chaui- a definicao real na etica i

Upload: gisel-marina-farga

Post on 03-Apr-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    1/22

    CDD: 149.7

    A DEFINIO REAL NA ABERTURA DATICA I DE ESPINOSA

    MARILENA CHAUI

    Departamento de Filosofia/FFLCHUniversidade de So PauloAv. Prof. Luciano Gualberto, 31505508-900, So Paulo, SP

    Resumo: Este ensaio dedica-se a mostrar que as oito definies que abrem a ticade Espinosano so definies nominais e sim, tomadas em conjunto, constroem geometricamente adefinio real e nica de Deus.

    Abstract: This paper does not consider the eight definitions of the first part of SpinozasEthicsas nominal definitions but intends to present such definitions as forming one and only one realdefinition of God which is the result of a geometrical construction from the other definitions asits elements.

    Palavras-chave: definio nominal; definio real; absolutamente infinito; causa de si; infinito;finito; substncia; atributo; modo.

    1 A QUESTO

    Dois aspectos da abertura da Parte I da tica tm sido ocasio paradivergncias entre os intrpretes. O primeiro concerne natureza dasdefinies dessa Parte: so reais ou nominais? O segundo diz respeito apario da definio de Deus no como a primeira, mas como a sexta.

    A maioria dos comentadores considera as definies nominais tanto

    porque nelas a frmula empregada por Espinosa por x entendo... (per...intelligo), como porque se sabe, pelo Tratado da Emenda do Intelecto, que umadefinio s real quando oferece a essncia ntima do definido, dizendo acausa que o produz, e nenhuma das definies da Parte I parece preencher esserequisito. Se assim for, ser tambm preciso considerar ou que as dez primeirasproposies da Parte I daticaso hipottico-dedutivas (como supe, entre outros,

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    2/22

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    3/22

    A Definio Real na Abertura datica I de Espinosa 9

    faz essa demonstrao recorrendo prova por absurdo4? No isso estranhamaneira de falar De Deus, sobretudo para um autor que, na primeira verso desua philosophia, o Breve Tratado, comeava afirmando Que Deus existe5, nosPrincpios da Filosofia Cartesiana, corrigira a prova a posterioride Descartes para lhe daruma feio a priori, que costuma empregar a prova por absurdo para proposies

    negativas e evit-la para as afirmativas e que, na Emenda do Intelecto, recomenda quese parta da idia do Ser Perfeitssimo da qual tudo pode e deve ser deduzido?

    Poder-se-ia conjeturar que o fato das primeiras obras serem tratadosenquanto o opus magnum uma geometria explicaria por que a Korte Verhandelingse inicia com a existncia de Deus e a Ethicas ir demonstr-la na altura daproposio 11 da Parte I, pois um tratado se move no campo da experinciacujo objeto precisa existir para que ele possa compreend-la e conduzi-la aoconhecimento de si mesma. assim que, no Primeiro Dilogo do Breve Tratado,o Amor indaga se concebvel um ser ilimitado que o contenha. Da mesmamaneira, no Tratado da Emenda do Intelecto, a experincia incita o meditante a

    indagar se h um bem verdadeiro cuja fruio seja plenitude contnua e capazde ser comunicado a todos. Ao contrrio, a ordem geomtrica constri suasidias segundo a necessidade que lhes intrnseca e no conforme as carnciasdaquele que busca felicidade e salvao. A necessidade lgica impe que sechegue existncia de Deus, em vez de partir dela. Disso, alis, o prprio BreveTratado nos traz a confirmao, pois em seu Apndice Geomtrico,diferentemente do que se passara no texto no geomtrico, os axiomas sereferem substncia, aos atributos e causa de si, e as quatro proposies desua primeira parte demonstram que no pode haver duas substncias de mesmoatributo (I,P1), uma substncia no pode ser causa da existncia de outra (I,P2),

    todo atributo ou substncia por sua natureza infinito e sumamente perfeito

    4A proposio 11 da Parte I (ou I,P11) enuncia: Deus, ou seja, a substncia

    constituda de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essncia eterna einfinita, existe. Na verdade, Espinosa oferece quatro demonstraes da existncia deDeus, trs delas a priorie uma a posteriori, mas todas elas por reduo ao absurdo.

    5Breve Tratado, I, 1.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    4/22

    Marilena Chaui10

    em seu gnero (I,P3) e que a existncia pertence por natureza substncia, nopodendo haver no intelecto infinito a idia da essncia de uma substncia queno exista realmente na Natureza (I,P4) e somente no corolrio dessa ltimaproposio, com que se encerra a primeira parte do apndice, Espinosa afirmaque a essncia da Natureza coincide exatamente com a de Deus.

    Essa conjetura, porm, no explica a peculiaridade da demonstrao daexistncia de Deus na proposio I,P11 da Parte I da tica, na qual Espinosaafirma que a proposio evidente (seria um verdadeiro axioma) e que, dedireito, no precisaria ser demonstrada e, tanto a demonstrao a prioricomo aposterioriso provas por reduo ao absurdo. Nossa conjetura tambm suscitaum problema suplementar. Dizer que a idia de Deus precisa ser construdapara que sua existncia seja demonstrada pressupe que essa idia no absoluta, uma vez que precisa de outras para ser concebida, no podendo serconcebida por si mesma, mas isso contraria explicitamente as demonstraesdo Breve Tratado, que insistem que a essncia de Deus ou Natureza conhecida

    por si mesma. Seremos obrigados, por um lado, a admitir que a idia do serabsolutamente infinito no uma idia absoluta e sim relativa e, por outro, a deixarcair por terra a argumentao espinosana e o lugar que dera idia verdadeiraquando, nos Princpios da Filosofia Cartesiana, livrara Descartes do crculo,demonstrando que a idia verdadeira de Deus evidente por si mesma e que essaidia a de uma existncia absolutamente necessria6. Alm disso, seremos levadosaaceitar no s as crticas de Leibniz sobre a sexta definio da Parte I da tica,como tambm a reconhecer que a definio proposta por ele logicamente maiscorreta e mais pertinente do que a de Espinosa7.

