jornal plural n.11 | 2015

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JORNAL CULTURAL NÚMERO 11 | SETEMBRO A NOVEMBRO DE 2015 | BH | MG ISSN impresso 2319-0000 | ISSN digital 2447-066X plural 2016 é um ano especial para o Procurador da República Álvaro Ricardo de Souza Cruz que comemora 30 anos de academia. “Gosto de gente, eu gosto de dúvidas, eu gosto de questionamentos, eu gosto de provocações, aquilo que nos leva a pensar é aquilo que nos faz humanos, eu acho que nesta perspectiva, nos últimos tempos, tem sido abandonada.” Em entrevista excluviva ao JORNAL PLURAL, o Procurador relata suas experiências e visões sobre passado, presente e futuro do direito. Repensando perspectivas A educação como forma de proteger o Meio Ambiente Arquivo pessoal O mundo globalizado ...ninguém reparou

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Publicação da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

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JORNAL CULTURAL

NÚMERO 11 | SETEMBRO A NOVEMBRO DE 2015 | Bh | MG iSSN impresso 2319-0000 | iSSN digital 2447-066xplural

2016 é um ano especial para o Procurador da República Álvaro Ricardo de Souza Cruz que comemora 30 anos de academia.

“Gosto de gente, eu gosto de dúvidas, eu gosto de questionamentos, eu gosto de provocações, aquilo que nos leva a pensar é aquilo que nos faz humanos, eu acho que nesta perspectiva, nos últimos tempos, tem sido abandonada.” Em entrevista excluviva ao JORNAL PLURAL, o Procurador relata suas experiências e visões sobre passado, presente e futuro do direito.

Repensando perspectivas

NÚMERO 11 | SETEMBRO A NOVEMBRO DE 2015 | Bh | MGNÚMERO 11 | SETEMBRO A NOVEMBRO DE 2015 | Bh | MG iSSN impresso 2319-0000 | iSSN digital 2447-066x

A educação como forma de

proteger o Meio Ambiente

Arquivo pessoal

O mundo

globalizado...ninguém

reparou

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 11 | SETEMBRO A NOVEMBRO DE 20152

SOBRE BiChOS E SENTiMENTOS

ExPEDiENTE

JORNAL CULTURAL PLURALProjeto de Extensão Direito e Cultura da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

http://npa.newtonpaiva.br/jornalculturalpluralEditor: Bernardo G.B. Nogueira

APOIO TÉCNICO: Núcleo de Publicações Acadêmicas Newton Paiva:

Projeto Gráfico, Editora de Arte e Diagramação: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG

CONTATOS, SUGESTõES E ANÚNCiOS: [email protected]

Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores.

EDiTORiAL

Quem ama tem cheiro

É do humano a mistura. Misturar talvez seja um dos existenciais que com-põem a própria condição de possiblida-de humana. Nesta edição do Plural há misturas de cheiros, gostos, prosa sobre mundo, educação e essas coisas de “pres-tar a atenção no que não está à vista”. Ali-ás, quando rola mistura é que a gente per-cebe que há cheiros e cores que só existem na interseção. Essas margens úmidas que são lambidas pelos rios ao mesmo tempo em que namoram com as plantas que ras-tejam por ali. No encontro há pororoca. Ali é jeito de sentir humano. Ora, as cores se fundem. Transam nova dimensão, dali vai brotar amor. O amor é uma das mais genuínas misturas. De sonhos, com dias triviais, sem castas, irrompe quase sem-pre no outono. Estação misturada. Que tem cheiro de inverno, cor própria e cli-ma de primavera, no verão dos outonos é que brota o amor. O Jornal Plural é sem-pre uma tentativa de mistura. Estórias de vida se fundem a mundos e ditos os mais distintos. Nossa cor é a tinta dos escritos de nossos amigos. Que ela atinja os olhos do leitor, que ele sinta o cheiro Plural: “preto, branco, mulato, lindo como a pele macia de Oxum”. E se embriague...

Por Bernardo G.B. Nogueira

Animal EmocionalPor Robert de Andrade

Meus inimigos são sempre mais since-ros que meus amigos. Quem disse que o que busco nos outros é a sinceridade? Clareza demais cega. Não adianta me mostrar o erro, se você ainda não acertou, nem me ensinar a ser politicamente correto, se vive infeliz na sua segurança. Minhas relações se fortale-cem no risco iminente de acabar a qualquer momento. Para ser poético: um ninho à bei-ra do abismo.

Somos incontrolavelmente atraídos uns pelos outros. Não é só a oferta de emprego ou a suposta qualidade de vida que atraem as pessoas para os grandes centros, mas o ca-lor humano. E do meio dessa massa de gente é difícil definir o que se pode ou não fazer, o que se deve ou não sentir.

É quase inevitável não estar em contato com alguém, seja por afinidade ou dispa-ridade. É essa fricção que faz caírem por terra as noções preestabelecidas dos senti-mentos. A paz é um exemplo disso. Você conhece algum grupo, por menor que seja, que consiga viver em completa paz? Não

duvido da existência desse grupo, mas ar-risco dizer que ele pouco sabe o quanto é prazerosa a reconciliação.

Se para Aristóteles o homem é um ani-mal político, para Sartre ele é um animal emocional. Em sua obra escrita na juventu-de “Esboço para uma teoria das emoções”, Jean Paul aponta a origem da emoção como sendo uma degradação espontânea e vivida da consciência diante do mundo.

Há uma inclinação, bem frequente por sinal, à perda da energia emocional. Isso tor-na as emoções transitórias. Ninguém passa-rá toda a vida tomado pela ira ou tristeza, elas enfraquecerão, dando lugar a novo sen-timento. O mesmo cabe à alegria, a consci-ência desse estado já anuncia o seu declínio.

Sartre nos coloca mais uma vez diante do abismo. Por que buscar a felicidade, se esta já não estará lá quando alcançada? Ora, na condição de animais emocionais não se-remos plenos se nos valermos de um só tipo de emoção, mas sim de várias. É a forma como nos relacionamos com nossos anseios que alimenta esse bicho sentimental que tra-zemos dentro de nós.

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OLhAR NOVO É iNVENçãO

O novo constitucionalismoPor José Luiz Quadros de Magalhães

Da América Latina surge uma construção jurídica e política que pode representar uma alternativa real à crise do estado e do direito moder-nos: o estado plurinacional.

O atual sistema mundo, cons-truído a partir da invasão da “Amé-rica” (nome dado pelos invasores) se encontra em momento de crise fi nal. Nascido para viabilizar o desenvolvi-mento da economia moderna (capi-talista) tornou-se insustentável dian-te dos limites ambientais e cada vez mais injustifi cável diante da enorme desigualdade sócio-econômica. A cri-se europeia e norte-americana levou a um aumento da acumulação de ri-quezas por parcela cada vez menor de pessoas. A concentração dos meios de comunicação permite, provisoria-mente, que toda uma representação falsa e gravemente distorcida da reali-dade, sustente o insustentável. Entre-tanto, a capacidade de manipulação das informações e de ocultamento dos reais jogos de poder tem limites, e mesmo com todo o esforço radical, a mídia popular encontra brechas para questionar e revelar alternativas que surgem em diversos lugares do mun-do. Dessas alternativas uma chama especial atenção: o novo constitucio-nalismo latino-americano expresso nas experiências constitucionais da Venezuela, Equador e Bolívia.

