antes do baile verde - lygia fagundes telles

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    Sobre a obra:

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    Sobre ns:

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    Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel.

  • LygiaFagundesTellesAntes doBaile VerdeContos

    POSFCIO DE

    Antonio Dimas

  • Para meu filho Goffredo

  • Sumrio

    ANTES DO BAILE VERDE

    Os ObjetosVerde Lagarto AmareloApenas um SaxofoneHelgaO Moo do SaxofoneAntes do Baile VerdeA CaadaA ChaveMeia-Noite em Ponto em XangaiA JanelaUm Ch Bem Forte e Trs XcarasO Jardim SelvagemNatal na BarcaA CeiaVenha Ver o Pr do SolEu Era Mudo e SAs ProlasO Menino

    SOBRE LYGIA FAGUNDES TELLES E ESTE LIVRO

    Posfcio Garras de Veludo, Antonio DimasCarta Carlos Drummond de AndradeDepoimento A Beleza Secreta da Vida,Urbano Tavares RodriguesA Autora

  • Antes doBaile Verde

  • Os Objetos

    Finalmente pousou o olhar no globo de vidro e estendeu a mo. To transparente. Parece uma bolha de sabo, mas sem aquele colorido de

    bolha refletindo a janela, tinha sempre uma janela nas bolhas que eu soprava. Omelhor canudo era o de mamoeiro. Voc tambm no brincava com bolhas? Hein,Lorena?

    Ela esticou entre os dedos um longo fio de linha vermelha preso agulha. Deuum n na extremidade da linha e, com a ponta da agulha, espetou uma conta dacaixinha aninhada no regao. Enfiava um colar.

    Que foi?Como no viesse a resposta, levantou a cabea. Ele abria a boca, tentando

    cravar os dentes na bola de vidro. Mas os dentes resvalavam, produzindo o somfragmentado de pequenas castanholas.

    Cuidado, querido, voc vai quebrar os dentes!Ele rolou o globo at a face e sorriu. A eu compraria uma ponte de dentes verdes como o mar com seus

    peixinhos ou azuis como o cu com suas estrelas, no tinha uma histria assim?Que que era verde como o mar com seus peixinhos?

    O vestido que a princesa mandou fazer para a festa.Lentamente ele girou o globo entre os dedos, examinando a base pintalgada

    de cristais vermelhos e verdes. Como um campo de flores. Para que serve isto, Lorena? um peso de papel, amor. Mas se no est pesando em nenhum papel estranhou ele, lanando um

    olhar mesa. Pousou o globo e inclinou-se para a imagem de um anjo dourado,deitado de costas, os braos abertos. E este anjinho? O que significa esteanjinho?

    Com a ponta da agulha ela tentava desobstruir o furo da conta de coral.Franziu as sobrancelhas.

    um anjo, ora. Eu sei. Mas para que serve? insistiu. E apressando-se antes de ser

    interrompido: Veja, Lorena, aqui na mesa este anjinho vale tanto quanto o pesode papel sem papel ou aquele cinzeiro sem cinza, quer dizer, no tem sentidonenhum. Quando olhamos para as coisas, quando tocamos nelas que comeam aviver como ns, muito mais importantes do que ns, porque continuam. O cinzeirorecebe a cinza e fica cinzeiro, o vidro pisa o papel e se impe, esse colar que voc

  • est enfiando um colar ou um tero? Um colar. Podia ser um tero? Podia. Ento voc que decide. Este anjinho no nada, mas se toco nele vira

    anjo mesmo, com funes de anjo. Segurou-o com fora pelas asas. Quais soas funes de um anjo?

    Ela deixou cair na caixa a conta obstruda e escolheu outra. Experimentou ofuro com a ponta da agulha.

    Sempre ouvi dizer que anjo o mensageiro de Deus. Tenho ento uma mensagem para Deus disse ele e encostou os lbios na

    face da imagem. Soprou trs vezes, cerrou os olhos e moveu os lbiosmurmurejantes. Tateou-lhe as feies como um cego. Pronto, agora sim, agora um anjo vivo.

    E o que foi que voc disse a ele? Que voc no me ama mais.Ela ficou imvel, olhando. Inclinou-se para a caixinha de contas. Adianta dizer que no verdade? No, no adianta. Colocou o anjo na mesa. E apertou os olhos molhados

    de lgrimas, de costas para ela e inclinado para o abajur. Veja, Lorena, vejaOs objetos s tm sentido quando tm sentido, fora disso Eles precisam serolhados, manuseados. Como ns. Se ningum me ama, viro uma coisa ainda maistriste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio,vazio. o peso de papel sem papel, o cinzeiro sem cinza, o anjo sem anjo, ficoaquela adaga ali fora do peito. Para que serve uma adaga fora do peito? perguntou e tomou a adaga entre as mos. Voltou-se, subitamente animado. rabe, hein, Lorena? Uma meia-lua de prata to aguda Fui eu que descobri estaadaga, lembra? Estava na vitrina, quase escondida debaixo de uma bandeja,lembra?

    Ela tomou entre as pontas dos dedos o fio de coral e balanou-o nummovimento de rede.

    Ah, no fale isso! Se voc soubesse como gostei daquela bandeja, acho quenunca mais vou gostar de uma coisa assim Se pudesse, tomava j um avio,voltava l no antiqurio do grego barbudo e saa com ela debaixo do brao. Asalas eram cobrinhas se enroscando em folhas e cips, umas cobrinhas comorelhas, fiquei apaixonada pelas cobrinhas.

    Mas por que voc no comprou? Era carssima, amor. Nossos dlares estavam no fim, o pouco que restou s

  • deu para essas bugigangas. Fale baixo, Lorena, fale baixo! suplicou ele num tom que a fez levantar a

    cabea num sobressalto. Tranquilizou-se quando o viu sacudindo as mos, afetandopnico. Chamar a adaga e o anjo de bugigangas, que isso! O anjo vai correndocontar para Deus.

    No um anjo intrigante advertiu, encarando-o. E antes que meesquea, voc diz que se ningum nos ama, viramos coisa fora de uso, semnenhuma significao, certo? Pois saiba o senhor que muito mais importante doque sermos amados amar, ouviu bem? o que nos distingue desse peso de papelque voc vai fazer o favor de deixar em cima da mesa antes que quebre, sim?

    O vidro j est ficando quente disse e fechou o globo nas mos. Levou-oao ouvido, inclinou a cabea e falou brandamente como se ouvisse o que foidizendo: Quando eu era criana, gostava de comer pasta de dente.

    Que marca? Qualquer marca. Tinha uma com sabor de hortel, era ardido demais e eu

    chorava de sofrimento e gozo. Minha irmzinha que tinha dois anos comia terra.Ela riu. Que famlia!Ele riu tambm, mas logo ficou srio. Sentou-se diante dela, juntou as pernas

    e colocou o globo nos joelhos. Cercou-o com as mos em concha, num gesto deproteo. Inclinou-se, bafejando sobre o globo.

    Lorena, Lorena, uma bola mgica!Voltada para a luz, ela enfiava uma agulha. Umedeceu a ponta da linha,

    ergueu a agulha na altura dos olhos estrbicos na concentrao e fez a primeiratentativa. Falhou. Mordiscou de novo a linha e com um gesto incisivo foiaproximando a linha da agulha. A ponta endurecida do fio varou a agulha semobstculo.

    A cpula. Que foi? perguntou ela, relaxando os msculos. Voltou-se satisfeita para

    a caixa de contas. Que foi, amor?Ele cobriu o globo com as mos. Bafejou sobre elas. uma bola de cristal, Lorena murmurou com voz pesada. Suspirou

    gravemente. Por enquanto s vejo assim uma fumaa, tudo to embaado Insista, Miguel. No est clareando? Mais ou menos espera, a fumaa est sumindo, agora est to mais claro,

    puxa, que ntido! O futuro, Lorena, estou vendo o futuro! Vejo voc numa sala esta sala! Voc est de vermelho, conversando com um homem.

    Que homem?

  • Espera, ele ainda est um pouco longe Agora vejo, seu pai. Ele estaflito e voc procura acalm-lo.

    Por que est aflito? Porque ele quer que voc me interne e voc est resistindo, mas to sem

    convico. Voc est cansada, Lorena querida, voc est quase chorando e diz queestou melhor, que estou melhor

    Ela endureceu a fisionomia. Limpou a unha com a ponta da agulha. E da? Da seu pai disse que no melhorei coisa nenhuma, que no h esperana

    repetiu ele inclinando-se, as mos nos olhos em posio de binculo postado noglobo. Espera, est entrando algum de modo to esquisito eu, sou eu! Estouentrando de cabea para baixo, andando com as mos, plantei uma bananeira eno consegui voltar.

    Ela enrolou o fio de contas no pescoo, segurando firme a agulha para ascontas no escaparem. Riu, alisando as contas.

    Plantar bananeira justo nessa hora, amor? Por que voc no ficoucomportadinho? Hum? E o que foi que meu pai fez?

    Baixou a cabea para no me ver mais. Voc ento me olhou, Lorena. E noachou nenhuma graa em mim. Antes voc achava.

    Vagarosamente ela foi recolhendo o fio. Deslizou as pontas dos dedos pelascontas maiores, alinhando-as.

    Fico sempre com medo que voc desabe e quebre o vaso, os copos. Edepois, cai tudo dos seus bolsos, uma desordem.

    Ele recolocou o peso na mesa. Encostou a cabea na poltrona e ficou olhandopara o teto.

    Tinha um lustre na vitrina do antiqurio, lembra? Um lustre divertido, cheiode pingentes de todas as cores, uns cristaizinhos balanando com o vento, blim-blim Estava ao lado da gravura.

    Que gravura? Aquela j carunchada, tinha um nome pomposo, Os Funerais do Amor, em

    italiano fica bonito, mas no sei mais como em italiano. Era um cortejo debailarinos descalos carregando guirlandas de flores, como se estivessem indo parauma festa. Mas no era uma festa, estavam todos tristes, os amantes separados echorosos atrs do amor morto, um menininho encaracolado e nu, estendido numarede. Ou num coche? Tinha flores espalhadas pela estrada, o cortejo ia indo poruma estrada. Um fauno menino consolava a amante to plida, to dolorida

    Ela concentrou-se. Esse quadro estava na vitrina?

  • Perto do lustre que fazia blim-blim. No sei, mas assim como voc descreveu triste demais. Juro que no

    gostaria de ter um quadro desses em casa. Mais triste ainda era o ano. Tinha um ano na gravura? No, ele no estava na gravura, estava perto. Mas era um ano de jardim? No, era um ano de verdade. Tinha um ano na loja? Tinha. Estava morto, um ano morto, de smoking, o caixo estava na

    vitrina. Luvas brancas e sapatinhos de fivela. Tudo nele era brilhante, novo, s asrosas estavam velhas. No deviam ter posto rosas assim velhas.

    Eram rosas brancas? perguntou ela guardando o fio de contas na caixa.Baixou a tampa com um baque metlico. Eram rosas brancas?

