josé pacheco -aulas no século xxi são um escândalo. com aulas ninguém aprende- - observador

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Uma escola sem divisão por ciclos de ensino, sem turmas, sem aulas, nem testes. Uma escola onde os alunos aprendem e onde são felizes. É esta a escola que o professor José Pacheco defende. José Pacheco tem 64 anos e é mestre em Educação da Criança, pela Universidade do Porto. Chegou a fazer parte do Conselho Nacional de Educação e ganhou prémios pelo projeto que coordenou na Escola da Ponte. José Pacheco: "Aulas no século XXI são um escândalo. Com aulas ... http://observador.pt/especiais/jose‐pacheco‐aulas‐no‐seculo‐xxi‐... 1 de 9 15‐04‐2016 11:10

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Uma escola sem divisão por ciclos de ensino, sem turmas, semaulas, nem testes. Uma escola onde os alunos aprendem e onde

são felizes. É esta a escola que o professor José Pacheco defende.

José Pacheco tem 64 anos e é mestre em Educação da Criança, pela

Universidade do Porto. Chegou a fazer parte do Conselho Nacional de

Educação e ganhou prémios pelo projeto que coordenou na Escola da Ponte.

José Pacheco: "Aulas no século XXI são um escândalo. Com aulas ... http://observador.pt/especiais/jose‐pacheco‐aulas‐no‐seculo‐xxi‐...

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de 100 projetos para um novo modelo de ensino. No ano em que a Escola da

Ponte faz 40 anos, o Observador pôs-se à conversa com o seu principal

fundador.

Crítico do modelo tradicional de ensino, que afirma ser do século XIX, o

professor defende a aprendizagem numa escola sem aulas, nem turmas, nem

ciclos. Uma mudança radical na forma como vemos a escola pública? Sim.

Mas possível de implementar, e com sucesso, garante.

Porque é que há 40 anos sentiu necessidade de mudar a forma

como dava aulas? O que o levou a iniciar o projeto “Fazer a

Ponte”?

Porque me vi incompetente e antiético. Incompetente porque não conseguia

ensinar todas as crianças e muitas reprovavam, e antiético porque reconhecia

que não ensinava todos e continuava a trabalhar do mesmo modo. E quando

encontrei duas professoras que faziam a mesma pergunta que eu — “Porque é

que damos a aula tão bem dada e há alunos que não aprendem?” —

descobrimos a resposta: se nós dávamos as aulas e eles não aprendiam, eles

não aprendiam porque nós dávamos a aula. É isso mesmo. Para nós foi

perder o chão. Nós só sabíamos dar aula. Por isso não fui eu que fiz a Ponte,

foi muita gente. Talvez eu fosse um despoletador do projeto. E o que fizemos

foi algo intuitivo e amoroso: continuámos a dar aulas, porque criança não é

cobaia, mas simultaneamente introduzimos nas nossas práticas, em equipa,

algumas metodologias, técnicas, espaços de convivência, que foram dando

forma a um novo projeto.

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Na autonomia, na responsabilidade e na solidariedade, que foram os três

valores matriciais do projeto. As escolas são as pessoas e as pessoas são os

seus valores. A escola não são edifícios, são projetos que partem de valores e

de princípios e nós fomos indo ao encontro de uma concretização desses

valores.

E as mudanças começaram logo a apresentar resultados?

Houve uma melhoria cognitiva, mas nós fomos além. Nós fizemos pela

primeira vez aquilo que hoje se chama de educação integral. Compreendemos

que teríamos de mexer não só no nível cognitivo, mas também no domínio

atitudinal, sócio moral, ético, estético, emocional, espiritual.

Mas a forma de ensinar mudou repentinamente?

Não. De início dávamos aula durante a maior parte do tempo, porque era

aquilo que nos tinham ensinado a fazer, mas fomos introduzindo alterações.

Passámos de uma cultura de solidão para uma cultura de equipa, de

corresponsabilização. Essa reelaboração da nossa cultura pessoal e

profissional custou tempo e sofrimento. Decidimos habitar um mesmo

espaço, derrubar paredes, juntar alunos. Compreendemos que sozinhos não

poderíamos ensinar tudo a todos. Mas se estivéssemos em equipa, com um

projeto, e autonomizássemos o ato de aprender, poderíamos responder

efetivamente às necessidades de cada jovem. Ao fim de oito anos estava já a

escola toda com um modelo diferente. E nós descobrimos uma coisa

fundamental, que é que um professor não ensina aquilo que diz, ele transmite

aquilo que é. Um professor tem que ser um tutor e um mediador de

aprendizagens. E a aprendizagem acontece quando há um vínculo afetivo

entre quem supostamente ensina e quem supostamente aprende.

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40 anos depois, como está a Ponte? E como está o ensino em

Portugal?