A constituição da Venezue-la inaugura um novo momento de transformação social e de forte questionamento do projeto neolibe-ral com resultados surpreendentes de redução da desigualdade social e econômica, extinção do analfabetis-mo, superação da fome, e expansão da educação superior. A Constitui-ção do Equador cria o primeiro Es-tado Plurinacional em 2008, seguido imediatamente pela Constituição da Bolívia. O constitucionalismo equa-toriano, entre várias conquistas, traz uma nova concepção jurídica não

mais antropocêntrica, mas que dia-loga com perspectivas biocêntricas e ecocêntricas, compreendendo a vida como um sistema complexo, plural e interdependente. Toda vida se rela-ciona, e cada singularidade coletiva integra outro sistema, e assim suces-sivamente. A superação da lógica an-tropocêntrica e da herança moderna de um “individuo” separado da na-tureza, com uma racionalidade se-parada do corpo e do espirito, marca da modernidade, é superada por esta nova compreensão. Esta nova per-cepção da vida e do pluriverso, per-mite superar uma forma de estar no mundo que levou a destruição siste-mática da natureza e do outro subal-ternizado, diferente do padrão que se tornou hegemônico nos últimos quinhentos anos de modernidade.

O constitucionalismo bolivia-no, construído sobre um processo de revolução social, radicalmente democrática, apresenta, entre outras ideias, a diversidade e a complemen-taridade como base de sua compre-ensão. O direito a diversidade supera os princípios jurídicos de igualdade e diferença. A igualdade parte do pres-suposto do desejo do excluído, subal-ternizado, fazer parte do sistema, de ser incluído, e para isto ser igualado, ou seja, igualdade para os igualados. A diferença representa mais um passo dentro de um direito e estado moder-nos que têm como função histórica normalizar, uniformizar, padronizar. O problema do direito à diferença é que, o diferente, é diferente do pa-drão. No reconhecimento do direito de ser diferente uma pergunta per-manecerá: diferente de quem? Do pa-drão hegemônico moderno branco e masculino. Já, no reconhecimento da diversidade, seja como direito indivi-dual (de cada pessoa) ou coletivo (de cada grupo étnico ou social), não há mais padrão hegemônico. Todos têm direito de se apresentarem e falarem a partir de seu lugar. Não é necessá-rio ser igualado para ser reconheci-do, nem ser estranho em um mundo

padronizado. Cada um, cada grupo se apresenta como deseja, para ser conhecido em sua diversidade, e não enquadrado para ser reconhecido. O pressuposto é o respeito a alteridade. Não haverá, portanto, espaço para a intolerância, para o fundamentalis-mo, para o fascismo.

A complementaridade pres-supõe que o outro, que os outros, não mais representem o subalter-no ou o medo, o perigo, a ameaça. A modernidade colonial fundou-se em uma concepção linear da histó-ria, que sustenta que há um único caminho a ser seguido e as várias culturas estariam em estágios dis-tintos de evolução, e no auge, como grande modelo a ser seguindo, es-taria a civilização germânica do ho-mem branco padrão. Logo, o outro, o diferente, é aquele não civilizado, aquele que não se iguala com o pa-drão hegemônico, e nunca se iguala-rá, pois não é possível ser o “outro” hegemônico, no máximo copiá-lo. Logo, o “outro” subalterno se justi-fica permanentemente como forma de afirmar o projeto narcisista mo-derno. A postura menos violenta em relação a este “outro” subalterno é de, “bondosamente” transformá-lo em algo o mais próximo possível do padrão hegemônico. A perspectiva da complementaridade rompe com isto. O outro não é mais aquele su-balterno, que nada tem a oferecer, e para o qual só resta deixar der ser o que é para copiar o padrão. O outro, na lógica da complementaridade, é aquele que tem algo que eu não te-nho. Cada outro tem algo que só ele tem. Logo, o outro no lugar de uma ameaça será, sempre, uma possibili-dade de aprendizado de algo novo. A complementaridade fundamen-ta a busca do diálogo intercultu-ral em busca de um conhecimento transcultural, plural e radicalmente novo, pois do diálogo não surgirá apenas um somatório de experiên-cias e conhecimentos, mas sim uma nova compreensão da vida.

Por José Luiz Quadros de Magalhães

Da América Latina surge uma construção jurídica e política que pode representar uma alternativa real à crise do estado e do direito moder-nos: o estado plurinacional.

O atual sistema mundo, cons-truído a partir da invasão da “Amé-rica” (nome dado pelos invasores) se encontra em momento de crise fi nal. Nascido para viabilizar o desenvolvi-mento da economia moderna (capi-talista) tornou-se insustentável dian-te dos limites ambientais e cada vez mais injustifi cável diante da enorme desigualdade sócio-econômica. A cri-se europeia e norte-americana levou a um aumento da acumulação de ri-quezas por parcela cada vez menor de pessoas. A concentração dos meios de comunicação permite, provisoria-mente, que toda uma representação falsa e gravemente distorcida da reali-dade, sustente o insustentável. Entre-tanto, a capacidade de manipulação das informações e de ocultamento dos reais jogos de poder tem limites, e mesmo com todo o esforço radical, a mídia popular encontra brechas para questionar e revelar alternativas que surgem em diversos lugares do mun-do. Dessas alternativas uma chama especial atenção: o novo constitucio-nalismo latino-americano expresso nas experiências constitucionais da Venezuela, Equador e Bolívia.

A constituição da Venezue-la inaugura um novo momento de transformação social e de forte questionamento do projeto neolibe-ral com resultados surpreendentes de redução da desigualdade social e econômica, extinção do analfabetis-mo, superação da fome, e expansão da educação superior. A Constitui-ção do Equador cria o primeiro Es-tado Plurinacional em 2008, seguido imediatamente pela Constituição da Bolívia. O constitucionalismo equa-toriano, entre várias conquistas, traz uma nova concepção jurídica não

padronizado. Cada um, cada grupo se apresenta como deseja, para ser conhecido em sua diversidade, e não enquadrado para ser reconhecido. O pressuposto é o respeito a alteridade. Não haverá, portanto, espaço para a intolerância, para o fundamentalis-

A complementaridade pres-supõe que o outro, que os outros, não mais representem o subalter-no ou o medo, o perigo, a ameaça. A modernidade colonial fundou-se em uma concepção linear da histó-ria, que sustenta que há um único caminho a ser seguido e as várias culturas estariam em estágios dis-tintos de evolução, e no auge, como grande modelo a ser seguindo, es-taria a civilização germânica do ho-mem branco padrão. Logo, o outro, o diferente, é aquele não civilizado, aquele que não se iguala com o pa-drão hegemônico, e nunca se iguala-rá, pois não é possível ser o “outro” hegemônico, no máximo copiá-lo. Logo, o “outro” subalterno se justi-fica permanentemente como forma de afirmar o projeto narcisista mo-derno. A postura menos violenta em relação a este “outro” subalterno é de, “bondosamente” transformá-lo em algo o mais próximo possível do padrão hegemônico. A perspectiva da complementaridade rompe com isto. O outro não é mais aquele su-balterno, que nada tem a oferecer, e para o qual só resta deixar der ser o que é para copiar o padrão. O outro, na lógica da complementaridade, é aquele que tem algo que eu não te-nho. Cada outro tem algo que só ele tem. Logo, o outro no lugar de uma ameaça será, sempre, uma possibili-dade de aprendizado de algo novo. A complementaridade fundamen-ta a busca do diálogo intercultu-ral em busca de um conhecimento transcultural, plural e radicalmente novo, pois do diálogo não surgirá apenas um somatório de experiên-cias e conhecimentos, mas sim uma nova compreensão da vida.

