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REPORTAGEM Um em cada 10 traficantes de São Paulo é de classe alta, aponta um levantamento inédito obtido pela GQ. Acompanhamos a rotina de três desses jovens nascidos em famílias milionárias para entender como eles abandonaram uma vida de luxo em busca de enriquecimento rápido e prestígio no mundo do crime Por BRUNO ABBUD Foto PICT ESTÚDIO Jovens, Ricos e 128 II II MAIO 2014

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128 II II MAIO 2014

REPORTAGEMREPORTAGEM

Um em cada 10 traficantes de São Paulo é de classe

alta, aponta um levantamento inédito obtido pela GQ.

Acompanhamos a rotina de três desses jovens nascidos em

famílias milionárias para entender como eles abandonaram

uma vida de luxo em busca de enriquecimento rápido

e prestígio no mundo do crime Por BRUNO ABBUD Foto PICT ESTÚDIO

Jovens, Ricos e

128 II II MAIO 2014

Apreensões Exército faz batida

em plantação de maconha no

Paraguai, onde os traficantes buscam

a droga; polícia confisca 30 mil

pílulas de ecstasy em Guarulhos

Delivery Em bairros nobres de São Paulo, 350 táxis e até bicicletas entregam drogas em domicílio

130 II II MAIO 2014

REPORTAGEM

Todas as câmeras de vigilância das mansões vizinhas funcionam perfeitamente quando Daniel*, no terceiro andar da casa onde mora com os pais no Jardim Amé-rica, bairro nobre de São Paulo, apoia a sola do sapato sobre a cama king size, escala um armá-rio e apanha do esconderijo a pis-tola automática austríaca Glock

17.9 milímetros, comprada por R$ 3 mil no mercado negro. Daniel empunha a arma com a mão direita, volta a sentar e diz, com vaidade: “Sempre deixo carregada”. Segundos depois, ele se levanta e se estica novamente para guardar a ferramenta que costuma servir mais para assustar clien-tes negligentes do que para cuspir balas. Aos 23 anos, três escolas particulares no currículo (entre elas o conceituado colégio italiano Dante Alighieri) e um curso de adminis-tração pela metade, o traficante está prestes a enfrentar 14 horas de estrada até a fronteira com o Paraguai, onde integrará uma reunião com dois fornecedores da maconha que compra todas as semanas. Em um carro popular – “É para não chamar atenção”, justifica –, Daniel pisa no ace-lerador até o ponteiro ultrapassar os 170 km/h. Ele tem pressa. O rugido do motor na noite vazia é interrompido para a compra de energéticos. Ao chegar a Foz do Iguaçu, na tríplice fronteira, ele estaciona em uma churrascaria, cumprimenta os contrabandistas, senta-se à mesa e pede, além de uma Coca-Cola, uma amostra da erva. Caminha até o carro, enrola um cigarro, fuma. Ao voltar à negociação, ele recusa a oferta. Irritado por ter perdido tempo, Daniel ex-plica à GQ – que o acompanhou na viagem – que a maconha não tem qualidade o bastante para a classe alta paulistana.

Daniel nasceu e foi criado em uma mansão de 23 cômodos e três empregados do Jardim América, que hoje também lhe serve de escritório para o tráfico. A adolescência foi marca-da por episódios de indisciplina, como no dia em que fur-tou e capotou o carro do pai na Marginal Tietê. Aos 18 anos, começou a comprar maconha para vender nas imediações da universidade que frequentava no centro de São Paulo. Desde então, o jovem percorreu um caminho evolutivo no mundo do tráfico. Aprendeu que, para ganhar dinheiro, era preciso trabalhar com um produto de qualidade. Com algu-ma sorte, encontrou o caminho que leva à maconha pura.

Um de seus fornecedores em São Paulo começou a lhe dever dinheiro, e sugeriu uma única forma de pagamento: apresen-tar o garoto rico aos contrabandistas que comercializavam grandes quantidades de maconha no Paraguai. Compensou.

