aulas marilena chaui - a questao da tecnica

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1 Filosofia Geral II Marilena Chaui A QUESTÃO DA TÉCNICA 2º SEMESTRE 2012 Sumário Aula 01 (06-08-2012).............................................................................................................................................................. 2 Aula 02 (13-08-202).............................................................................................................................................................. 13 ELABORAÇÃO MÍTICA ................................................................................................................................................ 13 ELABORAÇÃO RACIONAL DA TÉCNICA ................................................................................................................. 15 Problema geral da Cosmologia .......................................................................................................................................... 15 Os sofistas ......................................................................................................................................................................... 16 Medicina Grega ................................................................................................................................................................. 17 O Diagnóstico médico ....................................................................................................................................................... 18 Aula 03 (20-08-2012)............................................................................................................................................................ 20 Aula 04 (27-08-2012)............................................................................................................................................................ 24 Aula 05 (10-09-2012)............................................................................................................................................................ 30 Aula 06 (17-09-2012)............................................................................................................................................................ 34 O outro lado do desenvolvimento da técnica..................................................................................................................... 38 Aula 07 (24-09-2012)............................................................................................................................................................ 40 Exame da Astronomia como (lento) processo à Modernidade .......................................................................................... 41 Tycho Brahe, Kepler e Galileo: Pré-Modernidade ............................................................................................................ 42 Pesquisas de Kepler........................................................................................................................................................... 43 Francis Bacon: idéias gerais .............................................................................................................................................. 45 Aula 08 (08-10-2012)............................................................................................................................................................ 46 Aula 09 (15-10-2012)............................................................................................................................................................ 57 Aula 10 (22-10-2012)............................................................................................................................................................ 67 Aula 11 (05-11-2012)............................................................................................................................................................ 83 Aula 12 (12-11-2012)............................................................................................................................................................ 93

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1

Filosofia Geral II – Marilena Chaui

A QUESTÃO DA TÉCNICA

2º SEMESTRE 2012

Sumário

Aula 01 (06-08-2012) .............................................................................................................................................................. 2

Aula 02 (13-08-202) .............................................................................................................................................................. 13

ELABORAÇÃO MÍTICA ................................................................................................................................................ 13

ELABORAÇÃO RACIONAL DA TÉCNICA ................................................................................................................. 15

Problema geral da Cosmologia .......................................................................................................................................... 15

Os sofistas ......................................................................................................................................................................... 16

Medicina Grega ................................................................................................................................................................. 17

O Diagnóstico médico ....................................................................................................................................................... 18

Aula 03 (20-08-2012) ............................................................................................................................................................ 20

Aula 04 (27-08-2012) ............................................................................................................................................................ 24

Aula 05 (10-09-2012) ............................................................................................................................................................ 30

Aula 06 (17-09-2012) ............................................................................................................................................................ 34

O outro lado do desenvolvimento da técnica ..................................................................................................................... 38

Aula 07 (24-09-2012) ............................................................................................................................................................ 40

Exame da Astronomia como (lento) processo à Modernidade .......................................................................................... 41

Tycho Brahe, Kepler e Galileo: Pré-Modernidade ............................................................................................................ 42

Pesquisas de Kepler ........................................................................................................................................................... 43

Francis Bacon: idéias gerais .............................................................................................................................................. 45

Aula 08 (08-10-2012) ............................................................................................................................................................ 46

Aula 09 (15-10-2012) ............................................................................................................................................................ 57

Aula 10 (22-10-2012) ............................................................................................................................................................ 67

Aula 11 (05-11-2012) ............................................................................................................................................................ 83

Aula 12 (12-11-2012) ............................................................................................................................................................ 93

Page 2: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

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Filosofia Geral II – Marilena Chaui

A QUESTÃO DA TÉCNICA

Aula 01 (06-08-2012)

(...) A idéia da causa como operação é a característica da

causa eficiente, ela é uma operação; em princípio as outras causas...

privilégio que foi dado à causa eficiente fez com que nós entendês-

semos por causalidade a idéia de operação. O que nós vamos tentar

mostrar é que a noção de causa, das quatro causas é muito mais

vasta é muito mais ampla do que isso, porque é preciso saber pri-

meiro o que eles entendiam por causa. Então não é por acaso, que

quando ele menciona as quatro causas, ele menciona em latim; ele

menciona em latim por dois motivos: primeiro porque ele conside-

ra que quando os latinos traduziram a Filosofia grega eles destruí-

ram a Filosofia grega, a língua latina é incompatível com a Filoso-

fia e é incapaz de traduzir o grego. Então ele já, de propósito,

começou com a versão latina da causalidade, pra mostrar que é a

versão latina da causalidade que no fim das contas é responsável

pelo privilégio que é dado à noção de causa e (?) eficiência e,

portanto, para a idéia da causa como operação, por isso está na hora

de nós perguntarmos se é isso mesmo (...) é isso que a causa é: e é

preciso perguntar isso para entender porque que as quatro causas

são solidárias, ou seja, uma não opera sem a outra.

