferem-se tambm para a situao de paz como, por

60 exemplo, o uso de espias (uti exploratoribus), onde se aproveita a indignidade de outros (que no pode erradicar-se de uma s vez); e assim destruir-se-ia por completo o propsito da paz. * * *

Embora as leis aduzidas sejam simples leis objetivamente proibitivas (leges prohibitivae), isto , na inteno dos que detm o poder, h, contudo, algumas que tm uma eficcia rgida, sem considerao pelas circunstncias (leges strictae), que obrigam imediatamente a um no-fazer (como os nmeros 1, 5, 6). Mas outras (como os nmeros 2, 3, 4), sem serem excees norma jurdica, tendo porm em considerao as circunstncias na sua aplicao, ampliando subjetivamente a competncia (leges latae), contm uma autorizao para adiar a execuo, sem no entanto se perder de vista o fim, que permite, por exemplo, a demora na restituio da liberdade subtrada a certos Estados, segundo o nmero 2, no para o dia de S. Nunca Tarde (ad calendas graecas, como costumava prometer Augusto), por conseguinte, a sua no restituio, mas s para que ela tenha lugar de um modo apressado e assim contra a prpria inteno. Pois a proibio afeta aqui apenas o modo de aquisio, o qual no deve valer para o futuro, mas no a possesso que, embora no tenha ttulo jurdico requerido, foi, no entanto, considerada por todos os Estados no seu tempo (da aquisio putativa) como conforme ao direito, segundo a opinio pblica da altura2.2

At agora, duvidou-se e no sem fundamento que, alm do mandado (leges preceptivae) e da proibio (leges prohibitivae), pode ainda haver leis permissivas (leges permissivae) da razo

61 SEGUNDA SEO QUE CONTM OS ARTIGOS DEFINITIVOS PARA A PAZ PERPTUA ENTRE OS ESTADOS

pura. Pois as leis em geral contm um fundamento de necessidade prtica objetiva, mas a permisso contm um fundamento da contingncia prtica de certas aes; por isso, uma lei permissiva conteria o constrangimento a uma ao a que no se pode estar obrigado, o que seria uma contradio se o objeto da lei tivesse o mesmo significado em ambos os casos. Mas agora aqui, na lei permissiva, a suposta proibio refere-se apenas ao modo de aquisio futura de um direito (por exemplo, mediante herana), ao passo que o levantamento da proibio, isto , a permisso, referese posse presente, a qual pode ainda persistir segundo uma lei permissiva do direito natural na transio do estado de natureza para o estado civil como uma posse, se no conforme ao direito, no entanto, sincera (possesio putativa). Ora, uma posse putativa, logo que se reconheceu como tal, proibida no estado de natureza do mesmo modo que um tipo semelhante de aquisio proibido no posterior estado civil (aps a passagem); a possibilidade de uma posse duradoira no existiria se tivesse havido uma aquisio putativa no estado civil, pois, neste caso, teria de cessar imediatamente como uma leso, logo aps a descoberta da sua no conformidade com o direito. Aqui, tentei apenas incidentalmente chamar a ateno dos professores de direito natural para o conceito de uma lex permissiva, que se apresenta como tal a uma razo sistematicamente classificadora; de semelhante conceito faz-se muitas vezes uso, sobretudo no direito civil (estatutrio), s que com a diferena de que a lei imperativa se apresenta por si mesma, ao passo que a permisso no entra como condio limitativa (como devia) naquela lei, mas atirada para as excees. Assim, por exemplo: proibe-se isto ou aquilo, exceto os nmeros um, dois, trs e assim indefinidamente, pois as permisses introduzem-se na lei

62 O estado de paz entre os homens que vivem juntos no um estado de natureza (status naturalis), o qual antes um estado de guerra, isto , um estado em que, embora no exista sempre uma exploso das hostilidades, h sempre, no entanto, uma ameaa constante. Deve, portanto, instaurar-se o estado de paz; pois a omisso de hostilidades no ainda a garantia de paz e se um vizinho no proporciona segurana a outro (o que s pode acontecer num estado legal), cada um pode considerar como inimigo a quem lhe exigiu tal segurana3.s de um modo casual, no segundo um princpio, mas s apalpadelas entre casos concretos. Pois, de outro modo, se as condies se tivessem introduzido na frmula da lei proibitiva, esta ter-se-ia tornado ao mesmo tempo uma lei permissiva. pois de lamentar que to depressa se tenha abandonado o problema, engenhoso e no resolvido, do to sbio como penetrante Conde Windischgrtz, que apontava justamente para a ltima. Pois a possibilidade de uma frmula assim (semelhante s frmulas matemticas) a nica e genuna pedra de toque de uma legislao que permanece consequente, sem a qual o chamado ius certum permanecer sempre um pio desejo. De outro modo, ter-se-o apenas leis gerais (que valem em geral), mas no leis universais (com eficcia universal), como no entanto parece exigir o conceito de lei. 3 Supe-se comumente que no se pode proceder hostilmente contra ningum a no ser apenas quando ele me tenha j lesado de fato, e isto tambm inteiramente correto se ambos se encontram num estado civil-legal. Com efeito, por este ter ingressado no mesmo estado proporciona quele (mediante a autoridade que possui poder sobre ambos) a segurana requerida. Mas o homem (ou o povo), no simples estado de natureza, priva-me dessa segurana e j me prejudica em virtude precisamente desse estado, por estar ao meu lado, se no efetivamente (fato), no entanto, devido ausncia de leis do seu estado (statu iuniusto), pela qual eu estou constantemente ameaado por ele; e no posso for-lo a entrar comigo num estado social legal ou a afastar-se da minha vizinhana. Por conseguinte, o postulado que subjaz a todos os

63 Primeiro Artigo definitivo para a Paz Perptua A Constituio civil em cada Estado deve ser republicana. A constituio fundada, em primeiro lugar, segundo os princpios da liberdade dos membros de uma sociedade (enquanto homens); em segundo lugar, em conformidade com os princpios da dependncia de todos em relao a uma nica legislao comum (enquanto sditos); e, em terceiro lugar, segundo a lei da igualdade dos mesmos (enquanto cidados) a nica que deriva da idia do contrato originrio, em que se deve fundar toda a legislao jurdica de um povo a constituio republicana4. Esta , pois, noartigos seguintes este: Todos os homens que entre si podem exercer influncias recprocas devem pertencer a qualquer constituio civil. Mas toda a constituio jurdica, no tocante s pessoas que nela esto, 1) Uma constituio segundo o direito poltico (Slaatsbrgerrecht) dos homens num povo (ius civitatis); 2) Segundo o direito das gentes (Volkerrecht) dos Estados nas suas relaes recprocas (ius gentium); 3) Uma constituio segundo o direito cosmopolita (Weltbrgerrecht), enquanto importa considerar os homens e os Estados, na sua relao externa de influncia recproca, como cidados de um estado universal da humanidade (ius cosmopoliticum). Esta diviso no arbitrria, mas necessria em relao idia da paz perptua. Pois, se um destes Estados numa relao de influncia fsica com os outros estivesse em estado da natureza implicaria o estado de guerra, de que justamente nosso propsito libertar-se. 4 A liberdade jurdica (externa, portanto) no pode definir-se, como se costuma fazer, mediante a faculdade de fazer tudo o que se quiser, contanto que a ningum se faa uma injustia. Pois, que significa faculdade (Befgnis)? A possibilidade de uma ao

64 tocante ao direito, a que em si mesma subjaz a todos os tipos de constituio civil; e, agora, surge apenas a questo: tambm ela a nica que pode conduzir paz perptua? A constituio republicana, alm da pureza da sua origem, isto , de ter promanado da pura fonte do conceito de direito, tem ainda em vista o resultado desejado, a saber, a paz perptua; daquela esta o fundamento. Se (como no podeenquanto por ela a ningum se faz uma injustia. Portanto, a explicao da definio soaria assim: Liberdade a possibilidade de aes pelas quais a ningum se faz uma injustia. No se faz dano a ningum (faa-se o que se quiser), se apenas a ningum se fizer dano algum: por conseguinte, uma tautologia vazia. A minha liberdade exterior (jurdica) deve antes explicar-se assim: a faculdade de no obedecer a quaisquer leis externas seno enquanto lhes puder dar o meu consentimento. Igualmente, a igualdade exterior (jurdica) num Estado a relao entre os cidados segundo a qual nenhum pode vincular juridicamente outro sem que ele se submeta ao mesmo tempo lei e poder ser reciprocamente tambm de igual modo vinculado por ela. (No necessria nenhuma explicao a propsito do princpio da dependncia jurdica, j que este est implcito no conceito de uma constituio poltica). A validade dos direitos inatos inalienveis e que pertencem necessariamente humanidade confirmada e elevada pelo princpio das relaes jurdicas do prprio homem com entidades mais altas (quando ele as imagina), ao representar-se a si mesmo segundo esses mesmos princpios tambm como um cidado de um mundo supra-sensvel. Pois, no tocante minha liberdade, no tenho qualquer obrigao mesmo em relao s leis divinas por mim conhecidas atravs da simples razo a no ser que eu prprio tenha podido prestar o meu consentimento (pois, mediante a lei da liberdade da minha prpria razo, que fao primeiro para mim um conceito da vontade divina). No tocante ao princpio de igualdade em relao com o ser supremo do mundo, fora de Deus, tal como eu o poderia imaginar (um grande Eo), no existe fundamento algum para que eu, se no meu posto fizer o meu dever, como aquele Eo no seu, tenha simplesmente o dever de obedecer, e aquele o direito de mandar. O fundamento da

