joana zylbersztajn, tese de

491
JOANA ZYLBERSZTAJN “O Princípio da Laicidade na Constituição Federal de 1988” Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Direito do Estado como exigência parcial para a obtenção do título de Doutora, sob a orientação do Prof. Titular Virgílio Afonso da Silva FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Upload: syllas-pinheiro

Post on 22-Dec-2015

276 views

Category:

Documents


7 download

DESCRIPTION

Tese sobre estado laico. Atenção, este trabalho é protegido por Direitos de autor para Joana Zylbersztajn!

TRANSCRIPT

JOANA ZYLBERSZTAJN

O Princpio da Laicidade na Constituio Federal de 1988

Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Direito do Estado como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Doutora, sob a orientao do Prof. Titular Virglio Afonso da Silva

FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SO PAULOSo Paulo, maro de 2012

Verso corrigida em julho de 2012A verso original, em formato eletrnico (PDF), encontra-se disponvel na CPG da Unidade

AGRADECIMENTOS

Contei com a ajuda e compreenso de muitas pessoas para realizar esse trabalho, e meros agradecimentos no seriam suficientes para expressar tanta gratido.Agradeo imensamente a minha famlia, que sempre, sempre, esteve ao meu lado, dando todo o suporte e carinho. Meus amigos que ficaram por perto mesmo quando eu estava longe. Os queridos colegas de trabalho, que me deram todo o apoio possvel para completar essa jornada.Meus chefes Rogrio Sottili e Gilberto Carvalho, que compreenderam e apoiaram o projeto, em conjunto com a maravilhosa equipe que formaram: Larissa Beltramim, Herbert Barros, Gabriella Oliveira, Fanie Miranda, Adriana Segabinazzi, Ana Tlia de Macedo, Julio Borges, Diogo SantAna, Maria Victoria Hernandez, Las Lopes e Eida Santana, que representam todos os companheiros de todos os dias.As amigas de alma que permitiram a tranquilidade da distncia, Rachel do Valle, Lorena Almeida, Mariana Trench, Bia Salles e Marina Rolfsen. Joana Cooper que ainda ajudou de ltima hora e Daniela Sequeira, tambm revisora deste trabalho. Os amigos Luis Villares, Davi Tangerino, Bruno Ramos, Adriana Vojvodic e Lena Peres. Todos que correram para responder aos meus pedidos de ajuda. Pedro Abramovay e Juliano Zaiden Benvindo, amigos e leitores que ajudaram a formatar essa tese. Christiana Freitas que colaborou diretamente. Rafael Bellm de Lima, sem palavras, foi amigo, crtico e colaborador incansvel.Os professores Marcos Paulo Verssimo e Diogo Coutinho, pela orientao to importante que deram no processo de qualificao. Eles, e as professoras Flvia Piovesan e Roseli Fischmann, que muito contriburam na banca de defesa. Meu orientador, Virgilio Afonso da Silva, que foi extremamente compreensivo durante este processo atribulado da minha vida, sempre disposto a ajudar.A famlia Zaiden Benvindo pelo apoio to prximo. Meus amados avs La e Isaac Wajskop, Abram Zylbersztajn e Shirlei, minhas tias e meus primos, Lcia, Gisela, Elisa, Joo, Felipe, Marcelo e o Z Leon. Meus irmos Julia e Pedro Cardoso Zylbersztajn que distncia me aqueciam o corao, e Marilia Zylbersztajn, sempre presente para dividir as angstias e me apoiar. Meu pai, David Zylbersztajn, com sua insistncia impulsionadora. A Kiki Moretti, a Bia Cardoso. O Jacques Grinspum. A minha me, Telma Wajskop, minha verdadeira base na vida.E, finalmente, a pessoa que viveu comigo os momentos desse processo to difcil, o maior responsvel por ter sido possvel chegar ao fim, que sofreu e comemorou comigo. Aldo Zaiden Benvindo, meu companheiro de corao e vida.

RESUMO

O debate sobre a laicidade do Estado sempre esteve presente em diversos mbitos de discusso, polticos, sociais e acadmicos. No obstante, necessrio o fortalecimento dos recursos argumentativos para lidar com a questo de forma concreta.A constituio federal de 1988 no declara expressamente que o Brasil laico, mas traz de forma consolidada todos os elementos que formam este entendimento. Isso se d pela caracterizao do Estado democrtico garantidor da igualdade e da liberdade inclusive religiosa de seus cidados. Soma-se a isso a determinao constitucional de separao institucional entre o Estado e a religio.Nesta perspectiva, este trabalho se prope a fazer uma anlise da proteo jurdico- constitucional do princpio da laicidade no Brasil e seus desdobramentos prticos.A efetivao do princpio da laicidade um processo em construo e, deste modo, necessrio o amadurecimento democrtico e esforo positivo das instituies pblicas para sua realizao. feito inicialmente o levantamento da construo histrica da laicidade no pas e a tentativa de organizar alguns conceitos tericos sobre o tema, na perspectiva de alinhar entendimentos usados durante o trabalho. Parte-se ento para a anlise do carter constitucional do princpio da laicidade e os significados decorrentes desse diagnstico.Sendo um tema complexo, diretamente relacionado aos parmetros sociais que compem o Estado brasileiro, necessrio discutir os aspectos democrticos importantes para a concretizao do princpio da laicidade, abordando a dicotomia entre democracia e constitucionalismo, bem como algumas consideraes sobre a presena religiosa na esfera pblica.Por fim, considerando justamente o processo em construo para consolidao da laicidade, so analisados casos concretos referentes ao tema, visando compreenso do grau atual de efetivao do princpio no pas e os desafios que se impem para a garantia do preceito constitucional.

PALAVRAS CHAVES: Princpio, Laicidade, Estado Laico, Democracia, Direito Constitucional, Direitos Fundamentais, Direitos Humanos.

ABSTRACT

The debate over the laicity (from the French concept lacit) of the state has always been present in the political, social and academic arenas. Nevertheless, it is necessary to strengthen the analytic resources to concretely deal with this issue.The federal constitution of 1988 does not expressly state that Brazil is a laic state, but, all-together, one can read all the elements that lead to such an understanding. This is the effect of the characterization of the democratic state that guarantees equality and freedom - including the religious freedom - of its citizens. The constitutional determination of an institutional separation between state and religion is an additional factor.In this perspective, this thesis aims to make an analysis of the legal and constitutional protection of the principle of laicity in Brazil and its practical consequences.The implementation of the principle of laicity is an ongoing process and thus the democratic maturing and conscious effort of the public institutions are necessary.The thesis begins with the historical development of laicity in the country as well as some theoretical concepts on the subject. Later, the constitutional character of the principle of laicity and the meanings arising from this diagnosis are analyzed.Relevant democratic aspects for the implementation of the principle of laicity, regarding the dichotomy between democracy and constitutionalism, as well as some thoughts on the religious presence in the public sphere could not be avoided, since the issue is a complex one, directly related to the social parameters that make up the Brazilian State.Finally, considering the ongoing process for the consolidation of laicity, the concrete cases on the subject are also scrutinized, aiming to understand the actual degree of implementation of the principle in the country and the challenges imposed to guarantee the constitutional guideline.

KEYWORDS: Principle, Laicity (Lacit), Laic State, Democracy, Constitutional Law, Fundamental Rights, Human Rights. (Secular State, Separation between church and State)

O PRINCPIO DA LAICIDADE NA CONSTITUIO FEDERAL DE 1988

Sumrio

INTRODUO1CAPTULO 1 - LAICIDADE: ABORDAGEM HISTRICA E CONCEITOS16A construo histrica da laicidade no mbito constitucional brasileiro16Histrico das constituies brasileiras19Constituio Federal de 198826Conceitos34Laicidade34Laicidade e separao entre Estado e Igreja39Laicidade e liberdade religiosa49Laicidade e conceitos conexos52CAPTULO 2 O PRINCPIO DA LAICIDADE NA CONSTITUIO BRASILEIRA 58Distino e definio de princpios e regras58Laicidade como princpio62Eficcia, suporte ftico e contedo essencial66Aplicabilidade de normas constitucionais e regulamentao70Coliso entre direitos fundamentais: liberdade de expresso e liberdade religiosa71CAPTULO 3 ASPECTOS DEMOCRTICOS78Democracia e constitucionalismo78Pblico e privado85CAPTULO 4 DIMENSES PRTICAS DE CONCRETIZAO DA LAICIDADE101 I.Introduo102Aspectos gerais105Smbolos e referncias religiosas105Feriados religiosos e dias de guarda121Radiodifuso129Financiamento pblico131Patrimnio pblico136Direitos LGBT e direitos sexuais e direitos reprodutivos140Questes Constitucionais150Ensino religioso150Efeitos civis do casamento religioso168Assistncia religiosa e capelanias170Imunidade tributria para organizaes religiosas182Concordata com a S de Roma182CONCLUSES193REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS214ANEXOSIDecreto 119-A, de 07 de janeiro de 1890IDeclarao Universal da Laicidade do Sculo XXIIIAcordo entre a Repblica Federativa do Brasil e a Santa S sobre assistncia religiosa s Foras ArmadasVIRegimento Interno do Ordinariado Militar do BrasilIXDecreto n 7.107, de 11 de fevereiro de 2010 (Estatuto Jurdico da Igreja Catlica no Brasil)XI

INTRODUOContexto

usual ouvirmos que o Brasil um Estado laico: imprensa, crculos acadmicos, polticos, movimentos sociais, todos afirmam que o pas laico. Essa declarao, no entanto, no est explcita na constituio federal de 1988. De qualquer forma, isso no quer dizer, absolutamente, que o princpio da laicidade no esteja previsto no texto constitucional. Nesse sentido, o presente trabalho pretende entender o que significa o conceito de Estado laico, em que medida a constituio federal traz essa determinao e qual a consequncia prtica dessa discusso para a concretizao da laicidade no Brasil.

Por um lado, o debate sobre o Estado laico sempre esteve em pauta. De mesas de bar a grandes conferncias acadmicas, o assunto recorrente e complexo. As discusses so apaixonadas e agressivas. Por outro lado, a discusso do tema tambm considerada irrelevante em algumas situaes, com opinies de que o contexto atual est adequado ou no ameaador, e, assim, no merece grandes esforos argumentativos ou polticos.

De todo modo, difcil fazer o debate ponderado sobre a questo. Jeffrey Hadden entende1, por exemplo, que a discusso sobre a laicidade mexe com elementos profundos dos intrpretes sociais, que a tratam mais como doutrina, e at ideologia, do que como teoria. J Pierre Sanchis entende que a questo toma contornos de projetos, e at desejos pessoais2. Ou seja, o desafio de discutir aqui a laicidade do Estado est alm do mero estudo sobre o tema, mas reside tambm no constante exerccio de tratar a questo com a mnima neutralidade que a pesquisa acadmica pressupe.

