um escândalo na boêmia

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Um escândalo na Boêmia Arthur Conan Doyle Para Sherlock Holmes ela é sempre a mulher. Raramente ouvi-o mencioná-la sob qualquer outro nome. Aos olhos dele, ela eclipsa e sobrepuja todo o seu sexo. Não que ele sentisse qualquer emoção aparentada ao amor por Irene Adler. Todas as emoções, e essa particularmente, eram incompatíveis com a sua mente fria, precisa, mas admiravelmente equilibrada. Ele era, acho, a máquina de raciocínio de observação mais perfeita que o mundo já viu; mas, como amante, ele se colocaria numa falsa posição. Jamais falou das mais tenras paixões, a não ser com desprezo e escárnio. Eram coisas admiráveis para o observador - excelente para se tirar o véu das ações e dos motivos dos homens. Mas para o raciocinador treinado admitir essas intrusões em seu temperamento delicado e admiravelmente ajustado era introduzir um fator de distração que poderia lançar uma dúvida sobre todos os seus resultados mentais. Uma partícula num instrumento sensível, ou uma fenda numa de suas lentes poderosíssimas, não seriam mais perturbadoras do que uma emoção forte numa natureza como a dele. E contudo havia apenas uma mulher para ele, e essa mulher era a falecida Irene Adler, de duvidosa e discutível lembrança.

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Um escndalo na Bomia

Um escndalo na Bomia

Arthur Conan Doyle

Para Sherlock Holmes ela sempre a mulher. Raramente ouvi-o mencion-la

sob qualquer outro nome. Aos olhos dele, ela eclipsa e sobrepuja todo o

seu sexo. No que ele sentisse qualquer emoo aparentada ao amor por

Irene Adler. Todas as emoes, e essa particularmente, eram incompatveis

com a sua mente fria, precisa, mas admiravelmente equilibrada. Ele era,

acho, a mquina de raciocnio de observao mais perfeita que o mundo j

viu; mas, como amante, ele se colocaria numa falsa posio. Jamais falou

das mais tenras paixes, a no ser com desprezo e escrnio. Eram coisas

admirveis para o observador - excelente para se tirar o vu das aes e

dos motivos dos homens. Mas para o raciocinador treinado admitir essas

intruses em seu temperamento delicado e admiravelmente ajustado era

introduzir um fator de distrao que poderia lanar uma dvida sobre todos

os seus resultados mentais. Uma partcula num instrumento sensvel, ou uma

fenda numa de suas lentes poderosssimas, no seriam mais perturbadoras do

que uma emoo forte numa natureza como a dele. E contudo havia apenas uma

mulher para ele, e essa mulher era a falecida Irene Adler, de duvidosa e

discutvel lembrana.

Eu via Holmes muito pouco, ultimamente. O meu casamento nos afastou um do

outro. A minha completa felicidade e os interesses domsticos que envolvem

o homem que pela primeira vez se v como senhor de sua prpria casa eram

suficientes para absorver toda a minha ateno; enquanto isso Holmes, que

detestava qualquer forma de sociedade com a sua alma completamente bomia,

permaneceu em nossas acomodaes da Baker Street, e alternando de semana

em semana entre cocana e ambio, a sonolncia da droga, e a energia

feroz de sua poderosa natureza. Era ainda, como sempre, profundamente

atrado pelo estudo do crime, e aplicava suas imensas faculdades e seus

extraordinrios poderes de observao em seguir indcios, esclarecer

mistrios, que foram abandonados, sem nenhuma esperana, pela polcia

oficial. De vez em quando eu ouvia algum vago relato de suas faanhas: de

suas convocaes a Odessa no caso do assassinato de Trepoff, do seu

esclarecimento da singular tragdia dos irmos Atkinson em Trincomalee, e

finalmente da Misso que realizou to delicadamente e com tanto xito para

a famlia reinante da Holanda. Alm desses sinais de sua atividade, que eu

meramente partilhava com todos os leitores da imprensa cotidiana, sabia

pouco a respeito do meu ex-amigo e companheiro.

Uma noite - em 20 de maro de 1888 - eu estava voltando de uma visita a um

paciente (pois eu retomara ento prtica civil) quando o meu caminho me

conduziu pela Baker Street. Ao passar pela to lembrada porta, que deve

sempre ser associada em meu esprito com o meu namoro, e com os sombrios

incidentes do Estudo em Vermelho, fui tomado por um agudo desejo de ver

Holmes novamente, e de saber como ele estava empregando seus

extraordinrios poderes. Os quartos estavam brilhantemente iluminados, e,

quando olhei para cima, vi a sua figura alta e magra passar duas vezes

como uma silhueta escura contra a cortina. Holmes estava andando pela

sala, rapidamente, ansiosamente, com a cabea enfiada no peito e com as

mos fechadas atrs dele. Como eu conhecia todos os seus estados de

esprito e seus hbitos, a sua atitude e as suas maneiras eram reveladoras

para mim. Ele estava em ao novamente. Sara dos seus sonhos produzidos

pela droga, e estava avidamente na pista de algum novo problema. Toquei a

campainha, e fui conduzido ao quarto que outrora tinha sido em parte meu.

Seus modos no foram efusivos. Raramente eram; mas acho que ficou contente

ao ver-me. Sem quase dizer nada, mas com um olhar bondoso, apontou-me uma

poltrona, tirou a sua caixa de charutos, e indicou um recipiente de lcool

e um gasognio no canto da sala. Depois ficou diante do fogo, e olhou-me

com o seu singular estilo introspectivo.

- O casamento foi bom para voc, observou. - Eu acho, Watson, que voc

engordou quatro quilos desde que te vi.

- Quatro! - respondi.

- Sem dvida, talvez at um pouco mais. S um pouquinho mais, imagino,

Watson. E vejo que est praticando novamente. No me disse que pretendia

voltar ao seu ofcio.

- Ento, como est sabendo?

- Vejo-o, deduzo. Como sei que voc andou se ensopando ultimamente, e que

tem a criada mais desajeitada e descuidada do mundo.

- Meu querido Holmes - disse eu - isso demais. Voc certamente teria

sido queimado, se tivesse vivido h alguns sculos atrs. verdade que

fiz uma caminhada no interior na quinta-feira e voltei para casa numa

sujeira terrvel; mas, como troquei as minhas roupas, no posso imaginar

como Voc deduziu isso. Quanto a Mary Jane, ela incorrigvel, e minha

mulher j a notificou; mas, novamente, no consigo ver como descobriu

isso.