Tenho estado ausente e sinceramente posso estar muito desfasado da

realidade portuguesa, mas tenho os meus netos e o meu filho que é professor

e vou tendo retorno. Tenho tido algumas informações que me levam a crer

que todas as engenharias curriculares feitas até hoje, pouco ou nada fizeram

mudar a escola. Todos já perceberam que o modo como trabalham não

ensina todos e que isso contraria aquilo que é o direito à educação e que é um

dever do Estado. As escolas têm excelentes professores, mas a trabalhar do

modo errado. Não faz sentido alunos do século XXI terem professores do

século XX, com propostas teóricas do século XIX, da Revolução Industrial. A

grande questão é que as escolas têm sido geridas por burocratas e não por

pedagogos e as políticas públicas têm sido desastrosas: mais exames, mais

alunos por turma.

Quer dizer que não concorda com os exames.

Mais exames não vão melhorar o sistema porque não é a preocupação com o

termómetro que faz baixar a temperatura. Mais exames para quê? Os exames

não avaliam nada. O teste é o instrumento de avaliação mais falível que

existe. Conceber itens de teste, garantir fidelidade e tudo mais é um exercício

extremamente rigoroso, assim como assegurar que as condições são as

mesmas para todos quando se aplica o teste. E corrigir o teste também

introduz uma subjetividade enorme. Além disso, esses instrumentos de

avaliação apenas “provam” a capacidade de acumulação cognitiva, de

armazenamento de informação em memória de curto prazo, para debitar no

exame e esquecer.

Então como se deve avaliar as aprendizagens dos alunos?

Através de uma avaliação formativa contínua e sistemática, que é o que não

se faz nas escolas. Nas escolas aplica-se teste e dá-se uma nota sem saber o

que se faz. Há quem confunda avaliação com classificação e dê a nota a partir

dos resultados dos testes. Eu sei que se alega considerar uma percentagem da

nota dada a partir da avaliação de atitudes. Porém, não se apresenta os

instrumentos de avaliação, que permitam medir atitudes como a autonomia,

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E era de esperar que o ensino público português, passados estes

40 anos, mantivesse um modelo tradicional de aulas?

Eu acredito nos professores, na escola, mas não com as medidas político-

educativas que são tomadas. Injeta-se na escola cada vez mais objetivos por

pressão corporativa. Injeta-se nas escolas áreas que não faz sentido algum.

Por exemplo, criar uma aula de área de projeto? Projeto é o projeto da escola,

é o projeto educativo. Educação para a cidadania? Nós não ensinamos para a

cidadania, nós educamos na cidadania. Cidadania não é uma hora por

semana, é todo o tempo de escola. Andamos a brincar com coisas sérias. Está

tudo errado.

E porque ninguém muda? A mudança não passa também pelos

professores?

Os professores têm uma cultura em tudo contrária à mudança. Eles são

ótimas pessoas, maravilhosas. Repare, professor é a única profissão em que o

estágio é feito antes de tirar o curso. Fazem 12 anos a ouvir aulas, entram na

faculdade e ouvem aulas, e vão dar aulas. Podem até ouvir falar dos Piagets

da vida, mas os estágios são feitos em escolas tradicionais, onde estão

excelentes professores tradicionais que trabalham no paradigma do século

XIX ou XVIII. Este modelo de escola, desde o século XIX, que subdivide a

escola em ciclos, em anos, em turmas, em horário padrão, isso é

cartesianismo. Aulas? Aulas no século XXI são um escândalo! Em aulas

ninguém aprende! Eu aceito quem conteste o que eu digo, mas ninguém

contesta porque é uma verdade.

Mas é possível alunos de idades diferentes, todos juntos,

aprenderem, na mesma sala, o que é suposto para a sua idade?

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Porque não? Ninguém aprende com quem sabe a mesma coisa, ninguém

aprende com quem tem a mesma idade. Eu falo daquilo que eu faço [no

Brasil] e que tem excelentes resultados. Estou a falar de projetos que

produzem excelência académica e inclusão social e onde não há organização

por idades. Onde as escolas não têm casa de banho do aluno separada de casa

de banho do professor, onde os auxiliares de ação educativa ensinam a

limpar aqueles que sujam, onde a educação acontece. Onde não há aulas,

nem turmas, nem anos, que são dispositivos sem sentido nenhum, sem

fundamentação científica. Concebeu-se uma nova construção social de

aprendizagem onde todos aprendem e são felizes. Isso é possível. Eu provo

isso em mais de 100 projetos no Brasil e mais meia dúzia em Portugal.

E como vê a figura do chumbo?

A reprovação é a prova de que realmente a escola não funciona como deveria.

Muitas vezes se diz que os professores são exigentes quando reprovam. A

pergunta que eu faço é: se a escola melhor é a que mais alunos reprova, o

melhor hospital é o que mais doentes mata? Quando as pessoas nem sequer

refletem sobre isso… Quanto às classes de apoio, planos de recuperação, isso

é tudo um enfeite que não resulta, porque aquilo que não se ensina em oito

meses, não é em um mês de plano com mais do mesmo que se vai ensinar.