65 ser de outro modo nesta constituio) se exige o consentimento dos cidados para decidir se deve ou no haver guerra, ento, nada mais natural do que deliberar muito em comearem um jogo to maligno, pois tm de decidir para si prprios todos os sofrimentos da guerra (como combater, custear as despesas da guerra com o seu prprio patrimnio, reconstruir penosamente a devastao que ela deixa atrs de si e, por fim e para cmulo dos males, tomar sobre si o peso das dvidas que nunca acaba (em virtude de novas e prximas guerras) e torna amarga a paz. Pelo contrrio, numa constituio em que o sdito no cidado, que, por conseguinte, no uma constituio republicana, a guerra a coisa mais simples do mundo, porque o chefe do Estado no um membro do Estado, mas o seu proprietrio, e a guerra no lhe faz perder o mnimo dos seus banquetes, caadas, palcios de recreio, festas cortess, etc., e pode,igualdade reside em que este princpio (tal como o da liberdade) tambm no se ajusta relao com Deus, porque este Ser o nico no qual cessa o conceito de dever. Mas, no que diz respeito ao direito da igualdade de todos os cidados enquanto sditos, importa contestar a questo da admissibilidade da nobreza hereditria: se o estatuto concedido pelo Estado (a posio de um sdito sobre o outro) deve preceder o mrito, ou este quele. Ora, claro que, se o estatuto est vinculado ao nascimento, de todo incerto se o mrito (capacidade e fidelidade profissionais) tambm vir depois; por conseguinte, como se ele fosse concedido (ser chefe) ao beneficiado sem qualquer mrito o que nunca a vontade geral do povo decidir num contrato originrio (que, no entanto, o princpio de todos os direitos). Com efeito, um nobre no necessariamente por isso um homem nobre. No tocante nobreza de cargo (como se poderia denominar o estatuto de uma elevada magistratura e qual necessrio elevar-se por meio dos mritos), o estatuto no pertence pessoa como uma propriedade, mas ao lugar, e a igualdade no por isso lesada; pois, quando a pessoa abandona o seu cargo deixa ao mesmo tempo o estatuto e retorna ao povo.

66 portanto, decidir a guerra como uma espcie de jogo por causas insignificantes e confiar indiferentemente a justificao da mesma por causa do decoro ao sempre pronto corpo diplomtico. * * *

Para no se confundir a constituio republicana com a democrtica (como costuma acontecer), preciso observarse o seguinte. As formas de um Estado (civitas) podem classificar-se segundo a diferena das pessoas que possuem o supremo poder do Estado, ou segundo o modo de governar o povo, seja quem for o seu governante; a primeira chama-se efetivamente a forma da soberania (forma imperii) e s h trs formas possveis, a saber, a soberania possuda por um s, ou por alguns que entre si se religam, ou por todos conjuntamente, formando a sociedade civil (autocracia, aristocracia e democracia, poder do prncipe, da nobreza e do povo). A segunda a forma de governo (forma regiminis) e refere-se ao modo, baseado na constituio (no ato da vontade geral pela qual a massa se torna um povo), como o Estado faz uso da plenitude do seu poder: neste sentido, a constituio ou republicana, ou desptica. O republicanismo o princpio poltico da separao do poder executivo (governo) do legislativo; o despotismo o princpio da execuo arbitrria pelo Estado de leis que ele a si mesmo deu, por conseguinte, a vontade pblica manejada pelo governante como sua vontade privada. Das trs formas de Estado, a democracia , no sentido prprio da palavra, necessariamente um despotismo, porque funda um poder executivo em que todos decidem sobre e, em todo o caso, tambm contra um (que, por conseguinte, no d o seu consentimento), portanto, todos, sem no entanto serem todos, decidem o que uma

67 contradio da vontade geral consigo mesma e com a liberdade. Toda a forma de governo que no seja representativa , em termos estritos, uma no-forma, porque o legislador no pode ser ao mesmo tempo executor da sua vontade numa e mesma pessoa (como tambm a universal da premissa maior num silogismo no pode ser ao mesmo tempo a subsuno do particular na premissa menor); e, embora as duas outras constituies polticas sejam sempre defeituosas porque proporcionam espao a um tal modo de governo, nelas ao menos possvel que adotem um modo de governo conforme com o esprito de um sistema representativo como, por exemplo, Frederico II ao dizer que ele era simplesmente o primeiro servidor do Estado5, ao passo que a constituio democrtica torna isso impossvel porque todos querem ser soberano. Pode, pois, dizer-se: quanto mais reduzido o pessoal do poder estatal (o numero de dirigentes), tanto maior a representao dos mesmos, tanto mais a constituio poltica se harmoniza com a possibilidade do republicanismo e pode esperar que, por fim, a ele chegue mediante reformas graduais. Por tal razo, chegar a esta nica constituio plenamente jurdica mais difcil na aristocracia do que na monarquia e impossvel na democracia, a no ser mediante uma revoluo violenta. Mas ao povo interessa mais, sem5

Muitas vezes se censuraram os altos ttulos que, com frequncia, se atribuem a um princpe (os de ungido de Deus, administrador da vontade divina na Terra e representante seu) como adulaes grosseiras e fraudulentas; mas parece-me que tais censuras so sem fundamento. Longe de tornarem arrogante o prncipe territorial, devem antes deprimi-lo no seu interior, se ele tiver entendimento (o que, no entanto, se deve pressupor) e pensar que recebeu um cargo demasiado grande para um homem, isto , administrar o que de mais sagrado Deus tem sobre a Terra, o direito dos homens, e deve estar constantemente preocupado por se encontrar excessivamente prximo do olho de Deus.

68 comparao, o modo de governo6 do que a forma de Estado (embora tenha tambm muita importncia a sua maior ou menor adequao quele fim). Ao modo de governo que deve ser conforme idia de direito pertence o sistema representativo, o nico em que possvel um modo de governo republicano e sem o qual todo o governo desptico e violento (seja qual for a sua constituio). Nenhuma das denominadas repblicas antigas conheceu este sistema e tiveram de dissolver-se efetivamente no despotismo, que, sob o poder supremo de um s, ainda o mais suportvel de todos os despotismos. Segundo Artigo definitivo para a Paz Perptua O direito das gentes deve fundar-se numa federao de Estados livres.

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Malais du Pain vangloria-se com a sua linguagem pomposa, mas vazia e oca, de, aps uma experincia de muitos anos, se ter por fim convencido da verdade do conhecido mote de Pope: deixa os loucos disputar sobre o melhor governo; o que melhor governa o melhor. Se isto equivale a dizer que o governo que melhor governa o melhor governado, Pope, segundo a expresso de Swift, quebrou uma noz e foi-lhe dispensado um verme; se, porm, significa que tambm a melhor forma de governo, isto , de constituio poltica, radicalmente falso; pois, exemplos de bons governos nada demonstram sobre a forma de governo. Quem governou melhor do que um Tito ou um Marco Aurlio? E, no entanto, um deixou como sucessor um Domiciano, e o outro um Cmodo; o que no poderia ter acontecido com uma boa constituio poltica, pois a incapacidade dos ltimos para o cargo tinha sido conhecida bastante cedo e o poder do Imperador era tambm suficiente para os ter excludo.

69 Os povos podem, enquanto Estados, considerar-se como homens singulares que no seu estado de natureza (isto , na independncia de leis externas) se prejudicam uns aos outros j pela sua simples coexistncia e cada um, em vista da sua segurana, pode e deve exigir do outro que entre com ele numa constituio semelhante constituio civil, na qual se possa garantir a cada um o seu direito. Isto seria uma federao de povos que, no entanto, no deveria ser um Estado de povos. Haveria a uma contradio, porque todo o Estado implica a relao de um superior (legislador) com um inferior (o que obedece, a saber, o povo) e muitos povos num Estado viriam a constituir um s povo, o que contradiz o pressuposto (temos de considerar aqui o direito dos povos nas suas relaes recprocas enquanto formam Estados diferentes, que no devem fundir-se num s). Assim como olhamos com profundo desprezo o apego dos selvagens sua liberdade sem lei, que prefere mais a luta contnua do que sujeitar-se a uma coero legal por eles mesmos determinvel, escolhendo pois a liberdade grotesca racional, e consideramo-lo como barbrie, grosseria e degradao animal da humanidade; assim tambm deveria pensar-se os povos civilizados (cada qual reunido num Estado) teriam de apressar-se a sair quanto antes de uma situao to repreensvel: em vez disso, porm, cada Estado coloca antes a sua soberania (pois a soberania popular uma expresso absurda) precisamente em no se sujeitar a nenhuma coao legal externa e o fulgor do chefe de Estado consiste em ter sua disposio muitos milhares que, sem ele prprio se pr em perigo, se deixam sacrificar7 por uma coisa que em nada lhes diz respeito, e a diferena entre os selvagens europeus e os americanos consiste essencialmente nisto:7

Eis a resposta que um prncipe blgaro deu ao imperador grego, que queria resolver uma disputa com um duelo: Um ferreiro que tem tenazes no tirar com as mos o ferro em brasa do carvo.

