jornal plural n.8 | 2015

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JORNAL CULTURAL NÚMERO 9 | DEZEMBRO DE 2014 A FEVEREIRO DE 2015 | BH | MG ISSN 2319-0000 plural Márcia Tiburi fala sobre política, literatura e aborto Fotos arquivo pessoal “Os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem, como disse o filósofo. Creio que isso faz sentido, mas as pessos não tem o referencial da linguagem para se pensarem e para entenderem o que fazem ao dizer o que dizem. Talvez certas pessoas possam ter mais conciência disso e isso as ajude.” PÁGINAS 6 E 7

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Publicação da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

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Page 1: Jornal Plural N.8 | 2015

JORNAL CULTURAL

NÚMERO 9 | DEZEMBRO DE 2014 A FEVEREIRO DE 2015 | BH | MG ISSN 2319-0000plural

Márcia Tiburi fala sobre política, literatura e aborto

Fotos arquivo pessoal

“Os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem, como disse o filósofo. Creio que isso

faz sentido, mas as pessos não tem o referencial da linguagem para se pensarem e para entenderem o

que fazem ao dizer o que dizem. Talvez certas pessoas possam ter mais conciência disso e isso as ajude.”

PÁGINAS 6 E 7

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 8 | DEZEMBRO DE 2014 A FEVEREIRO DE 20152

“QUEM SÃO ELES, QUEM ELES PENSAM QUE SÃO?”

EXPEDIENTE

JORNAL CULTURAL PLURALProjeto de Extensão Direito e Cultura da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Editor: Bernardo G. B. Nogueira

APOIO TÉCNICO: Núcleo de Publicações Acadêmicas Newton Paiva:

Projeto Gráfico, Editora de Arte e Diagramação: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG

CONTATOS, SUGESTÕES E ANÚNCIOS: [email protected]

Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores.

EDITORIAL

Da cor das estrelas

Um editorial no outono. Seria mais preciso di-zer: um editorial do outono. Para o outono. Gostaria de homenagear essa estação. Essa edição do Plural é outonal e tem jeito de mulher. Mas ela também não cessa nunca. Ela vai. Assim como as manhãs de azul imenso que nos concede e permite inventar. Tudo bem, uma estação do invento. Do encanto. Quando ela passar eu vou falar da saudade e do cheiro que ficou. Acho que cheiro de canela. Quente e não. E lembrar de longe. Aliás, que trem bom esse de saudade. Não deixa nem a gente pensar que o tempo é um só. Nem futu-ro, passado ou presente. É um nó que só. E a gente ali no meio dele. Vivemos um tempo que talvez não nos deixe saudade. Obtuso e agreste. Quase sem outono. Será que o outono é um só? Mesmo com estatutos para dizer da família e de assombro em face do amor. Do medo daquilo que não é espelho. Mesmo assim ainda é outono? Será que sabemos todos o som do outono? Qual seria o outono de deus? Azul também? O meu outono é sim azul. Talvez nem valha a pena distinguir outonos. Talvez ele seja a própria condição de possi-bilidade para o outonar-se no outro que nos assom-bra com seu infinito. Da mulher que luta e que vive na cidade. E que é o próprio azul a andar. São azuis os gêneros dos contos de fadas? Das bruxas? Deuses en-xergam o arco-íris? Qual a cor do presente? Quem dá o presente? Esses tempos estranhos podem não o ser. Eles se fazem em nossas entranhas. Qual a cor da ima-ginação? Talvez a poesia nos salve de uma política que não há. De repente a ideia de tempo se vai aqui nestas palavras. Elas me abraçam, embalam, me namoram e escuto uma canção que homenageia Marighella. Sinto de novo o cheiro desse outono danado que não me dei-xa. Tomara que ele não seja apenas uma invenção. Um truque de um gênio maligno. Aliás, com sinceridade, tomara que seja assim sabe. Pois se ainda tem gente que acha identificação de gênero para distinguir gen-tes. Que coloca pena na frente de educação. E ainda acredita que há um jeito assim de amar. Sinceramente. Vamos lá Raul Seixas, nos ajude, informe daí se há um lugar mais Plural: “Oh! Oh! Oh! Seu Moço Do Disco Voador Me leve com você Pra onde você for Oh! Oh! Oh! Seu Moço! Mas não me deixe aqui Enquanto eu sei que tem Tanta estrela por aí”...

Por Bernardo G.B. NogueiraPor Thalita Dittmaier

Séculos atrás, em nome de uma missão “civilizatória”, os europeus deram início ao que chamamos de globalização. Re-paginada pelos avanços tecnológicos, o fenômeno evidencia, hoje, os rastros de uma hibridização de pessoas, línguas e cul-turas. A mudança no mundo é uma constante e o capitalismo, em sua fase mais avançada, coloca-nos diante de uma inte-gração em proporções mundiais, de cariz econômico, político, social e cultural. A crise iniciada em 2008 reflete um espaço--tempo menos centralizado, bem como a relação de interde-pendência entre os países.

As controvérsias da pós-modernidade produzem uma massa de refugiados e emigrantes da miséria e, contra ela, surgem inúmeras reações. Se por um lado a globalização uni-formiza, de outro, ela inflama novas formas de nacionalismo e fundamentalismo. No Velho Mundo, muçulmanos e imigran-tes são alvos do extremismo xenófobo de direita (a extrema direita implica toda orientação exageradamente conservado-ra, elitista e preconceituosa). Contrapondo-se aos princípios democráticos de inclusão e pluralismo, tais movimentos ga-nham espaço tendo como bandeira a “liberdade de opinião”.

Desde 2008 o bem-estar social europeu entrou em declí-nio. Assim, diante das incertezas, muitos buscam refúgio na politização cega, na nostalgia em relação a um passado su-postamente glorioso e, em especial, no ódio à alteridade. A extrema-direita na Europa vive momentos de euforia, colhen-do resultados eleitorais expressivos. A ascensão da ultradireita também acontece no Brasil, com destaque para o mal-estar decorrente das várias vitórias sociais nos últimos dez anos. Embora permaneça muito profunda, a desigualdade diminuiu significativamente, logo, eis a histeria da classe alta e de uma mídia tendenciosa. Lá ou cá, a extrema direita tem o “estran-geiro” ou o refugiado da pobreza como bode expiatório da cri-se atual, ignorando o avanço da desigualdade e o surgimento de uma oligarquia financeira como causas reais do problema.

Entretanto, apesar de sombrio, o cenário revela oportu-nidades, já que uma nova era exige novas formas de pensar e de agir. Os movimentos legítimos de protesto conseguirão se rearticular e formular reivindicações claras? A esquerda será capaz de dar outro sentido à revolta das populações? Faz-se urgente um novo pacto entre empresários, movimentos so-ciais, meios de comunicação, partidos e intelectuais.

A violência e a intolerância levaram ao fracasso de quase todos os impérios e a Europa, palco de tantas lutas, aprendeu a ter uma maior predisposição pela negociação e cooperação. Quanto ao Brasil, importa pensar mais no país como um todo, no que os partidos devem unir forças em benefício de um pro-jeto que torne menos cruel a injustiça social. O ódio destitui as sociedades da convivência, fator determinante num mundo globalizado disposto à integração. Por fim, há que se acreditar na feição não menos social do amor, o amor a uma causa co-mum, amor (sadio) ao país, à experimentação, à abertura ao diálogo mutuamente benéfico, enfim, uma busca de equilíbrio em meio às inquietações de uma nova configuração mundial.