Essa dificuldade de debater o tema abertamente traz consequncias para a consolidao democrtica. Isso ficou evidente no incio do ltimo processo eleitoral para a presidncia da Repblica, em que os argumentos e as tenses religiosas pautaram a corrida ao Planalto. No se quer dizer aqui, de forma nenhuma, que a presena religiosa no debate

1 Jeffrey Hadden. Toward Desacralizing Secularization Theory. Social Forces 65 (1987). Pgs. 587-611. 2Pierre Sanchis. Desencanto e formas contemporneas do religioso. Cincias Sociais e Religio 3 (2001). Pg. 31.

10seja algo antidemocrtico em si, mas apenas evidencia a inexistncia de recursos tericos e argumentativos para discutir o tema de forma qualificada.

O pontap inicial para que o debate tomasse esse rumo nas eleies foi a publicao do terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). O PNDH-3 atualizou as verses anteriores do mesmo Programa, editadas em governos precedentes. Resultado de amplo debate entre governo e sociedade civil, foi formalizado em dezembro de 2009 por decreto presidencial. O texto original previa 511 aes, incluindo determinaes Administrao Pblica Federal e recomendaes aos outros Poderes e Unidades Federadas.

Assim que publicado, o Programa gerou especialmente a reao de quatro setores sociais: (I) grandes empresas de comunicao, por apoiar eventual regulamentao de mdia e acompanhamento informativo de respeito aos direitos humanos pelos veculos de comunicao; (II) ruralistas, por propor ajustes no processo de reintegrao de posse; (III) foras armadas, por defender a apurao e divulgao de violaes de direitos humanos cometidas na ditadura militar; e (IV) Igreja, por apoiar a descriminalizao do aborto, a igualdade de direitos de homossexuais e prevenir a ostentao de smbolos religiosos em reparties pblicas federais.

Por meio de novo decreto presidencial, alguns ajustes de redao foram feitos no texto do PNDH-3, amenizando as questes mencionadas. Apenas duas, das 511 aes, foram excludas: o ranking informativo de respeito aos direitos humanos pela mdia e a elaborao de mecanismos para impedir a ostentao de smbolos religiosos em estabelecimentos pblicos da Unio.

Em meio a tantas polmicas e embates com setores fortes da sociedade, em pleno ano eleitoral, significativo que uma ao como a de Desenvolver mecanismos para impedir a ostentao de smbolos religiosos em estabelecimentos pblicos da Unio tenha sido uma das nicas extirpadas do decreto, enquanto o esforo geral foi manter o resultado final do texto3.

A alterao no acalmou os nimos do debate eleitoral, que passou a ser pautado pela temtica religiosa. verdade que o tema sempre esteve presente nesses momentos da vida democrtica. H quem diga que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso perdeu a

3 Sobre a ao de regulao de mdia, o debate outro e intenso. Trabalhei o tema na minha dissertao de mestrado Regulao de mdia e coliso entre direitos fundamentais. USP, 2008.

eleio para prefeitura de So Paulo em 1985 por ter sido considerado ateu. De qualquer forma, a eleio presidencial de 2010 sofreu o impacto fervoroso das orientaes religiosas, gerou consequncias no plano das polticas pblicas e colocou o tema da laicidade mais intensamente na pauta de discusso.

Os reflexos dessa questo so observados nas diversas esferas da vida pblica, seja na elaborao de polticas, atividade legislativa ou judicial. E por que isso importa?

Como se ver no trabalho, a laicidade um princpio e tem diferentes graus de efetivao. Assim como ocorre com os direitos fundamentais4, deve ser conquistado e reafirmado aos poucos, justamente por meio do esforo estatal5. O arcabouo constitucional, que ser avaliado, a sustentao para a sua existncia, mas a prtica que efetiva o princpio. Por isso se faz necessria a avaliao conjunta das diversas dimenses em que a laicidade tratada.

Alguns aspectos do debate sobre a laicidade precisam ser enfrentados. As discusses acontecem com todo tipo de argumentos vlidos ou no. H crticas que entendem aes para a consolidao da laicidade do Estado como intolerantes e contrrias liberdade religiosa, ou que tornam o Estado ateu e anticlerical. Mesmo que haja exageros naturais nessas reivindicaes, de fato h um embate em que a linha de tolerncia muitas vezes ultrapassada. De todos os lados.

Ainda que a representao catlica tenha decrescido nas ltimas duas dcadas, os catlicos ainda so majoritrios no pas. De acordo com o censo populacional de 20106, os catlicos representam quase 65% da populao. Somados os protestantes (pentecostais e neopentecostais), aproximadamente 87% da populao brasileira exercem a religiosidade crist. O mesmo censo populacional identificou 40 religies distintas no Brasil, aparte daquelas computadas de forma conjunta, as pessoas sem religio ou de religiosidade indefinida7.

4 Existe forte debate se os princpios necessariamente geram direitos subjetivos, discusso que no pretendo fazer aqui. De todo modo, considerando que h sujeitos a serem protegidos pelo princpio da laicidade, creio que h existncia de direito fundamental decorrente.5 Explorarei um pouco mais este entendimento no primeiro captulo.6 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE. Censo 2010.7 A ttulo ilustrativo, o Censo 2010 registrou a declarao das seguintes confisses ou grupos religiosos no pas: Catlica Apostlica Romana, Catlica Apostlica Brasileira, Catlica Ortodoxa, Igreja Evanglica Luterana, Igreja Evanglica Presbiteriana, Igreja Evanglica Metodista, Igreja Evanglica Batista, Igreja

Ou seja, ainda que haja predominncia de uma orientao confessional e seja imprescindvel o entendimento de que a tradio religiosa est presente no pas, necessrio considerar o pluralismo religioso, os embasamentos da democracia e da prpria laicidade no Estado Democrtico de Direito.

Como discutirei no trabalho, o Brasil estabelece constitucionalmente a separao entre Estado e Igreja8 e tambm a garantia liberdade religiosa. Considerando que estas determinaes devem conviver entre si (e assim se retroalimentam, como se ver), diversas solues so consideradas no mundo jurdico. Nesse ponto, a teoria constitucional passa a ser explorada considerando a harmonizao dos diversos princpios que compem a laicidade entre si e com os demais princpios constitucionais.

Complementarmente, analisa-se que algumas teorias liberais, por exemplo, defendem que o caminho para a garantia da laicidade e a liberdade religiosa ao mesmo tempo a distino do carter pblico do privado. Ou seja, no mbito privado, todos so livres para exercer sua religiosidade como entenderem. J no mbito pblico, a religio deve ser tratada com total imparcialidade9.Por outro lado, John Rawls10, um dos principais tericos do liberalismo poltico, no faz essa separao to definida. Ele advoga que importante tambm levar a questo religiosa para o espao pblico at para que diferentes temas sejam continuamente trabalhados no mbito social. Para ele, as questes que se referem moralidade, como a religio, no podem se limitar apenas ao mbito privado, at porque isso seria impossvel. Ento, a questo como canalizar essa moralidade dentro espao jurdico sem que isso fira a liberdade e o pluralismo.

Evanglica Congregacional, Igreja Evanglica Adventista, Outras Evanglicas de Misso, Igreja Assembleia de Deus, Igreja Congregao Crist do Brasil, Igreja o Brasil para Cristo, Igreja Evangelho Quadrangular, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Casa da Beno, Igreja Deus Amor, Igreja Maranata, Igreja Nova Vida, Evanglica renovada no determinada, Comunidade Evanglica, Outras igrejas Evanglicas de origem pentecostal, Evanglica no determinada, Outras religiosidades crists, Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos ltimos Dias, Testemunhas de Jeov, Espiritualista, Esprita, Umbanda, Candombl, Outras declaraes de religiosidades afro-brasileiras, Judasmo, Hindusmo, Budismo, Igreja messinica mundial, Outras novas religies orientais, Outras Religies Orientais, Islamismo, Tradies Esotricas, Tradies Indgenas, Outras Religiosidades, Sem religio, Ateu, Agnstico, Religiosidade no determinada/mal definida, Declarao de mltipla religiosidade.8 Utilizarei o termo Igreja de maneira genrica em referncia s instituies religiosas ou ao entendimento de separao institucional do Estado em relao religio.9 Conceitos como imparcialidade ou neutralidade sero explorados no trabalho.10 Conforme teoria em seus trabalhos como O Liberalismo Poltico, desenvolvido no captulo sobre aspectos democrticos.

Constituio

Partindo para a anlise constitucional do tema, entendo que a laicidade do Estado brasileiro no expressa na constituio federal, o que no quer dizer que no haja a diretriz constitucional para a laicidade. Considero que o princpio est garantido pelo texto constitucional, a partir da interpretao de seu conjunto.

Pretendo demonstrar que a laicidade um princpio constitudo por diversos elementos constitucionais, nos termos do art. 5, 2 da constituio federal, sendo o primeiro dele a prpria determinao de democracia (art. 1). Somam-se a esse elemento bsico as diretrizes de garantia de direitos fundamentais (art. 5), especialmente a igualdade e a liberdade includa a a liberdade religiosa. Por fim, a laicidade brasileira fortalecida pela determinao de separao entre Estado e Igreja (art. 19, I).

Esses artigos garantem que o Estado no pode ter relaes privilegiadas com determinada religio, ao mesmo tempo em que tem o dever de garantir o pleno exerccio religioso de seus cidados.

Considerando esse conjunto de determinaes constitucionais, o entendimento que a laicidade garantida no mbito da constituio reforado pela leitura do art. 5, 2, que dispe: Os direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte.

Nesse ponto, o entendimento do significado de laicidade relevante para sabermos o grau de proteo constitucional conferido a este princpio. Importante ressaltar desde j que, por vezes, nos deparamos com a identificao da laicidade do Estado com o disposto no art. 19, I da constituio brasileira. Trata-se de confundir a determinao da separao entre Estado e Igreja com o conceito de laicidade. No so de sinnimos, como ficar claro no trabalho. Alm de significarem coisas diferentes e terem consequncias distintas, o conceito de laicidade mais amplo do que a separao entre Estado e Igreja, e igualar estas perspectivas enfraquece e restringe a laicidade.

Alm dos elementos que considero formadores da laicidade, a constituio federal trata da questo religiosa em diversos outros dispositivos, a fim, especialmente, de garantir

a liberdade de crena. O arcabouo constitucional deve ser entendido em seu conjunto, para determinar qual o contedo de laicidade protegido, e como isso previsto.