    6

    Remetemos aqui o leitor anlise que fizemos do texto espinosano em A nervurado real. Imanncia e liberdade em Espinosa (CHAUI, 1999). Vol. 1., Parte II Rumo Philosophia, Captulo 3 Prolegmenos Philosophia, 1) Fidelidade Infiel, a) A fundao.

    7A definio leibniziana enuncia: Deus o ser absolutamente infinito ou infinito

    em essncia: como as outras [coisas que exprimem uma realidade so] na extenso e nadurao, assim Ele [] em todas as coisas que exprimem uma realidade (Deus est ensabsolute infinitum, seu infinitum in essentia: ut alia in extensione, duratione, ita ipse in omnibus quealiquam realitatem exprimunt), in LEIBNIZ,Ad Ethicam,Ethices Prima Pars, p. 277.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    5/22

    A Definio Real na Abertura datica I de Espinosa 11

    A aporia evidente: para que a ordem seja geomtrica, preciso que asidias sejam construdas como o gemetra constri as idias do tringulo e docrculo, porm, na filosofia, a idia de Deus no o equivalente lgico dessasidias e sim da idia de quantidade infinita, que o Tratado da Emendaafirma serut absolutee que, na matemtica, no construda a partir de outras, mas nota

    per seporque a primeira propriedade da natureza do intelecto conceber idiasabsolutamente, concebendo dessa maneira aquelas cujo ideado infinito e,portanto, cuja essncia envolve a existncia8. Alm disso, desde o DeEmendationee da correspondncia com Jelles e Tschirnhaus, sabemos que paraEspinosa h diferena ontolgica entre a idia geomtrica e a res physica realis. Aprimeira um ente de razo e nenhuma figura geomtrica jamais foi produzida

    8Ao enumerar as propriedades da natureza do intelecto, o Tratado da Emenda do

    Intelecto apresenta como primeira propriedade o poder para formar idias absolutamente(ut absolute), isto , sem recorrer a outras e as idias formadas absolutamente so aquelascujo ideado infinito. Da mesma maneira, na carta 36 a Hudde, a infinitude dopensamento e da extenso exige que suas idias incluam a existncia necessria doideado: Percebeste claramente que se o ser pensamento, no pode ser concebidocomo determinado (determinatum) em pensamento (in cogitatione), mas somente comoindeterminado (indeterminatum), e se o ser extenso, no pode ser concebidodeterminado em extenso (in extensione), mas somente como indeterminado, Porm,negas compreender a concluso, que est simplesmente assentada nisso, pois contraditrio conceber sob a negao da existncia um ser cuja definio inclui aexistncia ou, o que o mesmo, afirma a existncia. E uma vez que determinado noindica nada de positivo (determinatum nihil positivi), mas apenas uma privao deexistncia (privationem existentiam) dessa mesma natureza concebida como determinada,segue-se que aquilo cuja definio afirma existncia no pode ser concebido como

    determinado. Por exemplo, se o termo extenso incluir existncia necessria, ento impossvel tanto conceber extenso sem existncia quanto extenso sem extenso.Admitido isso, tambm ser impossvel conceber a extenso como determinada(determinatam extensionem concipere impossibile quoque est). Pois se fosse concebida comodeterminada, teria que ser determinada por sua prpria natureza, ou seja, pela extensoe esta extenso pela qual ela seria determinada teria que ser concebida sob a negao daexistncia. De acordo com a hiptese, isso uma contradio manifesta. (Carta 36 deEspinosa a Hudde, edio Gebhardt, T. IV, p. 184).

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    6/22

    Marilena Chaui12

    na Natureza tal como engendrada por sua definio matemtica 9; emcontrapartida, a coisa real exige que sua idia enuncie no s como e por queessa idia foi produzida, mas ainda como e por que o ideado foi produzido eexiste, motivo que leva aEmenda do Intelecto a distinguir a figura geomtrica, quepode ser definida de muitas maneiras, e a res physica realis, para a qual deve haver

    uma nica definio. Em outras palavras, se na philosophiaa ordem geomtricadeve expor a constituio do real, ento deve fazer coincidir a definio e aexistncia de Deus. Caso contrrio, ainda uma vez teramos que reconhecer apertinncia da crtica leibniziana aos cartesianos que no compreenderam serpreciso partir da possibilidade da idia de Deus para passar prova danecessidade de Sua existncia. Ou melhor, eles no teriam compreendido aexcepcionalidade da relao entre o possvel e o necessrio no caso da idia deDeus, nico no qual a possibilidade lgica acarreta a necessidade ontolgica.

    A objeo de Leibniz pode, no entanto, ser bom auxlio para o leitor deEspinosa porque o faz ter presente a crtica que o filsofo, nos Cogitata

    metaphysicaendereara metafsica geral como lgica do possvel e metafsicaespecial como ontologia do possvel10, e isso lhe permitir que evite no s

    9Quanto a ser a figura uma negao e no algo positivo, manifesto que a matria

    em sua totalidade (integram materiam), considerada indefinidamente (indefinite), no podeter figura e que s h figura nos corpos finitos e determinados (in finitis ac determinatiscorporibus). Quem, portanto, diz que percebe uma figura no indica com isso seno queconcebe uma coisa determinada e de que maneira ela o . Essa determinao(determinatio) no pertence coisa segundo seu ser (suum esse nonpertinet), mas, aocontrrio, o seu no ser (ejus non esse). A figura, pois, no outra coisa seno umadeterminao e determinao negao (determinatio negatio est), de sorte que a figura nopode ser outra coisa seno uma negao. (Carta 50 de Espinosa a Jarig Jelles, edio

    Gebhardt, T. IV, p. 240). Determinatio significa, aqui, terminus, limite exterior quediferencia extrinsecamente uma coisa de outra, indica que uma coisa no uma outra,sem contudo mostrar o que ela intrinsecamente.