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Por Tatiana Ribeiro de Souza

Acabo de voltar do cinema, de-pois de assistir “A grande aposta”, do diretor Adam McKay. Confesso que fi quei muito impressionada com o

fi lme, que é uma aula sobre o sistema ca-pitalista. Muito bem dirigido e contando com

artistas de primeira linha, como Christian Bale, Ryan Gosling, Steve Carell e Brad Pitt, o resultado é

uma narrativa descontraída que prende a atenção do início ao fi m. A história se passa nos EUA, nos anos 2000, retratando o cenário econômico do país às vés-peras do colapso de 2008, que resultou na crise eco-

nômica de proporções globais.Está tudo ali: competição, ganância, egoísmo,

desigualdade, desonestidade... Todos os ingre-dientes de uma sociedade precária, desumana e autodestrutiva. O enredo do fi lme está foca-

do na história das pessoas que previram o colapso e fi zeram dessa visão de futuro uma oportunidade de ga-

nhar dinheiro. O personagem de Christian Bale, o empre-sário Michael Burry, caracterizado por um certo grau de au-

tismo e incontestável genialidade, faz uma análise minuciosa no sistema imobiliário norte americano e percebe que ele se

transformou em uma bolha prestes a estourar. Diante desta constatação decide investir (praticamente todo o dinheiro

do fundo que coordena) contra o sistema imobiliário, tido como absolutamente sólido, razão pela qual

Burry não encontra nenhum obstáculo nos bancos para a sua aposta fi nanceira, que

mais parece um suicídio empresarial. Ao saber desses investimentos aparente-mente absurdos, os outros

personagens (Ryan Gos- ling, Steve Carell e Brad Pitt) também se aventuram na aposta contra o mercado imobiliário e, mesmo hesitando em alguns momentos, fi zeram do co-lapso econômico global a sua grande oportunidade fi nanceira.

Enquanto assistia o fi lme eu me perguntava se em algum momento as pessoas que perceberam antecipadamente o desastre econômico anuncia-do viveram o dilema entre denunciar o que estava por vir (desemprego em massa, despejo de famílias das suas casas, perda de pensões e reservas fi nanceiras, etc, etc, etc) e aproveitar a oportunidade de enriquecimento pessoal. Depois pensei em algo mais próximo: será que ocorreu àquelas pesso-as que assistiam a sessão de cinema comigo que, ao invés de se vangloriarem da sua expertise, os personagens poderiam ter reagido contra o sistema fi nanceiro (para dizer o mínimo) e revelado a sua farsa? Por fi m eu me perguntava quantas pessoas naquela sala de cinema desejaram ter a inte-ligência de Michael Burry e a oportunidade de se anteciparem a uma catástrofe para fazerem dela sua fonte de riqueza.

É esse aí o mundo em que vivemos. O cinema nos oferece um soco no estômago, mas saímos ilesos. A arte vomita a realidade no nosso colo, mas mesmo assim seguimos os mesmos. Pipoca, beijinhos, talvez um jantar depois. Ninguém saiu gritando: “vejam o que aconteceu! Como não percebemos? E continua acontecendo! O sistema já se recuperou, ele tomou fôlego e está nos engolindo novamente com a sua farsa!” Não, nada de gritos, nem choro, nem ranger de dentes após a sessão. “Está tudo como dantes no quartel d’Abrantes”.

JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 11 | SETEMBRO A NOVEMBRO DE 2015

... ninguém reparou

O MUNDO ESTÁ AO CONTRÁRiO?

...

...

...

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NOVAS CORES

Por Daniel Melo Franco de Moraes

O mundo globalizado (ou europeizado) passa hoje por um processo de “brasilização”.

As elites econômicas do Brasil sempre acreditaram que poderiam viver em paz, tran-cadas em seus carros blindados e condomínios de luxo, cercadas por uma periferia de favelas, pobreza, fome, falta de desenvolvimento eco-nômico e social e severa desigualdade.

Hoje choram de pânico e rezam com a cara no asfalto, na Linha Vermelha, em pleno fogo cruzado, protegendo seus bebês com os próprios corpos, e têm seus carros fuzilados por trafi can-tes, seus fi lhos sendo assassinados em troca de celulares, suas casas invadidas e suas vidas assom-bradas pelo espectro ubíquo da violência.

Os países do Clube de Bilderberg acha-ram, igualmente, que poderiam viver em paz em suas bolhas de desenvolvimento econômi-

co e social construídas em duzentos anos de eugênico imperialismo e exploração sobre os povos e nações que hoje formam sua subde-senvolvida periferia - em um mundo onde os 1% mais ricos (em sua esmagadora maioria eu-roestadunidenses) detém cerca de 50% de toda riqueza do planeta Terra.

Hoje, como todos vemos, a bolha social--darwinista estourou derradeiramente. Não haverá muros eletrifi cadaos, exércitos públicos ou particulares, nem espacos privatizados (se-jam cidades ou condomínios) que manterão os guetos e sua gente desumanizada calados, de-sinformados e manietados em suas condições materiais e simbólicas duramente precárias.

O processo de darwinismo social teoriza-do e praticado pelas elites européias (e euro-peizadas) desde o século XIX tem como resul-tado a desumanização e desqualifi cação cívica de indivíduos, povos e nações inteiras.

E de dentro dessa subgente desumanizada

inevitavelmente - como já se previa - emergirá, no melhor dos cenários, um grito ideológi-co de resistência e luta, mas também, na pior hipótese (que hoje Paris prova ter se tornado nãos mais hipotética, mas uma realidade) uma sublevação virtualmente incontrolável de violência e caos. O fundamentalismo islâmico nada mais é que expressão disto.

Como apontou uma refugiada africana em plena TV europeia: “os europeus não podem achar que conseguirão viver como peixinhos dourados dentro da redoma de um aquário”.

Não conseguirão. Nem nas zonas sul nem nos condominios de luxo do Brasil, nem nas ricas cidades dos países do Norte. Logo, Paris na última sexta-feira 13 não é um ponto idola-do na história.

Ao contrário, é um dos eventos do início de uma nova história, de um mundo onde a unipolaridade eurocêntrica está, de forma der-radeira e brutal, em franco desmoronamento.

O mundo globalizado

PRiORiDADE ABSOLUTA

Por Th aís Dantas

Em 2015, o Estatuto da Criança e do Ado-lescente (ECA) completou 25 anos de existência. Ainda assim, a violação de direitos da infância e da adolescência permanece: a título de exemplo, ainda que o país tenha melhorado as condições de vida de crianças e seja reconhecido pela redu-ção da mortalidade infantil (Ipea, 2014), o nú-mero de homicídios de crianças e adolescentes nos últimos 25 anos dobrou (Unicef, 2015).

Dentre os diversos motivos que justifi -cam a não efetivação dos direitos da criança e do adolescente, um ponto pouco citado merece destaque: o desconhecimento dos direitos assegurados em lei e do sistema de garantias existente.

Pesquisa recente (DataSenado, 2015) identifi cou que, embora 98% da população já tenha ouvido falar do Estatuto, 69% se conside-ra pouco informada sobre os direitos da crian-ça e do adolescente.