70 muitas tribos americanas foram totalmente comidas pelos seus inimigos, ao passo que os europeus sabem aproveitar melhor os seus vencidos do que comendo-os; aumentam antes o nmero dos seus sditos, por conseguinte, tambm a quantidade dos instrumentos para guerras ainda mais vastas. Tendo em conta a maldade da natureza humana, que pode ver-se s claras na livre relao dos povos (ao passo que no Estado legal-civil se oculta atravs da coao do governo) , sem dvida, de admirar que a palavra direito no tenha ainda podido ser expulsa da poltica da guerra como pedante, e que nenhum Estado tenha ainda ousado manifestar-se publicamente a favor desta ltima opinio; pois continuam ainda a citar-se candidamente Hugo Grcio, Pufendorf, Vatel e outros (incmodos consoladores apenas!). Embora o seu cdigo elaborado filosfica ou diplomaticamente no tenha a mnima fora legal nem a possa tambm ter (porque os Estados enquanto tais no esto sob nenhuma coao exterior comum) para a justificao de um ataque blico, sem que exista um exemplo de que alguma vez um Estado tenha abandonado os seus propsitos em virtude dos argumentos reforados com os testemunhos de to importantes homens, esta homenagem que todos os Estados prestam ao conceito de direito (pelo menos, de palavra) mostra, no entanto, que se pode encontrar no homem uma disposio moral ainda mais profunda, se bem que dormente na altura, para se assenhorar do princpio mau que nele reside (o que no pode negar) e para esperar isto tambm dos outros; pois, de outro modo, a palavra direito nunca viria boca desses Estados que se querem guerrear entre si, a no ser para com ela praticarem a ironia como aquele prncipe gauls, que afirmava: A vantagem que a natureza deu ao forte sobre o fraco que este deve obedecer quele. Visto que o modo como os Estados perseguem o seu direito nunca pode ser, como num tribunal externo, o processo, mas apenas a guerra, e porque o direito no pode

71 decidir-se por meio dela nem pelo seu resultado favorvel, a vitria, e dado que pelo tratado de paz se pe fim, sem dvida, a uma guerra determinada, mas no ao estado de guerra (possibilidade de encontrar um novo pretexto para a guerra, a qual tambm no se pode declarar como justa, porque em tal situao cada um juiz dos seus prprios assuntos); e, uma vez que no pode ter vigncia para os Estados, segundo o direito das gentes, o que vale para o homem no estado desprovido de leis, segundo o direito natural dever sair de tal situao (porque possuem j, como Estados, uma constituio interna jurdica e esto, portanto, subtrados coao dos outros para que se submetam a uma constituio legal ampliada em conformidade com os seus conceitos jurdicos); e visto que a razo, do trono do mximo poder legislativo moral, condena a guerra como via jurdica e faz, em contrapartida, do estado de paz um dever imediato, o qual no pode, no entanto, estabelecer-se ou garantir-se sem um pacto entre os povos: tem, portanto, de existir uma federao de tipo especial, a que se pode dar o nome de federao da paz (foedus pacificam), que se distinguiria do pacto de paz (pactum pacis), uma vez que este procuraria acabar com uma guerra, ao passo que aquele procuraria pr fim a todas as guerras e para sempre. Esta federao no se prope obter o poder do Estado, mas simplesmente manter e garantir a paz de um Estado para si mesmo e, ao mesmo tempo, a dos outros Estados federados, sem que estes devam por isso (como os homens no estado de natureza) submeter-se a leis pblicas e sua coao. possvel representar-se a exequibilidade (realidade objetiva) da federao, que deve estender-se paulatinamente a todos os Estados e assim conduz paz perptua. Pois, se a sorte dispe que um povo forte e ilustrado possa formar uma repblica (que, segundo a sua natureza, deve tender para a paz perptua), esta pode constituir o centro da associao federativa para que todos os outros Estados se renam sua

72 volta e assim assegurem o estado de liberdade dos Estados conforme idia do direito das gentes e estendendo-se sempre mais mediante outras unies. compreensvel que um povo diga: No deve entre ns haver guerra alguma, pois queremos formar um Estado, isto , queremos impor a ns mesmos um poder supremo legislativo, executivo e judicial, que dirima pacificamente os nossos conflitos. Mas se este Estado diz: No deve haver guerra alguma entre mim e os outros Estados, embora no reconhea nenhum poder legislativo supremo que assegure o meu direito e ao qual eu garanta o seu direito, no pode ento compreender-se onde que eu quero basear a minha confiana no meu direito, se no existir o substituto da federao das sociedades civis, a saber, o federalismo livre, que a razo deve necessariamente vincular com o conceito do direito das gentes, se que neste ainda resta alguma coisa para pensar. No conceito do direito das gentes enquanto direito para a guerra, nada se pode realmente pensar (porque seria um direito que determinaria o que justo segundo mximas unilaterais do poder e no segundo leis exteriores, limitativas da liberdade do indivduo, e universalmente vlidas); por tal conceito entender-se-ia que aos homens que assim pensam lhes acontece o que justo, se uns aos outros se aniquilarem e, por conseguinte, encontrarem a paz perptua no amplo tmulo que oculta todos os horrores da violncia e dos seus autores. Os Estados com relaes recprocas entre si no tm, segundo a razo, outro remdio para sair da situao sem leis, que encerra simplesmente a guerra, seno o de consentir leis pblicas coativas, do mesmo modo que os homens singulares entregam a sua liberdade selvagem (sem leis), e forma um Estado de povos (civitas gentium), que (sempre, claro, em aumento) englobaria por fim todos os povos da Terra. Mas se, de acordo com a sua idia do direito das gentes, isto no quiserem, por conseguinte, se rejeitarem in hipothesi

73 o que correto in thesi, ento, a torrente da propenso para a injustia e a inimizade s poder ser detida, no pela idia positiva de uma repblica mundial (se que tudo no se deve perder), mas pelo sucedneo negativo de uma federao antagnica guerra, permanente e em contnua expanso, embora com o perigo constante da sua irrupo [Furor impius intus fremit horridus ore cruento , Virglio]8. Terceiro Artigo definitivo para a Paz Perptua O direito cosmopolita deve limitar-se s condies da hospitalidade universal. Fala-se aqui, como nos artigos anteriores, no de filantropia, mas de direito, e hospitalidade significa aqui o direito de um estrangeiro a no ser tratado com hostilidade em virtude da sua vinda ao territrio de outro. Este podeUm mpio e horrvel furor ferve bem dentro da sua boca sangrenta. 8 Depois de acabada a guerra e ao concluir-se a paz, talvez no fosse inconveniente para um povo que, aps a festa de ao de graas, se convocasse um dia de penitncia para implorar ao cu, em nome do Estado, misericrdia pelo grande pecado que o gnero humano comete constantemente ao no querer unir-se a outros povos numa constituio legal e ao preferir, orgulhoso da sua independncia, o meio brbaro da guerra (pelo qual alis no se estabelece o que se procura, a saber, o direito de cada Estado). A festa de ao de graas por uma vitria conseguida durante a guerra, os hinos que se cantam ao Senhor dos exrcitos ( boa maneira israelita) contrastam em no menor grau com a ideia moral do Pai dos homens; pois, alm da indiferena quanto ao modo (que bastante triste) como os povos buscam o seu direito mtuo, acrescentam ainda a alegria de ter aniquilado muitos homens ou a sua felicidade.

74 rejeitar o estrangeiro, se isso puder ocorrer sem a runa dele, mas enquanto o estrangeiro se comportar amistosamente no seu lugar, o outro no o deve confrontar com hostilidade. No existe nenhum direito de hspede sobre o qual se possa basear esta pretenso (para isso seria preciso um contrato especialmente generoso para dele fazer um hspede por certo tempo), mas um direito de visita, que assiste todos os homens para se apresentar sociedade, em virtude do direito da propriedade comum da superfcie da Terra, sobre a qual, enquanto superfcie esfrica, os homens no podem estenderse at ao infinito, mas devem finalmente suportar-se um aos outros, pois originariamente ningum tem mais direito do que outro a estar num determinado lugar da Terra. Partes inabitveis desta superfcie, o mar e os desertos dividem esta comunidade, mas o barco ou o camelo (o barco do deserto) tornam possvel uma aproximao por cima destas regies sem dono e o uso do direito superfcie para um possvel trfico, direito que pertence ao gnero humano comum. A inospitalidade das costas martimas (por exemplo, das costas berberescas), os roubos de barcos nos mares prximos ou a reduo escravatura dos marinheiros que arribam costa, ou a inospitalidade dos desertos (dos bedunos rabes) em considerar a sua proximidade s tribos nmadas como um direito a saque-las tudo , pois, contrrio ao direito natural; mas o direito de hospitalidade, isto , a faculdade dos estrangeiros recm-chegados no se estende alm das condies de possibilidade para intentar um trfico com os antigos habitantes. Deste modo, partes afastadas do mundo podem entre si estabelecer relaes pacficas, as quais por fim se tornaro legais e pblicas, podendo assim aproximar cada vez mais o gnero humano de uma constituio cosmopolita. Se, pois, se comparar a conduta inospitaleira dos Estados civilizados da nossa regio do mundo, sobretudo dos comerciantes, causa assombro a injustia que eles revelam na visita a pases e povos estrangeiros (o que para eles se

75 identifica com a conquista dos mesmos). A Amrica, os pases negros, as ilhas das especiarias, o Cabo, etc., eram para eles, na sua descoberta, pases que no pertenciam a ningum, pois os habitantes nada contavam para eles. Nas ndias Orientais (Industo), introduziram tropas estrangeiras sob o pretexto de visarem apenas estabelecimentos comerciais, mas com as tropas introduziram a opresso dos nativos, a instigao dos seus diversos Estados a guerras muito amplas, a fome, a rebelio, a perfdia e a ladainha de todos os males que afligem o gnero humano.