Ele riu para si mesmo e esfregou suas compridas e nervosas mos.

- absolutamente simples, disse ele. - Os meus olhos me dizem que no seu

sapato esquerdo, onde justamente bate a luz do fogo, o couro est marcado

por seis cortes quase paralelos. Obviamente foram causados por algum que

muito descuidadamente raspou as bordas da sola a fim de remover a lama

incrustada nela. Da, como voc v, a minha dupla deduo de que voc saiu

num tempo horrvel, e de que tem um espcimem corta-botas particularmente

pssimo das empregadas londrinas. Quanto sua prtica, se um cavalheiro

entra em meus aposentos cheirando a iodo, com uma marca preta de nitrato

de prata no indicador direito, e uma salincia de lado no alto do chapu

para mostrar onde guardou o estetoscpio, devo ser um idiota, com efeito,

se no proclam-lo ser um membro ativo da profisso mdica.

No pude deixar de rir diante da facilidade com a qual ele explicou o seu

processo de deduo. "Quando o ouo dar suas razes", observei, "tudo me

parece ser ridiculamente to simples que at eu mesmo poderia faz-lo,

embora a cada fase sucessiva do seu raciocnio eu fique perplexo, at que

voc explica o processo. E contudo acredito que meus olhos sejam to bons

quanto os seus."

- Perfeitamente - respondeu ele, acendendo um cigarro, e jogando-se numa

poltrona. - Voc v, mas voc no observa. A diferena clara. Por

exemplo, voc freqentemente tem visto os degraus que levam do hall a este

quarto.

- Freqentemente.

- Quantas vezes?

- Ora, centenas de vezes.

- Quantos so ento?

- Quantos? No sei.

- Perfeitamente! Voc no os observou, E contudo voc os viu. Este o

problema. Eu sei, porm, que so dezessete degraus, porque eu os observei.

A propsito, como voc est interessado nesses problemas, e como voc

suficientemente bom para fazer uma ou duas crnicas de minhas corriqueiras

experincias, pode se interessar por isto. - Apanhou uma grossa folha de

papel, escrito a tinta, que estava em cima da mesa.

- Chegou pelo ltimo correio - disse ele. - leia em voz alta.

O bilhete estava sem data, sem assinatura e sem endereo.

"Haver uma visita para voc esta noite, s quinze para as oito, dizia a

nota, de um cavalheiro que deseja consult-lo sobre um assunto da maior

urgncia. Os seus recentes servios a uma das casas reais da Europa

mostraram que voc uma pessoa a quem se pode seguramente confiar

assuntos de uma importncia que dificilmente pode ser exagerada. Esta

informao de voc recebemos de todos os cantos. Esteja em seu quarto

ento a essa hora, e no leve a mal se o seu visitante usar uma mscara."

- Isto sem dvida um mistrio, observei. - O que imagina que significa?

- No tenho ainda nenhum dado. um erro capital teorizar antes de se ter

dados. Insensivelmente comea-se a torcer os fatos para se adequarem s

teorias, em vez das teorias se adequarem aos fatos. Mas e o bilhete? O que

voc deduz dele?

Cuidadosamente examinei o texto, e o papel sobre o qual foi escrito.

- O homem que o escreveu era presumivelmente prspero, observei,

esforando-me para imitar os processos do meu companheiro. Este papel no

poderia ter sido comprado por menos de meia-coroa o mao. singularmente

forte e duro.

- Singular - esta a palavra, disse Holmes. - No um papel ingls

absolutamente. Ponha-o na luz.

Pus, e vi um grande E e um pequeno g, um p, e um grande G com um pequeno t

compostos na textura do papel.

- O que voc conclui disso? - perguntou Holmes.

- O nome do fabricante, sem dvida; ou melhor, o seu monograma.

- Absolutamente. O G com o pequeno t significa "Gesellschaft", que o

termo alemo para "Companhia". uma abreviao habitual como a nossa

"Cia." O P, claro, significa "Papier". Quanto ao Eg. Vamos dar uma

olhada no nosso Dicionrio Continental.

Ele pegou um grosso volume marrom de sua estante.

- Eglow, Eglonitz - aqui, Egria. Fica numa regio de fala alem - na

Bomia, no longe de Carlsbad. "Notvel por ser o cenrio da morte de

Wallenstein, e por suas numerosas fbricas de papel e de vidro". Ah, ah,

meu velho, o que voc conclui disso?

Seus olhos cintilaram, e ele mandou para o alto uma grande fumaa azul

triunfante do seu cigarro.

- O papel foi feito na Bomia, disse eu.

- Exatamente. E o homem que escreveu o bilhete alemo. Observe a

construo peculiar da frase - "Esta informao de voc recebemos de todos

os cantos". Um russo ou um francs no poderiam ter escrito isso. o

alemo que to descorts para com os verbos. Resta somente, portanto,

descobrir o que deseja este alemo que escreve num papel da Bomia, e

prefere usar uma mscara a mostrar o seu rosto. E parece que j chegou, se

no estou enganado, para resolver todas as nossas dvidas.

- Uma parelha, pelo rudo, disse ele. - Sim, continuou, insinuando rodas

contra o meio-fio, seguidas por forte toque de campainha. Holmes assobiou.

- Uma parelha, pelo rudo, disse ele. - Sim, continuou, olhando pela

janela. - Um lindo carro fechado e uma parelha de beldades. Cento e

cinqenta guinus cada uma. H dinheiro neste caso, Watson, se no houver

nada mais.

- Acho que melhor eu ir embora, Holmes.

- De jeito nenhum, doutor. Permanea onde est. Fico perdido sem o meu

Boswell. E isso promete ser interessante. Seria uma pena perder.

- Mas o seu cliente...

- No se preocupe com ele. Posso querer a sua ajuda, e ele tambm. Est

chegando. Sente-se nessa poltrona, doutor, e preste-nos a maior ateno.

Lentos e pesados passos, que foram ouvidos nas escadas e no corredor,

pararam imediatamente na porta. Em seguida houve uma batida alta e

autoritria.

- Entre!, disse Holmes.