E são vários os sintomas do desconheci-mento: para 38% das pessoas, o ECA trata es-pecifi camente sobre a questão do adolescente em confl ito com a lei, e para 36% dos entre-vistados a função do Conselho Tutelar é exclu-

sivamente punir tal adolescente (DataSenado, 2010), quando, em verdade, tanto o Estatuto quanto o Conselho têm a função de garantir a proteção integral da criança e do adolescente.

A interpretação dos dados ora destacados demonstra o vazio por trás da estatística de que praticamente 100% dos brasileiros conhe-ce o Estatuto da Criança e do Adolescente: se a grande maioria já ouviu falar, são poucos aque-les que compreendem seu conteúdo.

E o desconhecimento da população sobre tais direitos é ainda mais preocupante diante do fato de que a sociedade, ao lado do Estado e da família, tem a função de garantir a priorida-de absoluta de crianças e adolescentes.

Por essa garantia de prioridade absoluta, prevista no artigo 227 da Constituição, todas as crianças e adolescentes devem ter seus direitos protegidos e satisfeitos de forma absolutamen-te prioritária.

Assim, seja na formulação de leis, na construção de políticas públicas, na elabora-ção de orçamentos ou em qualquer situação em que crianças e adolescentes estejam envol-vidos, o seu melhor interesse deve ser atendi-do em primeiro lugar. Ou seja, se a escolha do gestor público for entre a construção de cre-

ches ou de estádios, a escolha pela primeira opção é obrigatória.

Apesar da importância da garantia de prioridade absoluta, a grande maioria da po-pulação não sabe o signifi cado da expressão (17%) ou não possui compreensão plena de seu conteúdo (83%), conforme dados do Da-tafolha (2013). Ainda assim, quando apresen-tados ao conteúdo da garantia de prioridade absoluta, a imensa maioria (94%) dos entre-vistados se posiciona a favor do cumprimento da norma, diante da percepção de que isso não está sendo respeitado, nem pelo governo e nem pela sociedade.

A partir dos dados trazidos, verifi ca-se a urgência da divulgação do conteúdo do direi-to da criança e do adolescente, especialmente com o fortalecimento das garantias assegura-das na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. E é justamente o que busca a presente coluna.

Daqui em diante, essa coluna trará informações e re� exões sobre os direitos da criança e do

adolescente, para que cada vez mais pessoas possam somar-se na luta pela defesa da infân-cia e pela efetivação da garantia constitucional

de prioridade absoluta.

Por uma sociedade que defenda os direitos da criança e do adolescente

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ENTREViSTA ExCLUSiVA

O que é o direito se não é linguagem?

Bernardo nogueira: Caro Pro-fessor Álvaro é uma honra para o Jornal Cul-tural Plural receber as suas palavras,e, para mim em especial é uma travessia pela qual sou tomado, um sentimento inaugural. en-tão, diga-nos um pouco de sua atuação pro-fissional e trajetória intelectual. Se é possível esse dito:

Álvaro riCardo de Souza Cruz: É uma satisfação muito grande estar aqui com vocês. A honra na verdade, ela é toda minha de poder conversa com o Jornal Cultu-ral Plural, de uma Faculdade de Direito que me é muito cara. Pela responsabilidade, pela qua-lidade, que é reconhecida, não apenas a nível estadual, mas acredito eu, também nacional. É uma Faculdade que me sinto em casa.

Falar da gente, nesse dito, é muito compli-cado. Nessa face, ou nesse rosto profissional, eu me divido em dois aspectos, de um lado, meu trabalho no Ministério Público, sou Procurador da República desde de 1992. Então, são 24 anos, e esse ano, é um ano particularmente feliz, pois completo 30 anos de academia - 30 anos de tra-balho, na graduação, na pós-graduação depois. E de 15 anos “pra cá” trabalho junto ao mestrado e doutorado. Costumo dizer que de uma forma geral me sinto uma pessoa extremamente feliz, pois eu posso trabalhar essencialmente com aquilo que eu gosto. Gosto de gente, eu gosto de dúvidas, eu gosto de questionamentos, eu gosto de provocações, aquilo que nos leva a pensar é aquilo que nos faz humanos, eu acho que nes-ta perspectiva, nos últimos tempos, tem sido abandonada por um choque ideológico que tenho assistido recentemente, a impressão que eu tenho tido é que há seguramente uma inter-dição no pensamento, e eu acho que a academia de uma certa forma geral, cumpre essa respon-sabilidade de levantar este tipo de problema e contribuir de alguma forma dentro da socieda-de para o seu aprimoramento - aprimoramento dos direitos fundamentais, maior compreensão da democracia, do governo - a minha ideia é

essa. De uma forma geral, um resumo corrido desses 30 anos.

Bn: Professor, quais as suas impressões acerca do poder judiciário e sua atuação nos dias atuais?

aC: Acho que nos últimos tempos, está do que evidente, o fato de que o contato das ques-tões jurídicas com as questões políticas, éticas e morais, isso não é uma questão meramente incidental. Acho hoje, essencialmente, que há predomínio em torno da discussão sobre aquilo que seria ativismo judicial, estou olhando, con-ceituando esta perspectiva, sobre a ideia de que o ativismo seria exatamente um excesso na cha-mada judicialização das políticas públicas vem sendo debatido muito mais sobre o aspecto da doutrina norte americana. Eu repito uma obser-vação de um diálogo que tive recentemente com o Professor José Ribas, onde ele anotava que nos anos 90, logo após a constitucionalização dos país, com o nascimento da nova carta de 1988, nós tivemos um Supremo extremamente tími-do diante de uma expectativa enorme, que era do resgate do direito como um instrumento de efetivação dos direitos fundamentais, parti-cularmente, os sociais. Quer dizer, este consti-tucionalismo da efetividade social, que é uma expressão cunhada pelo Claudio Souza Neto, trouxe para a doutrina a ideia de que o Direito poderia ser uma alavanca para a construção de um novo conceito de democracia, e o Supremo Tribunal Federal, nos primeiros anos, nos pri-meiros 10 anos, ele teve uma atuação pra lá de tímida. Basta dizer que no novo desenho do controle concentrado de constitucionalidade, o STF restringiu as possibilidades de sua atuação, em primeiro lugar, negando a existência das chamadas inconstitucionalidades supervenien-tes, e aplicando a tese da chamada revogação para não apreciar atos normativos pretéritos à edição da carta. Em segundo lugar, criou uma dicotomia, até então inexistente pela Constitui-ção, entre os legitimados universais e relativos

para reduzir a ampliação da aplicação destes di-reitos, negou durante os 10 primeiros anos qual-quer efetividade à chamada ADIN omissiva e ao mandado de injunção. Para não dizer que aplica-ção, em termos de teria decisional e argumentati-va ainda era, francamente favorável a uma postu-ra formalista em torno de argumentações do tipo dedutivo, a ideia de subsunção do direito.