76 A China9 e o Japo (Nipon), que tinham lidado com semelhantes hspedes, permitiram sabiamente o acesso, mas no a entrada, no caso da China, e s um acesso limitado a um nico povo europeu, os Holandeses, no caso do Japo, aos quais no entanto, como a prisioneiros, excluem da comunidade dos nativos. O pior de tudo isto (ou, do ponto de vista de um juiz moral, o melhor) que no esto contentes com esta atuao violenta, que todas estas sociedades9

Para escrever o nome com que este grande reino se chama a si mesmo (a saber China, no Sina, ou outro som semelhante) pode consultar-se o Alphab. Tib. de Georgius, pp. 651/654, sobretudo a nota b. Segundo a observao do Prof. Fischer, de Petersburgo, no tem um nome determinado com que a si mesmo se designa; o nome mais habitual ainda o da palavra Kin, isto , ouro (que os Tibetanos exprimem com Ser), pelo que o imperador se chama Rei do ouro (do pas mais magnfico do mundo); esta palavra poderia pronunciar-se nesse reino como Chin, mas pode ter sido pronunciada Kin pelos missionrios italianos (por causa da gutural). Daqui se infere que o pas chamado pelos Romanos Pas dos Seres era a China, mas a seda era trazida para a Europa atravs do Grande Tibete (provavelmente atravs do Pequeno Tibete e Bucara sobre a Prsia (o que d lugar a algumas consideraes acerca da antiguidade deste surpreendente Estado, em comparao com o Industo, no lao com o Tibete e, atravs deste, com o Japo; no entanto, o nome de Sina ou Tschina que lhe deviam dar os vizinhos deste pas no leva a nada. Talvez se possa explicar tambm o antiquissmo, se bem que nunca corretamente conhecido, intercmbio da Europa com o Tibete, a partir do que nos refere Hesquio, a saber, do grito dos hierofantes (Konx Ompax) nos mistrios de Elusis (ver Reise des Jngern Anacarsis, 5. parte, pp. 447 s.). Pois, segundo o Alphab. Tibet. de Georgius, a palavra Concioa significa deus, e esta palavra tem uma semelhana muito marcante com a de Konx: Pah-cio (ib. p. 520), que facilmente poderia ser pronunciada pelos gregos como pax, significa promulgator legis, a divindade repartida por toda a natureza (chamada tambm Cencresi, p. 177). Mas Om, que Lacroze traduz por benedictus, bendito, nada mais pode significar

77 comerciais se encontram no ponto da eminente runa, que as ilhas do acar, sede da escravido mais violenta e deliberada, no oferecem nenhum autntico benefcio mas servem apenas diretamente um propsito e, claro est, no muito recomendvel, a saber, a formao dos marinheiros para as frotas de guerra, por conseguinte, tambm para as guerras na Europa; e tudo isto para potncias que querem fazer muitas coisas por piedade e pretendem considerar-se como eleitas dentro da ortodoxia, enquanto bebem a injustia como gua. Ora, como se avanou tanto no estabelecimento de uma comunidade (mais ou menos estreita) entre os povos da Terra que a violao do direito num lugar da Terra se sente em todos os outros, a idia de um direito cosmopolita no nenhuma representao fantstica e extravagante do direito, mas um complemento necessrio de cdigo no escrito, tanto do direito poltico como do direito das gentes, num direitona sua aplicao divindade do que bem-aventurado, p. 507. Mas o P. Franz Horatius afirma que, ao interrogar muitas vezes os lamas tibetanos sobre o que eles entendem por deus (concioa), obteve sempre a resposta: a reunio de todos os santos (isto , dos bem-aventurados que, atravs do renascimento lamasta, aps muitas migraes por toda a classe de corpos, regressaram finalmente divindade e se tornaram Burchane, isto , seres dignos de serem adorados, almas transformadas (p. 223). Pelo que aquela palavra misteriosa Konx Ompax dever significar o supremo ser difundido por todo o mundo (a natureza personificada): santo, pela palavra Konx Ompax, bem-aventurado (Om) e sbio (pax); e estas palavras utilizadas nos mistrios gregos significaram o monotesmo dos epoptas em oposio ao politesmo do povo, embora P. Horatius suspeite aqui de um certo atesmo. Mas o modo como essa misteriosa palavra chegou aos gregos atravs do Tibete explicase da maneira antes indicada e, inversamente, torna provvel um remoto trfico da Europa com a China atravs do Tibete (talvez ainda antes do trfico com o Industo).

78 pblico da humanidade em geral e, assim, um complemento da paz perptua, em cuja contnua aproximao possvel encontrar-se s sob esta condio. SUPLEMENTO PRIMEIRO DA GARANTIA DA PAZ PERPTUA O que subministra esta garantia nada menos que a grande artista, a Natureza (natura daedala rerum), de cujo curso mecnico transparece com evidncia uma finalidade: atravs da discrdia dos homens, fazer surgir a harmonia, mesmo contra a sua vontade. Por esta razo, chama-se igualmente destino, enquanto compulso de uma causa necessria dos efeitos segundo leis que nos so desconhecidas, e providncia10 em referncia finalidade que existe no curso10

No mecanismo da natureza a que o homem (como ser sensvel) pertence, manifesta-se uma forma que j subjaz sua existncia e que no podemos conceber de nenhum outro modo a no ser supondo-lhe um fim de um autor do mundo, que a predetermina; a esta determinao prvia chamamos providncia (divina) em geral; e enquanto est no comeo do mundo, damos-lhe o nome de providncia fundadora [providentia conditrix; semel iussit, semper parent ], Agostinho]; mas enquanto conserva o curso da natureza, segundo leis universais de finalidade, damos-lhe o nome de providncia governante (providentia gubernatrix); em relao aos fins particulares, mas no previsveis pelo homem e s cognoscveis a partir do resultado, chamamos-lhe providncia diretora (providentia directrix) e, por ltimo, em relao a alguns acontecimentos singulares, enquanto fins divinos, no a chamamos providncia, mas disposio (directio extraodinaria). Mas seria presuno louca do homem querer conhec-la como tal (na realidade, refere-se a milagres, embora tais acontecimentos no se

79 do mundo, enquanto sabedoria profunda de uma causa mais elevada que tem em vista o fim ltimo objetivo do gnero humano e predetermina o devir do mundo, causa essa que no podemos realmente reconhecer nos artifcios da natureza nem sequer inferir a partir deles, mas (como em toda a relao da forma das coisas com os fins em geral) s podemos e devemos pensar, para assim formarmos para ns um conceito da suadenominem assim), pois inferir de um acontecimento singular um princpio particular da causa eficiente (que este conhecimento seja um fim e no uma simples consequncia marginal do mecanismo natural a partir de um outro fim que nos totalmente desconhecido) um disparate e uma arrogncia total, por mais piedosa e humilde que a este respeito a linguagem ressoe. Igualmente, a diviso da providncia (considerada materialiter) em universal e particular, segundo os objetos do mundo a que se refere, falsa e contraditria em si mesma (porque cuida, por exemplo, da conservao das espcies de criaturas e abandona os indivduos ao acaso), pois chama-se precisamente universal segundo o ponto de vista de que nenhuma coisa singular dela fica excluda. Provavelmente, quis classificar-se aqui a providncia (formaliter considerada), segundo o modo de realizao dos seus propsitos, isto , providncia ordinria (por exemplo, a morte e o ressurgimento anual da natureza segundo o ciclo das estaes) e extraordinria (por exemplo, o transporte de troncos de rvores s costas geladas, onde elas no podem crescer, por ao das correntes martimas, e sem os quais os habitantes dessas paragens no podiam viver); caso este em que, apesar de podermos explicar muito bem as causas fsico-mecnicas dos fenmenos (por exemplo, pelo fato de as margens dos rios dos pases temperados estarem povoadas de rvores que caem agua e so transportados para longe como por uma espcie de corrente do Golfo), apesar de tudo, no devemos descurar tambm a causa teleolgica, que se refere previso de uma sabedoria que preside natureza. O que deve desaparecer, isso sim, o que concerne ao conceito, to usado nas escolas, de uma colaborao ou concurso divino (concursus) na produo de um efeito do mundo dos sentidos. Pois, em primeiro lugar, contraditrio em si mesmo querer conjugar o que no da

80 possibilidade, segundo a analogia da arte humana: porm, a relao e a consonncia desta causa com o fim que a razo nos prescreve mediatamente (o fim moral) representar para si uma idia que , sem dvida, arrebatada no propsito terico, est no entanto bem fundada no plano dogmtico e, segundo a sua realidade, no propsito prtico (por exemplo, utilizar o mecanismo da natureza em relao com o conceito de dever da paz perptua). O uso da palavra Natureza, visto que se trata aqui simplesmente de teoria (e no de religio), tambm mais apropriado para os limites da razo humana (que deve manter-se, no tocante relao dos efeitos com asmesma natureza [gryphes jungere equis ] e completar a prpria causa perfeita das transformaes no mundo com uma providncia especial predeterminante do curso do mundo (pelo que aquela deveria ter sido uma causa deficiente), dizendo, por exemplo, que a seguir a Deus o mdico curou o doente, portanto, foi uma ajuda. Com efeito, causa solitaria non juvat. Deus o autor do mdico com todas as suas medicinas e, por isso, se se quiser subir at ao fundamento originrio e supremo, teoricamente inconcebvel, deve atribuir-se-lhe todo o efeito. Ou tambm se pode atribuir inteiramente ao mdico, contanto que consideremos este acontecimento como explicvel segundo a ordem da natureza, na cadeia das causas mundanas. Em segundo lugar, um tal modo de pensamento destri tambm todos os princpios determinados de avaliao de um feito. Mas em sentido prtico-moral (que se refere totalmente ao supra-sensvel), o conceito do concursus divino conveniente e at necessrio; por exemplo, na f de que Deus completar a deficincia da nossa prpria justia, se a nossa disposio for genuna, atravs de meios para ns inconcebveis, portanto, se nada descurarmos no esforo pelo bem; mas evidente que ningum deve intentar explicar a partir daqui uma ao boa (como acontecimento no mundo) o que um pretenso conhecimento terico do supra-sensvel, por conseguinte, absurdo.