Tempos estranhos

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Na cidade de tardealiás

sabe

deveria ser mesmo

Uma dessas garantias

Do tipo: constitucionais

Aliás

Talvez não

Melhor não misturar lei nisso

Mas talvez misturássemos o Eduardo Galeano

Seria desde assim instituído pela ordem dos

Nerudas e Quixotes

Que seria

Dito por Vinicius

Melhor ser alegre que ser triste

E que os versos iriam substituir as faixas de

pedestres

Tornando as pessoas o próprio tom dos versos

Humanos com sons

Assim

As vagas seriam estrofes

E os transportes: preces

Canções ditas por vezes altas

Outras não

Baixinho como quando se declara amor

Haveria também o transporte eros

De lasciva e toques

Assim transportes ditosos

Habitariamos corpos

Não os corpos a habitar o mundo

Seria outono

Haveria flor

Sempre

As chuvas diriam a hora de sair

Seríamos multados pela ausência de imaginação

E toda vez que um sinal vermelho: seria hora

de avançar

Direto para os braços de quem ama

Imaginem então os guardas com papéis de bar

anotando poemas

Guinchos levando pétalas

Haveria ordem sim

os limites devem ser ultrapassados sob pena de

não sermos humano...

Amar é receber advertências...

Bernardo G. B. Nogueira

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Por Carlos Magalhães

Nada melhor do que um dicionário para quebrar o re-vestimento que vai envolvendo as palavras à medida que o tempo passa. Uma das consequências desse revestimento dos significados é que passamos a encarar palavras diferentes como se significassem a mesma coisa. Outra consequência é que, por compartilharmos tão profundamente o significado imediato de certas palavras, o seu efeito em nosso entendi-mento torna-se quase inconsciente.

Ouvimos muito as palavras “sexo” e “gênero”. Muitas vezes são entendidas como se significassem a mesma coisa. Mas uma rápida consulta ao velho e bom Aurélio mostra que não é bem assim. O dicionário nos informa:

SEXO S. m. 1. Conformação particular que distingue o macho da fê-

mea, nos animais e nos vegetais, atribuindo-lhes um papel determinado na geração e conferindo-lhes certas caracterís-ticas distintivas.

GÊNERO S. m. 7. Antrop. A forma culturalmente elaborada que a dife-

rença sexual toma em cada sociedade, e que se manifesta nos papéis e status atribuídos a cada sexo e constitutivos da iden-tidade sexual dos indivíduos.

Aprendemos que a diferenciação sexual é biológica e ocorre em vegetais e animais, inclusive em nós, que também somos animais. As diferenças de gênero, por sua vez, são elaborações culturais humanas que se desenvolvem a partir das diferenças sexuais biológicas. Os papéis sociais de gênero desempenhados por homens e mulheres em nossa sociedade não são biologicamente determinados. São culturalmente es-tabelecidos. Da mesma forma como são estabelecidos cultu-ralmente os papéis e os estigmas correspondentes atribuídos a heterossexuais, homossexuais (masculinos e femininos), travestis, transexuais etc.

O xis do problema é o seguinte: desde que evolução proporcionou à espécie humana as condições para o de-senvolvimento da cultura, deixaram de existir motivos para orientarmos nossas escolhas pelo meramente biológico. Situação curiosa: a evolução biológica nos levou à cultura, que nos liberta em grande medida de nossa dependência em relação ao biológico.

Por mais que os conservadores não admitam, a cultu-ra pode nos dar mais liberdade. Podemos construir o nosso mundo, ainda que muita gente prefira viver em um mundo construído por essa ou aquela autoridade. É possível elaborar as diferenças sexuais e de gênero e os papéis atribuídos a cada sexo e a cada gênero de várias formas. A própria diferença sexual não é mais aquela do tempo das cavernas. A medici-

na – aspecto da cultura – no permite alterar, cada vez mais, o que a natureza nos dá. As pessoas podem mudar de sexo e escolher algo novo, não previsto biologicamente.

Muita gente deve ter respostas na ponta da língua para essas ideias. Diriam que é contra a vontade de Deus. Não deveria ser óbvio que ninguém pode impor o SEU deus aos outros? Contra a vontade de qual deus? Outros, mais “cientí-ficos”, poderiam dizer que é contra a natureza. Mas qual natu-reza? O “natural” é um conceito construído socialmente. Por-tanto, o “natural” não é necessariamente certo. Se a natureza pode fazer as pessoas sofrerem e se nós temos condições de ajustar o que a natureza não soube fazer, por que não ajustar?

Dia desses, falando do assunto em sala aula, quase caí do chão, como acontece às vezes com quem luta nesse cam-po de batalha. Fui acusado de estar incentivando os mais jovens a se tornarem homossexuais. Não foi a acusação que me incomodou, mas o fato de alguém pensar que esse “in-centivo” seja uma possibilidade real. Sim, sou ingênuo. O que falar com alguém que pensa desse jeito? Cheguei em casa e precisei escrever para achar uma resposta. Tinha como referências indiretas ideias do psicanalista Joel Bir-man e do sociólogo Émile Durkheim.

Essa insensibilidade, frequente nos dias de hoje, tem me preocupado. Lido com muita gente e o vazio que preenche muitas pessoas me assusta. A crueldade e a pulsão de destrui-ção que se espalham no mundo de hoje me espantam. Desde as guerras de destruição de grandes proporções até os peque-nos, mas não tão pequenos gestos de ódio, mais ou menos contidos, que ocorrem nas interações diárias.

Existe uma compulsão perversa relacionada à negação da mais íntima e cara identidade do outro, sob a suposição de que eu estou certo nas minhas fragilíssimas convicções. Por que inquieta tanto haver pessoas que vivenciam sexualidades e experiências de gênero não padronizadas? Por que a pessoa de classe mais baixa, negra, chegar à universidade desperta a fragilidade de minhas supostas seguranças? Por que as pes-soas acreditam piamente em monstros da ficção midiática como o “sanguinário menor infrator”, por exemplo?

O medo está se espalhando pelo ar, como se escapasse len-tamente de um botijão de gás de medo. A situação é como a da casa onde o gás se espalhou. Acender a luz pode provocar uma pequena fagulha que atinge o gás/medo e desencadeia uma ex-plosão de mais crueldade e mais pulsão de destruição.

Enquanto o contato com a alteridade despertar o medo/pânico de que se podem desmontar as subjetividades convencionais (dos “machos adultos sempre no comando”, por exemplo, como diria o Caetano) constituídas a partir sacrifício expiatório do outro, enquanto alguns indivíduos precisarem matar (simbólica ou materialmente) os diferen-tes para sustentar fragilíssimas narrativas de si mesmos, nós vamos permanecer na barbárie e na desumana feiura deste mundo. Estou com aqueles que ainda conseguem ter simpatia pelo outro e que ainda querem ver a vida humana acontecer em toda a sua diversidade.

O Outro e o medo

“OS INFERNOS E OS OUTROS”

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 8 | DEZEMBRO DE 2014 A FEVEREIRO DE 2015 5

Por Tatiana Ribeiro de Souza

Libélulas em bambus fazemCentopeias sem tabus fazem...

