jornal plural abril a junho 2013

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JORNAL CULTURAL Pós-modernidade Por Barroso da Costa Praça Sete, região central de Belo Horizonte, 9:00 horas. Dirijo-me para o serviço enquanto converso ao celular. O burburinho é ensurdecedor. - Marque a reunião para as onze... Uma buzina prolongada. - Hein, Marcelo? Não escutei, me desculpe... Eu... Freada brusca. - Hein? É... eu tô no Centro... Sei... Sei... Ambulância. Carro de polícia. Outra freada. - Hein? Não tô te escutando, Marcelo... Eu sei que seria às dez, mas... Tá bem! Dez e meia. Fechei o aparelho celular e olhei para os lados. De repente, silêncio absoluto. A turba continuava seu movimento. Via as bocas se mexendo, umas se dirigindo às outras. O motorista do ônibus, com a ca- beça para fora do veículo, gesticulava e parecia xingar o ciclista, mas não havia palavras. O velho com a placa de “raCopm-es rOuo”, olhava para mim, abrindo e fechando sua boca murcha. Esbarrei no sujeito do i-pod, que vinha mexendo as pernas e a boca num ritmo imaginário, que olhou para mim, mexeu a boca com o dedo em riste e saiu dançando. Alguém levantava uma bíblia, olhava para o céu e abria muito a boca escura como um vácuo. Parei, me concentrei, mas não consegui ouvir nada. Nenhum som, nenhuma palavra. Era como se minha existência estivesse suspensa. Senti uma vertigem, me apoiei numa pessoa. Tentei pedir desculpas, mas ela parece não ter ouvido. Olhou para mim com cara de interrogação – o cenho franzido –, depois de pena – as sobrancelhas em parênteses. Mexeu a boca, virou as costas e seguiu seu rumo. Parei em frente a uma loja de eletrodomésticos, vários televisores expostos. O chef cozinhava, manuseava uma longa colher de madeira com a mão direita, gesticulava com a esquerda e mexia os lábios olhando para uma mulher de meia idade com o cabelo arrepiado e a cara esticada, que parecia gargalhar, mas sem o som. Nova vertigem, desta vez mais forte. Caí. Uma multidão se formou em volta de mim. Todos me olhavam com ar de espanto, mexendo suas bocas freneticamente, enquanto olhavam uns para os outros e depois, de novo, para mim. O homem da bíblia, ajoelhado, projetava os lábios e o corpo para frente segurando o livro com as duas mãos como que para se proteger de um inimigo invisível. Depois colocou o livro sobre mim, ergueu o braço esquerdo, olhou para as pessoas à sua direita e passou a mexer a boca, ora abrindo muito, ora mantendo-a semi-cerrada. Tentei gritar e lajuia\njuhakuhgkajbrfakrbajhrbg. CONTO DOS DIAS DE HOJE plural NÚMERO 1 | ABRIL A JUNHO 2013 | BH | MG

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JORNAL CULTURAL

Pós-modernidadePor Barroso da Costa

Praça Sete, região central de Belo Horizonte, 9:00 horas. Dirijo-me para o serviço enquanto converso ao celular. O burburinho é ensurdecedor.- Marque a reunião para as onze... Uma buzina prolongada.- Hein, Marcelo? Não escutei, me desculpe... Eu...Freada brusca.- Hein? É... eu tô no Centro... Sei... Sei...Ambulância. Carro de polícia.Outra freada.- Hein? Não tô te escutando, Marcelo... Eu sei que seria às dez, mas... Tá bem! Dez e meia.Fechei o aparelho celular e olhei para os lados.De repente, silêncio absoluto.A turba continuava seu movimento. Via as bocas se mexendo, umas se dirigindo às outras. O motorista do ônibus, com a ca-beça para fora do veículo, gesticulava e parecia xingar o ciclista, mas não havia palavras.O velho com a placa de “raCopm-es rOuo”, olhava para mim, abrindo e fechando sua boca murcha.Esbarrei no sujeito do i-pod, que vinha mexendo as pernas e a boca num ritmo imaginário, que olhou para mim, mexeu a boca com o dedo em riste e saiu dançando.Alguém levantava uma bíblia, olhava para o céu e abria muito a boca escura como um vácuo. Parei, me concentrei, mas não consegui ouvir nada.Nenhum som, nenhuma palavra.Era como se minha existência estivesse suspensa.Senti uma vertigem, me apoiei numa pessoa.Tentei pedir desculpas, mas ela parece não ter ouvido. Olhou para mim com cara de interrogação – o cenho franzido –, depois de pena – as sobrancelhas em parênteses. Mexeu a boca, virou as costas e seguiu seu rumo.Parei em frente a uma loja de eletrodomésticos, vários televisores expostos. O chef cozinhava, manuseava uma longa colher de madeira com a mão direita, gesticulava com a esquerda e mexia os lábios olhando para uma mulher de meia idade com o cabelo arrepiado e a cara esticada, que parecia gargalhar, mas sem o som.Nova vertigem, desta vez mais forte.Caí.Uma multidão se formou em volta de mim.Todos me olhavam com ar de espanto, mexendo suas bocas freneticamente, enquanto olhavam uns para os outros e depois, de novo, para mim.O homem da bíblia, ajoelhado, projetava os lábios e o corpo para frente segurando o livro com as duas mãos como que para se proteger de um inimigo invisível. Depois colocou o livro sobre mim, ergueu o braço esquerdo, olhou para as pessoas à sua direita e passou a mexer a boca, ora abrindo muito, ora mantendo-a semi-cerrada. Tentei gritar e lajfh uia\njuhakuhgkajbrfakrbajhrbg.

CONTO DOs DIAs DE HOJE

pluralNÚMERO 1 | ABRIL A JUNHO 2013 | BH | MG

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 1 | ABRIL A JUNHO DE 20132

Por Fábio Almeida  Até que enfim é sexta feira. Ainda

bem que não é Sexta-feira 13 e mal pos-so esperar Os embalos de sábado à noite. Também pudera, hoje tive Um dia de cão. De cão não, foi O dia do chacal, pois com o calor que estava fazendo, tomaria Um drink no inferno.

