isabel limongi - a nervura do real - chaui

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 1 0 9 O te m a que m e proponho a come nt ar - a idéia de que a obra fil osófica deve ser lida e compreendida a partir de sua inscrição histórica - constitui, por assim dizer, um dos objetos de militância de Marilena Chauí. Uma militância que é constitutiva do seu projeto de leitura de Espinosa: compreender a obra espinosana passa por compreender, segundo ela, sua inscri ção histórica . O sentido mais im ediato que se pode dar a esta ex press ão é o de que a obra est á situada na hist óri a, isto é, que a obra se com põe sobre o pano de fundo de uma situação histórica, a qual se deve conhecer de antemão para compreender o lugar que a obra ocupa em seu tempo. Mas se a inscrição histórica de um a obra r eside nisso, é sem pre possível dizer que, se é v erdade que a referência à história ajuda a compreender a obra, esta referência não é contudo esse ncial , se t iverm os por princípio que a obra fala por si m es m a - seja porque ela tem uma articulação interna que é possível apontar independe nte ment e de sua referên cia à hi st ória, seja porque ela toca num conjunto de problemas que transcendem a especificidade da época em que eles foram colocados, podendo ser recolocados nos mesmos termos ou em termos muito semelhantes em outras épocas. A referência à inscrição histórica de uma obra seria, assim, um instrumento que pode eventualmente vir a ajudar na compreensão da obra (como, por exemplo, na compreensão de seu vocabulário), mas do qual se pode prescindir ou o qual se pode pelo menos descartar uma vez usado, quando nossa preocupação se voltar para os aspectos não históricos (alguns diriam: universais) da obra . Contudo, a militância de Marilena no sentido de nos chamar a atenção para a inscrição histórica da obra filosófica e, em particular, da obra de Espinosa,  po rq ue com pr ee nd e es t a ins cr içã o nu m sentido dif er en t e d es t e que acabam os de caracteri zar  , procura estabelecer justamente que não temos a opção de pôr a história de lado quando queremos ler e compreender A Inscrição Histórica da Obra Filosófica DEBATE Com a Professora Maria Isabel Limongi Maria Isabel Limongi Maria Isabel Limongi Maria Isabel Limongi Maria Isabel Limongi Profes sora do Depart am ent o de Filosofia da UFPR (em t orno de A N ervura do Rea l de Mari len a C hauí)

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    O tema que me proponho a comentar - a idia de que a obra filosficadeve ser lida e compreendida a partir de sua inscrio histrica - constitui,por assim dizer, um dos objetos de militncia de Marilena Chau. Umamilitncia que constitutiva do seu projeto de leitura de Espinosa:compreender a obra espinosana passa por compreender, segundo ela, suainscrio histrica.

    O sentido mais imediato que se pode dar a esta expresso o de que aobra est situada na histria, isto , que a obra se compe sobre o pano defundo de uma situao histrica, a qual se deve conhecer de antemo paracompreender o lugar que a obra ocupa em seu tempo. Mas se a inscriohistrica de uma obra reside nisso, sempre possvel dizer que, se verdadeque a referncia histria ajuda a compreender a obra, esta referncia no contudo essencial, se tivermos por princpio que a obra fala por si mesma- seja porque ela tem uma articulao interna que possvel apontarindependentemente de sua referncia histria, seja porque ela toca numconjunto de problemas que transcendem a especificidade da poca em queeles foram colocados, podendo ser recolocados nos mesmos termos ou emtermos muito semelhantes em outras pocas. A referncia inscriohistrica de uma obra seria, assim, um instrumento que pode eventualmentevir a ajudar na compreenso da obra (como, por exemplo, na compreensode seu vocabulrio), mas do qual se pode prescindir ou o qual se podepelo menos descartar uma vez usado, quando nossa preocupao se voltarpara os aspectos no histricos (alguns diriam: universais) da obra .Contudo, a militncia de Marilena no sentido de nos chamar a atenopara a inscrio histrica da obra filosfica e, em particular, da obra deEspinosa, porque compreende esta inscrio num sentido diferente desteque acabamos de caracterizar, procura estabelecer justamente que notemos a opo de pr a histria de lado quando queremos ler e compreender

    A Inscrio Histrica da Obra Filosfica

    D E B A T ECom a Professora Maria Isabel LimongiMaria Isabel LimongiMaria Isabel LimongiMaria Isabel LimongiMaria Isabel LimongiProfessora do Departamento de Filosofia da UFPR

    (em torno de A Nervura do Real de Marilena Chau)