Chico Buarque

Desde 2013, quando passei a trabalhar mais diretamente com a questão de iden-tidade de gênero, tenho observado que as duas questões mais impactantes para o pú-blico que assiste às minhas palestras são a dissociação entre as categorias de sexo, gêne-ro e desejo e a descoberta sobre a pluralidade sexual no mundo animal.

A ideia do sujeito unificado fica estre-mecida quando percebemos que o gênero é uma invenção cultural, uma estilização repetida do corpo sexuado que nos faz pen-sar que já nascemos para aquela identida-de. “Estilização repetida do corpo sexuado” pode ser uma expressão que faça pouco sen-tido para algum leitor, por isso, antes de ir ao ponto central deste artigo, preciso explica-la.

O corpo sexuado é aquele identificado a partir da genitália, de modo que, atendendo aos apelos da lógica moderna de oposições bi-nárias, as pessoas passaram a ser divididas en-tre machos e fêmeas. A noção de sexo aparece na linguagem como substância e condiciona a subjetivação ao estabelecer compulsoriamente que os portadores de genitália masculina se tornem homens e os portadores de genitália feminina se tornem mulheres. A questão de gênero é, portanto, tratada como uma catego-ria pré-discursiva, naturalizada e sacralizada.

Como se não bastasse a ordem com-pulsória entre o sexo e o gênero, a cultura moderna, ocidental, de base judaico-cristã, impõe ainda que os homens desejem as mu-lheres e vice-versa. Dentre os argumentos que advogam essa tese está a ideia de que a relação homossexual subverte o projeto da natureza (ou de Deus) para que as espécies procriem. Pois bem, neste ponto vem a se-gunda surpresa: os seres vivos desenvolvem as formas mais inimagináveis e diversas de se relacionarem com a genitália, a identida-de de gênero e os desejos sexuais.

Quem tiver a curiosidade de pesquisar na internet o comportamento homossexu-al entre os animais encontrará referências a parceiros gays, lésbicas, travestis e até à adoção de filhotes por casais gays da mesma espécie. Toda vez que trato desse assunto em

alguma conferência, percebo que a maior comoção no auditório vem da notícia de que aqueles inocentes carneirinhos, que nossos pais (muitos deles conservadores) nos ensi-naram a contar para dormir, são gays. Sim, a proporção de carneiros machos que formam pares de machos e nunca mais têm contato com fêmeas chega a 8%, conforme indicam algumas pesquisas.

Talvez os 8% dos carneiros gays sejam um dado insignificante perto das 100% lés-bicas lagartas da espécie cnemidophorus uniparens, que só possui exemplares fêmeas. Você pode se perguntar: então como elas se reproduzem? Basta lembrar daquela aula de biologia em que a gente estuda sobre a par-tenogênese, fenômeno que ocorre entre as fêmeas que procriam sem precisar de macho para fecundar. Ainda assim, as cnemidopho-rus uniparens se reproduzem melhor quan-do possuem parceiras. Segundo os relatos sobre o comportamento sexual desta espé-cie, uma sobe na outra, morde seu pescoço, arranha e se enrosca nela, fazendo com que produza mais ovos do que sozinha. Ao que tudo indica, elas fazem sexo por puro prazer e isso as deixam mais felizes e férteis.

Ressalte-se que o comportamento sexual diverso dos animais nem sempre está associa-do a interesses volúveis, isto é, a uma simples “ficada”. Casais homossexuais de carneiros, albatrozes de laysan, golfinhos, pinguins, dentre tantas outras espécies, formam pares que, embora não se reproduzam, mantêm vida social conjunta que pode durar até que realmente a morte os separe. Eu falei em pa-res, mas em algumas espécies é comum que se formem trios, como é o caso dos cisnes ne-gros australianos, geralmente formados por uma fêmea e dois machos. Como se vê, ainda que a monogamia seja comum em algumas espécies, o poliamor e os novos arranjos fami-liares também têm seu lugar entre os animais.

Em matéria de casais homossexuais estáveis não se pode deixar de dar especial atenção aos solidários pinguins, que além de viverem juntos nutrem o desejo de criar filhotes e muitas vezes o fazem. Em diversas ocasiões casais de pinguins gays se tornaram manchete por roubarem ovos de outros ca-sais de pinguins, a fim de cria-los. Um dos casos mais notáveis foi o do zoológico em Harbin, no norte da China, onde chegou a se promover a segregação do casal de pin-

guins gays que foi capturado roubando ovos de outros pinguins e colocando pedras no lugar. Felizmente, como noticiou o jornal in-glês Daily Mail, o problema parece ter sido resolvido ao se oferecer para o casal dois ovos de um casal hetero com dificuldades de choca-los. Também tiveram um final feliz os pinguins gays Jumbs e Kermit, que vivem no parque no condado de Kent, no Reino Unido, que, depois de abandonarem suas respectivas fêmeas e viverem juntos como um casal, conseguiram adotar o filhote rejei-tado por um outro pinguim, que se recusou a chocar a sua cria.

Tanto os casos dos pinguins, como o dos carneiros e outras espécies de animais gays e lésbicas, remetem à ideia do desejo e, por-tanto, à questão da homossexualidade. Toda-via, no diverso reino animal também existe o problema da identidade de gênero, isto é, da inconformidade com a ordem compulsória de papeis sociais em decorrência do corpo sexuado. Em estudo publicado pela revis-ta britânica Biology Letters, pesquisadores tentam explicar os motivos que levam al-guns machos da espécie circus aeruginosus de falcão, conhecida como águias-sapeiras, a se travestirem de fêmeas, fenômeno tam-bém observado no philomachus pugnax, co-nhecido como pavão do mar. Seja qual for o motivo, o fato é que algumas aves machos preferem se passar por fêmeas.

Nem mesmo o papel reprodutivo do corpo obedece a um padrão na natureza. Os cavalos marinhos, por exemplo, se reprodu-zem por viviparidade, que se caracteriza pela incubação dos embriões em desenvolvimen-to dentro do corpo do macho. Isso mesmo, é o macho quem fica grávido! Na natureza é assim: tem espécie que não está dividida entre machos e fêmeas; tem espécie na qual essa divisão não faz qualquer diferença para fins sexuais; tem espécie em que macho vira fêmea; tem espécie que pratica a adoção por casais gays; tem espécies monogâmicas, bí-gamas, poligâmicas e até promíscuas.

Portanto, respeitar a ordem da natureza significa reconhecer a pluralidade que ad-vém das categorias sexo-gênero-desejo, em suas múltiplas combinações, o que equivale a descategorizar, colocar em xeque esse sis-tema ontológico/epistemológico. Natural é reconhecer a liberdade para inventar o amor. Amar é inventar. “Façamos, vamos amar!”

“E AGORA MARIA?”

Sexo animal

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EXCLUSIVO

MÁRCIA TIBURI é graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filo-sofia. Publicou diversos livros de filosofia, entre eles “As Mulheres e a Filosofia” (Ed. Unisinos, 2002), Filosofia Cinza – a melancolia e o corpo nas dobras da escrita (Escritos, 2004); “Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero” (EDUNISC, 2008), “Filosofia em Comum” (Ed. Record, 2008), “Filosofia Brincante” (Re-cord, 2010), “Olho de Vidro” (Record 2011), “Filosofia Pop” (Ed. Bregantini, 2011) e Sociedade Fissurada (Record, 2013). Publicou também romances: Magnólia (2005), A Mulher de Costas (2006) e O Manto (2009), Era meu esse Rosto (Record, 2012). É autora ainda dos livros Diálogo/desenho, Diálogo/dança, Diálogo/Fotografia e Diálogo/Cinema (ed. SENAC-SP). É professora do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie e colunista da revista Cult.