    Brancas. As rosas brancas murcham mais depressa. E fazia calor.Ele inclinou a cabea para o peito e assim ficou, imvel, os olhos cerrados, as

    plpebras crispadas. O cigarro apagou-se entre seus dedos. Lorena Hum? Vamos tomar um ch. Um ch com biscoitos, quero biscoitos.Ela levantou-se. Fechou o livro que estava lendo. timo, fao o ch. S que o biscoito acabou, posso arrumar umas torradas,

    bastante manteiga, bastante sal. Hum? Eu vou comprar os biscoitos disse ele, tomando-lhe a cabea entre as

    mos. Minha linda Lorena. Biscoitos para a linda Lorena.Ela desvencilhou-se rpida. Vou pr gua para ferver. Pega o dinheiro, est na minha bolsa. No armrio? No, em cima da cama, uma bolsa verde.Ele foi ao quarto, abriu a bolsa e ficou olhando para o interior dela. Tirou o

    leno manchado de ruge. Aspirou-lhe o perfume. Deixou cair o leno na bolsa,colocou-a com cuidado no mesmo lugar e voltou para a sala. Pela portaentreaberta da cozinha pde ouvir o jorro da torneira. Saiu pisando leve. Noelevador, evitou o espelho. Ficou olhando para os botes, percorrendo com o dedoum por um at chegar ao boto preto com a letra T, invisvel de to gasta. Oelevador j descia e ele continuava com o dedo no boto, sem apert-lo, mas

  • percorrendo-o num movimento circular, acariciante. Quando ela gritou, s seusolhos se desviaram na direo da voz vindo l de cima e tombando j meioapagada no poo.

    Miguel, onde est a adaga?! Est me ouvindo, Miguel? A adaga!Ele abriu a porta do elevador. Est comigo.O porteiro ouviu e foi-se afastando de costas. Teve um gesto de exagerada

    cordialidade. Uma bela noite! Vai passear um pouco?Ele parou, olhou o homem. Apressou o passo na direo da rua.

  • Verde Lagarto Amarelo

    Ele entrou com seu passo macio, sem rudo, no chegava a ser felino: apenas umandar discreto. Polido.

    Rodolfo! Onde est voc? Dormindo? perguntou quando me viu levantarda poltrona e vestir a camisa. Baixou o tom de voz. Est sozinho?

    Ele sabe muito bem que estou sozinho, ele sabe que sempre estou sozinho. Estava lendo. Dostoivski?Fechei o livro e no pude deixar de sorrir. Nada lhe escapava. Queria lembrar uma certa passagem S que est quente demais, acho que

    este o dia mais quente desde que comeou o vero.Ele deixou a pasta na cadeira e abriu o pacote de uvas roxas. Estavam to maduras, olha s que beleza disse tirando um cacho e

    balanando-o no ar como um pndulo. Prova! Uma delcia.Com um gesto casual, atirei meu palet em cima da mesa, cobrindo o

    rascunho de um conto que comeara naquela manh. J tempo de uvas? perguntei colhendo um bago.Era enjoativo de to doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa

    sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da lngua pude sentir a sementeapontando sob a polpa. Varei-a. O sumo cido inundou-me a boca. Cuspi asemente: assim queria escrever, indo ao mago do mago at atingir a sementeresguardada l no fundo como um feto.

    Trouxe tambm uma coisa Mostro depois.Encarei-o. Quando ele sorria ficava menino outra vez. Seus olhos tinham o

    mesmo brilho mido das uvas. Que coisa? Mas se eu j disse que surpresa! Mostro depois.No insisti. Conhecia de sobra aquela antiga expresso com que vinha me

    anunciar que tinha algo escondido no bolso ou debaixo do travesseiro. Acabavasempre por me oferecer seu tesouro: a ma, o cigarro, a revistinha pornogrfica, opacote de suspiros, mas antes ficava algum tempo me rondando com aquele ar desecreto deslumbramento.

    Vou fazer um caf anunciei. S se for para voc, tomei h pouco na esquina.Era mentira. O bar da esquina era imundo e para ele o caf fazia parte de um

  • ritual nobre, limpo. Dizia isso para me poupar, estava sempre querendo me poupar. Na esquina? Quando comprei as uvasMeu irmo. O cabelo louro, a pele bronzeada de sol, as mos de esttua. E

    aquela cor nas pupilas. Mame achava que seus olhos eram cor de violeta. Cor de violeta? Foi o que ela disse tia Dbora, meu filho Eduardo tem os olhos cor de

    violeta.Ele tirou o palet. Afrouxou a gravata. Como que so olhos cor de violeta? Cor de violeta eu respondi abrindo o fogareiro.Ele riu apalpando os bolsos do palet at encontrar o cigarro. Meu Deus, tinha um canteiro de violetas no jardim de casa No eram

    violetas, Rodolfo? Eram violetas. E uma parreira, lembra? Nunca conseguimos um cacho maduro daquela

    parreira disse amarfanhando com um gesto afetuoso o papel das uvas. Athoje no sei se eram doces. Eram doces?

    Tambm no sei, voc no esperava amadurecer.Vagarosamente ele tirou as abotoaduras e foi dobrando a manga da camisa

    com aquela arte toda especial que tinha de dobr-la sem fazer rugas, na exatamedida do punho. Os braos musculosos de nadador. Os pelos dourados. Fiquei aolhar as abotoaduras que tinham sido do meu pai.

    A Oflia quer que voc almoce domingo com a gente. Ela releu seu romancee ficou no maior entusiasmo, gostou ainda mais do que da primeira vez, vocprecisa ver com que interesse analisou as personagens, discutiu os detalhes

    Domingo j tenho um compromisso eu disse enchendo a chaleira degua.

    E sbado? No me diga que sbado voc tambm no pode.Aproximei-me da janela. O sopro do vento era ardente como se a casa

    estivesse no meio de um braseiro. Respirei de boca aberta agora que ele no mevia, agora que eu podia amarfanhar a cara como ele amarfanhara o papel.Esfreguei nela o leno, at quando, at quando?! E me trazia a infncia, ser queele no v que para mim foi s sofrimento? Por que no me deixa em paz, por qu?Por que tem que vir aqui e ficar me espetando, no quero lembrar nada, no querosaber de nada! Fecho os olhos. Est amanhecendo e o sol est longe, tem brisa nacampina, cascata, orvalho gelado deslizando na corola, chuva fina no meu cabelo, a

  • montanha e o vento, todos os ventos soprando. Os ventos! Vazio. Imobilidade evazio. Se eu ficar assim imvel, respirando leve, sem dio, sem amor, se eu ficarassim um instante, sem pensamento, sem corpo

    E sbado? Ela quer fazer aquela torta de nozes que voc adora. Cortei o acar, Eduardo. Mas saia um pouco do regime, voc emagreceu, no emagreceu? Ao contrrio, engordei. No est vendo? Estou enorme. No possvel! Assim de costas voc me pareceu to mais magro, palavra

    que eu j ia perguntar quantos quilos voc perdeu.Agora a camisa se colava ao meu corpo. Limpei as mos viscosas no peitoril da

    janela e abri os olhos que ardiam, o sal do suor mais violento do que o sal daslgrimas. Esse menino transpira tanto, meus cus! Acaba de vestir roupa limpa ej comea a transpirar, nem parece que tomou banho. To desagradvel! Minhame no usava a palavra suor que era forte demais para seu vocabulrio, elagostava das belas palavras. Das belas imagens. Delicadamente falava emtranspirao com aquela elegncia em vestir as palavras como nos vestia. Com adiferena que Eduardo se conservava limpo como se estivesse numa redoma, asmos sem poeira, a pele fresca. Podia rolar na terra e no se conspurcava, nadachegava a suj-lo realmente porque mesmo atravs da sujeira podia se ver queestava intacto. Eu no. Com a maior facilidade me corrompia lustroso e gordo, osuor a escorrer pelo pescoo, pelos sovacos, pelo meio das pernas. No queriasuar, no queria mas o suor medonho no parava de escorrer manchando a camisade amarelo com uma borda esverdinhada, suor de bicho venenoso, traioeiro,malso. Enxugava depressa a testa, o pescoo, tentava num ltimo esforo salvarao menos a camisa. Mas a camisa j era uma pele enrugada aderindo minha commeu cheiro, com a minha cor. Era menino ainda mas houve um dia em que quismorrer para no transpirar mais.

    Na noite passada sonhei com nossa antiga casa disse ele aproximando-sedo fogareiro. Destapou a chaleira, espiou dentro. No me lembro bem masparece que a casa estava abandonada, foi um sonho estranho

    Tambm sonhei com a casa mas j faz tempo eu disse.Ele aproximou-se. Esquivei-me em direo ao armrio. Tirei as xcaras. Mame apareceu no seu sonho? perguntou ele. Apareceu. O pai tocava piano e mameRodopivamos vertiginosos numa valsa e eu era magro, to magro que meus

    ps mal roavam o cho, senti mesmo que levantavam voo e eu ria enlaando-aem volta do lustre quando de repente o suor comeou a escorrer, escorrer.

    Ela estava viva?Seu vestido branco se empapava do meu suor amarelo-verde mas ela

  • continuava danando, desligada, remota. Estava viva, Rodolfo? No, era uma valsa pstuma eu disse colocando na frente dele a xcara

    perfeita. Reservei para mim a que estava rachada. Est reconhecendo essaxcara?

    Ele tomou-a pela asa. Examinou-a. Sua fisionomia se iluminou com a graa deum vitral varado pelo sol.

    Ah! as xicrinhas japonesas. Sobraram muitas ainda?O aparelho de ch, o faqueiro, os cristais e os tapetes tinham ficado com ele.

    Tambm os lenis bordados, obriguei-o a aceitar tudo. Ele recusava, chegou a seexaltar, No quero, no justo, no quero! Ou voc fica com a metade ou entono aceito nada! Amanh voc pode se casar tambm. Nunca, respondi. Moros, gosto de tudo sem nenhum enfeite, quanto mais simples melhor. Ele pareciano ouvir uma s palavra enquanto ia amontoando os objetos em duas pores,Olha, isto voc leva que estava no seu quarto. Tive que recorrer violncia. Sevoc teimar em me deixar essas coisas, assim que voc virar as costas jogo tudona rua! Cheguei a agarrar uma jarra, No meio da rua! Ele empalideceu, os lbiostrmulos. Voc jamais faria isso, Rodolfo. Cale-se, por favor, que voc no sabe oque est dizendo. Passei as mos na cara ardente. E a voz da minha me vindodas cinzas: Rodolfo, por que voc h de entristecer seu irmo? No v que eleest sofrendo? Por que voc faz assim?!. Abracei-o. Oua, Eduardo, sou um tipomesmo esquisito, voc est farto de saber que sou meio louco. No quero, no seiexplicar mas no quero, est me entendendo? Leve tudo Oflia, presente meu.No posso dar a vocs um presente de casamento? Para no dizer que no ficocom nada, olha est aqui, pronto, fico com essas xcaras!

    Finas como casca de ovo disse ele batendo com a unha na porcelana. Ficavam na prateleira do armrio rosado, lembra? Esse armrio est na nossasaleta.

    Despejei gua fervente na caneca. O p de caf foi se diluindo resistente,difcil. Minha me. Depois, Oflia. Por que no haveria de ficar tambm com oslenis?

    E Oflia? Para quando o filho?Ele apanhou a pilha de jornais velhos que estavam no cho, ajeitou-a

    cuidadosamente e esboou um gesto de procura, devia estar sentindo falta de umlugar certo para serem guardados os jornais j lidos. Teve uma expresso deresignado bom humor, mas ento a desordem do apartamento comportava ummvel assim suprfluo? Enfiou a pilha na prateleira da estante e voltou-se paramim. Ficou me seguindo com o olhar enquanto eu procurava no armrio debaixo dapia a lata onde devia estar o acar. Uma barata fugiu atarantada, escondendo-sedebaixo de uma tampa de panela e logo uma outra maior se despencou no sei de

  • onde e tentou tambm o mesmo esconderijo. Mas a fresta era estreita e ela malconseguiu esconder a cabea, ah, o mesmo humano desespero na procura de umabrigo. Abri a lata de acar e esperei que ele dissesse que havia um novo sistemade acabar com as baratas, era faclimo, bastava chamar pelo telefone e j apareciao homem de farda cqui e bomba em punho e num segundo pulverizava tudo.Tinha em casa o nmero do telefone, nem baratas nem formigas.