Nos últimos meses de 2013, especialmente por conta das festas de fim de ano, Daniel lucrou R$ 150 mil por mês com a venda de maconha orgânica para a alta sociedade paulis-tana. Ele é um traficante de elite, um mordomo poderoso que controla a entrada de suprimentos em regiões nobres de São Paulo – especialmente os Jardins, onde nasceu. Vai pes-soalmente às plantações, acompanha a produção da carga e paga R$ 1 mil a um “mula” que transporta a encomenda até São Paulo. Na capital paulista, Daniel tem distribuidores que repassam a erva aos consumidores finais – tem em sua lista filhas de empresários, netos de banqueiros, celebridades.

O negócio nunca esteve tão bom – apenas nos últimos meses, lucrou pelo menos R$ 500 mil. Seu plano é continuar no patamar em que sempre esteve durante a vida. Por isso não para com a atividade – que além de cédulas azuis lhe rende prestígio e um tanto da adrenalina em que é viciado. Ele planeja juntar pelo menos R$ 5 milhões, abandonar o tráfico e ir morar num lugar tranquilo. Até esse dia chegar, ele nem imagina o que o espera. “Posso ficar mais um mês ou mais dez anos nessa vida, nunca sei”, diz o traficante, que afirma pagar mensalidades a policiais corruptos (para não ser preso) e à facção criminosa Primeiro Comando da Capital, o PCC (para garantir segurança na cadeia caso seja preso).

E m 2009, Daniel costumava desembolsar uma mensalidade de R$ 7 mil para agradar um delegado bem posicionado na hierarquia da Polícia de São Paulo. Também pagava taxas mensais a um gerente do PCC que, em tro-ca, autorizava o jovem bem-nascido a ven-

der maconha. Difícil evitar a facção. Segundo o promotor Alfonso Presti, que coordena a Central de Inquéritos Policiais e Processos (CIPP) do Ministério Público de São Paulo, mexer com drogas na capital paulista signi-fica negociar com o PCC. “A totalidade da maconha e mais de 90% da cocaína em São Paulo têm contato com o PCC”, diz Presti. Atualmente, os clientes mais próximos de Daniel são os jovens ricos paulistanos. Vez por outra, esses rapazes se reúnem em festas pro-movidas pelo traficante na mansão do Jardim América.

Em meio a garrafas de uísque e vodca, os jovens se em-briagam durante a madrugada. Maconha e cocaína há de sobra. Os participantes da festa tratam Daniel como um líder disfarçado, uma chefia invisível. Uns tentam competir com ele em tudo, mesmo nos passos de dança improvisados, às vezes com agressividade, numa explícita amostra de que a autoridade do traficante é invejada entre os clientes. Embria-gado pelas disputas, o anfitrião solta palavras jocosas e gestos exóticos, numa tentativa de apaziguar situações tensas. Ou-tros o chamam de canto, contam segredos, buscam alguma reação, mas o traficante pouco se importa. Logo está fazendo piadas das quais, de imediato, somente ele ri. Mas segundos mais tarde toda a sala adornada com estatuetas de bronze ri também. Mesmo que não seja lá muito engraçado, Daniel é querido pelo grupo. É carismático, tem a mistura de bandido e mocinho que encanta quem o rodeia. Se fosse comparado a famosos, o traficante poderia ter sua personalidade definida pela mistura entre Cazuza e Don Vito Corleone – algo que provoca uma obediência enrustida nos que participam do sistema de venda de drogas.

Para lucrar, Daniel precisa preservar em funcionamento as engrenagens que o mantêm ativo no narcotráfico. Uma peça importante da máquina são seus investidores – ele não revela nomes, mas explica que há na cidade muitos empresários, donos de comércio e empreendedores que apostam no tráfico de drogas, enriquecem e continuam usando o colarinho bran-co. Segundo a CIPP, a história procede. Um bom número de inquéritos abertos pela Central, segundo o promotor Presti, apontam negociações de postos de gasolina – especialmente da região do Morumbi e de Taboão da Serra – com o PCC.

