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JOÃO GABRIEL SOARES BENJAMIN SARACCHINI O ACASO COMO PRINCÍPIO ONTOLÓGICO Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) encaminhado à comissão julgadora da Faculdade de São Bento como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciatura Plena em Filosofia, sob a orientação do professor Doutor Ivo Assad Ibri. São Paulo 2014

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JOÃO GABRIEL SOARES BENJAMIN SARACCHINI

O ACASO COMO PRINCÍPIO ONTOLÓGICO

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação)

encaminhado à comissão julgadora da Faculdade

de São Bento como requisito parcial para a

obtenção do título de Licenciatura Plena em

Filosofia, sob a orientação do professor Doutor Ivo

Assad Ibri.

São Paulo

2014

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Reitor da Faculdade de São Bento

Prof. Dr. D. Carlos Eduardo Uchôa Fagundes Junior, OSB

Coordenador do Curso de Filosofia da FSB

Dr. Djalma Medeiros

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JOÃO GABRIEL SOARES BENJAMIN SARACCHINI

O ACASO COMO PRINCÍPIO ONTOLÓGICO

Trabalho de Conclusão de Curso

(Graduação) encaminhado à comissão

julgadora da Faculdade de São Bento como

requisito parcial para a obtenção do título

de Licenciatura Plena em Filosofia, sob a

orientação do professor Doutor Ivo Assad

Ibri.

Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________

Prof. Doutor Ivo Assad Ibri – Orientador

FACULDADE DE SÃO BENTO

______________________________________________

Prof. Mestre Rodrigo Vieira de Almeida

Centro de Estudos de Pragmatismo (CEP) - PUC/SP

______________________________________________

Prof. Mestre Marcelo Silvano Madeira

Centro de Estudos de Pragmatismo (CEP) - PUC/SP

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“Já que é preciso aceitar a vida, que seja então corajosamente.”

Lygia Fagundes Telles

(Escritora brasileira, membro da

Academia Brasileira de Letras e

galardoada com o Prêmio Camões).

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AGRADECIMENTOS

Não poderia deixar de começar demonstrando a enorme graditão que tenho à vida.

Sendo ela a arte do encontro, como disse Vinicius de Moraes, não poderia ser mais

benévola, pondo em meu caminho aqueles sem os quais eu não ultrapassaria as barreiras

de pedras. O primeiro nome que me inspira pela disciplina e bondade, e sem o qual este

Trabalho de Conclusão de Curso seria, possivelmente, uma barreira intransponível, é

Adílio Ferreira Soares. Alguém com quem orgulhosamente divido o título de amigo.

Agradeço, também, à teia do tecido que nunca se dissipa: a Família. Nela são muitos os

nomes e devido ao curto espaço destes agradecimentos, reservo-me à citação de minha

mãe Rita de Cássia, meu pai Antônio Marcos e minha avó Cizira. Podendo facilmente

acrescentar meus tios João Luiz e Rute. Agradeço à minha companheira Tatiane Rosa,

pelas mãos cheias de amor e compreensão e o olhar cheio de carinho. Ao Professor Ivo

Ibri pelas excepcionais manhãs de quarta-feira, nas quais, através do seu olhar sensível

para a arte, ajudou-me a interpretar a filosofia e, principalmente, a vida. Estendo meus

agradecimentos ao Professor Djalma Medeiros e a Dom Eduardo, por me concederem a

privilegiada oportunidade, através da bolsa-trabalho, de seguir meus estudos. E a todo

corpo docente da Faculdade São Bento. Agradeço aos demais familiares e amigos, os quais

contribuíram comigo neste percurso.

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo o estudo do Acaso como princípio ontológico no

interior da filosofia de Charles S. Peirce. Dado que tal conceito configura parte da

metafísica científica do autor, cumpre situá-la no conjunto de sua obra, e, para isso,

apresentar-se-á, brevemente, sua classificação das ciências. Em seguida, abordar-se-á,

ainda que de maneira sucinta, a Fenomenologia, ciência descobridora das categorias,

fundamentais, como se verá, para a ontologia do autor. De modo central, apresentar-se-á

a doutrina que o autor batizou de Tiquismo, fundamentada no conceito de Acaso como

um princípio responsável pela multiplicidade irregular e inumerável observada nos

fenômenos não subsumidos à previsibilidade das leis ou hábitos. Por fim, apontar-se-ão

algumas possíveis relações entre essa doutrina e outros temas da obra de Peirce e de

outros filósofos.

Palavras-chave: Charles Sanders Peirce. Fenomenologia. Categorias. Primeiridade.

Acaso. Tiquismo. Ontologia.

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ABSTRACT

This work has as objective the study of Chance as ontological principle within Charles

S. Peirce’s philosophy. Since such concept is part of the author’s metaphysics science,

we present briefly his classification of sciences in order to situate it in the body of his

work. Afterwards, there will be a succinct description of the Phenomenology, discoverer

science of categories, which is fundamental to the author’s ontology. The central focus

of this work will be description of the Tychism doctrine, named by the author, which’s

base is the concept of Chance as the principle responsible for the irregular and

innumerable multiplicity observed in phenomena not subsumed by forecasting of laws

and habits. Finally, some possible relations between this doctrine and other themes

from Peirce’s work and other philosophers will be presented.

Keywords: Charles Sanders Peirce. Phenomenology. Categories. Chance. Firstness.

Tychism. Ontology.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 9

1. BREVE APRESENTAÇÃO DO AUTOR, DO SEU CONTEXTO

HISTÓRICO E DA SISTEMATIZAÇÃO CIENTÍFICA DE SUA OBRA ............ 10

1.1. A Classificação das ciências. .............................................................................. 13

2. AS CATEGORIAS, DA FENOMENOLOGIA À METAFÍSICA

CIENTÍFICA ............................................................................................................... 18

2.1. O Método fenomenológico descobridor das categorias ...................................... 18

2.2. As três categorias e algumas experiências que as tipificam no âmbito da

fenomenologia.................................................................................................................20

2.3. As categorias como ponte entre a fenomenologia e a ontologia..........................24

3. O ACASO COMO PRINCÍPIO ONTOLÓGICO ......................................... 28

3.1. Possíveis luzes difundidas sobre outras temáticas em Peirce e noutros autores, a

partir deste estudo do Acaso ........................................................................................... 34

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 39

REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 41

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INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende apresentar o Acaso como princípio ontológico na filosofia

de Peirce. Propõe-se, no capítulo um, apresentar: 1) um rápido relato dos dados

biográficos do autor; 2) uma breve noção do contexto histórico-científico no qual Peirce

estava inserido e 3) sucintamente, a sistematização científica de sua obra. Essas

considerações visam, respectivamente: 1) apresentar ao leitor um grande filósofo ainda

pouco estudado no Brasil; 2) deixar implícita a importância, relação e idiossincrasia de

seu pensamento frente às correntes em vigor à época; 3) ilustrar a coerência da

articulação entre suas diversas linhas de pesquisa (através de sua classificação das

ciências - tópico 1.1).

O capítulo dois, intitulado As categorias, da fenomenologia à metafísica

científica, visa ressaltar o escopo e a importância de tais ciências (Fenomenologia e

Metafísica) na obra do autor e, particularmente, no propósito de nosso Trabalho. Esse

capítulo se divide em três tópicos. No primeiro (2.1), investigaremos o que Peirce

entende por “fenômeno”, apresentando alguns requisitos metodológicos exigidos do

estudante de Fenomenologia. Perceber-se-á que a Fenomenologia coincide com o

estudo das três categorias dos fenômenos, primeiridade, segundidade e terceiridade, as

quais serão sucintamente caracterizadas e, posteriormente, reconhecidas em algumas

experiências que as tipificam (tópico 2.2).

Após o entendimento da Fenomenologia, e das três categorias que a compõem,

adentraremos à metafísica científica (tópico 2.3) do autor, ciência que perscruta como

provavelmente são os fatos, no mundo exterior à mente humana, para que esses fatos,

esse mundo, nos apareçam com estas e estas características, aglutinadas por Peirce nas

três classes de fenômenos apresentadas. Desse modo, descobrir-se-á no cosmos (no

mundo, realidade exterior, nos fatos) três formas lógicas simétricas às três categorias da

Fenomenologia. A saber: acaso, existência e lei. As duas últimas serão abordadas,

brevemente, neste mesmo tópico (2.3). A primeira (acaso), objeto de nossa pesquisa,

será investigada mais detidamente no capítulo posterior.

No terceiro e último capítulo, que leva o nome deste Trabalho, pretendemos

apresentar o Acaso como um princípio atuante na composição da realidade; princípio

responsável pela espontaneidade e pela multiplicidade irregular e inumerável observada

nos fatos (acontecimentos, ocorrências) não subsumidos à previsibilidade das leis. Ver-

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se-á, então, como o Acaso se dá a “conhecer”, ou, experimentar, pela via da

segundidade (categoria através da qual o Acaso se mostra atuante na realidade), de

maneira coerente com a fenomenologia, com a metafísica científica e, também, com o

pragmatismo de Peirce.

Por fim, espera-se que a relevância do entendimento da doutrina peirciana do

Acaso (chamada Tiquismo) seja destacada a partir de algumas possíveis aproximações,

sem palavras finais ou aprofundamentos, entre essa doutrina e outros conceitos e temas

na obra do autor e também de outros autores. Tais como: a interpretação errônea do

conceito de representação no neopragmatismo; os enunciados das ciências positivas

contemporâneas; a distinção entre o evolucionismo de Peirce e o evolucionismo de

Charles Darwin; ontologia da Arte; abdução; Deus. Aproximações que poderão

subsidiar futuras continuidades para o presente Trabalho.

1. BREVE APRESENTAÇÃO DO AUTOR, DO SEU CONTEXTO

HISTÓRICO E DA SISTEMATIZAÇÃO CIENTÍFICA DE SUA OBRA 1

“Não há maior consolação para a mediocridade do que o facto de

o gênio não ser imortal.” (GOETHE, J. W. V. 1852. p. 153)2

Charles Sanders Peirce nasceu em 10 de setembro de 1839, em Cambridge,

região metropolitana de Boston, estado de Massachusetts, Estados Unidos. Filho de

Benjamim Peirce, Matemático, Físico e Astrônomo de Harvard. Além do

autodidatismo, em Harvard Charles graduou-se em Ciências (Curso atualmente dividido

em Física e Matemática) e, posteriormente, especializou-se em Química pela Lawrence

Scientifc School. Publicou artigos em revistas e redigiu alguns verbetes para

dicionários. Conhecia mais de dez idiomas e é citado sob os títulos de: Filósofo,

1 Para redigir estas breves considerações biográficas sobre o autor, valemo-nos, principalmente, do relato

biográfico em PEIRCE, Charles S. Semiótica e Filosofia. Introdução, tradução e seleção de MOTA,

Octanny S. e HEGENBERG, Leônidas. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1975. Construímos, por nós próprios, os

curtos apontamentos sobre o contexto histórico e teórico de Peirce, a partir da leitura de livros de história

geral, história da filosofia e história da arte, citados. Não pretendemos, com isso, acusar quaisquer

influências à obra do autor. Consideramos essa uma difícil abordagem, e reconhecemos o caráter singular

e atemporal - embora dialogante com a história da filosofia e das ciências - da obra do autor. 2 Juntamente com Friedrich Schiller, Goethe, foi um dos mais importantes escritores da literatura alemã, e

um dos principais nomes do Romantismo Alemão, que ocorreu nos anos finais do século XVIII e início

do século XIX.