    No prximo ms, parece. Est to lpida que nem acredito que esteja nasvsperas disse ele me contornando pelas costas. No perdia um s dos meusmovimentos. E adivinha agora quem vai ser o padrinho.

    Que padrinho? Do meu filho, ora! No tenho a menor ideia. Voc.Minha mo tremia como se ao invs de acar eu estivesse mergulhando a

    colher em arsnico. Senti-me infinitamente mais gordo. Mais vil. Tive vontade devomitar.

    No faz sentido, Eduardo. No acredito em Deus, no acredito em nada. E da? perguntou ele, servindo-se de mais acar ainda. Atraiu-me quase

    num abrao. Fique tranquilo, eu acredito por ns dois.Tomei de um s trago o caf amargo. Uma gota de suor pingou no pires.

    Passei a mo pelo queixo. No pudera ser pai, seria padrinho. No era um seramvel? Um casal amabilssimo. A pretexto de aquecer o caf, fiquei de costas eento esfreguei furtivamente o pano de prato na cara.

    Era essa a surpresa? perguntei e ele me olhou com inocncia. Repeti apergunta: A surpresa! Quando chegou voc disse que

    Ah! no, no! No isso no exclamou e riu apertando os olhos que riamtambm com uma ponta de malcia. A surpresa outra. Se der certo, Rodolfo, seder certo! Enfim, voc quem vai decidir. Ponho nas suas mos.

    Era exatamente a expresso da minha me quando vinha me preparar parauma boa notcia. Rondava, rondava e ficava me observando reticente, saboreandoo segredo at o momento em que no resistia mais e contava. A condio erainvarivel: Mas voc vai me prometer que no vai comer nenhum doce duranteuma semana, s uma semana!.

    E se ele fosse morar longe? Podia to bem se mudar de cidade, viajar. Masno. Precisava ficar por perto, sempre em redor, me olhando. Desde pequeno, nobero j me olhava assim. No precisaria me odiar, eu nem pediria tanto, bastavame ignorar, se ao menos me ignorasse. Era bonito, inteligente, amado, conseguiusempre fazer tudo muito melhor do que eu, muito melhor do que os outros, emsuas mos as menores coisas adquiriam outra importncia, como que se

  • renovavam. E ento? Natural que esquecesse o irmo obeso, malvestido,malcheiroso. Escritor, sim, mas nem aquele tipo de escritor de sucesso, convidadopara festas, dando entrevistas na televiso: um escritor de cabea baixa e calado,abrindo com as mos em garra seu caminho. Se ao menos ele mas no, claro queno, desde menino eu j estava condenado ao seu fraterno amor. s vezes meescondia no poro, corria para o quintal, subia na figueira, ficava imvel, umlagarto no vo do muro, pronto, agora no vai me achar. Mas ele abria portas,vasculhava armrios, abria a folhagem e ficava rindo por entre lgrimas.Engatinhava ainda quando saa minha procura, farejando meu rastro. Rodolfo,no faa seu irmozinho chorar, no quero que ele fique triste! Para que ele noficasse triste, s eu soube que ela ia morrer. Voc j grande, voc deve saber averdade, disse meu pai olhando reto nos meus olhos. que sua me no temnem No completou a frase. Voltou-se para a parede e ali ficou de braoscruzados, os ombros curvos. S eu e voc sabemos. Ela desconfia mas de jeitonenhum quer que seu irmozinho saiba, est entendendo? Eu entendia. Na sualtima festa de aniversrio ficamos reunidos em redor da cama. Laura como orei daquela histria, disse meu pai, dando-lhe de beber um gole de vinho. S queao invs de transformar tudo em ouro, quando toca nas coisas, transforma tudo embeleza. Com os olhos cozidos de tanto chorar, ajoelhei-me e fingindo arrumar-lheo travesseiro, pousei a cabea ao alcance da sua mo, ah, se me tocasse com umpouco de amor. Mas ela s via o broche, um caco de vidro que Eduardo achou noquintal e enrolou em fiozinhos de arame formando um casulo, Mamezinhaquerida, eu que fiz para voc!. Ela beijou o broche. E o arame ficou sendo prata eo caco de garrafa ficou sendo esmeralda. Foi o broche que lhe fechou a gola dovestido. Quando me despedi, apertei sua mo gelada contra minha boca, e eu,mame, e eu?

    Esqueci de oferecer biscoitos, olha a, voc gosta eu disse tirando a latado armrio.

    sua empregada quem faz? Minha empregada s vem uma vez por semana, comprei na rua

    acrescentei e lancei-lhe um olhar. Que surpresa era essa agora? O que que eudevia decidir? Eu devia decidir, ele disse. Mas o qu? Interpelei-o: Que quevoc est escondendo, Eduardo? No vai me dizer?

    Ele pareceu no ter ouvido uma s palavra. Quebrou a cinza do cigarro, soprouo pouco que lhe caiu na cala e inclinou-se para os biscoitos.

    Ah! rosquinhas. Oflia aprendeu a fazer sequilhos no caderno de receitasda mame mas esto longe de ser como aqueles.

    Ele comia sequilhos quando entrei no quarto. Ao lado, a caneca de chocolatefumegante. Eu tinha tomado ch. Ch. Dei uma volta em redor dele. O Jlio j estna esquina esperando, avisei. Veio me dizer que tem que ser agora. Ele ento selevantou, calou a sandlia, tirou o relgio de pulso e a correntinha do pescoo.

  • Dirigiu-se para a porta com uma firmeza que me espantou. Vi-o ensanguentado, aroupa em tiras. Voc menor, Eduardo, voc vai apanhar feito cachorro! Ele abriuos braos. E da? Quer que a turma me chame de covarde? Sentei-me na cadeiraonde ele estivera e ali fiquei encolhido, tomando o chocolate e comendo sequilhos.Tinha a boca cheia quando ouvi a voz da minha me chamando: Rodolfo,Rodolfo!. Agora ela o carregava em prantos, tentando arrancar-lhe o caniveteenterrado no peito at o cabo.

    Procurei seu romance em duas livrarias e no encontrei, queria dar a unsamigos. Est esgotado, Rodolfo? O vendedor disse que vende demais.

    Exagero. Talvez se esgote mas no j.

    A boca cheia de sequilhos e o suor escorrendo por todos os poros, escorrendo.A voz da minha me insistiu enrgica: Rodolfo, voc est me ouvindo? Onde esto Eduardo?!. Entrei no quarto dela. Estava deitada, bordando. Assim que me viu,sua fisionomia se confrangeu. Deixou o bordado e ficou balanando a cabea. Mas,filho, comendo de novo?! Quer engordar mais ainda? Hum? Suspirou, dolorido.Onde est seu irmo? Encolhi os ombros, No sei, no sou pajem dele. Ela ficoume olhando. Essa maneira de me responder, Rodolfo? Hein?! Desci a escadacomendo o resto dos sequilhos que escondi nos bolsos. O silncio me seguiudescendo a escada degrau por degrau, colado ao cho, viscoso, pesado. Parei demastigar. E de repente me precipitei pela rua afora, eu o queria vivo, o caniveteno! Encontrei-o sentado na sarjeta, a camisa rasgada, um arranho fundo natesta. Sorriu palidamente. Ofegava. Jlio tinha acabado de fugir. Cravei o olhar noseu peito. Mas ele no usou o canivete? perguntei. Apoiando-se na rvore,levantou-se com dificuldade, tinha torcido o p. Que canivete? Baixando acabea que latejava, inclinei-me at o cho. Voc no pode andar, eu disseapoiando as mos nos joelhos. Vamos, monta em mim. Ele obedeceu. Estranhei,era to magro, no era? Mas pesava como chumbo. O sol batia em cheio em nsenquanto o vento levantava as tiras da sua camisa rasgada. Vi nossa sombra nomuro, as tiras se abrindo como asas. Enlaou-me mais fortemente, encostou oqueixo no meu ombro e teve um breve soluo, Que bom que voc veio mebuscar.

    Seu novo romance? perguntou ele na maior excitao. Encontrara orascunho em cima da mesa. Posso ler, Rodolfo? Posso?

    Tirei-lhe as folhas das mos e fechei-as na gaveta. Era o que me restara,escrever. Ser possvel que ele tambm?

    No, no possvel, Eduardo eu disse, tentando abrandar a voz. Esttudo muito no incio, trabalho mal no calor acrescentei meio distraidamente.

    Olhei para sua pasta na cadeira e adivinhei a surpresa. Senti meu corao sefechar como uma concha. A dor era quase fsica. Olhei para ele. Voc escreveu um

  • romance. isso? Os originais esto na pasta isso?Ele ento abriu a pasta.

  • Apenas um Saxofone

    Anoiteceu e faz frio. Merde! voil lhiver o verso que segundo Xenofonte cabedizer agora. Aprendi com ele que palavro em boca de mulher como lesma emcorola de rosa. Sou mulher, logo, s posso dizer palavro em lngua estrangeira, sepossvel, fazendo parte de um poema. Ento as pessoas em redor podero vercomo sou autntica e ao mesmo tempo erudita. Uma puta erudita, to erudita quese quisesse podia dizer as piores bandalheiras em grego antigo, o Xenofonte sabegrego antigo. E a lesma ficaria irreconhecvel como convm a uma lesma numacorola de quarenta e quatro anos. Quarenta e quatro anos e cinco meses, meuJesus. Foi rpido, no? Rpido. Mais seis anos e terei meio sculo, tenho pensadomuito nisso e sinto o prprio frio secular que vem do assoalho e se infiltra notapete. Meu tapete persa, todos meus tapetes so persas mas no sei o quefazem esses bastardos que no impedem que o frio se instale na sala. Fazia menosfrio no nosso quarto, com as paredes forradas de estopa e o tapetinho de juta nocho, ele mesmo forrou as paredes e pregou retratos de antepassados e gravurasda Virgem de Fra Angelico, tinha paixo por Fra Angelico.