    10De fato, nos Pensamentos Metafsicos, ao fazer a crtica da teoria escolstica dos

    transcendentais, particularmente do transcendental bonum, o texto de Espinosa deixaimplcita a crtica ao pressuposto dos transcendentais, qual seja, a presena de essnciaspossveis no intelecto de Deus que passam existncia por um ato da vontade divina,de sorte que o real antecedido lgica e ontologicamente pelo possvel. Em outras

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    7/22

    A Definio Real na Abertura datica I de Espinosa 13

    considerar as oito definies daticaI como nominais (ou que correspondam definio concebvel, proposta pela Carta 9 a de Vries 11) como tambm quesuponha que as dez primeiras proposies da tica I possam ser lidas comohipottico-dedutivas.

    Poderamos, entretanto, conjeturar tomando uma outra perspectiva. De

    fato, a Emenda do Intelecto distingue a idia simples e a composta, constitudapelas primeiras. Nesse caso, visto que a idia do absoluto absolutamenteinfinita, deve-se dizer que, embora no composta, absolutamente complexa eque poderamos chegar a ela por construo geomtrica, a partir de seusconstituintes.Via de regra, os intrpretes (como Guroult e Deleuze12) julgamque essa construo realizada nas dez primeiras proposies da Parte I, quepartiriam das idias de substncia e atributo com que construiriam a idia deDeus cuja existncia seria tarefa da proposio I,P11 demonstrar. Assimprocedendo, porm, esses intrpretes (como os que supem que o incio daticaI hipottico-dedutivo) ficam alheios ao que efetivamente se passa logo

    na abertura do De Deo: ali, a idia complexa do absoluto construda no pelas dezprimeiras proposies, cujos elementos seriam as definies e os axiomas, e sim pelas prpriasdefinies.

    2 A DEFINIO REAL NICA DO DE DEO

    Examinemos brevemente o enunciado da sexta definio ou da definioI,6.

    Por Deus entendo o ser absolutamente infinito, isto , asubstncia constante de infinitos atributos, cada um dos quais exprime

    uma essncia eterna e infinita.

    palavras, a crtica de Espinosa se dirige teologia da criao do mundo por um atocontingente da vontade divina.

    11Na carta 9.

    12Cf. DELEUZE, 1968.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    8/22

    Marilena Chaui14

    Explicao: Digo que absolutamente infinito, e no que infinitoem seu gnero; porquanto ao que somente infinito no seu gneropodem negar-se-lhe infinitos atributos, e, pelo contrrio, ao que absolutamente infinito pertence respectiva essncia tudo o que exprimeuma essncia e no envolve qualquer negao.

    Em sua primeira parte, a definio enuncia que Deus o serabsolutamente infinito e sua segunda parte, conforme indica o isto (hoc est),explicita a primeira, enunciando que o ser absolutamente infinito substnciaconstituda por infinitos atributos cada um dos quais exprimindo uma essnciaeterna e infinita. A definio acompanhada de uma explicao em que sedistinguem Deus e cada um de seus atributos, a diferena entre eles sendoesclarecida com as expresses absolutamente infinito e infinito em seugnero, isto , entre uma essncia que no envolve qualquer negao por quetudo lhe pertence (Deus) e uma essncia, embora infinita (cada um dos

    atributos), qual pode ser negado tudo o que no lhe pertena, ou seja, outrosatributos infinitos. Ora, o enunciado dessa definio comporta vrios termosque, justamente, so objeto de outras definies. Assim, a definio I,3 enunciaque substncia o que em si e por si concebido, no carecendo do conceitode outra coisa para ser formado, e tem como contraponto a definio I,5 queenuncia que modo afeco da substncia ou o que em outra coisa e por esta concebido. A definio I,4 enuncia que atributo o que o intelecto percebe dasubstncia como constituindo a essncia dela. Alm disso, a definio I,6 afirmaque o atributo exprime uma essncia eterna e a definio I,8 explica que eternaa existncia quando concebida como seqncia necessria da s definio da

    coisa eterna e que no pode ser explicada pelo tempo nem pela durao.Chegado a esse ponto, o leitor, certamente, h de lamentar que Espinosa nooferea a definio do infinito, no s porque define o finito (na definio 2) eo eterno (na definio 8), mas tambm por que infinito o conceito queaparece no centro da definio de Deus e objeto de uma explicao quandoEspinosa distingue absolutamente infinito e infinito em seu gnero. Alm disso,

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    9/22

    A Definio Real na Abertura datica I de Espinosa 15

    a Carta 12 ou a Carta sobre o Infinito, nos ensina que se h uma idia cujadefinio perfeita imprescindvel filosofia, justamente a de infinito.

    Podemos conjeturar que essa ausncia propositada e polmica. De fato, atradio escolstica da metafsica especial, sobretudo aquela elaborada pelaEscolstica tardia, assentava-se sobre o primeiro transcendental disjunto13, o par

    infinito-finito. Assim, embora defina a coisa finita e faa uso da idia de infinitona definio I,6, pode-se supor que Espinosa tenha evitado defini-la opondo-a do finito para que o De Deo no fosse imediatamente lido como um tratado demetafsica especial14. Embora essa hiptese no seja desprezvel, no a maisconveniente por que busca uma razo externa ao texto e, sobretudo, deixa ficarna sombra que a idia de infinito, tal como Espinosa a concebe, est contida naprimeira definio. Em outras palavras, a idia de infinito no o oposto da idiade finito, no o ilimitado por outro de mesma natureza contraposto ao que limitado por outro de mesma natureza: o infinito no o outro do finito, mas outro que o finito. Essa alteridade encontra-se claramente no esclio e na

    demonstrao da proposio I,P8 da ticaI que enuncia que toda substnciaexiste infinita. No esclio, Espinosa distingue existncia finita, ou aquela que negao parcial de existncia, e existncia infinita [que ] afirmao absoluta daexistncia de alguma natureza; por outro lado, na demonstrao, a existnciainfinita deduzida diretamente da proposio I,P7 que enuncia que da naturezada substncia existir, proposio que, por seu turno, decorrncia direta e

    13 Os transcendentais, como se sabe, eram os predicados ou afeces do Serenquanto Ser, que no lhe acrescentavam realidade. Havia os transcendentais conjuntos(unum, verum, bonum, res, aliquid), isto , as afeces do Ser tomado em si mesmo sem

    relao com outros, e os transcendentais disjuntos (infinitum-finitum, causa-effectus,perfectum-imperfectum, etc.) que estabeleciam a distino entre Deus e as criaturas. QuandoSuarez sistematiza a Escolstica tardia, o primeiro disjunto escolhido por ele foi o parinfinito-finito e essa disjuno foi mantida pela filosofia moderna, com exceo deEspinosa.

