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KANT OU CANT O MITO DA PAZ DEMOCRÁTICA CRISTOPHER LAYNE INTERNATIONAL SECURITY, VOL. 19, Nº. 2 OUTONO 1994 TRADUZIDO POR TRADUZIDO POR EDUARDO HARTZ OLIVEIRA EDUARDO HARTZ OLIVEIRA CAPITÃO DE MAR-E-GUERRA CAPITÃO DE MAR-E-GUERRA FEV/MAR 2005 FEV/MAR 2005 NOTA DO TRADUTOR

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KANT OU CANT

O MITO DA

PAZ DEMOCRÁTICA

CRISTOPHER LAYNEINTERNATIONAL SECURITY, VOL. 19, Nº. 2

OUTONO 1994

TRADUZIDO POR TRADUZIDO POR

EDUARDO HARTZ OLIVEIRAEDUARDO HARTZ OLIVEIRA

CAPITÃO DE MAR-E-GUERRACAPITÃO DE MAR-E-GUERRA

FEV/MAR 2005 FEV/MAR 2005

NOTA DO TRADUTOR

A TEORIA DA PAZ DEMOCRÁTICA

Para um melhor entendimento do trabalho de Christopher Layne, é importante

uma abordagem introdutória conceituando a Teoria da Paz Democrática, posicionando-

a dentro do universo das relações internacionais. Para tal, me baseio em um trabalho

produzido pela PHd em Ciência Política Dra. Binnur Ozkececi-Taner1 sobre o tema. .

Qualquer estudo sobre relações internacionais abordará, basicamente, uma

prolongada disputa entre duas escolas de pensamento: uma Realista e outra Liberal.

Ainda que isto não seja um paradigma monolítico, a Escola Realista descreve as

relações internacionais como uma luta pelo poder entre Estados.

Nesta luta os Estados priorizam o seu auto-interesse, e têm uma visão pessimista

quanto à perspectiva de eliminação dos conflitos e da guerra. Este modelo de

pensamento foi dominante durante o período da Guerra Fria, porque ele proporcionava

uma explicação simples e ao mesmo tempo poderosa, para a guerra, para as alianças,

para o imperialismo, para os obstáculos à cooperação e, principalmente, porque a

ênfase dada por este padrão à competitividade era consistente com as características

básicas da rivalidade existente entre os EUA e a URSS.

A principal oposição ao pensamento realista consolida-se na Escola Liberal, que

congrega diversas correntes de pensamento, e que no seu conjunto, também não se

1 Binnur Ozkececi-Taner é PhD in Ciências Políticas pela Maxwell School, Syracuse University , sendo detentora de umMBA em “Conflict Resolution and Peace Studies” pelo Kroc Institute for Peace Studies, University of Notre Dame. Elaformou-se em International Relations na Middle East Technical University, Ankara, Turkey, in 1998. Binnur também foiuma AFS exchange student em Tempe, Arizona de 1993-1994. Binnur, “The Myth of Democratic Peace: Theoreticaland Empirical Shortcomings of the Democratic Peace Theory", Alternatives — Turkish Journal of InternationalRelations, Vol.1 – Nº 3 – Outono 2002

[N.T.] Tucídides entrou para a História como o pai da “Escola Realística“ das relações internacionais. Natradição desta escola, estão o italiano do século XV, Maquiavel com o seu “Príncipe” e também o homemque verteu Tucídides para o inglês, Thomas Hobbes com sua principal obra “Leviatã”. “Homo hominilupus”, o homem é um lobo para os outros homens, assim caracteriza Hobbes o comportamento daspessoas. Ele postula, portanto, o Estado forte, o chamado Leviatã que protege os cidadãos um diante dooutro. No entanto, não há um Leviatã nas relações internacionais. Reina, na visão de Hobbes, o estadoprimitivo, a luta de todos contra todos. O poder é o princípio de ordenamento das relações entre osEstados. Outras manifestações dessa escola de pensamento das relações internacionais são a teoria da “Razão doEstado“ (Raison d´état) de Richelieu ou a expressão alemã “política real” (Realpolitik), que foi adotadacomo estrangeirismo por muitas línguas. A Realpolitik, como praticada pelo estadista alemão Bismarck, éessencialmente uma política como “arte do possível”. Ela tenta agir com base nos interesses próprios econsiderando os interesses alheios, mas rejeitando ideais e valores. A escola realística ainda é muitodefendida atualmente, embora de forma diferenciada.

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baseia numa visão monolítica. A Escola Liberal de pensamento integra três correntes

de pensamento que propõe modelos diferentes de relações internacionais.

Uma corrente da Escola Liberal propõe que a interdependência econômica seria

o fator a desencorajar os Estados de recorrerem ao uso da força, uns contra os outros,

visto que a guerra ameaçaria a prosperidade de cada um dos envolvidos2.

Outra corrente liberal, mais recente, sugere que as instituições e as normas

internacionais poderiam superar os comportamentos egoístas dos Estados,

principalmente, encorajando-os a relegar ganhos imediatos em prol dos maiores

benefícios advindos de uma cooperação duradoura3.

Uma terceira corrente da Escola Liberal, e provavelmente a que goza de maior

popularidade, tanto nos círculos acadêmicos, quanto nos círculos políticos, propugna

pela Teoria da Paz Democrática, e vislumbra a difusão da democracia, como a chave

para a paz mundial, baseando sua argumentação na proposição de que é inerente aos

Estados democráticos serem mais pacíficos que os Estados autoritários.

2 Ver Rosecrane, Richard, “The Rise of the Trading State: Commerce and Conquest in the Modern World”, Editora BasicBooks, Nova York, 1986.

3 Esta corrente é mais bem definida no trabalho de Keohane, Robert O., “After Hegemony”, Princeton University Editora,Princeton NJ, 1984.

33

CONCEITUAÇÃO DA TEORIA DA PAZ DEMOCRÁTICA

A argumentação de que a democracia é uma força importante para a paz tem, na

pessoa do filósofo alemão Immanuel Kant, o seu mais enérgico advogado.

Aproximadamente há dois séculos atrás este filósofo argumentava que o

elemento moral que forma o arcabouço das relações pacíficas entre os Estados

democráticos, se baseia nos princípios comuns da cooperação, respeito mútuo e

entendimento.

Recentemente, muitos observadores têm seguido os seus passos, considerando o

regime democrático como sendo o “caminho para a paz”4. De fato, desde o início dos

anos 1980, a visão de que as democracias não entram em guerra, umas contra as outras,

tem sido considerada “o que existe de mais próximo de uma lei internacional empírica

para as relações internacionais”5.

Os fundamentos teóricos da Teoria da Paz Democrática, como definidos por

Bruce Russet, podem ser divididos em: proposição unitária (monadária) e

proposição dual (díada)6. Estas proposições diferem entre si no que concerne à

importância do regime governamental do Estado em perspectiva.

A proposição unitária (ou monadária) sugere que quanto mais democrático for o

Estado, menos violento será o seu comportamento em relação a outros Estados, sejam

4 Brown, Michael E., et al. “Debating Democratic Peace”, The MTI Editora, Cambridge, Mass., 1997. 5 Levy Jack S. “The Causes of War: A Review of Theories in Evidence”, Behavior, Society and Nuclear War, Tetlock et al.,

Oxford University Editora, Nova York, p.88, 1989. Chan, Steve, “In Search of Democratic Peace: Problems andPromise”, Mershon International Studies Review, 41:59-91, 1997.

6 Bruce Russet, “Grasping the Democratic Peace: Principles for a Post-Cold Ar World” (Princeton University Editora,1993); e Russet, “The Democratic Peace: And Yet it Moves”, International Security, 1994, pp. 164-175.

[N.T.] As idéias do filósofo alemão Immanuel Kant influenciaram decisivamente o Direito Internacional edesempenharam um importante papel por ocasião da fundação da Liga das Nações e as Nações Unidas.Na sua obra mais famosa “Zum ewigen Frieden” (Paz Perpétua), Kant esboça uma ética das relaçõesinternacionais e propõe máximas para a convivência de nações e povos, baseadas em um ordenamentode paz e como base de estabilidade interna e internacional. Alguns dos elementos por ele propostos são anão-intervenção nos assuntos internos de uma nação, a dissolução das forças armadas e a segurança dapaz através de uma ordem republicana dos Estados: (não necessariamente democrática). O título da obra de Kant é intencionalmente ambíguo: A Paz Perpétua. Duas soluções são apresentadas àhumanidade. Por um lado, o fim de todas as guerras através de um acordo universal, assinado por todasas nações ou então, a paz eterna em um gigantesco cemitério da humanidade, depois de uma guerra deextermínio. No século XVIII, esta última possibilidade só poderia ser imaginada por uma pessoa comoKant, acostumado a refletir até as últimas conseqüências. No século XX, com a invenção das armasnucleares, infelizmente essa visão não parece ser mais tão visionária.

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eles democráticos ou não7. A grande maioria de trabalhos feitos, sob o enfoque da

proposição unitária apresenta como argumentações:

— que as democracias são, de fato, os regimes de governo mais pacíficos, porque

guerras onerosas e mal sucedidas, num ambiente democrático, aumentam as chances de

um líder político perder a sua posição, o que tornaria estes líderes menos propensos a

iniciar guerras que tenham a perspectiva de serem violentas ou de acarretarem custos

elevados;

— que nos Estados democráticos, a menor propensão a escalar disputas,

transformando-as em guerras deve-se às estruturas políticas domésticas, que restringem

os líderes democráticos no que concerne a adoção da opção de guerra, como um

instrumento de política externa;

— que os Estados democráticos têm menor propensão para estenderem seus

compromissos além de suas capacitações; e

— que as instituições democráticas asseguram um distinto efeito pacificador,

independentemente do regime político interno de outros Estados.

De acordo com proposição dual (ou díada), considerada como a proposição mais

completa, o fato de que os Estados democráticos não entram em guerra entre si, não

significa que sejam menos predispostos à guerra do que outros tipos de Estados.

Contrariamente à proposição unitária ou monadária, a proposição dual sugere

que o tipo de regime do Estado oponente afetará, de forma crucial a decisão de recorrer

à guerra, e neste sentido, Estados democráticos podem ter predisposição para a guerra,

quando se deparam com oponentes não democráticos. A hostilidade em relação a um

Estado não democrático tem maior aceitabilidade. Neste sentido, observa-se que existe

uma maior facilidade em mobilizar a opinião pública em prol de uma ação militar

devido ao fato de que governos não democráticos estão em permanente “estado de

agressão contra o seu próprio povo”, situação esta que torna “suas relações externas

profundamente suspeitas para os governos democráticos”8.

7 Ray, James L., “Wars Between Democracies: Rare or Nonexistente?”, International Interactions, 18:251-276, 1996;Rummel Rudolph J., “Democracies are Less Warlike Than Other Regimes”, European Journal of International Relations,1:457-479, 1995; Bueno de Mesquita, Bruce & David Lalman, “Domestic Opposition and Foreign War”, American Polit-ical Science Review 84:747-766, 1992; Maoz Zeev & Nasrin Abdolai, “Regime Types and International Conflict, 1816-1976”, Journal of Conflict Resolution, 33:3-35, 1989.

8 Doyle, Michael W. “Liberalism and World Politics”, American Political Science Review 80:1161, 1986; Owen, JohnM., “How Liberalism Produces Democratic Peace”, International Security 1995:96.

55

Além das duas correntes citadas, os proponentes da Teoria da Paz Democrática

sugerem duas explicações para a proposição de que democracias não entram em guerra

umas contra as outras.

A primeira explicação se baseia nas restrições estruturais / institucionais.

Segundo esta explicação, as democracias mantêm a paz entre si, devido a sistemas

controle mútuo que mantêm amarradas as mãos dos dirigentes políticos bem como, de

toda a complexa estrutura de uma sociedade civil democrática. Os efeitos das

restrições institucionais sobre as ações de um líder, traduzem-se na perspectiva de que

dirigentes políticos são passíveis de terem de assumir os elevados custos políticos

resultantes do uso impróprio da força em sua prática diplomática. Não obstante, são as

próprias restrições institucionais que impedem líderes eleitos democraticamente de

agirem de forma intempestiva, e este comportamento cauteloso no âmbito da política

externa reduz a possibilidade de que um conflito evolua para uma guerra.

A segunda explicação para que as democracias sejam consideradas mais pacíficas

está relacionada ao entendimento de que os Estados democráticos compartilham

normas culturais/democráticas comuns entre si. Segundo esta explicação, a cultura

política democrática encoraja a adoção de meios pacíficos para a resolução de

conflitos, tendência esta que atravessa as fronteiras na direção de outros Estados

democráticos, e neste sentido, os dirigentes políticos já estão habituados a ter a

expectativa de que suas ações terão reações recíprocas, em se tratando de outros

Estados democráticos.

A explicação relativa às normas culturais/democráticas tem sido considerada

mais robusta e esclarecedora que a explicação relativa às restrições

estruturais/institucionais, visto que esta última não apresenta uma justificativa quanto

à disposição pública, no âmbito de democracias, de empreender guerras contra Estados

não democráticos. Por outro lado, alguns estudiosos têm argumentado que as duas

explicações não são mutuamente exclusivas, ao contrário, podem funcionar de forma

complementar.

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KANT OU CANT — O MITO DA PAZ DEMOCRÁTICA

INTRODUÇÃO

A Teoria da Paz Democrática trás à tona importantes temas teóricos, como a

controvérsia quanto a Estados democráticos comportarem-se de uma determinada

forma entre si, e de uma forma diferente em relação a Estados não democráticos. Este

tema remete-se ao âmago da teoria das relações internacionais, enfocando a relevância

de aspectos secundários (de política interna) e terciários (estruturais) no desenrolar das

questões de política internacional.

A Teoria da Paz Democrática também alcançou uma importância real em nível

global. Os dirigentes políticos que adotaram a Teoria da Paz Democrática já a

identificaram como um elo crítico ligando a política de segurança dos Estados Unidos

à difusão da democracia, identificando esta ligação como o antídoto para prevenir a

ocorrência de guerras no futuro. De fato, alguns teóricos da Paz Democrática, como

Bruce Russett, acreditam que, num sistema internacional compreendendo uma massa

crítica de Estados, “pode ser possível, que os princípios da Teoria Realista, que têm

dominado a prática das relações internacionais, possam ser substituídos, (até o ponto

de sua exclusão), por princípios ‘liberais’ ou ‘idealistas’, que existem desde o século

XVII”9.

Devido às suas implicações, tanto de ordem teórica no âmbito das relações

internacionais, como no que concerne à formulação de diretrizes políticas, a Teoria da

Paz Democrática merece uma análise cuidadosa10. 9 Bruce Russet, “Grasping the Democratic Peace: Principles for a Post-Cold Ar World” (Editora Princeton University,

1993) Cap. 7; e Russet, “Can a Democratic peace be Built?”, International Interractinos, Vol. 18, Nº 3 (Primavera 1993),pp. 277-282.

10 Neste artigo, me baseio e amplio as críticas à Teoria da Paz Democrática, encontradas na obra de John J. Mearsheimer,“Back to the Future: Instability in Europe After the Cold War”, International Security, Vol. 15, Nº 1, (Verão 1990), pp. 5-56; e Kenneth N. Waltz, “America as a Model for the World? A Foreign Policy Perspective”, PS (Dezembro 1991), pp.667-670.

A reivindicação de que democracias não entram em guerra entre si é mais uma proposição, ou hipótese,do que uma teoria. A “Teoria” da Paz Democrática propõe um relacionamento causal entre uma variávelindependente (estruturas políticas democráticas num nível unitário) e uma variável dependente (aasseverada ausência de guerra entre Estados democráticos). No entanto, esta não constitui uma teoriaverdadeira, porque o relacionamento causal entre variáveis independentes e dependentes não écomprovado, nem tão pouco, como eu demonstro neste artigo, explicado de forma adequada. Ver deStephan Van Evera, “Hypotheses, Laws and Theories: A User’s Guide”. Unpub. Memo., Departamento deCiência Política, MIT.

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Neste artigo, inicialmente, fazemos uma análise crítica da capacidade persuasiva

da lógica causal da Teoria da Paz Democrática e argüimos entre a esta teoria, e a

Realista, qual das duas proporciona uma melhor prospectiva com relação aos

resultados das questões internacionais. Em seguida, analisamos, de forma sucinta, a

consistência das evidências empíricas da Teoria da Paz Democrática, tomando por base

as minhas conclusões relativas à força de seus argumentos justificativos.

Iniciamos revendo as duas explicações apresentadas para a Teoria da Paz

Democrática, por seus proponentes.

Uma das explicações atribui a ausência de guerras entre estados democráticos às

restrições institucionais, ou seja, os efeitos restritivos da opinião públicos, ou

decorrentes da sistemática de controle mútuo, inerentes à estrutura política de um

Estado democrático. A outra explicação propõe que são as normas e a culturas

democráticas — um compromisso compartilhado no sentido da resolução pacífica de

disputas políticas — que justificam a ausência de guerra entre os Estados

democráticos.

Como será demonstrado, a argumentação quanto às restrições institucionais não

proporciona uma explicação convincente para a ausência de guerras entre democracias.

Portanto, a justificativa para a Teoria da Paz Democrática se baseia no grau de

convencimento da argumentação de que as normas e culturas democráticas tenham,

para explicar o porquê de Estados democráticos, ainda que entrem em guerra com

Estados não democráticos, não entram em guerra entre si.

O corpo principal deste artigo compreende um teste das justificativas

concorrentes, relativas ao desenvolvimento de questões internacionais, proporcionadas

pela Teoria da Paz Democrática e pela Teoria Realista. Este teste é baseado em

estudos de caso de 4 situações de “quase ocorrência” — crises em que 2 Estados

democráticos quase que entraram em guerra, um contra o outro.

Estes 4 casos são situações bem documentadas de grandes potencias

democráticas que chegaram à eminência da guerra, sem passar deste limiar. Desta

forma, eles proporcionam uma oportunidade para determinar qual das hipóteses

concorrentes, representadas pela Teoria da Paz Democrática e pela Teria Realista,

fornece uma melhor explicação para o desenrolar de questões internacionais.

88

Alem disso, há que se considerar que estes estudos de caso favorecem a postura

da Teoria da paz Democrática, e desfavorecem a Teoria Realista, porque em cada um

deles, teoricamente, o efeito pacificador das normas e culturas democráticas estaria

reforçado por fatores complementares (e.g. interdependência econômica, ou laços

especiais ligando as partes em disputa).

Estabelecemos, tanto para a argumentação relativa às normas e culturas

democráticas, quanto para a Teoria Realista, um conjunto de indicadores, ou

proposições examináveis, que devem se confirmar, se o desenrolar de uma determinada

crise puder ser explicado por qualquer uma destas teorias. Desta forma, rastreando os

desenvolvimentos de processos, examinamos cada uma das crises em detalhe.

A conclusão que se chega ao final desta análise é que a Teoria Realista, como

uma ferramenta de prognóstico e para qualificar as relações internacionais é superior à

proposição da argumentação das normas e culturas democráticas da escola ad Teoria

da Paz Democrática.

De fato, a Teoria da Paz Democrática, aparentemente, não encontra muitos

argumentos que justifiquem o desenvolvimento que teve cada um dos casos em estudo,

e as decorrentes dúvidas com relação à validade de sua lógica causal sugerem que a

evidência empírica que se propõe a apoiar a Teoria da Paz Democrática, também

Existem outros casos de crises entre grandes potências democráticas os quais podem ser estudados,quais sejam: as relações anglo-francesas durante o período da “entente cordiale” de 1832-48; as relaçõesfranco-italianas nos anos 1880 e 1890; se a Alemanha de Wilhelm puder ser classificada como umademocracia, a crise Marroquina de 1905-06 e 1911; e as crises na Samoa de 1889 e 1899. Todos estescasos consubstanciariam as minhas conclusões. Por exemplo, de 1832 a 1848 as relações anglo-francesas foram marcadas por uma intensa rivalidade geopolítica em relação à Bélgica, Espanha eEuropa Oriental, e neste contexto a ameaça de guerra constituía sempre um fator presente nas avaliaçõesdos formuladores de diretrizes políticas, tanto em Londres, quanto em Paris. O Ministro de relaçõesexteriores, Lorde Palmerston tinha uma profunda desconfiança em relação às ambições francesas, econstantemente enfatizava a necessidade da Inglaterra manter um poder naval suficiente para defenderseus interesses em face do desafio francês. Ver de Kenneth Bourne, “Palmerston: The early Years , 1784-1841”, (Nova York: Macmillan), p. 613. Ver, também, de Roger Bullen, “Palmerston, Guizot and the Col-lapse of the Entente Cordiale” (London: Athlone Editora, 1974); e de Sir Charles Webster, “The ForeignPolicy of Palmerston”, Vol. 1: “1830-1841, Britain, the Liberal Movement and The Eastern Question” (Lon-don: G. Bell & Sons, 1951). A Itália desafiou a França na conquista de uma ascendência no Mediterrâneo,embora as duas nações fossem ligadas pelo liberalismo, democracia e uma cultura comum. Estes doisEstados engajaram-se numa guerra comercial que se aproximou de uma guerra real. A França,aparentemente, foi dissuadida de atacar a Itália em 1888, quando a Esquadra inglesa do Canal foideslocada para a Base Naval italiana de La Spezia. A Itália foi impedida de atacar a França devido à suafraqueza militar e econômica. Ver de C. J. Lowe e F. Marzari, “Italian Foreign Policy, 1780-1940”, (Londres:Routledge & Paul Kegan, 1975, Cap. 4); de C. J. Lowe, “The Reluctant Imperialists: British Foreign Policy1879-1902”, (London: Routledge & Paul Kegan, 1974), Vol. I, pp. 147-150; e de John A. C. Conybeare,“Trade Wars: Theory and Practice of International Commercial Rivalry” (Nova York: Columbia UniversityEditora, 1987), pp.183-188.