81 suas causas, nos confins da experincia possvel), e mais modesto do que a expresso de uma providncia para ns cognoscvel, expresso com a qual algum presunosamente para si prepara as asas de caro, a fim de se aproximar do mistrio do seu desgnio imperscrutvel. Ora, antes de determinarmos com maior preciso esta garantia, ser preciso examinar o estado que a natureza organizou para as pessoas que agem no seu grande cenrio, estado que torna necessrio, em ltimo termo, a garantia da paz; e, em seguida, examinar primeiro o modo como ela subministra esta garantia. A organizao provisria da natureza consiste em que ela 1) providenciou que os homens em todas as partes do mundo possam a mesmo viver; 2) atravs da guerra, levou-os mesmo s regies mais inspitas, para as povoar; 3) tambm por meio da guerra, obrigou-os a entrar em relaes mais ou menos legais. digno de admirao que nos frios desertos, junto do oceano glacial, cresa apesar de tudo o musgo, que a rena busca debaixo da neve para ela prpria ser a alimentao, ou tambm o veculo do ostaco ou samoiedo; ou tambm digno de admirao que os desertos de areia contem ainda com o camelo, que parece ter sido criado para a sua travessia, para os no deixar inutilizados. Mas mais claramente brilha ainda a finalidade da natureza quando se tem em conta que, nas margens do oceano glacial, alm dos animais cobertos de peles, as focas, as morsas e as baleias proporcionem aos seus habitantes alimentos com a sua carne e fogo com a sua gordura. A previso da natureza suscita, porm, a mxima admirao em virtude da madeira que ela arrasta flutuando at estas regies sem flora (sem que se saiba ao certo de onde vm); sem tal material, eles no poderiam construir os seus veculos de transporte, nem as suas armas ou as suas cabanas; assim tm j bastante que fazer com a luta contra os animais, para viverem em paz entre si. Mas o que os levou at ali provavelmente no foi outra coisa seno a

82 guerra. O primeiro instrumento de guerra que, entre todos os animais, o homem aprendeu a domar e a domesticar, na poca do povoamento da Terra, foi o cavalo (pois o elefante pertence a uma poca posterior, a saber, poca do luxo de Estados j estabelecidos); a arte de cultivar certas classes de ervas, chamadas cereais, cuja primitiva natureza j no conhecemos, e igualmente a reproduo e melhoramento das variedades de frutas mediante transplante e enxerto (na Europa, talvez s de dois gneros, da macieira e da pereira) s podiam aparecer em Estados j estabelecidos, onde existisse uma propriedade fundiria garantida, depois que os homens, anteriormente numa liberdade sem leis, foram compelidos da vida de caa11, pesca e pastorcia para a agricultura e se descobriu o sal e o ferro, talvez os primeiros artigos mais amplamente procurados no trfico comercial dos diferentes povos, atravs do qual estabeleceram entre si uma relao pacfica e entraram assim igualmente com os povos mais afastados numa relao de compreenso, comunidade e de paz. Visto que a natureza providenciou que os homens possam viver sobre a Terra, quis igualmente e de modo desptico que eles tenham de viver, inclusive contra a sua inclinao, e sem que este dever pressuponha ao mesmo11

Entre todos os modos de vida, a caa decerto o mais oposto a uma constituio estabelecida, porque as famlias foradas a isolarem-se depressa se tornam estranhas entre si e assim, dispersas por ingentes bosques, tambm depressa se tornam inimigas, j que cada uma precisa de muito espao para a aquisio do alimento e do vesturio. A proibio de No de comer sangue, 1 Moiss, IX, 4-6 (que, muitas vezes repetida, foi depois transformada pelos judeu-cristos em condio para os novos cristos precedentes do paganismo, se bem que com outro sentido, Atos dos Apstolos, XV, 20, XXI, 25), no parece inicialmente ter sido outra coisa a no ser a proibio de se dedicar caa; porque nesta deve ocorrer com frequncia comer carne crua e, proibindo esta ltima, tambm se interdiz ao mesmo tempo aquela.

83 tempo um conceito de dever que a vincule por meio de uma lei moral; a natureza escolheu a guerra para obter este fim. Vemos povos que manifestam na unidade da sua lngua a unidade da sua origem, como os samoiedos no oceano glacial, por um lado, e vemos, por outro, um povo com uma lngua semelhante nas montanhas de Altai, separados entre si por duzentas milhas; entre eles peneirou pela fora um outro povo, o mongol, povo de ginetes e, por conseguinte, guerreiro e assim dispersou uma parte daquela raa para longe desta, para as inspitas regies geladas, para onde certamente no se teriam estendido por inclinao prpria12. O mesmo se passa com os finlandeses na regio setentrional da Europa, chamados Lapes, agora to afastados dos hngaros, mas com eles aparentados pela lngua, separados entretanto pela irrupo dos povos gticos e srmatas; e que outra coisa pode ter impelido os esquims (talvez os aventureiros europeus mais antigos, uma raa inteiramente diversa de todas as americanas) para o Norte, e os Fueguinos, no sul da Amrica, para a Terra do Fogo seno a guerra, de que a natureza se serve como de um meio para povoar a Terra? Mas a guerra no precisa de um motivo particular, pois parece estar enxertada na natureza humana e parece mesmo impor-se como algo de nobre, a que o homem incitado pelo impulso12

Poderia perguntar-se: se a natureza quis que estas costas geladas no permaneam desabitadas, que ser dos seus habitantes quando no lhes chegar mais madeira (como de esperar)? Com efeito, devemos crer que, com o progresso da cultura, os ncolas das regies temperadas aproveitem melhor a madeira que cresce nas margens dos seus rios e j no cair s torrentes, e assim no ser tambm levada ao mar. Respondo: Os habitantes do Obi, do Jenisei, do Lena, etc., fornec-las-o atravs do comrcio e trocando por ela os produtos do reino animal em que o mar nas costas polares to rico, quando a natureza os tiver primeiro obrigado paz entre eles.

84 da honra sem motivos egostas; pelo que a coragem guerreira se julga como dotada de um grande valor imediato (tanto pelos selvagens americanos como pelos europeus, na poca da cavalaria) no s quando h guerra (o que sensato), mas tambm se julga de grande valor que haja guerra e, com frequncia, esta iniciou-se para simplesmente mostrar aquela coragem, por conseguinte, pe-se na guerra em si mesma uma dignidade intrnseca e de tal modo que alguns filsofos chegam a fazer-lhe um panegrico como se fora um enobrecimento da humanidade, esquecendo-se do mote daquele grego: A guerra m porque faz mais gente m do que a que leva. At aqui a questo do que a natureza faz para o seu prprio fim, considerando o gnero humano como uma espcie animal. Agora, surge a questo que concerne ao essencial do propsito da paz perptua: O que a natureza neste desgnio faz em relao ao fim, que a razo impe ao homem como dever, por conseguinte, para a promoo da sua inteno moral, e como a natureza subministra a garantia de que aquilo que o homem devia fazer segundo as leis da liberdade, mas que no faz, fica assegurado de que o far, sem que a coao da natureza cause dano a esta liberdade; e isto fica assegurado precisamente segundo as trs relaes do direito pblico, o direito poltico, o direito das gentes, e o direito cosmopolita. Quando digo que a natureza quer que isto ou aquilo ocorra no significa que ela nos imponha um dever de o fazer (pois isso s o pode fazer a razo prtica isenta de coao), mas que ela prpria o faz quer queiramos quer no (fata volenteum ducunt, nolentem trahunt). 1. Mesmo se um povo no fosse compelido por discrdias internas a submeter-se coao de leis pblicas, flo-ia no entanto a guerra a partir de fora, pois, segundo a disposio natural antes mencionada, todo o povo encontra diante de si um outro povo que se impe como vizinho e contra o qual ele deve constituir-se internamente num Estado

85 para assim, como potncia, estar armado contra aquele. Ora, a constituio republicana a nica perfeitamente adequada ao direito dos homens, mas tambm a mais difcil de estabelecer, e mais ainda de conservar e a tal ponto que muitos afirmam que deve ser um Estado de anjos porque os homens, com as suas tendncias egostas, no esto capacitados para uma constituio de to sublime forma. Mas vem ento a natureza em ajuda da vontade geral, fundada na razo, respeitada mas impotente na prtica, e vem precisamente atravs das tendncias egostas, de modo que dependa s de uma boa organizao do Estado (a qual efetivamente reside no poder do homem) a orientao das suas foras, de modo que umas detenham as outras nos seus efeitos destruidores ou os eliminem: o resultado para a razo como se essas tendncias no existissem e assim o homem est obrigado a ser um bom cidado, embora no esteja obrigado a ser moralmente um homem bom. O problema do estabelecimento do Estado, por mais spero que soe, tem soluo, inclusive para um povo de demnios (contanto que tenham entendimento), e formula-se assim: Ordenar uma multido de seres racionais que, para a sua conservao, exigem conjuntamente leis universais, s quais, porm, cada um inclinado no seu interior a eximir-se, e estabelecer a sua constituio de um modo tal que estes, embora opondo-se uns aos outros nas suas disposies privadas, se contm no entanto reciprocamente, de modo que o resultado da sua conduta pblica o mesmo que se no tivessem essas disposies ms. Um problema assim deve ter soluo. Pois no se trata do aperfeioamento moral do homem, mas apenas do mecanismo da natureza; a tarefa consiste em saber como que no homem tal mecanismo se pode utilizar a fim de coordenar o antagonismo das suas disposies pacficas no seio de um povo e de um modo tal que se obriguem mutuamente a submeter-se a leis coactivas, suscitando assim o estado de paz em que as leis tm fora. Isto tambm se pode

86 observar nos Estados existentes, organizados ainda muito imperfeitamente, pois, na sua conduta externa, aproximam-se muito do que prescreve a idia de direito, embora, claro est, a causa de semelhante comportamento no seja o cerne da moralidade (como tambm no causa da boa constituio do Estado, antes pelo contrrio, desta ltima que se deve esperar, acima de tudo, a boa formao moral de um povo); por conseguinte, o mecanismo da natureza atravs das inclinaes egostas, que se opem entre si de modo natural tambm externamente, pode ser utilizado pela razo como um meio de criar espao para o seu prprio fim, a regulao jurdica, e assim tambm, tanto quanto depende do prprio Estado, de fomentar e garantir a paz interna e externa. Isto significa, pois, que a natureza quer a todo o custo que o direito conserve, em ltimo termo, a supremacia. O que no se faz aqui e agora por negligncia far-se- finalmente por si mesmo, embora com muito incmodo. Se a cana se dobrar demasiado quebra; e quem quer demasiado nada quer (Bouterweck). 2. A idia do direito das gentes pressupe a separao de muitos Estados vizinhos, independentes uns dos outros; e, embora semelhante situao seja em si j uma situao de guerra (se uma associao federativa dos mesmos no evita a ruptura das hostilidades) , no entanto, melhor, segundo a idia da razo, do que a sua fuso por obra de uma potncia que controlasse os outros e se transformasse numa monarquia universal; porque as leis, com o aumento do mbito de governao, perdem progressivamente a sua fora e tambm porque um despotismo sem alma acaba por cair na anarquia, depois de ter erradicado os germes do bem. No entanto, o anseio de todo o Estado (ou da sua autoridade suprema) estabelecer-se numa situao de paz duradoura de modo a dominar, se possvel, o mundo inteiro. Mas a natureza quer outra coisa. Serve-se de dois meios para evitar a confuso dos povos e os separar: a diferena das lnguas e