O homem que entrou, dificilmente com menos de dois metros de altura, tinha

o trax e os membros de um Hrcules. Seu traje era rico, de uma riqueza

que, na Inglaterra, seria considerada semelhante ao mau gosto. Grandes

pedaos de astrac foram recortados sobre as mangas e as frentes do seu

casaco jaqueto, enquanto o capote azulo que estava jogado sobre os seus

ombros era forrado com seda brilhante, e preso ao pescoo por um broche

que consistia de um nico berilo brilhante. As botas que iam at a metade

da barriga das pernas, e que eram enfeitadas no alto com uma rica pele

marrom, completavam a impresso de opulncia brbara, sugerida pela

aparncia global. Carregava na mo um chapu de abas largas, enquanto

usava na parte superior do rosto, estendendo-se at os ossos faciais, uma

mscara negra, que tinha aparentemente ajustado naquele mesmo momento,

pois sua mo ainda estava erguida junto a ela quando entrou. Na parte

inferior do rosto, parecia ser um homem de carter forte, com lbios

grossos e salientes, um queixo comprido e reto, sugerindo resoluo levada

at o extremo da obstinao.

- Voc recebeu o meu bilhete?, perguntou, com voz spera e grave,

fortemente marcada pelo sotaque germnico. - Eu lhe disse que viria.

Olhou para cada um de ns, como se estivesse em dvida a quem se dirigir.

- Por favor, sente-se, disse Holmes. - Este meu amigo e colega, Watson,

que ocasionalmente excelente para me ajudar nos casos. A quem tenho a

honra de me dirigir?

- Pode se dirigir a mim como o Conde Von Kramm, um nobre da Bomia.

Compreendo que este cavalheiro, o seu amigo, um homem honrado e

discreto, a quem posso confiar um assunto da mais extrema importncia. Se

no, eu preferiria me comunicar apenas com voc.

Levantei-me, para ir, mas Holmes me pegou pelo pulso e me levou de volta

poltrona.

- Os dois, ou nenhum, disse ele. - Pode dizer perante este cavalheiro

qualquer coisa que pode me dizer.

O conde encolheu os largos ombros.

- Ento devo comear, disse ele, comprometendo-os ao mais absoluto segredo

por dois anos, no fim dos quais o assunto no ter nenhuma importncia. No

momento no ser bastante dizer que de tal peso que pode ter uma

influncia sobre a histria europia.

- Eu prometo, disse Holmes.

- E eu tambm.

- Vocs iro desculpar esta mscara, continuou o nosso estranho visitante.

- A augusta pessoa que me emprega deseja que o seu agente fique

desconhecido para vocs, e devo confessar imediatamente que o ttulo pelo

qual me chamei no exatamente o meu.

- Estava ciente disso, disse Holmes, secamente.

- As circunstncias so de grande delicadeza, e todas as precaues tm

que ser tomadas para extinguir o que pode vir a ser um imenso escndalo e

comprometer seriamente uma das famlias reinantes da Europa. Para falar

francamente, o assunto implica a grande Casa de Ormstein, reis

hereditrios da Bomia.

- Tambm estava ciente disso, murmurou Holmes, instalando-se em sua

poltrona e fechando os olhos.

Nosso visitante olhou com certa surpresa evidente para a lnguida e

indolente figura do homem que sem dvida lhe fora pintado como o mais

incisivo raciocinador e o mais enrgico agente da Europa. Holmes

lentamente reabriu os olhos e olhou impacientemente o seu enorme cliente.

- Se Sua Majestade condescender em expor o caso, observou ele, eu seria

mais capaz de orient-lo.

O homem levantou-se de sua poltrona e andou de um lado para outro na sala,

numa incontrolvel agitao. Depois, com um gesto de desespero, arrancou a

mscara do rosto e jogou-a no cho.

- Voc tem razo, gritou. - Eu sou o Rei. Por que tentar escond-lo?

- Por que, com efeito?, murmurou Holmes. - Sua Majestade nada falou antes

que eu estivesse ciente de que me estava dirigindo a Wilheim Gottsreich

Sigismond von Ormstein, Gro-Duque de Cassel-Feistein, e Rei hereditrio

da Bomia.

- Mas voc compreende, disse o nosso estranho visitante, sentando-se mais

uma vez e passando a mo pela testa alta e branca, voc compreende que no

estou acostumado a tratar desses negcios pessoalmente. Porm, o assunto

era to delicado que no pude confi-lo a um agente sem me pr em seu

poder. Vim incgnito de Praga com o propsito de consult-lo.

- Ento, por favor, consulte, disse Holmes, fechando os olhos mais uma

vez.

- Os fatos so resumidamente estes: H cinco anos atrs, durante uma longe

visita a Varsvia, conheci a famosa aventureira, Irene Adler. O nome lhe

sem dvida familiar.

- Tenha a bondade de procurar no meu ndice, doutor, murmurou Holmes, sem

abrir os olhos.

Durante anos Sherlock adotava um sistema de rotular todos os pargrafos

concernentes a homens e coisas, de modo que era difcil designar um

assunto ou uma pessoa sobre os quais ele no fornecesse imediatamente

informaes. Neste caso descobri a biografia de Irene imprensada entre a

de um Rabi hebreu e a de um comandante que escrevera uma monografia sobre

os peixes das profundidades martimas.

- Deixe-me ver!, disse Holmes. - Hum! Nascida em Nova Jersey em 1858.

Contralto... hum! La Scala, hum! Prima Donna da Opera Imperial de

Varsvia... Sim! Afastada das peras... ah! Vivendo em Londres...

perfeito! Sua Majestade, como percebo, envolveu-se com esta jovem pessoa,

escreveu-lhe algumas cartas comprometedoras, e est agora desejoso de

obter essas cartas de volta.

- Precisamente. Mas como...

- Houve um casamento secreto?

- Nenhum documento ou certificado legal?

- No.

- Ento no consigo compreender Sua Majestade. Se esta jovem pessoa

quisesse usar suas cartas para chantagem ou outros propsitos, como vai

provar a sua autenticidade?

- Pela letra.

- Puh, puh! Falsificada.

- Meu bloco particular.

- Roubado.

- Meu selo.

- Imitado.

- Minha fotografia

- Comprada.

- Ns dois estamos na fotografia.

- Oh, meu Deus! Isso pssimo! Sua Majestade cometeu sem dvida uma

indiscrio.

- Eu estava louco... demente.

- Voc se comprometeu seriamente.

- Eu era ento o Prncipe da Coroa. Era jovem. S tenho trinta anos agora.