    Onde agora? Onde? Podia mandar acender a lareira mas despedi o copeiro, aarrumadeira, o cozinheiro despedi um por um, me deu um desespero e mandei acorja toda embora, rua, rua! Fiquei s. H lenha em algum lugar da casa mas no s riscar o fsforo e tocar na lenha como se v no cinema, o japons ficava horas amexendo, soprando at o fogo acender. E eu mal tenho foras para acender ocigarro. Estou aqui sentada faz no sei quanto tempo. Desliguei o telefone, meenrolei na manta, trouxe a garrafa de usque e estou aqui bebendo bemdevagarinho para no ficar de porre, hoje no, hoje quero ficar lcida, vendo umacoisa, vendo outra. E tem coisa bea para ver tanto por dentro como por fora,ainda mais por fora, uma porrada de coisas que comprei no mundo inteiro, coisasque nem sabia que tinha e que s vejo agora, justo agora que est escuro. quefomos escurecendo juntas, a sala e eu. Uma sala de uma burrice atroz, afetada,pretensiosa. E sobretudo rica, exorbitando de riqueza, abri um saco de ouro para odecorador se esbaldar nele. E se esbaldou mesmo, o viado. Chamava-se Ren echegava logo cedinho com suas telas, veludos, musselinas, brocados, Trouxe hojepara o sof um pano que veio do Afeganisto, completamente divino! Di-vino!.Nem o pano era do Afeganisto nem ele era to viado assim, tudo mistificao,clculo. Surpreendi-o certa vez sozinho, fumando perto da janela, a expressofatigada de um ator que j est farto de representar. Assustou-se quando me viu,como se o tivesse apanhado em flagrante roubando um talher de prata. Entoretomou o gnero borbulhante e saiu se rebolando todo para me mostrar ooratrio, um oratrio falsamente antigo, tudo feito h trs dias mas com furinhosna madeira imitando caruncho de trs sculos. Este anjo s pode ser do

  • Aleijadinho, veja as bochechas! E os olhos de cantos cados, um nadinhaestrbicos Eu concordava no mesmo tom histrico, embora soubesseperfeitamente que o Aleijadinho teria que ter mais de dez braos para conseguirfazer tanto anjo assim, a casa de Mad tambm tem milhares deles, todosautnticos, Um nadinha estrbicos, repetiu ela com a voz em falsete de Ren.Bossa colonial de grande luxo. E eu sabendo que estava sendo enganada e no meimportando, ao contrrio, sentindo um agudo prazer em comer gato por lebre. Liontem que j esto comendo ratos em Saigon e li ainda que j no h maisborboletas por l, nunca mais haver a menor borboleta Desatei ento a chorarfeito louca, no sei se por causa das borboletas ou dos ratos. Acho que nunca bebitanto como ultimamente e quando bebo assim fico sentimental, choro toa. Vocprecisa se cuidar, Ren disse na noite em que ficamos de fogo, s agora pensonisso que ele me disse, por que devo me cuidar, por qu? Contratei-o para fazerem seguida a decorao da casa de campo, Tenho os mveis ideais para essa suacasa, ele avisou e eu comprei os mveis ideais, comprei tudo, compraria at aperuca de Maria Antonieta com todos os seus labirintos feitos pelas traas e mais apoeira pela qual no me cobraria nada, simples contribuio do tempo, claro. claro.

    Onde agora? s vezes eu fechava os olhos e os sons eram como voz humaname chamando, me envolvendo, Luisiana, Luisiana! Que sons eram aqueles? Comopodiam parecer voz de gente e serem ao mesmo tempo to mais poderosos, topuros? E singelos como ondas se renovando no mar, aparentemente iguais, saparentemente. Este o meu instrumento, disse ele deslizando a mo pelosaxofone. Com a outra mo em concha, cobriu meu peito: e esta a minhamsica.

    Onde, onde? Olho meu retrato em cima da lareira. Na lareira tem que ficarseu retrato, determinou Ren num tom autoritrio, s vezes ele era autoritrio.Apresentou-me seu namorado, pintor, pelo menos me fazia crer que era seunamorado porque agora j no sei mais nada. E o efebo de caracis na testa mepintou toda de branco, uma Dama das Camlias voltando do campo, o vestidocomprido, o pescoo comprido, tudo assim esgalgado e iluminado como se eutivesse o prprio anjo tocheiro da escada aceso dentro de mim. Tudo j escureceuna sala menos o vestido do retrato, l est ele, difano como a mortalha de umectoplasma pairando suavssimo no ar. Um ectoplasma muito mais jovem do queeu, sem dvida o puxa-saco do efebo era suficientemente esperto para imaginarcomo eu devia ser aos vinte anos. Voc no retrato parece um pouco diferente,concedeu ele, mas o caso que no estou pintando s seu rosto, acrescentoumuito sutil. Queria dizer com isso que estava pintando minha alma. Concordei nahora, fiquei at comovida quando me vi de cabeleira eltrica e olhos vidrados. Meunome Luisiana, me diz agora o ectoplasma. H muitos anos mandei embora omeu amado e desde ento morri.

    Onde? Tenho um iate, tenho um casaco de vison prateado, tenho uma coroa

  • de diamantes, tenho um rubi que j esteve incrustado no umbigo de um xfamosssimo, at h pouco eu sabia o nome desse x. Tenho um velho que me ddinheiro, tenho um jovem que me d gozo e ainda por cima tenho um sbio queme d aulas sobre doutrinas filosficas com um interesse to platnico que logo nasegunda aula j se deitou comigo. Vinha to humilde, to miservel com seu ternode luto empoeirado e botinas de vivo que fechei os olhos e me deitei, Vem,Xenofonte, vem. No sou Xenofonte, no me chame de Xenofonte, ele meimplorou e seu hlito tinha o cheiro recente de pastilhas Valda, era Xenofonte,nunca houve ningum to Xenofonte quanto ele. Como nunca houve uma Luisianato Luisiana como eu, ningum sabe desse nome, ningum, nem o cften do meupai que nem esperou eu nascer para ver como eu era, nem a coitadinha da minhame que no viveu nem para me registrar. Nasci naquela noite na praia e naquelanoite recebi um nome que durou enquanto durou o amor. Outra madrugada,quando enchi a cara e fui falar com meu advogado para no pr no meu tmulooutro nome seno esse, ele deu aquela risadinha execrvel, Luisiana? Mas por queLuisiana? De onde voc tirou esse nome?. Controlou-se para no me chacoalharpor t-lo acordado quela hora, vestiu-se e muito polidamente me trouxe paracasa, Como queira, minha querida, voc manda!. E deu sua risadinha, Enfim, umaputa bbada mas rica tem o direito de botar no tmulo o nome que bem entender,foi o que provavelmente pensou. Mas j no me importo com o que pensa, ele emais a cambada toda que me cerca, opinio alheia este tapete, este lustre,aquele retrato. Opinio alheia esta casa com os santos varados por mil cargas.

    Mas antes eu me importava e como. Por causa dessa opinio tenho hoje umpiano de cauda, tenho um gato siams com uma argola na orelha, tenho umachcara com piscina e nos banheiros, papel higinico com florinhas douradas que ovelho trouxe de Nova York junto com o estojo plstico que toca uma musiquinhaenquanto a gente vai desenrolando o papel, Oh! My Last Rose of Summer!.Quando me deu os rolos, deu tambm os potes de caviar, preciso dourar aplula, disse rindo com sua grossura habitual, um grosso sem remdio, se nocuspisse dlar eu j o teria mandado para aquela parte com seus tacos de golfe ecuecas perfumadas com lavanda. Tenho sapato com fivela de diamante e umaqurio com uma floresta de coral no fundo, quando o velho me deu a prola,achou originalssimo escond-la no fundo do aqurio e me mandar procurar: Estficando quente, mais quente. No, agora esfriou!. E eu me fazia menininha e riaquando minha vontade mesmo era dizer-lhe que enfiasse a prola no rabo e medeixasse em paz, Me deixa em paz! ele, o jovem ardente com todos os seusardores, Xenofonte com seu hlito de hortel enxotar todos como fiz com acriadagem, todos uns sacanas que mijam no meu leite e se torcem de rir quandofico para cair de bbada.

    Onde, meu Deus? Onde agora? Tenho tambm um diamante do tamanho deum ovo de pomba. Trocaria o diamante, o sapato de fivela, o iate trocaria tudo,anis e dedos, para poder ouvir um pouco que fosse a msica do saxofone. Nem

  • seria preciso v-lo, juro que nem pediria tanto, eu me contentaria em saber que eleest vivo, vivo em algum lugar, tocando seu saxofone.

    Quero deixar bem claro que a nica coisa que existe para mim a juventude,tudo o mais besteira, lantejoulas, vidrilho. Posso fazer duas mil plsticas e noresolve, no fundo a mesma bosta, s existe a juventude. Ele era a minhajuventude mas naquele tempo eu no sabia, na hora a gente nunca sabe nem podemesmo saber, fica tudo natural como o dia que sucede noite, como o sol, a lua,eu era jovem e no pensava nisso como no pensava em respirar. Algum poracaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respirao seesculhamba. Ento d aquela tristeza, puxa, eu respirava to bem

    Ele era a minha juventude, ele e seu saxofone que luzia como ouro. Seussapatos eram sujos, a camisa despencada, a cabeleira um ninho, mas o saxofoneestava sempre meticulosamente limpo. Tinha tambm mania com os dentes queeram de uma brancura que nunca vi igual, quando ele ria eu parava de rir s paraficar olhando. Trazia a escova de dentes no bolso e mais a fralda para limpar osaxofone, achou num txi uma caixa com uma dzia de fraldas Johnson e desdeento passou a us-las para todos os fins: era o leno, a toalha de rosto, oguardanapo, a toalha de mesa e o pano de limpar o saxofone. Foi tambm abandeira de paz que usou na nossa briga mais sria, quando quis que tivssemosum filho. Tinha paixo por tanta coisa

    A primeira vez que nos amamos foi na praia. O cu palpitava de estrelas efazia calor. Ento fomos rolando e rindo at s primeiras ondas que ferviam naareia e ali ficamos nus e abraados na gua morna como a de uma bacia.Preocupou-se quando lhe disse que no fora sequer batizada. Colheu a gua comas mos em concha e despejou na minha cabea: Eu te batizo, Luisiana, em nomedo Padre, do Filho e do Esprito Santo. Amm. Pensei que ele estivesse brincandomas nunca o vi to grave. Agora voc se chama Luisiana, disse me beijando aface. Perguntei-lhe se acreditava em Deus. Tenho paixo por Deus, sussurroudeitando-se de costas, as mos entrelaadas debaixo da nuca, o olhar perdido nocu: O que mais me deixa perplexo um cu assim como este. Quando noslevantamos correu at a duna onde estavam nossas roupas, tirou a fralda quecobria o saxofone e trouxe-a delicadamente nas pontas dos dedos para me enxugarcom ela. A pegou o saxofone, sentou-se encaracolado e nu como um fauno meninoe comeou a improvisar bem baixinho, formando com o fervilhar das ondas umamelodia terna. Quente. Os sons cresciam tremidos como bolhas de sabo, olha estaque grande! olha esta agora mais redonda ah, estourou! Se voc me ama voc capaz de ficar assim nu naquela duna e tocar, tocar o mais alto que puder at quevenha a polcia? eu perguntei. Ele me olhou sem pestanejar e foi correndo emdireo duna e eu corria atrs e gritava e ria, ria porque ele j tinha comeado atocar a plenos pulmes.

    Minha companheira do curso de dana casou-se com o baterista de um

  • conjunto que tocava numa boate, houve festa. Foi l que o conheci. Em meio damaior algazarra do mundo a me da noiva se trancou no quarto chorando, Vejaem que meio minha filha foi cair! S vagabundos, s cafajestes!. Deitei-a nacama e fui buscar um copo de gua com acar mas na minha ausncia osconvidados descobriram o quarto e quando voltei os casais j tinham transbordadoat ali, atracando-se em almofadas pelo cho. Pulei gente e sentei-me na cama. Amulher chorava, chorava at que aos poucos o choro foi esmorecendo e de repenteparou. Eu tambm tinha parado de falar e ficamos as duas muito quietas, ouvindoa msica de um moo que eu ainda no tinha visto. Ele estava sentado napenumbra, tocando saxofone. A melodia era mansa mas ao mesmo tempo toeloquente que fiquei imersa num sortilgio. Nunca tinha ouvido nada parecido,nunca ningum tinha tocado um instrumento assim. Tudo o que tinha querido dizer mulher e no conseguira, ele dizia agora com o saxofone: que ela no chorassemais, tudo estava bem, tudo estava certo quando existia o amor. Tinha Deus, elano acreditava em Deus? perguntava o saxofone. E tinha a infncia, aqueles sonsbrilhantes falavam agora da infncia, olha a a infncia! A mulher parou de chorare agora era eu que chorava. Em redor, os casais ouviam num silncio fervoroso esuas carcias foram ficando mais profundas, mais verdadeiras porque a melodiatambm falava do sexo vivo e casto como um fruto que amadurece ao vento e aosol.