Aliás, Inferno na torre, porque fui a um edifício que, de  tão alto, parecia ter Uma janela para o céu. De lá, se avista-va  O Parque dos dinossauros, um circo novo que chegou à cidade, e o Aeroporto 75, setenta e seis quadras adiante.

Como diria um amigo meu, O céu pode esperar, mas eu não vejo a hora de ir para o Studio 54, ao Cabaré ou a um Cas-sino, encontrar-me com os amigos e fi-carmos Perdidos na Noite, ou num Hori-zonte perdido, tanto faz, afinal sexta-feira sempre parece A primeira noite de um ho-mem. Renovam-se suas energias, sente-se forte como King-kong, perverso como O tubarão e guerreiro como O Gladiador. É na sexta que saímos Sem Destino e qual-quer lugar é bom, nunca você é Um estra-nho no ninho, todos são iguais, O pequeno grande homem, Todos os homens do pre-sidente, do mais simples até O iluminado, sem distinção. Seja um ou Sete homens e um destino, pois todos desejam uma coisa só: ter as Asas da liberdade.

Alguns extrapolam, se sentem O po-deroso chefão e preferem confusão ao in-vés de divertimento. Eu prefiro as festas e se me chamam, sou O convidado tra-palhão. Falou que é bagunça, vou até Em algum lugar do passado ou De volta ao futuro. E se a festa for boa, faço até 2001, Uma odisséia no espaço, dançando com Alien ou bebendo com O Dragão Verme-lho. Faço Dança com lobos, dou Um tiro na noite, chupo Laranja Mecânica, acei-to Proposta indecente, atravesso As pon-tes de Madison e vou ao  Mississipi em chamas. E se me machuco, não importa Onde dói mais.

Sei que parece esquisito, mas chega o final de semana, sinto uma Atração fatal; parece Feitiço da lua, me transformo e adquiro A outra face, e Acima de qual-quer suspeita, abandono o serviço.  E se tem um companheiro, são Dois perdidos numa noite suja.

Mas veja bem, se é para festejar, Faça a coisa certa, desarme o espírito. É Uma questão de honra. Deixe Os estranhos vi-zinhos para trás e não se preocupe com O preço do sucesso porque, de repente, até se vira um Herói por acaso.

E, quando tudo acabar, sobrarão as Lembranças do passado e na hora de dar explicação ao chefe pelo atraso na segun-da, nunca se esqueça, dirija-se Ao mestre com carinho.

CRôNICA DA vIDA NA TELA

Que tal um cineminha?

ExPEDIENTE

JORNAL CULTURAL PLURALEditor: Bernardo G.B Nogueira

APOIO TÉCNICO: Núcleo de Publicações Acadêmicas Newton: Cinthia

Mara da Fonseca PachecoProjeto Gráfico e Editora de Arte: Helô Costa - RG: 127/MG

Diagramação: Geisiane de Oliveira (estagiária da CPJ)

CONTATOs, sUGEsTõEs E ANÚNCIOs: [email protected]

Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores.

EDITORIAL

Nascer é arte

Apresentamos o Jornal Cultural Plural, que nasce com a intenção de propor uma nova mirada ante a exis-tência. Não se trata de um Jornal tem-poral, tampouco, preso a tal ou qual direção política e/ou filosófica. Nossa intenção com esse periódico bimestral é propiciar ao leitor um momento de “duração” ante uma existência “líqui-da” que retira do humano sua condi-ção de artista da vida. Assim, como nos ensinaram os gregos antigos, o Jornal Cultural Plural, quer ser um momento em que o leitor se coloque em condição de cumprir essa face do existir, a artística! Esperamos cumprir nossa proposta com os diversos auto-res que gentilmente nos emprestam suas reflexões, idéias e ideais. Autores que nos escrevem de diferentes par-tes do Brasil e do mundo, portanto, a proposta motriz esta a ser acesa, incu-tir arte em nossa vida, e para isso, há apenas e todas as formas de realizar: a plural. Desejamos a todos nossos leito-res bons momentos em companhia do Plural, que sua arte permita uma nova subjetividade, mais colorida e menos institucional, mais poética e um tan-tinho menos racional. Tudo que nos permita uma existência PLURAL!

Por Bernardo G.B. Nogueira

sEJA UM OU SETE HOMENS E UM DESTINO, POIs TODOs DEsEJAM UMA COIsA só:

TER As ASAS DA LIbErDADE.

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DIE RUBRIk

O complexo da brasilidadePor Thalita Dittmaier

É com grande prazer que aceitei não só o convite para escrever neste espaço, como tam-bém o desafio de falar sobre questões culturais sem cair no enfado e aborrecer o caro leitor com lugares-comuns. Se, por acaso, vier a fazê--lo, já antecipo meu pedido de perdão.

Sou brasileira com entusiasmo, mineira de nascimento e de coração, apesar do sobreno-me alemão. Professora e tradutora apaixonada pelo que faz, moro na Alemanha há quase dois anos. Assim, aproveitando o ensejo do Ano da Alemanha no Brasil e da união do gosto pelas Letras à situação de imigrante, deixo algumas divagações que somente a distância e a sauda-de do “Hotel Mama”, como dizem os alemães, seriam capazes de fazer aflorar.

Em primeiro lugar, quanto à Alemanha, país que me acolheu tão abertamente, há que se considerar, indubitavelmente, a pontualidade, a eficiência e a organização que tanto nos faltam em solo tupiniquim. Aliás, abro parênteses e menciono o meu querido pai, o qual veio me vi-sitar há pouco e que, em estado de estupefação e incredulidade, saiu tirando fotos de todos os banheiros que encontrava como prova de ates-tado da limpeza germânica. Fecho parênteses. Não nego que o país da cerveja (deliciosamente sedutora!) assemelha-se, sem exagero, a uma maquete de Playmobil. Tudo certinho, tudo no lugar. Inspiração seja para as mentes poéticas, seja para os corações racionais.