De uma forma geral, o que explicaria esta timidez do STF e do Poder Judiciário, num contexto em que o nosso patrimonialismo, que vem desde a época que fomos descobertos, é um patrimonialismo que de alguma forma alavanca sempre bocados de poder, aonde há vácuo político, as instituições de uma forma geral e as pessoas que ali estão, os ocupam com uma voracidade enorme. O que terá explicado essa timidez do STF nestes 10 primeiros anos de atuação? Eu tenho uma tese , já vi o Diego Arguiles falando que teria sido uma opção da parte dos ministros, eu acho que razão e não razão trabalham simultaneamente nesta his-tória. Em primeiro lugar os ministros que ali estavam, eram ministros, por decisão do cons-tituinte, que já tinham sido investidos antes da carta de 1988, então, teoricamente, não teriam um compromisso com a nova ordem consti-tucional, teoricamente, eles tinham um com-promisso, teoricamente, repito, com a ordem constitucional anterior, então, eles eram minis-tros conhecedores de um excesso de ataques institucionais que o STF e o Poder Judiciário tinham sofrido ao longo da história. Nós te-mos inúmeras situações que podemos elencar aqui para vocês. Primeiro, a Constituição de 1937, ela reconheceu a possibilidade do Par-lamento negar seguimento a ordens judiciais, expressamente em controle de constitucio-nalidade por decisão do Parlamento. Na 1ª República o Floriano Peixoto chegou a negar a aplicação de decisões da corte, seja em um caso famoso Vapor Jupitér e no caso da Revolta da Armada, chegando a decretar, a estabelecer decretos com datas retroativas à decisão. Era

Álvaro ricardo de Souza cruz possui graduação em economia pela Pontifícia universidade católica de Minas Gerais

(1985), graduação em direito pela universidade Federal de Minas Gerais (1986), mestrado em direito pela universidade Federal de Minas Gerais (1990) e doutorado em direito pela

universidade Federal de Minas Gerais (2003). Procurador da república do Ministério Público Federal e Professor dos cursos de graduação e pós-graduação da

Pontifícia universidade católica de Minas Gerais.

Arquivo pessoal

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extremamente comum, alterações na com-posição da corte, lembro duas na história, na década de 1930, o governo provisório, depois da revolução Gloriosa, ele reduz a composição do Supremo de 15 para 11. Em uma história mais recente, todos se lembram o AI2 de 1965 que vai ampliar para 16 o número de compo-nentes do Supremo e o AI6 em 1969 que vai reduzir novamente para 5 para, em termos foucaultianos, “docilizar” o STF. Nós tínha-mos aí situações onde o controle orçamentá-rio , controle de salários dos juízes, feito pelo parlamento e pelo executivo, eram candentes , então, a ideia de que os ministros , estavam no automático, ou seja, dentro de um conceito de automatismo da “história da mentalidades”, no sentido de que o que seria importante naquele momento, era a manutenção da ideia de atos interna corporis e de algum tipo de limitação nesse sentido. Acredito que talvez esses ele-mentos expliquem esta timidez inicial. Depois disso a mudança dos ministros, a chegada dos ministros, um cabedal, seja normativo, um novo desenho institucional que a constituição trazia, com a chegada de práticas argumentati-vas novas, especialmente vindas da Alemanha, e de um plano normativo, uma concepção nor-mativa nova em termos de plano decisional, fez com que o Supremo Tribunal Federal ado-tasse uma postura bastante ativista, o quadro, a quadra atual é exatamente inversa, enquanto a doutrina alemã deu substrato para a ampliação dessa judicialização, eu acho que posso citar, particularmente, o ministro Gilmar Ferrei-ra Mendes, como ícone desse período, hoje, praticamente todos os votos do ministro Luís Fux traz consigo indicações do minimalismo substantivo do Cass Sunstein para não falar do minimalismo procedimental do Alexander Bickel. Eu vejo essa postura em termos de polí-tica, uma questão absolutamente pendular, em termos de ativismo e pacivismo, o corporati-vismo, esse mantém-se integro, talvez desde 1500, auxílio moradia, benefícios cargos e ou-tras coisas mais, este tipo de questão é uma pe-dra de toque nisso, mas, inegavelmente, é um poder absolutamente central para a composi-ção e para o entendimento do direito nos dias de hoje, mas, não só ele, como todas as demais instituições, Ministério Público, OAB, Defen-soria Pública, merecem uma melhor análise da academia como um todo.

Bn: o senhor considera que vivemos uma crise de instituições? Se existe, poderia apontar as causas e possíveis saídas?

aC: De uma forma geral, o que há por de trás da palavra crise nessa pergunta é uma crí-tica, eu vejo as crises como algo quase sempre positivo, ou seja como uma possibilidade de mudança, uma possibilidade mudança, uma possibilidade de evolução, acho que vivemos

uma enorme dificuldade dentro de uma con-cepção de democracia representativa, que vem se esgarçando a bastante tempo. Vivemos um modelo constitucional que indicou, ou que levou a esta organização de uma maioria por coalisão na atualidade, em torno de um hiper--centramento do poder executivo, de um for-ma geral , a gente pode olhar que na América Latina quase sempre ela teve posições de con-graçamento de raciocínios ou teses de fundo liberal, ou de fundo conservador, de um modo geral os conservadores se compraziam com esse fortalecimento excessivo do executivo, para garantir várias da suas teses, por exem-plo a manutenção de uma moral cristã mais conservadora e etc. e tal. Em alguns pontos, especialmente no século XIX chegamos a um estabelecimento de uma religião oficial e de uma fusão do Estado com a igreja, o discurso público em torno da moralidade, da não cor-rupção, é algo que vem desde Dom Pedro I, as aventuras do Dom Pedro I, estas questões não me parecem ser questões de uma crise atual, não me parece ser essa perspectiva, a causa desses elementos me parece que são múltiplas, no plano institucional, nós temos um consti-tuição que ao mesmo tempo traz esses elemen-tos conservadores e liberais, normalmente os liberais, pela ampliação e extensão do rol dos direito fundamentais, no século XIX princípio século XX, os direitos individuais de naciona-lidade, políticos, a partir do século XX, nos temos a extensão dos direito sociais. Não vou entrar nessa quimera discussão de dimensão ou de geração de direitos fundamentais, mas em grande parte, o discurso hoje que se dualiza em termos da crítica sobre o Governo Dilma, se dá sobre esses dois pontos de vistas, neste aspecto da moralidade e esse aspecto de uma postura liberal de direitos, do outro lado, você tem uma postura da esquerda, que sempre acreditou de uma forma geral que para chegar ao poder era importante o reconhecimento do apoio desse hiperpresidencilasmo, desse fortalecimento do executivo, basta lembrar nos anos 40, tanto Getúlio Vargas como Péron na Argentina, e de outro lado, a concessão de favores ao grande capital como elemento de elastecimento da base de apoio parlamentar. Essas questões me parecem antigas, esses pro-blemas, me parecem antigos, o discurso em torno da corrupção e da moralidade pública foi feito entre Luzias e Saquaremas, liberais e conservadores no século XIX, a campanha ci-vilista de Rui Barbosa, toda ela, foi sustentada em torno dessa dinâmica, o discurso aliança liberal a favor de Getúlio Vargas , trouxe esse discurso, também a revolução constituciona-lista de 32, em grande medida, além do medo comunista, o “Plano Cohen” também trazia a necessidade do endurecimento do Estado para acabar e moralizar com a coisa pública , a cri-

se com Vargas, a crise com Café Filho, a crise com Juscelino, a crise com Jânio Quadros , a crise com João Goulart que vai desembocar na revolução de 1964, também teve por mote a ideia da corrupção sistêmica e endêmica que nós vivenciamos. Hoje o discurso é o mesmo, sobre uma roupagem nova, acho que discus-sões de fundo muito mais sério em torno da nossa história como questões da mentalidade que nós temos, do patrimonialismo que nós vivemos, o corporativismo que nós vivemos, das discussões em torno dessa sociedade que essencialmente insiste em manter seus bene-fícios e a não enxergar essencialmente as ne-cessidades do Outro, negro , pobre, prostituta ,presidiário, ribeirinho , quilombola, índio, são algo, menos do que gente, e, esse tipo de ques-tão seguramente está no centro do debate que nós vivenciamos nos dias de hoje.