    Onde? Onde? Levou-me para o seu apartamento, ocupava um minsculoapartamento no dcimo andar de um prdio velhssimo, toda a sua fortuna eraaquele quarto com um banheiro mnimo. E o saxofone. Contou-me que recebera oapartamento como herana de uma tia cartomante. Depois, num outro dia disseque o ganhara numa aposta e quando outro dia ainda comeou a contar umaterceira histria, interpelei-o e ele comeou a rir, preciso variar as histrias,Luisiana, o divertido improvisar que para isso temos imaginao! triste quandoum caso fica a vida inteira igual. E improvisava o tempo todo e sua msica erasempre gil, rica, to cheia de invenes que chegava a me afligir, Voc vaicompondo e vai perdendo tudo, voc tem que tomar nota, tem que escrever o quecompe! Ele sorria. Sou um autodidata, Luisiana, no sei ler nem escrever msicae nem preciso para ser um sax-tenor, sabe o que um sax-tenor? o que eusou. Tocava num conjunto que tinha contrato com uma boate e sua nica ambioera ter um dia um conjunto prprio. E ter um toca-discos de boa qualidade paraouvir Ravel e Debussy.

    Nossa vida foi to maravilhosamente livre! E to cheia de amor, como nosamamos e rimos e choramos de amor naquele dcimo andar, cercados por gravurasde Fra Angelico e retratos dos antepassados dele. No so meus parentes, acheitudo isso no ba de um poro, confessou-me certa vez. Apontei para o mais antigodos retratos, to antigo que da mulher s restava a cabeleira escura. E assobrancelhas. Esta voc tambm achou no ba? perguntei. Ele riu e at hoje fiqueisem saber se era verdade ou no. Se voc me ama mesmo, eu disse, suba ento

  • naquela mesa e grite com todas as foras, Vocs so todos uns cornudos, vocsso todos uns cornudos! e depois desa da mesa e saia mas sem correr. Ele medeu o saxofone para segurar enquanto eu fugia rindo, No, no, eu estavabrincando, isso no! J na esquina ouvi seus gritos em pleno bar, Cornudos, todoscornudos!. Alcanou-me em meio da gente estupefata, Luisiana, Luisiana, no menegue, Luisiana!. Outra noite samos de um teatro no resisti e perguntei-lhese era capaz de cantar ali no saguo um trecho de pera, Vamos, se voc me amamesmo, cante agora aqui na escada um trecho do Rigoletto!

    Se voc me ama mesmo, me leva agora a um restaurante, me compre jaqueles brincos, me compre imediatamente um vestido novo! Ele agora tocava emmais lugares porque eu estava ficando exigente, se voc me ama mesmo, mesmo,mesmo Saa s sete da noite com o saxofone debaixo do brao e s voltava demanhzinha. Ento limpava meticulosamente o bocal do instrumento, lustrava ometal com a fralda e ficava dedilhando distraidamente, sem nenhum cansao, semnenhum desgaste, Luisiana, voc a minha msica e eu no posso viver semmsica, dizia abocanhando o bocal do saxofone com o mesmo fervor com queabocanhava meu peito. Comecei a ficar irritadia, inquieta, era como se tivessemedo de assumir a responsabilidade de tamanho amor. Queria v-lo maisindependente, mais ambicioso. Voc no tem ambio? No usa mais artista semambio, que futuro voc pode ter assim? Era sempre o saxofone quem merespondia e a argumentao era to definitiva que me envergonhava e me sentiamiservel por estar exigindo mais. Contudo, exigia. Pensei em abandon-lo masno tive foras, no tive, preferi que nosso amor apodrecesse, que ficasse toinsuportvel que quando ele fosse embora sasse cheio de nojo, sem olhar paratrs.

    Onde agora? Onde? Tenho uma casa de campo, tenho um diamante dotamanho de um ovo de pomba Eu pintava os olhos diante do espelho, tinha umcompromisso, vivia cheia de compromissos, ia a uma boate com um banqueiro.Enrodilhado na cama, ele tocava em surdina. Meus olhos foram ficando cheios delgrimas. Enxuguei-os na fralda do saxofone e fiquei olhando para minha boca. Oslbios estavam mais finos assim crispados. Desviei o olhar do espelho. Se voc meama mesmo, eu disse, se voc me ama mesmo ento saia e se mateimediatamente.

  • Helga

    Ela era uma s. No havia outra e se quisesse compar-la com alguma coisa, seriacom os tenros cogumelos dos bosques ou com as manhs de bicicleta nas estradasimpecveis ou com as primeiras cerejas da primavera. Era uma, una, nica, apesarde ter uma s perna, alis bela como ela toda. Mas cedo para falar no sobre suabeleza que deve ser lembrada sem enfado quantas vezes forem necessrias mas cedo para falar sobre a perna que vai exigir explicao. A perna envolveviagem, guerra, a perna vai to alm Sem esclarecimento tudo ser apenascrueldade.

    bom dizer logo quem eu sou: Paulo Silva, brasileiro. Mas fui alemo. Filho dealem de Santa Catarina e desse Silva brasileiro que no cheguei a conhecer. Mealem nascida no Vale do Itaja, neta de proprietrios em Vila Corinto desde 1890,pude ver isso nos papis. Mas alem malvista porque se casou com o Silva, Paulotambm, o que me faria Paulo Silva Filho. Mas nada disso vigorou, na escola eu jera Paul sem o o, Paul Karsten. E o destino amvel de um Paul Karsten, ginasianode Blumenau em 1935, eram frias, cursos de aperfeioamento, amizades eamores na Alemanha. De Hitler, bom lembrar. E no havia nada melhor, acomear pela viagem no Monte Pascoal, classe nica com escalas na Bahia, emMadeira, Lisboa, e depois Hamburgo at os veres interminveis nas Casas daJuventude, com excurses, piqueniques, bicicletas, cerejas e sexo em meio docansao feliz e da dose exata de melancolia. Jugendhaus, era esse o nome dessascasas e pensar nelas me faz pensar em fonte e musgo. As viagens seguintes, trsao todo, foram marcadas pelas aulas cheias de simplicidade e exaltao. E a nossa,a minha particular importncia por ser alemo e alemo estrangeiro. Esportes.Treinos. O ao das metralhadoras sem carga encostado no peito banhado de suor.As bandeiras apoiadas no ombro no desfile diante de Hitler e Mussolini no estdiode Berlim, os alemes da Amrica do Sul marchando logo atrs dos pases sudetose antes mesmo dos alemes da Amrica do Norte. Amizade e amor foi l queconheci, prximos e concretos. E o dio tambm abstrato e longnquo, aos judeus,aos comunistas e a outras coisas mais que j esqueci. Tudo aconteceu porque aterceira viagem foi no vero de 1939. No vou contar minha guerra, Polnia,Frana, Grcia, Rssia

    A beleza de Helga e a sua perna. Confesso que durante muito tempo no seiem qual pensei mais, se na que tinha ou se na que perdera. Mas cedo. Porenquanto preciso dizer como foi possvel acontecer o que aconteceu. O meuhitlerismo era jovem, leal, risonho e franco e a guerra no entrava na jogada. Nelafiz mais ou menos tudo o que os outros fizeram e at menos do que vi ser feito emmatria de luta ou crime. De resto, eu e meus camaradas de armas ramosparecidos, menos numa coisa: nunca consegui estabelecer um vnculo entre essa

  • guerra e as frias na Jugendhaus em meio dos piqueniques nas florestas eexcurses pelas estradas marginadas de verdor. As aulas to ntidas eram paraisso? A palavra unerbittlich significava mesmo implacvel e era para valer? S maistarde, depois da guerra, descobri dentro de mim que aprendera a lio.

    Curioso que hoje j no consigo lembrar qual a perna que Helga perdera, sea direita ou a esquerda. E dizer que durante anos no houve dia nem hora queHelga no aparecesse no meu pensamento. Acha meu analista que osesquecimentos parciais so frequentemente formas sutis de autopunio. No seise isso verdade mas sei que agora que resolvi evoc-la no posso impedir que atodo instante ela cruze estas linhas antes do momento exato em que deviacomparecer. Quero confessar que no liguei muito quando soube que o Brasilentrara na guerra contra a Alemanha mas devo dizer tambm que achei bom noter combatido contra soldados brasileiros. O que me faz pensar que nunca deixoude existir em mim alguma coisa do filho daquele Silva que sempre imaginei morenoplido, a cara comprida e os olhos tristes.

    Assim que acabou a guerra, vendi meu capacete e meu punhal com a cruzsustica a um funcionrio brasileiro que at hoje no sei o que estava fazendo emDsseldorf. Fomos para uma cantina onde me pagou uma cerveja e dele ouvi entocoisas alarmantes: que a minha situao jurdica era nada mais, nada menos, doque a de um traidor, quer dizer, uns quinze anos de cadeia, por a. Era s voltar e acondenao viria na certa. Recebi a notcia na hora errada porque naquela alturameu desejo maior era esquecer a guerra, encerrar as frias na Alemanha etranquilamente voltar para Vila Corinto, casar por l, cuidar do plantio, da criao eajudar minha me que devia estar velha. Helga ainda no aparecera na minha vidae o hitlerismo e a guerra ainda no tinham me marcado para sempre. Ainda no.

    H um pormenor que me ocorre com tamanha insistncia que fico s vezespensando, pensando e no descubro por que me lembro tanto das unhas do seu ppintadas com esmalte rosa. No sei qual perna lhe restara mas revejo seu p, s op com as unhas pintadas, no pintava as unhas das mos, limpas, polidas massem esmalte. Pintava as do p, economizando assim o esmalte que naquele tempoera raro como todo o resto, comida, roupa. Unhas de um tom de rosa delicado, elagostava das cores tmidas.

    No poder voltar para o Brasil decidiu minha sorte de continuar Paul Karsten otempo necessrio para enriquecer e nunca mais ter paz. No por ter enriquecido,como veremos, estou chegando l. O caso que no fui prisioneiro de guerra nempropriamente desertor. Num momento de confuso a guerra se afastou de onde meencontrava, no voltou mais e depois acabou. J contei que vendi meu capacete emeu punhal. Arranjei em seguida outros punhais e capacetes que vendia parajovens recrutas americanos que chegaram demasiado tarde e doidos por levaremqualquer suvenir desse tipo. O pequeno comrcio de trofus ampliou-se paracigarros, chocolate, leite em p e outras latarias, mas tudo muito reduzido. Basta

  • dizer que na intendncia americana meu scio mais qualificado era apenassargento, o que mostra bem a modstia do negcio.