Ultimamente, no entanto, tenho refletido acerca do que considero uma verdadeira patolo-gia cultural, consciente ou não, que se manifesta na forma de uma subalternidade dos brasileiros perante o resto do mundo. Sob esta ótica, ser brasileiro pode implicar qualquer coisa, menos algo de bom. Sim, é inegável que, em se tratan-do de governo, educação, saúde e educação, es-tamos há anos-luz de muitos países, mas, não menos verdade, é que nós acreditamos pouco no Brasil. Como promessa é dívida, não entra-rei em discussões político-ideológicas, uma vez que somente gostaria de destacar o quanto esse sentimento de pequenez me assusta.

Por outro lado, curiosamente, experimen-te perguntar a um estrangeiro, por exemplo, como ele vê o Brasil. Ainda que o leitor obtenha uma resposta-clichê do tipo samba/mulheres/carnaval, atrevo-me a dizer que os aspectos ne-gativos e degradantes originam-se, na maioria dos casos, dos nativos e não dos estrangeiros, os quais, também sem adentrar o campo das generalizações, falam sobre “as terras do sul” com respeito e com um sorriso no rosto.

Não sou especialista na área e, sinceramen-

te, não sei se esse complexo de inferioridade relaciona-se à nossa história de país colonizado ou se resume a uma mera autodepreciação de cunho um tanto quanto masoquista. De qual-quer forma, aprendi a ver com outros olhos o que antes nem mesmo enxergava. Se um país limitado em recursos naturais como a Alema-nha consegue reciclar seu próprio lixo, por que nós, em nossa abundância cantada em verso e prosa, não seríamos capazes? Se os alemães, com um inverno longo e rigoroso, além de um histórico de guerras e destruição no seu cur-rículo, não têm piedade de si mesmo, acredi-to poética e racionalmente que podemos, do mesmo modo, superar inúmeros problemas, inclusive toda essa complexidade, ambigua-

mente falando, a que me refiro. O que não faz sentido é dar a volta ao

mundo, elogiar as ruas limpas do terreno do “outro” e, ao pisar em terras brasileiras, jo-gar lixo pela janela do carro, só porque, por lá, nada vale a pena. Tenho aprendido coisas outrora inimagináveis a respeito do meu país, como a não reclamar do calor, das chuvas de verão e do barulho das festas. Gostaria ainda de dizer que, afinal, a diferença está, muitas ve-zes, transvestida na amarga ilusão do melhor ou pior, conceitos perigosamente estigmatiza-dos. Enfim, contrapondo duas realidades tão distintas é possível igualarmo-nos ao que nos resta ser, humanos imperfeitos e bonitos por natureza, sem mais nem menos.

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CONTO ETÉREO

POEsIA DE POEsIA

AsasPor Márcia Tiburi

Cigarro aceso é tempo para pensar. Coi-sa que não deixo que me roubem no meio des-se caminho de palavras espalhadas pelo chão. Na bolsa, espaço para estrelas sem destino. Já me roubaram tudo, a ampulheta que contro-la o futuro, meu corpo, cílios postiços, meus olhos piscando. Sigo de salto alto no pé direi-to, descalço é o esquerdo. Me doem as costas, as coxas, a unha. Um soco rasgou-me a maçã, sujando de sangue a blusa de malha. Ficou a segunda pele mais fácil de lavar. Meus seios ar-dem como queimados. Deve ter sido o susto. Às vezes, chegam exigindo dinheiro. Nunca é o sexo, cujo perigo eles conhecem. Esta noite, só o que queriam era olhar-me sem olhos.

 O que me dói, no entanto, é a falta de Agnes. Agnes era a solidão que me faltava. Uma

conquista verdadeira, como disse a ela quando

nosso guarda-chuva foi devorado pelo vento e pude tocar em seus braços miúdos, as cos-tas tesas, aqueles cabelos de luz. Eu a espera-va na saída da fábrica no fi m da madrugada, acompanhava-a pela rua, carregávamos juntas os dias, as noites, todos os segredos. De sua língua, surgia ora um gosto, ora um desgosto. Eu só escutava.

Agnes dizia que meus pensamentos vi-nham de nuvens contadas. Me pedia um di-nheiro qualquer para comprar pão, falando dos fi lhos, do marido, do pai doente. O salário não dava para o mínimo. Eu acudia com meu pouco, que era muito pouco, menos, coisa ne-nhuma. Ela agradecia escondendo o que sabia. Não fi cava bem andar ao meu lado.

Perguntou-me uma única vez se eu fazia programa. Eu só faço tricô, menti. E essa voz tão forte, e essa barba que cresce, e esses pés enormes? Sentia-me a vovó da Chapeuzinho

explicando-lhe que meu corpo era todo, era inteiro, um casal completo a ocupar um mes-mo lugar no espaço. Pedia-me que eu mos-trasse, mas eu tinha vergonha de fi car nu dian-te daquela falta de maldade. Uma dia ela veria apenas as asas, dizia, prometendo o mundo. Ela silenciava tentando ouvir o som dos pássa-ros a despertar a cidade. Andava comigo até o portão e seguia uns cinquenta metros adiante, desaparecendo na entrada do arvoredo.

Esperei na porta da fábrica por dias. Ela nunca mais apareceu. Roubaram-me um pouco a cada dia, o que eu tinha e o que não tinha. Me roubaram também Agnes. Me pergunto o que farei agora, quando as margens dessa rua se tor-nam tão estreitas. Tive a ideia de subir no mor-ro. Voarei para bem longe. Agnes verá as asas. Saberá, como eu sei, que tudo vai fi car bem.