- Ela deve ser recuperada.

- Tentamos e falhamos.

- Sua Majestade deve pagar. Deve ser comprada.

- Ela no vender.

- Roubada, ento.

- Cinco tentativas foram feitas. Dois assaltantes s minhas custas

revistaram a sua casa. Uma vez desviamos a sua bagagem quando viajava.

Duas vezes foi emboscada. No houve nenhum resultado.

- Nenhum sinal da fotografia?

- Absolutamente nenhum.

Holmes riu.

- realmente um pequeno problema, disse ele.

- Mas muito srio para mim, retornou o Rei, repreensivamente.

- Muito, sem dvida. E o que ela se prope fazer com a fotografia?

- Arruinar-me.

- Mas como?

- Estou para me casar.

- Ouvi dizer.

- Com Clotilde Lothman von Saxe-Meningen, segunda filha do Rei da

Escandinvia. Voc conhece os estritos princpios de sua famlia. Ela a

prpria alma da delicadeza. Uma sombra de dvida quanto minha conduta

levar tudo ao fim.

- E Irene Adler?

- Ameaa mandar-lhe a fotografia. E o far. Sei que o far. Voc a

conhece, mas ela tem uma alma de ao. Tem o rosto da mais linda mulheres,

e a mente do mais resoluto dos homens. A me ver casado outra mulher, no

h nenhum extremo ao qual ela no chegue... nenhum.

- Tem certeza de que ela no mandou ainda?

- Tenho certeza.

- E por qu?

- Porque ela disse que a mandaria no dia em que o noivado fosse

publicamente proclamado. Ser na prxima segunda-feira.

- Oh, ento, temos trs dias ainda, disse Holmes, com um bocejo. - Isso

muita sorte, pois tenho um ou dois assuntos de importncia para cuidar no

momento. Sua Majestade, evidentemente, ficar em Londres por estes dias?

- Certamente. Voc me encontrar no Langham, sob o nome do Conde Von

Kramm.

Ento devo lhe escrever umas linhas para lhe informar o nosso progresso.

- Por favor, escreva. Serei todo ansiedade.

- E quanto ao dinheiro?

- Voc tem carte blanche.

- Absolutamente?

- Digo-lhe que abriria mo de uma das provncias do meu reino para obter

essa fotografia.

- E para as despesas atuais?

O rei tirou debaixo do capote um pesado saco de couro de camelo e

colocou-o sobre a mesa.

- Aqui esto trezentas libras em ouro e setecentas em notas, disse ele.

Holmes fez um recibo numa folha do seu bloco e lhe entregou.

- E o endereo da Mademoiselle? perguntou.

- Briony Lodge, Serpentine Avenue, St. John"s Wood.

Holmes tomou nota.

- Uma outra pergunta, disse ele. - A fotografia era grande?

- Era.

- Ento, boa-noite, Sua Majestade, e espero que logo tenhamos algumas boas

notcias para voc. E boa-noite, Watson, acrescentou, quando as rodas da

carruagem real rolaram pela rua. - Se for gentil em aparecer amanh

tarde, s trs horas, gostaria de conversar sobre este pequeno assunto com

voc.

s trs horas precisamente eu estava na Baker Street, mas Holmes no tinha

voltado. A proprietria me informou que ele sara de casa logo depois das

oito horas da manh. Sentei-me diante do fogo, com a inteno de

esper-lo, por mais que demorasse. Eu j estava profundamente interessado

em sua investigao, pois, embora no estivesse envolvida por nenhum dos

estranhos e horrveis aspectos associados aos dois crimes que eu j

registrada, a natureza do caso e a elevada posio do cliente davam-lhe um

carter prprio. Com efeito, apartada a natureza da investigao que meu

amigo tinha mo, havia algo em sua magistral compreenso de uma

situao, e em seu incisivo e profundo raciocnio, que para mim constitua

um prazer estudar o seu sistema de trabalho, e acompanhar os rpidos e

sutis mtodos pelos quais ele desembaraava os mais inextricveis

mistrios. To acostumado estava ao seu invarivel sucesso que a

possibilidade mesma de fracasso deixara de entrar em minha cabea.

Eram quatro horas em ponto quando a porta se abriu, e um cavalaria de

aparncia bbada, descabelado em suas com um rosto inflamado e roupas

horrveis, entrou na sala. Acostumado como estava aos poderes divertidos

do meu amigo no emprego de disfarces, tive de olhar trs vezes antes de

ter certeza de que era realmente ele. Com um aceno de cabea desapareceu

no quarto, de onde emergiu depois de cinco minutos, vestido com um tweed e

respeitvel, como antes. Pondo as mos nos bolsos, espichou as pernas na

frente do fogo, e riu sinceramente durante alguns minutos.

- Ora, realmente!, pitou, e depois parou; e riu novamente at que foi

obrigado a se deitar flcida e abandonadamente, na poltrona.

- O que ?

- realmente muito engraado. Tenho certeza que voc jamais adivinharia

como empreguei a manh, ou o que acabei fazendo.

- No posso imaginar. Suponho que esteve observando os hbitos, e talvez a

casa da Senhorita Irene Adler.

- Perfeitamente; mas a seqncia foi mais do que inesperada. Vou lhe

contar, todavia. Sa de casa um pouco depois das oito desta manh, vestido

como um cavalaria fora do trabalho. H uma maravilhosa simpatia e uma

livre maonaria entre cavalarias. Seja um deles, e saber tudo o que h

para saber. logo descobri Briony Lodge. uma manso elegante, com um

jardim nos fundos, mas construda bem defronte da estrada, dois

pavimentos. Fechadura de segurana na porta. Uma grande sala de estar no

lado direito, bem mobiliada, com compridas janelas at o cho, e aqueles

ridculos prendedores ingleses de janela, que at uma criana poderia

abrir. Atrs no havia nada notvel, a no ser que a janela do corredor

pudesse ser alcanada do alto da cocheira. Dei uma volta e examinei-a

minuciosamente de todos os pontos de vista, mas sem notar nada mais de

interesse.

- Desci vagarosamente a rua e descobri, como esperava, uma cocheira se

atinge por um dos muros do jardim. Ajudei os cocheiros a escovar e limpar

os cavalos, e recebi em troca dois pence, um copo pitadas de fumo, e

quantas informaes precisava a respeito para no falar de coisas a

respeito de meia-dzia de pessoas que no me interessavam, mas cujas

biografias fui compelido a ouvir.