99

deveria ser revista. Os teóricos da Paz Democrática argumentam que a teoria é

validada por um grande número de casos, no entanto, pode-se argumentar que o

universo de casos, a partir do qual esta teoria poderia ser testada é, na realidade,

bastante limitado. Esta constatação, por si só, já é um problema, pois, se a sustentação

empírica da teoria baseia-se num universo pequeno, isto amplia a importância de

possíveis exceções à regra de que as democracias não entram em guerra umas contra as

outras (como por exemplo, a Primeira Guerra Mundial e a Guerra de 1812).

Concluindo este artigo, discuto as implicações problemáticas da Teoria da Paz

Democrática com relação à política externa norte-americana no período pós-Guerra

Fria.

1010

A TEORIA DA PAZ DEMOCRÁTICA — SUAS REIVINDICAÇÕES E ASUA LÓGICA

A Teoria da Paz Democrática não afirma que os Estados democráticos sejam

menos propensos à guerra que os não-democráticos, porque eles não o são. Esta teoria,

no entanto, faz duas proposições muito importantes.

Em primeiro lugar, que as democracias nunca (ou raramente — e existe um

grande número de variações sobre isto) entram em guerra contra outras democracias11.

Neste sentido, Jack S. Levy cita que: “ a ausência de guerras entre democracias é a

constatação que mais se aproxima do que podemos chamar de uma lei empírica no

âmbito das relações internacionais”12.

Em segundo lugar, quando democracias chegam à uma situação de conflito entre

si, raramente ameaçam usar a força, porque isto seria um procedimento ilegítimo13. A

Teoria da Paz Democrática assegura, de forma explicita, que é a própria natureza dos

sistemas políticos democráticos, a responsável pelo fato de que democracias não lutem

ou ameacem lutar entre si.

A LÓGICA CAUSAL

A Teoria da Paz Democrática tem que explicar uma contradição: as democracias

são tão propensas à guerra quanto as não democracias. Ou seja, da mesma forma com

que as democracias prontamente ameaçam lutar ou lutam contra não democracias, elas

não ameaçam lutar nem lutam contra outras democracias.

Desta forma, o desafio chave para a Teoria da Paz Democrática é identificar as

características especiais, inerentes aos Estados democráticos, que os restringem de

empregarem ameaças coercitivas ou até mesmo entrarem em guerra contra outras

democracias.

A Teoria da Paz Democrática apresenta, como vimos, duas explicações: (1)

restrições institucionais e (2) normas e culturas democráticas14. 11 12 Jack S. Levy, “Domestic Politics and War”, em Robert I, Rotberg e Theodore K. Rabb, eds. “The Origin and Prevention

of Major Wars”, (Cambridge: Cambridge University Editora, 1989), p.88. 13 Russet, “Grasping the Democratic Peace” p.33; Michael W. Doyle, “Kant, Liberal Legacies and Foreign Affairs”, Parte

I em Philosophy and Public Affairs, Vol. 12, Nº. 3 (Verão 1983), p.213. 14 Esta é a terminologia empregada por Russet em “Grasping the Democratic Peace”; ver, também, de Bruce Russet e Zeev

maoz, “Normative and Structural Causes of Democratic Peace”, American Political Science Review, Vol. 87, Nº. 3(Setembro 1993), pp. 624-638. Russet assinala (pp. 40-42) que, ainda que analiticamente distintas, estas duas explicaçõesestão interligadas.

1111

As restrições institucionais podem manifestar-se de duas formas. Numa primeira

forma, Michael Doyle, tomando por base Immanuel Kant, explica que governos

democráticos relutam em ir à guerra porque eles devem satisfações ao povo15. O povo é

que paga o preço da guerra, tanto em sangue quanto em riquezas; se o preço de um

conflito for elevado, os governos democráticos podem cair, vítimas de uma má

retribuição eleitoral. Mais ainda, em Estados democráticos, as decisões na área de

política externa, que envolvam o risco de guerra, são debatidas abertamente, e não a

portas fechadas, o que significa dizer, que tanto o povo quanto os dirigentes políticos

são sensíveis aos custos da guerra. A segunda forma de manifestação se verifica

através dos sistemas de controle mútuo, decorrente de três características específicas da

estrutura política doméstica de um Estado: o processo seletivo de escolha do

Executivo; a competição política; e a pluralidade do processo decisório no âmbito da

política externa16. Estados cujos Executivos têm de responder a um corpo eleitoral; que

sejam dotados de uma competição política institucionalizada; e com as

responsabilidades pela tomada de decisões espalhadas entre diversas instituições ou

indivíduos; devem ser altamente restringidos, e em decorrência, com uma menor

probabilidade de irem à guerra.

As explicações relativas às normas e culturas democráticas sustentam que “a

cultura, as percepções e práticas que possibilitam o comprometimento e a resolução

pacífica de conflitos, sem a ameaça de violência entre países, estendem-se através das

fronteiras na direção de outros países democráticos”17. Estados democráticos assumem

que outras democracias também aprovam o uso de métodos pacíficos na regulação da

competição política e resolução de disputas, e que outros Estados aplicarão estas

normas em suas relações externas com outras democracias. Em outras palavras, os

Estados democráticos desenvolvem uma percepção positiva em relação a outras

democracias. Consequentemente, nas palavras de Doyle, as democracias “que

15 Doyle, “Kant Liberal Legacies and Foreign Affairs”, pp.205-235. Ver também, Doyle, “Liberalism and World Politics”,American Political Science Review, Vol. 80, Nº. 4 (Dezembro 1996), pp. 1151-1169; Russet, “Grasping the DemocraticPeace”, pp. 38-40.

16 T.Clifton Morgan and Sally H. Campbell, "Domestic Structure, Decisional Constraints and War: So Why DemocraciesFight?”, Journal of Conflict Resolution, Vol. 35, Nº. 2, (junho 1991), pp. 187-211; e Clifton Morgan and Valerie L.Schwebach, “Take Two Democracies and Call Me in the Morning: A Prescription for Peace?”, International Interactions,Vol. 17, Nº. 4, (Summer 1992), pp. 305-420.

17 Russet, “Grasping the Democratic peace”, p. 31.

1212

repousam no consentimento, presumem que repúblicas estrangeiras também sejam

consensuais, justas e, portanto, merecedoras de boa vontade”.

As relações entre Estados democráticos baseiam-se no respeito mútuo, enraizado

no fato de que as democracias percebem-se, umas às outras, como conciliadoras (ou

seja, a negociação ou o “status quo” são as únicas saídas possíveis numa disputa).

Argumenta-se que este ponto de vista baseia-se numa forma de aprendizado. Os

Estados democráticos beneficiam-se de relações cooperativas entre si, e desta forma

visam expandir suas inteirações positivas. Por sua vez, este desejo os predispõe a

serem mais sensíveis às necessidades de outros Estados democráticos, o que, em última

análise, leva à criação de uma comunidade de interesses. Na medida em que Estados

democráticos movem-se na direção dessas comunidades, eles renunciam à opção de

usarem (ou até mesmo de ameaçarem o uso) a força em suas mútuas inteirações18.

O espírito democrático — baseado na “competição pacífica, persuasão, e

compromisso” — explica a ausência de guerra e das ameaças a ela relacionadas entre

Estados democráticos19. Em contraposição, considera-se que a ausência destas normas,

nas relações entre Estados democráticos e não democráticos, explica o paradoxo de

que embora democracias que não lutam entre si sejam, de um modo geral, tão

predispostas à guerra quanto as não democracias: “quando uma democracia entra em

conflito com uma não democracia, não terá a expectativa de que o Estado não

democrático permanecerá contido por aquelas normas (de respeito mútuo baseado

numa cultura democrática). Neste caso, o Estado democrático poderá sentir-se

obrigado a adaptar-se à natureza mais rude das normas de conduta internacional de seu18 Doyle, “Kant, Liberal Legacies and Foreign Affairs”; e Harvey Starr, “Democracy and War: Choice, Learning and

Security Communities”, Journal of Peace Research, Vol. 29, Nº. 2 (1992), pp.207-213. 19 Maoz and Russet, “A Statistical Artifact?” p. 246.

Doyle, “Kant, Liberal legacies and Foreign Affairs”, p. 230. Também é argumentado que a predisposição deEstados democráticos de considerar outras democracias de forma favorável é reforçada pelo fato de queEstados democratas liberais estão interligados por laços mutuamente benéficos de interdependênciaeconômica. As democracias, portanto, têm fortes incentivos para agirem umas em direção às outras, demodo a aumentar a cooperação e reprimir ações que ameacem seus interesses advindos da cooperaçãomútua. Ibid, pp. 230-232; Rummel, “Liberalism and International Violence”, pp.27-28. Com relação ao argu-mento de que “interdependência promove a paz” ver de Richard Rosecrance, “The Rise of the TradingState”, (Nova York: Basic Books, 1986). Na verdade, no entanto, para as grandes potências, ainterdependência econômica cria também interesses também importantes que devem ser defendidosatravés de comprometimentos militares externos (comprometimentos estes que carregam em seu bojo orisco da guerra). Ver Christopher Layne e Benjamin C. Schwarz, “American Hegemony — Without and En-emy”, Foreign Policy, Nº. 92 (Outono 1993), pp.5-23.

1313

oponente, de modo a evitar que seja explorado ou eliminado pelo Estado não

democrático, que tira vantagem da moderação inerente aos Estados democráticos”20.

Portanto, é um postulado fundamental da Teoria da Paz Democrática que as

democracias se comportam de um modo qualitativamente diferente de suas relações

entre si, quando se trata de relações com Estados não democráticos.

20 Russet, “Grasping the Democratic Peace”, p. 33.

1414

A TEORIA REALISTA — SEMPRE A MESMA COISA NOVAMENTE

Se a história é uma simples repetição de fatos, então, para os realistas a política

internacional também é uma mera repetição de ocorrências ou fatos: a guerra, a

segurança de grandes potências, as disputas econômicas, a ascensão e queda de

grandes potências e a formação e dissolução de alianças. Para os realistas, o

comportamento político internacional é caracterizado pela continuidade, regularidade e

repetição, porque os Estados são constrangidos pela estrutura imutável (e

provavelmente permanente) do sistema internacional. O paradigma realista explica o

porquê desta afirmação21.

A política internacional é uma ambiência anárquica de auto-ajuda. A “anarquia”

neste caso, ao invés de denotar o caos e desordem desmedida, se refere, no âmbito da

política internacional, ao fato de que não há uma autoridade central, capaz de elaborar

ou de compelir o cumprimento de regras de comportamento pelas unidades (Estados)

do sistema internacional. A ausência de uma autoridade promotora ou que imponha o

cumprimento de regras significa que cada unidade do sistema é responsável por

assegurar sua própria sobrevivência, sendo que cada unidade é, também, livre para

definir os seus próprios interesses, empregando para alcançá-los, os meios de sua

própria escolha.

Neste sentido, a política internacional é essencialmente competitiva, e de uma

forma que difere crucialmente da política doméstica nas sociedades liberais, onde o

perdedor tem condições de aceitar um resultado, porque ele sobrevive para engajar-se

numa nova luta em outro dia, e pode, portanto, ter a esperança de vencer. Na visão

realista da política internacional os Estados que levam a pior na competição política,

vivenciam situações finais mais extremas, que vão desde restrições de autonomia até a

ocupação ou extinção.

É a “anarquia” que confere à política internacional um sabor diferente. Num

sistema “anárquico” o primeiro propósito de um Estado é a sobrevivência. Para

alcançar a segurança, os Estados engajam-se na obtenção de um equilíbrio, tanto

interno quanto externo, com o propósito de deter agressores, e derrotá-los, caso a21 As explicações clássicas para o realismo são encontradas em Kenneth N. Waltz, “Theory of International Politics”,

(Reading, Mass.: Addison Wesley, 1979) e em Hans J. Morgenthau, revisado por Kenneth W. Thompson, “PoliticsAmong Nations: The Struggle for Power and Peace”, 6ª ed. (Nova York: Knopf, 1985).

1515

deterrência falhe. Num mundo realista, a cooperação é possível, mas é difícil de ser

mantida, em face das pressões competitivas que são desenvolvidas dentro da estrutura

do sistema político internacional.

O imperativo de sobrevivência em um ambiente ameaçador força os Estados a

enfocar estratégias que maximizem o seu poder em relação a seus rivais. Os Estados

recebem fortes incentivos, tanto para desenvolver uma posição de vantagem em

relação aos seus rivais militares, quanto para utilizar a sua dianteira no campo militar,

não só em autodefesa, mas também, para prevalecer sobre os outros. Visto que o poder

militar, por sua própria natureza, é inerentemente ofensivo, ao invés de defensivo, os

Estados não conseguem fugir do dilema de segurança: as medidas adotadas por um

Estado como autodefesa, podem ter uma conseqüência não intencional de exercer uma

ameaça em relação a outros Estados. Isto se deve ao fato de que um Estado jamais

pode estar convicto que as intenções dos outros são benignas; consequentemente, suas

diretrizes políticas devem ser moldadas em resposta às capacitações de outros Estados.

No sistema internacional, o medo e a desconfiança em relação a outros Estados é a

condição normal de negociação.

Um ponto onde a Teoria da Paz Democrática e o Realismo apresentam uma cisão

crucial é que a Teoria da Paz Democrática sustenta que mudanças dentro de um Estado

podem transformar a natureza das políticas internacionais. Segundo o ponto de vista do

Realismo, mesmo que os Estados mudem internamente, a estrutura do sistema político

internacional permanece a mesma.

Na medida em que a estrutura sistêmica é o determinante primário no

desenvolvimento de questões de política internacional, as restrições estruturais

implicam em que Estados posicionados em níveis semelhantes atuarão de forma

semelhante, a despeito de seus sistemas políticos domésticos. Como cita Kenneth

Waltz: “em sistemas de auto-ajuda, as pressões competitivas têm maior peso que as

preferências ideológicas ou pressões políticas internas.”22 As mudanças no nível das

unidades não alteram as restrições e incentivos incorporados em nível sistêmico. Os

Estados respondem à lógica da situação na qual eles se encontram, mesmo que isso

possa redundar em resultados indesejáveis, que vão desde o rompimento dos laços de

22 Kenneth N. Waltz, “A Reply to My Critics”, em Robert O. Keohane, ed., “Nonrealism and Its Critics”, (Nova York:Columbia University Editora, 1986), p. 329.

1616

cooperação até o conflito generalizado. Os Estados que ignoram os imperativos de um

mundo Realista, correm o risco de sucumbirem. Num mundo Realista, a sobrevivência

e a segurança estão sempre em situação de risco, e os Estados democráticos fornecerão

o mesmo tipo de resposta, tanto para Estados democráticos, quanto para Estados não

democráticos.

1717

TESTANDO A TEORIA DA PAZ DEMOCRÁTICA

A argumentação baseada nas restrições institucionais não apresenta justificativas

para a paz democrática. Se a opinião pública democrática, realmente tivesse o efeito a

ela atribuído, as democracias seriam pacíficas em suas relações com todos os Estados,

a despeito de serem democráticos ou não. Se os cidadãos e dirigentes políticos numa

democracia fossem particularmente sensíveis aos custos de uma guerra, em termos

humanos e materiais, esta sensibilidade tornar-se-ia evidente sempre que esta

democracia estivesse na eminência de uma guerra, a despeito de o adversário, ser ou

não um Estado democrático — as vidas e ou recursos desperdiçados seriam os

mesmos.

A opinião pública democrática, também não é, de per si, um elemento inibidor

da guerra. Por exemplo, em 1898, foi a opinião pública que impeliu o relutante

governo McKinley para a guerra contra a Espanha; e em 1914, a guerra foi

entusiasticamente apoiada pela opinião pública, tanto na Inglaterra, quanto na França.

Os sistemas de controle mútuo das estruturas políticas domésticas, também, não

explicam a paz democrática. Este argumento, como declarado por Schwebach, “não diz

nada de forma direta com relação à predisposição para a guerra dos Estados

democráticos”, porque ele enfoca uma variável independente — restrições de decisão

incorporadas às estruturas política democrática de um Estado — ou seja, está associado

às democracias, mas não de forma exclusiva.

Devido ao caráter restrito das justificativas citadas, a explicação associada às

normas e culturas democráticas tem que se basear no peso do argumento da lógica

causal da paz democrática. É nesta lógica que devemos procurar aquela “alguma coisa

na arquitetura interna dos estados democráticos” que justifique a paz democrática23.

A Teoria da Paz Democrática além de prescrever um desenrolar específico — i.e.

a não ocorrência de guerras enter democracias — se propõe a explicar o porquê da

ocorrência deste desenrolar específico. Portanto, ela é adequada para ser testada pelo

método do estudo de caso, um exame detalhado de um pequeno número de exemplos

para determinar se os eventos se desenvolveram e se os atores atuaram como previsto.

O método do estudo de caso proporciona a oportunidade para testar explicações23 Maoz e Russet, “Normative and Structural Causes”, p. 624.

1818

concorrentes relativas ao desenrolar de questões de política internacional, apresentadas

tanto pela Teoria da Paz Democrática, quanto pela Teoria Realista. Para testar a

consistência da lógica causal da Teoria da Paz Democrática, o enfoque assumido é o de

situações de “quase ocorrência”, ou seja, casos específicos em que Estados

democráticos tinham os motivos e a oportunidade de entrarem em guerra entre si, e não

o fizeram.

Para os estudos de caso neste artigo, utilizou-se o método de análise de

processos24 (abrindo a “caixa preta”) para identificar os fatores em relação ao quais os

dirigentes políticos têm de produzir respostas, de que forma estes fatores influenciam

as decisões e o curso dos eventos, e o possível efeito de outras variáveis nos resultados

finais25. Como é citado por Stephan Van Evera, se uma teoria tem um forte poder de

justificativa, a análise de processos de estudos de caso proporciona um teste

consistente, porque tomadores de decisão “deveriam falar, escrever e comportar-se de

uma forma consistente com os prognósticos da teoria”.26

Se a Teoria da Paz Democrática é válida, ela deveria explicar, de forma

consistente, o fato de que sérias crises entre Estados democráticos terminaram como

“quase guerra” ao invés de guerra, e neste caso, os argumentos relativos às normas e

culturas democráticas deveriam fornecer alguns indicadores deste desenvolvimento

específico.

Em primeiro, a opinião pública deveria ser fortemente pacífica. A opinião pública

é importante, não por ser uma restrição institucional, mas por ser uma medida indireta

do respeito mútuo que se considera existir entre as democracias.

Em segundo lugar, as elites políticas, deveriam abster-se de fazer ameaças

militares contra outras democracias, ou de conduzir os preparativos para concretizar

24 [N.T.] A análise de processos (process-tracing) compreende a geração e análise de dados relativos aos mecanismoscausais, ou processos, eventos ações expectativas, e outras variáveis intervenientes, que interligam causas supostas ouassumidas aos efeitos observados. Em outras palavras, dos dois tipos de evidencias da noção teórica da causalidade, osefeitos causais e mecanismos causais, o método de acompanhamento de processos aborda os mecanismos causais. Ométodo de acompanhamento de processo tem duas abordagens diferentes. A primeira, denominada “verificação deprocessos” envolve testar se os processos observados em relação às variáveis de um caso, combinam com aqueles queforam previamente prognosticados em termos teóricos. A segunda abordagem, denominada “indução de processos”,compreende a observação indutiva de mecanismos aparentemente causais e o aproveitamento dos resultados heurísticos daaplicação destes mecanismos como hipóteses potenciais para futuros testes.

25 Alexander L. George e Timothy J. Mckeown, “Case Studies and Theories of Organizational Decision Making”, emRobert F. Smith, eds., “Advances in Information Processing in Organizations”, Vol. 2, (Greenwich, Conn.: JAI Editora,1985), p. 35.

26 Stephan V. Evera, “What are Case Studies? How Should They be Performed”, memorando não publicado, Setembro de1993, Departamento de Ciência Política, MIT, p. 2.

1919

tais ameaças. Neste ponto o discurso dos teóricos da paz democrática perde muito do

seu fundamento, por sugerir que a ausência de guerras entre as democracias, por si só,

é mais significativa do que a existência das ameaças, alegação esta que reduz bastante

ao nível de aceitabilidade de toda a argumentação. Como o ponto crucial da Teoria da

Paz Democrática é que as democracias exteriorizam suas normas internas de resolução

pacífica de conflitos, então, especialmente durante uma crise, não deveria haver

democracias ameaçando outras democracias; e se ameaças fossem feitas, deveriam ser

uma opção extrema de último caso, ao invés de ser uma das primeiras a serem

adotadas.

Em terceiro lugar, as democracias deveriam ter flexibilidade para reclinar-se, de

modo a acomodarem-se, umas às outras, numa situação de crise. Ultimatos, linhas

rígidas inflexíveis e a diplomacia do “big-stick” são elementos característicos da

“Realpolitik”, e não da paz democrática.