    Naquela improvisao de vida ao deus-dar, o tempo perdeu a medida e hojeno sou mesmo capaz de lembrar quando exatamente conheci Helga. S sei quesua beleza me surgiu inicialmente da cintura para cima atrs do balco dafarmcia, se assim podemos chamar quele casebre de madeira enegrecida,toscamente erguido no meio das runas do sudeste industrial de Dsseldorf. Suabeleza, foi sua beleza o que de incio me impressionou. E depois, seu recato, suadoura naquele mundo de fim do mundo. Passando pela farmcia, no houve vezque no a visse ereta e sria, vendendo aspirina e as tais latinhas de pomadafabricada pelo pai, o velho Wolf, um verdadeiro caco aos quarenta anos, andandoquilmetros em busca de mercadoria: vidrinhos de iodo e alguns metros de gaze.

    Foi o velho quem primeiro me falou da penicilina e do quanto um negciodesses poderia render. At ento eu vendia para Helga algumas latas de leite emp e de veneno para rato. Tambm me lembro muito de um outro pormenor: a latade leite tinha uma risonha vaquinha no rtulo e a outra tinha um rato negro, morto,dependurado pelo rabo por um longo fio. Quero ser verdadeiro quando digo queno me importei ao ver meu lucro diminudo devido perda de tempo em vender-lhe as ninharias que podia comprar. O prazer de v-la era to grande que mesentia compensado quando ouvia sua voz calma, harmoniosa como os seus gestosque por sinal eram raros. No procurava, ento, a mulher. Durante meses a caa comida utilizava quase toda a imaginao e energia de que sou capaz, qualquerpreocupao com mulher se dissipava nessa caa. Foi s numa segunda fase querelacionei a beleza de Helga com o desejo. J sabia ento da sua perna, elamesma me contou quando recusou-se a me acompanhar a um local de danas,improvisado nos escombros do museu. Fiz o convite quando fui cedo farmcia,soubera das danas e no vi melhor oportunidade para sair com ela. Estava comosempre detrs do balco mas assim que lhe falei em danarmos teve ummovimento de fuga enquanto uma nuvem preta pareceu baixar sobre seu rosto tolimpo. Mas logo espantou a nuvem e sorriu quase natural quando confessou queno podia danar as valsas que l tocavam, tinha uma perna s. Aquela noitepensei muito na mutilao de Helga, mutilao antiga, pois ela perdera a perna e oresto da famlia, menos o pai, no primeiro bombardeio de Hamburgo. Na mesmaocasio o velho Wolf perdera tambm a farmcia, a primeira, pois a segunda e aterceira foram destrudas em Dsseldorf. Ainda era rico depois da tragdia deHamburgo e a prova disso que montou em seguida mais essas duas farmcias.Outra prova de que tivera dinheiro foi a magnfica perna ortopdica que comproupara a filha, daquelas que durante a guerra eram reservadas para herisexcepcionais, membros grados do Partido Nacional-Socialista ou oficiaissuperiores. Fora desse tipo de gente s os muito ricos podiam comprar uma pernaigual. No pude ento deixar de sentir um certo espanto quando vi Helga sairandando detrs do balco, mancando um pouco, certo, mas discretamente, com

  • uma lentido que combinava com seu feitio. Imaginara-a plantada numa perna s,apoiada em muletas ou numa bengala, dando saltos penosos E cheguei a dizer-lhe que num vestido de noite ningum notaria a perna artificial. Ela ento baixouos grandes olhos claros.

    No dia seguinte era domingo e Helga concordou em sair comigo. Eu podiaemprestar o jipe do sargento americano mas a tarde estava to agradvel que elapreferiu que fssemos mesmo a p. noite era uma noite estrelada jantamos, ela, o pai e eu, uma lata de rosbife e outra de milho que desviara domeu comrcio. Senti-me generoso, bom. Foi a que o velho Wolf me falou dapenicilina. Na cara devastada do farmacutico vi como seus olhos azuis, iguais aosda filha, coruscavam de entusiasmo ao imaginar o negcio. Ele tinha o clculo fcile claramente demonstrou que trs meses de trfico de penicilina eram o suficientepara juntar uma pequena fortuna. Havia apenas dois problemas a enfrentar: oprimeiro era o risco, mas no to grande assim, na pior das hipteses um par deanos na cadeia, se tanto. A segunda dificuldade, a maior, era a mesma de qualquernegcio: o capital inicial. E para tudo, uma condio indispensvel, a rapidez. Essesgrandes negcios s funcionariam durante uns seis meses, no mximo. Depois, aeficincia combinada de americanos, russos e dos prprios alemes iria pr tudonos eixos e qualquer empreendimento se tornaria rotineiro, lento. Com os ingleses,nem pensar. A coisa do lado de c tinha que ser feita mesmo com os americanos esem demora. O velho se ramificava em consideraes mas minha ateno seconcentrava em Helga, a doce Helga que eu j beijara naquela tarde. Foi entomeio distraidamente que ouvi o que ele disse? Pois sim. Naquela noite e no diaseguinte no pensei noutra coisa. Pedi pormenores e ele me falou num certomajor-mdico, chegamos at a procurar o homem mas ele fora transferido paraHamburgo. E o capital? Via o velho diariamente e ficvamos falando, falando E ocapital? Foram dias de tanta inquietao, a tal ponto fiquei seduzido pela ideia quemeu pequeno comrcio comeou a declinar. Via o velho e via Helga, com elatambm falava demais e de repente falei em casamento.

    Como difcil reconstituir os acontecimentos! Lembrar o ano em que tudoaconteceu j exige esforo. Distribuir os fatos pelos meses no consigo. Masordenar os sentimentos para mim totalmente impossvel. Revivo o tempo dacontemplao de sua beleza e depois os instantes de fundo desejo. E lembro muitodo casamento. Quanto ao amor por Helga, afirma o analista que no passa de umrecurso autopunitivo que resolvi imaginar. O fato que me casei e na prpriamadrugada de npcias fugi para Hamburgo levando a perna ortopdica que emseguida vendi. De posse do capital inicial, no foi difcil encontrar o tal major e notempo previsto pelo velho Wolf, seis meses mais ou menos, fiz fortuna.

    Da por diante no foi mais possvel dizer que as frias nazistas na Alemanhaforam episdios fortuitos na vida de um jovem de Vila Corinto. Paul Karstencometeu seu crime de guerra, pessoal e por conta prpria, mas fora do lugar e coma pessoa errada. O ato de raa de senhor alemo aprendido nas aulas floridas dos

  • cursos de 1936 foi praticado em plena paz por um pobre rapaz brasileiro contrauma pobre moa alem. Engano ainda pensar que o fim de Paul Karsten foi umasoluo. Alguns anos mais tarde, Paulo Silva Filho voltou para o Brasil anistiado erico, mas voltou um homem de pouca f e imaginao amortecida. A nica maneiraque encontrou de expiar o crime do jovem Paul foi tornar-se um cidado exemplar.Hoje, o analista explica que simplesmente procuro e encontro, na insipidez davirtude, a punio de Paul Karsten e de seus camaradas.

  • O Moo do Saxofone

    Eu era chofer de caminho e ganhava uma nota alta com um cara que faziacontrabando. At hoje no entendo direito por que fui parar na penso da talmadame, uma polaca que quando moa fazia a vida e depois que ficou velhainventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo queengolia giletes e que foi meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por l.Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saa palitandoos dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve at uma vez uma donaque mandei andar s porque no nosso primeiro encontro, depois de comer umsanduche, enfiou o palito entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeitoque eu podia ver at o que o palito ia cavoucando. Bom, mas eu dizia que no talfrege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se no bastasseter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anes se enroscando naspernas da gente. E tinha a msica do saxofone.

    No que no gostasse de msica, sempre gostei de ouvir tudo quanto charanga no meu rdio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta dorecado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem,no discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como odiabo, acho que nunca mais vou ouvir ningum tocar saxofone como aquele caratocava.

    O que isso? eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia depenso e ainda no sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelo, toforte chegava a msica at nossa mesa. Quem que est tocando?

    o moo do saxofone.Mastiguei mais devagar. J tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da

    penso eu no podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China. E o quarto dele fica aqui em cima?James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabea e abriu mais a

    boca que fumegava como um vulco com a batata quente l no fundo. Soprou umbocado de tempo a fumaa antes de responder.

    Aqui em cima.Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diverses, mas como j

    estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negcio de bilhetes. Esperei queele desse cabo da batata enquanto ia enchendo meu garfo.

    uma msica desgraada de triste fui dizendo. A mulher engana ele at com o periquito respondeu James, passando o

    miolo de po no fundo do prato para aproveitar o molho. O pobre fica o dia

  • inteiro trancado, ensaiando. No desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra sedeita com tudo quanto cristo que aparece.

    Deitou com voc? meio magricela para o meu gosto, mas bonita. E novinha. Ento entrei

    com meu jogo, compreende? Mas j vi que no dou sorte com mulher, torcem logoo nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de secortar

    Tive vontade de rir tambm, mas justo nesse instante o saxofone comeou atocar de um jeito abafado, sem flego como uma boca querendo gritar, mas comuma mo tapando, os sons esprimidos saindo por entre os dedos. Ento melembrei da moa que recolhi uma noite no meu caminho. Saiu para ter o filho navila, mas no aguentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumeiela na carroceria e corri como louco para chegar o quanto antes, apavorado com aideia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a me. No fim, parano me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhorque abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos j estava meendoidando. Pomba, no desejo ao inimigo aquele quarto de hora.

    Parece gente pedindo socorro eu disse enchendo meu copo de cerveja. Ser que ele no tem uma msica mais alegre?

    James encolheu o ombro. Chifre di.Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moo do saxofone tocava num

    bar, voltava s de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher. Mas por qu? perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me

    mandar dali. A verdade que no tinha nada com isso, nunca fui de me meter navida de ningum, mas era melhor ouvir o trolol do James do que o saxofone.

    Uma mulher como ela tem que ter seu quarto explicou James, tirando umpalito do paliteiro. E depois, vai ver que ela reclama do saxofone.

    E os outros no reclamam? A gente j se acostumou.Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James comeasse a

    escarafunchar os dentes que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, deicom um ano que vinha descendo. Um ano, pensei. Assim que sa do reservado,dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou deroupa, pensei meio espantado porque tinha sido rpido demais. E j descia aescada quando ele passou de novo na minha frente, mas j com outra roupa.Fiquei meio tonto. Mas que raio de ano esse que muda de roupa de dois em doisminutos? Entendi depois, no era um s, mas uma trempe deles, milhares de aneslouros e de cabelo repartidinho do lado.

  • Pode me dizer de onde vem tanto ano? perguntei madame e ela riu. Todos artistas, minha penso quase s de artistasFiquei vendo com que cuidado o copeiro comeou a empilhar almofadas nas

    cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, ano e saxofone. Ano meenche e j tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrs,palavra que havia espao para passar um batalho, mas ela deu um jeito deesbarrar em mim.

    Licena?No precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moo do

    saxofone. Nessa altura o saxofone j tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim,mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelhono podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixoscomeou a descascar o po com a ponta da unha vermelha. De repente riu eapareceu uma covinha no queixo. Pomba, tive vontade de ir l, agarrar ela peloqueixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto.

    A que horas a janta? perguntei para a madame, enquanto pagava. Vai das sete s nove. Meus pensionistas fixos costumam comer s oito

    avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a donade vermelho. O senhor gostou da comida?

    Voltei s oito em ponto. O tal James j mastigava seu bife. Na sala havia aindaum velhote de barbicha, que era professor parece que de mgica e o ano deroupa xadrez. Mas ela no tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio umprato de pastis, tenho loucura por pastis. James comeou a falar ento de umabriga no parque de diverses, mas eu estava de olho na porta. Vi quando elaentrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada comodois gatos pisando macio. No demorou nada e o raio do saxofone desandou atocar.