- E quanto a Irene Adler?, perguntei.

- Oh!, ela j virou a cabea de todos os homens por a. a pessoa mais

delicada deste planeta, assim dizem os cocheiros de Serpentine. Mora

tranqilamente, canta em concertos, sai de carro s cinco todos os dias e

volta s sete em ponto para o jantar. Raramente sai em outras horas,

exceto quando vai cantar. Tem s um visitante masculino, mas suas visitas

Ele moreno, simptico e arrojado; vai visit-la uma ou duas vezes por

dia. um certo Sr. Godfrey Norton, do Frum. Veja as vantagens de um

confidente cocheiro. Eles o tinham levado para casa diversas vezes e

sabiam tudo a seu respeito. Depois de ter ouvido tudo o que eles tinham

para contar, comecei a andar de um lado para o outro, nas proximidades de

Briony Lodge, e a pensar no meu plano de campanha.

- Esse Godfrey Norton era evidentemente um fator importante no caso. Era

advogado. Isto coisa sria. Qual era a relao entre eles, e qual o

objetivo de suas repetidas visitas? Ela era sua cliente, sua amiga ou sua

amante? Se cliente, teria provavelmente transferido a fotografia para ele

guardar. Se amante, seria menos provvel. Da soluo deste problema

dependia eu continuar meu trabalho em Briony Lodge, ou voltar minha

ateno para a sala do cavalheiro no Frum. Era um ponto delicado, e abriu

o campo de minha investigao. Receio que o aborreo com esses detalhes,

mas tenho de faz-lo ver as minhas pequenas dificuldades, se quiser

compreender a situao.

- Estou acompanhando com a maior ateno, respondi.

- Eu ainda estava ponderando o assunto, quando um tlburi se dirigiu para

a Briony Lodge, e um cavalheiro saltou. Era atraente, moreno, aquilino, e

usava bigode, evidentemente o homem de quem ouvi falar. Parecia estar com

grande pressa, gritou para o cocheiro que esperasse, passou rpido pela

empregada que lhe abriu a porta, com jeito de pessoa familiarizada na

casa.

- Permaneceu l dentro meia hora mais ou menos, e pude v-lo atravs da

janela da. sala, andando de um lado para o outro, falando e gesticulando

com grande excitao. Dela no pude ver nada. Da a pouco ele saiu,

parecendo mais apressado do que antes. Quando pulou dentro do tlburi,

tirou do bolso um relgio de ouro e olhou-o com ateno. "Dirija como o

demnio", gritou, "primeiro a Gross & Hankey em Regent Street depois

Igreja de Santa Mnica em Edgeware Road. Meia libra se o fizer em vinte

minutos!"

- L se foram, eu estava imaginando se no faria bem em segui-los quando

veio subindo a viela uma carruagem vistosa, cujo cocheiro ainda no havia

abotoado o palet, com a gravata torta, enquanto as correias dos animais

estavam mal colocadas e no afiveladas. Mal parou o carro, Irene correu da

porta da casa para dentro dele. S pude v-la um instante, mas era linda,

com um rosto pelo qual um homem morre por ele.

- Igreja de Santa Mnica, John - disse ela - e meia libra se voc chegar

l em vinte minutos.

- Isto era bom demais para se perder, Watson. Estava eu ponderando se

devia correr ou me pendurar em sua carruagem, quando passou um tlburi. O

cocheiro olhou duas vezes para um tipo to maltrapilho; pulei dentro porm

antes que ele me recusasse. " Igreja de Santa Mnica!", disse eu, "meia

libra se voc chegar l em vinte minutos". Faltavam vinte e cinco minutos

para as doze, e era fcil perceber o que ia acontecer.

- Meu cocheiro simplesmente voou. No me lembro de ter viajado to

depressa, mas mesmo assim os outros j haviam chegado. O cabriol e a

vistosa carruagem, com os cavalos suando, estavam diante da porta quando

cheguei. Paguei o homem e me precipitei para dentro da igreja. No havia

ningum a no ser os dois a quem eu havia seguido e o vigrio vestido na

sua sobrepeliz de eclesistico e que parecia estar discutindo com eles.

Todos os trs estavam juntos em frente do altar; eu fui andando

vagarosamente pela nave como qualquer um vadio que tivesse entrado na

igreja. De repente, para surpresa minha, os trs de perto do altar viraram

se para mim, e Godfrey Norton veio correndo na minha direo.

- Graas a Deus!, exclamou. - Voc servir. Venha! Venha!

- Para que? - perguntei.

- Venha, homem, venha, s por trs minutos, ou isto no ser legal.

- Fui meio empurrado at o altar e, antes de saber onde me achava, percebi

que estava murmurando as frases que eram proferidas nos meus ouvidos, e

prometendo coisas de que no sabia nada e, enfim, assistindo praticamente

ao casamento de Irene Adler, solteira, e Godfrey Norton, solteiro.

Acabou-se tudo num instante e de um lado estava o cavalheiro

agradecendo-me e de outro a dama, enquanto o vigrio sorria na minha

frente. Foi a mais ridcula posio em que me achei na vida, e foi a

lembrana disto tudo que me fez rir agora. Parece-me que havia alguma

irregularidade quanto licena do casamento e que o clrigo havia

recusado a cas-los, em absoluto, sem testemunha, e que a minha chegada

naquele momento salvou a situao desagradvel de ter o noivo de sair a

rua procura de uma pessoa para testemunha. O noivo deu-me um soberano e

pretendo us-lo, ligado minha corrente de relgio como lembrana da

ocasio.

- Isto foi uma reviravolta inesperada nos negcios, disse eu... e depois?

- Bem, vi que meus planos estavam seriamente ameaados. Parecia que o

casal podia partir imediatamente e eu precisava tomar medidas rpidas e

enrgicas. A porta da igreja, todavia, separaram-se, indo ele para o frum

e ela para casa. "Vou passear no parque como sempre s cinco horas", disse

ela quando o deixou. No ouvi mais nada. Saram em direes diferentes, e

eu fui fazer os meus prprios arranjos.

- Quais so eles?

- Um pouco de carne fria e um copo de cerveja, disse ele, tocando a

campainha. - Estive ocupado demais para pensar em comida e possvel que

fique mais ocupado ainda tardinha. A propsito, doutor, precisarei de

sua cooperao.

- Terei o maior prazer.