Foi no fim dos anos 80, segundo especialistas, que empre-sários e comerciantes descobriram o tráfico de drogas. A rela-

ção ilegal rende dinheiro fácil ao investidor e, na via contrária, é responsável pela lavagem do dinheiro do crime. “É difícil saber quem está ajudando quem”, diz o jurista Wálter Maierovitch, secretário Nacional Antidrogas no segundo governo FHC. Em São Paulo, as reuniões entre narcotráfico e investidores de alta classe se dão em lugares protegidos, como em uma mansão na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, um dos prostíbulos mais luxuosos dos Jardins, onde empresários de diversos ramos (principalmente do futebol) aparecem para beber uísque, tran-sar com garotas de programa e investir em cocaína – eles deixam maços de dinheiro (usados para comprar a droga de fornecedo-res) e voltam semanas depois, para recolher o lucro da revenda.

A cocaína que chega a São Paulo vem, prin-cipalmente, do Peru e da Bolívia, segun-do a Polícia Federal. Durante uma inves-tigação, a empresa RCI First – Security and Intelligence Advising, consultoria de Segurança e Inteligência Privada com

sede em Nova York, seguiu informações sobre o trajeto dos quilos do pó – a plantação, a produção de pasta base, a travessia da fronteira, o refino, a mistura, o embalador, o traficante e o usuário – e descobriu, a pedido de clien-tes (a empresa atende desde milionários preocupados com segurança a agências de inteligência internacionais), que pacotes de 1 quilo de cocaína pura chegavam com frequência a regiões nobres de São Paulo, como os Jardins. Intrigados com o fato de que não há bocas de fumo nesses lugares, a empresa começou a investigar como essa droga é distribuída, após embalada em pequenas quantidades.

Descobriram que há na capital paulista cerca de 350 táxis, entre oficiais e clandestinos, que fazem o serviço de delivery

*Os nomes dos traficantes entrevistados são fictícios

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MAIO 2014 II II 131

REPORTAGEM

São Paulo. Em segundo lugar vem o Mato Grosso do Sul, onde foram apreendidas 5,5 toneladas, 15% do total nacional.

De acordo com outra pesquisa elaborada pela RCI First, no Brasil, para cada quilo de cocaína apreendido, outros 25 quilos passam pelas fronteiras. Isso significa que, se em 2013 exatas 35,7 toneladas foram apreendidas pela Polícia Federal no país, 892 toneladas sobraram para consumo. O número representa 4,5 gramas por habitante ao ano – ou cerca de 900 milhões de pinos plásticos de 5 mililitros cada, onde a cocaína, que vinha embalada em papelotes, hoje é comercializada (a mudança de embalagem foi uma invenção do PCC para controlar o comércio). A maior parte dos pinos é fabricada pela Eppendorf, multinacio-nal alemã que vende instrumentos para a indústria farmacêutica em 23 países. Existem em São Paulo outras sete empresas que fabricam os pinos usados por traficantes para embalar cocaína.

Em 2013, o tráfico rendeu, no Brasil, um fatu-ramento estimado em R$ 9 bilhões, com o preço do pino a R$ 10. É um valor variável, principalmente no universo do tráfico de luxo paulistano. O pino que pode sair por R$ 10 em pontos de venda de São Paulo, do Rio de

Janeiro ou do Pará chega a custar R$ 100 nos arredores da Avenida Paulista. Segundo Ricardo Chilelli, o preço é maior porque a droga é mais pura: enquanto a mais barata possui 33% de pureza, a cara tem 88%, em média. De acordo com Chilelli, 15 tipos de impurezas são usadas nessa mistura – entre elas, leite em pó, fermento químico, talco. “De 2009 para cá o pó de mármore é o carro-chefe das misturas”, diz. Atualmente, 21 marmorarias da Grande São Paulo empregam funcioná-rios que costumam desviar pó de mármore para traficantes, segundo o Ministério Público.