Conto originalmente publicado no blog da autora: http://fi losofi acinza.wordpress.com/

FlorPor Bernardo G.B. Nogueira - Outono 

Flor, porque você é mesmo uma fl or. Como eu quero ver todo dia essa fl or. Cha-mar fl or, e mesmo que não seja atendido com outra voz, que seja fl or em silêncio. Porque até sem falar ainda é fl or, porque fl or não precisa falar, só ser fl or mesmo já está bom, porque o cheiro da fl or já diz tanta coisa que se ela ain-da falasse iria conquistar o mundo. E essa coi-sa de conquistar mundo também não passa pela cabeça de uma fl or. O mundo é ela mes-ma e não teria razão para querer conquistar a si mesma. E também porque o mundo já está cheio de pessoas que querem conquistá-lo. Porque fl or que se preze não fi ca com acaso por causa de um mundinho qualquer, no má-ximo, deixa um rastro de cheiro e logo volta à sua formosura e desdém em relação ao mun-do. Porque o mundo é que precisa conquistar a fl or, não é? Sem o mundo ela ainda é a mais bela fl or, mas sem ela o mundo nem tem mais cor. Porque ainda que mundo houvesse sem fl or, ninguém ousaria pensar que não era um mundo menor pela falta da fl or. Porque tam-bém ela simplesmente brota no campo ou no jardim e depois fi ca a deixar os outros apaixo-nados por e através dela. Porque o amor sai de suas pétalas e toma o nosso olhar, e “ai” de quem não se curva diante da fl or, sai espinha-do. Porque ela é brava também, como tem que

ser tudo que é imprescindível. Nem dá para se importar quando a gente erra o caminho a pensar na fl or. Aliás, acabo de descobrir outra face da fl or, ela serve para desviar caminhos. E como seria essa vida sem os caminhos des-viados?, iríamos todos para o mesmo rumo e sem sequer ver uma fl or ou mesmo tê-la em mente. Nosso pensamento além de tudo depende da fl or, porque sem ela seria como não precisar levantar-se da cama ou abrir os olhos. Seria chato abrir os olhos e não ver a fl or, e é impossível viver sem que tenha uma fl or. E essa fl or, também é muito misteriosa, porque tem a cada primavera uma pétala que não se viu na outra, e aí fi camos apaixonados sempre e a cada primavera pelas novas pétalas e pelo cheiro novo que aparece sempre e mais forte de manhã. Além de tudo, as manhãs também só têm todo esse charme porque as fl ores abrem um sorriso para elas. Porque sem fl or também não há manhã que aguen-te acordar todo dia. E os dias só tem alguma chance de sobreviver, se porventura tiverem dentro de seus minutos, longos momentos em dedicação à fl or, porque senão ele vai fi car tão vazio que logo cansará e fi cará a implorar para que venha logo a noite. Porque a noite já se rendeu à fl or, ela deixa tudo mais escuro para que o cheiro da fl or possa ser sentido de maneira mais clara. A noite é escura para que os odores da fl or possam passear por entre ela

sem serem percebidos. É porque a fl or é tam-bém uma forma de existir quase enigmática. Ela não fi ca por aí se mostrando para qual-quer. Tem que ter olhos e olfato sensível, se-não não vê, senão não fl utua e não sente. Daí que para um dia perceber o que uma fl or quer dizer, realmente é preciso mais que um olhar apurado e um ouvido aguçado. Tem mesmo é que largar de lado a razão. É precisamente por causa disso que a fl or aparece. Porque ela é também irracional e prefere um louco a roubá-la do que um são que quer comprá-la. Porque ela não se vende. E é por isso que em algumas vezes ganha-se fl or sem ganhar. De vez em quando a ornamentação com fl or fi ca parecendo uma coisa cheia de nada e sobran-do tudo. Isso é também pela face subversiva da fl or. Ela aparece quando o relógio não interes-sa e quando o horário já foi perdido. Quando a grade da casa é grande ou quando o muro é alto. Porque para chegar perto tem que ter insanidade de poeta e toda a falta de medo e razão que só quem é apaixonado por uma fl or poderia ter. E toda essa aventura da vida só tem sentido se no fi m do arco-íris tiver uma fl or à sua espera, porque se você não colorir o cami-nho, ele não será arco-íris, e muito menos terá uma fl or ao fi nal à sua espera. Porque fl or não espera e arco-íris não existe. Só existe sonho e só existe criação. Quem souber pintar invente e quem souber plantar que viva. Porque fl or...

Por Márcia Tiburi

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CONTO DA ExIsTêNCIA

Por Tânia Cristina Dias*

Subiu no muro para ver o passado. De-pois do imenso esforço investido, a fim de alçar o canto, onde ficava o veio da parede do barracão e o muro, ficou a contemplar a fileira de casas baixas, atarracadas, agarradas ao chão. O peito arfava, subia e descia em des-compasso. O quadrado de 8 casas siamesas, o quintal único, o muro alto e a ramificação de outras casas pequenas, grandes e médias que margeavam a rua, até o cume da mesma, finalizando o quarteirão.

Início do dia, silêncio ainda, a neblina co-meçava a dissipar. As cores do dia se definiam lentamente, entre o laranja e o verde, o dia ocre, e ele, a observar cada resto do passado es-quecido em algum canto. O balde verde, guar-dado debaixo do tanque, a tela do galinheiro e o olhar atento e redondo das galinhas, à caça de alguma formiga, minhoca ou aranha, uma porta que se abre, a janela bate suas abas, o ar varrendo o chão da pequena casa. Uma e outra criança chora, desperta de um sonho a espera do leite morno e do colo da mãe. Tudo é início, o café, o bule, o pão, o berço.

Um homem sai para o trabalho, como ele fazia, a despedida no portão, o beijo da esposa, a criança com o nariz de catarros e cabelos amarelos enevoados a balançar as mãos da janela. Os filhos, os filhos. Por eles o esforço diário, as idas e vindas, o cartão de ponto, a cesta de Natal, a família entrelaçan-do o fio do macarrão às aventuras de cada um, tenros a acreditar na façanha do vôo, do tatu no buraco, o molho grosso que a espo-sa fez com tanto zelo, a tosse seca da avó no canto da cozinha, os cheiros subindo de cada canto, os risos, o jantar.

Vestir os pijamas, alguns curtos outros cumpridos, escovar os dentes, deitar um por um, a coberta até o pescoço, o beijo no rosto, coçar as orelhas de um e outro, as histórias do serviço a embalar os sonhos dos filhos. Todos dormem, ele se levanta, estende a mão para a esposa, aproximam da cama da avó, beijam lhe a fronte e rumam para o outro quarto - o dos adultos. Arrematam mais um dia, oram, gra-ças à Deus. Dormem. E de novo, a esperança da manhã, do dia todo a se fazer, os vizinhos, tantos jeitos e formas, histórias únicas e se cos-turar de porta em porta, de casa em casa – vila.