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Linguista, Filólogo, Historiador da Ciência, Físico, Lógico, entre outros (Cf. PEIRCE,

1975. Introdução). Possui contribuições positivas para a Matemática, a Gravitação, a

Ótica, a Química, a Astronomia, entre outras (CP 1.3 3); com escritos importantes sobre

Psicologia Experimental, Geodésica, Biologia, Engenharia, Econometria, etc. (Cf.

PEIRCE, 1975. Introdução).

Entre 1869 e 1875, Peirce trabalhou como assistente no observatório

astronômico de Harvard, onde seu maior salário não ultrapassou os U$ 2.500,00. Em

sua vida foram aproximados 20 anos de trabalho em laboratórios, testando teorias,

realizando experiências (Cf. PEIRCE, 1975. Introdução), ao ponto de assenhorear-se

“[...] de tudo quanto era então conhecido no campo da física e da química [...]” (CP 1.3).

Em Harvard, auxiliou o ensino de Lógica em curtos períodos entre 1864-1865 e

1869-1870. Entre 1869-1875, foi aceito como “instrutor em tempo parcial” na recém-

fundada Universidade John Hopkins, período que, segundo relatório oficial dessa última

universidade, foi “[...] o mais criador que uma universidade já tivera no campo da

Lógica, e os alunos de Peirce chegaram a um nível de originalidade não antes atingido”

(PEIRCE, 1975, p. 14). O principal monumento desse quinquênio em Hopkins é o volume

Studies in Logic by Members of the John Hopkins University, publicado em 1883 (Cf.

PEIRCE, 1975, p. 14).

Em vida, Peirce fora muito recomendado pelo já reconhecido filósofo William

James, que não escondia sua dívida teórica com Peirce. Por exemplo: através de uma

carta postada em três de março de 1895, James recomenda profusamente Peirce como

professor ao então reitor de Harvard, Charles W. Eliot (Cf. JAMES apud PEIRCE,

1975, p. 15). Em carta a seu irmão Henry, James assim se refere a Peirce: “Nunca vi

uma pessoa atacar os assuntos de que trata com firmeza e intensidade tais.” (JAMES

apud PEIRCE, 1975, p. 14).

Apesar disso, e das tentativas do próprio Peirce de estabilizar-se na carreira

acadêmica, faleceu em Milford, interior da Pennsylvânia, em 19 de abril de 1914,

provavelmente de frio (hipotermia), sem registro de cargo definitivo como docente

acadêmico, sem dinheiro para comprar remédios à segunda companheira com

tuberculose, tampouco, para instalar um sistema de calefação em sua casa. Para cobrir

3 PEIRCE, Charles Sanders. The Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Disponível em:

<http://www.4shared.com/document/oRnzQCug/The_Collected_Papers_of_Charle.html>. Acesso em: 11

Janeiro de 2014. (volume 1-8. Citado CP seguido do número do volume e do número do parágrafo).

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gastos, até mesmo com o funeral, essa segunda companheira, vendeu seus manuscritos à

Harvard por U$ 500,00 (Cf. BRENT, 1998). Até hoje não fora publicada toda a obra de

Peirce.

Em vida, Peirce viu indeferida sua solicitação endereçada ao Instituto Carnagie,

de Washinton, que visava angariar fundos destinados à conclusão e publicação de um

Tratado de Lógica (Cf. PEIRCE, 1975, p. 11). Mesmo sem publicar nenhum livro, “Ao

morrer, em 1914, Peirce deixou nada menos do que 12 mil páginas publicadas e 90 mil

páginas de manuscritos inéditos [...]” (SANTAELLA, Lucia; MACHADO, I. A. 1999).

A maioria dessas publicações ocorreu em periódicos, principalmente, nas revistas The

Monist e Popular Science Monthly (Cf. PEIRCE, 1975. p 10).

Seu insucesso acadêmico é atribuído a dificuldades em relacionamentos

interpessoais, às perseguições propagadas pelo rico e influente pai de sua primeira

esposa, à oposição da sociedade tradicionalista da época à separação conjugal, e a

dificuldades dos leitores na compreensão de seus textos (Cf. PEIRCE, 1975.

Introdução). Hoje, Peirce é considerado o criador do Pragmatismo e da Semiótica, um

dos maiores, ou, “o mais original e versátil dos filósofos americanos e maior lógico da

América” (WEISS, Paul. 1934, V ).

Peirce faleceu pouco menos de dois meses antes do trauma das Grandes Guerras

começarem a pintar de ceticismo algumas filosofias posteriores.4 Situamos,

historicamente, a maioria de seus escritos sob o ápice do sucesso da obra de Newton,

“Philosophiae Naturalis Principia Mathematica”5, propiciado pelo cálculo astronômico

descobridor do Planeta Netuno.6 Destacamos, também, que a geometria euclidiana ainda

não encontrara exceção no mundo físico, pois Einstein ainda não havia utilizado a

geometria riemanniana7 para medir a trajetória curva da luz ao percorrer proximidades

4 Em 28 de junho de 1914 ocorreram os assassinatos do arquiduque austríaco, Francisco Ferdinando, e

sua esposa, considerados pretextos nazistas para o início da I Guerra Mundial. 5 A obra de Newton foi publicada em 1687, porém, a física newtoniana encontraria suas primeiras

exceções, microscopicamente, apenas em 1900, com a problemática do “corpo negro”, explicada pela lei

da radiação térmica (posteriormente chamada Lei de Planck da Radiação), de Max K. E. L. Planck.

Ressaltamos ainda que, apenas em 1910, quatro anos antes da morte de Peirce, Einstein e Bohr

estruturariam a teoria quântica, sob as bases de Planck (ROSA, 2012). 6 Uma hipótese de que haveria um planeta desconhecido responsável pelas surpreendentes perturbações

observadas na órbita de Urano, jungida a cálculos matemáticos sobre a terceira lei de Newton - relativa à

gravidade - possibilitaram aos astrônomos preverem a exata posição do segundo “planeta azul” do

sistema solar, descoberto em 23 de Setembro de 1846. GINGERICH. Cap. 8, p. 9-15. 7 Na interessante geometria de Riemann (1826-1866), a soma interna dos ângulos do triângulo não

equivale a dois retos (180º) (BRAZ, 2009).

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de grandes centros gravitacionais.8 A lógica aristotélica, todavia, já assistira às poucas

conclusões derivantes das premissas em Bárbara9 sucederem à multiplicidade de

teoremas dedutíveis das poucas premissas aritméticas de Legendre10 e Gauss11 (BRAZ,

2009)12. A estética futurista, enaltecedora das máquinas, ainda não fora ridicularizada

por Dadá (MICHELI, 2004). Lembramos, ainda, do crescente alcance da teoria

evolucionista de Darwin.13

Parece-nos, assim, que no fim do século XIX e início do século XX corria com

força jovial a ideia de progresso, chancelada, ainda, pelo positivismo lógico de

Comte14, pela expansão das cidades, pela evolução tecnológica da revolução industrial

incentivada pelo belicismo das nações imperialista-expansionistas (que ainda não

culminara, conforme dito, na mortandade entrincheirada da Primeira Guerra Mundial)

(STEVENSON, 1996).

Não sabemos se devido ao entusiasmo científico da época, ou por sua própria

idiossincrasia (que não se permite reduzir às correntes de pensamentos vigorantes), mas

o conjunto da obra de Peirce exprime uma estrutura sistêmica muito bem articulada;

conforme ilustra sua classificação das ciências, sobre a qual discorreremos a seguir.

1.1. A Classificação das ciências15

8 Aqui se faz menção à Teoria da Relatividade Geral, publicada em 1915 (Peirce faleceu em 1914), a qual

abriu exceções macroscópicas a Euclides e Newton (ROSA, 2012). 9 Os escolásticos chamavam de “Bárbara” o silogismo aristotélico mais simples, assim exemplificado por

Peirce em CP 1.369:

“Todos os homens são mortais.

Elijah é um homem.

Logo, Elijah é mortal.”

Em que as duas primeiras proposições se denominam “premissas”, e a terceira “conclusão”. 10 Adrien-Marie Legendre (1752-1833). 11 Carl Friedrich Gauss (1777-1855). 12 Ao discorrer sobre a limitação kantiana a Bárbara, Peirce menciona a expansão da Lógica promovida

por DeMorgan (CP 1.369), Legendre e Gauss (CP 5.178). 13 Charles Darwin (1809-1882). 14 Auguste Comte (1798-1857). IBRI (1992) discorre sobre algumas dissimilaridades entre as filosofias

de Peirce e Comte. 15 Para esta nossa breve apresentação da classificação das ciências em Peirce, valemo-nos, sobretudo, do

resumido texto An Outline Classification of the Sciences, em PEIRCE, Charles S. The Essential Peirce. v.

2, p. 258 (citado EP seguido do número do volume e do número da página). Nesse texto Peirce não

explica as Ciências Normativas, por isso, recorremos também à comentadora Lúcia Santaella, a qual

afirma que apenas no texto A Detailed Classification of the Sciences, situado em CP 1.203-83, escrito em

1904, no qual toda a classificação está desenvolta, Peirce teria completado sua classificação das ciências,

pois somente nesse ano reconheceu que a diferença entre matemática, filosofia e as ciências especiais

dependia do modo de observação utilizado por cada uma delas (SANTAELLA, 2005, p. 33ss).

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Peirce, a princípio, divide as ciências em três grupos: Ciências da Descoberta,

Ciências da Revisão e Ciências Práticas. As Ciências Práticas, a exemplo do Direito

(Jurisprudência), teorizam com a intenção de produzir efeito sobre um objeto de

natureza prática (EP 2.458; CP 6.391). As Ciências da Revisão, a exemplo de uma

História da Filosofia, procuram reunir os resultados das descobertas em grupos a partir

de semelhanças e, então, erguer uma filosofia da ciência (Cf. EP 2.258-259). As

Ciências da Descoberta, por sua vez, se dividem em Matemática, Filosofia e Ciências

Especiais.