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    um texto filosfico. A histria no o cenrio da obra, algo que fossediferente e estivesse do lado de fora da cena que ela nos narra - a histria interna a obra. Ter mostrado isso em relao a Espinosa , sem dvida,um dos grandes mritos do livro da Marilena, como assinala Bento PradoJr. na orelha da edio de A Nervura do Real. O que eu me proponho afazer aqui simplesmente insistir sobre este ponto, para tentar compreenderum pouco melhor como Marilena faz isso. Interessa-me sobretudo pensar arelao - tambm indicada por Bento - entre os dois vetores de preocupaoda Marilena em seu livro: de um lado, h o projeto de dar obra deEspinosa uma espessura histrica, do outro, o de reconstituir, no interior daobra de Espinosa, o lugar conceitual do singular. Como estes dois aspectosde seu projeto se comunicam?

    ( I )( I )( I )( I )( I )

    H pelo menos um sentido em que a inscrio histrica de uma obra constituium problema para a sua compreenso: quando se dispe de antemo deum sentido da histria no interior da qual se quer localizar uma obra - nostermos da Marilena, quando se dispe de uma cartografia, entendendopor isso um conjunto de tendncias, de correntes do pensamento quecaracterizariam uma poca e s quais o filsofo se filiaria no sentido de seopor a algumas e desenvolver outras. Na opinio de Marilena, este seria oproblema das leituras que fazem de Espinosa intrpretes tais como Negri,Feuer e Kolokowski:

    A crermos nesses trs intrpretes que fez Espinosa? Para expor seu prpriopensamento levou s ltimas conseqncias o pensamento judaico, orenascentista e o de seus contemporneos. (...) Enraizado em seu tempo, masradicalizando o que seus contemporneos haviam ousado formular no interiorda herana teolgica, metafsica e poltica judaico-crist, Espinosa teriaretirado as conseqncias necessrias e inevitveis do racionalismo quandoeste se torna racionalismo absoluto, mas, para isso, teria sido levado asacrificar tudo aquilo que em seu prprio sistema contrariaria essa tendncia,donde a presena quase simultnea de conceitos e temas incompatveis (p.33-4).

    Ora, sugere Marilena, no justamente porque compreendemos a obra apartir de certas correntes do pensamento das quais ela seria um dosrepresentantes, que ela aparece para ns como incoerente? E isto justamenteporque procuramos seu sentido fora dela, nas correntes do pensamento squais a obra se filiaria, correntes estas que, em si mesmas, enquantotendncias que traam no absoluto os caminhos da histria, soeventualmente contraditrias ou incompatveis entre si. No tambm assim

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    que se criam certas figuras do autor, como as do Espinosa ateu, pantesta,fatalista, ou cartesiano radical, hobbesiano radical, e assim por diante?Estas figuras querem designar as aberraes do espinosismo quando estedesenvolve e leva s ltimas conseqncias as tendncias de seu tempo -tendncias que, no limite, no so outra coisa seno um conjunto decoordenadas histricas que dispomos de antemo e no interior das quaisqueremos enquadrar a obra. Mas, com isso, segundo Marilena, no apenasdilaceramos a obra entre os diversos vetores histricos que ela viria arepresentar, como tambm perdemos de vista a sua singularidade. Esteltimo ponto - como j assinalamos - particularmente caro a Marilena:compreender a singularidade da obra de Espinosa, a singularidade do seuponto de vista ou de seu modo de inscrio na histria, passa curiosamentepor compreender o modo como Espinosa reserva em sua prpria filosofiaum lugar para o singular, ou para os modos singulares de ver ou refletir aestrutura do real. Assim, Espinosa no apenas um autor que, como todosos outros, ocupa um lugar singular na histria; contrariamente ao que diza leitura que faz dele um pantesta (entenda-se: algum que teria suprimidotoda distncia e diferena entre Deus e os seus modos finitos), Espinosaoferece, alm disso, os instrumentos tericos para pensar como uma obrasingular, um indivduo, pode exprimir de maneira singular o que est emseu entorno ou a totalidade da qual ele a parte. Assim, compreendercomo Espinosa pensa a relao entre o finito e o infinito, a parte e o todo,Deus e os homens, nos ajuda a compreender como uma obra pode exprimiro seu tempo, sendo, no entanto, diferente dele, ou, em outros termos, sendosingular e nica em relao histria e s tendncias de pensamento quecaracterizam a sua poca.