A partir disso, o princpio da laicidade, ainda que no seja um valor absoluto e superior a outros princpios, um mandamento de otimizao11 e deve ser concretizado o mximo possvel. Para isso, resta ainda mais relevante a atuao estatal positiva para a garantia do direito12.

Esta anlise no s importante para a definio conceitual mais apurada, mas para dar embasamento discusso mais ampla de efetividade da laicidade do Estado brasileiro. Assumindo que no existem normas constitucionais de eficcia plena13, avanamos no debate de concretizao do princpio.

Finalmente, vemos que possvel que haja, em casos concretos, colises entre direitos fundamentais envolvendo elementos formadores da laicidade. comum a coliso entre o direito liberdade de expresso e o direito liberdade religiosa, por exemplo. Ou mesmo entre o mesmo direito, como a liberdade religiosa de uns em relao aos que professam f diferente.

Essas questes precisam ser enfrentadas, considerando que os princpios devem ser protegidos em sua maior extenso14. Nesses casos, possvel ter como critrio a medida que mais garantir a laicidade Estatal.

Democracia

O debate sobre a laicidade complexo, permeado de argumentos embasados na cultura e tradio do povo brasileiro, na religiosidade exercida pela maioria da sociedade ou na legitimidade das pessoas que compem os diversos Poderes da Repblica trazerem para suas atividades as suas convices filosficas pessoais, por exemplo. Questiona-se

11 Conforme definio de Robert Alexy em Teoria dos Direitos Fundamentais. So Paulo: Malheiros, 2008. Pgs, 90-91, explorada adiante.12 Ainda que utilize a teoria de Alexy, importante ressaltar que h diversos entendimentos que criticam esseposicionamento, no identificando os princpios constitucionais com mandamentos de otimizao, por entenderem que isso enfraquece o seu carter deontolgico. Nada obstante, a teoria de Alexy que fornece subsdios importantes para a anlise aqui proposta, como explicarei no captulo respectivo.13 Conforme discusso de Virglio Afonso da Silva em Direitos Fundamentais. So Paulo: Malheiros, 2009. Pgs. 208 e ss., explorada adiante.14 Especialmente se considerada a adoo do suporte ftico amplo, conforme discusso de Virglio Afonso da Silva em Direitos Fundamentais. Pgs. 65 e ss., explorada adiante.

tambm se aprisionar a religiosidade dentro dos muros privados no seria, de certa maneira, afrontar a liberdade religiosa. Ou ainda, se essa estratgia seria at mesmo possvel na realidade.

A partir do desenvolvimento terico acerca do significado do princpio da laicidade e sua proteo constitucional, e considerando a necessidade de sua realizao prtica, alguns aspectos democrticos precisam ser enfrentados.

Esse trabalho no versa sobre a teoria democrtica, no entanto, no h como no trazer esse debate no mbito do tema proposto. O ncleo da discusso o entendimento sobre a laicidade brasileira. Essa anlise pode ser feita sob diversos aspectos e proponho- me aqui a discutir seu enfoque jurdico, a partir da anlise da proteo constitucional sobre o princpio da laicidade.

De todo modo, preciso enfrentar a realidade brasileira para no teorizar ao vento. preciso assumir que as instituies nacionais ainda so extremamente permeveis influncia religiosa de maneira a enfraquecer a previso constitucional da laicidade.

Nada obstante, a proteo constitucional primria e fundamental para a efetivao do princpio da laicidade. Aqui entramos na discusso sobre o papel da cincia do direito, especificamente do direito constitucional, para a preservao dos direitos fundamentais nas sociedades contemporneas. esta proteo constitucional que garante que a democracia no seja apenas a vontade da maioria, mas que suas diretrizes respeitem as especificidades das minorias.

Resta, ento, analisar os fundamentos democrticos de um Estado constitucional, a fim de discutir os parmetros de efetivao do princpio em questo, considerando a legitimidade da presena religiosa nos diversos mbitos da sociedade brasileira.

Este aspecto dialoga essencialmente com a questo da concretizao da laicidade e os parmetros para anlise do grau de sua efetivao. Isso porque o entendimento sobre as possibilidades de interao democrtica da religio na esfera pblica direciona a compreenso de atendimento ou no do princpio constitucional.

Tomo como exemplo ilustrativo a participao da Confederao Nacional dos Bispos do Brasil CNBB em audincia pblica ou como amicus curiae em aes julgadas

pelo Supremo Tribunal Federal (tais como a ADPF 132 de 2008 e ADI 4227 de 2009, julgadas conjuntamente, que reconheceram a unio homoafetiva; a ADPF 54 de 2005 que tratou da possibilidade de antecipao do parto de fetos anencfalos e a ADI 3510 de 2005 sobre realizao de pesquisas com clulas-tronco embrionrias).

Ou seja, a Igreja Catlica fez-se presente e foi ouvida no mbito de decises judiciais que vinculariam toda a sociedade brasileira. Se h a efetiva separao entre Estado e religies, deveria essa situao ser permitida? Por outro lado, no a Igreja uma instituio social legtima que pode participar das decises pblicas?

As respostas a essas perguntas so essenciais para orientar o diagnstico do grau de efetivao da laicidade brasileira em relao sua proteo constitucional. Se qualquer forma de interferncia religiosa nas instituies democrticas for considerada atentatria ao princpio da laicidade, a participao da CNBB nas decises do STF indica a violao da garantia constitucional. Ou, se de outro modo for considerada possvel tal influncia da instituio confessional, dentro de parmetros estabelecidos, a diretriz jurdica da laicidade no estar comprometida.

Outro aspecto que pode ser considerado nesta discusso a eventual motivao religiosa em polticas pblicas, decises judiciais ou elaborao legislativa. No ltimo caso, a ttulo ilustrativo, poderamos analisar algumas leis (ou ausncia delas), tais como o no reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a proibio do aborto. Essa discusso teria dois aspectos complexos: de uma parte, a dificuldade metodolgica de definio se h ou no a motivao religiosa nestes casos. Pode-se argumentar que essas proibies simplesmente retratam a cultura e valores morais da sociedade brasileira, sem qualquer vnculo religioso. Ou ainda mesmo que tenham a origem em valores religiosos, esses j podem ter sido de fato incorporados aos valores sociais civis.

De outra parte, ainda que se entenda que h real motivao exclusivamente religiosa para essa atuao parlamentar, esbarramos justamente na questo democrtica. Considerando que os parlamentares tm suas agendas definidas e representam as suas bases eleitorais a partir disso, poderia ser considerado legtimo que defendessem os interesses religiosos de seus eleitores (ou mesmo a sua crena individual). Sendo assim, essa abordagem no deve ter o condo de determinar se tais situaes tm ou no

motivao religiosa, mas inseri-las neste debate sob o ponto de vista da anlise de constitucionalidade democrtica.

Concretizao

A partir da compreenso do significado da laicidade e a anlise de sua proteo constitucional, somadas abordagem dos aspectos democrticos do tema, necessrio verificar em que medida a realidade brasileira reflete as diretrizes jurdicas propostas.

Por que isso importante? O debate histrico sobre a suposta democracia racial no Brasil pode ajudar a demonstrar tal preocupao. Independentemente da complexidade e polmicas geradas pela obra, cito essa questo em linhas gerais para ilustrar meu argumento. Em 1933, Gilberto Freyre lanou seu Casa Grande & Senzala, em que defendia a igualdade entre brancos e negros no pas e valorizava a cultura popular. O autor contrariou os ideais racistas da poca, que atribuam ao clima tropical e aos mestios o atraso do pas, e sustentou a tese de que o problema estava relacionado s causas sociais.

Se por decorrncia do trabalho ou no, surgiu no pas uma compreenso de democracia racial, que rejeitava a diferenciao de pessoas por sua cor. Tratava-se de um novo projeto de nao, no entanto, a simples rejeio da diferenciao de raas no foi capaz de acabar com o racismo no pas. Ao contrrio. Defendendo a existncia de uma democracia racial, o debate sobre a realizao material da igualdade foi de certo modo sufocado.

Desde ento, o pas e o mundo passaram por diversos momentos histricos e assistiram consolidao dos ideais de direitos humanos. Socialmente, a teoria da suposta democracia racial foi amplamente questionada, de modo a assumir a existncia real do racismo no pas. Esse questionamento possibilitou que hoje a constituio federal preveja expressamente a vedao da discriminao por motivao racial, diretriz consagrada inclusive com a tipificao da conduta. Alm da proteo jurdica, polticas pblicas de aes afirmativas intentam mudar o cenrio de marginalizao racial e garantir a igualdade

material entre todas as pessoas. Ou seja, o reconhecimento do problema orientou a necessidade de proteo jurdica definida e sua efetivao concreta15.

Quero dizer que no basta declarar a laicidade para que ela exista. Assim como no bastou declarar a igualdade entre brancos e negros para que o racismo deixasse de existir. Do mesmo modo, no basta a proteo jurdica laicidade para que ela se efetive, do mesmo modo que a simples proteo jurdica igualdade entre pessoas de cores diferentes garante sua materializao.

Ou seja: defendo que h proteo constitucional do princpio da laicidade no Brasil ainda que seja necessrio analisar o grau e contedo conferidos a essa proteo , e que isso suficiente para que o Estado democrtico atue no sentido de sua efetivao. De outro lado, o simples reconhecimento jurdico e terico no significa que o pas seja laico, pois a laicidade depende de elementos concretos para sua realizao.

A partir de casos exemplificativos, pretendo tratar do grau de laicidade real que temos hoje no Brasil ou o seu nvel de garantia ftica nas instituies democrticas brasileiras , analisando se isso resultado da forma que o princpio previsto constitucionalmente e/ou da forma que tratado pelo Estado. Quero dizer, ser importante identificar se os casos de eventual fragilizao da laicidade nos casos concretos proveem do nvel de proteo constitucional a ela conferida ou da forma que compreendida pelas instituies remetendo a um diagnstico sobre qual o papel do direito constitucional e qual o papel da democracia na efetivao do princpio.

Neste aspecto, necessrio diferenciar duas abordagens distintas. De um lado, os elementos sociais e culturais relativos questo, como a presena simblica da religio em mbitos diversos da esfera pblica, o (no)reconhecimento oficial de datas comemorativas religiosas, o relacionamento estatal com algumas religies (includas a a questo da concesso de radiodifuso, financiamentos pblicos de atividades religiosas e cesso de patrimnio pblico a organizaes religiosas), alm do j mencionado impacto da religio em assuntos relacionados com direitos sexuais e direitos reprodutivos, ou igualdade de

15 Isso no quer dizer, evidentemente, que o debate sobre o racismo no Brasil est superado. Tais polticas, por exemplo, recebem crticas justamente embasadas na teoria da democracia racial, que rejeitam o problema. Livros recentes como No somos racistas do jornalista Ali Kamel, dedicam-se exatamente a combater a ideia da excluso dos negros, defendendo que a cultura de miscigenao brasileira superou historicamente a questo. No questiono aqui as atuais intenes ou fundamentos do argumento, meu objetivo ao trazer essa questo outro.

homossexuais, entre outros. De outro lado, elementos relacionados s previses constitucionais relativas questo religiosa, como ensino religioso, efeitos civis do casamento religioso, assistncia religiosa ou imunidade tributria a organizaes religiosas.