As proporções são ainda maiores quando o assunto é o consumo de maconha – nesse caso, os estados onde há maior circulação são os de fronteira com o Paraguai, Mato Grosso do Sul (85 toneladas apreendidas pela polícia) e Paraná (76 toneladas), seguidos por São Paulo (23 toneladas). São volumes dos quais, enfurnado em seu casarão no Morumbi, o jovem rico – ex-traficante e ex-informante de policiais corruptos – Matheus*, de 26 anos, modestamente tomava parte.

Criado em um colégio particular do Morumbi, na zona sul de São Paulo, Matheus sempre circulou no mundo do luxo, mas também manteve contatos menos ilustres. Um deles, um investigador corrupto da Polícia Civil. Em 2009, os dois começaram a prender jovens ricos e pedir propina aos pais deles em troca da liberdade dos garotos. Enquanto Matheus angariava interessados na compra de grande quantidade de

maconha, cocaína, ou uma cartela de ácidos (sempre o sufi-ciente para que fosse configurada a compra para tráfico), o policial organizava-se com outros colegas para flagrar a venda. No instante em que Matheus negociava a droga, os policiais apareciam como numa versão brasileira de seriado americano: “Perdeu!”, gritavam, deixando os aspirantes a traficantes da alta sociedade de olhos arregalados.

Na delegacia, os jovens chamavam os pais que, por sua vez, convocavam seus advogados para providenciar a liberdade dos filhos. Com o advogado, os colegas corruptos negociavam o valor da liberdade – que já chegou a R$ 500 mil, segundo o ex-informante. Certa vez, um policial ofereceu a Matheus pagar as mensalidades de uma faculdade, caso ele utilizasse as aulas para prospectar vítimas para o golpe. O ideal seria, segundo o corrupto, um curso de cinema na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado) ou de publicidade na ESPM (Es-cola Superior de Propaganda e Marketing). Matheus recusou. Faz quatro anos que deixou de ajudar policiais a extorquir milionários. Ainda hoje, segundo ele, o esquema funciona em ritmo forte em São Paulo.

O que mais atrai filhos de milionários à armadi-lha hoje é uma sigla de quatro letras: MDMA – a metilenodioximetanfetamina, ecstasy em sua mais pura forma, a droga sintética preferi-da da elite. Um grama de MDMA, ou apenas MD, como é chamada, custa R$ 150. A droga

vem em pó ou cristal. “Se for cristal é mais pura”, confidencia um usuário que não quis se identificar. “Cheiro uma linha e coloco o resto no drinque. Tem gente que joga tudo no drinque, doses de 1 a 2 gramas.” Graças à potência e ao preço da droga, com poucos gramas no bolso qualquer um se torna traficante. Também é assim com a heroína, substância que multiplicou seu número de usuários na alta sociedade paulistana. De acordo com o promotor Presti, drogas mais caras, como a heroína, sempre são encontradas com traficantes da classe alta. “O tra-ficante que estudou em bons colégios, sete anos atrás, era do universo do lança-perfume e começava com ecstasy. O perfil está mudando, hoje há muita cocaína, maconha, haxixe e he-roína. A tendência desse traficante é ter drogas com qualidade melhor. As poucas apreensões de heroína foram em círculos de traficantes de classe alta”, afirma.

Foi por tentar comprar mil pílulas de ecstasy que, em 2005, o ex-traficante Rafael*, 27 anos, passou nove meses no Centro de Detenção Provisória de Vila Independência, na zona leste da capital paulista. A encomenda – que fora elaborada em um laboratório no Pará – custaria R$ 3 mil ao rapaz e seria revendida

de drogas em regiões nobres – cinco pontos estão nos Jardins. Para manter o esquema, as etapas da entrega são planejadas minuciosamente. Acionados por telefone, os taxistas trans-portam drogas em sacolas de farmácias e de redes de fast food, para disfarçar. Eles estão para o tráfico na alta sociedade assim como os “aviõezinhos” estão para o tráfico na favela. Fazem no máximo duas entregas por corrida, porque se forem flagrados podem reivindicar a condição de usuários. Nessas entregas em domicílio, os produtos mais pedidos são cocaína, em primeiro lugar, maconha orgânica, em segundo, e haxixe e heroína, em terceiro. De alta qualidade, a maconha da elite foi apelidada de “maconha de butique” – a planta, de cor roxa, tem níveis elevados do princípio ativo THC.