A Matemática apresenta-se como uma ciência independente, livre, hipotética, de

meras possibilidades, não determinada por nenhuma outra, enquanto todas as outras

ciências dela dependem (Cf. EP 2.259). Dito de outro modo, a Matemática:

[...] é a única ciência puramente hipotética, indiferente quanto a suas

premissas expressarem fatos imaginados ou observados. É a ciência

das conclusões exatas a respeito de estado de coisas meramente

hipotético. Fundada em premissas não assertivas, não requer nenhum

suporte experimental além das criações da imaginação.

(SANTAELLA, 2005, p. 34).

Nas palavras do próprio filósofo, é “O estudo do que é verdadeiro quanto ao

estado de coisas hipotético.” (CP 4.233). Além dessa, Peirce também corrobora uma

definição geral de Matemática recebida de seu pai, Benjamin: “A ciência que tira

conclusões necessárias” (CP 4.229). Encarrega-a, então, de estudar o que é e o que não

é logicamente possível, sem compromisso em afirmar a existência atual dos seus

objetos. A necessidade lógica desses objetos é deduzida a partir dos princípios ou

axiomas interiores à própria Matemática (Cf. CP 4.233).

As Ciências Especiais, também chamadas de Idioscopia, descobrem ou

descrevem objetos da experiência: “Para qualquer uma das ciências especiais,

experiência é aquilo que diretamente é revelado pela arte observacional daquela

ciência” (CP 7.527), onde, a nosso ver, com a palavra “diretamente”, Peirce refere-se à

observação imediata proveniente dos sentidos. A Idioscopia, contudo, a partir dos

diferentes modos de observação e interpretação desses fatos experimentáveis, dividi-se

em Ciências Físicas e Ciências Psíquicas (CP 7.527).

As Ciências Físicas, por sua vez, se tripartem em: Física Geral ou Nomológica,

Física Classificatória e Física Descritiva (EP 2.259). O objetivo da Física Geral é

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descobrir as leis do universo físico, a partir da medição de suas constantes (Cf. EP

2.259), a exemplo da Lei da Gravidade, na qual Newton induz, a partir da observação de

uma numerosa porção de fatos, que a atração dos corpos, com força proporcional às

suas massas e inversamente proporcional ao quadrado de suas distâncias, é uma

constante de todo o universo.16 A Física Classificatória, a exemplo da Tabela Periódica

e das relações constantes entre seus elementos sob condições específicas de temperatura

e pressão (estudadas pela Química), classifica e descreve formas físicas gerais,

descobertas pela Física Nomológica (Cf. EP 2.259). Por fim, a Física Descritiva foca,

descreve e explica objetos individuais dentro das descobertas da Física Nomológica e

classificadas pela Física Classificatória; como o faz, por exemplo, a Geologia.

Sob curiosa insistência no número três, as ciências psíquicas também constituem

uma tríade: Psico-nomológicas, Psico-classificatórias e Psico-descritivas. Um exemplo

das primeiras é a Psicologia, a qual descobre “os elementos gerais e as leis dos

fenômenos mentais” (EP 2.259). Para exemplificar as segundas, apontamos a Etnologia,

que classifica “fenômenos mentais cujas explicações se darão em termos de princípios

psicológicos” (EP 2.260). Já as ciências Psico-descritivas “descrevem fenômenos

mentais individuais e os explicam em termos psicológicos tomados das duas ciências

anteriores” (Ibidem), a História, por exemplo.

A Filosofia, por sua vez, se divide em Fenomenologia, Ciências Normativas e

Metafísica. As Ciências Normativas “[...] estão voltadas para a compreensão dos fins,

das normas e ideais que guiam o sentimento, a conduta e o pensamento humanos”

(SANTAELLA, 2005, p. 36). Refletem não sobre como os fenômenos são em si

mesmos, mas sobre como eles agem em relação aos homens e como os homens devem

deliberadamente agir em relação aos apelos da experiência (Cf. SANTAELLA, 1994, p.

113-114). As Ciências Normativas se dividem em Estética, Ética e Lógica.

A Estética, para Peirce, excede uma teoria sobre a beleza. Parte da busca por um

“[...] estado de coisas que é admirável por si mesmo, sem relação com qualquer razão

ulterior” (CP 1.611) para, então, “[...] determinar por análise o que devemos admirar

[...]” (CP 5.36) como nossas metas de vida (Cf. SANTAELLA, 2005, p. 38).

16 Após Newton, o ceticismo de Hume pôs em cheque o valor gnosiológico da indução (Cf. HUME,

1975). O Transcendentalismo de Kant recuperou-o a seu modo (Cf. KANT, 2010). Peirce,

diferentemente de Kant, recupera esse valor a partir de seu Realismo. Ver, por exemplo: IBRI, 2000c;

2012.

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16

Determinado, pela Estética, o fim admirável que devemos buscar, a Ética

estudará “aquilo que estamos deliberadamente preparados para aceitar como afirmação

do que queremos fazer, do que temos em mira, do que buscamos” (SANTAELLA,

2005, p. 38), valendo-se das ferramentas da Lógica, que reconhece quais são as leis do

pensamento e as condições necessárias para o alcance da verdade (Cf. Ibidem) e para a

comunicação de significados (Cf. CP 1.444).

A Metafísica se divide em Ontologia, Metafísica Psíquica ou Religiosa e

Metafísica Física - Tempo, Espaço e Leis da Natureza. A Ontologia, cerne de nossa

pesquisa, investigará como “devem ser [no sentido de “provavelmente são”] os fatos”

(CP 1.287) no mundo, independente do pensamento humano. Percebendo nesse mundo

uma simetria com as descobertas da Fenomenologia (Cf. IBRI, 1992, cap. 2 e IBRI,

2012), sobre as quais discorremos no capítulo seguinte.

Observamos, ainda, que o método utilizado nessa classificação foi o de partir das

ciências mais gerais para as mais particulares; das ciências mais possíveis e

indeterminadas para as mais factuais e determinadas (ALMEIDA, 2011, p. 13-14).

Antecipamos, por fim, que os eventos relativos às ideias de descoberta e novidade,

classificação e generalização, e atenção a fatos individuais, aqui identificados, apontam,

respectivamente, para as presenças fundamentais da primeira, segunda e terceira

categorias da Fenomenologia17, as quais também serão apresentadas mais adiante.

Antes, porém, para selar a proposta capitular de ilustrar a coerência estrutural do

pensamento de Peirce, exemplificada por sua classificação das ciências, bem como,

vislumbrar o lugar da Metafísica (fundamentada na Fenomenologia) nessa estrutura,

importamos de Almeida (2011, p. 14), o quadro a seguir (inspirado em EP 2.258) no

qual o leitor poderá visualizar, iconicamente, o que fora brevemente explicado neste

tópico:

17 “A classificação das ciências e, dentro dela, a arquitetura filosófica do autor, estavam inteiramente

baseadas na lógica das três categorias.” (SANTAELLA, 2005, p. 33, § 4).

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17

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18

2. AS CATEGORIAS, DA FENOMENOLOGIA À METAFÍSICA

CIENTÍFICA18

“Como suportar, como salvar o visível, senão fazendo dele a linguagem da

ausência, do invisível?” (RILKE apud BLANCHOT, 1987).19

2.1. O Método fenomenológico descobridor das categorias

Na Fenomenologia, primeira das ciências que compõem a Filosofia do autor,

Peirce descobre as categorias, jazida conceitual imprescindível não apenas para o

entendimento das outras duas ciências componentes da Filosofia, como dito, as Ciências

Normativas e a Metafísica, mas, também, para toda a obra do autor.

Dessa opinião comungam, por exemplo, Ivo Assad Ibri, que, em Kósmos

Noetós: a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce, afirma serem as categorias as

bases de todo o pensamento filosófico de Charles S. Peirce (Cf. IBRI, 1992, p. 16, p.

130), M. Lucia Santaella, que, por sua vez, também expande essa afirmação sobre a

filosofia para toda a obra peirciana (Cf. SANTAELLA, 2005, p. 36, § 2) e Nathan

Houser e Christina Kloesel, os quais postulam que são essas categorias que dão unidade

ao sistema peirciano (Cf. EP 1.26 - Introdução).

Desse modo, a nós, que desejamos pesquisar o tema do Acaso em coerência com

as demais temáticas da obra do autor, parece-nos sumamente relevante uma

apresentação, ainda que introdutória, do que Peirce entende pelas categorias.

“Categorias”, para Peirce, são agrupamentos, ou, generalizações das

propriedades incidentes nos fenômenos. Por “fenômeno” (faneron) o autor compreende

o “[...] total coletivo de tudo aquilo que está de qualquer modo presente na mente” (CP

1.284), aquilo que aparece na mente, sem considerações se isso se afina às coisas reais

ou não (EP 2.260).

18 Para construção deste capítulo valer-nos-emos, sobremaneira, das considerações de Peirce no volume 1,

parágrafos 300-349, dos Collected Papers; e dos capítulos 1 e 2 de IBRI, Ivo Assad. Kósmos noetós: a

arquitetura metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo: Perspectiva : Hólon, 1992. (Coleção Estudos; v.

130). 19 Rainer Maria Rilke: poeta do século XX, de língua alemã, cujos poemas sofreram forte influência

religiosa após viagem à Rússia no final do século XIX, quando Rilke passou a enxergar a exuberância das

paisagens como manifestação divina.

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19

A Fenomenologia recolhe seu material de estudo da experiência comum, porém,

como um ramo do saber que se pretende científico pode recolher da experiência

cotidiana seus conhecimentos? Para Ibri (1992, cap. 1), não só essa primeira pergunta

vem à tona para o estudioso mais atento, mas, também, estas outras: qual o lugar

ocupado, nas generalizações das categorias, pelos aspectos idiossincráticos da

experiência do indivíduo? Não poderia, a própria experiência, resistir a ser abarcada por

generalizações? O que de fato Peirce entende por experiência?

Principiemo-nos pela resposta ao segundo questionamento proposto. Os aspectos

particulares da experiência são “irrelevantes na formação de uma categoria” (IBRI,

1992, p. 4), a qual se ocupa dos modos gerais de ser, inerentes a toda experiência,

inclusive, à dita experiência cotidiana (Cf. IBRI, 1992, cap. 1). Por “experiência”,

dentro da Filosofia, o autor compreende:

Mas em filosofia não existe uma arte observacional especial, e não

existe conhecimento adquirido anteriormente à luz do qual a

experiência é interpretada. A interpretação em si mesma é experiência

[...] Em filosofia, a experiência é o inteiro resultado cognitivo do

viver [...] (CP 7.527, sem grifos no original).

Assim, a experiência, matéria-prima dos estudos fenomenológicos, compreende

o próprio transcurso da vida, e a própria interpretação de uma experiência constitui-se

numa nova experiência, e pode ser um novo objeto de estudo para a Fenomenologia.