Tamanha lembrança lhe arromba cada canto do peito, feito a primeira derrubada do muro, deste mesmo que agora o sustenta. Os

detalhes são muitos e foi bem assim. Uma pe-quena infiltração, boba de início, sorrateira de um banheiro suspeito, constatada quando já era tarde, teve que ser posto ao chão. A casa da Aparecida, que apossou do muro vizinho, ficou exposta por algumas semanas, feito um teatro de marionetes, do canto de cá do ter-reno era possível ver a cozinha, o banheiro e um dos quartos. Os vizinhos eram assistidos, pelos moradores da vila, desde a hora do café, até a chegada do Geraldo. Magro, alto, alcoó-latra, desempregado a mais de 6 meses. Nesta hora, formava-se uma fileira de crianças que sentavam no chão batido para assistir. Vez por outra, corria um dos pequenos a puxar a cor-tina improvisada do banheiro, na esperança de um personagem na privada ou no banho. Por conta de tamanha exposição, a briga foi feita, discórdia tremenda. Do dono do muro que descobrira a infiltração e dos agregados, que se sentiram desrespeitados, aviltados, assim des-cobertos. Depois de vários efes e erres bem di-tos, à medida que o muro subia, tijolo a tijolo, cada farpa era posta de lado e no final, já eram de novo vizinhos, amigos, cooperativos.

Ele, do muro, atento ao que passava por fora e por dentro viu dona Joaninha surgir através da porta da cozinha, trazia uma peque-na bacia com roupas limpas e torcidas, esten-deu uma a uma, olhou de soslaio para o muro, mas não viu que era observada. Quanto tempo não via a dona Joana e suas três filhas, meninas pequenas e caladas; que mais tarde saíram em revoada, uma a uma, feito as roupas retiradas, já secas do varal e como os filhos sempre fazem quando as asas já estão muito grandes.

As cores da casas, a cada quarto de hora, eram mais evidentes, o rosa, amarelo, o azul e o dia ainda ocre, o vestígio das cores, mati-zes de uma antiga tela. Aturdido em meio às lembranças, algo o desperta da letargia que se encontra, e que de tão entregue não observou o tempo despendido entre a reforma do muro e aquele dia. Escutou a sirene, primeiro longe e depois bem alto, a encher-lhe os ouvidos, em seguida a visão a tremeluzir vermelha. Próxi-mo ao carro do asilo, alguém lá embaixo grita: Cuidado, senão ele se assusta e cai. E uma voz conhecida recomenda aflita:

- Vô, não mexe, a gente vai tirar você daí.O velho ainda não entende, vê as casas

evaporando, a querida vila etérea, alguns mo-radores dos prédios, fazem fila nas minúsculas varandas suspensas, para assistirem ao resgate. Alguns fotografam, passo a passo, o aconteci-

do, em seus celulares. O bombeiro avança da escada e o enlaça por trás. Ele sente-se fisgado, feito um pequeno peixe do aquário, sem a mí-nima possibilidade de se defender.

Suspense, enquanto a escada encurta, até que cheguem com ele ao chão. A filha que ago-ra há pouco lhe acenava da janela com o nariz de catarros o repreende, e lhe aparece com os cabelos cumpridos e escuros. Vestida em um penhoar colocado sobre a camisola às pressas, ainda conserva no rosto, vestígios do sono des-feito. O tempo, o maldito tempo, como corre...

- Pai, pai, o senhor está bem?O velho balança a cabeça em negativa, os

cabelos ralos e brancos saboreiam o vento, bal-bucia algumas palavras desconexas, mas não consegue dizer tudo que lhe passa no peito. E, não tem respostas, já que ainda se pergun-ta, porque todos se foram e o deixaram. Onde estão as casas da vila tão cheias de lembranças?

- Filha, é preciso ver esse muro...a infiltração...A filha, em parte aliviada e pelas rebarbas,

mordida de raiva, emenda:- Pai, assim está agindo feito louco, olha o

que me faz fazer?- Mas, eu não fiz nada, só queria olhar do muro...Um homem de branco se aproxima. As

lembranças vão pouco a pouco se apagando, a esposa, o macarrão cumprido enrolado no garfo, enrolando, embolando, a dona Joaninha, o laranja, o verde, o teatro de marionetes, todos mortos, restaram somente o muro em lascas, ele e um antigo dia ocre a lhe confundir a re-alidade.

O velho, da maca, segura a mão da filha, antes que o ponham na ambulância.

A filha chora:- Pai... por quê? A neta enrodilha as pernas da mãe e se-

gura a chupeta. O velho olha a menina e es-boça um sorriso. A pequena esconde o rosto com medo. E ele queria, apenas segurar a filha, mais uma vez no colo, e soprar os seus joelhos e acalmá-la do tombo.

- Desculpa filha.- Olha o que me fez fazer, pai, que mania

absurda! O pai vasculha os olhos da filha e pensou

dizer que lembrava do tempo em que os velhos tossiam nos cantos da cozinha, participavam do jantar e da vida dos netos, mas apenas balbucia:

- Absurdo é um dia com essa cor filha...* contista

saudade ocre

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 1 | ABRIL A JUNHO DE 20136

PsICANALIsE POLITICA

Por Tatiana Ribeiro de Souza

A construção da identidade é fenô-meno essencialmente histórico e, por isso, refl ete não apenas o lugar ocupado pelo sujeito em uma dada sociedade, mas a própria visão de mundo dessa sociedade. Quando elegemos a modernidade como divisor de águas, para uma análise das identidades, percebemos facilmente que o sujeito pré-moderno resultava de uma combinação inevitável do seu Eu com a sociedade na qual vivia. Dessa maneira, o núcleo interior do sujeito, apenas quando somado à sua relação com as outras pes-soas, era formador da sua identidade. Em-bora existisse um Eu real (essência inte-rior), a identidade era construída a partir da interseção entre esse Eu e a sociedade. De maneira oposta, a modernidade inves-tiu, sob os auspícios da razão iluminista (sapere aude!), na concepção individualis-ta do sujeito, fazendo do centro essencial do Eu sua própria identidade.