Dentro de cada um destes pontos, preciso compreender e diferenciar aquilo que est sob a guarida constitucional dos aspectos provenientes da atuao das instituies por si. A atuao dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judicirio est conectada com as anlises de concretizao dos assuntos selecionados, e essa abordagem pretende avaliar questes especficas nessas esferas democrticas em sua atuao discricionria. Cada um desses mbitos de anlise deve estar, de qualquer forma, submetido considerao do atendimento proteo constitucional e seus contornos democrticos.

Assim, como mencionado, no que tange aos aspectos gerais relacionados presena religiosa na esfera pblica, podemos incluir a ostentao de smbolos e outras referncias religiosas em espaos pblicos, como o crucifixo16 no plenrio do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (que permanece exposto, mesmo aps diversos questionamentos inclusive judiciais). H que se falar ainda da presena de smbolos religiosos em outros espaos pblicos, como escolas e ambientes de trabalho estatais. Tambm o caso de questionar o uso pessoal de smbolos religiosos por agentes do Estado no exerccio de suas funes.

A questo simblica se estende ainda para outros aspectos, desde a meno de deus no prembulo constitucional presena de dizeres religiosos em documentos e cerimnias pblicas. Destaco ainda dentro do aspecto social o reconhecimento oficial de feriados religiosos e o tratamento diferenciado aos dias de guarda de confisses no predominantes.

A situao da concesso de canais de radiodifuso a entidades religiosas outro ponto a ser abordado. Sendo concesso pblica, legtimo que organizaes religiosas controlem emissoras? Ou ainda, o que dizer de programas religiosos veiculados na grade de programao da TV Pblica (TV Brasil, desenvolvida pela Empresa Brasileira de Comunicaes EBC).

Considerando especialmente a separao entre Estado e Igreja, e a vedao de subveno ou privilgio a determinada confisso, necessrio analisar aspectos como o

16 Apesar de diferentes, os termos cruz e crucifixo sero usados indistintamente neste trabalho.

financiamento pblico a eventos religiosos e a destinao de patrimnio pblico a determinadas organizaes confessionais, por exemplo.

Por fim, feitas as devidas ressalvas, cabe ilustrativamente debruar-se sobre o impacto da presena religiosa na efetivao de alguns direitos, tais como os sexuais e reprodutivos ou das pessoas lsbicas, gays, bissexuais, transexuais ou travestis (LGBT). Insere-se aqui, por exemplo, o caso do juiz de Goinia que no reconheceu a unio homoafetiva de um casal de homens, mesmo depois da deciso do STF, tendo sua atuao apoiada pela bancada evanglica do Congresso Nacional.

O tema tambm possibilita observar a participao da Igreja como amicus curiae nas aes do Supremo Tribunal Federal e outras decises judiciais ocasionalmente influenciadas pelos valores religiosos dos juzes. Algumas vezes, a argumentao de carter confessional explcita, em outras situaes, os argumentos so traduzidos para termos jurdicos. Nesse contexto, imprescindvel a anlise proposta sobre a diferenciao daquilo que protegido juridicamente da atuao das instituies democrticas e seus representantes.

Partindo para a abordagem dos aspectos concretos de realizao das previses constitucionais especficas sobre a religiosidade, abordo a concordata realizada entre o Brasil e a S de Roma. Apesar de no ser um assunto especificamente tratado no texto constitucional, o documento assumido pelo Brasil versa sobre diversos aspectos religiosos do texto constitucional, sendo impossvel desvincul-lo desta anlise. Sua efetivao, dispondo sobre diretrizes religiosas diferenciadas que o pas deve seguir em relao a uma confisso especfica, complexifica a discusso.

Sobre os aspectos previstos no texto constitucional, h que se debruar como eles so efetivamente tratados, em sua regulamentao infraconstitucional e aplicao. Nesse ponto, um aspecto relevante para a discusso a aplicao do ensino religioso previsto na constituio. A regulamentao federal do assunto foi feita pela Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB-EN). Embora atualmente a LDB-EN preveja diversas limitaes a esta forma de educao, regulamentaes estaduais e municipais desrespeitam a ideia de um ensino religioso de carter social e filosfico prevista na lei federal e instituem o ensino confessional, por vezes tornando as salas de aula pblicas em espaos de proselitismo de determinada religio.

O tratamento dado s diversas confisses no momento do reconhecimento civil do casamento realizado por agente religioso tambm traz subsdios sobre a avaliao da laicidade do Estado, bem como a efetivao dos preceitos constitucionais de assistncia religiosa em locais de internao civis e militares ou concesso de imunidade tributria a organizaes religiosas.

A laicidade do Estado condio capital para a democracia contempornea, garantindo direitos fundamentais e a formao autnoma do ser humano. Marco Huaco define com clareza esta relao:

Se corretamente compreendida apesar de ser um princpio para a deliberao democrtica a laicidade um princpio de convivncia onde o gozo dos direitos fundamentais e as liberdades pblicas podem alcanar maior extenso e profundidade, sendo completamente contrria a um regime que procure sufocar as liberdades religiosas de pessoas e instituies. Assim , pois a laicidade permite a convivncia de diferentes formas de conceber o mundo, sem a necessidade que elas tenham que sacrificar a sua identidade distintiva em prol de um igualitarismo uniformizador que ignora as peculiaridades prprias, mas sem que isso signifique irromper em um catico concerto de vozes discrepantes e concepes antagnicas incapazes de coexistir socialmente combase em pressupostos comuns e mnimos de convivncia17.

Como mencionado, o processo de consolidao da laicidade histrico e construdo, tal como ocorre com os demais direitos fundamentais. Trata-se de um tema importante em diversas partes do mundo, em um debate mais ou menos avanado conforme o contexto de cada pas. O Brasil certamente est nesse passo, mas o processo ainda est em curso.

Desenvolvimento

Considerando a necessidade de compreenso unificada do significado da laicidade, dentro do seu contexto histrico uma vez que se trata de um princpio garantidor de direito fundamental, e para tanto criado, definido e realizado de acordo com o seu desenvolvimento social, a primeira etapa deste trabalho se ater apreciao histrica em que se insere o princpio da laicidade e os significados pertinentes identificao do que

17 Marco Huaco. A laicidade como princpio constitucional do Estado de Direito. In Roberto Arruda Lorea (org.) Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. Pg. 45.

seja um Estado laico. O objetivo aqui construir parmetros bsicos para a evoluo do debate que se pretende neste trabalho.

Em seguida, ser explorada a teoria constitucional para dar embasamento terico ao entendimento sobre o princpio da laicidade, visando identificao do tratamento dado ao princpio no mbito da constituio federal o que embasa o diagnstico sobre o nvel de proteo, contedo e forma orientadores das aes estatais para sua garantia. Pretende-se responder o que o princpio da laicidade e como sua proteo definida.

O terceiro captulo abordar o debate sobre a teoria democrtica, com o objetivo de identificar os limites de presena religiosa nos espaos pblicos e contornos esperados das instituies democrticas na proteo do princpio constitucional da laicidade.

A partir disso, a teoria encontra nos aspectos prticos o teste sobre as dimenses brasileiras de concretizao da laicidade. Pretendo neste ponto identificar o grau de laicidade no Estado Brasileiro em seu contexto real, diferente da anlise que se d pela proteo constitucional do princpio.

Esta a principal abordagem do trabalho, que no pretende estender-se na ampla bibliografia nacional e internacional j existente sobre o tema, mas estabelecer um dilogo entre a teoria constitucional e democrtica com a efetivao do princpio da laicidade no contexto brasileiro.

Tese

Assim, a hiptese desta tese sustenta que a laicidade do Estado brasileiro no plena e sua concretizao ainda est em construo, considerando:

I. A constituio federal no explcita quanto laicidade do Estado brasileiro;

II. H confuses conceituais sobre o embasamento constitucional da laicidade brasileira;

III. A laicidade um princpio constitucional implcito e, como princpio, um mandamento de otimizao formado pelo contexto de outros elementos constitucionais, nos termos do art. 5, 2 da constituio federal (democracia, igualdade e liberdade

especialmente a religiosa), fortalecido pela determinao de separao entre Estado e Igreja;

IV. necessrio considerar o contedo essencial relativo do princpio da laicidade (o que e como protegido em geral) partindo da adoo do modelo de suporte ftico amplo associado proporcionalidade, considerando que no h normas constitucionais absolutas;

V. O fundamento democrtico de um Estado constitucional exige a definio de alguns parmetros para a presena religiosa na esfera pblica;

VI. A efetivao da laicidade um processo histrico e construdo, e depende de condies fticas e jurdicas para sua concretizao;

VII. As instituies democrticas brasileiras ainda so demasiadamente permeveis influncia religiosa, alm do permitido pela constituio e ponderaes democrticas;

VIII. Diferenciando qual a proteo jurdica do princpio no Brasil e como ela efetivada, pretendo contribuir para o diagnstico do grau de laicidade no Estado brasileiro, permitindo que o debate seja amplificado a partir de concepes amadurecidas sobre o tema.

Em suma, meu objetivo analisar a garantia constitucional dada ao princpio da laicidade, a partir do entendimento de seu significado e forma de proteo (o que e como protegido). Isso importante considerando ser o Brasil uma democracia constitucional, o que lhe obriga a garantir os direitos fundamentais definidos nesse caso relacionados ao princpio da laicidade, independentemente da confisso dominante no pas. Entendendo que as instituies democrticas brasileiras ainda so influenciadas por razes dogmticas religiosas, a compreenso do contedo constitucional e dos contornos de sua efetivao capital para a garantia material da laicidade.

CAPTULO1-LAICIDADE:ABORDAGEMHISTRICAE CONCEITOS

I. A construo histrica da laicidade no mbito constitucional brasileiro

Antes de partir para a anlise da construo histrica da laicidade no Brasil, entendo que necessrio retomar, ainda que brevemente, a concepo da afirmao histrica dos direitos humanos nas sociedades contemporneas. Considero a abordagem importante na medida em que reconheo que a consolidao do princpio da laicidade um processo em construo, nos mesmos moldes de formao do ideal dos direitos humanos.