Por outro lado, a experiência é, também, “fator corretivo do pensamento” e semeadora

de conceitos que moldam a conduta humana (IBRI, 1992, p.5).

A Fenomenologia, enquanto ciência das aparições, não questiona se aquilo que

aparece à mente, ou seja, seus objetos de estudo, nascem no mundo interior ou exterior à

mente humana. (Cf. IBRI, 1992, p. 12). O olhar fenomenológico sobre essas aparências

precisa ser despido de qualquer teoria subjacente (Cf. IBRI, 1992, p. 5). Não se

assemelha, pois, ao olhar cognitivo do cientista que, ora é precedido de hipóteses em

busca de comprovação empírica, ora é sucedido pela inquirição acerca das causas dos

fenômenos vislumbrados.

Como estudantes de fenomenologia devemos apenas observar com os olhos

mentais quais características nunca estão ausentes no fenômeno, seja ele, algo que a

experiência externa força-nos à mente, por exemplo, um objeto real; sejam os

fenômenos produzidos nos sonhos e nas hipóteses matemáticas (Cf. CP, 5. 41).

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Para atingir esse tipo de olhar, Peirce sugere-nos três faculdades, tal como

observa Ibri (1992, cap. 1): a primeira requer aprender a despir o olhar de qualquer

tendência que nos arraste a uma postura mediativa (Cf. CP 5. 42). A segunda é a

capacidade de focar um aspecto específico que esteja sendo estudado, retirando dele

seus adereços (Cf. CP 5. 42). A terceira faculdade é a capacidade de generalização, a

qual nos conduz à “essência mesma da característica sob exame” (CP 5. 42). As três

faculdades metodológicas mencionadas acima podem ser resumidas em “ver, atentar

para e generalizar” (IBRI, 1992, p. 6).

Através desse método, a Fenomenologia “[...] se esforça para combinar precisão

minuciosa com a mais ampla generalização possível” (CP 1.287); de modo que,

suportada:

[...] pela observação direta dos Fanerons, e generalizando suas

observações, sinaliza várias classes muito amplas de Fanerons [...] [as

quais, embora estejam] [...] tão intrinsecamente misturadas que

nenhuma possa ficar isolada, deixam, porém, evidente que suas

características são bastante desiguais. Prova-se, então, sem dúvida,

que uma pequena lista compreende todas essas categorias mais amplas

de Fanerons que existem [...] (CP 1.286).

O tópico seguinte visa, brevemente, apresentar essa lista das categorias, bem

como, algumas de suas “bastante desiguais características” a partir de algumas

experiências que as tipificam.

2.2. As três categorias e algumas experiências que as tipificam no âmbito da

fenomenologia

Fundado num sistema de lógica, a partir de uma insatisfação com as categorias

aristotélicas (as quais considerou mais linguísticas do que lógico-formais)

(SANTAELLA, 2005, p. 32), hegelianas e kantianas (SANTAELLA 1983, p. 28-31;

1992, p. 71-75), Peirce empreendeu por dois anos a “[...] mais radical análise de todas

as experiências possíveis” (SANTAELLA, 2005, p. 32) e, então, listou três classes (ou

categorias) de características (ou, “elementos formais e universais” - SANTAELLA,

2005, p. 32) que nos fenômenos “nunca estão ausentes” (CP 5.41), denominando-as,

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21

inicialmente, “qualidade, relação e representação” (CP 1.545-559)20, e, posteriormente:

primeiridade, segundidade e terceiridade (CP 1.300-353).21

Santaella (2005, p. 36) assim caracteriza essas categorias:

[...] a primeiridade ou mônada é o começo, correspondendo às noções

de acaso, indeterminação, vagueza, indefinição, possibilidade,

originalidade irresponsável e livre, espontaneidade, frescor,

potencialidade, presentidade, imediaticidade, qualidade, sentimento. O

segundo ou díada é o determinado, terminado, final, objeto,

correlativo, necessitado, reativo, estando ligado às noções de relação,

polaridade, negação, matéria, realidade, força bruta e cega,

compulsão, ação-reação, esforço-resistência, aqui e agora, oposição,

efeito, ocorrência, fato, vividez, conflito, surpresa, dúvida, resultado.

O terceiro ou tríade é o meio, devir, o que está em desenvolvimento,

dizendo respeito à generalidade, continuidade, crescimento, mediação,

infinito, inteligência, lei, regularidade, aprendizagem, hábito, signo.

Parafraseando Ibri (1992, p. 13-15) Ghizzi (2014, p. 49)22, por sua vez, bem

resumiu as características das experiências tipificadoras dessas categorias:

A experiência fenomênica de primeiridade é caracterizada por uma

espécie de união formal (fusão) da mente com o objeto da experiência,

em que a separação entre o que percebe e o que é percebido não

existe; o que se manifesta é a homogeneidade da mente com as coisas

com as quais está em contato. Está associada à ideia de pura

possibilidade. A experiência fenomênica de segundidade, por sua vez,

se dá quando nossos sentidos percebem uma dualidade entre a

percepção e o objeto da percepção. Está associada à ideia de oposição

entre um e outro, de fato bruto, de alteridade. Já a experiência

fenomênica de terceiridade é a experiência de mediação, própria de

uma “consciência sintetizadora”, que impõe entre o primeiro e o

segundo uma ideia geral que os represente; de modo que terceiridade,

como Peirce usa o termo, é um sinônimo de representação.

Assim, “fusão”, “dualidade” e “mediação” aparecem como características,

respectivamente, das experiências tipificadoras das três categorias dos fenômenos.

Importa, por conseguinte, inquirir: é possível concebermos exemplos de experiências

que incorporem essas características?

20 O texto contido em CP 1.545-559 intitula-se On a new list of categories (“Sobre uma nova lista de

categorias”). 21 No original: Firstness, Secondness and Thirdness. O texto contido em CP 1.300-353 intitula-se The

categories in detail (“As categorias em detalhe”). 22 Agradecemos à prof. Eluiza Bortolotto Ghizzi por nos ceder o acesso a esse artigo antes de sua

publicação.

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Como verdadeiros representantes psíquicos da primeiridade, Ibri (conforme CP

5.44) nos fala da experiência das qualidades de sentimento, “[...] tais como a cor da

magenta, o odor da rosa, o som do silvo de um trem, o sabor do quinino, a qualidade da

emoção ao se contemplar uma bela demonstração matemática, a qualidade de

sentimento do amor, etc.” (CP 1.304 apud IBRI, 1992, p. 10), cada uma das quais,

quando experimentadas, em sua presentidade, preenchem, ocupam, ou, se fundem de tal

modo à mente que o ego deixa de pensar em, ou, de perceber a si próprio (Cf. IBRI,

1992; 2009; 2011 e SOARES, 2013, cap. 3). Pode-se dizer que o ego, durante essa

experiência, deixa de existir23 (ou, ao menos, de perceber ou pensar em sua própria

existência), metaforicamente: como uma gota de chuva que se funde ao oceano onde

mergulha.

Temos como exemplo a experiência de contemplação, identificada a um tipo de

ver descompromissado com algo exterior, imediato (sem produção de mediações), no

qual a mente é preenchida por uma qualidade de sentimento proveniente do amálgama

das qualidades da imagem contemplada, criando-se, para nós, um lapso no tempo. Não

se trata de uma reflexão posterior acerca de um sentimento outrora vivido, mas de um

mergulhar-se e desaparecer-se na fusão com o sentimento presentemente vivenciado

(Cf. IBRI, 2009; 2011 e SOARES, 2013, cap. 3).

Quando experimentamos dessa maneira uma qualidade de sentimento, não

efetuamos lembranças ou previsões, isto é, não nos remetemos ao passado ou ao futuro,

mas mergulhamos numa duração que é identicamente presente em qualquer de seus

instantes, a exemplo de uma reta que, nos axiomas de Euclides, é igual em qualquer

ponto onde seja interceptada. 24

Experimentadas assim, cada qualidade de sentimento “[...] é isolada e única;”

(CP 5.44), o que corresponde a dizer: “é primeira”, pois “ser primeiro” nada mais é que

não possuir vínculo causal com nada anterior, tampouco, indicar algo ulterior. É esse

“ser sem vínculo” que nos legitima adjetivar o fenômeno primeiro como livre, novo e

indeterminado: “A ideia de Primeiro é predominante nas ideias de novidade, vida,

liberdade. Livre é aquilo que não tem outro atrás de si determinando suas ações [...]”

(CP 1.302 apud IBRI, 1992, p. 9-10).

23 Como se verá no tópico 2.3, a existência configura a segundidade no âmbito ontológico. 24 Ibri (Áudios gravados nos cursos de Pragmatismo clássico e Semiótica filosófica ministrados por esse

professor Doutor entre 2010 e 2012 na Faculdade de São Bento de São Paulo – à frente citados apenas

Áudios).

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23

Essa experiência é contínua, pois nela não há diferenciação entre a mente que

sente e o sentimento que é sentido. Se não há a percepção de algo diferente, pode-se

dizer que a mente continua no sentimento vivenciado, ou, que a mente assume a

natureza da qualidade de sentimento tornando-se uma continuidade das suas

propriedades. Há, aqui, apenas uma coisa, e não duas (embora essa qualidade de

sentimento não se perceba como uma “coisa”).25

Segundo Ibri (1992, cap. 1 - 2), a experiência do passado é genuinamente

segunda. O passado é algo que resiste permanecendo inalterado apesar de quão forte

seja nosso desejo de que ele fosse diferente. Essa experiência de vontade e negação da

vontade produz um sentimento dual (de dualidade), de que há dois, um primeiro que

deseja e outro (do latim: alter), segundo, que reage, ou, resiste ao desejo do primeiro,

permanecendo o que é.

A experiência da resistente imutabilidade do passado pode ser comparada à

experiência de quando “[...] você coloca seu ombro contra uma porta e tenta forçá-la a

abrir-se, mas sofre uma resistência invisível, silenciosa e desconhecida. Temos aí uma

consciência bipolar de esforço e resistência [...] Eu chamo a isso Segundidade.” (CP

1.24).26

Trata-se, também, de uma experiência imediata, pois nada se coloca entre a bruta

(“bruta” é um adjetivo peirciano atribuído à experiência segunda) relação de ação e

reação entre um primeiro e um segundo. Ocorre em um ponto único do tempo e é,

também, única, irrepetível, inigualável, individual, embora possa se parecer com outra

experiência passada. Apesar de constituir uma experiência presente, não é contínua, pois

nela não há a fusão, ou, a continuidade do primeiro no segundo (ou vice-versa), mas a

negação da vontade do primeiro pelo segundo. Há a reação do que o segundo é em si

mesmo apesar do que dele pensava o primeiro. É, pois, uma experiência de

descontinuidade, ou, delimitação do primeiro pelo segundo (Cf. IBRI, 1992, cap. 1-5).