Não é com mais horas de aula que se vai ensinar mais, é com outro tipo de

aprendizagem.

Mas se o aluno não conseguir atingir as metas de aprendizagem…

como se faz?

Compreendo a insistência. Nas escolas que, infelizmente, ainda vamos tendo,

há alunos que não conseguem atingir metas. E é preciso acrescentar aulas de

recuperação, “explicações”, “planos educativos individuais” e outros

paliativos. Mas, nos projetos que acompanho, todos os alunos alcançam as

metas. Porque trabalhamos a montante, para não ter de remediar a jusante;

investimos na prevenção, para não tentar remediar depois. Nesses projetos,

não há “alunos que não conseguem atingir metas”. Portanto, nada é preciso

fazer, a não ser desenvolver um trabalho escolar coerente com a Lei de Bases.

Em cada escola a seu modo, não há receitas.

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Mas concorda que é difícil mudar este paradigma.

Se fosse fácil já tinha mudado. É difícil, é difícil…

Então como se pode fazer esta mudança?

Eu defendo sempre múltiplos caminhos. Um deles é que nós deveremos, nas

escolas que despertam para a necessidade de mudar, trabalhar com aqueles

professores que tomaram consciência e com coragem, lentamente,

respeitando a criança, começar a desenvolver o projeto educativo da escola.

Porque os projetos educativos das escolas não são cumpridos. E então esse

núcleo de projeto, respeitando quem não queira, tem de avançar com

autonomia pedagógica.

Aqui e ali têm sido anunciados alguns projetos inovadores, como

as salas de aula do futuro. Isto pode ser o início da mudança?

Não, de modo algum. A aula híbrida, como vejo por aí, é aula. Não tem de

haver aula. E as novas tecnologias podem ser importantes, se não forem

mitigar o modelo de escola, enfeitar as aulas com quadros interativos ou um

portátil por aluno. Quando um aluno está com acesso à informação na

Internet ele não aprende, ele precisa da intervenção do adulto, do mediador

da aprendizagem, que o ajude a passar da informação caótica para o

conhecimento e do conhecimento para uma ação e isso chama-se projeto. E

ao passar do conhecimento para a ação desenvolve competências. Isso não

acontece numa aula.

Mas nessas salas o professor está lá apenas a guiar o grupo de

alunos que tem de buscar as respostas.

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Perante o quê? Um projeto? E lança perguntas significativas para os alunos?

A aprendizagem tem de partir de necessidades, desejos, sonhos, algo

concreto, que eu sinto que a comunidade precisa. É a partir dessa

necessidade, com a introdução de projetos de pesquisa e roteiros de estudo,

que as coisas acontecem.

Pode-me dar um exemplo prático de como isto pode funcionar?

Há um jovem que se queixa que lhe põem o lixo à porta na sua rua e ele

percebe que tem de acabar com essa situação. Ele junta-se com outros jovens

e vai fazer um projeto para acabar com a lixeira. Ele vai ter de fazer roteiros

de pesquisa para perceber porque é que há lixo, o que é o lixo, o que é isso de

recolha seletiva de lixo. Ele vai ter de reunir muitos objetivos do currículo

nacional, de ciências, matemática, estudo do meio, português, para resolver.

Mas não ensinamos tudo assim. Há objetivos que é impossível incluir nesses

projetos que partem das necessidades, então aí nós fazemos os projetos

paralelos, alternativos, porque não podemos permitir que a criança não

aprenda todos os objetivos do programa.

Esses projetos funcionam de acordo com o modelo tradicional de

aulas?

Não! Vou perguntar-lhe e assim pergunto a muita gente: sabe fazer a raiz

quadrada? Já não se lembra! Sabe qual a fórmula para calcular o volume da

esfera? Não, pois não? Eu posso continuar a perguntar-lhe coisas do ensino

básico e você não sabe. E agora pergunto: não teve aulas sobre isso?

Aprendeu? Não. Numa aula não se aprende nada. Aprende-se no contexto de

projetos, com roteiros de pesquisa, com mediação pedagógica devidamente

feita e com avaliação formativa contínua e sistemática, preferencialmente

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E é possível fazer diferente e cumprir com os programas,

currículos e alcançar metas de aprendizagem?

Só é possível cumprir com tudo isso fazendo diferente, porque do modo que a

escola funciona o currículo não é cumprido. Os projetos não são cumpridos.

Que conselho deixa ao ministro da Educação?

Não sei. Mas posso propor que ele reúna com gente que já faz diferente para

melhor cá ou se quiser ir lá fora vai ver que lá fora acontecem coisas muito

boas em centenas de lugares, em muitos países. Esqueçam a Finlândia e o

Norte da Europa.

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