Para Oscar Vilhena Vieira, os direitos humanos so numa definio preliminar, aquela intangibilidade voltada a proteger a dignidade de toda pessoa, pelo simples fato de ser humana. A grande dificuldade, e o que tem monopolizado os debates entre filsofos e tericos do direito, pelo menos nestes ltimos dois milnios, saber o qu so estes direitos e de onde eles vm18.

Nesse sentido, Flvia Piovesan indica a resposta ao lembrar que no dizer de Hannah Arendt, os direitos humanos no so um dado, mas um construdo, uma inveno humana, em constante processo de construo e reconstruo 19. A autora ainda retoma a expresso de Norberto Bobbio sobre o assunto: direitos humanos no nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas20. Ou seja, a resposta sobre o qu e de onde vm os direitos humanos muda conforme o contexto histrico, em constante processo de evoluo.

A evoluo histrica dos direitos humanos marcada por fases que reconhecem categorias especficas de direitos. Os chamados direitos civis e polticos (ou direitos individuais de liberdade) foram reconhecidos no final do sculo XVIII visando proteger os cidados dos abusos do poder absolutista, enquanto o que conhecemos hoje por direitos econmicos, sociais e culturais (ou direitos coletivos de igualdade) surgiram no incio do

18 Oscar Vilhena Vieira. Direitos Humanos 50 anos depois. Cadernos de Direitos Humanos e Cidadania. IEDC - Instituto de Estudos de Direitos Humanos e Cidadania. (1999). Pg. 25.19 Flvia Piovesan. A constitucionalidade do PNDH-3. Revista Direitos Humanos - Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica 5 (2010): Pg. 1220 Flvia Piovesan. Op. Cit. Pg. 12

sculo XX, demandando a atuao estatal para garantia do bem-estar social. J no sculo XX passaram a ter status de direitos humanos os direitos dos povos (ou direitos difusos de solidariedade), em que deveriam ser garantidos elementos transindividuais como o meio-ambiente.

A concepo contempornea dos direitos humanos surge aps a 2 Guerra Mundial, com a Declarao Universal dos Direitos Humanos, a primeira tentativa de reconhecer que todos so sujeitos de direitos pelo fato de serem pessoas e elabora um rol inicial do que se considera direitos humanos. A partir desse documento, reafirmado pela Declarao de Direitos Humanos de Viena em 1993, os direitos humanos passam a ser considerados indivisveis, interdependentes e inter-relacionados. Ou seja, ainda que reconhecidos em momentos histricos diferentes, todos os direitos conquistados at ento devem ser garantidos em sua integralidade e conjuntamente.

De todo modo, a concepo do contedo e forma de proteo dos direitos humanos est em permanente evoluo. Novos direitos tm sido reivindicados como direitos humanos, tal como o direito comunicao, e aqueles direitos j reconhecidos passam a ter novos contornos e exigncias. Alm disso, a compreenso da atuao do Estado ante a garantia dos direitos tambm tem sido alterada durante o tempo. Se no incio da consolidao dos direitos civis e polticos esperava-se to somente a absteno do Estado para sua realizao, hoje j se reconhece a responsabilidade estatal para efetivao destas garantias, por exemplo.

Especificamente, a abrangncia do contedo da laicidade e o papel do Estado na garantia de sua efetivao esto inseridos no mbito da evoluo histrica do princpio. A abordagem pode ter incio desde o tratado de Westflia, responsvel por encerrar em 1648 a guerra religiosa conhecida como Guerra dos 30 anos e dar incio concepo moderna do Estado-Nao. Este marco inaugura dois conceitos importantes para o tema: o incio da superao da tese de origem e legitimao divina do poder do governante e o surgimento da soberania estatal e do direito internacional dos direitos humanos.

Nesta esteira, Jos Joaquim Gomes Canotilho considera a evoluo da concepo de laicidade inserida na prpria origem da consolidao dos direitos fundamentais:

A quebra da unidade religiosa da cristandade deu origem apario de minorias religiosas que defendiam o direito de cada um

verdadeira f. Esta defesa da liberdade religiosa postulava, pelo menos, a ideia de tolerncia religiosa e a proibio do Estado em impor ao foro ntimo do crente uma religio oficial. Por este facto, alguns autores, como G. JELLINEK, vo mesmo ao ponto de ver na luta pela liberdade de religio a verdadeira origem dos direitos fundamentais21.

No obstante, o autor pondera que em um primeiro momento o movimento estava mais interessado na ideia de tolerncia religiosa para credos diferentes do que propriamente da concepo da liberdade de religio ou crena como direito inalienvel do homem22.

Ou seja, em um primeiro momento, a questo da laicidade estava relacionada com a liberdade religiosa, um direito de liberdade, coerente com o discurso liberal de cidadania expresso nas primeiras declaraes de direitos. Seguindo a evoluo histrica da compreenso dos direitos humanos, a laicidade passa a incorporar a noo de igualdade entre os cidados e ao fim, insere-se na concepo democrtica dos Estados modernos.

Essa compreenso, como desenvolvo ao longo do trabalho, foi absorvida pela constituio federal de 1988, ao consolidar o princpio da laicidade no contexto da liberdade, igualdade e democracia.

Nisso se insere o papel do Estado para sua efetivao. No entender de Flvia Piovesan, o texto constitucional disps por meio do art. 5, 1 (As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tm aplicao imediata) a obrigatoriedade de o Estado agir para a concretizao dos direitos fundamentais23. Para a autora, luz da Carta de 1988, refora-se a ideia de que a participao estatal imprescindvel sob muitos aspectos, particularmente no campo social, sendo hoje impensvel um retorno ao modelo absentesta24.

Ou seja, o princpio da laicidade acompanhou e acompanha a evoluo histrica dos direitos humanos, desde a abrangncia de contedo necessidade do Estado agir para sua concretizao. Disso se conclui que a efetivao do princpio da laicidade um processo em andamento e exige esforo estatal para seu cumprimento.

21 Jos Joaquim Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. Pg. 383.22 Jos Joaquim Gomes Canotilho. Op. Cit. Pg. 383.23 Flvia Piovesan. Temas de Direitos Humanos. 3 ed. So Paulo: Saraiva, 2009. Pg. 321.24 Flvia Piovesan. Temas. Op. Cit. Pg. 323.

a) Histrico das constituies brasileiras

Considerando a laicidade um processo de construo histrica, faz-se pertinente a contextualizao sobre a evoluo da relao jurdica entre o Estado e a religio no Brasil. A separao orgnica entre o Estado e a religio foi declarada legalmente no pas um pouco antes da proclamao da Repblica. Abordarei mais detidamente o tratamento constitucional sobre o tema desde ento, ainda que trate das disposies anteriores a ttulo ilustrativo.

Apenas como nota, durante o perodo da colonizao, apesar de no haver registros relevantes sobre intolerncia religiosa, a nica religio admitida para o Estado seria a catlica. A inquisio portuguesa iniciada em 1536 teve reflexos no pas, principalmente contra os cristos novos, e em 1540 a Companhia de Jesus implementou a ao de catequese pelos jesutas. O perodo de ocupao holandesa, ocorrido entre 1630 e 1656, ampliou a tolerncia religiosa. Com a declarao de independncia, em 1822, o Brasil manteve a previso de liberdade religiosa ainda que restrita.

A constituio federal de 1824 caracteriza-se pela unio entre o Estado e a Igreja Catlica, proclamando o catolicismo como a religio oficial do pas, ainda que concedesse aos outros credos certa liberdade no mbito estritamente privado. Tal previso decorria do art. 5: a Religio Catholica Apostolica Romana continuar a ser a Religio do Imperio. Todas as outras Religies sero permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem frma alguma exterior do Templo.

O art. 95 determinava que no poderiam ser eleitores ou candidatos ao parlamento aqueles que no professassem a religio do Estado. No obstante, o art. 179, dispondo sobre os direitos civis, previa em seu inciso V que ninguem pde ser perseguido por motivo de Religio, uma vez que respeite a do Estado e no offenda a Moral Publica.

Havia um rgido controle exercido pelo Estado sobre a religio e os atores religiosos, por intermdio dos dispositivos constitucionais da Carta Imperial e, em especial, por meio dos institutos do padroado, beneplcito rgio e do recurso Coroa25. O art. 102,

25 Marco Aurlio Lagreca Casamasso. Estado, Igreja e liberdade religiosa na constituio poltica do imprio do Brazil, de 1824. Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI. Fortaleza, 2010.

XIV, por exemplo, previa como atribuio do imperador conceder, ou negar o Beneplacito aos Decretos dos Concilios, e Letras Apostolicas, e quaesquer outras Constituies Ecclesiasticas que se no oppozerem Constituio. A estrutura organizacional da Igreja Catlica tambm era prevista de certa forma no texto constitucional, prevendo inclusive o regime de eleio nas Assembleias Paroquiais. Com isso verificava-se a vulnerabilidade e as limitaes da liberdade religiosa e a vinculaoda cidadania religio catlica26.

Logo aps a proclamao da Repblica foi editado o Decreto 119-A (ainda em vigor), de autoria de Rui Barbosa, que determinava a separao entre o Estado e a Igreja e a garantia da liberdade religiosa. Houve, a partir deste momento, um rompimento drstico nas relaes entre Estado e religio. A primeira constituio republicana, de 1891, foi a mais explcita e contundente da histria do Brasil neste ponto. As constituies seguintes retomaram alguns dos aspectos de cooperao com as religies.

A constituio federal de 1891 delineou as linhas de separao entre Estado e Igreja que norteou toda evoluo constitucional desde ento, bem como os aspectos da liberdade religiosa. Isoladamente na evoluo constitucional republicana, previu a excluso religiosa absoluta em questes pblicas antes protagonizadas pela Igreja Catlica e reconheceu as demais confisses existentes. Foi a nica constituio republicana democrtica que no mencionou deus em seu prembulo.

No que tange separao entre o Estado e a religio, o art. 11 da primeira constituio da Repblica vedava que os estados e a Unio estabelecessem, subvencionassem ou embaraassem o exerccio religioso. Esta diretriz foi reforada no art. 72, 7, ao dispor que nenhum culto ou Igreja gozar de subveno oficial, nem ter relaes de dependncia ou aliana com o governo da Unio ou dos Estados.

Alm da proibio de embarao a cultos pelo Estado mencionado no art. 11, a liberdade religiosa tambm foi garantida na permisso do exerccio de culto de forma ampla e sem distino de crena, conforme o disposto no art. 72, 3: todos os indivduos e confisses religiosas podem exercer pblica e livremente o seu culto, associando-se para este fim e adquirindo bens, observadas as disposies do direito comum.