A justificativa da Teoria Realista para as “quase guerras” enfoca um conjunto

diferente de indicadores.

Em primeiro lugar, a Teoria Realista postula a existência de uma relação entre o

valor do interesse nacional em jogo e a postura em termos de política externa — numa

crise, quanto mais importantes forem os interesses em jogo de um Estado democrático,

maior será a probabilidade de que a sua política externa seja determinada por

imperativos Realistas do que pelas normas e culturas democráticas. Quando interesses

vitais estão em jogo, as democracias não se sentiriam inibidas de usar ameaças,

ultimatos, e a diplomacia do “big-stick” contra outras democracias.

Em segundo lugar, mesmo numa crise envolvendo democracias, os Estados

devem estar atentos com as questões estratégicas, e neste sentido, a distribuição

relativa de capacitações militares entre eles afeta de forma crucial — e talvez decisiva

— a diplomacia.

Em terceiro lugar, considerações geopolíticas mais amplas, inerentes à posição de

um Estado na política internacional, quando pertinentes, têm uma influência

significativa no resultado de uma crise. Neste contexto, a chave está no que Geoffrey

Blainey designa como o “dilema do caçador de pássaros27”, que envolve as

27 [N.T.] Esta formulação está ligada à forma como se pratica tiro aos pássaros aquáticos, a partir de posições abrigadas, naperiferia das formações lacustres onde esses pássaros costumam permanecer.

2020

preocupações de que outros Estados, posicionados à margem de uma determinada

disputa, tirem vantagem do envolvimento de um Estado numa guerra. A situação de

guerra deixa um Estado enfraquecido, e com um poder relativamente inferior em

relação a outros Estados, que sejam rivais em potencial. Num conflito prolongado ou

insolúvel, existe a possibilidade do seu oponente se aliar a outros Estados que sejam

seus adversários ou rivais28.

Eu selecionei para estudar quatro situações da história moderna nas quais grandes

potências democráticas quase chegaram a uma situação de guerra: (1) os Estados

Unidos e a Grã-Bretanha em 1861 (o Caso “Trent”); (2) os Estados Unidos e a Grã-

Bretanha em 1895-96 (a Crise da Venezuela); França e Grã-Bretanha em 1898 (a Crise

“Fashoda”); e a França e a Alemanha em 1923 (a Crise do ““Ruhr””).

O meu enfoque se concentra em grandes potencias por diversas razões.

Inicialmente, a teoria das relações internacionais é definida pelas grandes potências;

elas são os principais componentes do sistema internacional, e suas ações — em

particular suas guerras — têm um maior impacto sobro o sistema internacional do que

as praticadas pelas pequenas potências29. Alem do mais, enquanto que a Teoria da Paz

Democrática deve ser aplicável, tanto para grandes quanto para pequenas potências, os

prognósticos Realistas relativos ao comportamento das grandes potências, nem sempre

são aplicáveis às pequenas potências, porque o leque de opções disponíveis às

28 Geoffrey Blainey, “The Causes of War”, 3ª Ed. (South Melbourne: Macmillan Co. da Austrália, 1988), pp. 57-67. Comodiz a parábola — enquanto as aves aquáticas sobrevoam a sua presa, o pescador lança a sua rede.

29 Waltz, “Theory of International Politics”, 72-73.

A minha classificação dos Estados Unidos em 1861 e em 1865, e a Alemanha em 1923 como grandespotências pode ser questionada. No entorno da metade do século XIX, formuladores de diretrizes políticasbritânicos viam os Estados Unidos, devido ao seu tamanho, população, riqueza e crescente capacidadeindustrial (e poder militar latente), como uma “grande potencia mundial”, a despeito de não ser umparticipante ativo do sistema europeu de Estados. Ephraim Douglass Adams, “Great Britain and the Ameri-can Civil War”, (Nova York: Russel and Russel, 1924), Vol. I, p. 10. Em 1895 a percepção do poder norte-americano tinha se ampliado, tanto na Inglaterra quanto nas principais potências européias. Em 1923, aAlemanha, ainda que substancialmente desarmada em decorrência à Versalhes, manteve-se como amaior potência econômica européia. A maioria dos estadistas concluiu que isto se devia à sua população eindústria, uma hegemonia continental latente. Os teóricos da paz democrática classificaram todos os oitoEstados como estando sob regimes democráticos, ao tempo em que estiveram envolvidos nas crises sobanálise. Ver de Doyle, “Kant, Liberal Legacies and Foreign Affairs”, Parte I, pp. 214-215. Russet, “Graspingthe Democratic Peace”, pp. 5-9, analisa, resumidamente, as crises Fashoda e da Venezuela, mas a suabibliografia faz poucas referências históricas a essas duas crises (e temas relacionados), e omite a maioriadas fontes padrão.

2121

pequenas potências é mais restrito30. As crises entre grandes potências constituem um

bom teste de confronto, porque tanto a Teoria da Paz Democrática quanto a Teoria

Realista são aplicáveis.

Os casos selecionados tendem a favorecer a posição da Teoria da Paz

Democrática por diversas razões, além da razão mais óbvia, qual seja — nenhum dos

casos redundou em guerra. Em cada uma das crises, existiram fatores antecedentes que

poderiam ter reforçado os prognósticos da Teoria da Paz Democrática. Nas duas crises

anglo-americanas, uma história, cultura e língua comuns, e interdependência

econômica eram considerações significativas31. Na Crise “Fashoda”, os fatores que

levaram ao “entente” anglo-francês em 1904, já estavam presentes, e ambos os países

beneficiaram-se, significativamente, de suas relações comerciais32. A Crise franco-

alemã do “Ruhr” testou tanto a prescrição Wilsoniana para a obtenção de segurança na

Europa do pós-1ª Guerra Mundial, quanto a crença (progressivamente difundida entre

as elites de negócios da França e Alemanha, e numa menor intensidade entre as elites

políticas) de que a prosperidade de ambos os Estados dependia de sua mútua

colaboração econômica.

30 Ver Robert L. Rothtein, “Alliances and Small Powers”, (Nova York: Columbia University Editora, 1968), Cap 1. 31 Para uma resumida analise das ligações culturais, sociais e econômicas, entre a Grã-Bretanha e os estados Unidos,

durante os meados do século XIX, ver de Martin Crawford, “The Anglo-American Crisis of the Mid-Nineteenth Century:The Times and America, 1850-1862”, (Atenas: University os Georgia Editora, 1987), pp.39-55.

32 Stephan R. Rock, “Why Peace Breaks Out: Great Powers Rapprochement in Historical Perspective”, (Chapel Hill:University of North Carolina Editora, 1989), pp. 91-119.

2222

CRISE ANGLO-AMERICANA I: O CASO “TRENT”

Em 1861, as tensões oriundas da Guerra entre Estados33, colocaram os Estados

Unidos e a Grã-Bretanha às beiras de uma guerra. As causas mais significativas da

fricção anglo-americana derivavam do bloqueio imposto pela União aos portos

Confederados, e a conseqüente perda britânica das remessas de algodão de que

dependia sua indústria têxtil. No entanto, a causa imediata da crise anglo-americana foi

a ação do navio da União o “USS San Jacinto” que, agindo à revelia de Washington,

interceptou o navio correio britânico “HMS Trent”, no dia 8 de novembro de 1861.

O “HMS Trent” transportava James M. Mason e John Slidell, recém designados

Comissários Confederados junto à Grã-Bretanha e França. As circunstâncias legais que

caracterizavam a situação eram: que os Comissários Confederados haviam embarcado

em um navio neutro (o HMS “Trent”), em um porto também neutro (Havana, Cuba).

Em seu deslocamento para a Europa, o navio inglês foi interceptado em águas

internacionais pelo “USS San Jacinto”, que enviou um grupo de busca e apreensão

para bordo o “HMS Trent”, onde aprisionou Mason e Slidell. Então, foi permitido que

o “HMS Trent” prosseguisse em sua viagem, enquanto que Mason e Slidell foram

transportados pelo “USS San Jacinto” até Boston, onde foram encarcerados no Forte

“Warren”.

Quando a notícia deste incidente chegou à Grã-Bretanha, a opinião pública foi

tomada pela febre da guerra. “A primeira manchete bombástica da imprensa, ao

receber as notícias relativas ao ‘Trent’, foi terrível.”34 Um cidadão norte-americano

residindo na Inglaterra reportou ao Secretário de Estado William H. Seward que: “As

pessoas estão frenéticas de raiva, e onde quer que se faça um pesquisa de opinião

pública, eu receio que 999 em 1000 declarariam guerra”35. De Edimburgo um outro

33 [N.T.] O autor usa sempre a expressão Guerra entre Estados, para se referir ao evento que é mais conhecido peladesignação Guerra de Secessão. Outro título empregado para este evento é Guerra Civil, que considero inapropriado poisnão retrata a real dimensão do conflito, que teve todas as características bélicas e militares de uma guerra entre doisestados soberanos. Neste sentido, pode-se até inferir que se tratou de uma guerra entre dois Estados diferentes: um no sul,a Confederação, essencialmente agrário, escravocrata e com uma base étnica com fortes traços latinos, e outro no norte, aUnião, essencialmente industrial, com mão de obra remunerada, e com uma base étnica predominantemente anglo-saxã.Numa eventual vitória dos estados Confederados teríamos a formação de dois Estados soberanos e independentes.

34 Adams, “Britain and the Civil War”, Vol. I, p. 216. 35 Citado em Gordon H. Waren, “Fountain of Discontent: The Trent Affair and Freedom of the Seas”, (Boston:

Northeastern University Editora, 1981), p. 105.

2323

norte-americano escreveu: “Eu nunca percebi um sentimento de indignação assumir

uma forma tão intensa na minha vida”36.

O governo britânico não foi menos belicoso que a opinião pública ou a imprensa.

Reforçado pelo argumento legal de que Mason e Slidell haviam sido retirados de bordo

do “Trent” em contravenção à legislação internacional, o Gabinete inglês adotou uma

política de “linha dura” que espelhava a predisposição da opinião pública.

A reação do Primeiro Ministro, Lorde Palmerston, às notícias do incidente com o

“Trent” foi de oficiar ao Secretário de Estado da Guerra que — devido às “precárias”

relações com os Estados Unidos, o governo iria reconsiderar os cortes nas despesas

militares planejadas para serem realizadas no ano de 186237. Em reunião de Gabinete,

realizada em 29 de novembro, consta que Palmerston, arremessando o seu chapéu em

cima da mesa, declarou aos seus colegas: “Eu não sei se vocês irão suportar isso, eu

quero me danar se eu tiver que suportar”38.

O Gabinete britânico adotou duas linhas de ação simultaneamente: usou a ameaça

militar para coagir os Estados Unidos a renderem-se diplomaticamente; e no lado da

diplomacia, o Secretário de Relações Exteriores, Lorde John Russel, enviou uma nota

diplomática ao governo da União na qual, ao mesmo tempo em que exigia firmemente

a libertação de Mason e Slidell, oferecia a Washington uma via aceitável de retratação,

pela qual Londres aceitaria, como equivalente a um pedido de desculpas, a declaração

de que o “USS San Jacinto” tinha agido sem a sanção oficial. Todavia, o significado

real da nota que foi transmitida a Washington era o de um ultimato.

Embora o embaixador britânico em Washington, Lord Lyons, houvesse sido

instruído para apresentar o comunicado de uma forma que maximizasse as chances de

um acordo por parte dos norte-americanos, o seu conteúdo era claro: a não ser que,

num prazo de sete dias a contar a partir do recebimento, o governo da União aceitasse

36 Citado em Adams, “Britain end the Civil War”, Vol. I, p. 217.37 Citado em Norma B. Ferris, “The Trent Affair: Crisis” (Knoxville: University of Tennessee Editora), p. 44. 38 Ibid, p. 109; Howard Jones, “Union in Peril: The Crisis over British Intervention in the Civil War” (Chapel Hill:

University of North Carolina Editora, 1992), pp. 84-85.

2424

incondicionalmente as exigências britânicas, Lyons deveria requisitar o seu passaporte

e deixar os Estados Unidos. De acordo com o que Russel escreveu para Lyons: “O que

nós queremos, de forma clara, é um “Sim” ou um “Não”, às nossas simples exigências,

e nós queremos este “Sim” ou “Não” dentro de sete dias a partir da comunicação do

despacho.”39

Ainda que alguns, incluindo Russel, tivessem esperança de que a crise pudesse

ser resolvida pacificamente, a totalidade do Gabinete britânico reconhecia que a sua

decisão de apresentar o ultimato a Washington poderia redundar em guerra. Os

britânicos acreditavam que havia uma única esperança de paz: que Washington,

intimidada pelo poder militar britânico e a sua prontidão para a guerra, dobrar-se-ia às

exigências de Londres, ao invés de resistir a elas40. Como declarado pelo Vice-

Secretário de Estado para Relações Exteriores: “A nossa única chance de paz será

encontrada, trabalhando em cima dos temores do governo e do povo dos Estados

Unidos”41.

Convencida de que Washington só recuaria diante da ameaça do uso da força, a

diplomacia de Londres respaldou-se com ostensivos preparos [sic]militares e navais.

Antecipando-se a um possível conflito, o Gabinete embargou a exportação para os

Estados Unidos de nitrato de potássio (em 30 de novembro) e de armas e munição em

(4 de dezembro). Realçando a gravidade da crise, o governo britânico ativou o Comitê

Especial de Guerra, (ativado apenas 4 vezes em toda a história inglesa) para

supervisionar o planejamento estratégico e os preparativos para a guerra. Medidas

urgentes foram tomadas para reforçar os contingentes [sic]militar e naval sediados na

América do Norte. A partir da metade do mês de dezembro, uma “ponte marítima” foi

organizada às pressas, aumentando o efetivo de tropas do exército britânico baseadas

no Canadá de 5.000 para 17.658, e a marinha britânica elevou o número de navios de

guerra em águas norte-americanas de 25 para 40, totalizando de 1273 canhões (mais do

que o dobro dos 500 existentes antes da crise)42. Estas medidas tiveram dois propósitos:

39 Citado em Jones, “União em Perigo”, p. 85. 40 Jenkins, “War for the Union”, p. 214.41 Citado em Kenneth Bourne, “Britain and the Balance of Power in North America 1815-1908” (Berkley: University of

Califórnia Editora, 1967), p. 219.42 Os dados são de Warren, “Fountain of Discontent”, pp. 130, 136. Para uma visão genérica das atividades [sic]militares e

navais britânicas durante a Crise “Trent”, ver de Kenneth Bourne, “British Preparations for War with the North, 1861-1862”, English Historical review, Vol. 76, Nº. 301, (Outubro 1961).

2525

elas deram uma maior consistência e dimensão à diplomacia de Londres e, na

eventualidade de que a diplomacia viesse a falhar, teriam assegurado uma disposição e

mobilização de forças que permitiria à Inglaterra prevalecer num caso de conflito.

Londres adotou a diplomacia “big stick” por acreditar que uma política

excessivamente conciliatória simplesmente encorajaria os norte-americanos a impor

desafios cada vez mais sérios aos interesses britânicos43. Alem do mais, os dirigentes

políticos acreditavam que a determinação inglesa, sua credibilidade e reputação,

estavam em jogo em nível internacional, e não somente em suas relações com os

Estados Unidos. Os comentários do Secretário de Relações Exteriores, Lorde

Claredon, eram típicos deste sentimento: “Qual é a imagem . . . que nós vamos

apresentar aos olhos do mundo, se nos submetermos covardemente a este ultraje,

quando toda a humanidade sabe que nós deveríamos, sem hesitação, dar vazão à

nossa imaginação e a nossa bordada contra qualquer nação mais fraca . . . e que

prova adicional seria necessária da universal . . . crença de que nós temos dois

conjuntos de pesos e medidas a serem usados, de acordo com o poder ou fraqueza do

adversário”44. Portanto, podemos afirmar que “os britânicos estavam preparados para

aceitar o custo de uma guerra anglo-americana . . . ao invés da alternativa de sacrificar

o seu prestígio de grande potência, por causa de uma precipitada derrota

diplomática”45.

A política “linha dura” de Londres estava fortalecida por um “otimismo

generalizado em relação ao resultado final” de uma guerra anglo-americana46. A

Rainha Vitória declarou que uma guerra resultaria na “completa destruição dos norte-

americanos”, e o Secretário de Estado para Guerra, George Cornewall Lewis, declarou

que “nós iremos, logo, apagar com aço o sorriso de seus rostos”47.

43 Ferris, “Trent Affair”, p. 56; Wilbur Devereux Jones, “The American Problem in British Diplomacy 1841-1861”,(Londres: Macmillan 1974), p. 203. Em termos de teoria das relações internacionais, a visão que Londres tinha a respeitodas relações anglo-americanas baseava-se num modelo de deterrência, ao invés de um modelo progressivo [ouconstrutivo]. Ver de Robert Jervis, “Perception and Misperception in International Politics”, (Princeton: PrincetonUniversity Editora, 1976), pp. 58-111. Coexistindo de forma difícil com a visão positiva de uma comunidade anglo-americana, havia a imagem que os britânicos tinham dos Estados Unidos de uma vulgar democracia da plebe, a qualdeveria ser contida, pois do contrário diligenciaria por uma voraz e intimidadora política externa. Warren, “Fountain ofDiscontent”, pp. 47-51.

44 Citado em Bourne, “Balance of Power”, p. 247.45 Bourne, “British Preparations” , p. 631.46 Bourne, “Balance of Power”, p. 247.47 Citado em ibid, pp. 245-246.

2626

Palmerston, portanto, estava tranqüilo com relação ao transtorno imposto à União

pela política intransigente de Londres. Em seu ponto de vista, não importando se a

crise fosse resolvida pacificamente ou resultasse numa guerra, os interesses britânicos

estaria assegurados. Em carta à Rainha Vitória ele escreveu:

Se o Governo Federal acatar as exigências será honroso para aInglaterra e humilhante para os Estados Unidos. Se o GovernoFederal recusar-se a acatar, a Grã-Bretanha nunca esteve numasituação melhor para infligir um severo golpe e aplicar umalição aos Estados Unidos, que tão cedo não será esquecida48.

No final de 1861 a guerra contra a Confederação não estava indo bem para

Washington, e até então, o único grande engajamento terrestre, a primeira Batalha de

Manassas, tinha resultado numa humilhante derrota para o exército da União.

Em Londres, influenciada pelo Secretário de Estado para Assuntos Marítimos,

(que era um mestre em “torcer o rabo do leão” para obter um máximo efeito político no

âmbito doméstico), a posição da União era tida como hostil.

A União se ressentia, em particular, da proclamação de neutralidade feita pela

Rainha Vitória, em Maio de 1861, a qual o governo da União interpretava como um

reconhecimento britânico, “de facto”, quanto à independência dos estados

Confederados.

As notícias do aprisionamento de Mason e Slidell tiveram uma dupla

interpretação por parte da opinião pública nos estados da União. Inicialmente, teve o

efeito de reforçar o moral que estava combalido. Num segundo momento, a percepção

era a de que se tratava de um aviso à Inglaterra, para abster-se de interferir com a

forma pela qual a União conduzia a guerra contra a Confederação. Portanto, ainda que

alguns periódicos (notadamente o New York Times e o New York Daily Tribune)

instassem que Washington deveria conciliar com os ingleses, a opinião pública

favorecia fortemente uma política de assumir uma postura contra Londres, recusando-

se a soltar Mason e Slidell49.

48 Citado em Jenkins, “War for the Union”, p. 216.49 Ferris, “Trent Affair”, pp. 111-113.

2727

Em resposta à “linha dura” britânica, “um violento clamor pela guerra reverberou

através de todos os estados nortistas na América”50. Charles Francis Adams Jr., cujo

pai era o Embaixador norte-americano em Londres à época, escreveu posteriormente

sobre a questão: “Eu não me lembro, fazendo um retrospecto deste meio século . . . de

qualquer ocorrência que tenha arrebatado o povo norte-americano levando-o, inclusive

a perder, momentaneamente, a posse de seus sentidos, como ocorreu durante as

semanas que se seguiram à captura de Mason e Slidell”51.

O Governo Lincoln tinha conhecimento da força do sentimento antibritânico,

tanto no âmbito popular, quanto no Congresso (de fato, no início de dezembro o

Congresso promulgou uma resolução, conferindo ao Comandante do USS “San

Jacinto” uma condecoração por sua ação). Existem evidencias de que, para aplacar a

opinião pública, o presidente Lincoln estava inclinado a manter Mason e Slidell presos,

a despeito dos riscos desta linha de ação52. Não obstante, após uma cogitação com a

idéia de oferecer a Londres a opção de um arbítrio externo, numa tentativa de evitar os

extremos de uma guerra ou de uma humilhante derrocada, os Estados Unidos optaram

por submeter-se às exigências britânicas. Uma vez que também Washington “não

poderia recuar de maneira tão fácil”, é importante entendermos o porquê de ter

adotado esta linha de ação.

Os Estados Unidos curvaram-se a Londres porque, estando a União com seus

efetivos militares completamente envolvidos tentando subjugar os sulistas, não poderia

iniciar uma guerra em paralelo com a Inglaterra, o que fatalmente a colocaria no meio

da Guerra entre Estados, do lado dos Confederados53.