A causa eficiente, uma das quatro causas, marca a causali-

dade de uma maneira determinante. Isso vai tão longe que não se

conta mais a causa final, isto é a finalidade como entrando na

causalidade. Basta vocês lerem a Filosofia da Ilustração alemã,

basta vocês lerem do Kant para frente, para ver que a finalidade é

oposta à causalidade. Antigamente, até chegar Kant, nos tínhamos

a causalidade eficiente, dita a causalidade necessária, e a causali-

dade livre, voluntária, chamada a causa pela finalidade; a finalida-

de era considerada uma causa, ela era uma causa em Aristóteles e

Platão. Então o que o Hidegger está dizendo é a noção de causa

eficiente se tornou tão preponderante e ela passou a determinar de

tal maneira nossa concepção de causalidade que, para nós, (...) a

finalidade não é concebida por nós como uma causa, como uma

causalidade, até a oposição entre causalidade e finalidade. Então

isto vai tão longe que não se conta mais, de maneira nenhuma a

causa final, a finalidade, como entrando na causalidade. Causa,

casus, então causa em latim vem de casus, então causa, casos se

ligam ao verbo (?) cair e significam aquilo que faz de tal maneira

que alguma coisa no resultado caia desta ou daquela maneira.

A doutrina das Quatro causas, remonta a Aristóteles. Entre-

tanto, tudo o que as épocas posteriores procuram nos gregos sob a

representação e a apelação de causalidade, não tem no domínio do

pensamento grego e para o pensamento grego, nada em comum

com o operar e o efetuar. O que nós chamamos causa, aquilo que

os romanos chamavam causa, se dizia entre gregos aítia, plural vai

ser aitiai (?) e a causação (?) (...) Se diz em grego aítia; e o qual é o

significado de aítia? Aquilo que responde por uma outra coisa;

aítia significa ser responsável por. De acordo com Heidegger aítia,

causa, não significa uma operação, ela significa uma responsabili-

dade, é responder por alguma coisa. As quatro causas são os modos

solidários entre si do ato pelo qual se responde. E agora então

Heidegger vai dar um exemplo do que significa essa concepção da

causa como aquilo que responde por alguma coisa. A prata é aquilo

de que a taça de prata é feita. Enquanto essa matéria tiver (?) en-

quanto, perdão, enquanto esta matéria (?), a prata é corresponsável

pela taça; a taça deve à prata aquilo do que é feita; ela o é graças a

ela; seja, a taça é o que é, graças à prata. Mas ela não permanece

somente devedora da prata. Enquanto taça aquilo que ela é aquilo

que ela é devedora diante da prata, perdão, aquilo que é devedor

diante da prata, aparece sob o aspecto exterior de uma taça. Esse

aspecto é a forma da taça: matéria (?), forma, eidos idéia. A prata,

enquanto ela entra no aspecto, na forma, né, no aspecto de uma

taça, aspecto sob o qual aparece a coisa de prata, são ambas, taça e

prata, a sua maneira, são corresponsáveis pela taça sacrificial;

portanto, a matéria, causa material e forma, aspecto do objeto,

causa formal, não são operações que produzem a taça, elas são

aquilo que é, são que é responsável pela existência da taça, desta

taça em particular, elas respondem pela... Então, o primeiro ponto

importante, porque mais tarde, quando nós chegarmos lá na ques-

tão tecnológica eu vou retomar esta colocação do Heidegger, a

partir da crítica que o Gianotti faz disso (...) a maneira como Hei-

degger está interpretando Aristóteles... Mas o importante aqui, o

que o Heidegger está dizendo é que há uma inseparabilidade que a

taça de prata apresenta é a inseparabilidade entre matéria e forma, e

é importante que a forma, que é o tema por excelência da Filosofia

Clássica grega, tema de Sócrates, de Platão, de Aristóteles, a for-

ma, o eidos, é o aspecto, isto é, é a maneira pela qual algo se apre-

senta a visibilidade, isso que o eidos é. A idéia é aquilo que se

apresenta ao olho do espírito, é aquilo que o olho do espírito vê.