Contemporânea à formação dos pri-meiros Estados europeus, a identidade iluminista poderia ter sido uma ameaça á potestade dos monarcas, que desempenha-vam a difícil tarefa de manter a unidade entre diferentes povos que integravam o território sob seu governo. A solução mais bem sucedida para esse desafi o, de manter a autoridade do príncipe sobre a multiplici-dade de identidades existentes no interior dos estados recém-criados, foi a da cultura nacional. Para isso foram acionadas diver-sas estratégias representacionais (brasão, bandeira, hino, herói, passado, idioma ou religião comuns), a fi m de construir o sen-so comum sobre o pertencimento a uma determinada comunidade, o que explica por que a narrativa da cultura nacional é quase sempre contada com ênfase nas ori-gens, na existência de um povo original, na continuidade, na tradição ou mesmo em um mito fundacional. Ao contrário do que pode parecer, os Estados contemporâneos (mesmo os europeus) são praticamente todos híbridos culturalmente, como é o caso dos ingleses (formados por célticos, romanos, saxões, vikings e normandos), dos franceses (formados por célticos, ibé-ricos e germânicos), dos alemães (forma-dos por germânicos, célticos e eslavos) e os

italianos (formados por gauleses, etruscos, pelagianos e gregos). Portanto, a cultura nacional não passa do desejo de viver em conjunto, para perpetuação de uma heran-ça cultural quase inteiramente forjada.

Na medida em que constatamos que as identidades são formadas e transfor-madas no interior de representação, percebemos que a nação não tem sido apenas uma entidade política, mas um sistema de representação com poder de gerar um sentimento de identidade e lealdade. Nas palavras de Hall (2004, p. 59), “Não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de clas-se, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unifi cá-los numa identidade cul-tural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande famí-lia nacional”. Assim, a cultura nacional atuou na modernidade como verdadeira estrutura de poder cultural, constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade.

Aquilo que aqui chamamos de “crise de identidade em plena modernidade” corresponde essencialmente ao declínio das velhas identidades, do “sujeito uni-fi cado”, que emergiu em um momento particular, mas que revela sinais de esgo-tamento. Se a modernidade proporcionou o nascimento do sujeito em sua individu-alidade, e a identidade unifi cada pelo dis-curso de nacionalidade, é muito provável que seja também responsável pela morte desse sujeito/indivíduo/nacional, o que para alguns autores corresponde a traços do que pode se chamar de “pós-moderni-dade”. Se assim considerarmos, esse sujei-to “pós-moderno” emerge como resultado da crise da identidade iluminista, causada principalmente pelas mudanças no qua-dro de referência, que dava aos indivídu-os modernos uma ancoragem estável no mundo social. O sujeito pós-moderno, ao contrário, não possui uma identidade fi xa, essencial ou permanente, mas assu-me diferentes identidades em diferentes momentos. E se as identidades têm mu-dado de acordo com a forma como sujeito é interpelado ou representado, essa nos-sa crise de identidade sinaliza para uma identifi cação não automática, permitindo uma constante recriação do sujeito.

Todos os tempos acontecem agora, ou, Walter Benjamin

e a força da memória Por José Luiz Quadros de Magalhães Existimos em nossa memória. O que é memória?

Rubem Alves escreve que existem memórias sem vida própria (aquilo que a gente decora para fazer a prova) e memória com vida própria, que aparece quando me-nos esperamos, que se manifesta sem nossa intenção, a partir de uma imagem, um cheiro, uma situação. Memória é onde se guarda as coisas do passado, diria.

Entretanto, com Benjamin, aprendemos que cada vez que lembramos, esta lembrança ocorre em uma situação diferente, e para uma pessoa diferente, uma vez que mudamos, mesmo que não queiramos. Assim, as memórias são muitas, são milhões, bi-lhões, infi nitas, pois cada um guarda uma memória, e a memória vive, muda com a gente.

Guimarães Rosa diz que a “estória não quer tornar-se história” e a mesma revolta de Fernando Pessoa contra os gramáticos, também toma conta de mim. Agora vêm os donos da forma e dizem que não existe mais “estória”, tudo tornou-se “história”! Ora, ninguém pode querer ser dono da linguagem: como esses caras querem acabar com a estória? Isto é sem dúvida muito autoritário. Rubem Alves nos diz que “a história acontece no tempo que aconteceu e não acontece mais. A estória mora no tempo que não aconteceu para que aconteça sempre”.

Assim podemos pensar a his(es)tória para Ben-jamin. Os caras no poder escrevem a história ofi cial, linear, lógica, contada por eles, morta, numa sucessão de nomes e fatos em uma lógica linear. Para nós, dian-te desta história ofi cial, como desejam os que estão no poder, só nos resta reproduzir os fatos, decorar as datas e os nomes, e repeti-los. Benjamin nos chama à revolução. A his(es)tória nos pertence. A his(es)tória é memória viva, múltipla, plural e pertence a todos nós e a cada um de nós. Assim, visitar as múltiplas memó-rias é um recontar permanente da his(es)tória (em um conceito quântico da história e estória que se fundem em um terceiro incluído). Alias, em Benjamin, temos um conceito quântico de história: todos os tempos acontecem agora, e a maneira como contamos nossa his(es)tória, da forma como construímos coletiva-mente nossa memória, dependerá o nosso futuro. O futuro e o passado acontecem agora, na “agoridade” revolucionária de Benjamin, quando com coragem tomamos a palavra e construímos nosso passado a partir da construção de nossa his(es)tória memória, coletiva, dinâmica e plural, direcionando ou redire-cionando o nosso futuro.

Benjamin nos mostrou que é possível sim, como propõe a física quântica, romper com os conceitos li-neares de tempo e espaço. É possível viajar no tempo, isto está no nosso alcance: todos os tempos aconte-cem agora!

[1] “Agoridade” é a permanecia infi nita do agora, a única coisa que existe(?) - esta interrogação é a dúvida que também deve ser nossa companheira

de viagem, sempre, dolorosa mas amiga.

potestade dos monarcas, que desempenha-vam a difícil tarefa de manter a unidade entre diferentes povos que integravam o território sob seu governo. A solução mais bem sucedida para esse desafi o, de manter

corresponde essencialmente ao declínio das velhas identidades, do “sujeito uni-fi cado”, que emergiu em um momento particular, mas que revela sinais de esgo-tamento. Se a modernidade proporcionou

busca unifi cá-los numa identidade cul-

pertencendo à mesma e grande famí-lia nacional”. Assim, a cultura nacional atuou na modernidade como verdadeira

busca unifi cá-los numa identidade cul-tural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande famí-lia nacional”. Assim, a cultura nacional atuou na modernidade como verdadeira estrutura de poder cultural, constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade.