    Sim senhor eu disse e James pensou que estivesse falando na tal briga. O pior que fiquei de porre, mal pude me defender!Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaa do que outra coisa. Examinei os

    outros pastis para descobrir se havia algum com mais recheio. Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele no vem comer nunca?James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta.

    Decerto preferia o assunto do parque. Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente resmungou ele,

    tirando um palito. Fico com pena, mas s vezes me d raiva, corno besta. Umoutro j tinha acabado com a vida dela!

    Agora a msica alcanava um agudo to agudo que me doeu o ouvido. Denovo pensei na moa ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda no sei mais

  • para quem. No topo isso, pomba. Isso o qu?Cruzei o talher. A msica no mximo, os dois no mximo trancados no quarto e

    eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto oprato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateao.

    O caf fresco? perguntei ao mulatinho que j limpava o oleado da mesacom um pano encardido como a cara dele.

    Feito agora.Pela cara vi que era mentira. No preciso, tomo na esquina.A msica parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para a porta porque tive o

    pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o arzinho de gata detelhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do queo vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o palet.Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua.

    Sim senhor! Sim senhor o qu? perguntou James. Quando ela entra no quarto com um tipo, ele comea a tocar, mas assim

    que ela aparece, ele para. J reparou? Basta ela se enfurnar e ele j comea.James pediu outra cerveja. Olhou para o teto. Mulher o diaboLevantei-me e quando passei junto da mesa dela atrasei o passo. Ento ela

    deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos. Ora, no precisava se incomodarRisquei o fsforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume. Amanh? perguntei, oferecendo-lhe os fsforos. s sete, est bem? a porta que fica do lado da escada, direita de quem sobe.Sa em seguida, fingindo no ver a carinha safada de um dos anes que estava

    ali por perto e zarpei no meu caminho antes que a madame viesse me perguntarse eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei s sete em ponto,chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho j amontoava nascadeiras as almofadas para os anes. Subi a escada sem fazer barulho, mepreparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse algum.Mas ningum apareceu. Na primeira porta, aquela direita da escada, bati de levee fui entrando. No sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estavaum moo segurando o saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas decamisa, me olhando sem dizer uma palavra. No parecia nem espantado nem

  • nada, s me olhava. Desculpe, me enganei de quarto eu disse com uma voz que at hoje no

    sei onde fui buscar.O moo apertou o saxofone contra o peito cavado. na porta adiante disse ele baixinho, indicando com a cabea.Procurei os cigarros s para fazer alguma coisa. Que situao, pomba. Se

    pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estpida. Ofereci-lhe cigarro. Est servido? Obrigado, no posso fumar.Fui recuando de costas. E de repente no aguentei. Se ele tivesse feito

    qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela brutacalma me fez perder as tramontanas.

    E voc aceita tudo isso assim quieto? No reage? Por que no lhe d umaboa sova, no lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba,eu j tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizerque voc no faz nada?

    Eu toco saxofone.Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de to

    branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botes,de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu sassepara comear a tocar. Limpou com um leno o bocal do instrumento, antes decomear com os malditos uivos.

    Bati a porta. Ento a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver amo dela segurando a maaneta para que o vento no abrisse demais. Fiquei aindaum instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que no tomei logo adeciso, ela esperando e eu parado feito besta, ento, Cristo-Rei? E ento? Foiquando comeou bem devagarinho a msica do saxofone. Fiquei broxa na hora,pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anes metido numimpermevel, desviei de outro que j vinha vindo atrs e me enfurnei no caminho.Escurido e chuva. Quando dei a partida, o saxofone j subia num agudo que nochegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminho saiumeio desembestado, num arranco.

  • Antes do Baile Verde

    O rancho azul e branco desfilava com seus passistas vestidos Lus xv e sua porta-estandarte de peruca prateada em forma de pirmide, os cachos desabados natesta, a cauda do vestido de cetim arrastando-se enxovalhada pelo asfalto. O negrodo bumbo fez uma profunda reverncia diante das duas mulheres debruadas najanela e prosseguiu com seu chapu de trs bicos, fazendo rodar a capaencharcada de suor.

    Ele gostou de voc disse a jovem voltando-se para a mulher que aindaaplaudia. O cumprimento foi na sua direo, viu que chique?

    A preta deu uma risadinha. Meu homem mil vezes mais bonito, pelo menos na minha opinio. E j

    deve estar chegando, ficou de me pegar s dez na esquina. Se me atraso, elecomea a encher a caveira e pronto, no sai mais nada.

    A jovem tomou-a pelo brao e arrastou-a at a mesa de cabeceira. O quartoestava revolvido como se um ladro tivesse passado por ali e despejado caixas egavetas.

    Estou atrasadssima, Lu! Essa fantasia fogo Tenha pacincia, mas vocvai me ajudar um pouquinho.

    Mas voc ainda no acabou?Sentando-se na cama, a jovem abriu sobre os joelhos o saiote verde. Usava

    biquni e meias rendadas tambm verdes. Acabei o qu! Falta pregar tudo isso ainda, olha a Fui inventar um raio de

    pierrete dificlima!A preta aproximou-se, alisando com as mos o quimono de seda brilhante.

    Espetado na carapinha trazia um crisntemo de papel crepom vermelho. Sentou-seao lado da moa.

    O Raimundo j deve estar chegando, ele fica uma ona se me atraso. Agente vai ver os ranchos, hoje quero ver todos.

    Tem tempo, sossega atalhou a jovem. Afastou os cabelos que lhe caamnos olhos. Levantou o abajur que tombou na mesinha. No sei como fui meatrasar desse jeito.

    Mas no posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, menos perder o desfile! E quem est dizendo que voc vai perder?A mulher enfiou o dedo no pote de cola e baixou-o de leve nas lantejoulas do

    pires. Em seguida, levou o dedo at o saiote e ali deixou as lantejoulas formandouma constelao desordenada. Colheu uma lantejoula que escapara e

  • delicadamente tocou com ela na cola. Depositou-a no saiote, fixando-a compequenos movimentos circulares.

    Mas se tiver que pregar as lantejoulas em todo o saiote J comeou a queixao? Achei que dava tempo e agora no posso largar a

    coisa pela metade, v se entende! Voc ajudando vai num instante, j me pintei,olha a, que tal minha cara? Voc nem disse nada, sua bruxa! Hein? Que tal?

    Ficou bonito, Tatisa. Com o cabelo assim verde voc est parecendo umaalcachofra, to gozado. No gosto desse verde na unha, fica esquisito.

    Num movimento brusco, a jovem levantou a cabea para respirar melhor.Passou o dorso da mo na face afogueada.

    Mas as unhas que do a nota, sua tonta. um baile verde, as fantasiastm que ser verdes, tudo verde. Mas no precisa ficar me olhando, vamos, nopare, pode falar, mas v trabalhando. Falta mais da metade, Lu!

    Estou sem culos, no enxergo direito sem os culos. No faz mal disse a jovem limpando no lenol o excesso de cola que lhe

    escorreu pelo dedo. V grudando de qualquer jeito que l dentro ningum vaireparar, vai ter gente bea. O que est me endoidando este calor, no aguentomais, tenho a impresso de que estou me derretendo, voc no sente? Calorbrbaro!

    A mulher tentou prender o crisntemo que resvalara para o pescoo. Franziu atesta e baixou o tom de voz.

    Estive l. E da? Ele est morrendo.Um carro passou na rua, buzinando freneticamente. Alguns meninos puseram-

    se a cantar aos gritos, o compasso marcado pelas batidas numa panela: A coroa dorei no de ouro nem de prata

    Parece que estou num forno gemeu a jovem dilatando as narinasporejadas de suor. Se soubesse, teria inventado uma fantasia mais leve.

    Mais leve do que isso? Voc est quase nua, Tatisa. Eu ia com a minhahavaiana, mas s porque aparece um pedao da coxa o Raimundo implica. Imaginevoc ento

    Com a ponta da unha, Tatisa colheu uma lantejoula que se enredara na rendada meia. Deixou-a cair na pequena constelao que ia armando na barra do saiotee ficou raspando pensativamente um pingo ressequido de cola que lhe cara nojoelho. Vagava o olhar pelos objetos, sem fixar-se em nenhum. Falou num tomsombrio:

    Voc acha, Lu?

  • Acha o qu? Que ele est morrendo? Ah, est sim. Conheo bem isso, j vi um monte de gente morrer, agora j

    sei como . Ele no passa desta noite. Mas voc j se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que

    estava nas ltimas E no dia seguinte ele j pedia leite, radiante. Radiante? espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lbios

    pintados de vermelho-violeta. E depois, eu no disse no senhora que ele iamorrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse. Mas hoje diferente,Tatisa. Espiei da porta, nem precisei entrar para ver que ele est morrendo.

    Mas quando fui l ele estava dormindo to calmo, Lu. Aquilo no sono. outra coisa.Afastando bruscamente o saiote aberto nos joelhos, a jovem levantou-se. Foi

    at a mesa, pegou a garrafa de usque e procurou um copo em meio da desordemdos frascos e caixas. Achou-o debaixo da esponja de arminho. Soprou o fundo cheiode p de arroz e bebeu em largos goles, apertando os maxilares. Respirou de bocaaberta. Dirigiu-se preta.

    Quer? Tomei muita cerveja, se misturo d nsia.A jovem despejou mais usque no copo. Minha pintura no est derretendo? Veja se o verde dos olhos no borrou

    Nunca transpirei tanto, sinto o sangue ferver. Voc est bebendo demais. E nessa correria Tambm no sei por que essa

    inveno de saiote bordado, as lantejoulas vo se desgrudar todas no aperto. E opior que no posso caprichar, com o pensamento no Raimundo l na esquina

    Voc chata, no, Lu? Mil vezes fica repetindo a mesma coisa, taque-taque-taque-taque! Esse cara no pode esperar um pouco?

    A mulher no respondeu. Ouvia com expresso deliciada a msica de um blocoque passava j longnquo. Cantarolou em falsete: Acabou chorando acabouchorando

    No outro carnaval entrei num bloco de sujos e me diverti grande. Meusapato at desmanchou de tanto que dancei.

    E eu na cama, podre de gripe, lembra? Neste quero me esbaldar. E seu pai?Lentamente a jovem foi limpando no leno as pontas dos dedos

    esbranquiados de cola. Tomou um gole de usque. Voltou a afundar o dedo nopote.

    Voc quer que eu fique aqui chorando, no isso que voc quer? Quer que

  • eu cubra a cabea com cinza e fique de joelhos rezando, no isso que voc estquerendo? Ficou olhando para a ponta do dedo coberto de lantejoulas. Foideixando no saiote o dedal cintilante. Que que eu posso fazer? No sou Deus,sou? Ento? Se ele est pior, que culpa tenho eu?

    No estou dizendo que voc culpada, Tatisa. No tenho nada com isso,ele seu pai, no meu. Faa o que bem entender.

    Mas voc comea a dizer que ele est morrendo! Pois est mesmo. Est nada! Tambm espiei, ele est dormindo, ningum morre dormindo

    daquele jeito. Ento no est.A jovem foi at a janela e ofereceu a face ao cu roxo. Na calada, um bando

    de meninos brincava com bisnagas de plstico em formato de banana, esguichandogua um na cara do outro. Interromperam a brincadeira para vaiar um homem quepassou vestido de mulher, pisando para fora nos sapatos de saltos altssimos.Minha lindura, vem comigo, minha lindura!, gritou o moleque maior, correndoatrs do homem. Ela assistia cena com indiferena. Puxou com fora as meiaspresas aos elsticos do biquni.