    14 interessante observar que quando Leibniz reformula as definies do De Deo,

    acrescentando outras alm de corrigir as de Espinosa, tambm no parece julgarnecessrio incluir uma definio do infinito.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    10/22

    Marilena Chaui16

    imediata da primeira definio do De Deo, a definio da causa de si. Dessamaneira, o leitor compreende que a idia de infinito j est contida na de causa suicomo propriedade necessria dela e, por conseguinte, a apresentao dosatributos, na definio I,6, como expresso de uma essncia infinita os remete primeira definio. Em outras palavras, visto que Espinosa no concebe o

    infinito por oposio ao finito, mas como propriedade intrnseca do que absoluto, o conceito de infinito no est ausente das definies da Parte I. Masno s isso. Como vimos, a definio de Deus afirma que o atributo exprime umaessncia eterna e manifesto que a definio da coisa eterna tambm estimediatamente articulada definio da causa sui, uma vez que em ambas trata-seda essncia que envolve existncia. Com isso, ao enunciar que os atributosexprimem uma essncia eterna, a sexta definio remete no s oitava definiocomo tambm primeira ou a definio I,1: por causa de si entendo isso cujaessncia envolve existncia, ou seja (sive), isso cuja natureza no pode serconcebida seno existente. O enunciado da primeira definio estabelece a

    equivalncia entre suas duas partes: uma essncia que envolve existncia omesmo que (sive) uma natureza que s pode ser concebida existente.Conseqentemente, dizer que coisa eterna aquela cuja existncia segue somenteda definio de sua essncia dizer que ela causa de si, assim como dizer queuma essncia infinita dizer que afirmao absoluta de existncia e, portanto,causa de si. Ademais, a definio da causa de si (ou a definio I,1) no envolveapenas a definio da coisa eterna, mas tambm a stima definio que define acoisa livre, uma vez que livre a coisa que existe exclusivamente pelanecessidade de sua natureza e por ela determinada a agir, ou seja, livre o que causa de si e vice-versa, o que causa de si livre. Finalmente, o contraponto

    entre a definio do modo e a da substncia, ou entre o que em outro e poroutro concebido e o que em si e concebido por si, tambm envolve adefinio da causa sui, pois o que no causa de si s pode ser um modo e,reciprocamente, uma substncia s pode ser causa de si. Fundadas pela e nadefinio da causa de si, as definies I,3 (da substncia) e I,4 (do atributo)afirmam imediatamente a existncia necessria e inteligvel do absolutamente infinito.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    11/22

    A Definio Real na Abertura datica I de Espinosa 17

    Dessa maneira, antes mesmo que compreendamos o significado de todosos conceitos utilizados por Espinosa nessas definies e a estrutura de cada umdos enunciados (e o fato de vrios deles inclurem seja um ou, seja um isto), podemos perceber a articulao entre a definio de Deus e as outras setedefinies. A referncia de todas as definies da causa sui como seu

    fundamentumtem um poder ostensivo imediato: as oito definies da Parte I definemDeus. Em outras palavras, a Parte I da tica se abre com uma nica definio real, adefinio de Deus, geometricamente construda com os elementos fornecidos pelas sete outras,todas elas dependentes da definio da causa de si e articuladas internamente a ela.

    Poder-se-ia, obviamente, indagar se as definies I,2 (a da coisa finita) eI,5 (a do modo) deveriam ser includas nessa grande e nica definio. Aresposta afirmativa porque a coisa finita definida menos pela limitao (maneira suareziana15) e mais pelo estar contida em algo mais vasto do que ela ede mesma natureza que ela16, e o modo definido como afeco da substnciaque existe nela e por ela concebido. A convergncia das definies numa

    nica definio corresponde diptrica da Carta 39 a Jelles, quando Espinosaprope um sistema esfrico cujo foco est situado a uma distncia do vrticeigual ao dimetro do diptrico e que d uma definio opticamente perfeita de

    15Para Suarez, uma coisa finita porque limitada e limitada porque o por uma

    causa quando esta no lhe pode ou no quer dar mais realidade e perfeies; cf.Disputationes Metaphysicas, XXVIII, sec. 1. Ter uma causa ser finito e limitado; no tercausa ser infinito e ilimitado.

    16 Que a definio da coisa finita sublinha muito mais o estar contido em do queo ser limitado por confirmado, a contrario, pelo que dito da essncia de substnciaou Natureza ou Deus na Parte I do Apndice Geomtrico do Breve Tratado, na

    demonstrao da proposio I,P4 (cujo enunciado se refere existncia necessria quepertence natureza da substncia). Ao concluir a demonstrao, Espinosa escreve:Visto que sua essncia [da substncia] no est contida em nenhuma outra coisa, uma realidade que existe por si mesma. Embora, como veremos (cf. Volume II), alimitao seja portadora de conseqncias decisivas para a teoria das paixes e a gneseda servido nas Partes III e IV, o mais importante, na Parte I no esse aspecto dofinito e sim que o limite significa a existncia de algo de mesma natureza e mais vastoque, ao limitar a coisa finita, a contm.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    12/22

    Marilena Chaui18

    todo ponto, mesmo situado no infinito. Se, tecnicamente, esse sistema nopermite construir um telescpio porque, de um ponto situado no infinito, osraios chegam praticamente paralelos superfcie do diptrico e o telescpioteria que ser infinitamente longo, entretanto, do ponto de vista da ontologia,portanto, do absolutamente infinito, essa geometria ptica permite, como

    anunciara o De Emendatione, que o intelecto construa o instrumento perfeitopara a viso do absoluto. Esse instrumento so as oito definies da ticaI. Asdefinies da coisa finita e do modo participam dessa definio nica porque nadiptrica espinosana todo e qualquer ponto possui uma definio perfeita porser um raio de uma onda luminosa infinita que se propaga sem deformao ecada ponto, raio luminoso dessa mesma onda, por isso visvel sem aberraoptico-geomtrica e sem qualquer distoro. A coisa finita e o modo so essesraios produzidos pela propagao contnua do absolutamente infinito.