87 das religies13; esta diferena traz, sem dvida, consigo a inclinao para o dio mtuo e o pretexto para a guerra, mas com o incremento da cultura e a gradual aproximao dos homens de uma maior consonncia nos princpios leva conivncia na paz, a qual se gera e garante no atravs do enfraquecimento de todas as foras, como acontece no despotismo (cemitrio da liberdade), mas mediante o seu equilbrio, na mais viva emulao. 3. Assim como a natureza separa sabiamente os povos, que a vontade de cada Estado gostaria de unir com astcia ou violncia, baseando-se mesmo no direito das gentes, assim une tambm, por outro lado, povos que o conceito do direito cosmopolita no teria protegido contra a violncia e a guerra, mediante o seu prprio proveito recproco. o esprito comercial que no pode coexistir com a guerra e que, mais cedo ou mais tarde, se apodera de todos os povos. Porque entre todos os poderes (meios) subordinados ao poder do Estado, o poder do dinheiro sem dvida o mais fiel, os Estados vem-se forados (claro est, no por motivos da moralidade) a fomentar a nobre paz e a afastar a guerra mediante negociaes sempre que ela ameaa rebentar em qualquer parte do mundo, como se estivessem por isso numa aliana estvel, pois as grandes coligaes para a guerra, por sua natureza prpria, s muito raramente podem ocorrer e ainda com muito menos frequncia ter xito.13

Diversidade das religies: expresso estranha! Tal como tambm se falasse de diferentes morais. Pode, sem dvida, haver diferentes tipos de f que no radicam na religio, mas na histria dos meios utilizados para o seu fomento, pertencentes ao campo da erudio; e pode igualmente haver diferentes livros religiosos (Zendavesta, Veda, Coro, etc.); mas s pode existir uma nica religio vlida para todos os homens e em todos os tempos. Por conseguinte, as crenas nada mais contm a no ser o veculo da religio que acidental e pode variar segundo os tempos e os lugares.

88 Deste modo, a natureza garante a paz perptua atravs do mecanismo das inclinaes humanas; sem dvida, com uma segurana que no suficiente para vaticinar (teoricamente) o futuro mas que chega, no entanto, no propsito prtico, e transforma num dever o trabalhar em vista deste fim (no simplesmente quimrico). SUPLEMENTO SEGUNDO ARTIGO SECRETO PARA A PAZ PERPTUA Um artigo secreto nas negociaes do direito pblico objetivamente, isto , considerado segundo o seu contedo, uma contradio; mas pode muito bem ter em si um segredo, subjetivamente, isto , avaliada segundo a qualidade da pessoa que o dita, por esta achar inconveniente para a sua dignidade manifestar-se publicamente como seu autor. O nico artigo desta espcie est contido na proposio: As mximas dos filsofos sobre as condies de possibilidade da paz pblica devem ser tomadas em considerao pelos Estados preparados para a guerra. Parece, porm, minimizar a autoridade legisladora de um Estado, ao qual naturalmente se deve atribuir a mxima sabedoria, procurar conselho nos seus sditos (os filsofos) sobre os princpios do seu comportamento em relao aos outros Estados; no entanto, muito aconselhvel faz-lo. O Estado convidar, portanto, os filsofos em silncio (portanto, fazendo disso um segredo), o que significa tanto como deixlos falar livre e publicamente sobre as mximas gerais da conduo da guerra e do estabelecimento da paz (pois eles faro isso por si mesmos, sempre que no lhes for proibido); e a coincidncia dos Estados entre si acerca deste ponto no

89 precisa tambm de nenhuma razo especial com este propsito, mas j reside na obrigao mediante a razo humana universal (moral e legisladora). No se pretende com isto dizer que o Estado deve conceder a prioridade aos princpios do filsofo sobre as determinaes do jurista (representante do poder poltico), mas simplesmente que se lhe dem ouvidos. O jurista, que adotou como smbolo a balana do direito e tambm a espada da justia, serve-se comumente desta ltima no s para apartar da balana toda a influncia estranha, mas tambm para a pr na balana quando um dos pratos no se quer baixar (vae victis) ; o jurista que no ao mesmo tempo filsofo (mesmo segundo a moralidade), sente a maior tentao para isso porque prprio do seu ofcio aplicar apenas as leis existentes, mas no investigar se estas necessitam de um melhoramento, e considera como superior este nvel da sua faculdade que, efetivamente, inferior, por estar acompanhado do poder (como tambm acontece nos outros dois casos). O poder da filosofia est num nvel muito inferior por baixo deste poder aliado. Diz-se assim, por exemplo, que a filosofia a serva da teologia (e o mesmo se afirma acerca das outras duas). Mas no se v muito bem se ela vai frente da sua digna senhora com a tocha, ou se segue atrs pegando na cauda. No de esperar nem tambm de desejar que os reis filosofem ou que os filsofos se tomem reis, porque a posse do poder prejudica inevitavelmente o livre juzo da razo. imprescindvel, porm, para ambos que os reis ou os povos soberanos (que se governam a si mesmos segundo as leis de igualdade) no deixem desaparecer ou emudecer a classe dos filsofos, mas os deixem falar publicamente para a elucidao dos seus assuntos, pois a classe dos filsofos, incapaz de

Ai dos vencidos!

90 formar bandos e alianas de clube pela sua prpria natureza, no suspeita da deformao de uma propaganda.

APNDICE 1 SOBRE A DISCREPNCIA ENTRE A MORAL E A POLTICA A RESPEITO DA PAZ PERPTUA A moral j em si mesma uma prtica em sentido objetivo, como conjunto de leis incondicionalmente obrigatrias, segundo as quais devemos agir, e uma incoerncia manifesta, aps se ter atribudo a autoridade a este conceito de dever, querer dizer ainda que no se pode obedecer. Pois ento semelhante conceito sai por si mesmo da moral (ultra posse nemo obligatur): por conseguinte, no pode existir nenhum conflito entre a poltica, enquanto teoria do direito aplicado, e a moral, como teoria do direito, mas teortica (por conseguinte, no pode haver nenhum conflito entre a prtica e a teoria): deveria pois entender-se pela ltima uma teoria geral da prudncia (Klugheitslehre), isto , uma teoria das mximas para escolher os meios mais adequados aos seus propsitos, avaliados segundo a sua vantagem, isto , negar que existe uma moral em geral. A poltica diz: Sede prudentes como a serpente; a moral acrescenta (como condio limitativa): e sem falsidade, como as pombas. Se as duas coisas no podem coexistir num preceito, ento h realmente um conflito entre a poltica e a moral; mas se ambas devem unir-se, ento absurdo o conceito do contrrio e nem sequer se pode pr como tarefa a questo de como eliminar semelhante conflito.

91 Embora a proposio a honradez a melhor poltica contenha uma teoria que a prtica infelizmente com frequncia contradiz, a proposio, igualmente terica a honradez melhor que toda a poltica infinitamente acima de toda a objeo, a condio ineludvel da ltima. O deustrmino da moral no recua perante Jpiter (o deus-trmino do poder), pois este encontra-se ainda sob o destino, isto , a razo no est suficientemente elucidada para abarcar a srie das causas antecedentes que, segundo o mecanismo da natureza, permitam com segurana anunciar previamente o resultado feliz ou mau das aes e omisses dos homens (embora permitam aguard-lo de harmonia com o desejo). Mas ilumina-nos em toda a parte com suficiente claridade para sabermos o que temos de fazer, a fim de permanecermos na senda do dever (segundo as regras da sabedoria) e alcanar o fim ltimo. Ora, o prtico (para quem a moral simples teoria) funda a sua desdever e o poder precisamente em que, a partir da natureza do homem, pretende ver com antecedncia que este nunca querer o que se exige para realizar o fim que leva paz perptua. Sem dvida, a vontade de todos os homens singulares de viverem numa constituio legal segundo os princpios da liberdade (a unidade distributiva da vontade de todos) no suficiente para tal fim, mas exige-se ainda que todos em conjunto queiram esta situao (a unidade coletiva das vontades unidas); esta soluo de um difcil problema requer-se ainda para que se constitua o todo da sociedade civil, e visto que diversidade do querer particular de todos se deve acrescentar ainda uma causa unificadora do mesmo de modo a suscitar uma vontade comum, o que nenhum deles consegue, no se deve contar, na execuo daquela idia (na prtica) com nenhum outro comeo do estado jurdico a no ser o comeo pela fora, sobre cuja coao se fundar ulteriormente o direito pblico o que, sem dvida, permite esperar j antecipadamente grandes desvios daquela idia (da