BERNARDO – Oi Márcia, lhe escrevo da-qui das montanhas de Minas, por vezes inspi-radoras e por outras, tão difíceis de desven-dar. E nessa de desvendar, queria saber o que a filósofa pensa acerca de questões que estão nas ruas da polis, quais sejam: a redução da maioridade penal. E ainda, a discussão acerca do estatuto da família...

Bernardo, aqui da megalópole desvai-rada, entre muros concretos e simbólicos, quem pode dizer que as coisas não vão de mau a pior, social e politicamente falando? Os temas sobre os quais você me pergunta fazem parte do mesmo retrocesso da coisa que, muito animados, chamamos até hoje de democracia. Em um olhar “filosófico”, me preocupa a questão da “mentalidade” que se apodera da coisa chamada democracia, ela mesma um regime político, mas também afetivo. O que eu chamo de mentalidade é parecido com o que Foucault, por exemplo, chamou de “discurso”. Eu me refiro a um jeito de pensar e a um jeito de sentir, sendo que os dois estão unidos intimamente, um jeito que rende frutos concretos em termos de linguagem, desde o jeito como as pesso-as elaboram seus pensamentos, até o modo como as pessoas conversam entre si, até como fazem propaganda, ou música. Penso em governantes e penso em governados. E no modo como, talvez por falta de reflexão sobre a própria relação que mantém entre si, são dependentes uns dos outros. Demo-cracia é uma palavra que eu mesma uso na intenção de formular o desejo de um mundo em que todos tenham direitos fundamentais assegurados, em que a ética e a justiça se combinem por meio de um afeto generoso politicamente falando. Em termos simples: vamos chamar de emoções a esses afetos (embora os termos não sejam sinônimos, mas isso não vem ao caso agora), e vamos pensar que eles movem as massas e as mul-tidões (considerando que também não são sinônimos). A política está necessariamente investida de afetos. E tendemos a ver a de-mocracia como uma política do afeto que inclui o outro, que defende a singularidade, os direitos de todos, sem preconceitos. No entanto, o que vemos é o recrudescimento do autoritarismo que é o contrário da de-mocracia. Mas o que é a democracia quando ela é usada também para defender afetos au-toritários? Me parece um enigma entender que a democracia comporte elementos auto-ritários. Quem se espanta com o retrocesso autoritário pode parecer ingênuo, pode-se dizer que não sabe nada da história huma-na, de cultura e nunca pensou em termos de

Márcia Tiburi fala sobre temas polêmicosEscrever é um jeito de estar no mundo. Um jeito democrático, disposto à crítica que é a desejável maldade do leitor. Ou ao seu amor sempre meio absurdo

Foto arquivo pessoal com intervenção

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 8 | DEZEMBRO DE 2014 A FEVEREIRO DE 2015 7

antropologia. Mas alegar esse “saber”, pois também os que supostamente sabem, não agem por impotência ou concordância em relação aos erros atuais.

Os dois exemplos que você dá inserem--se nesse quadro em que a mentalidade geral está muito errada, mas autoritariamente é incapaz de pensar diferentemente. E de onde vem tal incapacidade? Mais do que ingenui-dade é interesse do capital e do consumo que, em nível de irracionalidade (quando atinge o inevitável extremo de rigidez e não consegue mais capturar o outro), assume o seu carater mortífero maquinal. Quem é morto hoje é o jovem negro e pobre. Genocídio claro e sem muito disfarce. Que a família tradicional burguesa precise ser sustentada como uma ideia verdadeira faz parte da mesma ideolo-gia de controle de mulheres, jovens, crianças e também de homens que, em um cenário patriarcal e capitalista, devem ser bons sol-dados da igreja, do estado e da família he-terossexual. Matar pobres e negos, no extre-mo, é eugenia paranoica, tal como a nazista que exterminou judeus. Os negros no Brasil são os judeus da Alemanhã nazista. Aqui a morte é certa, em uma pena de morte ilegal, mas cultural, para quem não tiver sorte.

BERNARDO – Agora outro enigma: a questão do aborto e a colocação da mulher no tempo de hoje. Poderia falar sobre isso? Sei que possui leituras acerca de Judith Butler. Poderia contextualizar essa pensadora no âmbito das discussões sobre o aborto em nosso país?

A questão do aborto é, a meu ver, pro-blema de mulheres que abortam ou podem abortar. É uma questão relativa à corporei-dade feminina e a quem as mulheres que en-gravidam vierem a consentir que se converse sobre. Não é assunto que caiba à igreja, nem aos homens ou a quem não quiser se solidari-zar com a causa de quem padece sob políticas criminalizantes e violentadoras de direitos de mulheres. Refiro-me, de um modo geral, ao âmbito do direito daqueles que vem sendo de-nominados “subalternos” de se expressarem acerca de suas condições, vivências, desejos e projetos. É preciso tomar cuidado ao assumir a fala do “estudioso”, ou do “curioso”, ou do “interessado” diante desse lugar singular que é o lugar do afetado. Povos nativos, negros, pobres, mulheres, trans, gays, imigrantes, sem teto, sem terra, sem escola, usuários de drogas, doentes de um modo geral, todos são efeitos de marcações sociais. Todos os sofri-mentos vividos por pessoas nessas condiçoes são efeito de mentalidades e jogos de poder. Quando à questão do aborto, trata-se disso. Homens conservadores governam e não tem interesse em questões tais como essa, assim como não tem interesse algum em defender

quaisquer direitos das mulheres. Só mudare-mos isso quando tivermos uma política femi-nista no governo.

Sobre Butler, gosto muito dela, e de mui-tas teóricas feministas, mas nunca estudei o que ela possa ter dito sobre o aborto.

BERNARDO - Márcia. Menos enigmas agora, rs. Você é uma mulher que escreve de maneira plural. Apesar da sua filosofia cinza. Transa com a literatura, a filosofia e o cinema. Desculpe se deixo de fora o resto de seu infi-nito que porventura não saiba..Então, o que poderia dizer acerca dessa construção de co-nhecimento e de subjetividade, ou seja, quan-to é possível misturar essas dimensões e quan-to isso não o é? Se não o é...Seria esse diálogo franco uma resposta sua ao que vivemos hoje?

Não sei se entendi sua pergunta. Mas vou tentar responder. Em primeiro lugar, eu só me defino como “mulher” quando sou fe-minista. No resto da minha vida, essa ques-tão de gênero, essa marcação como mulher, me incomoda muito. Não gosto pessoal-mente desse enquadramento. Devemos viver uma ética para além do gênero, ainda que, na política, eu me defina como feminista.