    a partir de uma perspectiva, de um modo de pensar ou de umasensibilidade, que Marilena desenvolve como leitora de Espinosa, noembate com a sua obra, a partir do momento em que se colocou comoprojeto compreender como Espinosa pensa o singular - sendo, nesse sentido,espinosana -, que ela ilumina a questo da inscrio histrica da obrafilosfica. Em relao a Espinosa - mas creio que isso vale para toda grandeobra, pois nisso que residiria sua grandeza - ela nos diz:

    Julgamos que preciso aceitar o peso da estranheza do pensamentoespinosano. No porque a obra seja um hieroglifo espera do deciframentoque a salvar de incorncias, inconsistncias, segredos e mistrios, e simporque, avessa ao que supomos j saber, fracassaremos se quisermos l-lasegundo o que nos familiar, pois ento que ela se transforma em textohieroglfico. Espinosa inova porque subverte, expondo suas idias num duploregistro simultneo: no do discurso que diz o novo, ao mesmo tempo em que

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    se realiza como contradiscurso que vai demolindo o herdado. A poderosarede demonstrativa dos textos espinosanos tambm um tecido argumentativoe por isso a obra se efetua como exposio especulativa do novo edesmantelamento dos preconceitos antigos que referenciam o presente,subvertendo, nos dois registros, o institudo (p. 37).

    A obra singular em relao histria da qual ela participa porque diz onovo, porque retrabalha um conjunto de tendncias, preconceitos e, enfim,os caminhos j percorridos do pensamento, para dizer a partir da algumacoisa nica e que por esta unicidade exprime o seu tempo. Se quisermoscompreender como uma obra se inscreve em seu tempo, para o modocomo ela age em seu tempo que devemos voltar nossa ateno - e estaao da obra deve ser entendida em sentido espinosano: a ao comosendo a afirmao que de si faz todo indivduo medida em que livre, medida em que um princpio ativo autnomo e no apenas o resultadoda composio das foras que atuam sobre ele e frente as quais ele seriaum produto passivo. Assim, da mesma forma que os modos finitos - osindivduos singulares - no se diluem em Deus ou na substncia de queso modos, no sendo por isso externos substncia ou separados dela,porque exprimem a substncia de uma maneira singular e a refletem de ummodo nico, assim tambm a obra filosfica (e, no limite, qualquer obra,qualquer ao) no se deixa dissolver num suposto conjunto de tendnciasque viessem a determin-la, no sendo por isso diferente, destacvel dahistria de que parte. Ela imanente a esta histria e sua poca namedida em que as diz de um modo novo e nico.

    talvez isso o que Marilena queira nos dizer ao falar de uma dimensoinstituinte da obra - instituinte do sentido de uma experincia, que umaespcie de matria bruta sobre a qual a obra trabalha:

    essa experincia nua que exige daquele que no adere imediatamente a ela otrabalho de interpretao para conferir-lhe o sentido que possui sem que osaiba. Ora, exatamente nesse trabalho que a subverso espinosana se pea caminho, inquietando seus contemporneos e atordoando seus futurosleitores. Se a uns a obra parece confusa e obscura, se a outros aparece comoradicalizao do j pensado e j dito, se para muitos no h parmetrospara situ-la seno com os referenciais do futuro, porque o trabalho dopensamento que nela se realiza vai s razes dessa experincia para conferir-lhe, em seu prprio presente, o sentido que ela possui e que nela se oculta(p. 45).

    por estar enraizado desta forma em seu tempo, numa experincia qualse quer dar um sentido elevando-a ao plano do conceito, que o pensamento

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    espinosano dialoga com os seus leitores - no apenas os seuscontemporneos, mas tambm aqueles que dele esto distantes no tempo eque, ao observarem Espinosa pensando, dando sentido experincia queou menos subversiva, que uma obra (filosfica ou no) se inscreve nahistria. Compreendemos assim que a histria no seja externa, mas interna obra - e isso num duplo sentido: a obra reflete o seu tempo ao exprimi-lode uma forma singular, mas ela tambm faz o seu tempo ao agir sobre ele.Compreendemos tambm que ler a obra a partir de seu movimento ou desua lgica interna, no seu tempo lgico, no equivale a retir-la do seutempo histrico, pois a partir de si mesma, de sua individualidade ou desua estrutura interna - de sua essncia singular, diria Espinosa - que a obradiz alguma coisa a respeito de seu tempo e no seu tempo.