Bom, a forma é o aspecto que algo tem na visibilidade, que pode

ser a visibilidade sensorial, dos olhos, ou a visibilidade intelectual,

operação do espírito(?). Então, o primeiro instante é, a taça é essa

união de matéria e forma que respondem pela existência dela. Um

terceiro fator, entretanto, permanece antes de tudo, responsável

pela taça; é aquilo que ela inclui, que inclui previamente no domí-

nio da consagração e da oferenda, ela é assim definida como coisa

sacrificial (...). Então o que define, termina a coisa; a coisa que não

cessa com este fim – sacrifício, né – mas começa a partir do fim

porque é o fim que diz o que ela será depois da fabricação. O que

neste sentido termina, define, acaba, se diz em grego télos, palavra

que se traduz freqüentemente por objetivo e fim e que fazendo tal

tradução, se interpreta muito mal. O télos é o responsável daquilo

que como matéria e como aspecto é corresponsável da taça sacrifi-

cial. Em suma, o fim é aquilo que determina porque a taça sacrifi-

cial existe, porque ela é fabricada. Então a matéria e a forma dizem

como a taça á, mas o fim é o que faz a taça vir à existência, enfim,

telos é o que responde pela existência mesma da taça e, portanto

responde pela fabricação dela.

Um quarto fator responde também pela presença e pela

disponibilidade da taça sacrificial acabada (...), mas de maneira

nenhuma no sentido que por sua operação ele produz a taça sacrifi-

cial acabada como efeito de uma fabricação; o ouvires não é causa

eficiente, o ourives é aquele meio pelo qual a forma penetra na

Page 3: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

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matéria para realizar (...). A análise de Heidegger vai na direção de

mostrar que a causa menos importante (...) é a causa eficiente, é

aquele que faz, no caso o ourives, das causas a menos importan-

te(...). A doutrina de Aristóteles sequer conhece uma causa desig-

nada com este nome, causa eficiente, e não emprega um termo

grego correspondente a esta (...). O ourives considera e reúne os

três modos mencionados do ato pelo qual se responde. Considerar,

em grego, se diz legein, daí vem logos. Considerar se diz em grego

legein, logos, e repousa sobre o (...), isto é, no fazer aparecer (o ? é

o que faz aparecer). O operário, o ourives é responsável como

aquilo a partir do que a produção e o repousar em si mesmo, em si

mesma da taça sacrificial encontram e conservam a sua primeira

emergência; é a partir do ourives que a taça começa a aparecer a

emergir da não ocultação. Os três modos pré-citados do ato pelo

qual se responde (as três [?] da aítia, material, formal e final),

então, os três modos pré-citados do ato pelo qual se responde por

alguma coisa devem à reflexão do ourives o aparecer e entrar em

jogo na produção da taça, eles lhe devem também a maneira como

eles fazem isto. A taça sacrificial presente e à nossa disposição e

assim regida pelos quatro atos pelo qual se responde; eles diferem

entre si e entretanto são solidários uns com os outros. O que os une

previamente? Em qual meio se exerce o jogo consertado dos quatro

modos do ato pelo qual se responde? De onde provem a unidade

das quatro causas? O que quer dizer “pensado à grega” o ato pelo

qual se responde? Nós, Homens de hoje, nos inclinamos muito

facilmente a compreender o ato pelo qual se responde , de maneira

moral, com (ou como) uma falta, e também, a interpretá-lo como

uma espécie de operação. Nos dois casos, nós fechamos o caminho

que conduz ao sentido primeiro daquilo que mais tarde recebeu o

nome de causalidade. Para nós, Homens de hoje em dia, evitar

essas falsas interpretações, o ato pelo qual se responde nos leva a

esclarecer o que são estes quatro modos partindo daquilo que eles

têm a responder.

(...) Feita esta apresentação da taça a pergunta é: {20´}por

que estes quatro modos de ser responsável por alguma coisa for-

mam uma unidade? O que une previamente estes quatro modos do

responder pela coisa, ou seja, a responsabilidade pela coisa se faz

nestes quatro modos, mas deve haver algo com que faça que estes

quatro modos sejam solidários e estejam unidos desde o começo.

Ou seja, não é no ato de fazer aparecer a taça que eles se unem, é

porque eles estão unidos é que eles são capazes de fazer a taça

aparecer.