Por fim, a mediação, característica da terceiridade, pode ser encontrada na

própria experiência cognitiva de representar algum objeto (Cf. CP 5.104; IBRI, 1992, p.

15). Uma representação não possui outra função senão a de mediar à relação entre

aquele que a produz e o objeto que ela representa. Rompendo a brutalidade da relação

25 Embora não se refira à teoria do continuum, Soares (2013, cap. 2-3), fundado em Ibri (2009 e 2011,

principalmente), inspirou-nos a construção deste parágrafo. 26 Ibri (1992, p. 7) cita uma passagem muito similar à nossa: CP 1.324.

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de negação do primeiro pelo segundo. Sem a brutalidade da negação, da resistência da

alteridade, está minimizada ou extinta a descontinuidade. Diz-se, então, que a produção

da representação visa estabelecer uma continuidade (Cf. IBRI, 1992, cap. 1-2).

Desse modo, a experiência de representar, mediar, ou, conhecer (esses três

verbos, nesse contexto, podem ser considerados sinônimos), retira a objeção imediata

do segundo à medida que permite, ao gerador da representação, prever e modificar a

conduta do objeto de acordo com a sua vontade, ou, ainda, modificar-se a si mesmo

(redirecionar sua própria conduta) a fim de não mais colidir com a negação desse

objeto, não mais experimentar brutalidade nessa relação (Cf. IBRI, 1992, cap. 1-2, entre

outros textos do autor).

Pensemos, por exemplo, na imagem de um cachorro que representa um animal

que outrora nos feriu. Essa representação, através do reconhecimento do animal e da

previsão de uma provável repetição de sua conduta, situa-se entre nós e a brutalidade do

objeto (no caso, o cachorro), e pode servir para balizar nosso próprio comportamento

diante desse objeto. Desse modo, “[...] o que temos, ao juntar as três categorias

visualmente, é 1, 3, 2 e não 1, 2, 3. Mediação e não mera sequência.” (ALMEIDA,

2011, nota 51).

Pode-se dizer, então, que a experiência terceira não procede num lapso no

tempo, como a primeira, tampouco, é pontualmente momentânea como a experiência

segunda, mas se dá no transcurso do tempo. A geração de conhecimento exige memória

e coincide com a previsão (ainda que falível) da conduta do conhecido, ou, representado

(Cf. IBRI, 1992).

2.3. As categorias como ponte entre a fenomenologia e a ontologia

Os escritos de Peirce manifestam um profundo diálogo com a história da ciência

e, especificamente, da filosofia. Logo, podemos afirmar que, ciente da crítica de Hume à

causalidade e, por consequência, às investigações da metafísica tradicional (Cf. HUME,

1975), e ciente, ainda, do abandono de algumas dessas questões e da saída para outras,

propostas por Kant (Cf. KANT, 2010), Peirce, precavido, funda sua investigação

ontológica nas descobertas da fenomenologia.

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Isso - associado a outros fatores como, por exemplo, às suas descobertas acerca

da importância da abdução 27 na produção dos conhecimentos científicos, e a

formulação da doutrina do Idealismo Objetivo (doutrina que defende uma

conaturalidade eidética entre a mente e a matéria)28 -, autorizou o autor a adjetivar sua

metafísica de científica, atribuindo-lhe a missão de conjecturar, a partir das três classes

de fenômenos observadas, quais características provavelmente detém o mundo exterior

às aparições (fenômenos) na mente humana, para que este mundo apareça desse modo a

essa mente (Cf. IBRI, 1992, p. 21).

Durante essa investigação ontológica (metafísica), Peirce identifica, no cosmos

(universo, mundo, ordenação exterior à mente humana), três formas lógicas simétricas

às categorias encontradas nos fenômenos (Cf. IBRI, 2012; 1992, cap. 2). São elas: lei,

existência, e acaso:

Na metafísica as categorias foram associadas a três modos de ser da

realidade eidética do Universo [...] [onde a terceiridade corresponde]

[...] à lei ou ao princípio que está por trás dos comportamentos

habituais das coisas [...] [e] Existente é tudo aquilo que é factual e que

reage; o mundo existencial tem como característica a alteridade em

relação à nossa ou a qualquer outra mente. (GHIZZI, 2014, p. 49).

Para Peirce, a existência desvela-se na relação com a alteridade, e não na mera

especulação a priori, consigo mesmo. Descubro o eu a partir da experiência instantânea,

imediata, reativa e descontínua do não-eu, do diferente, do resistente. Existir

propriamente, individualmente, realmente, requer alguma diferenciação ou separação

em relação a alguma outra coisa. A descoberta da existência se dá numa experiência de

segundidade, de negação da vontade do primeiro; e não num pensamento mediado,

reflexivo, dedutivo. (Cf. IBRI, cap. 2; SANTAELLA, 2004).

Peirce é um realista (Cf. CP 4.50; IBRI, 2012), logo, crê na existência de um

mundo, independente da mente humana, e que licita a concepção de verdade a partir da

correspondência entre o que se diz e o que este mundo existente é em si mesmo: “Não

haveria tal coisa chamada verdade a menos que existisse alguma outra coisa que é como

é, independentemente de como possamos pensar que seja.” (CP 7,659).

27 Explicaremos, brevemente, a abdução no tópico 3.1. 28 Para uma explicação sobre as doutrinas do Idealismo Objetivo e do Sinequismo, recomendamos, por

exemplo: IBRI, 1992 (particularmente os caps. 3 e 4); 2000b e 2010.

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Peirce concebe um mundo que resiste, independente de como desejamos que ele

fosse, de como o representamos, do que pensamos sobre ele (Cf. CP 5,565; 8,12),

manifestando-se como algo diverso de nós, que reage, ou, descontinua brutalmente à

nossa vontade, e permanece insistentemente sendo o que é, independentemente do

consentimento ou da contrariedade da nossa vontade (Cf. IBRI, 1992, 25 – 27).

A reação, a resistência, a insistência das coisas realmente existentes produzem

para a nossa consciência um sentido concomitantemente de dualidade e de

exterioridade, isto é, de que existe algo outro (alter) externo à nossa própria mente (Cf.

CP 6,327-328). Esse mundo externo, real, existente, carrega, desse modo, aquelas

características observadas por Peirce na fenomenologia, aglutinadas na classe de

fenômenos que chamou segundidade.

Assim, as categorias, descobertas nas investigações fenomenológicas, começam,

pela segundidade, a servir de ponte para alcançarmos uma hipótese (assumida de

maneira semelhante ao modo pelo qual as demais ciências positivas avançam)

explicativa para a existência da realidade exterior: nossas experiências das reações da

realidade existente (que, conforme dito, nos fazem perceber nossa própria existência),

são tão presentes que:

[...] concebemos que as outras coisas existem em virtude de suas

reações umas contra as outras. (CP 1,324 apud IBRI, 1992, p. 27).

Embora em toda experiência de reação, um ego, alguma coisa interna,

seja um membro do par, atribuímos, ainda, reações a objetos fora de

nós. Quando dizemos que uma coisa “existe”, queremos significar que

ela reage sobre outras coisas. [...] Esta é a nossa hipótese para explicar

os fenômenos – hipótese na qual, à semelhança das hipóteses de

trabalho de uma investigação científica, podemos crer como não sendo

absolutamente verdadeira, mas que é útil por nos tornar aptos a

conceber o que ocorre (CP 7,534). 29

Se por um lado, conforme dito, a realidade exteriormente existente insiste em ser

o que é, e cada vez que experimentamos sua reatividade vivenciamos uma nova

experiência imediata e instantânea, por outro lado, essa insistência nos incomoda e

incita a mediá-la, diminuindo sua força bruta reativa, através do conhecimento (do

29 Chamamos a atenção para a palavra “ocorre”, no final dessa citação. No original, “takes place”, aparece

também em outros contextos nos quais Peirce discorre acerca da hipótese de existência da realidade

exterior a partir de suas oposições. Ver, por exemplo: CP 7,538.

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pensamento, da representação), o qual, por sua vez, conforme dito, requer o transcurso

do tempo (Cf. CP 7,532; IBRI, 1992, p. 29-30).

Uma existência que dura ou permanece no tempo, todavia, submete-se à lei,

verte-se em algum tipo de hábito, regularidade (Cf. CP 1.411; ALMEIDA, 2011, p. 24,

nota 49); permitindo-se ser conhecida, representada, pela lembrança de seus caracteres

permanentes (que duraram, ou, se repetiram, desde o surgimento), e pela previsão de

seu comportamento futuro (a partir da crença em alguma permanência daqueles

caracteres), permitindo ao intelecto minimizar ou extinguir aquela resistência inicial

sentida na experiência do não-eu (Cf. IBRI, 1992, cap. 2, p. 29-30).

Ora, a insistência, permanência, duração, ou, a repetição de uma ou mais

reações, no transcurso do tempo, tende a minar sua força reativa, à medida que permite

ao intelecto produzir sobre ela(s) conhecimento. Ora, faz parte do ato de conhecer o ato

de generalizar. Através da metáfora do processo matemático dos produtos notáveis, nos

quais, nosso olhar busca o que há de comum nos diferentes termos da equação, Ibri

exemplifica a natureza da generalização. Conhecer uma fonte reativa, diminuindo seu

poder reacional, principia-se pela abstração, ou, generalização - mediante a memória, de

suas redundâncias - daquilo que essas reações tiveram de comum, regular, ou,

semelhante em suas manifestações; e corresponde à previsão da continuidade dessas

redundâncias nas manifestações futuras. Esse conhecimento permite ao eu guiar seu

procedimento no sentido de evitar o choque, a surpresa, a força, ou, a reação daquele

segundo (IBRI, Áudios).

A lei, enquanto princípio metafísico na filosofia de Peirce, corresponde a uma

generalidade real (cognitiva, contínua, terceira), atuante no mundo, que impregna em

diferentes particulares (reativos, descontínuos, segundos) aquilo que eles têm de

previsível, e comum entre si. Desse modo, erige-se mais uma hipótese metafísica: deve

ser a lei (terceira), geral e real, ou, o hábito, a permanência do mundo (inferida da

insistência da negação da segundidade) que consente ao pensamento produzir suas

generalizações, gerar seus conceitos, suas representações, seus conhecimentos, suas

previsões, isto é, mediar às relações entre um primeiro e um segundo (Cf. IBRI, 1992, p

29-31).

Conforme dito, a característica de ser outro (alteridade) é marca da segunda

categoria, identificada na ontologia com a existência. Essa característica, lembramos, é

o traço fundamental da realidade exterior. Poder-se-ia, então, perguntar: se as leis

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pertencem à terceira categoria, são elas reais (isto é, participam da constituição da

realidade)? Sim é a resposta, e, por pertencerem à realidade, marcadamente segunda,

conservam, além do caráter geral e mediador30 da terceiridade, a característica de se

manter outro para uma consciência (Cf. IBRI, 1992, p. 31), de resistir à suas

expectativas e desejos. Pensemos, por exemplo, na lei da gravidade. Ela rege a atração

dos corpos independentemente de nossos desejos ou do fato de a conhecermos ou não.