- Voc no faz questo de quebrar as leis?

- Nem um pouco.

- Nem de se arriscar a ser preso?

- No, por uma boa causa.

- Oh, a causa excelente!

- Ento estou ao seu dispor.

- Tinha certeza de que poderia contar com voc.

- Mas o que que voc deseja?

- Depois que Mrs. Turner tiver trazido a bandeja, vou lhe explicar. -

Agora - disse ele, enquanto se virava para comer a simples refeio que a

proprietria providenciara - preciso falar enquanto como, porque temos

pouco tempo. So quase cinco horas. Dentro de duas horas devemos estar no

palco da ao. A Senhorita Irene, ou melhor Madame, volta do passeio s

sete. Precisamos estar em Briony Lodge para encontr-la.

- E depois?

- Deixe isso por minha conta. J arranjei o que se deve fazer. H somente

um ponto no qual preciso insistir. Voc no deve interferir, seja qual for

o resultado. Compreende?

- Tenho de ficar neutro?

- E no fazer nada, absolutamente. Haver talvez um pouco de

aborrecimento. No se meta. A coisa terminar sendo eu carregado para

dentro da casa. Em quatro ou cinco minutos depois abriro a janela da sala

e voc deve se colocar juntinho a ela.

- Sim.

- Fique olhando para mim, porque poder me ver l de fora.

- Sim.

- E quando eu levantar a mo - assim - voc lanar para dentro da sala a

coisa que vou lhe dar e ao mesmo tempo dar o alarma de fogo. Est

entendido?

- Perfeitamente.

- No nada alarmante - disse ele, tirando do bolso um objeto com feitio

de charuto. - simplesmente um rojo comum que os encanadores usam,

arrumado em cada extremidade para se iluminar automaticamente. Seu

trabalho apenas isto. Quando der o alarme de fogo, ser percebido por um

bom nmero de pessoas. Ir ento para o fim da rua onde o encontrarei em

dez minutos. Espero que eu tenha sido claro.

- Permaneo neutro e me aproximo da janela para olhar voc e, vendo o

sinal, lano pela janela este objeto, depois dou o alarme de fogo e vou

esper-lo na esquina da rua.

- Exatamente.

- Ento pode contar comigo.

- Excelente. Acho que j quase hora de me preparar para o novo papel que

devo desempenhar.

Desapareceu em seu quarto, e em poucos minutos voltou vestido como um

amvel e simples clrigo dissidente. Seu chapu preto de aba suas calas

largas, gravata branca, sorriso simptico e uma aparncia de curiosidade

benevolente e compenetrante eram tais que s o Sr. John Hare poderia t-lo

igualado. No que Holmes tivesse meramente trocado de roupa; sua

expresso, seus modos, sua prpria alma pareciam transformar-se a cada

novo papel que ele representava. O palco perdeu um excelente ator, assim

como a cincia perdera um perspicaz raciocinador quando ele se tornou

especialista em crimes.

Eram seis e quinze quando samos da Baker Street, e ainda faltavam dez

minutos para a hora marcada, quando nos achamos na Serpentine Avenue. J

estava escuro e as lmpadas das ruas estavam sendo acesas quando passamos

de um lado para o outro em frente de Briony Lodge, esperando pela

moradora. A casa era justamente como eu tinha imaginado pela descrio

sucinta que Sherlock Holmes havia feito, mas o local no era to isolado

como eu esperava. Ao contrrio, por ser uma rua pequena em vizinhana

quieta, achei-a muito animada. Havia um grupo de homens pobremente

vestidos, fumando e rindo numa esquina, um amolador de facas com sua

mquina, dois guardas namorando uma empregada e diversos moos bem

vestidos que vinham andando descuidadamente com charuto na boca.

- Voc v - observou Holmes, enquanto passvamos para l e para c, em

frente da casa - este casamento simplifica um tanto o caso. A fotografia

se torna agora uma arma de dois gumes. A probabilidade de que Irene no

queira que ela seja vista pelo Sr. Godfrey Norton, assim como o nosso

cliente no quer que seja vista pela princesa. Agora, a questo : onde

vamos encontrar a fotografia?

- Onde, com efeito?

- No provvel que ela a carregue consigo. tamanho grande. Muito

grande para ser escondida na roupa de uma mulher. Ela sabe que o rei

capaz de embosc-la e mandar revist-la. Duas tentativas deste tipo j

foram feitas. Podemos considerar, portanto, que ela no a carrega consigo.

- Onde est, ento?

- Com o seu banqueiro ou com o seu advogado. H essa dupla possibilidade.

Mas estou inclinado a achar que no nenhuma dessas. As mulheres so

naturalmente cheias de segredo, e tm sua maneira prpria de guardar

segredos. Por que ela havia de entregar a fotografia para outra pessoa?

Ela capaz de confiar na sua prpria guarda, mas no imagina que

influncia poltica ou indireta pode ser exercida para subornar um homem.

Alm disso, no se esquea de que ela havia resolvido usar a fotografia

dentro de poucos dias. Deve estar onde possa apanh-la facilmente. Deve

estar em sua prpria casa.

- Mas j tentaram roub-la duas vezes?

- Bobagem! No souberam procurar.

- Mas como voc vai procurara?

- Eu no vou.

- E da?

- Vou fazer com que ela me mostre onde est.

- Ela recusar.

- No ser capaz. Mas estou ouvindo o rudo de rodas. a carruagem dela.

Agora, cumpra as minhas ordens, literalmente.

Enquanto ele falava, a luz das lmpadas internas de uma carruagem virou a

curva da avenida. Era um lindo e pequeno land que parou diante da portada

Briony Lodge. Ao parar, um dos desocupados da esquina avanou para abrir a

porta, esperando receber um nquel, mas foi empurrado por outro dos

vagabundos que correram no mesmo instante, com a mesma inteno. Houve uma

luta feroz, aumentada pelos dois guardas, que apoiaram um dos briges, e

pelo amolador, que se ps a apoiar o outro. Houve cacetada e num instante

a dama que havia descido do carro estava no centro de uma roda de homens

lutando um contra o outro a murros e cacetadas. Holmes entrou na

aglomerao para proteger a dama; mas justamente na hora em que chegou

perto dela, deu um grito e caiu no cho, com o sangue a escorrer pela

face. sua queda os guardas deram no p por uma direo e os vagabundos

por outra, enquanto um grupo de pessoas bem vestidas que tinham

presenciado a escaramua sem se meter, aproximou-se para ajudar a dama e o

homem machucado. Irene Adler, como eu ainda a chamarei, subiu

apressadamente os degraus; mas ficou no alto da escada com a sua soberba

figura recortada contra as luzes do hall, olhando para a rua.