Retomemos o nosso exemplo: os quatro modos respondem

pela taça de prata que está diante de nós e à nossa disposição como

uma coisa que serve ao sacrifício. Estar diante, estar à disposição

(?)... hypo em grego significa suporte, sustentação que vai servir

para falar em substância, sujeito. Então, o estar diante e o estar à

disposição (?) caracterizam a presença de uma coisa presente. Os

quatro modos do ato pelo qual se responde conduzem alguma coisa

rumo ao seu aparecer; eles deixam essa coisa advir no ser-perto-de;

eles liberam o ser nesta direção e o deixam se avançar, isto é, vir na

sua vinda perfeita. Então o que os quatro modos – isso é o essencial

do Heidegger – o que os quatro modos de responder pela coisa

fazem é tornar visível, é tornar presente, fazer com que apareça

diante de nós e se disponha diante do nós alguma coisa É isso que

as quatro causas fazem; elas não são uma operação, elas são um

fazer aparecer, fazer surgir. O ato pelo qual se responde tem o traço

fundamental de se deixar avançar na vinda da presença. O ato pelo

qual se responde é um fazer vir. Considerando o sentimento que os

gregos tinham do ato pelo qual se responde – a aítia – nos damos

agora à palavra um sentido mais largo de tal maneira que esta

palavra possa exprimir a essência da causalidade tal como os gre-

gos a pensavam. Ao contrário da significação corrente, mais estrei-

ta, da causa como “ocasionar”, a aítia vai muito além disso, pois

ocasionar evoca apenas um choque inicial e designa uma espécie

de causa secundária no conjunto da causalidade.

Em que domínio, entretanto, se joga o jogo concertado dos

quatro modos de fazer vir? Então, eram os atos pelo qual se res-

ponde e agora este ato pelo qual se responde se chama fazer vir.

Aquilo que não está ainda presente, os quatro modos o dei-

xam chegar na presença, assim eles são regidos de uma maneira

una por um conduzir que conduz uma coisa presente ao aparecer.

Na frase de Platão(?), no “Banquete”; “ Todo fazer vir por aquilo

que ele é, que passa, que se adianta do não presente para a presença

é poíesis; é produção. O ponto essencial é que tomemos a pro-

dução em todo seu alcance, e ao mesmo tempo, no sentido dos

gregos: uma produção – poíesis - não é somente a fabricação

artesanal; ela não é somente o ato petiço e artístico que faz aparecer

e informa a imagem. A physis, a natureza (?)... A physis, pela qual

a coisa se abre ela própria é assim uma produção, é poíesis no

sentido mais elevado, pois o que é presente (?), por natureza, né,

tem em si esta possibilidade de se abrir que está implicada na

produção, por exemplo a possibilidade que tem a flor de se abrir na

floração. Ao contrário, o que é produzido pelo artesão ou pelo

artista, por exemplo a taça de prata, não tem em si a possibilidade

de se abrir implicada na produção, mas ele a tem em um outro (...)

Mas tem um outro em (?), no artesão ou no artista esta possibilida-

de. O que o Heidegger está dizendo é: Por que é que os quatro

modos de se responder pela coisa? Ou porque os quatro modos do

fazer aparecer ou fazer vir são solidários estão sempre unidos; essa

unidade e essa solidariedade é prévia a qualquer ato de fabricação

de um objeto. É que essa unidade, unidade das quatro causas, a

unidade das quatro aítiai, a unidade dos quatro modos de responder

pela presença,ou os quatro modos da produção, são... existem na

natureza, é a natureza que se realiza desta maneira. A natureza, a

physis, é essa potencialidade essa possibilidade infinita de fazer

aparecer (?) por si mesma todas as coisas; e é isso que existe por

natureza que existe na natureza é que (e agora nós vamos usar uma

palavra aristotélica que o Heidegger não usou) que o artesão vai

imitar; ou seja, a operação técnica – vou usar a palavra operação de

propósito – a operação técnica como unidade das quatro causas é

possível porque ela está fundada na natureza; ela é primeiro um

acontecimento natural e por isso ela pode ser um acontecimento

humano; ou seja, o primeiro artesão é a natureza. A natureza é, a

physis, no sentido heideggeriano, é aquilo que não cessa de produ-

zir. Agora nós vamos examinar o que é esse bendito produzir. A

natureza é esse produzir, essa solidariedade das quatro aítiai, e é

isso que o fabricador humano repete; ou como dirá Aristóteles, é

isso que ele imita. O que nos leva depois a entender o equívoco na

maneira que a tradição afirmou que Aristóteles disse que a arte é

Page 4: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

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imitação da natureza. A arte, a técnica não é imitação da natureza,

ela imita, ela não espelha a natureza, ela é a reiteração pelo homem

daquilo que a natureza faz, é isso que é a mímesis. A mímesis não é

espelhamento, a mímesis é uma ação, a ação de tornar-se semelhan-

te á, e é isso que a técnica faz, em termos aristotélicos, nós vamos

ver isso mais pra diante quando chegarmos em Aristóteles.