    ( I I )( I I )( I I )( I I )( I I )

    O problema da inscrio histrica de uma obra se repe, porm, ainda emoutro nvel, no nvel da relao entre o intrprete e a obra que ele interpreta,no nvel do trabalho do especialista cuja obra consiste em oferecer aosoutros, aos leitores de seu prprio tempo, uma porta de acesso, uma chavede leitura de uma outra obra que se encontra distante dele e de seus leitoresno tempo. Tambm aqui o trabalho da Marilena como intrprete de Espinosa- um trabalho ao qual ela se dedica j h mais de 30 anos - iluminador.

    Caberia neste plano perguntar: a natureza do trabalho do intrprete-especialista no tal que este trabalho se pensa necessariamente comolocalizado fora da histria? Que espcie de olhar o do especialista, quandoeste pretende ver e dar a ver uma obra em sua verdade histrica, se no umolhar que se pensa capaz de sobrevoar a histria? Uma histria da qual elese reconhece herdeiro, verdade, mas, talvez por isso mesmo estivesse aoseu alcance reivindicar o privilgio de um olhar absoluto, capaz de ver omovimento ou a ao da obra na histria. Mas, como possvel ver aoperao da obra na histria? Esta no seria uma pretenso desmesurada,que termina por projetar o intrprete para fora da histria, para um lugar -espcie de ponto de fuga projetado para alm da superfcie histrica - aoqual o sentido da obra enfim se revelaria? Esta uma dificuldade que primeira vista se impe ao projeto intelectual da Marilena-leitora-de-Espinosa.

    Num certo momento da introduo de A Nervura do Real, Marilena diz oseguinte:

    No so os pantesmos da Kabballah nem os da renascena hermtica os

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    referenciais mais seguros para nos aproximarmos do pensamento de Espinosa,mas a ptica de Kepler e Huygens, balizas que a matemtica e a filosofianatural fincam geomtrica e mecanicamente no solo do racionalismo (p. 61).

    , segundo ela, o olhar kepleriano, imerso no mundo e no mais pensadoao modo de uma tela neutra sobre a qual o mundo se projeta, este olharque orienta a pintura holandesa no que ela se distingue da italiana, quenos permite compreender porque a filosofia espinosana, aparentada pinturaholandesa, no comece cartesianamente do cogito ou do sujeito, mas deDeus: como a viso kepleriana, o pensamento se faz para Espinosa nomeio do mundo (p. 51). Como Kepler, Espinosa recusa a diferena entrelux e lumen, entre uma fonte iluminadora divina e o seu reflexo, sua imagemesfumaada, que o que desta luz divina chega percepo humana -uma recusa que nos d a chave de compreenso de como Espinosa pensaa relao reflexiva (no sentido ptico) entre o intelecto infinito de Deus e onosso humano intelecto finito. Graas geometria de Huygens podemosalm disso compreender a diferena e as relaes entre os tipos deconhecimento elencadas por Espinosa. Graas, enfim, a Kepler e Huygenspodemos compreender porque Espinosa no um pantesta acosmista,embora recuse a transcendncia divina, como, enfim, se do as relaesentre Deus e seus modos, entre Natureza Naturans e Natureza Naturata,tal que elas no sejam idnticas embora tambm no externas uma outra.

    No cabe aqui desenvolver os aspectos da obra espinosana que seriamiluminados pela ptica de Kepler e Huygens. O que queremos saber oque orienta um intrprete, quando este recusa um conjunto de referenciais(como faz Marilena em relao Kabballah e ao hermetismo renascentista)e elege outros (a ptica moderna) como os mais adequados explicitaodo sentido de uma obra. De onde fala o intrprete quando faz esta eleio?De onde ele v a obra?

    O intrprete busca a coerncia interna da obra. Ele aquele que se perguntapela possibilidade da conjugao de seus aspectos aparentementecontraditrios. Assim, pergunta-se Marilena num certo momento,reconhecendo esta dignidade prpria figura do intrprete, da qual seinveste:

    o intrprete poderia indagar: como possvel que, simultaneamente, Deusseja incomensurvel e comensurvel aos seus modos finitos? Que seja aomesmo tempo unidade complexa e infinitamente diferenciada enquanto

    substncia nica? (p. 75)