Esta circunstância foi plenamente reconhecida pelo governo Lincoln, quando da

reunião do seu Gabinete por dois dias, durante o período de Natal, para decidir qual

seria a resposta norte-americana à nota britânica. O Gabinete tinha diante de si duas

informações críticas. Em primeiro lugar, Washington acabara de receber a informação

50 Normas B. Ferris, “Desperate Diplomacy: William H. Seward’s Foreign Policy, 1861”, (Knoxville: University ofTennessee, 1976), p. 194.

51 Citado em Adams, “Britain and the Civil War”, Vol.I, p.218.52 Warren, “Fountain of Discontent”, pp.184-185; Adams, “Britain and the Civil War”. p.231. No entanto, Howard Jones

sugere que Lincoln, provavelmente, pretendia desistir de Mason e Slidell, e que ele teria, inclusive, assumido uma posturade transferir para outros membros do seu gabinete o ônus da argumentação de entregá-los. Jones, “Union in Peril”, pp.91-92.

53 Ferris, “Trent Affair”, pp. 177-182; Jenkins “War of the Union”, pp.223-226; Warren, “Foundation of Discontente”,pp181-182.

2828

de que a França apoiava as exigências feitas por Londres (pondo um fim às esperanças

norte-americanas de que a Inglaterra fosse ficar restringida por suas próprias

preocupações de que a França se aproveitaria de uma situação de guerra entre

Inglaterra e Estados Unidos)54. Em segundo lugar, Washington tinha informações em

abundância sobre a opinião pública inglesa em prol da guerra. O Embaixador norte-

americano em Londres, Charles Francis Adams escreveu que os ingleses: “estavam

incitados para a hostilidade”, e que, “os principais jornais, diariamente, expelem tanta

lava ardente quanto o Vesúvio. Os clubes, o exército, a marinha e o povo nas ruas de

uma forma geral estão delirantes com a idéia da guerra”55. O Senador Charles Sumner

encaminhou ao governo Lincoln correspondências dos notórios membros radicais do

Parlamento inglês, Richard Cobden e John Bright nas quais, ainda que lamentassem a

política de seu governo e o tom da opinião pública inglesa, enfatizavam que a guerra

seria inevitável, a não ser que os Estados Unidos cedessem às exigências de Londres.

Em sua correspondência Cobden cita:

Anteriormente, a Inglaterra temia uma guerra contra os EstadosUnidos, tanto por causa de vosso algodão, quanto pelo receio desua pólvora. Agora, a opinião pública, (por mais que estejaerrada), considera que será a guerra que irá nos assegurar oalgodão, e nós consideramos, é claro, que o poder de suapólvora esteja enfraquecido pela sua Guerra Civil56.

Diante das opções de desafiar Londres ou, sujeitar-se às suas exigências,

Washington foi compelida a reconhecer que a Inglaterra estava determinada a ir à

guerra, e que tal guerra resultaria na dissolução permanente dos Estados Unidos.

Durante as discussões no âmbito do Gabinete, o Promotor Geral Edward Bates

sugeriu que a Inglaterra estaria buscando a guerra contra os Estados Unidos, de modo a

quebrar o bloqueio nortista aos portos sulistas exportadores de algodão, declarando que

se preocupava com a possibilidade de Londres reconhecer a Confederação. Os Estados

Unidos, ele declarou, “não podem arcar com tal guerra”; e foi mais longe ainda

observando que: “numa crise como esta, com uma guerra civil como esta em nossas

mãos, não podemos ter a esperança de sermos bem sucedidos numa . . . guerra contra

54 Ver Jenkins, “War for the Union”, pp. 225-226.55 Citado em Ferris, “Trent Affair”, pp. 154, 147 e também pp.66-67, 139-141; Jones, “Union in Peril”, p.89. 56 Citado em ibid, p.172. A correspondência de Bright alertava: “Se vocês estão decididos a vencer o Sul, não entrem em

guerra com a Inglaterra”. Citado em Adams, “Britain and the Civil War”, p. 232 (ênfase constante da obra original).

2929

a Inglaterra, apoiada pelo consentimento e simpatia da França. Devemos nos afastar

disto — com o menor dano possível à nossa honra e orgulho”57.

O Secretário de Estado Seward concordou com esta postura, declarando que não

era “a ocasião para a União divergir de sua prudência, envolvendo-se em

controvérsias com outras potências, mesmo que houvesse bons argumentos para tal”58.

Quando os Estados Unidos se convenceram de que a ameaça inglesa de ir à

guerra não era um blefe, considerações de ordem estratégica e de interesse nacional —

o dilema de “atirar em pássaros59” — determinaram que Washington deveria ceder à

Inglaterra.

O resultado do caso “Trent” pode ser explicado pela Teoria Realista, e não pela

Teoria da Paz Democrática. Contrariamente às expectativas da Teoria da Paz

Democrática, o respeito mútuo entre democracias, enraizado nas normas e cultura

democráticas, não teve influencia na política britânica. Considerando que interesses

vitais de reputação, afetando a sua postura estratégica global estavam em jogo, Londres

adotou uma diplomacia linha dura, empregou o recurso de ameaças militares, e estava

preparada para ir à guerra se necessário fosse. Na Inglaterra, tanto o povo em geral,

quanto as elites, preferiam a guerra à conciliação.

Do outro lado do Atlântico, no norte dos Estados Unidos, tanto a opinião

pública, quanto a posição do governo, eram igualmente belicosas.

Um conflito anglo-americano só foi evitado porque o governo Lincoln entendeu

que uma humilhação diplomática era preferível à uma guerra que teria colocado a

Inglaterra do lado dos Confederados, o que, provavelmente, teria assegurado a

independência do Sul dos Estados Unidos.

57 Citado em ibid, p. 182.58 Citado em Jenkins, “War for the Union”, p. 224.59 [N.T.] Esta citação se refere à ume das formas da prática de tiro em pássaros, a partir de posições ocultas na periferia das

áreas lacustres onde as aves costumam permanecer.

3030

CRISE ANGLO-AMERICANA II — VENEZUELA 1895

Entre 1895-96 os Estados Unidos e a Grã-Bretanha viram-se envolvidos num

sério confronto diplomático, que se desenvolveu a partir de uma obscura e antiga

disputa entre Londres e Caracas com relação à fronteira com a Guiana Inglesa.

Por volta de 1895, Caracas vinha solicitando, desesperadamente, que Washington

pressionasse Londres a aceitar uma arbitragem para definir a disputa de fronteira, e o

governo Cleveland decidiu envolver os Estados Unidos, diplomaticamente, no meio do

desentendimento anglo-venezuelano, não por uma preocupação em relação aos

interesses venezuelanos, ou qualquer preocupação com relação ao mérito da questão60.

Para os Estados Unidos, a questão anglo-venezuelana era parte de um quadro

muito maior. Por volta de 1895, dirigentes políticos norte-americanos, conscientes da

condição dos Estados Unidos de potência emergente, estavam cada vez mais

preocupados com a interferência política e econômica da Europa no Hemisfério

Ocidental61, e Washington considerava que a controvérsia entre Londres e Caracas era

um bom pretexto para afirmar sua primazia geopolítica no Hemisfério Ocidental. Foi

por esta razão que os Estados Unidos resolveram colocar a disputa de fronteiras anglo-

venezuelana em pratos limpos62.

A posição norte-americana foi firmada em nota do Secretário de Estado Richard

Olney datada de 20 de julho de 1895 ao governo britânico63. Nesta nota os Estados

Unidos declararam que a sua “honra e seus interesses” estavam envolvidos na disputa

anglo-venezuelana, “cuja continuação não poderia ser tratada com indiferença”.

Washington exigia que Londres submetesse a questão a uma arbitragem. Empregando

termos grandiloquentes, Olney declarava que a Doutrina Monroe, não só conferia aos

60 Walter LaFeber demonstra que os Estados Unidos inseriram-se na crise para proteger os seus próprios interesses, e não osinteresses venezuelanos. LaFeber, “The New Empire: An Interpretation of American Expansion, 1860-1898” ( Ithaca:Cornell University Editora, 1963), Chap. 6.

61 O relacionamento entre as preocupações com a segurança e as políticas externa e estratégica dos Estados Unidos sãoanalisadas por Richard D. Challener em, “Admirals, Generals and Foreign Policy, 1898-1914”, (Princeton: PrincetonUniversity Editora, 1973) e em J.A.S. Grenville e George B. Young, “Politics, Strategy and American Diplomacy:Studies in American Foreign Policy, 1873-1917”, (New Haven: Yale University Editora, 1966).

62 Walter LaFeber, “The Background of Cleveland’s Venezuelan Policy: A Reinterpretation”, American Historical Review,Vol. 66 Nº. 4, (Julho 1961), p. 947; Ernest R. May, “Imperial Democracy: The Emergence of America as a Great Power”,(Nova York: Harcourt, Brace and World, 1961), p.34.

63 O texto completo da nota pode ser encontrado em “Foreign Relations of United States, 1895”, (Washington, D.C.: U.S.Government Printing Office), Vol. I, pp. 542-576.

3131

Estados Unidos o direito de intervir no assunto venezuelano, como também, num

âmbito maior, o de supervisionar64 todos os negócios do Hemisfério Ocidental.

Ao desafiar a Inglaterra, o Presidente Grover Cleveland e seu Secretário de

Estado compreendiam que estavam tomando um passo muito sério. Ainda que,

certamente, eles tivessem a esperança de lograr uma vitória diplomática por via

pacáfica, sua estratégia poderia ter redundado num confronto armado.

A nota de 20 de julho do Secretário de Estado Olney, (elogiada por Cleveland

como sendo “a melhor coisa daquele tipo que eu jamais li”), era deliberadamente

áspera e, como foi assinala Henry James, segundo o costume diplomático vigente,

Londres poderia, justificadamente, tê-la considerado como sendo um ultimato65. Mais

ainda, Washington pretendeu dar proclamação à nota de Olney.

Olney e Cleveland acreditavam que o emprego de uma linguagem forte chamaria

a atenção de Londres e que, utilizando a Doutrina Monroe como alavanca, os Estados

Unidos poderiam empurrar um acordo diplomático garganta abaixo dos ingleses66.

Esperavam, também, que Londres recuasse, e concordasse em levar a questão a uma

arbitragem, e desta forma, contavam que uma resposta positiva poderia ser anunciada,

quando da reconvocação do Congresso em dezembro.

Para a consternação do governo norte-americano, no entanto, Londres se recusou

a ceder às exigências. A resposta inflexível dada pelo Lord Salisbury [Sir Robert

Arthur Talbot Gascoyne-Cecil], Primeiro Ministro britânico e Secretário de Relações

Exteriores, serviu de argumento para a mensagem que Cleveland remeteu ao

Congresso em 17 de dezembro de 1895, na qual, mesmo reconhecendo que a

possibilidade de uma guerra anglo-americana era uma triste perspectiva, declarava que:

“. . .nenhuma calamidade que possa abater-se sobre umagrande nação se iguala à que decorre de uma submissão inerteao que é errado e à injustiça, com a conseqüente perda dorespeito próprio nacional e honra, sob os quais estão protegidose defendidos a segurança e grandiosidade de um povo.”

64 [N.T.] Tradução adotada para a palavra “superintend”.65 Henry James, “Richard Olney and his Public Service”, (Nova York: DeCapo Editora, 1971, ed. reimpressa), p. 109.

Cotação do Presidente Cleveland contida em Ernest May, “Imperial Democracy”, p. 40. 66 Gerald C. Eggert, “Richard Olney: Education of a Statesman”, (University Park: Pennsylvania State University Editora,

1974), pp. 202, 212-213.

3232

Cleveland defendia ardorosamente a validade da Doutrina Monroe, a qual

descrevia como vital para a segurança dos Estados Unidos e para a integridade de suas

instituições políticas internas. Ele declarou que se Londres impusesse sua jurisdição,

sobre qualquer território que os Estados Unidos determinassem como pertencente à

Venezuela, seria considerada uma “agressão intencional aos direitos e interesses

[norte-americanos]”.

Ao assumir essa posição, Cleveland declarou que estava “completamente ciente

da responsabilidade assumida, e que visualizava com precisão todas as conseqüências

que poderiam ocorrer”. No entanto, a despeito de sua forte retórica, Cleveland deixou

aos Britânicos algum espaço de manobra. Antes de sua ação contundente contra a

Inglaterra, ele declarou que os Estados Unidos iriam estabelecer uma comissão para

investigar a disputa anglo-venezuelana, e que Washington não tomaria qualquer

posicionamento, até que o relatório desta comissão fosse concluído e aceito.

Mesmo assim, o significado da mensagem de Cleveland era claro: os Estados

Unidos estavam dispostos a entrarem em guerra contra a Inglaterra, se necessário

fosse, de modo as assegurar a primazia norte-americana no Hemisfério Ocidental67.

Como assinalado por Kenneth Bourne, durante a Crise da Venezuela o risco de

uma guerra era bem real68.

Lorde Salisbury simplesmente rejeitou os termos para a resolução da crise

apresentados pela nota Olney datada de 20 de julho. Como escreveu J.A.S. Grenville:

“nada poderia ter sido mais claro que a réplica de Salisbury a Olney; os Estado Unidos

não têm motivos para interferir na disputa; a Doutrina Monroe não tinha o amparo de

um tratado internacional, e não tinha, de qualquer maneira, nada há ver com a

controvérsia; desta forma, o governo britânico continuaria a recusar a arbitragem das

reivindicações venezuelanas como um todo”69.

Lorde Salisbury tinha noção do risco de que Washington poderia manter-se

irredutível, e que desta forma, a crise iria escalar. Mas como Grenville assinala, ele67 Both Walter LaFeber e Ernest May chegam à esta conclusão. Ver em LaFeber, “The New Empire”, p. 268 e em May,

“Imperial Democracy”, p. 42. 68 Kenneth Bourne, “Balance of Power”, p. 319. Deve ser observado que nem todos os historiadores concordam com

Bourne. Por exemplo, J.A.S. Grenville argumenta que a crise venezuelana era artificial, e que não havia nenhum risco realde guerra durante a crise. Grenville, “Lord Salisbury and Foreign Policy at the Close of the Nineteenth Century”,(Londres: Athlone Editora, 1964), p.55. No entanto, em trabalho posterior, Grenville escreveu: “Considerando adisposição do Gabinete britânico . . . um sério conflito anglo-americano parecia inevitável.” Grenville e Young, “Politics,Strategy and American Diplomacy”, p. 169.

69 Grenville, “Lord Salisbury”, p. 63.

3333

estava disposto a correr esse risco porque “ele não acreditava que havia algum perigo

sério para a Inglaterra. O país e o império teriam se unido na defesa das possessões

britânicas, e diante de suas determinações, ele acreditava que os Estados Unidos

desistiriam”70. Ou Washington entenderia o significado da disparidade entre o seu

poder militar e o britânico, ou então os Estados Unidos seriam derrotados.

No final de 1895, Inglaterra e Estados Unidos estavam nitidamente num rumo de

colisão, e é quase certo que um conflito ocorreria se a Inglaterra tivesse mantido a

linha política adotada por Lorde Salisbury em novembro de 1895. Londres, no entanto,

não agiu desta forma, e já no final de janeiro de 1896, Londres e Washington iniciaram

um processo diplomático que culminou em novembro de 1896 num acordo amigável

das diferenças anglo-americanas.

A questão crucial é: Por que a Inglaterra, subitamente, inverteu o seu rumo no

início de 1896?

Apesar de não haver uma evidência incontestável, circunstâncias concorrentes

apóiam a opinião de consenso entre os historiadores de que a Inglaterra foi impedida

de ir à guerra em 1896, devido a uma desfavorável distribuição de capacidade militar

vis-à-vis os Estados Unidos, e devido a uma deteriorante situação internacional.

De acordo com ressalva feita pelo Lorde Salisbury, Londres ficou preocupada

com o resultado de uma guerra anglo-americana devido à incapacidade britânica, em

face de outras ameaças já existentes, de deslocar navios de guerra para reforçar a sua

presença naval em águas norte-americanas; devido a receio de que o Canada fosse

conquistado pelos Estados Unidos; e devido ao receio de que, numa guerra prolongada,

os Estados Unidos teriam a possibilidade de forçar uma situação de empate, e

possivelmente até prevalecer, devido ao seu enorme poder econômico71.

Mais ainda, entre novembro de 1895 e meados de janeiro de 1896, a posição

internacional da Inglaterra sofreu uma acentuada mudança para pior: “no início de

1896, a Inglaterra estava completamente isolada, e a sua posição era extremamente70 Ibid, p. 65.71 Ver Bourne, “The Balance of Power in North America”, p. 340-341; A.E. Campbell, “Britain and the United States”, pp.

29-40; Eggert, “Richard Olney”, pp. 232-233; Paul Kennedy, “The Realities Behind Diplomacy: Background Influenceson British External Policy, 1865-1980”, (Londres: George Allen & Unwin, 1981), pp. 107-109; Arthur J. Marder, “TheAnatomy of British Sea Power: A History of British Naval Policy in the Pré-Dreanought Era, 1880-1905”, (Nova York:Knopf, 1940), pp. 254-257. Numa carta escrita, no início de janeiro de 1896, a Theodore Roosevelt, Lorde Brycedeclarava que nada poderia estar mais afastado das mentes de seus compatriotas, do que a interferência nos direitos norte-americanos ou no equilíbrio de poder hemisférico por que: “temos nossas mãos mais do que suficientemente cheias emoutros lugares”. Citação contida em A.E. Campbell, “Britain and the United States”, pp. 59-60.

3434

frágil”72. As relações anglo-germânicas haviam entrado numa crise causada pelo

“telegrama de Krueger73”, enviado pelo Kaiser Wilhelm II na esteira do “Assalto de

Jameson” na região do Transvaal na África do Sul. Em outras áreas, as ameaças dos

principais rivais britânicos, Russia e França, pareciam ser apenas um pouco menos

ameaçadoras.

Diante de um novo contingenciamento internacional, a Inglaterra concluiu que

deveria estabelecer um acordo com Washington, porque não poderia arcar com outro

inimigo. Numa reunião critica do Gabinete britânico, em 11 de janeiro de 1896, o

Lorde Salisbury manteve-se fiel à sua política de “não negociação”, estabelecida em

novembro do ano anterior, mas os seus colegas de Gabinete decidiram resolver a crise

com Washington em termos pacíficos.

Como assinalam Grenville e Young: “Em novembro eles acreditavam que a

Inglaterra tinha um melhor conjunto de cartas nas mãos, mas agora, o sentimento não

era mais o de confiança. Agora, o Gabinete estava inclinado a eliminar as perdas

britânicas num mundo que parecia ter se tornado, subitamente, hostil”.74

Sobrepujado pelo Gabinete, Lorde Salisbury — acreditando que uma eventual

guerra com os Estados Unidos era algo mais do que uma possibilidade —

aparentemente começou a considerar a sua renuncia do cargo de Primeiro Ministro75.

72 Marder, “Anatomy of British Sea Power”, p. 257.73 [N.T.] Em 29 de dezembro de 1895 o Dr. Leander Starr Jameson, um súdito inglês na África do Sul, lidera umas força

expedicionária invadindo o Transvaal, uma região contígua a Possessão Britânica da África do Sul, para pressionar ogoverno Bôer estabelecido naquela região, no sentido de conceder à população local, de origem não holandesa, algumarepresentação política naquele governo. Essa presença militar inglesa resultou num incremento da autoridade britânica naárea, e ainda que as autoridades britânicas tivessem tentado, sem sucesso, impedir Jameson de prosseguir em sua ação,ele e seus homens complicaram ainda mais a situação inglesa, tendo perdido a maior parte de seus homens em duasbatalhas contra os “afrikaner” ou “boers”. Após essas derrotas, e sem ter a perspectiva de reforços, Jameson interrompe asua invasão não oficial, e se rende ao Comandante Bôer. Este evento ficou conhecido como o “Jameson Raid”. Na manhãde 3 de janeiro de 1896 a imprensa mundial noticiou o evento, criticando a Inglaterra com alegações de que: mais uma veza mão direita do Império Britânico desconhece o que a mão esquerda faz. Nesta ambiência, em 3 de janeiro de 1896, oKaiser Wiilhelm II envia uma mensagem de congratulações a Stephanus Johannes Paulus Kruger, Presidente da repúblicaBôer do Tranvaal, cumprimentando-o por ter conseguido repelir, com suas próprias forças, os “bandos armados” querhaviam invadido o seu país, mantendo-o, assim, independente de agressões externas. Porém nas entrelinhas, a mensagemcondenava a ação de Jameson como uma ação do imperialismo britânico, sugerindo uma aliança ao Governo Bôer, emdeprimento da influência britânica na área. Porém essa mensagem era para ser enviado de Chefe de Estado para Chefe deEstado, de forma privada, porém, inexplicavelmente Wilhelm envia a mensagem pelo telégrafo, cujas linhas passavam,forçosamente, por uma operadora de retransmissão inglesa. Alguns historiadores acham que essa ação de Wilhelm foiproposital, não para constranger a Inglaterra por uma ação imperialista, mas para mostrar o quanto ela estava isolada ,tentando convencê-la a aliar-se a um parceiro continental, como por exemplo a Alemanha. Mas o “tiro saiu pela culatra” eisto provocou uma onda de protestos na Inglaterra, pressionando o governo a abrir negociações com a França e a Russia,num contexto europeu que se subdividia rapidamente em diversas alianças competindo entre si.