Então, os modos do fazer vir, as quatro causas se exercem,

portanto, no interior da produção; é esta que cada vez vem à luz,

assim como se crê na natureza como no ofício das artes. Agora

Heidegger vai esclarecer o que é a pro-dução.

Mas como tem lugar a pro-dução, seja na natureza, seja no

ofício, seja na arte? O que é o pro-duzir no qual se exerce o quá-

druplo modo do fazer vir? O fazer vir concerne à presença de tudo

que aparece no seio do pro-duzir. O pro-duzir faz passar do estado

escondido ao estado não escondido, ele presenta. Isso aqui é impor-

tante, todos vocês que já leram Gianotti sabem que, graças ao

Gianotti, se consolidou a diferença entre representar, apresentar e

presentar, aquela distinção que vem do Heidegger e que o Gianotti

encontra no Marx e no Wittgenstein. Bom, não vou comentar

nenhuma delas proque não é hora de comentar isso ainda. Mas o

importante é que Heidegger não diz “apresenta”, ele diz, “presen-

ta”. Não é apresentar porque apresentar significa que um agente

torna algo presente, não é isso; ele ta dizendo que há uma ação que

ela própria a ação do da presentificação que aparece primeiro na

natureza e depois aparece na técnica. Então, eu repito, o produzir

faz passar do estado escondido ao estado não escondido, ele pre-

senta. Produzir tem lugar somente enquanto alguma coisa escondi-

da chega ao não escondido; esta chegada repousa encontra o seu

elã naquilo que nós chamamos de o desvelamento. Essa é a palavra

chave da filosofia heideggeriana, né.(...) Aquilo que estava velado,

coberto, escondido é des-velado, presente, manifesto, visível. E é

isto que é produzir.

Então, produzir tem lugar somente enquanto alguma coisa

escondida chega ao não escondido; esta chegada repousa e encon-

tra o seu elã naquilo que chamamos o desvelamento. Os gregos têm

para isto um nome: alétheia, que os romanos traduziram por veri-

tas; e o Heidegger não se cansa de lamentar que alétheia tenha sido

traduzida por veritas e que alétheia tenha se transformado em

“verdade” porque a alétheia é movimento de desocultação do

oculto, não a correspondência e a adequação de uma idéia à alguma

coisa, que é a veritas; veritas é essa adequação, essa correspondên-

cia entre uma idéia e uma coisa, entre o ato intelectual e o objeto

(...) isso é coisa dos romanos, depois é coisa de Descartes, não tem

nada a ver com os gregos; para os gregos a verdade é o desoculta-

mento do oculto, o desvelamento do velado, a aparição do que

estava escondido.

Nós outros, alemães, dizemos wahrheit e entendemos isso

como a exatidão da representação, mas wahrheit é a boa tradução

de alétheia... E aí vem a conclusão do trecho que eu estou citando:

“ em que a essência da técnica tem a ver com o desvelamento? E aí

vem a resposta: em tudo, pois todo produzir se funda no desvela-

mento; no desvelamento reside a possibilidade de toda fabricação

produtiva. Assim, a técnica não é um meio, não é um instrumento,

a técnica é um modo do desvelamento. Então, é isso a técnica para

os gregos.

Agora nós vamos descer do céu nublado para uma terra

plana cheia de arvores, de flores e de frutos. Eu vou agora acompa-

nhar o Vernant.

No quadro da técnica e da economia antigas, o trabalho não

aparecia ainda senão no seu aspecto concreto. Deixe-me dizer, o

Vernant está fazendo um comentário a partir da elaboração feita

pelo Marx, logo na abertura do “Capital”, no ptimeiro capítulo do

Capital, da passagem do trabalho concreto, trabalho efetivo que

cada um realiza, ao trabalho social, a forma de ação no interior da

sociedade capitalista e, portanto, esse trabalho social como trabalho

ação. Então o que o Vernant está dizendo é, se eu vou do Marx

para os gergos o que eu vejo? Não existe uma sociedade de merca-

dorias {40’}, uma sociedade mercantil grega que esteja fundada no

caráter social do trabalho, esteja portanto, fundada num trabalho

abstrato, ela está fundada num trabalho concreto, isto é, o trabalho

individual, o que é trabalho abstrato? O trabalho abstrato é o que

produz valor de troca, o trabalho concreto é o que produz valor de

uso; Então é disso que está falando Vernant. No quadro da técnica

e da economia antigas o trabalho não aparecia ainda senão pelo seu

aspecto concreto. Toda tarefa se encontra definida em função do

que ela deve fabricar; a sapataria, com relação aos sapatos, a cerâ-

mica com relação ao pote. Não se olha para o trabalho na perspec-

tiva do produtor como expressão de um mesmo esforço humano

criador de valor social (que é o que o trabalho é no capitalismo);