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    porque permite ao intrprete responder a estas questes que a refernciada ptica de Kepler e Huygens vale mais do que as referncias da Kabballahou do hermetismo renascentista, a partir das quais se constrem as figurasde um Espinosa radical ou contraditrio. Mas de onde o intrprete peestas questes? De onde ele diz: jamais se compreendeu bem ou se atentoupara um certo aspecto da obra comentada (no caso do projeto de Marilena,para a positividade dos modos finitos, para o fato de que eles no sediluem em Deus, mas so diferentes de Deus, embora no lhe sejam externos)?A partir do pressuposto, certamente, de que a obra deva ter uma coernciainterna e que a lem mal todos aqueles que no a encontram. Mas noapenas da. At porque parece possvel guardar a coerncia interna daobra de Espinosa fazendo dele um pantesta. Uma das acusaes que pesamsobre Espinosa ou sobre o espinosismo no justamente a de coerncia emexcesso, a de ser uma forma de super-racionalismo revertida numa dasfiguras do atesmo - o atesmo especulativo - justamente por ter pretendidoreduzir todo o real forma da razo? Assim, no apenas seria possvelguardar a coerncia de um Espinosa pantesta como esta coerncia foivista como a contra-face mesma do seu suposto pantesmo. O intrpreteque, como Marilena, pretende argumentar contra a tradio de leitura quefaz de Espinosa um pantesta no pode, portanto, falar em nome apenasda coerncia interna da obra, embora faa parte da figura do intrpreteque ele no a perca de vista. Ele poderia ater-se ao plano desta coerncia,desde de que as leituras que assim o fizeram - isto , que insistiram sobre acoerncia interna da obra espinosana - no o tivessem feito justamentepara recusar ou opor-se a Espinosa e ao modo espinosano de pensar eagir em seu tempo, desde de que estas leituras no tivessem elas mesmas asua inscrio histrica.

    O caso Espinosa , assim, exemplar. Ele mostra que o intrprete, quandoprocura e defende a coerncia interna da obra, no o faz ou no o podefazer a partir de um ponto vista tcnico, lgico e a-histrico que elereivindicaria para si. A coerncia que ele visa uma certa coerncia - sequisermos: uma coerncia interessada - no caso de Marilena, aquela quenos permitiria escapar de uma outra coerncia luz da qual Espinosaaparece como pantesta. O caso Espinosa parece no dar outra opoao intrprete seno a de colocar suas questes - e de forma explcita - apartir da histria das leituras da obra que submete ao seu comentrio, apartir daquilo que C. Lefort denominou, a respeito de Maquiavel, o trabalhoda obra, isto , o movimento das leituras que a obra engendra e que noso separveis dela. Se, no caso de uma leitura de Espinosa, relevante

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    perguntar-se pela positividade do singular, porque a histria das leiturasde Espinosa fez do singular ou de sua ausncia um problema do espinosismo. porque sabe que o intrprete pe sua questo do interior do trabalho daobra ou da histria do pensamento que a obra engendra e que se interpeentre ela e o seu leitor presente, que se torna importante para Marilena,como uma etapa indispensvel de seu trabalho de interpretao, reconstruira histria do espinosismo ou do Espinosa feito pantesta - porque a questoque ela se pe como leitora de Espinosa se pe a partir da.

    O trabalho da obra Espinosa a histria de um processo, em que osadvogados de defesa e de acusao lem Espinosa a partir dos interesses,das foras, do mundo que eles querem afirmar enquanto agentes histricosque so. preciso identificar, portanto (e o que Marilena faz na parte I deseu livro como propedutica de sua interpretao), o campo de foras emque se inscreveu a obra espinosana e que em grande parte criado pelaobra mesma. E se preciso descrever este campo de foras, no para emseguida colocar-se fora dele, na reivindicao de um olhar, enfim, neutro.Ao contrrio, o intrprete se inscreve deliberadamente nele - por isso queo descreveu, para inscrever-se ele mesmo na histria: a histria doespinosismo, a histria da obra espinosana, a histria feita por Espinosa epor seus leitores. Este intrprete, que conhece a historicidade das questesque dirige obra, que se inscreve ele mesmo na histria, o leitor noingnuo e deve a esta no ingenuidade que ele conquistou como especialista,como algum que dedicou muito tempo ao trabalho no s da interpretaocomo tambm da histria da obra, o privilgio do seu olhar, ao pretenderabrir aos outros uma via de acesso leitura que eles mesmos faro deEspinosa. Estes leitores sentiro, ento, eles tambm, o peso da histria.Eles sabero que, quando abrem um livro de Espinosa para ler, eles noencontraro ali uma verdade esttica, dada, pois tero aprendido que aobra no , nos termos de Marilena, um existente em si e no se reduza uma mensagem que, do fundo do passado, nos aguardaria comopregoeiros de sua verdade (p.40). A obra tem um trabalho, um movimentoque a sua ao no tempo. E a partir desta ao que o intrprete aindaga e ensina os outros a indag-la. a partir deste movimento que ointrprete age, por sua vez, dando-nos como exemplo o exerccio de umainterpretao, ela tambm, assim como a obra, nica e singular.