26 Idem.

O texto de 1891 declarou de forma genrica o direito igualdade (art. 72, 2), e renovou a previso de que nenhum cidado seria privado de direitos civis e polticos por motivo de crena religiosa (art. 72, 28), mas determinou que perderiam todos os direitos polticos aqueles que alegassem motivo de crena religiosa com o fim de se isentarem de qualquer nus que as leis da Repblica impusessem aos cidados (art. 72, 29).

A carta chegou a proibir a participao poltica de religiosos, nos seguintes termos: Art. 70, 1. No podem alistar-se eleitores para eleies federais ou para as dos Estados: IV Os religiosos de ordens monsticas, companhias, congregaes ou comunidades de qualquer denominao, sujeitas a voto de obedincia, regra ou estatuto, que importe a renncia da liberdade individual. Tal previso no foi replicada em nenhuma das constituies posteriores.

Sobre aspectos que antes eram normalmente geridos pela Igreja Catlica, a primeira constituio da Repblica rompeu radicalmente com a ao religiosa na esfera pblica. O art. 72 previu estas diretrizes, com o reconhecimento exclusivo do casamento civil, a secularizao de cemitrios (garantido o exerccio de culto nas liturgias fnebres) e o ensino leigo:

4. A Repblica s reconhece o casamento civil, cuja celebrao ser gratuita.5. Os cemitrios tero carter secular e sero administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prtica dos respectivos ritos em relao aos seus crentes, desde que no ofendam a moral pblica e as leis.6. Ser leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos pblicos.

A constituio federal de 1934 j trouxe diversas alteraes nas disposies relacionadas questo religiosa, voltando a reconhecer a sua presena na esfera pblica a iniciar com a invocao de deus no prembulo. De todo modo, a previso de separao entre Estado e Igreja foi mantida, mas passou a prever a possibilidade de cooperao:

Art. 17. vedado Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios: II - estabelecer, subvencionar ou embaraar o exerccio de cultos religiosos; III - ter relao de aliana ou dependncia com qualquer culto, ou igreja sem prejuzo da colaborao recproca em prol do interesse coletivo.

A liberdade religiosa, identificada com a liberdade de conscincia e crena, bem como a garantia de livre exerccio de culto tambm foi mantida, mas ficaram condicionados ordem pblica e aos bons costumes. As associaes religiosas adquiriram

personalidade jurdica nos termos da lei civil (art. 113. 5 - inviolvel a liberdade de conscincia e de crena e garantido o livre exerccio dos cultos religiosos, desde que no contravenham ordem pblica e aos bons costumes. As associaes religiosas adquirem personalidade jurdica nos termos da lei civil).

No que tange garantia de direitos, a constituio de 1934 previu o direito igualdade perante a lei, especificando que no haveria privilgios ou distines por motivo de crenas religiosas (art. 113, 1). Renovou o disposto na constituio anterior, afirmando que ningum seria privado de direitos por motivo de convices religiosas (art. 113, 4), salvo pela iseno do nus ou servio que a lei imponha aos brasileiros, quando obtida por motivo de convico religiosa, filosfica ou poltica (art. 111, b). Incluiu-se a previso da prestao de servio militar prestado por eclesisticos, sob a forma de assistncia espiritual e hospitalar s foras armadas (art. 163, 3).

Outras importantes diferenas foram incorporadas na constituio de 1934 em relao aos temas de interesse religioso. O casamento religioso voltou a ser reconhecido em seus efeitos civis, ainda que devendo seguir as regras estabelecidas:

Art. 146 - O casamento ser civil e gratuita a sua celebrao. O casamento perante ministro de qualquer confisso religiosa, cujo rito no contrarie a ordem pblica ou os bons costumes, produzir, todavia, os mesmos efeitos que o casamento civil, desde que, perante a autoridade civil, na habilitao dos nubentes, na verificao dos impedimentos e no processo da oposio sejam observadas as disposies da lei civil e seja ele inscrito no Registro Civil.

O ensino religioso tambm passou a ser admitido

Art. 153 - O ensino religioso ser de freqncia facultativa e ministrado de acordo com os princpios da confisso religiosa do aluno manifestada pelos pais ou responsveis e constituir matria dos horrios nas escolas pblicas primrias, secundrias, profissionais e normais.

Ainda que mantendo o carter secular dos cemitrios, respeitadas as liturgias, o texto previu a possibilidade de manuteno de cemitrios particulares por associaes religiosas ainda que sujeitos fiscalizao pblica e proibio de recusa de sepultamento em locais sem cemitrio particular (art. 113, 7). Outra inovao foi a permisso, se solicitada, de assistncia religiosa nas expedies militares, nos hospitais, nas penitencirias e em outros estabelecimentos oficiais, sem nus para os cofres pblicos,

nem constrangimento ou coao dos assistidos (art. 113, 6). Por fim, a constituio de 1934 previu a representao diplomtica junto Santa S (art. 176).

A constituio federal de 1937 foi promulgada no mbito do golpe que implementou o regime do Estado Novo de Getlio Vargas. Considerando o contexto, o prembulo constitucional assim como todo o texto assumiu diferentes contornos, e no fez a invocao a deus. Diversas disposies referentes aos assuntos religiosos foram excludas do texto.

A separao entre Estado e Igreja foi prevista de forma mais restrita, pois se manteve vedao Unio, aos estados e municpios de estabelecer, subvencionar ou embaraar o exerccio de cultos religiosos (art. 32, b), mas no se disps sobre a relao de aliana ou dependncia com cultos e igrejas, independentemente da possibilidade de cooperao.

A liberdade religiosa foi assegurada nos mesmos termos da constituio anterior (art. 122, 4, prevendo liberdade de conscincia e crena, alm do exerccio de culto, submetida ordem pblica e bons costumes), mas silenciou sobre o carter jurdico das associaes religiosas. A igualdade perante a lei foi prevista de maneira genrica, sem especificar as possveis causas de discriminao (art. 122, 1) e no constou dispositivo que vedava a perda de direitos por motivao religiosa. No obstante, foi mantida a previso de que seria caso de perda de direitos polticos a recusa, motivada por convico religiosa, filosfica ou poltica, de encargo, servio ou obrigao imposta por lei aos brasileiros (art. 119). Nada se falou sobre a prestao de servio militar por eclesisticos.

Em relao aos demais temas, a constituio previu apenas que os cemitrios teriam carter secular, administrados pela autoridade municipal (art. 122, 4), sem mencionar a possibilidade de manuteno dos locais por autoridades religiosas. Tampouco previu a questo do casamento religioso. Previu ainda que o ensino religioso poder ser contemplado como matria do curso ordinrio das escolas primrias, normais e secundrias. No poder, porm, constituir objeto de obrigao dos mestres ou professores, nem de freqncia compulsria por parte dos alunos (art. 133). Nada falou sobre a representao diplomtica na Santa-S.

O nico aspecto conexo includo na constituio de 1937 foi no mbito dos direitos trabalhistas, que garantia ao operrio o direito ao repouso semanal aos domingos e, nos limites das exigncias tcnicas da empresa, aos feriados civis e religiosos, de acordo com a tradio local (art. 137, d).

No contexto do reestabelecimento democrtico, a constituio federal de 1946 retomou diversos aspectos da normatizao religiosa e voltou a invocar deus no prembulo, o que se repetiu nas constituies subsequentes.

A separao entre Estado e Igreja voltou a ser normatizada de forma completa, vedando o estabelecimento, subveno ou embarao do exerccio de cultos, bem como a relao de aliana ou dependncia como qualquer culto ou igreja sem prejuzo de colaborao recproca em prol do interesse coletivo (art. 31, II e III).

A liberdade religiosa e o carter das associaes religiosas voltaram a ser dispostos nos exatos termos da constituio de 1934 (art. 141, 7, relativo liberdade e conscincia e crena e exerccio de culto, submetida ordem pblica e o aos bons costumes, alm do carter jurdico das associaes religiosas). Manteve-se a previso genrica de igualdade perante a lei (art. 141, 1). A determinao de que ningum seria privado de direitos por motivos de convico religiosa tambm foi expressa, com a novidade da previso da escusa de conscincia, nos seguintes termos:

Art. 141. 8 - Por motivo de convico religiosa, filosfica ou poltica, ningum ser privado de nenhum dos seus direitos, salvo se a invocar para se eximir de obrigao, encargo ou servio impostos pela lei aos brasileiros em geral, ou recusar os que ela estabelecer em substituio daqueles deveres, a fim de atender escusa de conscincia.

A constituio novamente previu a situao da prestao do servio militar por eclesisticos, determinando que poderia ser cumprida pela assistncia espiritual ou nos servios das foras armadas (art. 181, 2). Tambm garantiu a assistncia religiosa s foras armadas, sem constrangimento dos favorecidos e previu, ainda, sua realizao nos estabelecimentos de internao coletiva, mediante solicitao (art. 141, 9). Foi mantida a previso introduzida pela constituio de 1937 a respeito do direito do trabalhador gozar dos feriados religiosos, conforme exigncias da empresa (art. 157, VI).

Quanto aos demais temas, a constituio de 1946 voltou a prever os efeitos civis do casamento religioso, se observados os impedimentos e as prescries da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contanto que seja o ato inscrito no Registro Pblico (art. 163, 1). Previu-se ainda que o ensino religioso constitui disciplina dos horrios das escolas oficiais, de matrcula facultativa e ser ministrado de acordo com a confisso religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsvel (art. 168, V). Por fim, foi reafirmado o carter secular dos cemitrios, administrados pela autoridade municipal, bem como retomou a permisso de manuteno destes locais por associaes religiosas, na forma da lei (art. 141, 10). Retomou-se ainda a previso de representao diplomtica junto Santa-S (art. 196) o que no voltou a ocorrer nas constituies subsequentes.

Como novidade, a constituio federal de 1946 passou a prever a imunidade tributria aos templos de qualquer culto (art. 31, V, b).

A constituio de 1967, promulgada no mbito da ditadura militar, pouco inovou em todos estes aspectos. Manteve a previso de separao entre Estado e Igreja nos termos anteriores, registrando na previso de colaborao de interesse pblico que isso poderia ocorrer notadamente nos setores educacional e hospitalar (art. 9, II). Manteve tambm a mesma previso de liberdade religiosa associada liberdade de conscincia e exerccio de culto, submetida ordem pblica e aos bons costumes (art. 150, 5). Retomou a previso de igualdade de todos perante a lei especificando que no haveria distino por motivo de credo religioso (art. 150, 1).

O texto reafirma ainda que no haver perda de direitos por motivo de crena religiosa, salvo se invocar para eximir-se de obrigao legal imposta a todos caso em que a lei poder determinar a perda dos direitos incompatveis com a escusa de conscincia sem prever substituio de deveres para atender escusa (art. 150, 6), entendimento repisado na previso de perda de direitos polticos pela recusa prestao de encargo ou servio imposto aos brasileiros em geral baseada em convices religiosas (art. 144, II, b).