- Est muito ferido o pobre cavalheiro? - perguntou.

- Ele est morto - exclamaram vrias vozes.

- No, no, ainda est vivo - gritou uma outra. - Mas morrer antes de

levarem-no para o hospital.

- um sujeito corajoso - disse uma mulher. - Teriam tirado o relgio e a

bolsa da senhora se no fosse ele. Eram um bando, e perigoso tambm. Ah,

ele t respirando agora.

- Ele no pode ficar na rua. Podemos lev-lo para dentro, Madame?

- Certamente. Tragam-no para a sala. H um sof confortvel. Por aqui, por

favor!

Lenta e solenemente levaram-no para dentro da manso e deitaram-no na sala

principal, enquanto eu observava os acontecimentos do meu posto na janela.

As lmpadas foram acesas, mas as cortinas no foram puxadas, de modo que

pude ver Holmes deitado no sof. No sei se ele teve vergonha naquele

momento do papel que estava representando, mas sei que nunca me senti

sinceramente to envergonhado de mim mesmo, quando vi a linda criatura,

contra quem conspirvamos, ou a graa e a bondade com as quais ajudavam o

homem machucado. Todavia, seria uma das piores traies deixar Holmes

agora. Endureci o meu corao, e tirei o foguete que trazia debaixo da

capa. Afinal de contas, pensei, no a estamos prejudicando. Estamos apenas

evitando que ela prejudique outra pessoa.

Holmes havia sentado no sof, e eu o vi se agitar como quem precisa de ar.

Uma empregada atravessou a sala depressa e abriu a janela. No mesmo

instante vi que ele levantava a mo e, a este sinal, atirei meu foguete

dentro da sala, com o grito de "Fogo!". Mal a palavra saiu de Lbios, a

multido de espectadores, os bem e os mal vestidos - cavalheiros,

cocheiros e empregadas - uniram-se num grito geral de "Fogo!". Rolos de

fumaa ondularam pela sala e para fora da janela. Peguei num relance

figuras correndo, e um momento depois a voz de Holmes dizendo que era um

alarme falso. Esgueirando-me pela multido que gritava, fui at a esquina

da rua e em dez minutos me alegrei por sentir o brao do amigo entrelaado

no meu e poder sair dessa cena barulhenta. Ele andou depressa e em

silncio por alguns minutos, at que entramos numa das ruas quietas em

direo da Edgeware Road.

- Voc fez tudo maravilhosamente, doutor, observou ele. - No podia ter

sido melhor. Est tudo bem.

- Voc est com a fotografia?

- Eu sei onde est.

- E como descobriu?

- Ela me mostrou, como eu lhe disse que ela faria.

- Ainda estou no escuro.

- No quero criar mistrio, disse ele, rindo. - O caso foi muito simples.

Voc reparou, claro, que todos que estavam na rua eram cmplices. Foram

todos contratados para a ocasio.

- J adivinhava.

- Ento, quando comeou o barulho, eu tinha um pouco de tinta vermelha na

mo. Corri para a frente e ca, bati minha mo no rosto e me tornei um

piedoso espetculo. um velho truque.

- Isto tambm percebi.

- Levaram-me para dentro. Ela era obrigada a deixar. O que mais podia

fazer? E para dentro da sala, a mesma de que eu suspeitava. Fica entre a

sala de estar e o quarto, e eu estava decidido a v-1a. Deitaram-me num

sof, pedi ar, foram compelidos a abrir a janela, e voc teve a sua

chance.

- E como essa o ajudou?

- Foi importantssima. Quando uma mulher acha que a sua casa est pegando

fogo, seu instinto correr imediatamente para aquilo que ela d mais

valor. um impulso perfeitamente irresistvel, e mais de uma vez j me

aproveitei dele. No caso do escndalo de Darlington foi muito til para

mim, e tambm na histria do castelo Arnsworth. A mulher casada se agarra

ao filho; a solteira corre para a caixa de jias. Era ento evidente para

mim que a nossa cliente atual no tinha na casa nada mais precioso do que

o que estamos procura. Ela se precipitaria para segur-lo. O alarme de

fogo foi feito admiravelmente. A fumaa e os gritos foram suficientes para

agitar nervos de ao. Ela reagiu maravilhosamente. A fotografia est num

pequeno armrio atrs de um painel, logo acima do cordo campainha,

direita. Ela chegou l num instante e vi quando ia retir-la. Quando

gritei que era um alarme falso, ela a reps, olhou para o rojo, correu da

sala e no a vi mais. Eu me levantei e, pedindo desculpas, escapei da

casa. Hesitei se devia ou no pegar logo a fotografia; mas o cocheiro

tinha entrado e, como ele me olhava fixamente, pareceu-me mais seguro

esperar. Uma pequena precipitao pode arruinar tudo.

- E agora? - perguntei.

- Nossa procura est praticamente terminada. Farei uma visita a ela com o

rei amanh, e com voc, se quiser nos acompanhar. Seremos introduzidos na

sala de estar para esperar a dama, mas provvel que quando ela chegar

no encontre nem a ns e nem a fotografia. Deve ser uma satisfao para a

Sua Majestade recuper-la com as prprias mos.

- A que horas far essa visita?

- s oito da manh. Ela ainda no estar de p e teremos o campo livre.

Alm disto, precisamos no perder tempo, pois este casamento pode

significar uma mudana completa na vida dela e nos seus hbitos. Vou

telegrafar ao rei sem demora.

Chegamos a Baker Street, e paramos na porta. Ele estava procurando a chave

no bolso, quando algum que passava disse:

- Boa-noite, Sr. Sherlock Holmes.

Havia diversas pessoas na calada no momento, mas o cumprimento parecia

partir dum rapaz vestido de capa, que passou apressadamente.

- Eu j ouvi essa voz - disse Holmes, olhando rua abaixo na

semi-escurido. - Puxa que diabo, quem poder ter sido?

Dormi na Baker Street essa noite, e estvamos tomando nosso caf com

torradas, pela manh, quando o rei da Bomia entrou apressadamente.