De fato, escrevo em diversas linhas: en-saios filosóficos, artigos acadêmicos, artigos de revistas, blog, ficção, romance, às vezes faço comentários de livros, às vezes de fil-mes. Já escrevi crônicas para ver como era. A escrita, todo escritor o sabe, nos contrói. E constrói o mundo. Os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem, como disse o filósofo. Creio que isso faz sentido, mas as pessos não tem o referen-cial da linguagem para se pensarem e para entenderem o que fazem ao dizer o que di-zem. Talvez certas pessoas possam ter mais conciência disso e isso as ajude. Talvez os escritores (sejam de filosofia, de blog,de lite-ratura, ou de muros pichados) tenham mais

consciência do que os outros. Ora, a história da escrita está ligada ao regime democráti-co, está ligada à construção do sujeito, está ligada à produção da subjetividade em qual-quer tempo. Quem escreve (na forma livro, blog, ou no muro) entra nesse jogo, assume ou engana, afirma ou camufla alguma coisa no cenário da textualidade no qual todos es-tamos inscritos. Escrever é um jeito de estar no mundo. Um jeito democrático, disposto à crítica que é a desejável maldade do leitor. Ou ao seu amor sempre meio absurdo.

BERNARDO - Quando a vi pela primeira vez, na Bienal em São Paulo, você se emocionou falando de sua literatura. Isso me tocou profun-damente. Mas gostaria de saber como você sente a arte hoje. Como ela se coloca dentro das rela-ções humanas na contemporaneidade?

Que bom saber, Bernardo. Fico realmen-te feliz em saber. O lugar da literatura entre nós é o mesmo que ocupam as artes que po-demos chamar de tradicionais (penso aqui nos povos tradicionais), anteriores às núpcias formais com as tecnologias que vemos hoje. O cinema, por exemplo, seu sucesso se deve ao casamento da linguagem com a tecnologia. Ainda que o elemento mais essencial do cine-ma não seja a técnica e sim um movimento predicativo da linguagem em que a parataxe das imagens, seu diálogo, se assim quisermos, cria um acontecimento linguístico ímpar. A isso damos o nome de cinema. A literatura é uma arte sem tecnologia. Podemos fazer li-vros artesanais, podemos escrever em muros. Ora, a arte da palavra vai mal na era do espe-táculo que é a submissão da imagem à forma mercadoria. Se a literatura negocia com isso, ela vai bem em termos de público. Se não, ela vai mal. O problema não é a forma de ser da literatura, mas um mundo onde a literatura perde lugar porque tudo está mecanizado, robotizado e embotado na forma mercado-ria. Neste contexto, em que além de tudo, as pessoas leem menos, a literatura parece algo anacrônico. Mas nisso reside a sua beleza, sua verdade. Nessa inadequação. Continuaremos escrevendo, emboraa tendência dominan-te em termos estéticos bio-políticos não nos peça para fazer isso.

BERNARDO - Márcia obrigado. Você é gentil, seus olhos dão poesia e reflexão a quem os vê. Espero que seu trabalho sério e sempre progressista alcance o para além das frontei-ras...Desde a primeira edição do Jornal Plural você comparece com seus textos, desde que li seus textos pela primeira vez tinha esse adje-tivo para lhe oferecer: Plural!!!

Bernardo, obrigada pelos tempos todos e pelo lindo espaço. Felicidades ao seu gene-roso projeto com o Jornal Plural.

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 8 | DEZEMBRO DE 2014 A FEVEREIRO DE 20158

NADA DE TRABALHO DE SOL A SOL

Por Domingos Barroso da Costa

Raimundo Pereira da Silva é mais um dos rostos na multidão que habita uma das capitais de um grande estado que faz parte de um grande país.

Todos os dias, Raimundo acordava às cinco e meia da manhã, pegava o metrô e mais um ônibus, chegando à obra exatamen-te às oito. Vestia seu macacão e trabalhava até as seis, chegando em casa a tempo de descobrir que não teria mais tempo de escu-tar aquele programa de música sertaneja do qual ouvira falar.

Todas as noites, Raimundo pensava em sua namorada e no dia em que poderiam se encontrar ou se, ao menos, poderiam se en-contrar, já que agora arrumou um bico de vi-gia noturno naquela fábrica de calçados que ficava no bairro vizinho.

Todos os meses, Raimundo fazia planos os quais via se desfazerem com o passar do tempo. Passar mais tempo com a Ritinha, parar de fumar, descansar um pouco mais, enfim, ser um pouco mais feliz, dizia ele.

Raimundo se aposentou.Todos os dias, Seu Raimundo passou a

acordar às nove da manhã, atravessar a rua e sentar-se no bar do Chico, onde ficava até as sete da noite.

Todas as noites, Seu Raimundo passou a chegar a tempo de bater em Dona Ritinha e cair de bêbado na primeira cama que encontrasse.

Todos os meses, Seu Raimundo passou a descobrir que o dinheiro não daria para pa-gar a conta do boteco e que teria que pedir emprestado a Dona Ritinha.

No último Natal, Seu Raimundo desco-briu que já não tinha o que planejar, nem so-nhos a serem desfeitos, nem nada a descobrir.

A Dona Ritinha já não tem a mesma

graça e Seu Raimundo está exausto de tan-to descansar. Não vê mais sentido em parar de fumar ou de beber, vício, este, adquirido logo após sua aposentadoria.

Procurou um novo emprego, sentia falta de trabalhar, mas ninguém estava admitindo mão-de-obra cansada. É o que diziam.

A Dona Ritinha foi embora depois que o Seu Raimundo pôs fogo no barraco. Ele an-dava meio esquisito. Batia cada vez mais em Dona Ritinha e, de vez em quando, gritava coi-sas estranhas, avisando que o andaime estava caindo ou que a massa estava quase pronta.

Estranhas porque o barraco não estava em reforma e o Seu Raimundo nunca soube fazer macarrão ou bolo.

Um dia, Seu Raimundo apareceu no te-lejornal. A moça da TV disse que ele passou a noite inteira empoleirado no topo de um edifício em construção, berrando que o aca-bamento era com ele. No final da reporta-gem, uns moços de branco o colocaram num carro, também branco, e sumiram. Parecia até coisa de filme.

Chegou a notícia que o Seu Raimundo tem andado melhor, feliz da silva. Tão fa-lando que ele até voltou a mexer no ramo de construção. Anda erguendo castelos de areia no manicômio municipal. A cada um que constrói, chama todo mundo para ver, mostrando um riso largo, já desprovido de branco, e um brilho alegre no olhar.

Eu conheci o Seu Raimundo já com certa idade. Tenho pena dele, não sei o que aconteceu.

Só sei que hoje é dia de comemoração. Graças a Deus estou me aposentando e vou poder passar mais tempo com a Maria e os meninos. Nada de trabalho de sol a sol. Vou até dar uma passadinha no bar do Chico para tomar uma e comemorar.

Aposentadoria

Curso Falas pra mim do teu futuro Pedes pra mim tudo que queres Sonhas tua fábrica de seres Buscas teu ‘eu’ em todo muro

Tuas veredas são só sertões Teu ‘boa noite’ não te permite Sonhas tua fábula de teres Largas teu muro se assim pretendes

Corre teu rio do céu passado Tudo que queres não te admite Tudo que és já não te basta

Segues teu rumo com teus haveres Mas nunca te enganes naquilo que pensas Tudo sozinho já não te presenta.

Marco Túlio

ConstruçãoA Lara de Lemos

a palavra é adagaa cortar os pulsos

contra elamilícias bombassão inúteis

canhões não têm vezsequer mordaças

a palavra não se calagrita ejacula goza

a palavra é adagafere, matamas também é espera:seu tempo é todo o tempo

Luiz Otávio Oliani

Desatinodentro de mimuma caixa de sapatosmeia dúzia de pipasum gibi

meu pai virou riodeixou inventário

o que ficoualém da herança?