Além dos taxistas, cerca de 550 motociclistas, que reve-zam as entregas de pizzas com as de drogas, e aproximada-mente 150 “bikers” fazem o delivery em São Paulo. O serviço é mais frequente na região dos Jardins, Paraíso, Vila Nova Conceição, Itaim Bibi, Moema, Morumbi, Alto de Pinheiros e Jardim Anália Franco. “A elite deixou de ir à periferia para comprar drogas por causa de sequestros e sequestros relâm-pagos. O delivery se acentuou de dez anos para cá”, afirma Ricardo Chilelli, um dos maiores especialistas em segurança e inteligência privada do Brasil. “Cada vez mais, esses entrega-dores compram de traficantes forjados em círculos abastados da sociedade”, diz o promotor Presti.

A o investigar os crimes que chegam ao Minis-tério Público, os promotores identificaram um novo padrão no tráfico de drogas de São Paulo. Por mês, uma média de 1.488 proces-sos de tráfico chegam aos gabinetes de 124 promotores – cada um deles se encarrega de

três por semana. Cerca de 10% do total, segundo o Ministério Público, envolve traficantes endinheirados desde a infância – ou seja, algo em torno de 149 traficantes de classe alta entram na mira da Justiça (e eventualmente são presos) por mês. E esse nú-mero, publicado pela primeira vez nesta reportagem, só cresce. “Notamos empiricamente uma tendência de crescimento des-se universo de réus nascidos em berço de ouro”, afirma Presti.

Com a mudança nos padrões, os traficantes de classe alta se tornaram mais ambiciosos e conseguiram galgar mais degraus na escala de poder da venda de drogas. Há em São Paulo três líderes de facções criminosas que, segundo os inquéritos do Ministério Público, são nascidos na classe alta. “Alguns líderes de uma das grandes facções possuem dois cursos de nível superior, eram ‘promoters’ de casas no-turnas e já pegaram em metralhadoras e fuzis para praticar crimes. Há líderes que saíram da classe alta e média alta. De cabeça, lembro de três deles que estão presos. Eles não têm o perfil do traficante que a população conhece, conquista-riam a atenção de qualquer garota na balada”, afirma Presti. Segundo o promotor, atualmente, o que mais dá dinheiro a traficantes paulistanos é a cocaína, a mais requisitada dro-ga de São Paulo. “É a droga que mais permeia a sociedade hoje, inclusive nos círculos de classe média alta”, diz. No ano passado, o estado de São Paulo liderou o número de apreensões de drogas no país: 31% da cocaína interceptada pela Polícia Federal (ou 11,2 toneladas) foi apreendida em

DROGAS DA ELITEA cada quilo de droga apreendido no Brasil, 25 quilos chegam aos consumidores. Saiba quais substâncias são as mais interceptadas pela polícia nos estados vulneráveis à entrada de entorpecentes – são as mesmas que fazem o lucro dos traficantes de classe alta

ECSTASY(comprimidos)

MACONHA(toneladas)

COCAÍNA(toneladas)

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10.000 6% 3.052 2% 36.332 22% 2.500 1,5% 11.668 7%

4 ton. 2% 85 ton. 39% 76 ton. 35% 3 ton. 1,4% 23 ton. 11%

2 ton. 6% 5,5 ton. 15% 1,8 ton. 5% 0,6 ton. 2% 11 ton. 31%

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PR

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132 II II MAIO 2014

De elite Rafael* (foto) foi seis vezes campeão de

hipismo e estudou nos

melhores colégios de São

Paulo. Ainda assim, optou

por vender drogas e

acabou preso

por R$ 8 mil em raves de São Paulo. Rafael não precisava de dinheiro. Mesmo assim, tornou-se traficante.