Bn: Quais seriam os maiores desafios para o Judiciário nos dias de hoje?

aC: Eu acho que nós estamos com uma perspectiva muito possível de uma virada de uma guinada conservadora em termos políticos para os próximos anos. Como eu não creio em grandes mudanças, ou em grandes revoluções, em grandes posturas, como eu acredito naquilo que David Harvey fala, a luta é por pequenos “es-paços de esperança”, tentar a qualificação para o poder judiciário, evitar eventualmente decisões judiciais muito mais voltadas para o gosto do público, para o aplauso de uma certa maioria, que nós temos, esse tipo de questão me parece extremamente central nos dias de hoje para ga-rantia dos direitos fundamentais e construção do Estado democrático de direito. Eu acho que decisões recentes, como as que assistimos agora no STF, em torno da desconsideração do texto da Constituição me deixam bastante apavorado e o que me parece interessante é aquela fala do Brecht onde ele dizia: “Primeiro levaram os ne-gros. Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários. Mas não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis. Mas não me importei com isso. Porque eu não sou miserável. Depois agarraram uns desem-pregados. Mas como tenho meu emprego. Tam-bém não me importei. Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém. Ninguém se importa comigo.” A so-ciedade de uma forma geral aplaude excessos que nós temos assistido em várias ações de in-vestigação, e eventualmente quando tiver seus próprios direitos fundamentais solapados... me preocupa especialmente com o crescimento ab-surdo do que eu venho assistido de posições ab-solutamente radicais como pensamento do Jair Bolsonaro, “Bolsomito”, esse tipo de questão não sei onde vamos parar, onde nós vamos pensar.

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Bn: Já agora sabemos, de vasta infor-mação que lhe compete, nesse sentido, o direito tipo enquanto tal, o que ele pode ganhar em um diálogo com distintas for-mas de saber?

aC: Eu acho que a perspectiva das concepções clássicas, da chamada busca da autonomia cientifica do direito, aquela defi-nição talvez mais curta, “ado ado ado cada um no seu quadrado”, esse tipo de visão, ela é uma visão que ainda domina o imaginário da grande maioria dos operadores do direi-to. É absolutamente curioso como os cen-tros de pesquisa, de indicação de pesquisa, como a CAPES e o CNPQ, insistem na vi-são de que, numa visão não holística do co-nhecimento, ou seja, você estudar direito e

não estudar economia, estudar direito e não estudar filosofia, estudar direito e não es-tudar sociologia, antropologia, e coisa que tais, empobrece sobremaneira a compre-ensão do direito, basta dizer que o regime militar, a primeira coisa que fez, foi uma mudança dos currículos escolares das fa-culdades de direito, transformando o aluno de direito nada mais do que um redator de peças processuais, quer dizer , e essa visão, de uma certa forma, ainda domina o nosso corpo docente e discente, o corpo docen-te tendo uma enorme preguiça em discutir temas que não sejam absolutamente técni-cos ou processuais e o corpo docente insis-tindo ainda nessa falácia da autonomia do campo cientifico da sua obra. Então eu vou

falar sobre direito o penal , então não quero saber de nada, de criminalística de socio-logia do crime, de nenhum dos elementos que eventualmente vão possibilitar e que são o caminho, de uma forma geral, aquele paises de nos colonizam estabelecem mu-danças e padrões em termos de teoria do direito. Basta lembrar ai, algumas variações , como Günther Jackobs e outros autores que essencialmente partem dessa mudan-ça através da concepção de conhecimento filosófico. Esse tipo e postura então garante a reprodução dessa subalternidade, dessa perspectiva dessa epistemologia reproduti-va do conhecimento do norte desenvolvido aqui no país. Lamentavelmente para mim é uma verdade.

ARTE E DiREiTOUm absurdo! Um absurdo completo! Eu

acho que é um absurdo, que me leva a quase enjoar, visceralmente, porque tudo aquilo que nos leva à descoberta de algo absolutamente novo, de uma possibilidade absolutamente diferente, nos assusta, e nos compele a ir em frente, eu acredito na possibilidade absoluta desse tipo de junção.

LiNGUAGEM E DiREiTOO que é o direito se não é linguagem? O que

não é, de uma forma geral, a linguagem, a reto-rica, daquele que bem escreve, daquele que bem fala, teatraliza as discussões, essencialmente, não apenas do júri , como muitas pessoas supõem, mas em todas as áreas, saber bem argumentar em áreas “duras” como o direito previdenciário, o direito tributário, é o que faz o bom advogado conseguir novas teses e novas perspectivas para estabelecer a evolução do direito.

ÉTiCA E DiREiTOUltimamente nós vemos ressurgir junto

com o minimalismo e as teorias americanas, o ressurgimento muito forte, do positivismo jurídico, formalismo jurídico. Neste sentido, as pessoas dizem, direito e moral nada tem a ver, ou, já os inclusivistas, ao contrário desses que são exclusivistas, vão dizer, não, de forma contingente é então possível se aperceber de questões morais intrínsecas na validação de normas jurídicas. Eu pergunto, o direito, a legislação, a lei , deu guarida ao racismo, do Apartheid na África do Sul, ele deu guarida com a constituição de 67 e 69 à ditadura no Brasil, ele deu guarida na construção de Wei-mar ao holocausto, ele deu guarida a mais de 400 anos de escravidão neste pais, qual e ética

a trabalhar? Se reproduzimos ainda, a repro-dução de uma ética kantiana, em torno da au-tonomia privada, em torno da concepção de uma razão pura, nós estaríamos reiterando as construções do arquétipo da constituição de viés liberal no século XIX, nenhuma das pers-pectivas de inclusão daqueles que são esque-cidos pelo direito conseguirão se concretizar, a busca de uma ética alternativa que vai então respeitar a alteridade, hoje é, na minha opi-nião, não só pequeno espaço de esperança, mas uma necessidade do trabalho da acade-mia em torno disso, repensar essa perspecti-va, porque, afinal de contas , aquele que julga, aquele que propõe, ele não considera aquilo que é o certo? Aquilo que é o errado? Aquilo que é o justo? Aquilo que é o injusto? Se esses elementos são absolutamente indiferentes ao direito, eu prefiro então, só ler literatura.

POLíTiCA E DiREiTODe uma certa forma, a gente já anotou,

acredito que desde a chamada teoria inte-gracionista do direito com Rudolf Esmend, a teoria cientifica espiritual da escola de Zurik , me parece a própria concepção, por mais críti-co que eu seja dela, da teoria decisionista , no direito com Karl Schmith , já colocou definiti-vamente a política dentro no campo de pers-pectiva de preocupação do direito, acredito que não tenha uma novidade em torno disso.