Foi alterada a previso de prestao de servios militares por eclesisticos, podendo lhes ser atribudo outros encargos (art. 93, pargrafo nico). Manteve-se inalterada a previso de assistncia religiosa s foras armadas e estabelecimentos de internao coletiva (art. 150 7). Da mesma forma, previu-se novamente o repouso remunerado do

trabalhador semanalmente e nos feriados civis e religiosos, de acordo com a tradio local (art. 158, VII).

Em relao aos outros aspectos analisados, os efeitos civis do casamento religioso so reconhecidos da mesma maneira da carta anterior (art. 167, 2), assim como a previso do ensino religioso (art. 168, 3, IV matrcula facultativa, nos horrios normais das escolas oficiais de grau primrio e mdio). Por fim, mantiveram-se os mesmos termos da imunidade tributria a templos de qualquer culto (art. 20, III). A previso de representao diplomtica junto Santa-S deixou de ser prevista no texto constitucional.

A constituio de 1969 manteve as mesmas previses da carta de 1967, com pequenos ajustes de texto e renumerao de artigos.

Independentemente dos contornos assumidos por cada um dos itens tratados nos diferentes contextos constitucionais, a partir da anlise do texto de 1988 e consideraes tericas e constitucionais feitas partir daqui, possvel afirmar que o princpio da laicidade ainda no estava completamente consolidado, mas em processo de formao. Trata-se de situao absolutamente compreensvel, considerando a garantia e efetivao de direitos fundamentais em um contexto de evoluo histrica e amadurecimento democrtico.

b) Constituio Federal de 1988

Alm da verificao dos dispositivos constitucionais que tratam de aspectos relacionados questo religiosa, como analisado nos contextos anteriores, a avaliao da atual conjuntura constitucional merece ser ampliada, tendo em vista a necessidade de interpretao da proteo do princpio da laicidade no arcabouo atualmente vigente.

A presena religiosa a partir da constituio de 1988 pode ser analisada desde o processo constituinte. Douglas Antnio Rocha Pinheiro enfrenta a questo tendo como mote o art. 46 do Regimento da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987/1988,

que dispunha: A Bblia Sagrada dever ficar sobre a mesa da Assembleia Nacional Constituinte, disposio de quem dela quiser fazer uso27.

O autor trata em seu trabalho do processo de discusso religiosa no contexto da constituinte, tendo incio pela prpria discusso e incluso do mencionado artigo no regimento interno dos trabalhos.

A emenda apresentada por Salantiel de Carvalho, deputado membro da Assembleia de Deus, que solicitava a incluso do artigo no Regimento, foi rejeitada a princpio pelo relator dos trabalhos, o ento senador Fernando Henrique Cardoso, em nome da laicidade do Estado. Ao ser confrontado por outro constituinte, que invocou o precedente da presena do crucifixo no Plenrio, e visando continuidade dos trabalhos, o senador colocou a emenda em pauta para votao que foi aprovada por unanimidade.

Douglas Pinheiro pondera que a aprovao por unanimidade reflete duas possveis justificativas: o anseio profundo e indispensvel de todos os constituintes ou correspondia pretenso de um grupo especfico, que, porm, no encontrava qualquer oposio por parte dos demais em razo de sua matria caracterizar-se por uma no- essencialidade28.

Considerando que dificilmente todos os parlamentares ansiavam pelo apoio bblico durante os trabalhos, demonstrado inclusive pela rejeio inicial de colocar o dispositivo em votao, somos levados a pressupor que o tema apenas no foi considerado relevante a ponto de integrar a pauta de discusso.

Este fato extremamente interessante para ressaltar a influncia religiosa no processo de construo da constituio brasileira no momento de redemocratizao do pas. A transigncia dos parlamentares constituintes com o tema indica os contornos que a questo tomaria durante os trabalhos. O interesse religioso de um lado, e o suposto entendimento de que aquelas reivindicaes seriam de menor importncia, delinearam o processo constituinte e deram o tom de como este debate seria encarado no Brasil no perodo que seguia. Explico. Acatar a permanncia da bblia sobre a mesa, por ser algo

27 Douglas Antnio Rocha Pinheiro. Direito, Estado e Religio a Constituinte de 1987/1988 e a (re)construo da identidade religiosa do sujeito constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Argumentum, 2008. Pg. 13.28 Douglas Antnio Rocha Pinheiro. Op. Cit.. Pg. 23. (grifo meu)

pragmaticamente irrelevante, desprezar o eu potencial simblico e a influncia que se permite religio na instituio gerando consequncias efetivao da laicidade.

A aceitao da argumentao religiosa na constituinte relevante no sentido que se tratar no captulo sobre os aspectos democrticos. O uso da bblia como reforo argumentativo29 possvel desconsiderou a necessidade do uso da razo pblica30 no frum decisrio.

Registro aqui um exemplo que ilustra a situao, ainda que merea alguns apontamentos em seguida. O deputado constituinte Matheus Iensen, que se declarou membro da Assembleia de Deus, fez a seguinte declarao durante os trabalhos:

Quero, nesta oportunidade, afirmar que toda me, casada ou no, que permite que a criana concebida no seu ventre seja assassinada antes de vir luz, est violentando uma lei, ditada pelo prprio Deus e registrada no Livro de Levticos, Captulo 17, Versculos 11 e 14, que diz: a vida da carne est no sangue. E esta sustentada desde a concepo no ventre da me, pelo seu sangue, que transmite ao filho tudo aquilo de que necessita para viver. Esta vida sagrada, e deve ser preservada a qualquer custo31.

Ressalto que no possvel afirmar que esse argumento tenha ou no sido levado em considerao para a deciso final sobre o aborto durante o processo constituinte, mas seu registro destaca a forte presena religiosa nos trabalhos, com uso de argumentos exclusivamente religiosos por parlamentares.

Diversos exemplos semelhantes podem ser destacados a ttulo ilustrativo, demonstrando como a presena religiosa formal influenciou o processo constituinte. Houve, em determinado momento dos trabalhos, a proposta de incluir dispositivo que estabelecia que ningum seria prejudicado ou privilegiado em funo de sua orientao sexual. O texto foi atacado intensamente pela bancada religiosa, com argumentos religiosos, at que fosse retirado de pauta.

29 Martin Marty. Americas Iconic Book, in Humanizing Americas Iconic Book. Gene Tucker and Douglas Kight (Ed.). Chico: Sholar Press, 1982.30 Conforme definio de John Rawls em O Liberalismo Poltico, abordada no captulo sobre aspectos democrticos.31 Assembleia Nacional Constituinte. Dirio da Assembleia Nacional Constituinte. Braslia, 02.02.1988. Pg. 6771. Trecho extrado de Douglas Antnio Rocha Pinheiro. Op. Cit. Pg. 31 (rodap).

Um dos pronunciamentos, como exemplo, foi feito por Eliel Rodrigues no Plenrio do Congresso:

Achamos que inserir no texto constitucional essa expresso [orientao sexual] permitir a oficializao do homossexualismo (...) uma deformao de ordem moral e espiritual, reprovvel sob todos os pontos de vista genuinamente cristos (...). Achamos que o adequado deix-los com o seu livre arbtrio, com o seu livre direito de escolha de seu prprio caminho, porquanto cada um livre para direcionar sua vida e tornar-se responsvel pelos seus atos, diante de Deus e dos homens, mas no oficializar sua conduta. Deus ama o pecador, mas aborrece-o o pecado. Seu propsito o arrependimento por parte dos que trilham caminhospervertidos32.

Vale dizer que embora o discurso seja eminentemente religioso, a bancada argumentava a legitimao de sua posio democraticamente. Salatiel de Carvalho afirmou em artigo de jornal que os evanglicos no querem que os homossexuais tenham igualdade de direitos porque a maioria da sociedade no quer33. Ou como afirma Douglas Pinheiro, as citaes religiosas no serviam apenas de reforo ao papel imagtico da Bblia, mas tambm, atribuio de efeito de verdade ao discurso do constituinte34.

Outro ponto destacado por Pinheiro em seu trabalho a formao de uma bancada evanglica fortalecida no processo constituinte do final da dcada de 1980. A primeira legislatura aps a ditadura militar, que atuou de 1983 a 1987, j contava com 11 parlamentares identificados com religies protestantes, nmero que subiu para 34 durante a constituinte. O autor destaca evidentemente que outros parlamentares evanglicos j haviam sido eleitos anteriormente, mas no havia a identificao oficial de suascandidaturas com suas denominaes religiosas35.

Esse contexto foi responsvel pelo acirramento das discusses que envolviam questes religiosas no s para garantir seus fundamentos na carta constitucional como tambm pelo enfrentamento dos parlamentares evanglicos para garantirem seu espao perante a maioria catlica. O confronto mencionado anteriormente, sobre a possibilidade

32 Assembleia Nacional Constituinte. Dirio da Assembleia Nacional Constituinte. Braslia, 23.08.1987. Pg. 4877. Download disponvel em http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/CT_Abertura.asp (N008).33 Antnio Flvio Pierucci. Representantes de Deus em Braslia: a bancada evanglica na Constituinte in Antnio Flvio Pierucci e Reginaldo Prandi. A Realidade Social das Religies no Brasil: Religio, Sociedade e Poltica. So Paulo: Hucitec, 1996. Pg-18734 Douglas Antnio Rocha Pinheiro. Op. Cit. Pg. 34.35 Douglas Antnio Rocha Pinheiro. Op. Cit. Pgs. 56-57.

de manuteno da bblia no processo constituinte, considerando a presena do crucifixo no plenrio, j um indicativo desta tenso.

Douglas Pinheiro assinala que esta postura identifica-se com o que chama de dilema de Guaracy Silveira: bater-se pela laicidade, questionando as vantagens oficiosas que a religio majoritria teria obtido no decorrer dos anos (...) ou lutar pelo igual acesso a essas mesmas vantagens?36.

Ainda que em um primeiro momento os parlamentares evanglicos pretenderam separar por completo as esferas pblica e religiosa, a fim de garantir a liberdade de suas confisses, a estratgia foi paulatinamente mudando. Em vez de afastar a influncia catlica, passaram a exigir que a influncia evanglica tambm tivesse o mesmo espao. Tal situao fortaleceu ainda mais a presena religiosa no debate constituinte e nos diversos fruns pblicos subsequentes.

Independentemente desse contexto, a constituio federal de 1988, apelidada de constituio cidad em funo da garantia de direitos que previa no momento de redemocratizao do pas, seguiu a linha geral das constituies anteriores no que se refere ao relacionamento da religiosidade com o Estado.