    Tomadas isoladamente, cada uma das oito definies nominal econcebvel, na acepo que lhes d a Carta 9, donde o emprego do assertivo

    intelligo (entendo). Cada uma delas construda de maneira a enunciar o quealgo (id quod, ens res) (in se, in alio), como (existens, terminata, absolute infinita,infinitum in suo genere, ex sola sua necesssitate existit, a se sola ad agendum determinatur) ecomo concebida (concipi nisi existens, per se, per alium, ex sola definitione). Reunidas,porm, constituem uma nica definio real ou verdadeira, no sentido propostopela Carta 9 e, sob esse aspecto, o intelligo no meramente assertivo nemestipulativo17, mas est referido ao conjunto de verbos empregados nasdefinies conceber, seguir, envolver, exprimir e ao substantivo intellectus, nadefinio I,4, de sorte que seu sentido inequvoco: trata-se da ao intelectualque apreende a gnese da idia verdadeira.

    Por isso mesmo, nessa definio nica so cumpridas todas as exignciasda Emenda do Intelecto e das cartas a Tschirnhaus para a definio perfeita everdadeira, isto , a definio real gentica, seja do ponto de vista de suaconstruo, seja do ponto de vista de seus constituintes. Quanto construo,

    17Como gostam de dizer os comentadores anglo-saxes, segundo o vocabulrio da

    filosofia analtica.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    13/22

    A Definio Real na Abertura datica I de Espinosa 19

    nela respeitada a distino exigida pelo De Emendationeentre coisa incriada ecoisa criada, isto , entre causa de si e coisa finita, e entre substncia/atributo emodo, distino que se traduzir no primeiro axioma da tica I quando adistino (referida a tudo o que ) se faz entre o que em si e o que emoutro, ou o que causado por si e o que causado por outro 18. Quanto aos

    constituintes, tambm esto respeitadas as exigncias do De Eemnadtionee dascartas a Tschirnhauss, pois esto presentes a causa interna da gnese do objeto(a causa de si e a substncia), a essncia ntima do definido (os atributos e oabsolutamente infinito), as propriedades necessrias da essncia do objeto(infinitude, liberdade, eternidade), os efeitos necessrios da essncia do definido(o modo e a coisa finita) e a completa inteligibilidade da essncia e existncia doideado (a causa suiou causa sive ratio), uma vez que, ao enunciar que a essncia doque causa de si uma natureza que no pode ser concebida seno comoexistente, a abertura do De Deo estabelece, paradigmaticamente, que a definiodeve oferecer a identidade entre conhecimento e realidade, concepo e ser,

    excluindo, de princpio, o recurso dvida como procedimento filosfico, jque a definio perfeita da coisa incriada, como dissera o De Emendatione,invalida a questo an sit(?, existe?).

    A definio nica da Parte I unifica o diverso e o faz de duas maneiras:em primeiro lugar, pela seqncia de trs definies, as da causa de si, dasubstncia e de Deus, qual se subordina a seqncia de duas outras definies,a da coisa finita em seu gnero e a de modo; em segundo lugar, pelocontraponto entre finito em seu gnero e infinito em seu gnero. Na primeiraseqncia, o ncleo unificante a diferena entre incondicionado e dependente;na segunda, a diferena entre o limitado por outro de mesma natureza no qual

    est contido e a afirmao absoluta da existncia sem privao e sem negaointerna.

    18Ou, se se quiser manter a terminologia do Tratado da Emenda do Intelecto, entre o

    que no requer uma causa prxima para ser e o que necessariamente precisa de umacausa prxima para ser.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    14/22

    Marilena Chaui20

    Para quem, estando no gnero de conhecimento perfeito, isto , noterceiro gnero, capaz, portanto, de scientia intuitiva(ou, como explicara o BreveTratado, para quem v a prpria coisa, no por meio de outra, mas nelamesma19), a ticaI so essas oito definies que, apreendendo a necessidadeimediata do que em si, apreendem a inteligibilidade imediata do que

    concebido por si e constituem uma s definio real, a doabsoluto.No poderia ser diferente. Espinosa j oferecera em obras anteriores

    duas indicaes de que assim seria: de um lado, o Prolegomenon dosPrincpios da Filosofia Cartesianae, de outro, a identificao da idia adequada coma definio perfeita. De fato, ao iniciar a exposio dos princpios da filosofiade Descartes, Espinosa considerara necessrio que o leitor tivesse sob os olhos,uno intuitu, a totalidade da filosofia cartesiana, ou melhor, os nexos e asconcluses da ordem analtica. Por sua vez, nas cartas a Oldenburg, Hudde eTschirnhaus, a expresso idea sive definitio deixa transparecer a diferena entre aordem espinosana e a cartesiana, isto , entre um percurso palmilhado por

    intuies simples que devem encadear-se umas s outras e uma ordenaodedutiva a partir de definies de essncia em que estas possam ser apreendidasintuitivamente como unidade de um percurso que delas depende. Alm disso,dispomos de uma indicao precisa de que assim deve ser: a teoria das maneirasde conhecer (sejam elas os modos de percepo daEmenda do Intelecto, os modosde formar conceitos do Breve Tratado, ou os gneros de conhecimento datica)no os concebe como graus ascendentes e sim como estruturas cognitivasindependentes, pois a diferena entre elas no decorre de seus objetos, mas damaneira como o conhecimento de uma mesma coisa se realiza sob formasdistintas. Isso significa, contra a suposio de um procedimento hipottico-dedutivo ou a de uma construo geomtrica feita nas proposies iniciais da

    Parte I, que no se pode esperar que o conhecimento racional (ou oconhecimento de segundo gnero, que conhece as propriedades universais dascoisas e no conhece nenhuma essncia determinada) possa produzir, medida

    19Breve Tratado, II, 1 (3) nota 4, Edio Mignini, p. 43-44 (essa nota no consta na

    edio Gebhardt).