Bn: Qual o papel da academia na for-mação do pensamento jurídico?

aC: Recentemente nós tivemos uma decisão de um ministro do STJ dizendo que ele não se interessava por aquilo que a academia escrevia, que ele, pelo contrário, as suas decisões, já tinha que ser automa-

ticamente reconhecida, por ele ser minis-tro, por seu notável saber jurídico, ele que precisava ser conhecido. Recentemente eu vi um ministro do Supremo, atual, vou de-clinar o nome, dizendo que em grande me-dida, as críticas que o Supremo tem sofrido à sua posição de vanguarda, é de posturas, de nichos, de guetos, de pensadores da aca-demia, insatisfeitos com o não implemento das suas posições nas decisões do Supremo Tribunal Federal. Ora, eu, sinceramente, di-virjo dessa posição, basta dar o exemplo da evolução do mandado de injunção, como eu havia anotado, nos dez primeiros anos da história, o mandado de injunção era completamente inefetivo, depois a partir da posição do Celso de Mello, ele passa a ter uma posição intermediária, de punição monetária pelo descumprimento do dispo-sitivo. Finalmente, depois 20 anos de crítica da academia, nós passamos a ter uma mu-dança nesse sentido. Se eu não acredito no papel responsivo da academia é porque já teria passado da hora de eu jogar a toalha fora e fazer como Wittgenstein, cuidar do meu jardim.

Bn: Professor, como falamos, o que tem de mais bonito é ter a história do plural apresentado pelas palavras suas, agradeço imenso em nome do Jornal Plural.

aC: Eu que agradeço a oportunidade de estar aqui presente, como eu disse, e não é da boca para fora , gosto não só das pessoas como gosto da Instituição Newton Paiva, costumo dizer que a Newton Paiva, assim como a Fede-ral e a PUC, são as minhas casas. E espero, no mais tardar, o quanto antes, poder voltar para bater um papo novamente com vocês.

Um bate bola “quase” derridiano

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EDUCAçãO É CUiDADO

A educação como forma de proteger o Meio Ambiente

Prof. Emerson Luiz de Castro

Na Constituição de 1988, conside-rada a “Constituição Cidadã”, no capítu-lo que trata do Meio Ambiente, em seu artigo 225, parágrafo 1º, inciso VI, de-termina o texto que, incumbe ao Poder Público, e, leia-se aqui, governos federal, estadual e municipal, promover a edu-cação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente.

Não é sem sentido que esta imposi-ção foi alçada ao status constitucional, pois somos todos sabedores de que só através da educação (conscientização) é que teremos gerações informadas e pre-paradas para a importância do meio am-biente e de sua proteção e conservação. Uma consciência preservacionista preci-sa ser criada e desenvolvida em todos os níveis da educação brasileira.

Não obstante apresentarmos inúme-ros problemas em nosso sistema educa-cional é papel vital do sistema de ensino o levantamento e esclarecimento a res-peito dos problemas ambientais dos mu-nicípios, dos estados e da nação e seus

reflexos no planeta.A sala de aula é local fundamental

para as discussões acerca do tema. È local rico e precioso de elaboração de debates e de levantamento de questões relativas ao meio ambiente. Ali, na sala de aula, o alu-no do ensino fundamental, médio e supe-rior, quando bem orientado e informado, adquire a habilidade de se relacionar bem com o meio ambiente e se tornar um agen-te de transformação social. Esta habilidade o ajuda em seu desenvolvimento e no exer-cício pleno de sua cidadania.

Enquanto o ensino fundamental deve trabalhar objetivamente a fase da consciência, acreditamos que o ensino superior deva trabalhar ativamente na área da extensão e da pesquisa. O in-centivo a projetos, aliando a teoria dada em sala de aula a atividades práticas de aplicação imediata na sociedade, deve ser considerado ponto fundamental no impulso do crescimento e consolidação da educação ambiental.

Em todos os aspectos a responsabili-dade por este trabalho deve ser dividida entre todos aqueles que direta ou indire-tamente atuam no cenário educacional, ou

seja, os responsáveis pelas políticas públi-cas educacionais, os gestores das institui-ções de ensino, os professores e os pais.

Além disso, também no cenário em-presarial onde os seus agentes tradicionais, tem grande responsabilidade na formação de seus empregados, não podem eles, eximir-se acerca de sua tarefa de também abordar e difundir os temas sobre este re-levante valor social: o meio ambiente.

Quanto mais atividades, pesquisas, programas, debates, fóruns, seminários, congressos e apresentação de trabalhos forem desenvolvidas a respeito das al-ternativas de melhor se relacionar com o meio ambiente, mais tempo ganharemos nesta luta, que deve ser incansável e ines-gotável, contra a destruição do nosso mu-nicípio, do nosso estado, do nosso país, do nosso mundo.

Nesse sentido, o cumprimento das di-retrizes curriculares nacionais para a Edu-cação Ambiental que deve ser observado por todas as instituições de ensino, em to-dos os níveis e modalidades da educação nacional corrobora com a formação de um cidadão planetário consciente e atuante na preservação da vida, acima de tudo!!!!

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“QUE hORAS ELA VOLTA?”

Frigideira e azeite extra-virgem

Por Tânia Cristina Dias

A empregada agachara para procurar a frigideira dentro do armário, debaixo da pia. Ficou de quatro, sem atentar-se para o fato. Estava sozinha mesmo, os patrões ha-viam saído. Tateou de um lado a outro. Foi adivinhando as panelas pela forma e textu-ra. Segurou pelo cabo a frigideira. “Achei”. Porém, bastou pegar o cabo – veio a palavra em sua cabeça: FRIGIDEIRA. Olhou para a panela redonda, de laterais baixas, como se visse uma pela primeira vez. Mas, uma dessa forma, era de fato, a primeira. Fez a ponte: frigideira-frígida. Lera uma matéria inteiri-nha sobre frigidez, no último sábado, no sa-lão da Cota. “Coisa triste, para uma mulher pobre”, pensou. “Imagina, além de pobre, ser frígida?”. Essa tal doença, devia é ser coisa de rico, que tem outras compensações.

Colocou o caderninho de receitas sobre a mesa, a panela sobre a trempe, e antes de acendê-la, observou uma pequena mancha de gordura. “Preguiçosa”. Pensou sobre a patroa. Assanhou as ideias. “Nem mesmo lavou a panela direito”. Ela? Ela nunca fora preguiçosa, nem nunca lhe faltou esforços

para ter e dar prazer. Lembrou de alguns na-morados, do ex marido, aquele tal, sem ver-gonha, tocador de viola, que não mantinha a braguilha fechada. Por conta disso, resolveu atualizar-se. Separou. Para não ter que divi-dir homem com ninguém. “Homem é feito pirulito, não se dividi.” Riu de si mesma. Mas depois, já livre dos aborrecimentos, foi se tornando tão difícil... Chegava exausta do trabalho e não tinha ânimo para descer para o Verdão. “Baile? Com aqueles aposentados que podiam acordar a qualquer hora no ou-tro dia?” Pois então, foi se acostumando a deitar cedo, às vezes dormir, às vezes não. Sentia falta de ter alguém ali ao seu lado, mas não queria homem desgovernado. O último namorado a deixara a ver éguas e cabras pela fresta. Nada acontecera! E ela pensando “que homem respeitador”. Mas, nesse tempo, en-gomou muita camisa, passou outras tantas e cozinhou rabada, costela de boi e de porco e a tal couve cortada a faca de doer os dedos. E o homem só engordando feito um capado. Por conta de tantos desencontros resolveu ficar só. Soma de anos desde então.

O telefone tocou. Largou os afazeres da cozinha e subiu as escadas correndo. O

único telefone da casa, ficava no quarto, no andar de cima, na mezinha de cabecei-ra da patroa.