74 Grenville e Young, “Politics, Strategy and American Diplomacy”, p. 170; Grenville, “Lord Salisbury”, pp. 67-69. 75 Ver em J. L. Garvin, “Life of Joseph Chamberlain”, (Londres: Macmillan, 1934), Vol. III, p. 161; Citação de Salisbury

contida em Bourne, “The Balance of Power in North America”, p.339.

3535

Com relação à crise relatada, praticamente não há qualquer evidência que dê

sustentação à pertinência da Teoria da Paz Democrática no desenrolar da crise

venezuelana. Embora a crise tenha terminado antes que Londres ou Washington

tivessem feito ameaças de guerra, tanto os Estados Unidos, quanto a Inglaterra, fizeram

planejamentos militares para um possível conflito76. Isto sugere que os dirigentes

políticos, tanto norte-americanos, quanto ingleses, consideraram que a guerra, ou pelo

menos a preparação para tal, era um componente legítimo de suas estratégias

diplomáticas.

Não parece, também, que a opinião pública tenha afetado a política em qualquer

dos lados do Atlântico. As exigências feitas pelo governo de Cleveland foram

recebidas na Inglaterra com hostilidade. Não obstante, antes mesmo de janeiro de

1896, a opinião pública inglesa, em sua esmagadora maioria, era favorável a um

acordo pacífico para a crise anglo-americana. Não, há, no entanto, qualquer evidência

nos registros históricos de que a opinião pública tenha tido qualquer efeito sobre a

decisão do Gabinete, em 11 de janeiro, de resolver a crise pacificamente.

De fato, durante a Crise da Venezuela, a elite de dirigentes políticos tinha uma

visão diferente das relações anglo-americanas da visão do povo inglês em geral, e mais

ainda, havia um enorme hiato entre os defensores de uma reaproximação anglo-

americana, baseada na semelhança racial, “e o realismo dos cabeças-duras da escola de

estrategistas e políticos profissionais encabeçada por Salisbury77”.

Do lado norte-americano, a mensagem belicosa enviada por Cleveland, em 17 de

dezembro, evocou um amplo apoio público. Como assinala Walter LaFeber: “Os norte-

americanos com uma mentalidade expansionista endossaram de coração a mensagem

do presidente, embora a sua grande maioria compartilhasse de suas esperanças de que

não haveria uma guerra78”.

No entanto, o entusiasmo público rapidamente diminuiu, e importantes grupos,

especialmente as igrejas e alguns elementos dos setores financeiros e de manufatura,

recuaram ante a perspectiva de uma guerra anglo-americana.

76 Tanto a Inglaterra, quanto os Estados Unidos, fizeram planejamentos visando a uma guerra norte-americana no início de1896. O planejamento norte-americano enfocava a invasão a invasão do Canadá, e o Britânico a sua defesa. Ver Bourne,“The Balance of Power in North America”, pp. 319-331.

77 Bourne, “Balance of Power”, p. 340. Marder, em “Anatomy of British Sea Power”, pp. 254-255, mostra que as elitesbritânicas, ligadas à segurança nacional, adotaram um postura bastante linha dura durante a Crise da Venezuela.

78 LaFeber, “New Empire”, p. 270.

3636

Não obstante, se a guerra tivesse ocorrido, o povo norte-americano,

provavelmente, teria se unido em torno do governo Cleveland. A opinião pública

norte-americana vislumbrava a perspectiva de uma guerra contra a Inglaterra “sem

entusiasmo; todavia, por mais lamentável que fosse, se não houvesse nenhum outro

caminho para o estabelecimento da posição suprema dos Estados Unidos no

Hemisfério Ocidental, a guerra seria necessária.”79

Gerações mais recentes já chegam a considerar o “relacionamento especial”

anglo-americano como uma decorrência imutável da vida. De fato, de alguma forma

este relacionamento é considerado o modelo protótipo de relações entre dois Estados

democráticos. A “grande reconciliação”, em torno do qual o citado relacionamento

especial foi construída, forjou-se no epílogo da Crise da Venezuela.

Mas seja lá qual for o tipo de relação anglo-americana que discutivelmente se

desenvolveu, o ímpeto pela reconciliação entre Londres e Washington (assim como o

ímpeto pela obtenção de um acordo para a Crise da Venezuela) foi originado, como

assinala C. S. Campbell, por preocupações geoestratégicas e não por considerações

associadas à Teoria da Paz Democrática.

Já em 1898, os efeitos do já não mais tão esplendido isolacionismo britânico

fazia-se sentir de forma dolorosa, e as aberturas de Londres em relação a Washington

devem ser interpretadas como parte do dramático processo estratégico e diplomático do

“fim do isolamento”, assumido após a Guerra Bôer80.

79 A.E. Campbell, “Britain and the United States”, p. 41.80 Existe um grande consenso quanto a este ponto entre os historiadores da diplomacia. Bourne, “Balance of Power”, pp.

409-410; A.E. Campbell, “Britain and the United States”, pp. 208; C.S. Campbell, “Anglo-American Understanding”,p.346, 184-185; Bradford Perkins, “The Great Rapprochement: England and the United States, 1895-1914”, (Nova York:Atheneun, 1968), pp. 156-157; Kennedy, “Realities Behind Diplomacy”, pp. 118-119.

Charles S. Campbell, “Anglo-American Understanding, 1898-1903”, (Baltimore: Johns Hopkins UniversityEditora, 1957), pp.8-24. Kenneth Bourne and Paul Kennedy assinalam que muitos dos mesmos fatoresnão estratégicos subjacentes à reconciliação anglo-americana (interdependência econômica anglo-saxônica) estavam fortemente presentes desde, pelo menos, 1850. No entanto, eles não tiveram nenhumefeito perceptível de mitigara hostilidade anglo-americana. Esses fatores só entraram em cena após amudança na situação internacional ter forçado Londres a reavaliar a sua grande estratégia. Bourne, “Bal-ance of Power”, p.343; Kennedy, “Realities Behind Diplomacy”, p.118.

3737

Os ingleses não aceitavam de bom grado a rápida expansão do poder norte-

americano, mas optaram por se ajustar a uma situação que eles não poderiam evitar, e

que, ao contrário dos desafios representados por Alemanha, Russia e França, não

parecia constituir uma ameaça imediata aos interesses vitais ingleses.

A reconciliação anglo-americana foi possível, porque em cada um dos temas em

disputa, Londres cedeu às exigências de Washington. Como Bourne observa

secamente, “tudo isso não foi simples, nem talvez indicador de qualquer boa fé com

relação aos Estados Unidos.”81 A Inglaterra não podia mais arcar com qualquer outro

inimigo, e menos ainda, podia Londres incorrer numa inimizade com os Estados

Unidos, em relação a quem os ingleses sabiam que não podiam mais competir em

termos geopolíticos.

Para Londres, o “relacionamento especial” era uma forma mítica idealizada para

“permitir que a Inglaterra recuasse de forma elegante”, daquelas áreas onde os

interesses britânicos se chocassem com os norte-americanos, e a sua função era a de

tornar a “pílula” de apaziguar os Estados Unidos mais palatável82.

O resultado da Crise da Venezuela é mais bem explicado pela Teoria Realista do

que pela Teoria da Paz Democrática. Consistentemente às explicações realistas, tanto a

Inglaterra, quanto os Estados Unidos, começaram a fazer planos para uma guerra.

Embora, como é preconizado pela Teoria da Paz Democrática, não tivesse havido uma

febre de guerra nos Estados Unidos ou na Inglaterra, não há qualquer evidência de que

a opinião pública tenha tido qualquer participação no processo decisório de Londres.

Foi a decisão de Londres de reverter sua postura intransigente, buscando alcançar

uma solução diplomática amigável com Washington, que permitiu à Inglaterra e os

Estados Unidos evitar a guerra. Todas as evidências disponíveis suportam a explicação

da teoria Realista de que Londres tomou esta decisão, única e exclusivamente, por

razões estratégicas.

81 Bourne, “Balance of Power”, p. 343.82 Ronald Hyam, “Britain’s Imperial Century, 1815-1914: A Study of Empire and Expansion”, (Londres: B.T. Batsford,

1976), pp. 202, 205; C.J. Lowe and M.L. Dockrill, “The Mirage of Power: British Foreign Policy, 1902-1914”, Vol. I,(Londres: Routleg and Kegan Paul, 1972), p. 99.

3838

A LUTA ANGLO-FRANCESA PELO CONTROLE DO NILO —FASHODA, 1898

A Crise Fashoda marcou o ponto culminante da luta anglo-francesa pela

supremacia sobre o Egito e região das cabeceiras do rio Nilo83.

Até 1882 o Egito, embora fosse nominalmente parte do Império Otomano, vinha

sendo administrado por um condomínio anglo-francês. Neste mesmo ano, no entanto, a

Inglaterra interveio unilateralmente para suprimir uma revolta nacionalista. Como o

Canal de Suez era uma artéria vital, ligando a Inglaterra à India e a seus demais

interesses imperialistas no oriente, considerações de natureza estratégica suplantaram a

tendência inicial de Londres de se retirar rapidamente do Egito, após a intervenção de

1882.

No início de 1890, lorde Salisbury e demais dirigentes políticos haviam

estabelecido que, de modo a salvaguardar o Egito, a Inglaterra teria que exercer o

controle sobre a região da cabeceira do Rio Nilo, bem como, sobre toda a sua bacia.

Para a França, a primazia britânica sobre o Egito pós-1882 constituía uma afronta

e, incitada pelo Partido Colonialista Francês, Paris, periodicamente, buscava encontrar

meios de compelir Londres a honrar o seu compromisso de se retirar do Egito.

O motivo imediato da expedição francesa a Fashoda parece ter surgido de uma

conferência, em janeiro de 1893, proferida pelo engenheiro hidráulico Victor Prompt

83 Para maiores informações sobre a Crise Fashoda e seus antecedentes, as fontes listadas a seguir são excelentes: WilliamL.Langer, “The Diplomacy of Imperialism, 1890-1902”, 2ª Ed. (Nova York: Knopf, 1965), pp. 101-144, 259-302; RonaldRobinson and John Callagher com Alice Denny, “África and the Victorians: The Oficial Mind of Imperialism”, (Londres:Madmillan, 1981, Ed. Rev.) , pp. 76-159, 290-306; G.N. Sanderson, “England, Europe and the Upper Nile, 1882-1899”,(Edimburgo: Edinburgh University Editora, 1965), Cap. 12-15; e Sanderson, “The Origins and Significance of the Anglo-French Confrontation at Fashoda”, em Prosser Gifford and William Roger Louis, eds., “France and Britain in Africa:Imperial Rivalry and Colonial Rule” (New Haven: Yale University Editora, 1971), pp. 285-332.

[N.T.] Em junho de 1882 ocorreram diversos levantes em Alexandria, causando a morte de diversoscidadãos europeus lá residentes. Os ingleses retaliaram unilateralmente. Na seqüência, ocorreu umarebelião no Exército egípcio, e já em agosto do mesmo ano, o governo pró-britânico de Khedive Tewfik foideposto, tendo Said Ahmed Arabi, um oficial nacionalista do exército egípcio, assumido o poder. Em facedesta situação os ingleses inicialmente assumiram o controle do Canal de Suez, artéria vital para a suaeconomia, e desta forma o exército britânico assumiu a condição de uma força de ocupação. Estaintervenção marcou o fim da cooperação anglo-francesa sobre o Egito. Aproveitando-se da conturbadasituação de crise, Mahdi colocou-se contra o Governador britânico Gordon, derrotando-o assumindo, destaforma, o controle sobre o Sudão, até que o General Kitchener o derrotou na Batalha de Omdurman. Desdeentão o Egito permaneceu sob domínio inglês, até alcançar a sua independência em 1922.

3939

no Instituto Egípcio em Paris, na qual, era sugerido que o fluxo de água para o Egito

poderia ser restringido através de represas que fossem instaladas Nilo acima. Após

rever o discurso de Victor Prompt, o Presidente francês Sadi Carnot exclamou: “nós

devemos ocupar Fashoda!”84.

O plano para uma ofensiva sobre Fashoda foi avidamente abraçado por Theophile

Delcassé, durante o seu primeiro mandato como Vice-Secretário e depois, como

Ministro para as Colônias. Como jornalista e como político, ele fora um obcecado pela

questão egípcia. Para Delcassé e outros colonialistas franceses, o prestígio da França e

seus interesses na área do Mediterrâneo, exigiam o fim da ocupação britânica no

Egito85.

Em 1896, o Major Fuzileiro Naval Jean-Baptiste Marchand desenvolveu um

plano, compreendendo uma expedição por terra, visando estabelecer o controle francês

em Fashoda86. O plano foi aprovado pelo Ministro das Relações Exteriores Gabriel

Hanotaux e pelo Ministro Colonial Emile Chautemps.

Eles não queriam precipitar um confronto armado com os ingleses, e favoreciam

um eventual entendimento (“entente”) e a reconciliação anglo-francesa. No entanto,

eles estavam convencidos de que a opinião pública francesa não aceitaria um

entendimento, a não ser que ambas as potências pudessem alcançar um acordo em

relação aos pontos em disputa, incluindo o Egito. Portanto, para Hanotaux e Delcassé,

a expedição Fashoda fora concebida como um instrumento para forçar os ingleses a

negociarem a questão egípcia, e desta forma, aumentar o poder e prestígio da França.

Em setembro de 1898, Delcassé era Ministro das Relações Exteriores, e a

possibilidade de um conflito começou a tornar-se mais real. Todavia, ele ainda tinha a

esperança de que a crise poderia ser revertida, (caso Marchand não conseguisse

alcançar o seu objetivo ou, se a expedição francesa encontrasse forças inglesas em seu

caminho), através de um acordo entre Londres e Paris, e não militarmente pelo

confronto de forças em Fashoda.

84 Citação contida em A.J.P. Taylor, “Prelude to Fashoda: The Question of the Upper Nile, 1894-5”, English HistoricalReview, Vol. 65, Nº. 254 (janeiro 1950), p. 54.

85 Christopher Andrew, “Theophile Delcassé and the Making of the Entente Cordiale: A Reappraisal of French ForeignPolicy, 1898-1905”, (Nova York: Macmillan, 1968), pp. 21-25.

86 [N.T.] Cidade atualmente conhecida pelo nome Kodok, localizada no SE do Sudão, na região também conhecida peladesignação de Nilo Branco.

4040

Aparentemente, confiando na reputação de Salisbury de fazer “concessões por

graça”, Delcassé esperava esfriar a crise trocando um recuo de Marchand pelo

consentimento britânico em reabrir a questão egípcia, para discuti-la, dando à França

uma saída no Nilo87.

Os ingleses, no entanto, não tinham qualquer intenção de negociar. A posição de

Londres era simples: “Marchand deveria recuar, sem mais delongas ou qualquer

iniciativa diplomática para salvar as aparências.”88

Os dirigentes políticos franceses iludiram-se com a idéia, de que tomando

Fashoda poderiam forçar Londres a negociar a questão egípcia89. Desde março de

1895, quando Londres recebeu as primeiras insinuações relativas às pretensões

francesas na região das cabeceiras do Nilo, Sir Edward Grey, então o Vice-Secretário

de Relações Exteriores, declarava de forma simples e direta que tal movimento “seria

uma ação não amigável e desta forma seria vista em Londres.”90

Na Primavera de 1898, em resposta a informes de que a França estava se

movimentando na região da cabeceira do Nilo, Londres decidiu empreender uma

completa reconquista do Sudão.

Após uma vitória em Cartum, o Marechal de Campo Lorde Kitchener recebeu

ordens para avançar na direção de Fashoda, com instruções específicas de que , na

eventualidade de encontrar forças francesas, não fizesse nada “que pudesse, de alguma

forma, implicar num reconhecimento, por parte do governo de Sua Majestade, de

algum direito em favor da França . . . a qualquer porção territorial no Vale do Nilo.”91

Em 19 de setembro de 1898, as forças de Kitchener alcançaram Fashoda, onde

foram recepcionadas por Marchand com uma banda. Embora as forças em oposição

tratassem umas as outras com esmerada cortesia militar, o seu encontro colocou

Londres e Paris numa profunda crise diplomática. A “rixa anglo-francesa não era com

relação à Fashoda, ou em relação à sorte do Sudão, e nem mesmo com relação à

87 Christoipher Andrew, “Theophile Delcassé and the Making of the Entente Cordiale: A Reappraisal of French ForeignPolicy, 1898-1905”, (Nova York: Macmillan, 1968), p. 100; Roger Glenn Brown, “Fashoda Reconsidered: The Impact osDomestic Politics on the French Policy in Africa”, (Baltimore: Johns Hopkins University Editora, 1970), pp. 92-93.

88 Robinson and Gallagher, “Africa and the Victorians”, p. 371. 89 Langer, “Diplomacy of Imperialism”, pp. 550-551. 90 Citação contida em James Goode, “The Fashoda Crises: A Survey of Anglo-French Imperial Policy on the Upper Nile

Question, 1882-1899”, (Ph.D. diss. North Texas State University, 1971), p. 150; e Darrell bates, “The Fashoda Incident of1898: Encounter on the Nile”, (Nova York: Oxford University Editora, 1984), p. 24.

91 A citação relativa às ordens de Lorde Salisbury foi retirada de Robinson and Callagher, “Africa and theVictorians”, p.368.

4141

segurança das águas do Nilo ou do Egito; a rixa era em relação ao status relativo de

potência entre França e Inglaterra.”92

Uma vez que a crise se estabeleceu, Delcassé rapidamente reconheceu que a

França estava numa posição insustentável. O embaixador britânico em Paris relatou a

Londres, que Delcassé estava “preparado para uma retirada . . . se nós pudermos

construir para ele uma ponte de ouro”.93 Delcassé, por sua vez, acreditava que o seu

espaço de manobra estava seriamente circunscrito pela situação política doméstica na

França, potencialmente volátil, por causa do Caso Dreyfus.

Para Delcassé, aceitar uma humilhante derrota diplomática, provavelmente

significaria a queda do Gabinete de Brisson, além de (o que era também um receio

generalizado), poder constituir um pretexto para a ocorrência de um golpe militar94.

Delcassé, repetidamente, implorou a Londres, “não me deixem encurralado num

canto.”95 Em 11 de outubro Delcassé disse ao embaixador britânico que, se Londres

facilitasse as coisas para ele, “de mesma forma ele seria conciliatório.”96 Em 27 de

outubro, o embaixador francês em Londres, relatando a Salisbury que Marchand em

breve deixaria Fashoda, apelou no sentido de que a Inglaterra fizesse, em troca, alguma

concessão97.

Enquanto isso, a despeito do tom suplicante da diplomacia francesa e das

possíveis repercussões da postura britânica na política interna francesa, Londres se

recusava, inflexivelmente, a dar a Paris uma alternativa, à fria opção de determinara a

Marchand uma retirada humilhante, ou então ir à guerra.

92 Sanderson, “Origins and Significance os Fashoda”, p. 289. 93 Citação contida em Sanderson, “The Upper Nile”, p.346. 94 Brown, “Fashoda Reconsidered”, pp. 99-100, 127. 95 Citação contida em T.W. Riker, “A Survey os British Policy in the Fashoda Crisis”, Political Science Quaterly, Vol. 44,

Nº. 1 (março 1929), p. 3. 96 Citação contida em Keith Eubank, “The Fashoda Crisis Re-examined”, The Historian, Vol. 22 Nº. 2 (fevereiro 1960), p.

152.97 Citação contida em ibid, p. 154.

[N.T.] O Caso Dreyfus foi um escândalo político que dividiu a França durante muitos anos dirante o séculoXIX. O caso girou em torno da condenação por traição, em 1894, de Alfred Dreyfus, um oficial de artilhariajudeu do exército francês. Dreyfus era de fato inocente, e a condenação se baseou em falsos documentos,e quando oficiais de alta patente se deram conta deste fato, tentaram encobrir os seus erros. O escritorEmile Zola expôs o caso ao público em geral no periódico literário “L’Aurore”, através de uma famosa cartaaberta ao “President de la Republique Félix Faure” intitulada “J’accuse”, datada de 13 de janeiro de 1898.Nas palavras da historiadora Barbara W. Tuchman, foi “uma das grandes comoções da história”.

4242

Em 18 de setembro, o embaixador britânico em Paris disse categoricamente a

Delcassé, que Londres não iria aceitar qualquer concessão na disputa relativa à

Fashoda98.

Em 30 de setembro, respondendo a uma declaração de Delcassé de que a França

preferia lutar a submeter-se ao ultimato britânico, o embaixador britânico reiterou que

não poderia haver qualquer discussão, até que Marchand se retirasse de Fashoda.

Salisbury estava disposto a compelir, ao invés de persuadir, os franceses a se retirarem.