Luiz Otávio Oliani

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O QUE É POLÍTICA?

Por Cândice Lisbôa Alves

Eu sou uma mulher. E com esta defi-nição não há nada que possa ser aferido, senão uma constatação de gênero. No meu caso específico, meu gênero coincide com minha identidade de gênero, mas poderia não coincidir, e nada poderia ser inferido, da mesma maneira... Todavia, dizer que sou mulher não diz nada, ou não deveria dizer... eu deveria ser percebida por outros atributos atinentes à minha personalidade, e para isso o interlocutor que quisesse me descrever deveria, primeiro, me conhecer, ou atribuir uma característica que de fato fosse minha, como, por exemplo, minha titulação acadê-mica. Mesmo em relação à minha titulação, ela é parte importante de mim, mas não sou eu, não em minha inteireza.

Não obstante, a sociedade é um amálga-ma de (pré)conceitos e (pre)definições. Sou o que a sociedade diz que sou. Bonita? Feia? Inteligente? Burra? Vadia?

Nos últimos dias estes prejulgamentos me incomodaram sobremaneira porque ouvi de um grupo de intelectuais o seguinte co-mentário acerca da crise política que solapa o país: “Também com mulheres tão feias quan-to a Dilma e a Graça Foster, o que se poderia esperar? Vinícius estava certo: ‘que me des-culpem as feias, mas beleza é fundamental’”.

Tentei respirar fundo para assimilar as palavras, coordenar meu pensamento no afã de não ser passional.

O que é a política? O que é democracia?

O que são (ou representam) as manifestações populares que buscam o impeachment da Presidente? Estas manifestações, de fato, rei-vindicam reforma política e o fim da corrup-ção? Por acaso uma mulher bonita colocaria fim à crise se fosse Presidente, como mencio-naram os doutores que disseram estes des-pautérios em uma sala de professores, onde eu, outra doutora, estava estudando? Neste caso de uma mulher bonita ter uma compe-tência diferenciada para resolver a crise eco-nômica, será que a ela não seria atribuída, por este mesmo povo que repudia a feiura, a pe-cha de ter chegado ao poder em função da sua beleza? Ela não seria uma vadia?

Política é muito mais que bravatas. Po-lítica é muito mais que beleza. Vinícius de Morais é lindo, como poeta, não como po-lítico. Suas ideias, suas letras, são tocantes... ao coração, não na política. Por óbvio que o povo buscar atitudes sérias, assim como a verdade acerca da crise política, é elogiá-vel, mas não com argumentos toscos e va-zios. Ademais, de um povo desrespeitoso, que não entende o lugar de um Presidente, não se pode esperar, deste mesmo Presiden-te, atitude diferente, que não outro tanto de desrespeito... e por aí vai... desdém e sangue nos olhos, nada de racionalidade ou da bus-ca de uma razão jurídica que possa auxiliar no desatar da crise.

O povo brasileiro precisa, antes de mais nada, de aulas de filosofia e política, porque grande número das pessoas que foi às ruas reivindicar reforma política é simplesmente

massa de manobra que reverberou em car-tazes e aos gritos muitos discursos de ódio. Democracia não é isto. Democracia parte de um diálogo respeitoso e argumentativo. Argumentos que possam ser analisados por sua coerência, e não pelos sentimen-tos que advém deles. Sentimentos são óti-mos, mas em política, se exige mais. E em um Estado Democrático de Direito não se pode cogitar em chicanas com o intuito simplesmente da tomada de poder. Demo-cracia vem para a inclusão, e não para a chancela de relações de poder.

E, ademais, como poder-se-ia inserir as reverberações de gênero – que desmerecem a Presidente e a antiga diretora da Petrobras – na luta em prol das reforma política? Se o dis-curso já se inicia com (des)valores intrínsecos, como prosseguir neste caminho? Como não pensar na banalização da vida pública por um povo com sede de revanche? Seria uma ver-são contemporânea da ‘banalização do mal’, que mencionou Hannah Arendt? Onde tudo isto pode nos conduzir? Só vejo uma resposta: ao ódio. Assim, parece impossível analisar a política por detrás dos manifestos.

O que tudo isto me diz é que o momen-to é de desconfiança. De indagação. De não aceitar pechas como sentenças. E de nos po-sicionarmos diante das verdades nas quais acreditamos, o que, necessariamente, requer respeito e integridade. Somos humanos, e an-tes de qualquer coisa, devemos tratar o outro como também humano. Só assim verdadei-ramente caminhamos rumo ao bem comum.

Princesas, bruxas, vadias, recatadas, inteligentes, burras...

que tudo isto tem haver com política?

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“DEUS ESTÁ MORTO? NIETZSCHE ESTÁ MORTO?”

Por Wesley Soares*

Motivado pelos frequentes debates entre ateus e religiosos que, insistente-mente, tentam provar a existência de Deus, resolvi escrever esta breve análise sobre um dos principais argumentos usa-do pelos religiosos para sustentar a exis-tência de Deus. Sabe-se que o princípio da causalidade não é um argumento novo, já que Tomás de Aquino escreveu a famosa “Summa Theologiae” no século XIII, mas apesar de tanto tempo e de tantas críticas já feitas, tendo em vista o frequente uso deste malogrado raciocínio, faz-se neces-sário o reforço das críticas.

Para isso, tratarei de duas vias de Aqui-no que considero as mais usadas pelos reli-giosos, a primeira e a terceira vias. [1]

Primeiro motor imóvel: esta primeira via supõe a existência do movimento no universo. Porém, um ser não move a si mes-mo, só podendo, então, mover outro ou por outro ser movido. Assim, se retroagirmos ao infinito, não explicamos o movimento se não encontrarmos um primeiro motor que move todos os outros;

Ser Necessário e os seres possíveis: a ter-ceira via compara os seres que podem ser e não ser. A possibilidade destes seres implica que alguma vez este ser não foi e passou a ser e ainda vem a não ser novamente. Mas do nada, nada vem e, por isso, estes seres possíveis dependem de um ser necessário para fundamentar suas existências;

Com a leitura dos argumentos de Aquino, percebe-se que não há grandes diferenças entre eles. Ambos sugerem que Deus é um ser necessário para a explica-ção da existência do universo, já que sem Ele, estaríamos coagidos a conceber um universo eterno, sem uma causa. Pode-mos extrair destes argumentos a máxima de que “do nada, nada surge” e que, por isso, se não quisermos cair em uma “re-gressão infinita” precisamos admitir que no universo há de ter um “motor imóvel”, ou seja, um criador.