Aquilo que aqui chamamos de “crise de identidade em plena modernidade” corresponde essencialmente ao declínio

o nascimento do sujeito em sua individu-alidade, e a identidade unifi cada pelo dis-curso de nacionalidade, é muito provável que seja também responsável pela morte desse sujeito/indivíduo/nacional, o que para alguns autores corresponde a traços do que pode se chamar de “pós-moderni-

corresponde essencialmente ao declínio das velhas identidades, do “sujeito uni-

núcleo interior do sujeito, apenas quando somado à sua relação com as outras pes-soas, era formador da sua identidade. Em-bora existisse um Eu real (essência inte-

membros possam ser em termos de clas-59), “Não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de clas-se, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unifi cá-los numa identidade cul-tural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande famí-

(sapere aude!), na concepção individualis-ta do sujeito, fazendo do centro essencial do Eu sua própria identidade.

Contemporânea à formação dos pri-

estrutura de poder cultural, constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade.

Aquilo que aqui chamamos de “crise

das velhas identidades, do “sujeito uni-corresponde essencialmente ao declínio

fi cado”, que emergiu em um momento

pertencendo à mesma e grande famí-

corresponde essencialmente ao declínio

para alguns autores corresponde a traços

corresponde essencialmente ao declínio

membros possam ser em termos de clas-

Crise de identidade em plena modernidade

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 1 | ABRIL A JUNHO DE 2013 7

LITERATURA PRA sEMPRE

A contemporaneidade de Nelson RodriguesPor Elenilson Nascimento

Bem-vindos ao universo rodriguiano! Em 23/08, passado, o grande Nelson Ro-drigues, meu exemplo de escritor maior, completaria 100 anos se estivesse vivo. Mas o autor de “Vestido de Noiva”, “Do-roteia”, “A Mulher Sem Pecado”, “O Beijo no Asfalto”, “Bonitinha, mas Ordinária” e outros textos imperdíveis (*foram 17 peças no total – sem contar as crônicas geniais eternizadas na coluna “A Vida Como Ela É...”) permanece muito, muito, muito atual.

Com seu olhar ao mesmo tempo trágico e épico, o centenário dramaturgo nunca deixou de ser nosso contemporâ-neo. Todas as vezes que vou escrever algu-ma coisa, por exemplo, sempre leio algum texto do Nelson, olho alguma foto sua nos meus arquivos ou no Google, vejo trechos de algum filme ou de algum documentário como se isso, por si, fosse capaz de me dá um pedaço da unha do dedo do pé do ta-lento desse grande artista.

Da precoce carreira jornalística nos anos 30 à fama que lhe rende homenagens até hoje, assim como anda acontecendo com Jorge Amado, em que se comemo-ra seu centenário, a vida e a carreira de Nelson percorreram a história brasileira no século 20. Foi ele quem criou o teatro moderno nacional, em 1943, quem mais exaltou o futebol da geração de Pelé nos anos 60, quem conquistou inimizades por se alinhar à ditadura dos anos 1970 e o responsável por me fazer ter gosto pela literatura.

Jornalista, escritor, cronista, apai-xonado por futebol e por narrações de traições ambientadas no subúrbio cario-ca, Nelson é o maior especialista da alma do brasileiro suburbano. Com sua obra, suas frases chocantes, suas controvérsias e a própria biografia, inscreveu-se como um dos polemistas mais bem-humorados

nesse país de falsa alegria, o hiperbólico e fanático cronista do futebol e nosso maior dramaturgo. E apesar de nunca ter sido agraciado como imortal da Academia de Letras, como se isso fizesse alguma dife-rença, Nelson conquistou seu lugar na lite-ratura nacional com seus textos, crônicas esportivas, pseudônimos, produzidos em sua famosa máquina de escrever Reming-ton Portable. Eu ainda vou ter uma dessa!

O autor que, em vida, conheceu a gló-ria e a maldição, o aplauso e a agressão e, no fim, o desprezo e o esquecimento, foi reabilitado há 20 anos e, hoje, tornou-se aquilo que ele mais temia: uma unanimi-dade nacional. Se bem que eu também não acredito em unanimidades, principalmen-te num país de ignorantes.

Só depois de sua morte, no entanto, em 1980, passaria a ser um raro caso de unanimidade inteligente (o que, para ele, era um oxímoro), com montagens do dire-tor Antunes Filho para suas peças, o estu-do de sua obra pelo crítico Sábato Magal-di e, em 1992, o lançamento da biografia “O Anjo Pornográfico”, do jornalista Ruy Castro. Desde então, Nelson foi rediscu-tido, remontado, relançado. Mas ganhou mesmo o gosto popular quando a Globo produziu a série “A Vida Como Ela É”, di-rigida por Daniel Filho, e apresentada em horário nobre no “Fantástico”.

Influência para escritores, jornalistas, cineastas, dramaturgos e cronistas, Nelson comemora 100 anos sem ter envelhecido. Nos momentos transcendentais que pon-tuam suas histórias de traições e mortes, no retrato cru que fez da sociedade brasi-

leira, nos temas e personagens que povo-am sua obra, a única marca do tempo é a da eterna atualidade.

Muitas homenagens lhe foram dedi-cadas em seu centenário de nascimento – e ele merece todas. Mas coube ao SESI--SP, com o projeto “Nelson Rodrigues 100 anos”, a programação que mostrou o autor por inteiro – envolvendo teatro, exposição, peças de teatro, relançamentos de obras, tradução para outras línguas, lançamento da nova versão do filme “Bonitinha, mas Ordinária”, dirigido por Moacyr Góes e estrelado pela “empreguete” Leandra Leal, debates e oficinas, entre outras ações. “Todo o autor é autobiográfico e eu sou também. O que acontece na minha obra são variações infinitas do que aconteceu na minha vida”, disse em entrevista ao JT em 1974.