Se desejarmos erguermo-nos do chão e levitar, a existência (marcada pela segundidade)

e a lei geral (marcada pela terceiridade), na realidade, promoveriam, respectivamente, a

negação de nosso desejo e a previsão de nossa queda.

Uma vez admitindo-se que há a lei, como um princípio real de onde provem a

permanência, a regularidade e a generalidade das existências, isto é, um princípio

terceiro que permite à consciência estabelecer suas mediações entre um primeiro e um

segundo, parece-nos válido questionar: de onde, porém, advém a instantaneidade, a

irregularidade, a diferença, a novidade, a particularidade, a individualidade, a

multiplicidade e a imediatidade dessas existências? É o que perscrutaremos no capítulo

seguinte.

3. O ACASO COMO PRINCÍPIO ONTOLÓGICO31

Por que é que os homens – gritei – não podem falar de uma coisa sem logo

declarar: ‘Isto é insensato, aquilo é razoável, aquele outro é bom, isso ai é

mau’? De que servem todas essas palavras? Você já conseguiu, graças a

elas, penetrar as circunstâncias ocultas de uma ação? Sabe destrinçar com

rigorosa certeza as causas que a produzem, que a tornaram inevitável? Se

assim fosse, não enunciaria com tanta rapidez os seus julgamentos.

(GOETHE, J. W. V. 1971. p. 57)

A ciência pós-renascentista aderiu a um mecanicismo (IBRI, 1992, p. 44, § 2)

cuja crença em que “[...] todo fato no universo é precisamente determinado pela lei”

(CP 6.39) permite-nos assemelhá-lo a um determinismo ontológico (IBRI, 2011, p. 212,

nota 18), doutrina que crê num “[...] universo regido estritamente por uma estrutura

30 Aquilo que é geral possui a natureza da representação, à medida que medeia à relação entre um

primeiro e os particulares segundos. Ver a discussão sobre os universais em Ibri, 1992, cap. 2. 31 Sobre o título deste capítulo e, concomitantemente, deste Trabalho. Extraímo-lo do artigo de Ibri

(2000c), Sobre a incerteza, o qual já na introdução fala de “[...] toda uma construção de mundo que

reconhece um princípio de Acaso ontológico atuante na Natureza.” E, no fim da primeira seção, refere-se

“[...] à aleatoriedade do Acaso, como um princípio ontológico responsável pelos desvios em relação à

ordem.” Ambas as falas se dão num contexto de explicação da doutrina peirciana do Falibilismo.

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causal” (IBRI, 1992, p. 61). Permite-nos, também, assemelhá-lo ao materialismo

(ontológico, não o dialético de Marx - IBRI, 1992, p. 59, nota), que “[...] faz da matéria e

de suas leis o elemento primordial do universo” (IBRI, 1992, p. 61).

Apesar de afirmar-se cientista, matemático, físico e químico (Cf. CP 1.3), e de

enaltecer o método científico (CP 5.385 ss.), a admissão do acaso ontológico (doutrina

denominada pelo autor como Tiquismo – CP 6.74 apud IBRI, 1992, p. 40, nota 2), isto

é, do acaso como um dos fundamentos, “modos de ser”, ou, ainda, “princípios gerais”

(GHIZZI, 2014) da realidade (junto à existência e à lei), não permitiu a Peirce concordar

com o referido mecanicismo-determinismo (Cf. IBRI, 2000c) da ciência pós-

renascentista. Ao contrário, licitou-o assumir um indeterminismo ontológico (Cf. IBRI,

1992, cap. 3 – 5) no qual há uma porta aberta, na epistemologia, para a possibilidade de

surgimento do erro, ou seja, para o não absolutismo eterno da verdade; teoria que

chamou de Falibilismo (IBRI, 2000a, p. 32; 2000c) e que, posteriormente, influenciaria

o Falsificacionismo neopositivista de Popper (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 203).

Desse modo,

O acaso, associado à primeira categoria, foi concebido como um

princípio de liberdade do Cosmos, de pura possibilidade, capaz de

dotá-lo de imprevisibilidade ou de falibilidade. Isto é justamente o

que, nesse mesmo Cosmos, é contrário à lei ou ao princípio que está

por trás dos comportamentos habituais das coisas e que, por sua vez,

foi associado à terceira categoria. Tanto o acaso quanto a lei são

princípios gerais, não passíveis de experiência empírica (GHIZZI,

2014, p. 49).

Ora, se, em si mesmo, o Acaso primeiro não é “passível de experiência

empírica” (Ibidem), como Peirce, um cientista, pode concebê-lo? Cremos que a resposta

se funda naquela prerrogativa de que a metafísica peirciana se adjetiva científica

justamente porque, conforme dito, parte da observação direta dos fenômenos

(fenomenologia) para, então, inferir como “devem ser os fatos” (CP 1.287), a realidade

última, o mundo, o ser (IBRI, 1992, cap. 2). Acaso e lei, podem, então, serem inferidos

a partir da observação direta dos fenômenos atuais, existentes, factuais por eles

produzidos. Isso corresponde a dizermos que Acaso e lei podem ser concebidos

[...] quando atuam (se tornam ato) na existência, que foi concebida

como categoria metafísica associada à segundidade. Existente é tudo

aquilo que é factual e que reage; o mundo existencial tem como

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30

característica a alteridade em relação à nossa ou a qualquer outra

mente. A existência é, portanto, o modo pelo qual a lei e o acaso se

atualizam, tornam-se atos e se dão a conhecer empiricamente. O acaso

se dá a conhecer na diversidade com que as coisas constantemente nos

aparecem, enquanto que a lei se manifesta justamente nas

regularidades das coisas em meio à diversidade. (GHIZZI, 2014, p.

49)

Desse modo, o Acaso, um princípio afeito à primeiridade, é experimentado

quando age com a força da segundidade, a qual configura a principal categoria do

mundo real, ontológico, do mundo que independe das representações que dele

construímos e, por essa independência, pode contradizer nossas expectativas, objetar

nossos desejos, impondo-nos seu “ser outro”, diverso de nós mesmos, sua alteridade

(Cf. IBRI, 2012).

Assim, pela via da segundidade, o Acaso, princípio primeiro, se manifesta

através do novo, do surpreendente, do chocante, do desconhecido, daquilo que não pode

ser previsto por independer, ou, ser livre, de qualquer determinante causal anterior,

daquilo que é jovialmente vivo, irregularmente móvel, flexível à mudança de conduta

(IBRI, Áudios): “A ideia de Primeiro é predominante nas ideias de novidade, vida,

liberdade. Livre é aquilo que não tem outro atrás de si determinando suas ações [...]”

(CP 1.302).

Esse caminho para a descoberta do Acaso ontológico é coerente com a proposta

epistemológica da filosofia do autor, a qual previa partir da interioridade32 da ciência

fenomenológica para inferir a exterioridade33 da realidade metafísica. Esse método (do

grego metodós: caminho), a nosso ver, também não contradiz as quatro incapacidades

epistemológicas identificadas por Peirce.34 Ao contrário, parece-nos gritante a

coerência, por exemplo, com a afirmação de que “[...] todo conhecimento do mundo

interno deriva-se, por raciocínio hipotético, de nosso conhecimento de fatos externos.”

(PEIRCE, 2010, 260-261).

Com isso, pretendemos demonstrar que erigir uma hipótese sobre um princípio

ontológico (o Acaso) a partir dos fenômenos irregulares e inúmeros é algo coerente com

32 Usamos, aqui, “interioridade” em relação à mente humana, embora a fenomenologia de Peirce não seja

antropocêntrica, mas, transcenda a mente humana. 33 Usamos, aqui, “exterioridade” em relação ao mundo existente fora da mente humana, embora o

Idealismo Objetivo e o Sinequismo de Peirce expliquem o caráter real também de experiências internas à

mente humana, sobretudo, das experiências carregadas de segundidade (Cf. IBRI, 2000b; 2010). 34 O texto peirciano sobre as quatro incapacidades consta traduzido em PEIRCE, 2012. Para um

comentário, ver, por exemplo: IBRI, 2012.

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a metafísica peirciana, dita científica por fundar-se na fenomenologia. É coerente,

também, com a epistemologia de Peirce (ver IBRI, 2000c) e, ainda, com o

Pragmaticismo do autor, o qual “[...] é, tão somente, uma aplicação do único princípio

de lógica que foi recomendado por Jesus: ‘podemos conhecê-los pelos seus frutos’” (CP

5.402). Os fenômenos irregulares, seriam, nesse contexto pragmático, a nosso ver,

“frutos” experimentáveis do Acaso como princípio geral não empiricamente

experimentável.

Assim, o continuum potencial, ou, de inúmeras possibilidades que é o Acaso 35,

quando se atualiza irregularmente na existência, promove uma descontinuidade no

tempo, por emergir-se como algo não previsto, isto é, que não continua qualquer fato ou

regra antecedente (Cf. MADEIRA, 201436). Uma vez, porém, que o Acaso produziu

algo atual, existente, esse algo tende ao hábito, tende a permanecer sendo o que é, dura,

mantém seus caracteres no tempo, outorgando-nos representá-lo, conhecê-lo, ou seja,

produzir mediações entre nós e sua inicial força bruta (descontínua, sem nexo causal

com o passado, imprevista, segunda). Essas mediações exigem aquela permanência, ou,

duração, e constituem previsões (visões futuras) acerca do comportamento do objeto

atual (Cf. MADEIRA, 2014).

Olhamos a distribuição fortuita (aleatória) dos pigmentos róseos nas pétalas de

uma Azaléia, a irregularidade nos altos desenhos das nuvens e nas rasas pinceladas das

ondas na areia da praia; a impossibilidade da rígida previsão acerca da combinação dos

genes que produzirão o desenho do rosto de nossos filhos; a unicidade de nossas digitais

em meio a 6 bilhões de outras; a idiossincrasia das formas das copas de cada árvore em

meio a uma imensa floresta; o cotidiano remoldar de nossos planos devido à surpresa,

ao surgimento do novo; constatamos a impossibilidade do conhecimento total sequer

acerca de nosso dia seguinte. Resta-nos, epistemologicamente, inferir, ou, aceitar, “pela

ausência de qualquer razão em contrário” (expressão extraída de CP 7.521, citado à

35 Utilizamos, aqui, o adjetivo “inúmeras” (incontáveis) para evitarmos dizer “infinitas”, pois estamos

cientes, tal qual nos ensina IBRI, 1992, cap. 5, que, uma vez gerido este mundo (que não é outro possível,

mas, por exemplo, limita-se a três dimensões), a liberdade de ação do Acaso não é mais plenamente

infinita, ilimitada. 36 Agradecemos ao prof. Marcelo Silvano Madeira por nos ceder o acesso a esse artigo antes da sua

publicação.