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    15/22

    A Definio Real na Abertura datica I de Espinosa 21

    que se desenvolve (seja numa deduo, seja numa construo), um conhecimentointuitivo de uma essncia. Porm no s isso. O conhecimento intuitivo de umaessncia, graas sua definio causal ou perfeita, permite a deduo de todos osseus efeitos e propriedades e, por conseguinte, o conhecimento do segundognero, porque conhecimento de propriedades comuns ao todo e s partes,

    depende do de terceiro gnero e no o contrrio. Visto que a cincia intuitiva no contacto exttico inefvel com uma essncia e sim seu conhecimento imediatopelo conhecimento de sua gnese ou causa interna, a intuio no exclui adeduo ( sua forma concentrada) e princpio de dedues, ou seja, produzefeitos de conhecimento. Sob este aspecto, alis, podemos dizer que o De Deo vaimais longe que o Breve Tratado quanto primazia do conhecimento imediato ouintuitivo, e isto graas exatamente matemtica ou teoria da definio causal.

    Expliquemos. Ao iniciar nossa exposio, havamos observado a diferenaque os comentadores sempre apontam entre o Breve Tratado que comea comQue Deus existe e atica que demonstra a existncia de Deus apenas na

    dcima-primeira proposio da Parte I. Essa diferena costuma ser interpretadacom a suposio de que as duas obras espinosanas se distinguiriam porque umadelas (o BT, no geomtrico) pretende colocar-se desde logo como conhecimentoimediato da existncia e essncia de Deus enquanto a outra (a tica, geomtrica)constri-se mediatamente por meio de definies e proposies. Ora,contrariamente a essa suposio, vemos que a geometria da ticaI tem comoponto de partida uma intuio de essncia (a de Deus) ou um conhecimentoimediatamente adquirido pela percepo dos nexos necessrios entre suas oitodefinies. Para fazer o leitor chegar intuio dessa definio nica em que aidia do absoluto rigorosamente percebida em sua causa, essncia epropriedades, a tarefa do De Deo oferecer-se como livro plenamente inteligvel

    (como osElementosde Euclides em face das Sagradas Escrituras), desdobrando asdefinies em proposies, corolrios, demonstraes e esclios cujo escopono provar a existncia do absoluto20 e sim, em primeiro lugar, demonstrar

    20No esclio da proposio 19 da Parte I (ou I,P19), Espinosa declara que, da

    demonstrao da existncia de Deus, feita em I,11, fica-se sabendo que a existncia de

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    16/22

    Marilena Chaui22

    que s pode existir uma nica substncia no universo e, em segundo, explicitaro sentido dos conceitos e entes postos nas definies, demonstrando a maneiracomo agem e produzem efeitos necessrios. Unicidade substancial enecessidade absoluta da ao da Natureza Naturante e da Natureza Naturada,eis as tarefas demonstrativas de que se encarrega a ticaI. no interior desse

    quadro demonstrativo que sero demonstradas a existncia necessria dasubstncia e a existncia de Deus, isto , no como demonstraes dessasexistncias enquanto tais e sim como passos lgicos da demonstrao daunicidade e necessidade substanciais ou, numa palavra, da imanncia. Dessamaneira, o percurso dedutivo cumpre exatamente a mesma tarefa que os seteaxiomas e as quatro proposies da Parte I do Apndice Geomtrico do BreveTratado, que chegam identidade entre a essncia da Natureza (que consisteem infinitos atributos, cada um dos quais infinito e perfeito em seu gnero, acuja essncia pertence a existncia e fora da qual no h qualquer essncia ouexistncia) e a essncia de Deus21.

    Deus, assim como Sua essncia, uma verdade eterna e no corolrio 1 da proposioI, P20 lemos: Daqui segue, em primeiro lugar, que a existncia de Deus, assim comoSua essncia, uma verdade eterna. Ora, a marca de uma verdade eterna , justamente,no carecer de demonstrao. Lembremos ainda que, no TIE, a definio perfeita dacoisa incriada deve ser tal que no permita a pergunta existe?. Isto significa quedeveremos determinar qual o sentido das demonstraes das proposies I, P7(existncia da substncia) e de I,11 (existncia de Deus) na economia da ordemgeomtrica, alm das provas do esclio da proposio I,P8, do corolrio da proposioI,P20 e da proposio I,P22. Essas demonstraes so passos da demonstrao daunicidade substancial e da absoluta necessidade causal da realidade.

    21O Apndice Geomtrico do Breve Tratado no apresenta definies, mas traz sete

    axiomas (ax.1: A substncia existe, por sua natureza, antes de suas modificaes; ax.2:

    As coisas que so diversas distinguem-se ou realmente ou modalmente; ax.3: as coisasque se distinguem realmente ou possuem atributos diversos, comopensamento e extenso,ou esto referidas a atributos diversos, como intelecto e movimento, dos quais um pertenceao pensamento e o outro extenso; ax. 4: As coisas que tm atributos diversos comopuras coisas que pertencem a atributos diversos no possuem em si nada uma da outra;ax.5: Isso que nada tem de outra coisa no pode ser causa da existncia de tal outracoisa; ax. 6: O que causa de si no pode haver limitado a si mesmo; ax.7: Isso pelo queas coisas se distinguem existe por sua natureza antes delas.) e quatro proposies (P1: A