Obviamente, o que Aquino chamou de “prova” só pode ser tomado como uma prova lógica, já que não há como verificarmos empiricamente se Deus existe. Caso fosse possível uma prova empírica de Deus, certamente não ha-veria discussões sobre sua existência, já que a prova empírica é baseada na

experiência direta com o ser, através dos sentidos. Bastaria que pudéssemos ver, ouvir, tocar ou mensurar Deus de alguma forma para que chegássemos à conclusão de sua existência. Entretan-to, como se trata de um ente imaterial, invisível, sobrenatural e atemporal, nos-sos sentidos em nada nos ajudam para comprovarmos tal coisa. Logo, como prova lógica que é, as vias de Aquino se baseiam em premissas que tendem a um silogismo. Sabe-se também que tais premissas, para que sejam consideradas verdadeiras, precisam ser corroboradas pela experiência, pois sem o mínimo de verificação que seja, não passariam de mero fruto da imaginação. Quanto a isso, nada a questionar, pois a premis-sa da qual parte Aquino, de que “nada surge do nada”, está inteiramente con-firmada pela experiência humana, não havendo, na história da humanidade, um único registro sequer de algo ou al-guém que tenha passado a existir mila-grosamente, sem quaisquer indícios de uma origem. Até mesmo Jesus Cristo teve sua origem, assim como toda a fau-na, flora, substâncias e tudo mais que conhecemos até então.

Entretanto, tomando como irrefutá-vel a máxima de que “nada surge do nada”, passamos a encontrar sérios problemas na tese de Aquino. Primeiramente, do ponto de vista formal, da premissa “nada surge do nada”, jamais poderíamos extrair a conclu-são “Deus existe”. Não há uma segunda pre-missa que possa compor este silogismo de maneira correta. Em segundo, se nada sur-ge do nada, devemos nos perguntar: como pode Deus ter sempre existido? A resposta é conhecida. Dirão os teólogos que “Deus é eterno”, configurando a única exceção da regra [2]. Penso então que a colocação suscitaria uma segunda questão: e por que podemos ou devemos conceber que Deus é eterno? E replicarão os teólogos que, se não admitirmos isso, cairemos no absurdo de uma regressão infinita, na qual toda exis-tência teria sempre uma origem, havendo necessariamente algo anterior que explique algo posterior. Quanto a essa afirmação, é preciso concordar que, sem uma espécie de “motor imóvel”, realmente tudo have-ria de ter uma origem e estaria assim posta uma regressão infinita, bem como Aquino

apontou em sua terceira via. Vejo que a essa altura a melhor pergunta então seria: por que uma regressão infinita seria absurdo? Nunca obtive essa resposta de um teólogo, mas me arrisco a responder que, do ponto de vista lógico ou empírico, não consegui-mos imaginar algo como uma regressão in-finita. É de fato uma questão que desafia a imaginação humana. Mas, refletindo sobre essa questão, podemos perceber que, defi-nitivamente, não cogitamos a possibilidade de uma regressão infinita pelo simples fato de que consideramos isso absurdo. Perce-be-se que, curiosamente, podemos admitir que os números, o universo, uma dízima periódica ou até mesmo um ser imaterial, invisível e sobrenatural sejam infinitos, mas que uma regressão para explicar nossa existência não pode sê-lo. Fica claro que se podemos conceber, logicamente, que algo exista sem que tenha uma origem, conse-quentemente admitimos que algo pode surgir do nada, ou que pode criar a si pró-prio, ou que pode simplesmente ter sempre existido. Porém, não achamos que isso seja absurdo. Para nossa cultura, uma regressão infinita é absurdo, enquanto algo ter sem-pre existido não é. Essa preferência não tem qualquer sustentação racional. 

Fica, portanto, claramente demons-trado que o que sustenta o argumento de Tomás de Aquino é simplesmente o desejo de que exista um criador, sendo este im-provável tanto logicamente quanto empiri-camente. Não há qualquer motivo especial ou racional para preferirmos um criador em vez de uma regressão infinita. Não há razões lógicas ou empíricas para considerarmos Deus menos ou mais absurdo do que um universo que sempre existiu, sujeito a uma regressão infinita que sempre cobre uma origem da existência. 

Alguns dirão que tudo que fora dito aqui não prova que Deus não existe e, quanto isso, há que se concordar. Até porque, provas ne-gativas são impossíveis. Não é possível pro-var que algo não existe. O que foi brevemente exposto apenas demonstra, em outras pala-vras, que não faz sentido algum falar em uma regressão infinita absurda com o intuito de justificar a necessidade de um criador, pois se tal regressão soa absurda pelo simples fato de ser impensável, um ente eterno também é impensável pelos mesmos motivos.

* Advogado e Mestrando em Teoria do Direito.

Sobre o princípio da causalidade como prova da existência de Deus

Santo Tomás de Aquino por Fra Bartolommeo

(1395 - 1455) 

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VISÃO DE TEMPO

Por José Carlos Henriques

Falo aqui sobre a desafiadora compre-ensão do momento no qual nossa existência está situada. Isto mesmo, momento. E, com isto, já nos remetemos ao tempo. O existir se passa, estendido entre um antes e um depois. É um momento, irreptível, em todo o seu percurso. Mas além do tempo crono-lógico, medido e contado, em sucessões de instantes, há um outro, um tempo diverso, da memória, da duração, como afirmou Ber-gson. Este nos pertence de modo particular, carrega em si a marca do que somos.

Em relação ao tempo, do antes, se po-demos algo saber, sempre o fazemos a par-tir da memória, própria ou de outros, de narrativas. Mas, paciência! Se não há fatos, mas tão somente interpretação dos fatos, como ensinara Nietzsche, não há reclamar: também no nosso presente, não há fatos, mas sim suas interpretações.

Bem assim, no plural. Fatos, puros, em--si, é metafísica, no mal sentido: indecifrá-vel, afinal eles não falam por si, precisam de nossa voz, nós os intérpretes do mundo.

Do depois, céticos, melhor esperar. É ver-dade que, também sobre o depois, outros já construíram suas narrativas. Não se deve negar que alimentamos as nossas, sejam quais forem. Mas, certeza, este porto seguro que sempre procuramos, nem no dito sobre o antes, nem no dito sobre o depois, ousamos ter, não ao menos de uma vez por todas. Certos estamos, até que tudo se agite, novamente. De crenças a dúvidas, de dúvidas a crenças, nos fazemos a meio termo entre saber e esperar saber.

Então tudo, o antes, o depois e o agora,

é desafio. É parte do existir este susto dian-te do mundo que vem a mim e me exige que responda, antes mesmo que perguntem, antes mesmo que eu me pergunte. A história é um fio com o qual tecemos um nosso destino e por ele nos empenhamos. “Um nosso” desti-no, porque nos destinamos, sempre o que es-colhermos é “um’ caminho, entre outros.

Mas o tempo do agora é o mais desafia-dor a uma compreensão justa.

Talvez, por isto mesmo tantos engros-sam as fileiras dos erros históricos crassos e incompreensíveis. Nesta lista, grande certa-mente, podem ser incluídos muitos filósofos, literatos, médicos, sociólogos, teólogos, gen-te de letras de todo gênero.

Pensam, pensaram ter vivido um tem-po outro, que não foi o seu. Ansiaram por ações, ou as praticaram, movidos por obje-tivos e móbiles que não alcançaram. As tra-gédias humanas históricas que o digam: elas têm uma história própria, arraigada na exis-tência de seus protagonistas.

Quando muito de perto avistamos algo, se turba a visão. Aquele algo talvez esteja ali, num em si indizível. Mas ganha vida apenas pelo que dele se vê. E, visto muito de perto, turbada a vista, os maneirismos compare-cem: a-vistamos. Nega-se o visto turbado que não se quer ver, não quer deixar-se ver, vê-se como se queira, a vista se dá mais aos anseios. O feio, o torpe não é visto, ou sim, depende dos propósitos, confessáveis ou não.