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32

frente), que deve haver um princípio responsável pela primeiridade nos fenômenos

(IBRI)37:

[...] aquilo que é Primeiro é Acaso; e distribuição fortuita, isto é,

completa irregularidade, é a única coisa legítima para explicá-lo, pela

ausência de qualquer razão em contrário (CP 7.521). A liberdade só

pode se manifestar em variedade ilimitada e incontrolada, em

multiplicidade; e assim o primeiro se torna predominante nas ideias de

variedade ilimitada e multiplicidade (CP 1.302).

Enquanto a lei associa-se à causalidade, à necessidade de que os fatos a ela se

submetam, legitimando o conhecimento, isto é, a previsão de conduta (Cf. IBRI,

2000a), é impreciso dizer que o acaso seja causa de alguma coisa. As existências ou

fatos que dele proveem são, justamente, marcados pela não causalidade, a que

chamamos casualidade (IBRI, Áudios).

Para ilustrar isso, é válida a metáfora do jogo de dados, no qual cada face

“saída”, ou lançada, é casual, ou, um caso à parte, sem vínculo lógico-causal com a

anterior ou com a seguinte. Ainda que tenha saído pela terceira vez consecutiva a face

de número três, há qualquer necessidade de que a próxima jogada trará a mesma face?

Ou outra específica? Os fatos provenientes do Acaso possuem uma relação

desnecessária, casual, não devem conformidade a nada; são independentes como cada

um dos lances do jogo de dados (analogia extraída de IBRI, Anotações).

Sob o prisma da temporalidade, cada lance desse dado, assim como cada novo

formato de copa de árvore, é, de algum modo, um hiato no tempo 38; ou seja, é

presentidade, pois, como já dito, não possui relação com a jogada passada ou futura.

Todo vínculo causal, necessário, requer um mínimo de elementos, um como causa e

outro como efeito; requer ao menos dois instantes, requer o outro. De modo que, à

medida que o Acaso, princípio primeiro indeterminado, produz determinada jogada, à

medida que ocorre essa face do dado, que não é aquela outra, já temos, aí, um evento da

segundidade, dotado de “istidade”.39 Toda ocorrência já é um isto e não aquilo outro.

37 Consolidação de anotações em sala de aula referentes aos cursos de pragmatismo e semiótica filosófica

ministrados na Faculdade de São Bento de São Paulo, entre os anos de 2011 e 2012. Doravante citadas:

Anotações. 38 A expressão “hiato no tempo” foi emprestada de IBRI, 2011. 39 Qualidade de ser isto, que não é aquilo. Ver “istidade (thisness)”, ou “aquelidade (thatness)”, em CP

1.341.

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33

No jogo de dados, temos sim um espaço para a liberdade primeira, mas dentro

de uma regra geral (terceira). Embora cada ocorrência seja imprevisível, a realidade do

dado objetivo, ou do conceito de dado, limita a possibilidade e nos permite prever que

as ocorrências não fugirão ao número finito das “seis” faces. Da mesma forma, tendo

passado a existir este mundo, que não é nenhum dos outros que poderiam ter vindo a

existir, o Acaso é uma liberdade de algum modo restrita. Em nosso mundo atual, o

Acaso não pode, por exemplo, fazer surgir algo que possua mais de três dimensões (a

tridimensionalidade é uma das características deste universo, ou, ao menos, da parte do

universo na qual estamos) (Cf. IBRI, 1992, cap. 5). É impossível prever com exatidão a

quantidade de mangas que dará esta mangueira, mas não é razoável prever que ela dará

jacas, ou outra fruta que não seja manga. Em sua Cosmologia, Peirce conjecturará

acerca de um início (anterior às categorias e a este mundo) no qual a liberdade era

infinita (Cf. IBRI, 1992, cap. 5).

Por outro lado, a simetria entre a diversidade do mundo (na ontologia) e a

“irrepetibilidade” de cada sentimento (na fenomenologia) remetem a um “pano de

fundo” comum entre a realidade externa e interna, entre a mente humana e o cosmos:

“A primeiridade e o acaso correspondem àquela liberdade da mente para experienciar os

sentimentos mais íntimos em relação às coisas, livres de qualquer imposição, únicos no

momento em que aparecem e sempre diversos de qualquer outro.” (GHIZZI, 2014, p.

50). Este “pano de fundo” comum é descoberto pelo Sinequismo (doutrina do

continuum) e pelo Idealismo Objetivo (doutrina que postula a conaturalidade entre

mente e matéria), teorias peircianas cujas explicações transbordariam o escopo deste

Trabalho.40

Esperamos haver apresentado o lugar e a importância da doutrina ontológica

sobre o acaso (tiquismo), no interior da filosofia de Peirce, e dentro dos limites de um

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação). O que foi estudado até aqui pode lançar

alguma luz sobre outras temáticas na obra do autor e de outros autores? Ora, não cremos

que nossa pesquisa tenha gerado luz o bastante para responder, mas suficiente para

propor, implícita ou explicitamente, essa e outras questões, conforme indica o tópico a

seguir.

40 Para textos que abordam essas duas doutrinas, ver nota 26, p. 24 deste Trabalho.

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3.1. Possíveis luzes difundidas sobre outras temáticas em Peirce e noutros

autores, a partir deste estudo do Acaso 41

Sobre a interpretação errônea do conceito de representação no neopragmatismo, e

sobre os enunciados das ciências positivas contemporâneas.

Richard Rorty, reconhecido como um dos pais do assim chamado

neopragmatismo, concebe seu conceito de representação como “um espelho perfeito de

algum objeto” (IBRI, 2012). Segundo Ibri (Ibidem), tal conceito, advindo do

iluminismo, é “totalmente inadequado não só para a filosofia de Peirce, como também

para a concepção contemporânea das teorias positivas em geral”. Isso, entre outros

motivos, porque a filosofia de Peirce e as atuais Ciências Positivas contemporâneas

guardam em seus enunciados um espaço para o Acaso, associado a “uma visão

indeterminista de mundo” (ibidem). Por isso, observamos, por exemplo, um recente

exame biológico afirmar certa paternidade com uma probabilidade de 99,9 por cento; ou

vemos, cada vez mais frequentes, afirmações científicas do tipo: “A é B com uma

probabilidade de X por cento” (IBRI, Áudios). Ora, seria possível, mediante uma análise

mais detida, apontar Peirce como um dos pioneiros da visão de mundo presente nas

referidas ciências positivas contemporâneas?

Sobre a distinção entre o evolucionismo de Peirce e o evolucionismo de Charles

Darwin.

Parece dever-se, entre outros motivos, ao tiquismo a distinção entre o

evolucionismo peirciano e o evolucionismo de Darwin (Cf. IBRI, 2013). Para este,

apenas o princípio ontológico do acaso responderia, grosso modo, pelo surgimento das

novas espécies, através de mutações genéticas, ou, novidades individuais, que,

casualmente favorecidas pelo meio, produziriam, através do tempo (e de muito tempo),

41 Neste tópico nosso desejo não é o de nos aprofundarmos em nenhum dos temas tangenciados. Como

não é o de dar respostas mais que o de levantar questões sobre a proximidade entre o tiquismo e outras

temáticas. Questões que se nos apresentaram durante nossa pesquisa, que não pertenciam à finalidade do

texto, e que ainda não possuem robustez suficiente para constituírem, cada uma, um tópico à parte, mas

que, juntas, sublinham a provável relevância e alcance do tema em relação a outras temáticas. Questões

que, talvez, fomentem pesquisas posteriores.

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o desaparecimento dos indivíduos que não mudaram e a configuração de uma nova

espécie a partir daqueles que herdaram a característica favorável (Cf. DARWIN, 2003).

A cosmologia de Peirce, por sua vez, como vimos, adere não apenas ao acaso

(primeiridade) como princípio atuante na realidade, mas também à lei (terceiridade) e à

existência (segundidade). Para Peirce, é o acaso que responde pelo surgimento do novo,

mas não pelo “pôr em relação”, resultante nas novas espécies (Cf. IBRI, 2013). Em

acordo com a posição peirciana, poderíamos afirmar que, se houvesse apenas o Acaso

atuando na natureza, ela seria caótica, puro reino da dissimilaridade (IBRI, Áudios).

Ora, se, além do diverso, no mundo há o semelhante; se há, no cosmos, a ordem

(com perdão pela redundância semântica entre “ordem” e a filologia de “cosmos”), há

regularidade, há a permissão razoável da previsão da conduta dos seres; se, da

mangueira não nascem jacas; é por que nem tudo deriva do acaso, mas sofre, também, a

ação de outro princípio, coagulante, aglutinador, “reunidor”, agápico; que aproxima os

diferentes por afeição ou por afetação, por sentimento ou por necessidade lógica: há a

lei, ou, a tendência ao hábito (Cf. IBRI, 2013). 42

Sobre a ontologia da Arte.

Ora, a nosso ver, e nos baseando nos textos de Ibri, deve-se à relação entre

primeiridade, Acaso e arte a afirmação peirciana de que “[...] nada é mais verdadeiro do

que a verdadeira poesia.” (CP 1.315) 43. A dita “verdade” da poesia, ou da arte em geral,

não se deve à correspondência entre o que se afirma sobre o objeto e o que esse objeto

realmente é em si mesmo, como pressupõe o conceito tradicional de verdade no

Realismo. “Verdade”, nessa proposição, parece apontar para o caráter primeiro da arte,

a qual pode manifestar-se livre em relação a algo que lhe seja exterior, a algo segundo,

42 Neste interessante artigo, ao apontar o recurso peirciano à ambiguidade semântica da língua inglesa em

relação ao termo “affection”, Ibri desvela o espaço da primeiridade nessa relação agápica, aglutinadora, a

saber, o espaço da aglutinação pela afeição (relacionada ao sentimento). Desvela, ainda, o espaço da

terceiridade, categoria que também aglutina, coagula, reúne, mas através da afetação (relacionada à

causalidade). 43 O trecho inteiro diz: “Ouvi você dizer: ‘Nada disso é fato; é poesia.’ Nonsense! Má poesia é falsa, eu

aceito; mas nada é mais verdadeiro do que a verdadeira poesia. E deixe-me dizer aos homens da ciência

que os artistas lhes são muito melhores e mais acurados observadores, exceto em relação à minúcia

especial que o cientista procura.” Tradução livre do original sem grifos: “I hear you say: ‘All that is not

fact; it is poetry.’ Nonsense! Bad poetry is false, I grant; but nothing is truer than true poetry. And let me

tell the scientific mem that the artists are much finer and accurate observers than they are, except of the

special minutiae that the scientific man is looking for.” (CP 1.315).