Não se encontra na Grécia antiga uma grande função humana, o

trabalho cobrindo todos os ofícios, mas uma pluralidade de ofícios

diferentes cada um dois quais constituindo um tipo particular de

ação, produzindo a sua obra própria. E o Vernant (...) ele comenta

o fato de que não existe em grego a palavra trabalho e não existe

em latim; em grego, as palavras que se referem àquilo que nós

chamamos de trabalho são ou: ponos(?) e significa dor, pena,

sofrimento, fadiga, tudo que exige um esforço excessivo; e ergon

(?) que quer dizer “obra”, mas que é já a coisa pronta. A nossa

palavra (...) “trabalho” vem do termo latino tripalium(?) que era

um instrumento de tortura dos escravos, eles eram torturados, esse

é o trabalho. Então a idéia... claro, em sociedades aristocráticas,

oligárquicas, escravistas e que, portanto (...) nem sequer tem uma

palavra para a palavra trabalho; o trabalho não é uma realidade

importante nessas sociedades.

O trabalho se encontra, portanto, estreitamente ligado ao

domínio dos ofícios artesanais. Este tipo de atividade se define de

início pelo seu caráter de estrita especialização, pela sua divisão.

Cada categoria de artesãos é feita para uma única obra; mas, como

Marx notou, a divisão do trabalho na antiguidade é vista exclusi-

vamente em função do valor de uso do produto fabricado. Ele visa

tornar cada produto, tão perfeito quanto possível, o artesão fazendo

uma coisa tanto melhor quanto mais ele é especialista nela e só faz

ela. Cada ofício constitui um sistema fechado no interior do qual

tudo está solidariamente submetido à perfeição do produto a fabri-

car; os instrumentos, as técnicas e até a natureza íntima do artesão,

que deve ter qualidades específicas que não pertencem senão a ele.

Eu depois vou examinar esta idéia, examinando uma das técnicas

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gregas, vou tomar como exemplo uma das técnicas gregas que é a

Medicina e o que isto exige como característica corporal, caracte-

rística psíquica (...) como unidade de personalidade, requisitos da

personalidade para ser médico. Não é entrou ali na faculdade (...) o

diploma e mata nós todos à vontade; ser médico, além das regras

do ofício está ligado à determinadas qualidades da personalidade

daquele que vai exercer o ofício; e isso valia para todas as técnica,

todas. Então cada ofício constitui um sistema fechado no interior

do qual tudo está solidariamente submetido à perfeição do produto

a fabricar; os instrumentos as operações técnicas e até mesmo a

natureza íntima do artesão certas qualidades específicas que não

pertencem senão a ele. O ofício se apresenta, portanto, como um

fator de diferenciação e de fechamento, separação entre os cida-

dãos. Se eles se sentem unidos numa única cidade, não é em função

do seu trabalho profissional, mas, malgrado o trabalho e fora o

trabalho; o liame social se estabelece para o além do ofício sobre o

único plano em que os cidadãos podem amar-se reciprocamente

porque aí eles se comportam de modo idêntico e não se sentem

diferentes uns dos outros. (Das atividades não profissionais, não

especializadas que compõe a vida política e religiosa da cidade[?]).