A linha dura da diplomacia de Londres era esmagadoramente apoiada por uma

opinião pública belicosa. Mesmo antes de Fashoda, devido às tensões geradas pela

rivalidade colonial anglo-francesa, “uma guerra com a França, ainda que não fosse

desejada na Inglaterra, seria aceita sem hesitação, se a ocasião assim o determinasse.”99

Uma vez iniciada a crise, a imprensa apoiou de forma esmagadora a decisão do

governo de recusar negociações com a França, e durante a crise “a imprensa britânica

de cunho popular deliciou-se numa orgia de grosserias.”100 “Havia abundância de

espírito propenso à guerra no país”, e a opinião pública inglesa estava “agressivamente

xenófoba” com relação a Fashoda101. “A inequívoca expressão da opinião britânica”

estava solidamente sustentando a política linha dura do gabinete102. E isso, sem dúvida

alguma, era verdade, porque o público inglês acreditava que o prestígio da Inglaterra

estava em jogo, e consequentemente, [a Inglaterra] estava “com a disposição para

responder vigorosamente” ao desafio francês103.

O ânimo popular era igual ao da elite política britânica. Como declarou o

Chanceler Exchequer104 Michael Hicks Beach em 19 de outubro, “O país fincou os

seus pés no chão.”105 A postura intransigente do governo era fortemente apoiada pelos

liberais imperialistas da oposição, notadamente pelo Lorde Rosebery H.H. Asquith, e

98 Citação contida em Robinson and Callagher, “Africa and the Victorians”, p. 370.99 Ibid, p. 372.100 Ibid; Ricker, “British Policy in the Fashoda Crisis”, pp. 65-67; Sanderson, “The Upper Nile”, p. 348.101 Robinson e Callagher, “Africa and the Victorians”, p.376; Sanderson, “The Upper Nile”, p. 354.102 Ricker, “British Policy in the Fashoda Crisis”, pp. 66-67.103 Sanderson, “Origins and Significance of Fashoda”, pp.295, 300. 104 [N.T.] O Chanceler Exchequer (ou simplesmente o Chanceler) é o terceiro cargo ministerial mais antigo na Inglaterra, e

historicamente suas atribuições incluíam a política monetária e a política fiscal, mas estas atribuições foram extintasquando o Banco da Inglaterra ganhou autonomia do governo em 1997. Atualmente uma das principais atribuições doChanceler compreende a composição do orçamento anual, o qual é apresentado na Casa dos Comuns, através de umdiscurso oficial

105 Citação contida em Langer, “Diplomacy and Imperialism”, p. 553.

4343

por Sir Edward Grey106. Rosebery, um ex Primeiro Ministro, e ex Secretário de

Relações Exteriores, relembrava que o seu Gabinete, já em 1895, havia alertado os

franceses para se manterem afastados das cabeceiras do Nilo, declarando que qualquer

gabinete que mostrasse indícios de buscar uma conciliação com Paris com relação à

Fashoda, seria substituído no prazo de uma semana.

De fato, na reunião crítica de Gabinete, ocorrida em 27 de Outubro, quando

Salisbury deu a impressão para alguns de seu colegas de Gabinete, de que estaria se

inclinando na direção de um acordo com Paris, a maioria dos Ministros, rapidamente,

jogou água fria na idéia, e foi determinado ao Almirantado que colocasse a marinha em

estado de prontidão para a guerra.

Os ingleses sabiam que se Paris não capitulasse ocorreria um conflito. Londres

considerava essa perspectiva com tranqüilidade, e de fato, com confiança. Como os

ingleses acreditavam que tanto a credibilidade, quanto a reputação da Inglaterra como

grande potência estavam em jogo, eles sentiam que não tinham alternativa que não

fosse ir até o fim com a França: “caso os ingleses tivesses adotado uma política menos

intransigente, de acordo com as circunstâncias em 28 de outubro, certamente teria

ocorrido uma predisposição, não só em Paris, mas também em São Petersburgo e

Berlim, para considerar Londres como uma potência que nunca arriscaria entrar numa

guerra, a despeito do tamanho da provocação.”107

Em outubro de 1898, a marinha inglesa gozava de uma superioridade decisiva

sobre a esquadra francesa, tanto em número, quanto em qualidade, e o resultado de

uma guerra anglo-francesa seria um fato predeterminado108.

Londres não manifestou qualquer tipo de relutância em demonstrar a sua

vantagem estratégica. Durante o mês de outubro, a Marinha Real se empenhou nos

preparativos para uma guerra contra a França109. Em 15 de outubro, a Esquadra do

Canal foi reunida. Em 26 de outubro, a Marinha Real já tinha elaborado planos de

guerra detalhados. Em 28 de outubro o Esquadrão Naval de Reserva foi ativado e

concentrado em Portland; logo após, a Esquadra do Canal foi deslocada para Gibraltar,

106 Langer, “Diplomacy of Imperialism”, pp. 552-553; Robinson and Gallagher, “Africa and the Victorians”, pp.376-378;Riker, “British Policy in the Fashoda Crisis”, p.67; Sanderson, “The Upper Nile”, p. 347.

107 Sanderson, “Origin and Significance of Fashoda”, pp.301-302.108 Sobre as vantagens da Marinha Real e a confiança de Londres no poder naval britânico, ver Marder “Anatomy of British

Sea Power”, pp. 320-331; Langer, “Diplomacy of Imperialism”, pp. 559-560. 109 Marder, “Anatomy of British Sea Power”, pp. 321-328.

4444

e a Esquadra do Mediterrâneo foi deslocada para Malta. Quando o conhecimento

dessas medidas chegou ao conhecimento de Paris, através de informes de inteligência e

de notícias na imprensa inglesa, causou uma forte preocupação nos dirigentes políticos

franceses.

Não havia dúvidas de que a França fora, finalmente, compelida a aceitar uma

escorchante derrota diplomática devido a sua inferioridade militar, vis-à-vis a

Inglaterra. O poder da Marinha Real contrastava de forma nítida com as deficiências

numéricas e qualitativas, além da falta de preparo, da esquadra francesa.

Quando Paris computou a assimetria existente na comparação de poderes

militares, um constrangedor recuo diplomático emergiu como uma alternativa mais

atraente do que uma derrota decisiva numa guerra110.

Como foi admitido por Delcassé, ele e o Presidente da República Faure foram

compelidos a determinar que Marchand retraísse devido à “necessidade evitar uma

guerra naval, para a qual éramos absolutamente incapazes, mesmo que contássemos

com a ajuda russa.”111

Ao final, “Delcassé não tinha qualquer alternativa real que não fosse ceder. Uma

guerra contra a Inglaterra, a não ser que feita a título de um gesto irracional, não era

uma opção possível.”112 O resultado da Crise Fashoda foi, como nas palavras de

Grenville, “uma demonstração do poder inglês e da fraqueza francesa.”113

O resultado da Crise Fashoda pode ser explicado pela Teoria Realista, e não pela

Teoria da Paz Democrática. Acreditando que interesses vitais, tanto estratégicos,

quanto de reputação, estavam em jogo, a Inglaterra descartou qualquer acomodação

diplomática com Paris, a despeito dos apelos de Delcassé para que fosse concedida

uma saída honrosa para que a França pudesse deslindar-se da crise.

A intransigência britânica vai frontalmente contra as expectativas da Teoria da

Paz Democrática, de que as relações entre Estados democráticos são governadas pelo110 Dois outros fatores pesaram, consideravelmente, a favor dos britânicos: em primeiro lugar, Kitchener dispunha de uma

enorme superioridade na região de Fashoda, em relação a Marchand; em segundo lugar, A Russia, aliada da França,deixou claro que não apoiaria Paris e, de qualquer forma, mesmo que São Petersburgo quisesse intervir, haveria muitopouca coisa que a Marinha Russa poderia fazer para compensar a superioridade marítima britânica. Ver Langer,“Diplomacy of Imperialism” pp. 559-563; Marder, “Anatomy of British Sea Power”, pp. 323, 328-329. Como observaPaul Kennedy, “todas as melhores cartas estavam nas mãos da Inglaterra.” Kennedy, “Realities Behind Diplomacy”,pp.112-113.

111 Citação contida em Andrew, “Theophile Delcassé”, pp. 102-103. A reação de Faure aos preparativos navais ingleses édescrita em Brown, “Fashoda Reconsidered”, pp. 115-116.

112 Sanderson, “The Upper Nile”, p. 362.113 Grenville, “Lord Salisbury”, p. 218.

4545

respeito mútuo, baseadas em normas e na cultura democráticas comuns. Contando com

um forte apoio da opinião pública e da elite, Londres adotou uma política que deixou

Paris com duas severas opções: a humilhação diplomática ou, uma derrota militar em

guerra.

Contrariamente às explicações da Teoria da Paz Democrática, mas

consistentemente com as da Teoria Realista, a Inglaterra fez ameaças militares, e

estava preparada para cumpri-las contra a França. Paris submeteu-se às exigências

britânicas ao invés de engajar-se numa guerra que não poderia vencer.

4646

A CRISE FRANCO-GERMÂNICA: O “RUHR” 1923

A ocupação do “Ruhr” foi o ponto culminante da paz fria que caracterizou o

período pós-1918, e “praticamente representou a renovação da guerra.”114

A ocupação surgiu do conflito entre a política de segurança francesa e a política

germânica de perseverar numa revisão do sistema criado pelo Tratado de Versalhes. A

questão quanto às reparações de guerra foi a causa imediata para a ocupação francesa

do “Ruhr”. Apesar do significado econômico da região, a sua real importância era que,

tanto Berlim quanto Paris consideravam-na o símbolo de uma competição geopolítica

latente.115

No entender de Paris, obrigar a Alemanha a cumprir estritamente suas obrigações

de reparação era crucial para a manutenção do sistema criado pelo Tratado

Versalhes116. Além do mais, as reparações constituíam, como ficou demonstrado pela

ocupação do “Ruhr”, uma alavanca para a França modificar o Tratado Versalhes em

seu favor, pela imposição de sanções políticas e territoriais à Alemanha, quando

Berlim não honrou com os seus pagamentos.

Para a Alemanha, obter modificações nas reparações era uma brecha para abrir a

questão relativa à uma completa revisão de todo o arcabouço do Tratado de Versalhes.

As políticas de “metas” adotadas por Berlim, tinham sido projetadas para forçar uma

revisão do tratado, pela demonstração de que o cumprimento estrito das obrigações de

reparação estava aquém da capacidade alemã e, inevitavelmente, levaria a Alemanha a

um colapso econômico e financeiro117.

114 Royal J. Schmidt, “Versailles and the “Ruhr”: Seedbed of World War II”, (Haia: Martinus Nijhoff, 1968), p. 17; marshalM. Lee e Wolfgang Michalka, “German Foreign Policy, 1917-1933: Continuity or Break?”, (Leamington Spa, U.K.:Berg, 1987), p. 47; Detlev J. K. Peukert, “The Weimar Republic: The Crisis of Classical Modernity”, trans. RichardDevenson (Nova York: Hill and Wang, 1992), p. 61; hermann J. Rupieper, “The Cuno Government and Reparations,1922-1923: Politics and Economics”, (Haia: Martinus Nijhoff, 1979) p. 96.

115 Peukert, “Weimar Republic”, p. 55; Marc Trachtenberg, “Reparations in World Politics: France and EuropeanEconomic Diplomacy, 1916-1923” (Nova York: Columbia University Editora, 1980), p. 122; Stephan A. Schuker, “TheEnd of French predominance in Europe: The Financial Crisis of 1924 and the Adoption of the Dawes Plan”, (ChapelHill: University of North Carolina Press, 1976), p. 6.

116 [N.T.] O sistema criado pelo Tratado de Versalhes é a designação dada ao regime econômico e político estabelecido apósa 1ª Guerra Mundial, que se propunha a assegurar a paz na Europa e segurança para todos os povos.

117 Sobre a estratégia de Berlim de buscar uma revisão no tratado através do desempenho, ver David Felix, “WaltherRathenau and the Weimar Republic: The Politics of reparations”, (Baltimore: Johns Hopkins University Editora); eRupieper, “The Cuno Government”.

4747

Embora a Alemanha tivesse sido derrotada, e seu poder, em curto prazo, estivesse

contido pelo Tratado de Versalhes, as fontes básicas de sua força geopolítica — a sua

base industrial e sua população — permaneceram intactas. Os dirigentes políticos

franceses estavam obcecados quanto à ressurreição de uma ameaça de origem alemã à

sua segurança, e estavam determinados a prevenir esta possibilidade, através da

imposição de restrições militares, territoriais e econômicas à Alemanha.

A política francesa do pós-guerra com relação à Alemanha, estava enraizada nos

mesmos propósitos que Paris tinha perseguido durante a guerra. Desde 1915, o

Ministro das Relações Exteriores Delcassé tinha vislumbrado o desmantelamento do

“Reich” alemão em diversos Estados menores, combinado com a anexação por parte da

França, Holanda e Bélgica, das terras na margem esquerda do Reno118.

No final de 1917119, Paris decidiu deixar um Reich já dilacerado intacto, enquanto

anexava as regiões da Alsácia-Lorena e do Saar, criando um território satélite francês

independente na região do “Rhineland”.120 A segurança econômica e política da França

seriam ampliadas pela imposição de reparações à Alemanha, e pelo controle do aço e

do carvão, que eram essenciais para a sua supremacia industrial do Leste europeu.

Após a guerra, os objetivos franceses não tinham mudado. Paris visava a

segurança militar, as reparações de guerra e o estabelecimento da França como o líder

europeu na fabricação de aço.

Em Versalhes, para evitar uma dissensão por parte da Inglaterra e dos Estados

Unidos, a França abandonou suas aspirações de anexação na região da “Rhineland”; no

entanto, durante todo o período desde o armistício até a ocupação do “Ruhr”, Paris

apoiava de forma dissimulada a separação da região do Reno, ao mesmo tempo em que

continuava a acumular esperanças de controlar a sua margem esquerda121.

Mesmo que aparentemente tenha abandonado as demandas territoriais francesas

na “Rhineland”, o Primeiro Ministro francês Clemanceau manteve-se fiel à essência

118 D, Stevenson, “French Wars Aims Against Germany, 1914-1919”, (Oxford: Clarendon Editora, 1982), pp.26-27. 119 Para maiores dados sobre os propósitos de guerra dos franceses ver Walter A. McDougall “France’s Rhineland

Diplomacy, 1914-1924: The last Bid for a balance of Power in Europe”, (Princeton: Princeton University Editora, 1978),p. 25; Schmidt, “Versailles to the “Ruhr””, p. 231.

120 [N.T.] “Rhineland” é o nome genérico dado para as terras localizadas em ambas as margens do rio Reno na região oesteda Alemanha. Originalmente este termo tinha uma conotação apenas geográfica, mas adquiriu, principalmente com a 1ªGuerra Mundial, alguma conotação política e cultural.

121 Stevenson, “French War Aims”, pp. 195-196. A referência definitiva da política francesa com região à região do Reno éMcDougall, “Rhineland Diplomacy”.

4848

daquela pretensão original, ao inter-relacionar as reparações de guerra às questões de

segurança: por considerar que, sob as cláusulas do Tratado de Versalhes, na medida em

que a Alemanha não cumprisse as suas reparações, as tropas francesas poderiam

permanecer na “Rhineland”.

A política do governo francês em relação à Alemanha tinha um forte apoio da

opinião pública, que exigia um acordo de paz que impusesse as maiores restrições

possíveis no poder e influência da Alemanha, e esta “germanofobia” do povo francês

estendeu-se por todo o período pós-guerra.

O povo e os dirigentes políticos tinham a convicção de que a Alemanha deveria

ser forçada a reembolsar a França em todas as despesas que ela teve, relacionadas com

a guerra, (incluindo a reconstrução do território francês ocupado pela Alemanha), e

neste sentido, as opiniões pública e oficial se reforçavam. De fato, a opinião pública

francesa, a qual o Primeiro Ministro francês Raymond Poincaré se esforçou muito para

moldar, era tão anti-alemã no final de 1922, que seria duvidosa a sua sobrevivência

política se ele não tivesse implementado a ocupação do “Ruhr”122.

A invasão militar do “Ruhr” pela França foi deflagrada pela sua crescente

frustração, decorrente da campanha alemã para obter uma significativa redução de suas

obrigações de reparação de guerra. Embora haja alguma controvérsia quanto à natureza

exata dos objetivos de Poincaré ao ocupar o “Ruhr”, a opinião que prevalece é que ela

foi empreendida numa tentativa de antecipar a realização dos propósitos franceses de

revisão do sistema Do Tratado de Versalhes em seu favor.

A ocupação do “Ruhr” pretendia, de forma clara, ampliar a segurança francesa,

enfraquecendo a economia alemã, e ao mesmo tempo, possibilitando que Paris

realizasse sua ambição de tornar a França a potência econômica líder na Europa.

No mínimo, Paris tinha a esperança de que a ocupação do “Ruhr” inflamaria o

sentimento separatista da região do Reno, levando à separação da “Rhineland” do

“Reich”. Existem algumas evidências de que a ocupação do “Ruhr” foi executada para,

especificamente, antecipar os propósitos franceses de anexar a “Rhineland” e de

122 Rupieper, “The Cuno Government”, pp. 88, 96; Schmidt, “From Versailles to the “Ruhr””, p. 52.

4949

dissolver o “Reich”123. Assim que a Crise do “Ruhr” for deflagrada, a França passou a

encorajar ativamente os separatistas da região do Reno.

Na Crise do “Ruhr”, para a atender seus interesses de segurança, a França não

hesitou em usar o seu poder militar contra uma democrática Alemanha de Weimar. De

fato, o que é notório no período compreendido entre 1915, (quando os dirigentes

políticos franceses começaram a pensar sobre os seus objetivos de guerra), e 1923 é a

sistemática rejeição francesa à argumentação de que a segurança francesa no pós-

guerra estaria assegurada se a Alemanha fosse transformada numa democracia.

Ao contrário dos ingleses que, logo após o término da guerra passaram a acreditar

que uma Alemanha democrática era a chave para a manutenção da paz na Europa, a

França preferia questionar a democracia como agente pacificador, a abandonar sua

estratégia de proteger a sua segurança por intermédio de garantias palpáveis. Como é

citado por Walter McDougall:

O “Quai d’Orsay [Ministério das Relações Exteriores francês]percebia pouca conexão entre formas de governo e políticasexternas. A idéia “wilsoniana” de que as democracias optampor políticas externas pacíficas, ao passo que regimesautoritários são agressivos, encontrou poucos discípulos nogoverno ou nas forças armadas francesas . . . Uma Alemanhaforte e unificada, fosse ela monarquista ou republicana,representaria uma ameaça à França, e certamente dominaria aseconomias das regiões do Danúbio e dos Bálcãs124.

A ocupação militar francesa do Ruhr provocou uma crise de grandes proporções

— para não se falar de uma guerra franco-alemã, ou pelo menos uma quase guerra. A

guerra de fato só foi evitada porque os alemães não tinham capacidade para

empreendê-la. Mesmo assim, os alemães resistiram ferrenhamente à ocupação.

Se havia alguma coisa que unia os irascíveis alemães da República Weimar era o

ódio em relação ao sistema do Tratado Versalhes, e a determinação de desconsiderá-lo.

Os alemães acreditavam que o movimento francês visava à dissolução do Reich.

Devido à fraqueza militar germânica, o “Reichswehr”, [organização militar de

defesa da Alemanha no pós-guerra], descartou qualquer política de resistência ativa à

123 McDougall argumenta que a separação da região do Reno do Reich era a esperança de Poincaré, porém não era o seupropósito específico na operação do “Ruhr”. McDougall, “Rhineland Diplomacy”, pp. 247-249. Schmidt argumenta quePoincaré empreendeu a ocupação do “Ruhr” com os propósitos específicos obter o controle territorial permanentedo“Ruhr” e da “Rhineland” e de promover a desintegração do “Reich”. Schmidt, “From Versailles to the Ruhr”, pp. 232-233.

124 McDougall, “Rhineland Diplomacy”, p. 114.

5050

ocupação francesa; no entanto, foram dados passos para facilitar uma resistência

militar na eventualidade dos franceses tentarem avançar além do Ruhr125.

Embora fosse incapaz de se opor ao poder militar francês, o governo de Berlim

adotou uma política de resistência à ocupação francesa, baseada na não cooperação de

trabalhadores, funcionários civis e de ferroviários com as autoridades de ocupação

francesas. A resistência, no entanto, não foi inteiramente passiva; o Reichswehr

coordenou uma ativa campanha de sabotagem contra as forças de ocupação

francesas126.

De modo a sustentar a resistência, o governo de Berlim forneceu à população do

“Ruhr” alimentos e subsídios para desempregados. Esta resistência passiva foi

financiada através da impressão de papel moeda, uma prática que veio a deflagrar o

colapso financeiro da Alemanha, (devido à hiperinflação e o concomitante colapso do

Marco), condição esta que, em última análise, compeliu Berlim a abandonar a sua

resistência à ocupação do “Ruhr”.

Em longo prazo, a ocupação do “Ruhr” teve efeitos ainda mais importantes no

âmbito da política interna e da opinião pública alemã. A política linha dura praticada

pela França fortaleceu a posição dos partidos nacionalistas de direita na Alemanha, e

favoreceu o descrédito na democracia de Weimar.

A Crise do “Ruhr” representa um forte argumento que não confirma a Teoria da

Paz Democrática. Ao final de 1ª Guerra Mundial, tanto o povo, quanto as elites

francesas, perceberam a Alemanha como uma grande ameaça à segurança da França e

seu pretendido status de grande potência, mesmo sendo a Alemanha de Weimar uma

democracia. O que importava para a França era o poder latente da Alemanha, e não a

sua estrutura política doméstica.