92 teoria) na experincia real (em virtude de aqui pouco se poder ter em conta a disposio moral do legislador de deixar, aps uma reunio efetiva da multido inculta de um povo, que este pela sua vontade comum realize uma constituio legal). Isto significa ento: quem alguma vez tem nas mos o poder no deixar que o povo lhe prescreva leis. Um Estado, uma vez senhor da situao de no se sujeitar a nenhuma lei exterior, no admitir, no tocante ao modo como deve buscar o seu direito contra outros Estados, tornar-se dependente do seu tribunal, e mesmo uma parte do mundo, quando se sente superior a outra que, de resto, no se atravessa no seu caminho, no deixar sem uso o meio de fortalecer o seu poder, mediante a rapina ou at a dominao sobre a mesma; e assim se desvanecem ento todos os planos da teoria acerca do direito pblico, do direito das gentes e do direito cosmopolita, em ideais impraticveis e vazios; em contrapartida, em uma prtica fundada em princpios empricos da natureza humana, no se considera demasiado baixo tirar ensinamentos para as suas mximas do modo como as coisas ocorrem no mundo, a nica que poderia esperar encontrar um fundamento seguro para o seu edifcio da prudncia poltica. Certamente, quando no existe liberdade nem lei moral nela fundada, mas tudo o que acontece ou pode acontecer simples mecanismo da natureza, ento a poltica (enquanto arte de o utilizar para o governo dos homens) constitui toda a sabedoria prtica, e o conceito de direito um pensamento sem contedo. Se, porm, se considera inevitavelmente necessrio ligar tal pensamento com a poltica, e mais ainda elev-lo condio limitante da ltima, deve ento admitir-se a possibilidade de unir as duas. Posso pensar, sem dvida, um poltico moral, isto , um homem que assume os princpios da prudncia poltica de um modo tal que possam coexistir com a moral, mas no posso pensar um

93 moralista poltico, que forja uma moral til s convenincias do homem de Estado. O poltico moral formular para si este princpio: se alguma vez na constituio de um Estado ou nas relaes entre Estados se encontrarem defeitos que no foi possvel impedir, um dever, sobretudo para os chefes de Estado, refletir o modo como eles se poderiam, logo que possvel, corrigir e coadunar-se com o direito natural, tal como ele se oferece aos nossos olhos como modelo na idia da razo, mesmo que tenha de custar o sacrifcio do amor-prprio. Ora, visto que a rotura de uma unio estatal ou de uma coligaao cosmopolita, antes de se dispor de uma constituio melhor que a substitua, contrria a toda a prudncia poltica conforme neste ponto com a moral, seria absurdo exigir que aquele defeito fosse erradicado imediatamente e com violncia; o que, sim, se pode exigir ao detentor do poder que, pelo menos, tenha presente no seu ntimo a mxima da necessidade de semelhante modificao para se manter numa constante aproximao ao fim (a melhor constituio segundo as leis jurdicas). Um Estado pode j tambm governar-se como uma repblica embora ainda possua, segundo a constituio vigente, um poder soberano desptico, at que o povo se torne progressivamente capaz de receber a influncia da pura idia da autoridade da lei (como se esta possusse fora fsica) e, por conseguinte, se encontre preparado para a si mesmo dar uma legislao prpria (que originariamente se funda no direito). Se tambm pela violncia de uma revoluo, gerada por uma m constituio, se tivesse conseguido de um modo ilegtimo uma constituio mais conforme lei, no se deveria j considerar lcito reconduzir o povo novamente antiga constituio, embora durante a vigncia desta quem tenha perturbado a ordem com violncia ou astcia ficasse justamente submetido s sanes do rebelde. Mas no tocante s relaes exteriores dos Estados, no se pode exigir a um Estado que tenha de renunciar sua constituio, ainda que

94 desptica (que , porm, a mais forte em relao aos inimigos exteriores), enquanto corre o perigo de ser imediatamente devorado por outros Estados; por conseguinte, com essa finalidade deve permitir-se tambm o adiamento da execuo at melhor oportunidade14. Pode, pois, acontecer sempre que os moralistas despticos (que falham na execuo) choquem de diferentes maneiras contra a prudncia poltica (atravs de medidas tomadas ou recomendadas pressa); assim, nesta sua infrao contra a natureza, a experincia que os deve pouco a pouco conduzir para uma senda melhor. Pelo contrrio, os polticos moralizantes, mediante a desculpa de princpios polticos contrrios ao direito sob o pretexto de uma natureza humana incapaz do bem, segundo a idia que a razo lhe prescreve, tornam impossvel, tanto quanto deles depende, o melhoramento e perpetuam a violao do direito. Em vez da prtica, de que estes astutos polticos se ufanam, lidam com prticas, porque s pensam em adular o poder agora dominante (para no perderem a sua vantagem particular), abandonando o povo e, se possvel, o mundo inteiro, segundo o estilo de verdadeiros juristas quando sobem poltica (juristas de artesanato, no de legislao). Como no 14

So leis permissivas da razo conservar a situao de um direito pblico, viciado pela injustia, at por si mesma estar madura para uma transformao plena ou se aproximar da sua maturao por meios pacficos; pois qualquer constituio jurdica, embora s em grau mnimo seja conforme ao direito, melhor do que nenhuma; uma reforma precipitada depararia com o seu ltimo destino (a anarquia). A sabedoria poltica, no estado em que as coisas agora esto, converter num dever a realizao de reformas adequadas ao ideal do direito pblico: utilizar, porm, as revolues, onde a natureza por si mesma as suscita, no para desculpar uma opresso ainda maior, mas como apelo da natureza a instaurar, por meio de reformas profundas, uma constituio legal fundada nos princpios da liberdade, como a nica constituio permanente.

95 negcio seu usar de sutilezas a propsito da legislao, mas aplicar os preceitos atuais do Landrecht, toda a constituio legal agora existente e, se esta for modificada por uma instncia superior, a que se segue deve para eles ser sempre a melhor, pois assim tudo se encontra na sua conveniente ordem mecnica. Mas se esta habilidade para se adaptar a todas as circunstncias lhes inspira a iluso de tambm poderem julgar os princpios de uma constituio poltica em geral, segundo os conceitos do direito (portanto, a priori, e no empiricamente); se assumem ares de conhecer os homens (o que, sem dvida, de esperar, pois tm que lidar com muitos) sem, no entanto, conhecer o homem e o que dele se pode fazer (para isso exige-se o ponto de vista superior da observao antropolgica), e munidos destes conceitos se acercam do direito poltico e do direito das gentes, tal como a razo o prescreve, ento, no podem fazer essa transio a no ser com esprito de chicana, pois seguem o seu procedimento habitual (o de um mecanismo que atua segundo leis coativas despoticamente dadas), mesmo onde os conceitos da razo querem apenas fundar a coao legal segundo os princpios da liberdade, coao por meio da qual apenas possvel uma constituio poltica conforme ao direito. Eis um problema que o pretenso prtico, passando por alto aquela idia, julga poder resolver empiricamente a partir da experincia do modo como foram institudas as constituies vigentes at ao momento, na sua maior parte, porm, contrrias ao direito. As mximas de que se serve (embora, sem dvida, no as formule em voz alta) desembocam mais ou menos nas seguintes mximas sofistas. 1. Fac et excusa . Aproveita a ocasio favorvel para arbitrariamente entrares na posse (ou de um direito do Estado sobre o seu povo ou sobre outro novo vizinho); a justificao ser muito mais fcil e mais elegante depois do fato, e pode

Atua e justifica-te.

96 dissimular-se a violncia (sobretudo no primeiro caso, em que o poder supremo no interior tambm a autoridade legisladora a que se deve obedecer, sem usar de sutilezas a seu respeito), do que se antes se quisesse refletir sobre motivos convincentes e esperar ainda as objees. Esta prpria audcia confere uma certa aparncia de convico interior legitimidade do ato e o deus bonus eventus depois o melhor advogado. 2. Si fecisti nega . O que tu prprio perpetraste, por exemplo, para levar o teu povo ao desespero e assim revolta, nega que seja culpa tua, afirma, pelo contrrio, que a culpa reside na obstinao do sdito ou, se te apoderas de um povo vizinho, a culpa da natureza do homem, o qual, se no se antecipa ao outro com violncia, pode estar certo de que ser este a antecipar-se-lhe e a submet-lo ao seu poder. 3. Divide et impera . Isto , se no teu povo existem certas personalidades privilegiadas que simplesmente te escolheram como seu chefe supremo (primus inter pares) desune-as e isola-as do povo; fica ento ao lado deste ltimo sob a falsa pretenso de maior liberdade e assim tudo depender da tua vontade absoluta ou, se se trata de Estados exteriores, a criao da discrdia entre eles um meio bastante seguro de os submeteres a ti um aps outro, sob a aparncia de apoiar o mais dbil. Com estas mximas polticas ningum certamente se engana, pois j so todas universalmente conhecidas; tambm no o caso de delas se envergonhar, como se a injustia brilhasse com demasiada evidncia diante dos olhos. Com efeito, porque as grandes potncias nunca se envergonham do juzo da multido comum, mas apenas se envergonham umas diante das outras, no tocante queles princpios no a revelao pblica, mas apenas o fracasso dos mesmos que as pode levar vergonha

Se fizeste algo, nega. Cria divises e vencers.