Esse elemento vai ser muito trabalhado pelo Francis Wolf quando

ele analisa a democracia grega; e ele diz em um dos pontos o que

distingue a democracia grega da democracia liberal é que a demo-

cracia liberal considera o governo é uma administração e que essa

administração cabe a um conjunto de indivíduos dotados de certas

competências técnica e científicas pelas quais eles são legitimados

a mandar. Ao contrário, o que caracteriza a democracia antiga,

particularmente a democracia grega é a idéia de que do ponto de

vista político todos são igualmente competentes, não existe nin-

guém mais competente do que outro no campo da política; então é

por isso que o Vernat está dizendo que enquanto os ofícios (...) o

escravo, né, os ofícios separam os próprios artesãos uns dos outros,

categorias diferentes e os separam dos outros cidadãos, a política

os une, porque aquilo que é exigido no ofício é a extrema compe-

tência (...) como algo específica, a competência específica exigida

pelo ofício, ou seja, a técnica impondo a especificação da compe-

tência e, ao contrário, a política não é a técnica, e a política se

realiza porque todos são igualmente competentes (como todos os

cidadãos[?]). Então eu repito aqui, o liame social se estabelece para

além do ofício; no único plano em que os cidadãos podem amar-se

reciprocamente porque aí eles se comportam de maneira idêntica e

não se sentem diferentes uns dos outros; (as) atividades não profis-

sionais não especializadas que compõe a vida política e religiosa da

cidade. Não estando, portanto, apreendido na sua unidade abstrata

– trabalho social, produtor de valor de troca – não estando apreen-

dido na sua unidade abstrata, o trabalho na sua forma de ofício não

se manifesta ainda como uma troca na atividade social, ou seja, ele

não é uma função social de base. Ele parece, antes de estabelecer

entre o fabricante e o usuário um produto e um vínculo pessoal de

dependência; a relação que se estabelece é uma relação de serviço

não de trabalho. Na esfera do seu ofício, as capacidades do artesão

estão rigorosamente submetidas à sua obra, sua obra, rigorosamen-

te submetida às necessidades e carências do usuário. O artesão e a

arte existem em vista do produto e o produto existe em vista da

necessidade ou da carência; e não poderia ser de outra maneira,

uma vez que o produto do trabalho é considerado exclusivamente

sob o aspecto do seu valor de uso e não do seu valor de troca.

Enquanto valor de uso, o produto se define, com efeito, pelos

serviços que ele presta àquele que se serve dele. Na perspectiva do

valor de uso o produto não é visto em função do trabalho humano

que o criou; o produto não é trabalho cristalizado, ou na linguagem

do Marx, o produto não é o trabalhador objetivado, assim como o

produto não é... a subjetividade do trabalhador não está cristalizada

no objeto que ele produziu, não há essa relação. Ou seja, na pers-

pectiva do valor de uso, o produto não é visto em função do traba-

lho humano que o criou como trabalho cristalizado; ao contrário ele

é o trabalho visto em função do produto, como próprio a satisfazer

tal ou qual carência do usuário; por intermédio do produto, o traba-

lho institui, portanto, entre o artesão e o usuário uma relação eco-

nômica de servidão, uma relação irreversível de meio ao fim; ou

seja, o artesão não produz o que der na telha, o artesão produz o

que o usuário precisa (?). Mesmo que o artesão não seja um ho-

mem livre, seja um escravo, a relação econômica, por ser uma

relação de serviço é uma relação de servidão. Transposto do plano

econômico pra o da reflexão filosófica esse sistema de relações

entre o artesão, sua atividade, o produto e o usuário encontram sua

expressão na teoria geral da atividade demiúrgica. Toda produção

demiúrgica, em toda produção demiúrgica, o artesão é a causa

motriz, causa eficiente; ele opera sobre o material, a causa material,

para lhe dar uma forma, causa formal que é cada obra acabada. Não

sei se vocês percebem a mudança de nível que há na análise do que

são as quatro causas; o que o Vernant tá mostrando é socialmente e

economicamente, o que são essas quatro causas, quem são elas.

Então, esta forma, as quatro causas, né, que é o núcleo da demiur-

gia, da fabricação... esta forma constitui ao mesmo tempo a finali-

dade da operação (...), é a causa final que comanda o conjunto da

atividade fabricadora ou da atividade demiúrgica. (?) A verdadeira

causalidade do processo (?) não reside no artesão, mas fora dele, no

produto fabricado, isto é, no que foi pedido pelo usuário. A essên-

cia do produto fabricado é ela mesma, independente do artesão, dos

seus procedimentos de fabricação, da sua habilidade ou das suas

inovações técnicas; o modelo imutável e inegendrável, ela se define

em termos de finalidade com relação à carência ou necessidade que

ela deve satisfazer do usuário. A essência de uma cadeira é a per-

feita adaptação de todas as suas partes para o uso que dela será

feito. A produção artificial não requer na sua dinâmica outros

princípios que não os da produção natural, ou seja, a natureza

também opera assim, como o Heidegger havia dito, só que é uma

operação, um desvelamento da produção, é uma operação concreta

(...).A natureza faz isso e o Homem também. A produção artificial

não requer na sua dinâmica outros princípios senão o da produção

natural; é sempre a finalidade do processo, a forma em ato realiza-

da na obra que é o princípio e a fonte de toda operação. A causa

motriz não é realmente produtiva, ela exerce o papel de um meio

pelo qual uma forma pré-existente, ou seja, existência na cabeça do

usuário, existência na cabeça do técnico, uma forma pré-existente,

uma idéia existente se atualiza numa matéria, é isso o que o artesão

faz, né, ele atualiza numa matéria uma idéia, um aspecto, uma

forma pré-existente.