Contrariamente às previsões da Teoria da Paz Democrática, a política francesa

em relação à democrática Alemanha não refletia qualquer respeito mútuo baseado nas

normas e culturas democráticas que se supõe, seria demonstrado nas relações entre

esses dois Estados. Ao contrário, movidos por preocupações estratégicas, os franceses

empregaram o seu poder militar de forma coerciva, para defender o sistema do Tratado125 Ver F.L. Carsten, “The Reichswern and Politics, 1918 to 1933”, (Oxford: Clarendon Editora, 1966) pp. 154-155. Os

preparativos alemães incluíram a mobilização de suas unidades da reserva, (cuja existência era ilegal nos termos doTratado de Versalhes), a aquisição de aviões de caça da Holanda, de hidroaviões da Suécia e o treinamento de unidadessecretas para a condução de operações de guerrilha por de traz das linhas de qualquer ofensiva francesa além do Ruhr.

126 Ibid, pp. 154-155.

5151

de Versalhes, do qual eles acreditavam, dependia a sua segurança, ao invés de confiar

a sua segurança nacional na esperança de que as instituições de uma Alemanha

democrática do pós-guerra mitigariam as conseqüências geopolíticas que sublinhavam

a disparidade de poder entre Alemanha e França.

5252

CONCLUSÕES TEÓRICAS

Proponentes da Teoria da Paz Democrática têm feito amplas reivindicações a

favor desta teoria, extraindo dela importantes conclusões, quanto à formulação de

diretrizes políticas. No entanto, essas reivindicações repousam em alicerces frágeis.

Os estudos de caso apresentados submetem, tanto a Teoria da Paz Democrática

quanto a Teoria Realista a um teste consistente. É surpreendente, [para não dizer

contraditório] como em cada um desses quatro casos, tenha sido a Teoria Realista, e

não a Teoria da Paz Democrática, a explicação mais convincente do por que da guerra

ter sido evitada. De fato, os indicadores da Teoria da Paz Democrática aparentemente

não tiveram qualquer participação perceptível no resultado dessas crises.

Em cada uma dessas crises, pelo menos um dos Estados democráticos envolvidos

estava preparado para ir à guerra, (ou como no caso da França em 1923, para usar o

poder militar de forma coercitiva), por acreditar ter interesses vitais estratégicos ou de

reputação em jogo.

Em cada uma dessas crises, a guerra foi evitada, unicamente, devido a um dos

lados ter recuado na eminência de sua eclosão, não por causa de um espírito de

resolução pacífica de disputas, do tipo “viva e deixe viver”, existente no corpo da

Teoria da Paz Democrática, e sim, devido a fatores Realistas.

Um balanço desfavorável de poder militar explica o porquê da França não ter

lutado por Fashoda, como também, o porquê da Alemanha ter resistido passivamente a

ocupação francesa do “Ruhr”, ao invés de ter imposto uma resistência ativa pela

ameaça ou uso da força.

As preocupações de que outros pudessem tomar vantagem da guerra (o dilema de

atirar em pássaros127) explica o porquê de a Inglaterra ter recuado na Crise da

Venezuela, assim como a União ter se submetido ao ultimato britânico, na Questão

“Trent”.

Quando procuramos ver além dos resultados dessas quatro crises, (“democracias

não lutam contra democracias”) e procuramos entender o porquê dessas crises terem

127 Ver pág. 31, Nota de Fim de Página nº. 59.

5353

tido os seus resultados específicos, torna-se claro que a logical causal da Teoria da Paz

Democrática tem, apenas, um limitado poder explicativo.

Embora Teoria da Paz Democrática prescreva uma correlação entre estrutura

política interna e a ausência de guerras entre democracias, ela não consegue

estabelecer um link de causa e efeito. Como a lógica dedutiva da Teoria da Paz

Democrática carece de poder explicativo, exige-se um exame mais apurado no suporte

empírico desta teoria, para nos certificarmos se a evidência é tão forte quanto dizem.

A evidência estatística de que democracias não lutam entre si parece

impressionante, mas na verdade, ela é inconclusiva, porque o universo de casos

proporcionando a sustentação empírica para a Teoria da Paz Democrática é pequeno, e

também, porque diversos casos, em que ocorreu guerra entre Estados democráticos não

são considerados, e esta segregação se dá por razões que não são convincentes.

QUAL O TEMANHO DO UNIVRSO PARA SUSTENTAR A TEORIA DA PAZ

DEMOCRÁTICA?

A Teoria da Paz Democrática propõe a sua validação a partir de um grande

número (“N”) de casos, compreendendo todos os possíveis conflitos, ao longo da

história, entre dois estados democráticos, que chamaremos de duelos democráticos.

Portanto, Suíça e Suécia, ou Áustria e Israel contariam como sendo duelos

democráticos, validando a Teoria da Paz Democrática.

O resultado desta contabilização é o surgimento de um grande número de

inteirações com pouco ou nenhum conflito entre democracias. A despeito do que

reivindica a Teoria da Paz Democrática, o universo de casos que a suportam é na

realidade pequeno, e existem três razões para tal afirmação.

Em primeiro lugar, no período de 1815 a 1945 existiam poucas democracias e,

portanto, o número de possíveis inteirações, e neste caso o valor da “N” sofre uma

redução adicional, se consideramos somente o caso de confrontos envolvendo duas

grandes potências democráticas.

Em segundo lugar, porque a possibilidade de que qualquer confronto (seja ele

democrático, misto ou não democrático) evolua para uma guerra é pequena, pois as

guerras são ocorrências relativamente raras [sic].

5454

Estados em geral, e até mesmo grandes potências, não gastam a maior parte do

seu tempo em guerra128. Como assinala David Spiro, se é fato que as nações preferem

não ir à guerra, a proposição de que as democracias não lutam enter si perde muito do

seu significado pela escassez empírica. Spiro ainda afirma que: partindo-se do

pressuposto que as nações raramente estão em guerra, e que os duelos entre liberais

constituem uma pequena proporção do número total de possíveis duelos entre Estados-

Nação, então, o que deveria surpreender seria a possibilidade de democracias, sequer,

entrarem em guerra, ao invés da ausência de guerras entre democracias129.

Em terceiro lugar, nem todas as crises entre dois Estados são originadas ou se

desenvolvem da mesma forma. Para servir de teste para a Teoria da Paz Democrática,

uma crise será significativa, se representar uma situação em que exista uma real

possibilidade de dois Estados entrarem em guerra, e para tal, é necessário que, em

relação à pelo menos um dos Estados, exista o elemento da oportunidade, (a habilidade

de projetar poder sobre o oponente), e uma razão para tal. Somente as crises que

preencham essas precondições podem ser inseridas num universo apropriado de casos,

a partir dos quais a Teoria da Paz Democrática seria testada.

GUERRAS ENTRE DEMOCRACIAS — GRANDES EXCEÇÕES NUM UNIVERSO

PEQUENO.

O valor de “N” é uma questão importante. Se o universo de casos a partir do qual

a Teoria da Paz Democrática por ser testada é representado por um valor de “N”

pequeno, a importância das exceções à regra de que democracias não lutam entre si é

mais significativa, e com relação a este aspecto, os teóricos da paz democrática

reconhecem que estão numa posição delicada.

Um exemplo da fragilidade deste posicionamento é a classificação da Guerra de

1812 como um conflito que não envolveu duas democracias.

128 Sobre o acentuado declínio na freqüência de guerras entre grandes potências, durante os últimos dois séculos, ver Jack S.Levy , “War and the Modern Great Power System, 1945 – 1975”, (Lexington: University of Kentucky Editora, 1983),chap 6.

129 David E. Spiro, “The Insignificance of the Liberal Peace”, International Security, Vol. 19, Nº. 2 (Outono 1994), pp.50-86. Spiro conclui que a evidência estatística da paz liberal é fraca: ou os dados são ambíguos, ou uma oportunidade doacaso, iria prever a ausência de guerras entre democracias. Spiro é simpatizante da Teoria da Paz Democrática. Ele sugereque a tendência dos Estados liberais de se aliarem, ao invés de se oporem, é um fator importante, estando, provavelmente,enraizado nas normas liberais.

5555

Bruce Russett argumenta que esta classificação “pode parecer um recurso pobre e

arbitrário”, mas o referido autor afirma que este não é o caso.

Em casos como este, é a flexibilidade intelectual — o constante jogo de palavras

e de conceitos envolvendo definições e categorias — o recurso que permite a teóricos

da paz democrática negarem a evidência de que Estados democráticos tenham entrado

em guerra130.

Um importante exemplo da citada flexibilidade intelectual está relacionado à

Guerra entre Estados [ver Nota nº. 33 à pág. 24], a qual os teóricos da paz democrática

descartam, com base na alegação de que foi um conflito interno, no âmbito de um

Estado, ao invés de um conflito internacional entre Estados soberanos131.

130 Um bom exemplo é de James L. Ray, “Wars Between Democracies: Rare or Nonexistent?”, International Interactions,Vol. 18, Nº. 3, (1993), pp. 251-276. Após reajustar a definição de democracia, Ray examina resumidamente cinco dasalegadas 19 exceções à regra de que Estados democráticos não lutam entre si, e conclui que nos últimos 200 ou 250 anos,não existem exceções à regra.

131 Russet argumenta (Grasping the Democratic Peace, p, 17) no entanto, que após a secessão a Guerra de Secessão assumiua categoria de um conflito internacional entre duas entidades democráticas soberanas. Assim era considerada pelosobservadores (e se os Confederados tivesse vencido, assim também seria considerada nos dias de hoje). Por exemplo,ninguém menos do que o Primeiro Ministro britânico, William Gladstone o arquiaopostolo do Liberalismo britânico,

[N.T.] Os Estados Unidos declararam guerra contra a Grã Bretanha em 12 de junho de 1812, emdecorrência a um acúmulo de disputas com a Grã Bretanha. O evento que deflagrou a declaração deguerra foi o aprisionamento de soldados americanos pelos ingleses. Os ingleses, dois anos antes, játinham atacado o USS Chesapeak, quase que provocando uma guerra. Adicionalmente, existiam disputascontínuas com a Grã Bretanha com relação aos territórios na região nordeste dos Estados Unidos,fronteiriça ao Canada. Finalmente, as tentativas da Inglaterra de impor um bloqueio à França, durante asGuerras Napoleônicas era uma constante fonte de atrito entre os Estados Unidos e a Inglaterra. Estaguerra é considerada uma das guerras esquecidas dos Estados Unidos. Ela durou dois anos tendoterminado da mesma forma que começou, num impasse ou empate forçado. Pelo menos, foi uma guerraque, de uma vez por todas, confirmou a independência dos Estados Unidos. Todas as ações ofensivasnorte-americanas empreendidas para conquistar o Canada falharam, assim como o exército inglês foiimpedido de capturar Baltimore e Nova Orleans. Durante esta guerra ocorreu um grande número devitórias navais norte-americanas, nas quais os navios norte-americanos provaram ser superiores aosnavios de porte semelhante da marinha inglesa, tendo constituído o evento marco de lançamento dastradições navais norte-americanas.

Bruce Russet em “Grasping the Democratic Peace”, p. 16, cita que: Seja como for, as vezes as coisassão exatamente como parecem. Russet exclui a Guerra de 1812 com base no argumento de que, antes daLei de Reforma de 1832, a Inglaterra não era uma democracia. Mesmo assim, até a “revolução” que se seguiu à eleição para presidente de Andrew Jackson em 1828, osEstados Unidos também não eram significativamente mais democratas que a Inglaterra. O Federalista e aprópria Constituição, em seus dispositivos para o estabelecimento de um Colégio Eleitoral e eleiçãoindireta para Senadores, reflete o desejo dos idealizadores de circunscrever os impulsos democráticosigualitários. Nos Estados Unidos do início do século XIX, o voto era significativamente restringido pelaposse de propriedade e outras qualificações impostas pelo Estado. Ver Clinton Williamson, “American Suf-frage: From Property to Democracy, 1750 to 1860” (Princeton: Princeton University Editora, 1960); PaulKleppner, et al., “The Evolution of American Electoral Systems”, (Westport, Conn.: Greenwood Editora,1981).

5656

Ainda assim, os eventos entre 1861 e 1865 parecem especialmente relevantes,

porque a teoria baseia-se, explicitamente, na premissa de que as normas e a cultura que

atuam entre democracias são por elas exteriorizadas, em suas relações com outros

Estados democráticos132. A própria Teoria da Paz Democrática torna relevante a

questão quanto a se as normas e culturas democráticas, de fato, produzem a resolução

pacífica de disputas entre democracias.

A Guerra entre Estados fere o coração da lógica causal Teoria da Paz

Democrática: se as normas e culturas democráticas falharam na prevenção da eclosão

de uma guerra civil [sic] no âmbito de uma democracia, por que razão deve-se

acreditar que estas mesmas normas irão prevenir a eclosão de guerras entre Estados

democráticos?

No caso da União e da Confederação as características centrais da Teoria da Paz

Democrática — o espírito democrático fundamental de respeito por outras

democracias, uma cultura política que enfatiza a resolução não violenta de disputas, os

benefícios comuns da cooperação, e o efeito restritivo do debate aberto e da opinião

pública — não conseguiram, de forma evidente, assegurar um desenrolar pacífico.

De fato, se no âmbito e uma democracia tão profundamente enraizada — política,

econômica e culturalmente — como a que existia nos Estados Unidos em 1861,

ocorreu uma partição resultando em dois Estados em conflito, este fato nos leva a ter

pouca confiança de que a democracia irá prevenir conflitos entre grandes potências,

onde prevalece uma ambiência política internacional que se caracteriza por ser

anárquica, competitiva e de auto-ajuda [isolacionista].

Um exemplo ainda mais significativo é o tema relacionado ao questionamento se

a Alemanha de Wilhelm I era uma democracia. Mesmo que a 1ª Guerra Mundial fosse

o único exemplo de democracias lutando umas contra as outras, seria uma exceção tão

berrante à Teoria da Paz Democrática, que poderia até invalidá-la.

Como até mesmo Michael Doyle admite, o tema quanto a se a Alemanha de

Wilhelm I era uma democracia é um “caso difícil”133. E de fato, é um caso tão difícil,

observou que: “Jefferson Davis e outros líderes do Sul, criaram um exército; aparentemente eles estão fazendo umamarinha; e eles construíram algo ainda maior, eles fizeram uma nação.” Citação contida em James M. McPherson, “BattleCry of Freedom: The Civil War Era”, (Nova York: Oxford University Editora, 1988), p.552.

132 A Teoria da Paz Democrática “estende para a arena internacional as normas culturais de ‘viver e deixar viver’ e aresolução pacífica de conflitos que atua entre democracias.” Ibid, p. 19.

133 Doyle, “Kant, “Liberal Legacies and Foreign Affairs”, Parte I, p. 216, fn 8.

5757

que numa nota de rodapé, Doyle cria uma nova categoria para enquadrar a Alemanha

de Wilhelm I — qual seja, uma democracia bifurcada. Em suas palavras, a Alemanha

era democrática com relação às políticas domésticas, mas não na ambiência da política

externa134. Doyle não considera a Alemanha Imperial tenha sido uma democracia para

os propósitos de sua política externa, porque o executivo não era responsável pelo

“Reichstag” [N.T. designação dada ao Parlamento alemão], e conseqüentemente, o

processo de elaboração da política externa era, segundo sua argumentação, autocrático.

No entanto, no que concerne à política externa, a Alemanha de Wilhelm I era tão

democrática quanto a França e a Inglaterra. Em todos esses países, a condição social

(pertencer à aristocracia) ou um berço de classe média alta e a posse de uma fonte de

riqueza independente, eram pré-requisitos para o serviço no corpo diplomático e nas

assessorias políticas importantes nos gabinetes de relações exteriores135.

Em todos os três países, a política externa era isolada do controle e críticas

parlamentares, devido a prevalência da opinião de que os assuntos externos estava

acima da política.

Na França democrática, o Ministro de Relações Exteriores gozava de uma virtual

autonomia em relação ao Legislativo, e até mesmo em relação a membros do

Gabinete136. Como assinala Christopher Andrew, “em raras ocasiões, quando um

ministro pensava em levantar uma questão de política externa, durante uma reunião de

Gabinete, ele já estava acostumado à observação “senhores, não nos deixemos

preocupar com isso; são atribuições do Ministro das Relações Exteriores e do

Presidente da República.”137

Os tratados e acordos similares eram ratificados pelo Presidente da República

(quer dizer, pelo Gabinete), e o Legislativo não tinha qualquer participação no134 Ibid. Eu não me refiro ao tema de se qualquer Estado pode, de fato, ter uma compartimentação de sistema político, tão

rígida, que o possibilite ser democrático com relação à política interna, e não ser, em relação à política externa. Eu nãoconheço nenhum outro caso de democracia bifurcada. Se esta concepção de democracia bifurcada fosse aceita, osproponentes da Teoria da Paz Democrática poderiam defender os seus argumentos, afirmando que enquanto democráticano âmbito da política interna, a Inglaterra e a França de 1914, assim como a Alemanha de Wilhelm, também eram nãodemocráticas em termos de política externa.

135 Ver Lamar Cecil, “The German Diplomatic Service, 1871-1914” (Princeton: Princeton University press, 1976); PaulGordon Lauren, “Diplomats and Bureaucrats: The First Institutional Responses to Twentieth Century Diplomacy inFrance and Germany”, (Stanford: Hoover Institution Editora, 1976), pp. 27-29; Frederick L. Schuman, “War andDiplomacy in the French Republic: Na Inquiry into Political Motivations and the Control of Foreign Policy”, (NovaYork: Whittlesy House, 1931); Zara S. Steiner, “The Foreign Office and Foreign Policy, 1898-1914”, (Cambridge:Cambridge University Editora, 1969); e Steiner, “The Foreign Office under Sir Edward Grey”, em F.H. Hinsley, ed,“British Foreign Policy Under Sir Edward Grey”, (Cambridge University Editora, 1977), pp. 22-69.

136 Schuman, “War and Diplomacy”, pp. 21, 28-32.137 Andrew, “Theophile Delcassé”, p.64

5858

processo de elaboração do tratado, (ainda que o Senado tivesse o direito de perguntar e

de ser informado dos termos do tratado, até o ponto que fosse permitido pela segurança

nacional)138. Além do princípio formal de responsabilidade ministerial, o Legislativo

francês não possuía mecanismos para, efetivamente, supervisionar ou revisar a conduta

da política externa governamental139.

Até mesmo na França democrática, o Executivo gozava de um poder

desimpedido no âmbito da política externa. Essa concentração de execução da política

externa no Executivo teve um profundo efeito sobre a cadeia de eventos que levou à 1ª

Guerra Mundial. Os termos da aliança e convenção militar franco-russa — a “aliança

fatídica” que assegurou que uma guerra entre Russia e Áustria nos Bálcãs não poderia

manter-se localizada — foram mantidos em segredo do Legislativo, do público e da

imprensa140.

Na democrática Inglaterra, assim como na França e na Alemanha, as decisões

críticas de política externa eram tomadas sem consultar ao Parlamento. A despeito das

profundas implicações que poderiam ter quaisquer conversas de Gabinete entre

Inglaterra e França, elas foram iniciadas (extra-oficialmente) em janeiro de 1906, e

seus mentores, o Secretário de Relações Exteriores, Sir Edward Grey, e o Primeiro

Ministro H. H. Asquith, não informaram ao Gabinete a existência dessas

conversações141. Grey e Asquith temiam (e com razão) que a maioria no Gabinete opor-

se-ia às conversações, e até mesmo à idéia de uma relação estratégica anglo-francesa

mais íntima.

Quando questionado no Parlamento em 1910, 1911 e 1913 com relação às

conversações militares anglo-francesas, Grey e Asquith, de forma consistente, deram

respostas falsas ou evasivas, mantendo ocultas, tanto a natureza, quanto as implicações

dos acordos estratégicos estabelecidos entre Londres e Paris142.

Mesmo quando Grey e Asquith tiveram que prestar contas ao Gabinete, quando a

existências dessas conversações vieram à tona, em novembro de 1911, eles deixaram

138 Ibid, p. 22; Lauren, “Diplomats and Bureaucrats”, p. 29.139 Lauren, “Diplomats and Bureaucrats”, p. 29.140 Schuman, “War and Diplomacy”, p. 143.141 Ver Samuel R. Williamson, “The Politics of Grand Strategy: Britain and France Prepare for War, 1904-1914”,

(Cambridge: Harvard University Editora, 1969). 142 Ibid, pp. 134, 137-138, pp. 202-204, 330-331.

5959

os seus colegas com a impressão incorreta de que Londres não tinha assumido

qualquer tipo de compromisso ou obrigação com a França143.

A despeito da constante reiteração por parte de Grey e Asquith (tanto aos

franceses, quanto ao Gabinete e ao Parlamento) de que Londres matinha absoluta e

desimpedida liberdade de movimentos, eles tinham, de fato, assumido um solene

comprometimento, através de um processo constitucionalmente duvidoso.

Em agosto de 1914, nos debates em Gabinete quanto à possibilidade da Inglaterra

ir ou não à guerra, o argumento de Grey — que a “Entente” e os concomitantes

acordos militar e naval obrigavam, moralmente, a Inglaterra a ajudar a França —

provaram-se decisivos144.