    Estou transpirando feito um cavalo. Juro que se no tivesse me pintado, memetia agora num chuveiro, besteira a gente se pintar antes.

    E eu no aguento mais de sede resmungou a empregada arregaando asmangas do quimono. Ai! uma cerveja bem geladinha. Gosto mesmo decerveja, mas o Raimundo prefere cachaa. No ano passado ele ficou de porre ostrs dias, fui sozinha no desfile. Tinha um carro que foi o mais bonito de todos,representava um mar. Voc precisava ver aquele monte de sereias enroladas emprolas. Tinha pescador, tinha pirata, tinha polvo, tinha tudo! Bem l em cima,dentro de uma concha abrindo e fechando, a rainha do mar coberta de joias

    Voc j se enganou uma vez atalhou a jovem. Ele no pode estarmorrendo, no pode. Tambm estive l antes de voc, ele estava dormindo tosossegado. E hoje cedo at me reconheceu, ficou me olhando, me olhando e depoissorriu. Voc est bem papai?, perguntei e ele no respondeu mas vi que entendeuperfeitamente o que eu disse.

    Ele se fez de forte, coitado. De forte, como? Sabe que voc tem o seu baile, no quer atrapalhar. Ih, como difcil conversar com gente ignorante explodiu a jovem,

    atirando no cho as roupas amontoadas na cama. Revistou os bolsos de uma calacomprida. Voc pegou meu cigarro?

    Tenho minha marca, no preciso dos seus.

  • Escuta, Luzinha, escuta comeou ela, ajeitando a flor na carapinha damulher. Eu no estou inventando, tenho certeza de que ainda hoje cedo ele mereconheceu. Acho que nessa hora sentiu alguma dor porque uma lgrima foiescorrendo daquele lado paralisado. Nunca vi ele chorar daquele lado, nunca.Chorou s daquele lado, uma lgrima to escura

    Ele estava se despedindo. L vem voc de novo, merda! Pare de bancar o corvo, at parece que voc

    quer que seja hoje. Por que tem que repetir isso, por qu? Voc mesmo pergunta e no quer que eu responda. No vou mentir, Tatisa.A jovem espiou debaixo da cama. Puxou um p de sapato. Agachou-se mais,

    roando os cabelos verdes no cho. Levantou-se, olhou em redor. E foi-seajoelhando devagarinho diante da preta. Apanhou o pote de cola.

    E se voc desse um pulo l s para ver? Mas voc quer ou no que eu acabe isto? a mulher gemeu exasperada,

    abrindo e fechando os dedos ressequidos de cola. O Raimundo tem dio deesperar, hoje ainda apanho!

    A jovem levantou-se. Fungou, andando rpido num andar de bicho na jaula.Chutou o sapato que encontrou no caminho.

    Aquele mdico miservel. Tudo culpa daquela bicha. Eu bem disse que nopodia ficar com ele aqui em casa, eu disse que no sei tratar de doente, no tenhojeito, no posso! Se voc fosse boazinha, voc me ajudava, mas voc no passa deuma egosta, uma chata que no quer saber de nada. Sua egosta!

    Mas, Tatisa, ele no meu pai, no tenho nada com isso, at que ajudomuito sim senhora, como no? Todos esses meses quem que tem aguentado otranco? No me queixo porque ele muito bom, coitado. Mas tenha a santapacincia, hoje no! J estou fazendo demais aqui plantada quando devia estar narua.

    Com um gesto fatigado, a jovem abriu a porta do armrio. Olhou-se noespelho. Beliscou a cintura.

    Engordei, Lu. Voc, gorda? Mas voc s osso, menina. Seu namorado no tem onde

    pegar. Ou tem?Ela ensaiou com os quadris um movimento lascivo. Riu. Os olhos animaram-se: Lu, Lu, pelo amor de Deus, acabe logo que meia-noite ele vem me buscar.

    Mandou fazer um pierr verde. Tambm j me fantasiei de pierr. Mas faz tempo. Vem num Tufo, viu que chique? Que isso?

  • um carro muito bacana, vermelho. Mas no fique a me olhando, depressa,Lu, voc no v que Passou ansiosamente a mo no pescoo. Lu, Lu, porque ele no ficou no hospital?! Estava to bem no hospital

    Hospital de graa assim mesmo, Tatisa. Eles no podem ficar a vidainteira com um doente que no resolve, tem doente esperando at na calada.

    H meses que venho pensando nesse baile. Ele viveu sessenta e seis anos.No podia viver mais um dia?

    A preta sacudiu o saiote e examinou-o a uma certa distncia. Abriu-o de novono colo e inclinou-se para o pires de lantejoulas.

    Falta s um pedao. Um dia mais Vem me ajudar, Tatisa, ns duas pregando vai num instante.Agora ambas trabalhavam num ritmo acelerado, as mos indo e vindo do pote

    de cola ao pires e do pires ao saiote, curvo como uma asa verde pesada delantejoulas.

    Hoje o Raimundo me mata recomeou a mulher, grudando as lantejoulasmeio ao acaso. Passou o dorso da mo na testa molhada. Ficou com a mo paradano ar. Voc no ouviu?

    A jovem demorou para responder. O qu? Parece que ouvi um gemido.Ela baixou o olhar. Foi na rua.Inclinaram as cabeas irmanadas sob a luz amarela do abajur. Escuta, Lu, se voc pudesse ficar hoje, s hoje comeou ela num tom

    manso. Apressou-se: Eu te daria meu vestido branco, aquele meu branco, sabequal ? E tambm os sapatos, esto novos ainda, voc sabe que eles esto novos.Voc pode sair amanh, voc pode sair todos os dias, mas pelo amor de Deus, Lu,fica hoje!

    A empregada sorriu, triunfante. Custou, Tatisa, custou. Desde o comeo eu j estava esperando. Ah, mas

    hoje nem que me matasse eu ficava, hoje no. O crisntemo caiu enquanto elasacudia a cabea. Prendeu-o com um grampo que abriu entre os dentes. Perderesse desfile? Nunca! J fiz muito acrescentou sacudindo o saiote. Pronto, podevestir. Est um servio porco mas ningum vai reparar.

    Eu podia te dar o casaco azul murmurou a jovem, limpando os dedos nolenol.

    Nem que fosse para ficar com meu pai eu ficava, ouviu isso, Tatisa? Nem

  • com meu pai, hoje no.Levantando-se de um salto, a moa foi at a garrafa e bebeu de olhos

    fechados mais alguns goles. Vestiu o saiote. Brrrr! Esse usque uma bomba resmungou, aproximando-se do espelho.

    Anda, venha aqui me abotoar, no precisa ficar a com essa cara. Sua chata.A mulher tateou os dedos por entre o tule. No acho os colchetes.A jovem ficou diante do espelho, as pernas abertas, a cabea levantada. Olhou

    para a mulher atravs do espelho: Morrendo coisa nenhuma, Lu. Voc estava sem os culos quando entrou no

    quarto, no estava? Ento no viu direito, ele estava dormindo. Pode ser que me enganasse mesmo. Claro que se enganou! Ele estava dormindo.A mulher franziu a testa, enxugando na manga do quimono o suor do queixo.

    Repetiu como um eco: Estava dormindo, sim. Depressa, Lu, faz uma hora que est com esses colchetes! Pronto disse a outra, baixinho, enquanto recuava at a porta. No

    precisa mais de mim, no ? Espera! ordenou a moa perfumando-se rapidamente. Retocou os lbios,

    atirou o pincel ao lado do vidro destapado. J estou pronta, vamos descerjuntas.

    Tenho que ir, Tatisa! Espera, j disse que estou pronta repetiu, baixando a voz. S vou

    pegar a bolsa Voc vai deixar a luz acesa? Melhor, no? A casa fica mais alegre assim.No topo da escada ficaram mais juntas. Olharam na mesma direo: a porta

    estava fechada. Imveis como se tivessem sido petrificadas na fuga, as duasmulheres ficaram ouvindo o relgio da sala. Foi a preta quem primeiro se moveu. Avoz era um sopro:

    Quer ir dar uma espiada, Tatisa? V voc, LuTrocaram um rpido olhar. Bagas de suor escorriam pelas tmporas verdes da

    jovem, um suor turvo como o sumo de uma casca de limo. O som prolongado deuma buzina foi-se fragmentando l fora. Subiu poderoso o som do relgio.Brandamente a empregada desprendeu-se da mo da jovem. Foi descendo a

  • escada na ponta dos ps. Abriu a porta da rua. Lu! Lu! a jovem chamou num sobressalto. Continha-se para no gritar.

    Espera a, j vou indo!E apoiando-se ao corrimo, colada a ele, desceu precipitadamente. Quando

    bateu a porta atrs de si, rolaram pela escada algumas lantejoulas verdes namesma direo, como se quisessem alcan-la.

  • A Caada

    A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus panosembolorados e livros comidos de traa. Com as pontas dos dedos, o homem tocounuma pilha de quadros. Uma mariposa levantou voo e foi chocar-se contra umaimagem de mos decepadas.

    Bonita imagem disse.A velha tirou um grampo do coque e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar

    o grampo no cabelo. um So Francisco.Ele ento se voltou lentamente para a tapearia que tomava toda a parede no

    fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se tambm. J vi que o senhor se interessa mesmo por isso. Pena que esteja nesse

    estado.O homem estendeu a mo at a tapearia, mas no chegou a toc-la. Parece que hoje est mais ntida Ntida? repetiu a velha, pondo os culos. Deslizou a mo pela superfcie

    puda. Ntida como? As cores esto mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela?A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mos decepadas. O

    homem estava to plido e perplexo quanto a imagem. No passei nada. Por que o senhor pergunta? Notei uma diferena. No, no passei nada, essa tapearia no aguenta a mais leve escova, o

    senhor no v? Acho que a poeira que est sustentando o tecido acrescentoutirando novamente o grampo da cabea. Rodou-o entre os dedos com ar pensativo.Teve um muxoxo: Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro.Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difcil encontrar umcomprador, mas ele insistiu tanto. Preguei a na parede e a ficou. Mas j faz anosisso. E o tal moo nunca mais me apareceu.

    ExtraordinrioA velha no sabia agora se o homem se referia tapearia ou ao caso que

    acabara de lhe contar. Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com ogrampo.

    Eu poderia vend-la, mas quero ser franca, acho que no vale mesmo apena. Na hora que se despregar capaz de cair em pedaos.

  • O homem acendeu um cigarro. Sua mo tremia. Em que tempo, meu Deus! emque tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?

    Era uma caada. No primeiro plano, estava o caador de arco retesado,apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundocaador espreitava por entre as rvores do bosque, mas era apenas uma vagasilhueta cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era oprimeiro caador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os msculos tensos, espera de que a caa levantasse para desferir-lhe a seta.

    O homem respirava com esforo. Vagou o olhar pela tapearia que tinha a coresverdeada de um cu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido,destacavam-se manchas de um negro-violceo que pareciam escorrer da folhagem,deslizar pelas botas do caador e espalhar-se no cho como um lquido maligno. Atouceira na qual a caa estava escondida tambm tinha as mesmas manchas, quetanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorandoo pano.

    Parece que hoje tudo est mais prximo disse o homem em voz baixa. como se Mas no est diferente?

    A velha firmou mai