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    17/22

    A Definio Real na Abertura datica I de Espinosa 23

    Podemos, agora, retomar o problema posto pela aparente ausncia dedefinio da coisa infinita e pela a curiosa irregularidade geomtrica doesclio da proposio I,P8 (toda substncia existe infinita), que havamosmencionado acima. De fato, para a lgica do De Deo preciso introduzir ainfinitude numa proposio por que isso um dos passos da demonstrao de

    que s pode haver uma nica substncia no universo. Por seu turno, o esclioda proposio I,P8 no tem como objeto explicar algo enunciado em suaprpria proposio ou afirmado na demonstrao dela, e sim elucidar o sentidoda proposio anterior, a proposio I,P7 ( natureza da substncia pertence oexistir), porque o significado pleno da demonstrao da necessidade daexistncia da substncia s se esclarece quando se demonstra que todasubstncia existe infinita.

    nenhuma substncia existente realmente pode ser referido o mesmo atributo que vemreferido a uma outra substncia; ou, o que o mesmo, na Natureza no podem ser duassubstncias, a menos que sejam realmente distintas; P2: Uma substncia no pode sercausa da existncia de uma outra substncia; P3: Todo atributo ou substncia por suanatureza infinito e sumamente perfeito em seu gnero; P4: essncia de todasubstncia a existncia pertence de maneira tal que impossvel haver num intelectoinfinito a idia da essncia de uma substncia que no exista realmente na Natureza;

    P4Cor.: A Natureza conhecida por si mesma e no por meio de alguma outra coisa.Consiste em infinitos atributos, cada um dos quais infinito e perfeito em seu gnero. sua essncia pertence a existncia, de tal maneira que fora dela no h nenhumaessncia ou existncia, coincidindo exatamente com a essncia de Deus, somente Elemagnfico e bendito). significativo no s que o BT no traga definies, mastambm que o axioma 6 se tenha transformado na primeira definio daticaI e que ocorolrio da proposio 4 seja uma verso da sexta definio da tica I, isto , adefinio de Deus como ser absolutamente infinito.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    18/22

    Marilena Chaui24

    Para que o intelecto finito possa realizar a tarefa demonstrativa, precisoque as definies (ou a definio) determinem regras a priori de operaointelectual, isto , os axiomas. Estes so, portanto, as regras lgicas ou osoperadores apriorsticos da demonstrao da auto-causalidade e unicidade dasubstncia absolutamente infinita e de sua causalidade eficiente imanente 22,

    22Pelas cartas a Oldenburg e a de Vries, sabemos que os axiomas so verdades eternas

    que existem apenas em nosso intelecto e so, como diz o primeiro esclio da proposio40 da Parte II, os fundamentos de nosso raciocnio. O axioma no possui objetoexterior determinado, mas o que nos permite pensar rigorosamente a priorium objetodeterminado: um a priori da atividade de conhecer. Embora Espinosa conserve aconcepo cartesiana do axioma (cf. Principia I, art. 48, 49 e 50), nela introduz trsalteraes de monta (e isso sem mencionarmos, aqui, as distines, feitas na Parte II da

    tica, entre axiomas, noes comuns universais e noes comuns prprias): em primeirolugar, o axioma uma verdade eterna ou uma evidncia, a)por que, como explica o TIE, uma afirmao que jamais se torna uma negao (vice-versa); b) por que se encontra

    igualmente no intelecto infinito e no finito e no por que, como queria Descartes, foicriado por Deus; em segundo lugar, o axioma tem fundamento na realidade, isto , no um universal abstrato ou vazio, mas concerne ao comportamento de coisas reais ou soperaes que elas realizam necessariamente, em outras palavras, referem-se a leis geraisda operao necessria das coisas; em terceiro lugar e como conseqncia, os axiomasdecorrem das definies ou dependem delas. A definio 1 (da causa de si) subordina osaxiomas 1, 2, 3, 4 e 5; a definio 2 (da coisa finita) subordina os axiomas 1, 2 e 4; adefinio 3 (da substncia) subordina os axiomas 1 e 2; a definio 4 (do atributo)subordina os axiomas 2, 4 e 6; a definio 5 (do modo), os axiomas 1, 2, 4 e 6; a definio6 (de Deus), os axiomas 1, 2, 5 e 6; e as definies 7 (da coisa livre) e 8 (da coisa eterna),os axiomas 1, 3 e 7. Os axiomas 1, 2 e 7 referem-se essncia e existncia das coisas; osaxiomas 3, 4 e 5 referem-se causalidade; o axioma 6 refere-se verdade. Os axiomas 1, 2

    e 7 so ontolgicos; os axiomas 4 e 6 so gnoseolgicos; o axioma 3 o elo de ligaoentre os axiomas ontolgicos e gnoseolgicos. O fundamento de todos eles a idia decausa sui, portanto, a definio I,1. Por seu turno, os axiomas se determinamreciprocamente, conforme referidos causalidade, essncia e existncia e idia: oaxioma 1, ontolgico, incide sobre os axioma 2, gnoseolgico e 7, ontolgico, enquanto oaxioma 3, ontolgico, incide sobre os axiomas 4, 5, 6, gnoseolgicos. Dessa maneira,podemos obter um quadro da relao entre as definies e os axiomas da primeira parte:

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    19/22

    A Definio Real na Abertura datica I de Espinosa 25

    Definies Axiomascausa de si, coisa finita, substncia, modo, Deus Ax. 1 Tudo o que existe, existe em si ou em

    outro

    causa de si, coisa finita, substncia, atributo,modo, Deus

    Ax. 2 O que no pode ser concebido por outracoisa deve ser concebido por si

    causa de si, coisa livre, coisa eterna Ax.3 De uma dada causa determinada segue-senecessariamente um efeito; se no existequalquer causa determinada impossvelseguir-se um efeito.

    Causa de si, coisa finita, substncia, atributo,modo, coisa livre

    Ax. 4 O conhecimento do efeito depende doconhecimento da causa e o envolve

    causa de si, substncia, atributo, Deus Ax. 5 Coisas que nada tenham em comumentre si tambm no podem ser entendidasumas pelas outras, ou seja, o conceito de umano envolve o conceito da outra

    causa de si, atributo, modo, Deus Ax. 6 A idia verdadeira deve convir ao seuideado.