Como j mencionei, a constituio de 1988 no contm um dispositivo que diga o Estado brasileiro laico. No entanto, entendo que a laicidade um princpio abrigado pelo texto constitucional, formado por outros elementos que compem o texto. Desenvolverei a anlise de carter terico e constitucional no captulo seguinte, explicitando aqui as referncias da constituio relativas laicidade e religio.

Entendo que o primeiro elemento formador do princpio da laicidade a prpria determinao de democracia, includa entre os dispositivos normativos: art. 1 A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito (...) Pargrafo nico. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituio.

36 Douglas Antnio Rocha Pinheiro. Op. Cit. Pg. 89.

Conjuntamente, faz-se necessrio frisar a diretriz norteadora do art. 5, caput, da constituio federal, sob o ttulo dos direitos e garantias fundamentais, que prev o direito igualdade: Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade.

Ainda sob esse artigo, a constituio garante expressamente e de forma ampliada a liberdade religiosa, compreendendo a liberdade de conscincia e crena e do exerccio de culto, protegendo ainda os seus locais de realizao e liturgias. No se previu mais que esta liberdade estaria condicionada ordem pblica e aos bons costumes, mas a observncia lei:

Art. 5, VI - inviolvel a liberdade de conscincia e de crena, sendo assegurado o livre exerccio dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteo aos locais de culto e a suas liturgias;

Nesse mbito, tambm garantida a assistncia religiosa nas entidades civis e militares de internao coletiva, deixando de se prever a modalidade destinada s foras armadas:

Art. 5, VII - assegurada, nos termos da lei, a prestao de assistncia religiosa nas entidades civis e militares de internao coletiva;

No que se refere garantia de direitos, manteve-se a concepo anterior, proibindo a sua privao por motivo de crena religiosa, salvo se invocadas para eximir-se de obrigao geral e houver recusa de prestao alternativa prevista em lei:

Art. 5, VIII - ningum ser privado de direitos por motivo de crena religiosa ou de convico filosfica ou poltica, salvo se as invocar para eximir-se de obrigao legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestao alternativa, fixada em lei;

No que tange determinao de separao entre Estado e Igreja, a previso foi feita sob o mbito da organizao do Estado, nos moldes anteriores, incluindo a possibilidade de cooperao por interesse pblico, mas sem especific-la:

Art. 19, I - vedado Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencion-los, embaraar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaes de dependncia ou aliana, ressalvada, na forma da lei, a colaborao de interesse pblico.

Assim, o Estado brasileiro tem o dever de garantir que os cidados exeram sua religiosidade de maneira livre e, paralelamente, no pode eleger uma religio oficial ou prejudicar o exerccio das religies, ressalvado o interesse pblico definido em lei. A liberdade religiosa deve conviver com a separao entre o Estado e a Igreja (que no sinnimo de laicidade, como se demonstrar adiante).

Como se nota, no h dispositivo que determine expressamente ser a Repblica Federativa do Brasil um Estado laico. H, sim, a diretriz geral de democracia, garantia igualdade e liberdade (incluindo a liberdade religiosa), que, no meu entender, e desenvolverei isso no prximo captulo, so os elementos formadores do princpio da laicidade, nos termos do art. 5, 2 do texto constitucional:

Art. 5, 2 - Os direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte.

O princpio da laicidade brasileira reforado pela determinao da separao entre o Estado e a Igreja.

Dentro do mbito de anlise constitucional sobre o tema, necessrio abordar outros elementos previstos no texto da constituio que de uma maneira ou outra lidam com a questo religiosa. Trata-se no s de conhecer as determinaes, mas avaliar o tipo de tratamento e importncia que dado ao tema, completando a anlise do contexto constitucional sobre a laicidade brasileira.

O primeiro aspecto que gostaria de destacar a meno a deus no prembulo da constituio federal de 1988:

Ns, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrtico, destinado a assegurar o exerccio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justia com valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a soluo pacfica das controvrsias, promulgamos, sob a proteo de Deus, a seguinte Constituio da Repblica Federativa do Brasil.

Muito embora o prembulo no possua fora normativa37, e para muitos acadmicos essa discusso seja irrelevante juridicamente, considero a fora simblica essencial para entrar no debate aqui proposto. Se a laicidade construda historicamente, como todos os direitos fundamentais, as declaraes simblicas so os primeiros passos para sua concretizao. Da mesma forma que a Declarao Universal dos Direitos Humanos, por exemplo, que embora sem fora normativa definida38, um dos principais documentos para a consolidao dos direitos humanos no mundo.

Nesse sentido, a qual deus refere-se a constituio federal, ou como compatibilizar este deus, qualquer que seja, s religies politestas? Ou ao atesmo? Isso no violaria os princpios formadores da laicidade? A incluso da referncia a deus no prembulo no identificaria e assumiria que as disposies constitucionais tm fundamento religioso em algum aspecto39?

Tratarei do aspecto simblico da invocao de deus no prembulo constitucional no captulo referente aos aspectos prticos da laicidade, uma vez que o papel dos smbolos e referncias religiosas no espao pblico, ainda que sem fora normativa, geram efeitos concretos na consolidao da religiosidade neutra do Estado.

A constituio trata ainda de questes religiosas em diversos dispositivos, assim como as constituies anteriores.

J mencionei acima a previso de assistncia religiosa nos locais de internao civis e militares, que deixou de indicar expressamente o servio nas foras armadas. No que tange o servio militar, h que se destacar a possibilidade de alegao de imperativo de conscincia decorrente de crena religiosa para no atender a sua obrigatoriedade, submetida prestao alternativa atribuda pelas foras armadas. Do mesmo modo, prev- se a iseno dos eclesisticos prestarem o servio militar, sujeitos a encargos alternativos:

Art. 143. O servio militar obrigatrio nos termos da lei.1 - s Foras Armadas compete, na forma da lei, atribuir servio alternativo aos que, em tempo de paz, aps alistados, alegarem imperativo de conscincia, entendendo-se como tal o decorrente de crena religiosa e de convico

37 Conforme deciso do STF na ADI 2076-5/Acre, explorada no captulo 4.38 H muitos debates sobre a fora normativa da Declarao Universal dos Direitos Humanos, que no cabem no presente trabalho.39 No pretendo discutir a inteno do constituinte, embora durante o trabalho traga alguns debates ocorridos durante a Assembleia Constituinte, para fins de contextualizao.

filosfica ou poltica, para se eximirem de atividades de carter essencialmente militar.2 - As mulheres e os eclesisticos ficam isentos do servio militar obrigatrio em tempo de paz, sujeitos, porm, a outros encargos que a lei lhes atribuir.

Apenas como referncia aos outros aspectos observados nas constituies anteriores, a constituio federal de 1988 no mais definiu em seu texto a remunerao do trabalhador em feriados religiosos, prevendo apenas o repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos (art. 7, XV).

Quanto ao casamento, foi mantido o reconhecimento civil para as cerimnias religiosas: Art. 226. 2 - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. Do mesmo modo, manteve-se a previso do ensino religioso: Art. 210. 1 - O ensino religioso, de matrcula facultativa, constituir disciplina dos horrios normais das escolas pblicas de ensino fundamental. A previso de imunidade tributria a templos de qualquer culto tambm foi mantida (art. 150, VI, b).

possvel entender que tais previses constitucionais formam em abstrato um rol taxativo quanto s situaes em que se vislumbraria a possibilidade de relao democrtica entre o Estado e a religio, garantindo a liberdade religiosa como um dos elementos formadores do princpio da laicidade. De todo modo, considerando que a liberdade religiosa um princpio constitucional no superior aos demais, sua efetivao no pode restringir em demasia outros princpios, obrigando que suas regulamentaes sejam feitas em coerncia com as outras diretrizes constitucionais formadoras da laicidade.

II. Conceitos

a) Laicidade

Aqui no se pretende criar um conceito definitivo do que seja laicidade. Enquanto alguns esclarecimentos so necessrios, o que se espera deste item identificar diretrizes para a construo de uma moldura referente ao conceito estudado. Assim, a ideia ter uma ferramenta analtica para abordar o princpio da laicidade no Brasil, considerando as suas diferentes dimenses, formas e graus de concretizao.

No se trata de uma discusso meramente terminolgica, mas a tentativa de estabelecer padres para sabermos o que est sendo tratado nesse trabalho. Ademais, dada a confuso conceitual, a terminologia relativa laicidade usada conforme a convenincia da situao. Existem concepes estritas e at intolerantes, que geram acusaes de anticlericalismo. O conceito tambm entendido, por vezes, de forma to aberta e permissiva que perde sua funo. A laicidade no deve ser uma coisa nem outra. Estado laico, em essncia, um instrumento jurdico-poltico para a gesto das liberdades edireitos do conjunto de cidados40.

A necessidade de maior conceituao do tema decorre, em certa medida, da falta de determinao expressa da constituio federal sobre a laicidade. Andrs Saj entende que a maioria das democracias no tm uma normativa forte ou prtica de laicidadeconstitucional, deixando-a vulnervel a argumentos indistintos de livre exerccio da f ou pluralismo41.

Em diversos pases essa lacuna foi suplantada pela edio de uma lei de religies, que traz as diretrizes bsicas a respeito do tema. Roberto Blancarte ensina que esse o caso do Mxico, em que a definio da laicidade do Estado e seu contedo

est estipulada em uma lei secundria (respeito Constituio), que a Lei de Associaes Religiosas e Cultos Pblicos. Nela se apresenta uma espcie de definio relativa a seu contedo, quando afirma: O Estado mexicano laico. O mesmo exercer sua autonomia sobre toda manifestao religiosa, individual ou coletiva, somente no que se refere observncia das leis, conservao da ordem e moral pblicas e a tutela do direito de terceiros. Complementa-se que o Estado no poder estabelecer nenhum tipo de preferncia ou privilgio a favor de qualquer religio, nem tampouco a favor ou contra qualquer Igreja ougrupo religioso42.

No o caso do Brasil atualmente, que no dispe de lei nesse sentido. De toda forma, a existncia do princpio da laicidade no depende que seja explicitada atravs de normas constitucionais, mas sim que permanea implcita em todo o sistema jurdico43.

40 Roberto Blancarte. O porqu de um Estado laico. In Roberto Arruda Lorea (org.) Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. Pg. 25.41 Andrs Saj. Preliminaries to a concept of constitutional secularism. I-CON 6 (2008), pg. 607.42 Roberto Blancarte. Op. Cit. Pg. 25.43 Marco Huaco. A laicidade como princpio constitucional do Estado de Direito. In Roberto Arruda Lorea (org.) Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. Pg. 45.

a partir do entendimento do que