Assim mesmo, como para Merleau--Ponty, somos sendo no mundo. O movi-mento nos joga daqui para ali, de lá para cá, jogamo-nos nele, pertencemos a ele e, como parece, ver em movimento requer atenção

redobrada. Mover-se, sabendo-se movente, pode tornar visível o que parece estagnado, mas é volta ou ida de nossos próprios pensa-mentos sobre o real.

Não sei muito sobre o presente. Melhor que dizer “sei tudo sobre ele”. Enquanto penso no presente como algo a desvendar, permanece aberta a possibilidade do enga-no, de resto sempre existente e insistente-mente ameaçadora.

Mas tudo isto não deve fazer cessar o es-forço: avistar o presente, de perto e de longe, tirar-lhe os véus, arrancar pela raiz a igno-rância cega sobre o que me cerca.

Esta uma disposição invejável! Sobretu-do, em tempos ruidosamente apequenados, de valorização extremada do anti-gosto e das ranhuras e arremedos de interpretação.

Mas será isto um charme de nosso tem-po, uma sua marca flagrantemente procura-da. Ou já estamos vendo de forma turbada o presente, o que hoje vige. A filosofia po-derá, quem sabe, mais tarde dizer, quando este ora presente for passado, afinal ela pode compreender somente o já realizado, o real já feito, como a coruja da velha Minerva que, à noite, vê os trabalhos do dia. É Hegel a ensinar. O momento é o que nos desafia, o presente há de ser desvendado. Mas os véus, todos, podem mesmo se esvair? Talvez não, mas compreender o tempo em que se vive segue sendo a maior das tarefas.

Ah, cuidado! Sempre se pode tender a pensar o presente como o pior dos mundos, a idade de ferro. O tempo vivido por outros alimenta um enigma especial: parecem me-lhores do que o nosso. Quem sabe seja este um primeiro véu a se remover. Coragem!

Desvendar o presente

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“OU ISTO OU AQUILO”

Por José Luiz Quadros de Magalhães

Nomeações e rotulações são instrumentos podero-sos de exclusão, normalização, adestramento e uniformi-zação. Claro que, com o desenvolvimento da linguagem, precisamos nomear as coisas, e mesmo as pessoas, ideias e valores. Por mais simples que seja a forma de lingua-gem, a nomeação está na sua essência.

Isto é uma flor, uma árvore, um animal, um homem uma mulher, uma criança, um idoso... a nomeação é com-plexa e envolve valores, conceitos, hierarquias, inclusões e logo exclusões. Os nomes que damos às pessoas, às coi-

sas, aos sentidos e expe-riências, são construções sociais históricas carre-

gadas de possi-bilidades.

A lingua-gem, o verbo, a gramáti-ca, as formas

de expressão e comunica-ção carregam sentimentos,

sentidos, valo-res, que se locali-

zam historicamente. As palavras, um nome, um

nome próprio, um sobreno-me, um signo, significam ideias que mudam, que são compreendidas de forma diferente.

Uma palavra pode viajar no tempo e no espaço. Imaginem uma palavra como “liberdade”. Esta palavra tornou-se central na modernidade ocidental, e de tão repetida tornou-se vária e por vezes um truque, uma ilu-são. O que é liberdade? De inúmeras construções concei-tuais, filosóficas, políticas, culturais; construídas por di-versas áreas do conhecimento moderno, pela economia e pelo direito; representada pela arte e suas linguagens; “liberdade” é uma palavra em disputa política e filosófica, uma palavra que viaja, que significa ideias e sentimentos distintos em lugares e tempos distintos. Assim são as pa-lavras: perigosas, enganosas, revolucionárias ou normali-zadoras, limitadoras, escravizadoras...

Entendendo a força da palavra (das palavras) o poder, na modernidade, moldado pelo direito e pelo estado, se apropriou das palavras. O Estado retirou a língua, o idioma, as palavras, do livre uso das pessoas, da sociedade, da comunidade, titulares da criação das palavras e frases, dos seus sentidos e de sua transfor-mação dinâmica. O Estado moderno passou a dizer o sentido de cada palavra, disse como elas podem e de-vem ser pronunciadas, como as frases podem ser cons-truídas, e acreditem... como é a maneira certa de falar e escrever, desautorizando os autores da “língua” falarem

como falavam. Agora existem os poucos que falam cer-to, e os muitos, que falam errado. É enorme o poder de quem pode dizer o sentido das palavras, quem constrói o sentido comum das palavras constrói o senso comum. Imaginem o poder de quem pode dizer o sentido de pa-lavras como liberdade, desenvolvimento, justiça, direito, crescimento, e outras palavras chave.

A modernidade (e o colonialismo), entre outros fundamentos, necessita de construir um mundo binário, simples, onde o “nós” (os civilizados) tem a missão de “ci-vilizar” o “eles” (bárbaros, selvagens, índios), diferente do padrão hegemônico moderno “branco e masculino”.

Neste jogo de poder e de subalternização do “outro”, claro que a linguagem é fundamental. Invenções de con-ceitos binários simplificam o mundo: a superficialidade é amiga da violência. O fascismo é simples, superficial. Assim, todo aparato de poder moderno utilizará uma lin-guagem simples onde o mundo é dividido entre civiliza-dos e incivilizados; bons e maus; homens e mulheres; pu-ros e pecadores; brancos e pretos; pessoas que cumprem a lei, pessoas honestas, e pessoas desonestas, “mocinhos e bandidos”, ou como nos filmes e seriados norte-america-nos, o exército americano matando dezenas de “índios” a cada episódio, civilizando a “américa”.

Uma descoberta moderna se tornou útil ao sistema de dominação, a alienação: é possível falar em “Direitos Hu-manos Universais” pois estes se aplicam aos seres humanos e não aos “monstros”, “terroristas”, “bandidos”, “vândalos”...

Basta criar um nome, atribuir um sentido não hu-mano, e sacralizá-lo, ou seja, retirar do livre uso, e tudo está resolvido. Mais ou menos como a ridícula frase: “direitos humanos para humanos direitos”. Ou podemos pensar em “Guantánamo”, base militar norte-americana onde há mais de 10 anos dezenas de pessoas são subme-tidas a torturas inimagináveis. Qual a explicação para isto? Qual dispositivo é posto em marcha que faz com que as pessoas e que a chamada “sociedade” internacio-nal não façam nada? Podemos começar a explicar isto por uma “nomeação”: “terroristas”.

Quando as pessoas saíram às ruas no Brasil, em 2013, reivindicando direitos, o poder, a grande mídia concentrada, encontrou uma solução para esvaziar a política, para afastar o perigo, para domar o movimen-to: existem os cidadãos manifestantes e os “vândalos”. Estes últimos não têm direitos, logo podem ser presos e torturados. O devido processo legal como princípio universal de direitos humanos, para esta categoria de pessoa, pode ser esquecido.

A nomeação simplifica, divide, abre espaço para a violência. A violência decorre da superficialidade, da simplificação. Este é o papel da nomeação no poder moderno uniformizador: se o poder domina o sentido das palavras, a gramática e o senso comum, basta sepa-rar um grupo, indicar um nome, e atribuir um sentido. O resto virá como decorrência da superficialidade, da simplificação, do fascismo.

Vândalos?