Ele mistura tabaco e haxixe para enrolar o cigarro que o acompanhou em uma das entrevistas para esta reportagem. O rapaz é ligado aos mais puros costumes da classe alta: foi seis vezes campeão brasileiro de hipismo, estudou por dez anos no colégio alemão Humboldt, é filho do proprietário de uma gran-de loja de tecidos no bairro do Brás e passou o último réveillon na Europa, onde esteve por um mês.

Talvez o que mais explique sua opção pelo crime sejam as vantagens do status compartilhado por traficantes de drogas. “Era uma coisa glamourizada, havia muita puxação de saco. Muita gente telefonando. Sexta-feira à noite eu tirava o te-lefone do gancho. Há uma sensação de poder e onipotência com o dinheiro e tudo”, conta o ex-traficante João Guilherme Estrella, que inspirou o filme Meu Nome Não É Johnny. João traficou cocaína para pessoas de classe alta dos 29 aos 34 anos, no início dos anos 90 – até ser preso em 1995 e passar um ano e meio no Manicômio Judiciário da Rua Frei Caneca, no Rio. Em seu mais volumoso negócio, comprou 15 quilos de cocaína para vender no Rio, na Espanha e na Holanda. Depois de ter sua história registrada em livro e no cinema, o produtor musical de 52 anos passou a dar palestras por todo o Brasil. Ele cobra entre R$ 1,5 mil e R$ 17 mil para discursar sobre álcool, drogas e “a vida”, como diz. Ao rememorar o motivo que o levou à prisão, João explica: “O tráfico era uma distração adolescente, eu não tinha a percepção da hora de dizer não”. Nem Rafael.

N a época em que o garoto do ecstasy foi preso, o número de usuários da droga só crescia – de 2008 para 2009, a apreensão das pastilhas no Brasil aumentou 2.500% e a palavra “ecstasy” tornou-se comum no noticiário. O flagrante levou Rafael à prisão – e à TV. Na segunda

edição do SPTV de 27 de abril de 2005, ele apareceu algemado. Enquadrado nos Artigos 33 (tráfico de drogas) e 35 (associação para o tráfico) da Lei 11.343/06, o jovem era o único réu que não escondia o rosto das câmeras. Encarava o cinegrafista. Não foi a primeira vez que atravessou o caminho da Justiça. “Antes de eu ser preso, uma tia pagou R$ 30 mil em propina para agentes do Denarc (Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico) que me pegaram traficando haxixe. Depois disso, minha família tentou me internar. Em quatro dias tentei fugir cinco vezes da clínica”, conta Rafael. Na cadeia, o

ex-traficante passou dois meses dormindo na “praia” – como os presos chamam o chão da cela que comporta uma dúzia de pessoas, mas é habitada por 40 – e depois subiu para uma das 12 camas compartilhadas por 24 detentos. Descobriu que, para sobreviver ali, era preciso ter dinheiro. Isso não era problema.

Rafael comprou de tudo. Pagava 20 maços de cigarro por semana para outros presos cuidarem da faxina da cela. Cheirava co-caína com frequência, fumava 200 gramas de maconha por mês, comprava ecstasy, tinha um celular clonado com carregador

e toda semana sua mãe aparecia com quilos de guloseimas que agradavam os colegas do xadrez. Quando o batalhão de choque surgia para revistar os colchões, ele gastava mais 20 maços com um preso que assumia a propriedade do telefone sempre desvendado. Os cigarros evitavam 30 dias no “casti-go” – um corredor estreito onde os presos ficam enfileirados e em pé. Durante os nove meses de prisão, Rafael aprendeu que a “net” – “a internet dos presidiários”, nas palavras dele – era um buraco na parede que interligava dois conjuntos de celas, e percebeu que as conversas sempre giravam em torno do mesmo assunto: crime. “Assuntos do tipo: ‘Nossa, como é difícil arrancar uma cabeça, não é?’”, conta o ex-traficante.