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bem como, em relação às leis da natureza, representantes da terceiridade (Cf. IBRI,

2009; 2011). Ao artista escritor de um conto, por exemplo, basta tintar o papel para que

sua vontade de morte ou transformação da vida de algum personagem aconteça, ou

mesmo para que um ser humano transmute-se numa barata. Não há, aqui, a força da

realidade segunda que nega nossos desejos e denuncia a falsidade de nossas asserções.

Há, tampouco, a força constrangedora das leis que, por exemplo, impedem que algo não

caia em direção ao centro da Terra quando destituído de suporte sob a superfície desse

planeta (Cf. IBRI, 1992, p. 28-29 e Áudios). Não há, na contemplação da genuína arte,

algo exterior que fundamente uma afirmação de falsidade acerca dessa experiência.

Em síntese, parece ser essa a intenção semântica da citada passagem sobre a arte

(CP 1.315): por constituir uma criação livre, por não possuir um anterior que a

determine, por não se preocupar em afirmar nada sobre a realidade, as manifestações

artísticas podem, em “verdade”, dizer o que quiserem e, ao menos que nós às

comparemos a algo real, permanecerão, em si mesmas, o que são (Cf. IBRI, Áudios).

Deixando-nos desprovidos de critério que as legitime julgar falsas (ao pé da letra, a

nosso ver, tampouco verdadeiras). Disso dizemos que a arte possui um caráter icônico,

sem obrigação de indicar (ou, indiciar) nem de simbolizar nada (SANTAELLA, 2005)

44.

Ora, se as novidades artísticas não se vinculam ao continuum das leis, donde

provém? Assim como a irregularidade imprevisível das formas das nuvens e a

distribuição fortuita dos pigmentos das pétalas da Azaléia, a liberdade, ou,

“indomabilidade” dos improvisos das “verdadeiras” obras de arte, proviriam daquele

continuum de possibilidades a que Peirce chamou de Acaso? Proviriam daquele

conntinuum do qual toda existência atual livremente adveio (Ver IBRI, 1992, cap. 4-5)?

São perguntas que não pretendemos aqui responder. 45

Sobre a abdução.

44 Ver, também, definições de ícone, índice e símbolo em SANTAELLA, 1983. 45 Sobre essas questões, ao interessado, indicamos IBRI, 2009; 2011 e 1992, cap. 3.

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37

Segundo Santaella (2005), a dedução está para a terceiridade, enquanto a

indução é parente da segundidade e a abdução se aproxima da primeiridade. 46 Faria,

então, sentido inquirir se há algum vínculo entre a abdução e o Acaso?

Reynolds, parece, responderia negativamente a essa pergunta:

Como um modelo de conjectura “espontâneo”, a abdução parece, à

primeira vista, ser em grande medida compatível ao paradigma da

contingência que subjaz à teoria do tiquismo. E, no entanto, nada

poderia estar mais longe da verdade. Sem dúvida, para Peirce, a

abdução está muito distante do modelo epicurista de acaso que

alimenta seu tiquismo. (REYNOLDS, 2006. p. 214).

Oliveira, entretanto, ao buscar a fonte do conceito peirciano de abdução,

remonta, de modo muito bem fundamentado, à absignificação aristotélica, afirmando

que:

A escolha de “absignificação” se justifica em função de ser um

processo significativo fruto do acaso e da intuição, diferentemente dos

processos da significação, calcados na indução, e da consignificação,

fundamentada na dedução; outra justificativa é a relação que esse

processo guarda com a abdução de Peirce. (OLIVEIRA, R. L. P. F. de,

nota 1). (Sem grifos no original).

Em vista dos limites de nossa Pesquisa e da finalidade anunciada para este

tópico, limitamo-nos a apresentar, sucintamente, a abdução como “[...] a única operação

lógica que introduz uma ideia nova [...]” (CP 5.171); constituinte de um “argumento

originário” (PEIRCE, 2008, p. 30), “geralmente denominado de adoção de uma

hipótese” (Ibidem), cujo “eterno exemplo” vem de Kepler, cientista que, num certo

estágio de sua pesquisa, como que por insight, inferiu que “as longitudes observadas de

Marte, que durante muito tempo ele tentara inutilmente ajustar a uma órbita, eram tais

(dentro dos limites possíveis de erro nas observações) como seriam se Marte se movesse

numa elipse.” (Ibidem).

Do lado de Reynolds (2006), e embasados em Ibri (Áudios), reconhecemos que

uma ideia nova, originada para resolução de um problema antigo (abdução), não nos

parece absolutamente livre, primeira, pois requer algum prévio conhecimento do

mundo, requer a anterior existência de algumas ideias claras que a abdução não cria,

46 Sobre as três formas de argumento, ver, por exemplo: IBRI, 1992, cap. 7; PEIRCE, 2008.

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mas apenas associa de um modo novo e heurístico (solucionador). Devido a essa relação

com os conhecimentos prévios, embora nasça repentinamente, o insight não representa à

pura presentidade da primeiridade, pois se vincula ao passado (às ideias pré-

conhecidas), e quer afirmar algo sobre o futuro (todo conhecimento quer afirmar algo

sobre o futuro). A abdução é, assim, algo imediato (repentino) mediando ideias pré-

existentes (IBRI, Áudios). Do ponto de vista de Oliveira (2010), todavia, assumimos

que a hipótese abduzida não se submete a uma lei de surgimento, a uma regra de

conduta. Não pode, assim, ser prevista. Logo, parece guardar algo da liberdade primeira

do Acaso.

Sobre os temas: da nomeação e de Deus.

Para Albert Einsten, “Deus não joga dados” (EINSTEIN apud IBRI, Áudios),

isto é, a concepção ontológica de acaso seria inadmissível num universo criado por um

Deus inteligente. Essa posição manifesta a crença num cosmo “estritamente regido por

leis físicas acabadas” (IBRI, 1992, p. 44), cuja progressão “do conhecimento desfaria a

indeterminação da representação” (Ibidem). Posicionamento, esse, que remete a uma

tradicional visão de Deus revelado na inteligência inerente à sua criação, na ordem

matemática e cognoscível do cosmos, mas não na irregularidade desse cosmos (IBRI,

Áudios).

Por uma via atípica, próxima de uma visão proposta pelo romantismo panteísta

de Schelling47, Peirce apresenta-nos uma possibilidade de inferir Deus pela noção do

infinito presente na dessemelhança inumeravelmente variada da realidade, advinda do

Acaso (Cf. PEIRCE, 2003), que, geralmente, não é objeto da atenção da mente

cognoscitiva, a qual sequer nomeia o dessemelhante (IBRI, 2011).

Costumamos nomear as coisas por sua similaridade, regularidade, provinda da

lei, mas não por sua dessemelhança. Damos, por exemplo, o nome “jaboticabeira” a esta

árvore a partir de suas semelhanças em relação a outras árvores. Fazemos isso

recorrendo à memória e prevendo a conduta futura do objeto (no caso, da jabuticabeira).

No nome “jabuticabeira” está contida, por exemplo, a previsão de que esta árvore dará

jabuticabas, ou, se estéril, que ao menos não lhe brotarão mamões. Essa nomeação, no

47 Sobre a influência de Schelling a Peirce, ver, por exemplo, IBRI, 2000c e 2008.

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entanto, não está preocupada com o fato de nenhuma copa repetir outra. Nessa

nomeação não há espaço para a idiossincrasia, para a dissimilaridade, para a

particularidade. Não há espaço àquilo que faz esta jaboticabeira ser única, desigual a

todas as outras num mesmo jaboticabal (IBRI, Áudios).

Quando, num instante, apontamos para esta árvore e enunciamos: “esta árvore é

uma jabuticabeira”, vivenciamos uma experiência cognitiva (da terceiridade),

semelhante ao ver do cientista, que reconhece (através do passado) e prevê (para o

futuro). Quando, noutro instante, simplesmente olhamos sua idiossincrasia, permitindo à

nossa mente impregnar-se e, de algum modo, tornar-se una às suas qualidades,

vivenciamos uma experiência contemplativa (primeira) de pura presentidade,

semelhante ao ver do artista (Cf. IBRI, 1992, cap 1; SOARES, 2013, cap. 3).

A ontologia materialista-determinista (sem o Acaso), na qual o universo “[...] é

mero resultado mecânico da ação da lei cega [...] é uma filosofia que não deixa espaço

para um Deus!” (CP 1.162), pois, se tudo acontece absolutamente devido às leis da

mecânica, “e todo o universo não passa de uma máquina sem limites trabalhando por

essas leis cegas” (Ibidem), então, Deus está relegado ao ócio, sem nenhuma

possibilidade de influência sobre nada (Cf. CP 1.162). “A mais óbvia de todas as suas

[do universo] características não pode ser assim explicada. É a multiplicidade dos fatos

de todas as experiências que nos mostram isso [que o universo não é um mero resultado

mecânico da ação da lei cega].” (CP 1.162).

Noutro viés, uma concepção de Deus relacionada ao Acaso dá-lhe um espaço

lógico para agir, confere maior sentido à oração de súplica, à crença em Sua

intervenção. Intervenção que, numa fé determinista-materialista-mecanicista, que

apenas creia na inteligência, no destino, no totalmente previsto, enfim, numa fé que

desconsidere o Acaso, não pode acontecer sem um contraditório romper das leis

necessárias que regem uma causalidade absoluta (IBRI, Áudios).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A figura abaixo intenciona ilustrar a sistematização, o afunilamento temático e

os objetivos de pesquisa pretendidos neste Trabalho:

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A Classificação das Ciências

A Fenomenologia

O Acaso

Possíveis relações entre a doutrina do acaso e outras temáticas

A imagem de um cone circular reto que se encontra com outro do mesmo tipo,

mas com sua base para baixo, foi como entendemos e intencionamos apresentar neste

Trabalho algumas áreas do pensamento de Charles S. Peirce. A “boca” do cone superior

representa a porta escolhida para adentrarmos a sistematização da obra do autor: sua

classificação das ciências, através da qual chegamos à Fenomenologia. Situada no

centro do cone, essa ciência forneceu-nos, através do estudo das categorias, o arcabouço

conceitual para a caracterização do Acaso como um princípio ontológico. No vértice de

nossa figura, e do presente Trabalho, a doutrina do Acaso (tiquismo), à medida que

encerra o afunilamento temático intencionado, serve de abertura para algumas

investigações introdutórias sobre outras temáticas da obra do autor, e de outros

filósofos, tais como: o conceito de representação, ciências positivas contemporâneas,

evolucionismo, agapismo, arte, abdução, Deus. Esses temas poderão subsidiar futuras

continuidades aprofundadoras do presente Trabalho.

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