É evidente que antes da 1ª Guerra Mundial, as decisões estratégicas mais

importantes e de maior repercussão, tomadas tanto pela França (em sua aliança com a

Russia), quanto pela Inglaterra (com relação à “entente” e os arranjos militares com a

França) não se submeteram ao controle ou supervisão do legislativo, a despeito das

credenciais democráticas de ambos os países.

A forma não deve ser confundida com a substância. Na ambiência da política

externa, França e Inglaterra não eram nem mais, nem menos democráticas que o

Segundo Reich145.

O caso da Alemanha de Wilhelm I sugere que grandes potências democráticas, de

fato, entraram em guerra umas contra as outras (e assim poderiam proceder no futuro).

Ainda assim, o enfoque prevalecente de que o Segundo Reich não era uma democracia,

tem influenciado de forma intensa o debate sobre a teoria das relações internacionais,

tanto na questão genérica sobre como a estrutura política doméstica afeta situações

143 Ibid, pp. 198-200.144 Grey ameaçou renunciar ao seu cargo no Gabinete, a ano ser que ele concordasse em levar a Inglaterra à guerra, ao lado

da França. A ameaça de renúncia de Grey foi determinante, porque os radicais não intervencionistas do Gabineteconcluíram que a sua recusa em declarar guerra redundaria na substituição do Gabinete, por outro Conservador ou por umresultante de uma coligação entre Conservadores e Liberais imperialistas. Ver K.M. Wilson, “The British Gabinet’sDecision for War, 2 August 1914”, British Journal of international Studies, Vol. I, Nº. 2, (julho 1875), pp. 148-159.

145A classificação da Alemanha de Wilhelm I como uma democracia também é sustentada por uma análise do processo deestabelecimento de política externa do regime sucessor, a República Weimar. Embora a República de Weimar,invariavelmente, seja classificada como uma democracia, nos aspectos cruciais ela se assemelhava muito ao SegundoReich. Durante a República Weimar, o a Secretaria de Relações Exteriores e o Exército trabalharam em conjunto paraassegura que o processo de formulação da política externa e da grande estratégia ficasse isolado da supervisão e controledo Reichstag. O principal estudo sobre o assunto está em Gaines Post, Jr., “The Civil-Military Fabric of Weimer ForeignPolicy” (Princeton: Princeton University Press, 1973). Post observa (p. 358) que a República Weimar representa um“modelo da virtual exclusão do nível parlamentar ou legislativo da atividade político-militar, num sistema de governorepresentativo.” Se a Alemanha de Weimar é considerada uma democracia, então como é que a Alemanha de Wilhelm Ipode ser classificada como uma não democracia?

6060

finais em âmbito internacional, quanto e na questão específica da existência de uma

“paz democrática”.

No entanto, a reconhecida prudência da Alemanha pré-1ª Guerra Mundial foi

muito distorcida por uma combinação de fatores: o enfoque liberal da maioria dos

relatos anglo-americanos sobre a história Alemã no período de 1860-1914; a natureza

ideologicamente impregnada dos estudos alemães pós-1960, relativos à era de Wilhelm

I; e os efeitos residuais da propaganda Aliada na 1ª Guerra Mundial, que

endemoninhavam a Alemanha146. A questão se a Alemanha de Wilhelm I deveria ser,

ou não, classificada como uma democracia é importante, e merece ser estudada

novamente.

UMA HIPÓTESDE ALTERNATIVA — O INVERSO DA IMÁGEM DERIVADA

A partir de uma perspectiva Realista, a Teoria da Paz Democrática,

equivocadamente, inverteu a ligação entre restrições sistêmicas internacionais e as

instituições políticas domésticas.

Otto Hintze apresentou o argumento Realista de que a estrutura política interna

de um Estado é altamente influenciável por fatores externos147. Esta proposição

argumenta a existência de um processo seletivo que explica o porquê de alguns

Estados tornarem-se democracias enquanto outros não.

Estados que gozavam de um elevado grau de segurança no início do século XX,

como a Inglaterra e os Estados Unidos, puderam manter suas estruturas políticas

conservadoras do liberalismo clássico anglo-americano, pois não tinham quaisquer

ameaças externas eminentes, que exigissem um poderoso aparato governamental,

visando à mobilização de recursos para atender à segurança nacional.

Estados que viveram sob um ambiente externo altamente ameaçador têm uma

maior tendência de optar por uma forma de democracia mais estatal ou, até mesmo,

estruturas autoritárias, precisamente porque as preocupações com a segurança nacional

146 Para uma análise da tendência ideológica de esquerda que caracteriza os trabalhos dos discípulos de Fritz Fisher, e umacrítica de Fisher, Berghahn, Kehr e Wehler ver Wolfgang J. Mommsen, “Domestic Factors in German Foreign Policybefore 1914”, Central European History, Vol. 6, Nº. 1, (março 1973), pp. 4-18. Uma criteriosa crítica de “falha da escolado liberalismo” é encontrada em Klaus P. Fisher, “The Liberal Image of German History”, Modern Age, Vol. 22, Nº. 4(Outono 1978), pp. 371-383.

147 Esta tese é desenvolvida em Otto Hintze, “The Formation of States and Constitutionalization of the State”, em Hintze,“The Origins of the Modern Ministerial System: A Comparative Study”, e em Felix Gilbert, ed, “The Historical Essays ofOtto Hintze”, (Nova York: Oxford University Press, 1975).

6161

exigem que o Estado tenha disponível para si, os instrumentos de mobilização dos

recursos do poder nacional148.

Quanto maior, for a ameaça externa que o Estado tenha que defrontar (ou que

acredite existir), mais autocrático será o processo de formulação de políticas externas,

e mais centralizadas serão as suas estruturas políticas.

Se esta hipótese é verdadeira, ela sugere que a Teoria da Paz Democrática está

com o seu enfoque orientado pelo lado contrário do telescópio. Os Estados que estão,

(ou que acreditam estar), num ambiente de alta ameaça, têm menos propensão a serem

democracias, devido à grande probabilidade de entrarem guerra, e por conseguinte,

tendem a adotar estruturas governamentais autocráticas, que realçam a sua postura

estratégica149.

Portanto, como preveria a teoria Realista, a estrutura sistêmica internacional, não

é somente a determinante primária do comportamento externo de um Estado, mas pode

também, ser um elemento crítico na conformação do seu sistema político doméstico.

Esta hipótese pode proporcionar uma abordagem mais útil do que a da Teoria da Paz

Democrática, para investigar a ligação entre estruturas domésticas e política externa.

148 Este argumento é desenvolvido por Brian M. Downing, “The Military Revolution and Political Change: Origins ofDemocracy and Political Change”, (Princeton: Princeton University Editora, 1992).

149 Existe uma outra forma de visualizar este fenômeno. Quanto mais ameaçado for um Estado (ou que ele acredite ser), maisele mover-se-á na direção de estruturas domésticas mais centralizadas. Um Estado poderá mover-se a tal ponto, que eledeixe de ser democrático e passe a ser autocrático. Esta hipótese se conforma à experiência das grandes potências liberaisdemocráticas neste século [século XX]. Em ambas as guerras mundiais, as exigências do conflito resultaram numa talconcentração do poder estatal , tanto nos Estados Unidos, quanto na Inglaterra, que, por algum tempo, defensavelmente,ambos se tornaram autocráticos. A Guerra Fria, da mesma forma, impeliram os Estados Unidos a se tornarem um “Estadode segurança nacional”, ainda uma democracia, mas uma democracia onde o poder do Estado foi amplamente realçado e apredominância do Executivo sobre o Legislativo, na esfera da política externa, foi estabelecida de forma decisiva. QuincyWright chegou a uma conclusão semelhante quanto ao efeito da ambiência externa sobre as estruturas políticasdomésticas, e observou que “a autocracia, pelo menos no controle da política externa, tem sido a forma constitucional queprevaleceu”, Wright, “A Study of War”, (Chicago: University of Chicago Editora, 1964, abridged ed.), p. 158.

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CONCLUSÕES POLÍTICAS — O PORQUÊ DE SER IMPORTANTE

A validade da Teoria da Paz Democrática não é apenas uma preocupação

acadêmica. A Teoria da Paz Democrática tem sido amplamente adotada por dirigentes

políticos e analistas de política externa, e tem sido a estrela guia que orienta a política

externa norte-americana no pós-Guerra Fria.

A concepção de uma “zona de paz” democrática formulada por Michael Doyle

em 1983, atualmente é usada de forma rotineira pelos norte-americanos, tanto nos seus

pronunciamentos oficiais, como nos não oficiais, relativos à política externa.

Após a Guerra Fria, diversos comentaristas têm sugerido que a exportação ou

promoção da democracia no exterior deveria se tornar o foco central da política externa

norte-americana pós-Guerra Fria150.

Desde o Haiti até a Russia, o interesse norte-americano e a sua segurança têm

sido identificados com sucesso ou o insucesso da democracia. O Conselheiro para

Segurança Nacional Anthony Lake declarou que o objetivo pós-Guerra Fria dos

Estados Unidos deve ser o de expandir a “zona de paz” democrática e de prosperidade

porque, “na medida em que a democracia e a economia de mercado sejam

predominantes em outras nações, a nossa própria nação estará mais segura, próspera

e influente.”151

Aqueles que querem embasar a política externa norte-americana na extensão da

democracia no exterior, invariavelmente repudiam qualquer intenção de embarcar

numa “cruzada” e admitem reconhecer os perigos de permitir que uma política seja

baseada num excessivo zelo ideológico152.

Estas reafirmações constituem a versão “confie em mim” da política externa.

Como a lógica da Teoria da Paz Democrática liga a segurança norte-americana à

150 Ver, por exemplo, Joshua Muravchik, “Exporting Democracy: Fulfilling America’s Destiny”, (Washington, D.C.: AEIEditora, 1991); e Larry Diamond , “Promoting Democracy”, Foreign Policy Nº. 87 (Verão 1992), pp. 25-46.

151 “Observações de Anthony Lake”, Johns Hopkins School of Advanced International Studies, Washington D.C.: 21 desetembro de 1993, (Washington D.C.: National Security Council Press Office).

152 Lake declarou que o governo Clinton não se propõe a embarcar numa “cruzada democrática.” Tanto Doyle, quantoRusset, reconhecem que a Teoria da Paz Democrática poderia encorajar os Estados democráticos a praticarem políticasagressivas em relação a não democracias, e ambos expressam preocupação com relação a este ponto. Doyle “Kant,Liberal Legacies and Foreign Affairs”, Parte II; Russet, “Grasping the Democratic Peace” p.136.

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natureza dos sistemas políticos internos de outros Estados ela, inevitavelmente, força

os Estados Unidos a adotarem uma postura estratégica intervencionista. Se as

democracias são pacíficas, mas os Estado não democratas são “criadores de

problemas”, a conclusão inescapável é: os anteriores só estarão realmente seguros, se

os posteriores forem, também, transformados em democracias.

De fato, estadistas norte-americanos têm, freqüentemente, expressado este ponto

de vista. Durante a 1ª Guerra Mundial, Elihu Root153 disse que: “Para estar segura, a

democracia deve matar a sua inimiga, onde e quando puder. O mundo não pode ser

metade democrata e metade autocrata.”154 Durante a Guerra do Vietnam, o Secretário

de Estado Dean Rusk reivindicou que os “Estados Unidos não podem estar seguros

enquanto todo o ambiente internacional não estiver ideologicamente seguro.” Estes

não são comentários isolados, estes pontos de vista refletem a histórica propensão

norte-americana de perseverar pela segurança absoluta e de definir a segurança,

primariamente, em termos ideológicos (e econômicos).

A cultura da política externa norte-americana, há muito tempo, considera os

Estados Unidos, devido ao seu sistema político doméstico, como uma nação singular.

Como conseqüência, dirigentes políticos norte-americanos têm sido afetados “por um

profundo sentimento de estarem sós” e eles têm considerado os Estados Unidos como

que “perpetuamente sitiado”155. Consequentemente, as políticas de defesa e externa

norte-americanas têm sido forjadas pela crença de que os Estados Unidos devem criar

um clima ideológico favorável no exterior, para que as suas instituições domésticas

possam sobreviver e prosperar156.

A Teoria da Paz Democrática tem favorecido o desenvolvimento de impulsos,

que por mais nobres que sejam, em termos abstratos, têm originado intervenções

militares desastrosas no exterior, uma excessiva dilatação estratégica, e o relativo

declínio do poder norte-americano. 153 [N.T.] Elihu Root, advogado e estadista norte-americano, exerceu os cargos de Secretário de Guerra de 1899 a 1903, e

Secretário de Estado de 1905-1909. De 1905 a 1909 atuou no Congresso como Senador no Partido Republicano. Foi oresponsável pela ampliação da academia militar de West Point e pela criação do U.S Army War College. Ele também foium dos fundadores do American Law Institute em 1923. Em 1912 recebeu o Prêmio Nobel da Paz.

154 Citação contida em Russet, “Grasping the Democratic Peace”, p.33.155 William Appleman Williams, “Empire as a Way of Life: An essay on the Causes and Character of America’s Present

Predicament Along With a Few Thoughts About an Alternative”, (Nova York: Oxford University press, 1980), p.53. 156 Lloyd C. Gardner, “A Covenant with Power: America and the World Order from Wilson to Reagan”, (Nova York:

Oxford University Editora, 1984), p. 27. Para uma excelente análise crítica sobre a noção de que a ideologia domésticanorte-americana tem que ser validada por sua política externa, ver Michael H. Hunt, “Ideology and U.S. Foreign Policy”(New Haven: Yale University editora, 1987).

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O mais recente exemplo dos perigos associados à reedição do “wilsonionismo157”

é a iniciativa do governo Clinton denominada — “Partnership for Peace”. Sob a égide

deste plano, o manifesto interesse norte-americano em projetar a democracia no centro-

leste europeu é implementado, tendo como corolário, as garantias de segurança da

OTAN, a eventual admissão da Polônia, Hungria e da República Checa na citada

organização, além de alguma forma de segurança provida pelos Estados Unidos à

Ucrânia.

O argumento subjacente à esta proposta é simples: governos democráticos nestes

países irão garantir paz regional na era pós-Guerra Fria, mas a democracia não poderá

criar raízes a não ser que seja proporcionado, a esses países, a certeza e convicção da

garantia de segurança por parte dos Estados Unidos ou da OTAN.

De fato, o centro-leste europeu tende a ser uma região altamente volátil,

independentemente da OTAN “mover-se para o leste”. A extensão das garantias

oferecidas pela OTAN ao leste europeu, traz em seu bojo o óbvio risco de que os

Estados Unidos envolver-se-ão num futuro conflito regional, que poderia envolver

grandes potências como a Alemanha, Ucrânia ou Russia.

Existe pouca confiança em assumir tarefas tão arriscadas com base na dúbia

presunção relativa aos efeitos pacificadores da democracia158.

A Teoria da Paz Democrática também é perigosa em um outro aspecto: é um

componente integral de uma nova (ou mais corretamente, reciclada) perspectiva na

política internacional, a de que a difusão da democracia e da interdependência

econômica causou uma “mudança qualitativa” na política internacional — agora, as157 [N.T.] Este termo refere-se a uma falácia da época do presidente Woodrow Wilson, de tentar fazer com que outros países

assumam formas de governo (no caso a democracia) para as quais eles provavelmente não se adaptam, e quase quecertamente, não estão dispostos a adotar. Ao término da 1ª Guerra Mundial o presidente norte-americano WoodrowWilson tinha plena convicção de que uma paz duradoura só poderia ser forjada entre países que fossem iguais,professando os mesmos princípios de justiça e de democracia. Esta concepção, que em outras palavras apregoava o regimedemocrático como a panacéia para a paz mundial, ficou conhecida como o “wilsonionismo”, e ficou registrada pelopresidente Wilson em um documento contendo seus famosos “Quatorze Pontos” que constituíam a sua receita para ummundo mais pacífico e seguro.

158 Poder-se-ia argumentar que se a concepção de Hintze está correta (de que Estados que gozam de segurança têm maiorfacilidade de se tornarem ou de permanecerem, democráticos), então, estender as garantias de segurança a Estados como aUcrânia, ou preservar alianças já existentes com Estados como a Alemanha, Japão e Coréia do Sul, é precisamente o queos Estados Unidos deveriam fazer. De fato, ambos os governos de Bush e Clinton, aderiram a uma visão global quedetermina aos Estados Unidos, a única superpotência remanescente, a responsabilidade pela manutenção do equilíbrio depoder na Europa e no leste asiático. Questiona-se a capacidade dos Estados Unidos preservarem um tipo de ambiênciainternacional que seja permeável à difusão da democracia e da interdependência econômica, mediante a prevenção da“renacionalização” das políticas de segurança de outros Estados, e prevenção da possibilidade de um vácuo de poderregional. Para consultar análises críticas desta política, ver de Christopher Layne, “The Unipolar Illusion: Why New GreatPowers Will Rise”, International Security, Vol. 17, Nº. 4, (Primavera 1993), pp. 5-51; Layne, “American Grand StrategyAfter the Cold War: Primacy or Blue Water?”, em Schwarz F. Hermann, ed., American Defense Annual (Nova York:Lexington Books, 1994); e de Layne e Schwarz, “American Hegemony”.

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guerras e as disputas de segurança entre grandes potências democráticas, são

impossíveis de ocorrer159.

Desta forma, é dito que não há qualquer necessidade de preocupação com relação

a futuros desafios de grandes potências, como o Japão e a Alemanha, ou com relação à

distribuição de poder entre os Estados Unidos e aqueles Estados, a não ser que Japão

ou Alemanha fosse retroceder para o autoritarismo160. E a razão pela qual os Estados

Unidos não precisam ficar preocupados com a emergência de grandes potências como

o Japão e Alemanha é simples: estes Estados são democracias , e democracias não

lutam entre si.

Os proponentes atuais de uma teoria liberal para a política internacional

construíram uma visão atrativa de uma paz perpétua, dentro de uma zona de paz e

prosperidade. Mas essa “zona de paz” constitui uma ilusão. Não há qualquer evidência

de que a democracia, ao nível unitário (de Estados), anule os efeitos estruturais da

anarquia em nível do sistema de política internacional. De modo semelhante, não há

qualquer evidência que sustente a teoria correlacionada: de que a interdependência

econômica leva à paz161. Ambas as idéias têm estado em voga por algum tempo. O fato

de elas serem tão amplamente aceitas como o fundamento para a teoria das relações

internacionais demonstra que, para alguns estudiosos, as “teorias” são confirmáveis

pelo número de testes no mundo real em que elas falharam.

Os proponentes da teoria liberal nas relações internacionais podem argumentar,

como Russet o faz, que as abordagens liberais da política internacional não falharam,

mas ao invés disso, ainda não foram testadas162. Mas isto é o que os desapontados

adeptos de visões ideológica globais sempre afirmam, quando as suas crenças são

suplantadas pela realidade.

Se os dirigentes políticos norte-americanos permitirem-se ficar fascinados pela

visão sedutora, mas falsa, do futuro proporcionada pela Teoria da Paz Democrática, os

Estados Unidos estarão mal preparados para formular uma grande estratégia que irá

159 Robert Jervis, “The Future of World Politics: Will It Resemble the Past?”, International Security, Vol. 16, Nº. 3 (Inverno1991/92), pp. 39-73.

160 Para um exemplo relativo a esta argumentação ver James M. Goldgeier e Michael McFaul, “A Tale of Two Worlds: Coreand Periphery in the Post-Cold War Era”, International Organization, Vol. 46, Nº. 3, (Primavera 1992), pp. 467-491.

161 [N.T.] Um adágio popular nos Estados Unidos, durante os anos de 2001 e 2002 dizia que: Dois países que têm o MacDonalds, nunca entrara em guerra.

162 Russet, “Grasping the Democratic Peace”, p. 9, afirma que os princípios Kantianos e Wilsonianos ainda não tiveramuma oportunidade real para operar na política internacional.

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projetar os seus interesses num emergente mundo, caracterizado por uma grande

competição multipolar pelo poder.

De fato, enquanto a visão global Wilsoniana sustentar a política externa norte-

americana, os dirigentes políticos estarão cegos para a própria necessidade de ter uma

grande estratégia, porque a teoria liberal de política internacional conceitua como não

existente, (exceto com relação a não democracias), o principal fenômeno que está no

coração de qualquer estratégia: a guerra, a formação de equilíbrios de poder, e as

preocupações concernentes à distribuição relativa de poder entre as grandes potências.

Mas ao final, como admitem seus proponentes mais articulados, a teoria liberal das

relações internacionais é baseada em esperanças, e não em fatos163.

Numa análise final, o mundo permanece sendo o que ele sempre foi: a política

internacional continua a ocorrer numa ambiência anárquica, competitiva, e de auto-

ajuda. Esta realidade tem que ser encarada, porque ela não poder ser contornada. Em

função do que está em jogo, os Estados Unidos, nos próximos anos, não podem arcar

com uma política externa ou, com o discurso intelectual que dá o suporte a esta

política, forjados por abordagens que sejam baseadas num pensamento esperançoso.

163 Russet, “Grasping the Democratic Peace”, p. 136, argumenta que “inteirar-se das fontes da paz democrática pode ter o

efeito de uma profecia que se autoconsuma. Cientistas sociais, algumas vezes, não só criam realidades, como as analisamtambém. Na medida em que as normas guiam o comportamento, a repetição destas normas ajuda a torná-las efetivas.Repetir as normas, como princípios descritivos, pode ajudar a torná-las verdades”

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