    Causa de si, modo, coisa eterna Ax. 7 A essncia do que pode ser concebidocomo inexistente no envolve a existncia.

    Observe-se que a causa suidetermina todosos axiomas, tanto os ontolgicos quantoos gnoseolgicos.

    A articulao entre os prprios axiomas nos oferece o seguinte quadro dedeterminao:

    ax.1 sobre a maneira de existir das coisas ax.2 sobre a maneira de conceber as coisassegundo sua maneira de existir

    ax. 7 sobre a essncia do que pode serconcebido como inexistente

    ax. 3 sobre as coisas enquanto causas eefeitos

    ax. 4 sobre a maneira de conhecer o efeitoax. 5 sobre coisas que no podem serentendidas umas pelas outrasax. 6 sobre a convenincia entre a idia e oideado

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    20/22

    Marilena Chaui26

    destacando-se nesse escopo, particularmente, os axiomas I,1, I,2 e I,4, quedeterminam o campo de inteligibilidade dessas demonstraes. Em outraspalavras, o trabalho das definies o de produzir efeitos de conhecimento pormeio de demonstraes reguladas por axiomas, uma vez que a definio princpio de deduo e delas dependem os axiomas. A lgica inaugurada pelo

    De Deo opera com trs distines que orientam o enunciado das definies esubordinam o dos axiomas: distino entre o que causa de si e o que causado por outro; entre o que em si e o que em outro; e entre o que concebido por si e o que concebido por outro. Graas a essas distines, anova lgica subverte a antiga porque, em primeiro lugar, a idia de causa vemsubstituir a de predicados e, em segundo, as idias so idias de coisas reais,afastando os conceitos vazios da Escolstica, isto , os entia rationis (gneros eespcies empregados para construir uma definio) e o ens realis(o ente possvelcomo idia contida no intelecto divino e cuja existncia depende de um ato davontade divina).

    A correspondncia do jovem Espinosa com Oldenburg pode, agora,receber sua fora e seu sentido. De fato, a Carta 2, de Espinosa, declara que dadefinio de Deus, fcil demonstrar que tal ser existe, porm, escreve ele, no o caso de realizar a demonstrao e sim de mostrar que, para responder questo levantada pelo secretrio geral da Royal Society, em sua primeira carta que distino estabeleces verdadeiramente entre a extenso e o pensamento? , preciso primeiramente demonstrar que no pode haver na Natureza duassubstncias que no diferissem pela totalidade de sua essncia, a seguir, queuma substncia no pode ser criada, mas o existir pertence sua natureza e,finalmente, em terceiro lugar, que toda substncia deve ser infinita, isto ,

    totalmente perfeita em seu gnero. nova questo de Oldenburg, na Carta 3, sem nenhuma dvida nem obscuridade, da simples definio que ofereces deDeus pode-se deduzir que tal ser existe? , Espinosa respondera distinguindoentre definio de uma coisa qualquer e definio de uma coisa que seconcebe em si e por si, distino que ele julga ser a mesma existente entre afico e a idia clara e distinta, pela verdade do axioma que diz que toda

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    21/22

    A Definio Real na Abertura datica I de Espinosa 27

    definio, isto , toda idia clara e distinta necessariamente verdadeira23. Ojovem Espinosa identificara idia verdadeira e definio verdadeira; namaturidade, o filsofo insistir com Tschirnhaus que uma definio verdadeiradeve ser uma idia adequada e que esta deve oferecer a causa eficiente dodefinido. Se a isto acrescentarmos, de um lado, a distino feita a de Vries entre

    definio concebvel e definio verdadeira, e, de outro, a clusula do DeEmendationede que a definio da coisa incriada deve oferecer sua essnciantima no cabendo, diante da definio perfeita do incriado, a pergunta existe?,percebemos que, de longa data, veio-se preparando o caminho para que, ao fim eao cabo, as definies da ticapudessem ser intudas pelo terceiro gnero deconhecimento. No s isso. Mesmo que considerssemos nominais setedefinies do De Deo e real apenas a sexta definio, teramos que explicar porque ela real e afirmar que ela o porque oferece a essncia ntima da coisa.Ao faze-lo, deixaramos escapar que essa essnciaj aparece causalmente, graas sdefinies da causa de si, da substncia e do atributo.

    Podemos, finalmente, regressar ao problema posto pelas curiosasdemonstraes da existncia de Deus na proposio 11 da tica I. exatamente porque as oito definies constituem a definio do absoluto que,geometricamente, Espinosa passa pela proposio I,P11, pois, uma vezintroduzido o princpio de razo com a causa sui necessrio que tudo possa serdemonstrado, incluindo sua prpria existncia, como fica evidente pela outrademonstrao da dcima primeira proposio. Desencadeado o processo dededuo causalmente determinado, a ordem geomtrica exige que nada lhe

    23

    Isto , pelo axioma 10 das Respostas s Segundas Objees: Na idia ou noconceito de cada coisa a existncia a est contida porque no podemos conceber coisaalguma seno sob a forma de uma coisa que existe; mas com essa diferena que, noconceito de uma coisa limitada, a existncia possvel ou contingente est somentecontida e, no conceito de um ser sumamente perfeito, a perfeita e necessria a estcompreendida (AT IX, p. 128). Observamos anteriormente que Espinosa no empregacontida nem compreendida, mas diz que a essncia envolveexistncia necessria ouno a envolve.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.

  • 7/29/2019 Chaui- A Definicao Real Na Etica I

    22/22

    Marilena Chaui28

    escape e para chegar unicidade substancial preciso passar pela prova daexistncia do absoluto que, em si mesma, no carece de demonstrao.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BENNETT, J. A Study of Spinozas Ethics. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1984.

    CHAUI, M. A Nervura do Real. Imanncia e Liberdade em Espinosa. So Paulo:Companhia das Letras, 1999.

    DELEUZE, G. Spinoza et le problme de lexpression. Paris: Minuit, 1968.

    GUROULT, M. Spinoza. Dieu (Ethique I). Paris: Aubier, 1968.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 11, n. 1, p. 07-28, jan.-jun. 2001.