97 (pois, quanto moralidade das mximas, todas elas esto de acordo), pelo que lhes resta sempre a honra poltica, com a qual podem contar com toda a segurana, a saber, a honra do engrandecimento do seu poder, seja qual for o caminho para se poder alcanar15. *15

Embora se possa duvidar de uma certa maldade radicada na natureza dos homens que convivem num Estado e, em vez dela, se possa com alguma aparncia aduzir a carncia de uma cultura ainda no suficientemente desenvolvida (a barbrie) como causa das manifestaes do seu modo de pensamento contrrias ao direito, contudo, nas relaes externas dos Estados entre si essa maldade manifesta-se de um modo patente e incontestvel. No interior de cada Estado, encontra-se encoberta pela coao das leis civis, pois a tendncia dos cidados para a violncia recproca ativamente inibida por um poder maior, a saber, o do governo, e assim no s fornece ao conjunto um verniz moral (causa non causae), mas tambm em virtude de impedir a erupo de tendncias contrrias lei facilita muito o desenvolvimento da disposio moral ao respeito pelo direito. Com efeito, cada um cr por si mesmo que consideraria sagrado o conceito de direito e o acataria com fidelidade se pudesse esperar o mesmo de todos os outros o que, em parte, o governo lhe garante; deu-se, pois, assim um grande passo para a moralidade (se bem que ainda no um passo moral), ao aderir-se a este conceito de dever por si mesmo, sem tomar em conta a reciprocidade. Mas visto que cada um na sua boa opinio acerca de si prprio pressupe, no entanto, uma m disposio em todos os outros, o juzo que mutuamente tm de si mesmos que todos, no tocante realidade, pouco valem (pode ficar sem explicao a origem de tal juzo, j que no possvel culpar a natureza do homem como um ser livre). Mas dado que o respeito pelo conceito de direito, a que o homem de nenhum modo se pode subtrair, sanciona do modo mais solene a teoria da sua capacidade para se lhe adequar, cada um v ento que, da sua parte, deveria agir em conformidade com o direito, seja qual for o modo como os

98 * *

De todas estas sinuosidades de uma teoria imoral da prudncia para suscitar o estado de paz entre os homens, a partir do estado natural de guerra, depreende-se o seguinte: os homens no podem subtrair-se ao conceito de direito nem nas suas relaes privadas, nem nas pblicas, e no se atrevem a fundar a poltica abertamente s nas manobras da astcia e, por conseguinte, a recusar toda a obedincia ao conceito de um direito pblico (o que sobretudo surpreendente na obedincia ao direito das gentes); tributamlhe, pelo contrrio, em si mesmo todas as honras devidas, embora devam tambm inventar centenas de desculpas e escapatrias para o iludir na prtica e atribuir falsamente ao poder astuto a autoridade de ser a origem e o vnculo de todo o direito. Para pr termo a esses sofismas (embora no injustia por meio deles dissimulada) e levar os falsos representantes dos poderosos da terra a confessar que no falam em prol do direito, mas da fora, do qual tomam o tom como se eles prprios tivessem aqui algo que mandar, ser bom revelar a iluso com que algum se engana a si e aos outros, descobrir e mostrar o supremo princpio, de que promana a inteno da paz perptua: que todo o mal que se lhe atravessa no caminho provm de que o moralista poltico comea no ponto em que justamente o poltico moral acaba e, ao subordinar assim os princpios aos fins (isto , ao pr os cavalos frente da carroa), torna vo o seu propsito de conciliar a poltica com a moral. Para harmonizar a filosofia prtica consigo mesma necessrio, em primeiro lugar, resolver a questo de se, nos problemas da razo prtica, se deve tomar como ponto de partida o princpio material dela, o fim (como objeto dooutros o queiram observar.

99 arbtrio), ou antes o princpio formal, isto , o princpio (fundado apenas sobre a liberdade na relao exterior) que diz: age de tal modo que possas querer que a tua mxima se torne uma lei universal (seja qual for o fim que ele queira). Sem dvida alguma, este ltimo princpio deve ir frente, pois tem, como princpio de direito, uma necessidade incondicionada; o primeiro princpio, pelo contrrio, s necessitante sob o pressuposto das condies empricas do fim proposto, a saber, da sua realizao, e se este fim (por exemplo, a paz perptua) fosse tambm um dever deveria ele prprio deduzir-se do princpio formal das mximas para a ao exterior. Ora, o primeiro princpio, o do moralista poltico (o problema do direito poltico, do direito das gentes, do direito cosmopolita), um simples problema tcnico (problema tecnicum), ao passo que o segundo como princpio do poltico moralista, para o qual um problema moral (problema morale), diametralmente diverso do outro no procedimento para suscitar a paz perptua, que se deseja agora no s como um bem fsico, mas tambm como um estado nascido do reconhecimento do dever. Para a soluo do primeiro, isto , do problema da astcia poltica, requere-se um grande conhecimento da natureza para utilizar o seu mecanismo a favor do fim pensado e, no entanto, todo este conhecimento incerto quanto ao seu resultado, no tocante paz perptua, quer se tome ora uma ora outra das trs divises do direito pblico. incerto se o povo no interior e, claro est, por muito tempo, se poderia manter melhor na obedincia e ao mesmo tempo no florescimento pelo rigor ou graas ao chamariz da vaidade, ou pelo poder supremo de um nico indivduo, ou atravs da unio de vrios chefes, talvez tambm s mediante uma nobreza ou pelo poder do povo. Na histria, h exemplos do contrrio de todos os tipos de governo (exceto o republicano autntico, que s pode ser pensado por um poltico moral). Mais incerto ainda um direito das gentes presumivelmente

100 erigido sobre estatutos de planos ministeriais, um direito que na realidade apenas uma palavra sem contedo e se baseia em contratos que encerram, j no prprio ato da sua concluso, a reserva secreta da sua transgresso. Pelo contrrio, a soluo do segundo problema, a saber, o da sabedoria poltica, impe-se, por assim dizer, por si mesma, clara para toda a gente e faz de todo o artifcio uma vergonha e vai diretamente ao fim; recordando porm a prudncia para no puxar o fim com violncia e com precipitao, mas se aproximar dele incessantemente, segundo a caracterstica das circunstncias favorveis. Isto significa ento: Aspirai antes de mais ao reino da razo pura prtica e sua justia e o vosso fim (o benefcio da paz perptua) ser-vos- dado por si mesmo. Pois a moral tem em si a peculiaridade e, claro est, no tocante aos seus princpios do direito pblico (por conseguinte, em relao a uma poltica cognoscvel a priori) de que quanto menos faz depender o comportamento acerca do fim proposto, da vantagem intentada, seja ela fsica ou moral, tanto mais com ele se torna em geral consonante. Isto sucede porque precisamente a vontade geral dada a priori (num povo ou na relao de vrios povos entre si) a nica que determina o que de direito entre os homens; esta unio da vontade de todos, porm, se proceder consequentemente na execuo, tambm segundo o mecanismo da natureza pode ser ao mesmo tempo a causa capaz de produzir o efeito intentado e de pr em prtica o conceito do direito. Assim, por exemplo, um princpio da poltica moral que um povo deve congregar-se num Estado segundo os conceitos exclusivos da liberdade e da igualdade, e este princpio no se funda na astcia, mas no dever. Ora, por muito que os moralistas polticos possam entregar-se a sutilezas sobre o mecanismo natural de uma multido humana que entra em sociedade, mecanismo que debilitaria aqueles princpios e frustraria a sua inteno, ou por muito que intentem demonstrar as suas afirmaes

101 mediante exemplos de constituies mal organizadas de tempos antigos e recentes (por exemplo, de democracias sem sistema de representao), no merecem ser ouvidos; sobretudo porque uma to perniciosa teoria produz precisamente o mal que prediz, pois, segundo tal teoria, o homem lanado para a classe das restantes mquinas vivas, s quais se deixaria apenas ainda a conscincia de no serem seres livres, a fim de se tornarem, segundo o seu prprio juzo, os mais miserveis de todos os seres no universo. A frase, sem dvida, algo retumbante que se fez proverbial, mas verdadeira fiat justitia, pereat mundus pode assim traduzir-se: reine a justia e peream todos os velhacos deste mundo; um honesto princpio de direito que corta todos os caminhos sinuosos traados pela insdia ou pela violncia. S que no se deve interpretar mal como uma autorizao de usar o prprio direito com o mximo rigor (o que se oporia ao dever tico); o princpio deve entender-se como a obrigao dos detentores do poder de no recusar a ningum o seu direito, nem de o restringir por antipatia ou compaixo por outra pessoa; para isso, requer-se sobretudo uma constituio interna do Estado em conformidade com os puros princpios do direito e, em seguida, tambm a unio dele com outros Estados vizinhos ou distantes, em vista de um ajustamento legal (anlogo a um Estado universal) das suas discordncias. Esta proposio quer apenas dizer que as mximas polticas no devem derivar do bem-estar ou da felicidade de cada Estado, aguardadas como consequncia da sua aplicao, por conseguinte, no derivam do fim que cada Estado para si estabelece como objeto (do querer), como princpio supremo (mas emprico) da sabedoria poltica, mas do puro conceito do dever jurdico (da obrigao moral, cujo princpio a priori dado pela razo pura), sejam quais forem as consequncias fsicas que se pretendam. O mundo de nenhum modo perecer por haver menos homens maus. O mal moral tem a propriedade, inseparvel da sua natureza, de

102 se contradizer e destruir nas suas intenes (sobretudo em relao aos que pensam da mesma maneira), e deixa assim lugar, embora mediante um lento progresso, ao princpio (moral) do bem. * * *

No h, pois, objetivamente (na teoria), nenhum conflito entre a moral e a poltica. Em contrapartida, subjetivamente (na inclinao egosta dos homens que, por no estar fundada nas mximas da razo, no se deve ainda chamar prtica), h e pode haver sempre esse conflito porque serve de pedra de afiar virtude, cujo verdadeiro valor [segundo o princpio: tu ne cede malis sed contra audentior ito ] no consiste tanto, no caso presente, em se opor com firme propsito aos males e sacrifcios que se devem aceitar, mas em olhar de frente o princpio mau que habita em ns mesmos e vencer a sua astcia, princpio muito mais perigoso, enganador e traidor, capaz porm de raciocinar com sutileza e de aduzir a debilidade da natureza humana como justificao de toda a transgresso. Na realidade, o moralista poltico pode dizer: o soberano e o povo ou um povo e outro no cometem injustia entre si quando, pela violncia ou mediante a astcia, se guerreiam um ao outro, embora cometam, sem dvida, em geral uma injustia quando negam todo o respeito ao conceito de direito, que o nico que poderia fundar a paz para sempre. Pois, visto que um transgride o seu dever em relao ao outro, o qual tem tambm contra aquele as mesmas disposies contrrias ao direito, acontece-lhes muito justamente aniquilarem-se entre si, mas de um modo tal que

No cedas ao mal, mas enfrenta-o com ousadia.

103 daquela raa sempre resta algum para no deixar terminar este jogo at s pocas mais longnquas, a fim de que uma descendncia tardia tire deles um exemplo admonitrio. A providncia est assim justificada no curso do mundo, pois o princpio moral nunca se extingue no homem, e a razo, capaz pragmaticamente de realizar as idias jurdicas segundo aquele princpio, cresce continuamente em virtude do incessa