- Alô!- Cida? Sou eu, Lúcia.- Oi, dona Lúcia.- Olha Cida, eu e o Ernesto não vamos

almoçar em casa, vamos chegar só depois das cinco. Então não precisa preocupar com a gente.

- Sim senhora, dona Lúcia.- Faça alguma coisa para você comer,

lave o banheiro do meu quarto e passa a rou-pa. Pode sair mais cedo hoje, viu?

- Obrigada, dona Lúcia.Desligou o telefone. Estava a colocar os

bofes para fora, tamanha a rapidez investi-da na escada. Sentou na cama dos patrões. “Como é macia”. Levantou e sentou com mais força. O colchão brincou com ela, para cima e para baixo. Gostou da brincadeira. Deitou. Esparramou-se toda sobre a cama. Enrolou-se no edredom branco, de flores vermelhas e folhas verdes. “Que cheiro bom”. Desejou deitar numa cama desse tipo, com um homem espadaúdo, forte, decidido. Já que a patroa não retornaria, refestelou-se.

“Olvidar.Não sei se é recordar ou esquecer.

E, acaba sendo o mesmo.Porque, saber que esqueceué uma forma de lembrar”.

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Acordou assustada, com um barulho na porta da sala. Afinou os ouvidos. Nada. Ali-nhou rapidamente as cobertas. “Será que os patrões chegaram?” Desceu. A porta de en-trada fechada. E a Belinha pulando na porta, tentava entrar. “Ah, só me faltava essa, até cachorra me acorda!” Confirmou as horas no reloginho de enfeite dentro da cristaleira, 11:45. “Ah, dormira pouco.” Foi até a área, pegou o balde, desinfetante, pano de chão e o rodo, subiu para a suíte. Era cedo ainda. Tinha um bocado de tempo a seu favor. En-trou no banheiro. Olhou todos os bibelôs da patroa. “Quanto perfume do estrangeiro!” Abriu a torneira da banheira. “Lavar? Lavo depois”. Tirou a blusinha azul marinho e a bermuda. Jogou para o alto. Desfilou de cal-cinha e sutiã em frente ao grande espelho do banheiro. Gostou do que viu. “É, ainda dou um bom caldo!”.

- Ernesto, Ernesto, traga os meus sais de banho?

Gritou, imitando a voz da patroa. Des-piu-se. Arremessou a roupa íntima na cama dos patrões. Sempre quisera fazer isso. Co-locou o pé direito dentro da banheira. Um arrepio percorreu todo o corpo. Aumentou a água quente. Entrou devagar. Aproveitando a água que lentamente cobria o seu corpo. “Isso é que é vida.” Pegou o primeiro frasqui-nho no aparador. Aromatizador de ambien-te. “Não, não, isso não.” Sais de banho. “Óti-mo.” Derramou sem miséria o pozinho azul que dissolveu na água. “Que cheiro bom”. Ti-rou os grampos dos cabelos. Arremessou no vaso sanitário. Um a um. Afundou inteira-mente na água. Ficou por alguns segundos. “Puxa, estou aqui pouco tempo e já quero ser rica”. Despejou o xampu importado nas mãos. Esfregou nos cabelos, depois o condi-cionador. Esfregou a bucha, com sabonete lí-quido em cada dobra, até sentir a pele arder.

Enxaguou-se. Sem pressa. Secou-se

com a toalha do Ernesto, que também jo-gou sobre a cama. E dispôs a toalha da Lú-cia nos cabelos molhados. Procurou algum perfume. Não conseguiu abrir nenhum. “Bem, quem não tem cão, caça com gato.” Pegou o aromatizador de ambiente e aper-tou debaixo dos braços. O secador sempre ficava debaixo da pia. Depois de desemba-raçar bem os cabelos, passou ar quente ne-les. “Como estão macios”. Vestiu o roupão da patroa. Desceu. Corpo leve e a cabeça cheia de ideias. “O que comeria?”. Explorou a dispensa e os frus frus de dias de festa: Canela da índia, bacalhau, pistache, azei-tonas negras, vinagre balsâmico aromati-zado com tomate seco, trufas, azeite-extra--virgem...”Azeite-extra-virgem? É este, é este que eu comerei.” Diagnosticou-se. Não era frígida. Voltara a ser virgem aos poucos, à medida que distanciara os homens de si. E como virgem, não conhece homem, já nem sentia falta. “Esquecera-se ou olvidara-se?”

Decidiu. Faria bacalhoada para o seu al-moço. Pôs-se a procurar uma receita no ca-derninho da patroa. Falsa bacalhoada. “Essa não.” Bacalhoada de pobre. “Muito menos”. Bacalhoada a moda da casa. “Hummm.” Ba-calhoada da vovó Gu. “Sei não” Bacalhoada Divina. “É essa”.

Separou um quilo de bacalhau, um de batatinha, meio de palmito fresco, 2 cebolas, 200gramas de azeitona verde, 1/2 dúzia de ovos cozidos, 1 vidro de azeite extra virgem, alho, limão e pimenta do reino. Colocou o bacalhau de molho, cortou as batatas em ro-delas, o palmito e as cebolas. Cozinhou e des-fiou o bacalhau. As batatas foram cozidas na mesma água. Bateu a gema dos ovos cozidos no liquidificador junto com alho, o limão, a pimenta do reino e o azeite. Desfiou o baca-lhau e alternou em um pirex batata, palmito, azeitona, claras cozidas, cebola, bacalhau e o molho de gemas. Deixou assar, até dourar.

Pegou a frigideira. Ateou-lhe fogo. Deitou--lhe grossas rodelas de cebola roxa, tomate italiano, alho, champignon e alcaparras. Ba-teu no liquidificador azeitonas negras, sem caroço, para não faltar nada de luxo. Juntou tudo à frigideira. E para terminar verteu um bom tanto de azeite-extra-virgem, purís-simo, português. Dispôs a mesa com prato fino e uma taça de vinho. Bacalhoada e gui-sado. Comeu. Lambeu os dedos. Lambeu o prato. Fartou-se.

Fez um embrulho com a bacalhoada restante. Numa vasilhinha tapeware da pa-troa. Levaria para casa para o jantar. Po-deria convidar o vizinho, viúvo há poucos meses. Então, resolveu separar uma garra-fa de vinho. Prostrou-se na poltrona, para ajudar a digestão. 15:00 hs. Seria aperta-do, mas daria conta das tarefas. Precisava descansar só um pouquinho. Dormiu o sono dos extasiados, dos satisfeitos e ricos. Acordou assustada. 16:45. A patroa deve-ria estar prestes a chegar. Correu para o banheiro. Certificou-se da desordem. Des-ceu. Colocou a vasilha e o vinho em uma sacola. Teria tempo para trocar de roupa. Voltou ao quarto, tirou o roupão. Escolheu o vestido turquesa, que a patroa compra-ra em Teresópolis. Sandália de salto prata. Estava linda. “Rico é que tem problema com roupas, uma para cada horário. Pobre não, veste o que achar bonito.”

Desceu as escadas. Deixou tudo como estava. Teve vontade de deixar um bilhete para a patroa: “Lúcia arrume a bagunça. Lave bem o banheiro do jeito que o Er-nesto gosta. Deixe a roupa passada. Bom dia. Dona Cida”. Mas teve dúvida: deixe, era com “x” ou “ch”? Desistiu do bilhete. Então, desceu, pegou a sacola. Foi embora, requebrando sobre o salto, um pouco antes da Lúcia e o Ernesto chegarem, com seus convidados para a Páscoa.

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