- Voc realmente conseguiu? - exclamou ele, agarrando Sherlock Holmes

pelos ombros, e olhando-o aflito.

- Ainda no.

- Mas tem esperanas?

- Tenho esperanas.

- Ento vamos. Sou todo impacincia para partir.

- Precisamos de um cup.

- No, o meu carro est espera.

- Isso ento simplifica as coisas.

Descemos e partimos mais uma vez para a Briony Lodge.

- Irene Adler se casou, observou Holmes.

- Casou? Quando?

- Ontem.

- Com quem?

- Com um advogado ingls chamado Norton.

- Mas ela no pode am-lo?

- Espero que sim.

- E por que espera?

- Por que isso poupar Sua Majestade de todos os receios de futuros

aborrecimentos. Se a dama gosta do marido, ela no gosta de Sua Majestade.

Se no ama Sua Majestade, no h nenhuma razo para interferir no plano de

Sua Majestade.

- Isso verdade. Porm... bem, eu gostaria que ela fosse da minha

posio. Que rainha ela no teria sido!

O Rei caiu em profundo silncio, que s foi quebrado quando paramos na

Serpentine Avenue.

A porta da Briony Lodge estava aberta, e uma senhora idosa achava-se nos

degraus. Ela nos fitou com um olhar sarcstico quando descemos da

carruagem.

- Sr. Sherlock Holmes, creio? - disse ela.

- Sou o Sr. Holmes - respondeu o meu companheiro, olhando para olhar

interrogador e surpreso.

- Deveras! Minha patroa me disse que talvez o senhor viesse fazer-lhe uma

visita. Ela partiu esta manh com o marido pelo trem das 5h15min de

Charing Cross para o continente.

- O que? Sherlock Holmes respondeu, com desapontamento e surpresa. - A

senhora quer dizer que ela deixou a Inglaterra?

- Para nunca mais voltar.

- E os documentos?, perguntou o rei, asperamente. - Tudo est perdido.

- Veremos.

Holmes passou bruscamente pela empregada e correu para a sala, seguido

pelo rei e por mim. A moblia estava em desordem, com gavetas abertas,

como se a dama as tivesse esvaziado para fugir. Holmes foi para o cordo

da campainha e abriu a portinha do painel, e enfiando a mo, tirou uma

fotografia e uma carta. A fotografia era da prpria Irene Adler em vestido

de gala, a carta estava subscritada para "Ilmo. Sherlock Holmes. Para ser

entregue quando procurada". Meu amigo abriu-a e ns trs a lemos juntos.

Estava datada de meia-noite da noite anterior, e estava escrita assim:

"MEU CARO SR. SHERLOCK HOLMES,

O senhor realmente agiu muito bem. Apanhou-me completamente. At depois do

alarme do fogo, no tive nenhuma suspeita. Mas depois, quando percebi que

havia trado a mim mesma, comecei a pensar. Eu tinha sido avisada contra o

senhor, meses atrs. Fui informada de que, se o rei empregasse um agente,

seria certamente o senhor. E o seu endereo foi me dado. Apesar de tudo, o

senhor me fez revelar o que desejava saber. Mesmo depois que tive as

suspeitas, achei difcil pensar mal de um velho e bondoso clrigo. Mas,

como sabe, eu tambm fui treinada como atriz. Roupa masculina no

novidade para mim. Freqentemente me aproveito da liberdade que isso me

proporciona. Mandei John, o cocheiro, vigi-lo, subi as escadas, vesti

minhas roupas de passeio, como as chamo, e desci logo depois que o senhor

partiu.

Bem, segui-o ento at a sua porta, para ter certeza de que

verdadeiramente eu era objeto de interesse para o celebrado Sr. Sherlock

Holmes. A, um tanto imprudentemente, desejei-lhe boa-noite, e fui para o

frum ver o meu marido.

Ns dois achamos que o melhor recurso seria a fuga, quando perseguidos por

to formidvel antagonista; portanto, o senhor encontrar o ninho vazio

quando fizer a visita amanh. Quanto fotografia, o seu cliente pode

ficar descansado. Amo e sou amada por um homem melhor do que ele. O rei

pode fazer o que quiser sem estorvo de uma pessoa que ele injuriou

cruelmente. Guardo a fotografia apenas por segurana minha, e para

preservar uma arma que sempre me proteger de qualquer medida que ele

possa tomar no futuro. Deixo uma fotografia que ele talvez queira possuir;

e continuo, caro Sr. Sherlock Holmes, sinceramente sua, IRENE NORTON, ne

ADLER."

- Que mulher - oh, que mulher! - exclamou o rei da Bomia, quando ns trs

lemos a epstola. - No lhes disse como era esperta e decidida? No teria

sido uma admirvel rainha? uma pena que no fosse do meu nvel!

- Pelo que vi em relao dama, ela parece sem dvida ser de um nvel

muito diferente do de Sua Majestade, disse Holmes, friamente. - Sinto que

no pude ser capaz de levar os negcios de Sua Majestade a uma concluso

mais bem sucedida.

- Ao contrrio, meu caro senhor - exclamou o rei - , nada poderia ser mais

bem sucedido. Eu sei que a palavra dela inviolvel. A fotografia est

agora to segura como se estivesse no fogo.

- Fico feliz por ouvir Sua Majestade dizer isto.

- Devo imensamente a voc. Por favor, diga-me de que modo posso

recompens-lo. Este anel...

Ele tirou do dedo um anel de esmeralda e estendeu-o na palma da mo.

- Sua Majestade tem algo que eu daria ainda mais valor, disse Holmes.

- Basta design-lo.

- Esta fotografia!

O rei olhou-o atnito.

- A fotografia de Irene!, exclamou. - Certamente, se voc a deseja.

- Agradeo a Sua Majestade. No h mais nada ento a ser feito sobre o

assunto. Tenho a honra de desejar-lhe um muito bom-dia.

Curvou-se, e virando-se sem perceber a mo que o rei lhe estendia, saiu em

minha companhia para o seu apartamento.

E foi assim que um grande escndalo ameaou afetar o reino da Bomia, e

que os melhores planos do Sr. Sherlock Holmes foram frustrados pela

sagacidade de uma mulher. Ele costumava tornar objeto de riso a

inteligncia das mulheres, mas depois nunca o ouvi fazer isso. E quando

fala de Irene Adler, ou quando se refere sua fotografia, sempre sob o

ttulo honroso de a mulher.