Se em outro tempo, em que o Brasil era mais imemorial, era a época em que as mães e as viúvas tinham furores de Sarah Bernhardt, a célebre atriz francesa do século 19; onde as moças na rua, as datilógrafas, as professoras, as colegiais andavam pelas calçadas com um charme de Joana d’Arc, a sabedoria ácida do dra-maturgo, romancista, jornalista, cronista esportivo, autor de folhetim, de roteiro de novela e até de consultório sentimen-tal fez acordar os demônios, imagina agora onde o próprio tempo é apenas uma convenção que não existe nem para o craque do futebol, nem para o marido traído e nem para a mulher insaciável no coletivo cheio. Viva Nelson Rodrigues sempre!

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 1 | ABRIL A JUNHO DE 20138

CONTO DE IMAGINAR

De um azul que não se acreditaPor Carlos Renatto

Não entro do mar. Levanto-me todas as manhãs e vejo o mar. Logo cedo há dezenas de pessoas caminhando na areia ou na calça-da. O sol baixo, o vento brando, o mar calmo estimula estas pessoas. Às vezes tenho von-tade de entrar em suas águas. Sentir o sal no corpo, o sol na pele, mas limito-me a acender um cigarro.

Ao acordar a primeira coisa que vejo é o mar, o mar e suas ondas e ao longe as jangadas passando perto de grandes cargueiros. Perto é o que me parece, o horizonte me confunde a essa hora. Então imagino que um dia eu pos-sa me juntar aos pescadores e acompanha-los numa pescaria, penso isso enquanto fumo, mas limito-me a esperar ferver a água do café.

Todas as manhãs enquanto tomo meu café, vejo passar correndo Seu Ulisses, logo atrás vem o Sofista, seu cachorro mal humo-rado. Ele me convida a correr, mas limito--me a sorrir, contra a vontade, e acenar com a caneca, pois a outra mão está no bolso do roupão e tenho preguiça de tirá-la só para cumprimentá-lo.

Sei que o Seu Ulisses entra no mar, ele e o Sofista, então às vezes penso: - “como deve ser bom entrar no mar”. Mas limito-me a sentar na varanda do meu apartamento e olhar o vai e vem das ondas e dos banhistas. Esta semana um rapaz foi pego por um tubarão, só a cabe-ça dele foi encontrada dois dias depois bem aqui em frente. Então pensei: - “nem tão lon-

ge ele estava, e para um tubarão a praia deve ser um prato cheio”. Por essas e outras nunca entro no mar.

Daqui de cima o mar é de um azul que não se acredita, no inverno chego a confundi--lo com o céu e chego a querer entrar em suas águas, mas aí me vem a imagem do tubarão e de como o sol queima a pele e de como me incomoda a areia, então fumo um cigarro e me distraio criando histórias para cada navio que parte no horizonte.

Quando acordo de madrugada, pouco vejo do mar. A orla não me interessa, não há pessoas e as ondas me dão náuseas, mas se é lua cheia, vejo as pequenas ondas que se for-mam mar adentro. Então acendo um cigarro, mas não tomo café. Café a esta hora me tira o sono e eu gosto de acordar cedo e ver os ba-nhistas pela manhã e ver o Seu Ulisses cor-rendo logo cedo. Ver um homem de 60 anos correr logo pela manhã me dá ânimo para pensar em um dia, talvez, correr também, e quem sabe até entrar no mar.

Às vezes, vejo Seu Ulisses voltando de sua corrida. Ele e o Sofista, seu cachorro mal encarado. Então aceno com a caneca de café como a dizer: - “sigam sem mim!”. E ele se vai, ele e o Sofista. Às vezes, penso na possibilida-de do Sofista ser comido pelo mesmo tuba-rão que comeu o surfista, então imagino que sem o Sofista o Seu Ulisses quereria que eu o acompanhasse, aí não penso mais, não supor-taria a idéia de ter que substituir um cachorro. Embora queira muito, um dia, entrar no mar.

Tenho tanto sentimento

quando todos partirem eu vou ficar sem muros

e o silêncio dos cachorros vai desabar sobre mim

penso nas ladainhas a rezar nos bancos que serão meus assentos

e na ausência das avesas pedras do meu olho

vão cair nos rios e a minha mão

vai moer as cordas do tempopela noite

minhas facas saberão das noites a cortar dos bichos a saber

e do meu corpo desfraldadoas carnes não deixarão rastros

e o ferro das ruínas não caberá no poema.

quando o mundo acabar vou mutilar meus braços

meu hálito, meu desacerto.quando o mundo acabar

vou desatar a glória dos deuses correntes:

todos os diabos vão ficar nos cantos das vias destratadas

os sóis serão banidos e o começo de tudo estará pronto

(cozido, costurado, morto)no adro do tempo

nem o meu coração tremido vai bater.

Romério Rômulo - poetahttp://romerioromulo.wordpress.com/

Hibernação É invernoFaz frio

Estou quieto, imóvelEstou preso

Parece um infernoPreso em mimDentro de mim

Frio que dóiCorróiDestrói

Frio dentro de mimFrio fora de mim

Não despertoEspero

Emerson Luiz de Castro

Quando todos partirem

Tenho tanto sentimento Que é frequente persuadir-me

De que sou sentimental, Mas reconheço, ao medir-me, Que tudo isso é pensamento,

Que não senti afinal. Temos, todos que vivemos,

Uma vida que é vivida E outra vida que é pensada,

E a única vida que temos É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada. Qual porém é a verdadeira

E qual errada, ninguém Nos saberá explicar;

E vivemos de maneira Que a vida que a gente tem

É a que tem que pensar. Fernando Pessoa, in “Cancioneiro

O cúmplice Crucificam-me e eu tenho de ser a cruz

e os pregos. Estendem-me a taça e eu tenho de ser a

cicuta. Enganam-me e eu tenho de ser a

mentira. Incendeiam-me e eu tenho de ser o

inferno. Tenho de louvar e de agradecer cada

instante do tempo. O meu alimento é todas as coisas.

O peso exacto do universo, a humilhação, o júbilo.

Tenho de justificar o que me fere. Não importa a minha felicidade ou

infelicidade. Sou o poeta.

Jorge Luis Borges, in “A Cifra” Tradução de Fernando Pinto do Amaral