No começo de 2006 – depois de ver sua família gastar R$ 40 mil com advogados e pagar R$ 24 mil a uma dupla de policiais corruptos contratados para mudar seus depoimen-tos no processo –, ele foi solto enquanto enrolava um cigarro de maconha e explicava a dois recém-chegados, também de classe alta, como funciona o cotidiano na prisão. “Minha professora do Humboldt depôs a meu favor, viram que eu era de colégio bom, fui campeão de hipismo, tudo contou”, diz o jovem, que afirma ter engolido, até hoje, mais de 200 “balas” de várias espécies – A8 verde, Love rosa, Love azul e Estrela de Davi são alguns nomes. Atualmente, Rafael vive tranquilo. Absolvido, trabalha com produção de eventos, pla-neja mudar-se para o interior e compra 5 gramas de haxixe por semana para consumo próprio. A droga vem do Paraguai, atravessa as estradas brasileiras embrulhada em graxa e bexigas de borracha, alcança a capital paulista no carro de “mulas” e vira fumaça nos pulmões de jovens criados em berço de ouro. São Paulo é realmente mais do que pare-ce. “Existem duas ‘São Paulos’, a regular e a clandestina”, comenta o especialista Ricardo Chilelli. Só uma se vê.

REPORTAGEM

MAIO 2014 II II 135

FO

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134 II II MAIO 2014

44 toneladas de

COCAÍNA foram apreendidas no Brasil em 2013.

É mais do que o dobro do apreendido

em 2012 (19 toneladas)

Desde 2010 o consumo de

HEROÍNA vem crescendo

15% ao ano em São Paulo

O MDMA, ecstasy em sua forma mais pura,

é a droga da vez na

NOITE PAULISTANA.Por causa

das letras iniciais, a droga foi apelidada de Michael Douglas

Enquanto o uso de cocaína em muitos países

sul-americanos caiu,no Brasil houve um

AUMENTOsubstancial,

segundo a ONU.

Em 2012, a Polícia Federal

apreendeu 9.590 gramas de heroína no Brasil. É um crescimento de

700% em relação

a 2011 (1.360 gramas)

As primeiras apreensões de MDMA

no Brasil se deram em 2010. Em 2011, a quantidade

de droga flagrada já havia subido

347%

A droga que mais cresce no Brasil é o

ECSTASY. Em 2011, foram apreendidas 70 toneladas da substância.

Esse número não ultrapassou 1 quilo em todos os anos

da década anterior

3% dos estudantes

UNIVERSITÁRIOS usam cocaína,

segundo estudo de 2011 da Secretaria Nacional de Políticas

sobre Drogas

A ONU estima que 1,75%

da população brasileira, ou

3,4 MILHÕES DE PESSOAS,já tenha

cheirado cocaína

No ano passado, 57 mil pontos de

LSD foram apreendidos

no Brasil – uma ligeira diminuição em relação ao que foi apreendido

em 2012 (65.033 pontos).

226 toneladas de

MACONHA foram apreendidas no Brasil em 2013.

É mais do que o dobro do que foi apreendido em 2012

(111 toneladas)

136 II II MAIO 2014

REPORTAGEM

A venda de maconha para jovens ricos pode render R$ 500 mil em três meses a um traficante de elite

Duas cidades Na São Paulo clandestina, investidores de classe alta reúnem-se em mansões e deixam maços de dinheiro com os traficantes; voltam semanas depois, para recolher o lucro da revenda

CelebraçãoÉ em festas em

mansões que jovens como

Daniel* fidelizam seus clientes. Há

cocaína à vontade e a maconha

oferecida é “de butique”