Assim como o Homem vem do Homem por intermédio da

semente, a casa vem da casa por intermédio do pedreiro (...). O

Page 6: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

6

Homem vem do Homem por intermédio da semente, pela ação da

natureza é a de atualização da semente no ser humano e, a casa

vem da casa, ou seja, esta casa é produzida a partir da idéia da casa

graças à mediação do pedreiro. O pedreiro é aquele que põe a idéia

da casa ou a forma da casa nessa matéria. Então, esta frase guar-

dem porque esta frase de alguma maneira, esta frase aristotélica é

uma súmula do pensamento da técnica entre os gregos, assim como

o Homem vem do Homem por intermédio da semente, a casa vem

da casa por intermédio do pedreiro. A operação do artesão constitui

aquilo que o grego chama de poíesis, produção e que ele opõe à

práxis, isto é, ação propriamente dita. Para que haja, em sentido

próprio, ação, é preciso que a atividade tenha nela mesma seu

próprio fim e que o agente, no exercício do seu ato se beneficie

diretamente daquilo que ele (?), por exemplo, na atividade moral, o

agente informando-se a si mesmo produz um valor que tem ao

mesmo tempo um uso; mas este não é o caso da poíesis; a poíesis

cria uma obra exterior ao artesão e estranha à atividade que a pro-

duziu. Entre o trabalho do artesão e a essência da obra definida

pelo seu uso não há medida única, eles se situam sobre dois planos

diferentes, um deles submetido ao outro como o meio ao fim sem

ter parte na sua natureza. O que o Vernant está fazendo aqui é

retomar a posição de Aristóteles que eu vou examinar quando nós

chegarmos em Aristóteles, vamos examinar com mais detalhe, mas

a diferença que existe no pensamento grego e que é depois temati-

zada por Aristóteles na distinção entre a práxis e a poíesis. A prá-

xis é aquela ação que encontra em si mesma a sua finalidade, ela é

aquela ação na qual o agente, a ação que ele realiza e a finalidade

pela qual ele realiza a ação, são idênticas.{60’} Há uma imanência

do agente, a ação,e ao fim; eles não se distinguem. É por isso que o

campo da práxis é a moral e a política.

A poíesis é aquela ação que é uma operação, ou seja, nela,

o agente, a ação que ele realiza e a finalidade que é realizada são

três termos diferentes. A ação é a ação de fabricar, o agente é o

artesão e o fim é a obra; três termos separados. E a poíesis pertence

ao campo da economia. E é por isso que vai haver depois um esfor-

ço gigantesco do Marx para dizer “o trabalho é práxis”. Toda

análise que o Marx faz, especialmente a questão da alienação e

desalienação do trabalho está ligada ao desmanche desta divisão

que permaneceu na história do pensamento ocidental (...) dos gre-

gos aos nossos dias que é distinção entre a práxis e a poíesis.

A fabricação de um objeto é uma coisa, o uso desse objeto,

uma outra coisa radicalmente diferente; assim nenhum artesão tem

enquanto trabalha o uso daquilo que ele faz, alienando-se da forma

concreta do produto, seu valor de uso, o trabalho do artesão se

manifesta como serviço para o outro: servidão, escravidão. Entre as

mãos do usuário, o artesão tem o papel de um instrumento destina-

do a satisfazer diferentes carências. E Aristóteles, definindo os

(poietica organa?), os instrumentos que produzem objeto pode citar

lado a lado os instrumentos e os artesãos, ou seja, o artesão é um

instrumento entre outros. E a definição aristotélica do escravo (...) é

um instrumento dotada de palavra (...); é por isso que você pode

fazer tudo na frente do escravo, falar o que você quiser (...) o es-

cravo está no interior da intimidade absoluta da casa, ele está pre-

sente nas coisas mais terríveis que ocorrem no interior da casa, mas

ele não está lá, ele não é gente, ele é um instrumento que fala. Esta

decalagem entre a operação produtiva e o produto, dessa decala-

gem entre a operação produtiva e o produto resulta que não é o

artesão como tal que terá o melhor conhecimento da forma que ele

deve encarnar na matéria, suas manipulações concernem aos pro-

cedimentos de fabricação; as regras certas, os meios de ação sobre

a matéria para dar forma o ultrapassam; a ciência da forma, isto é, a

ciência do produto na sua essência é como um fim quilo que per-

tence exclusivamente àquele que sabe para que serve a coisa e

como se servir dela, isto é, pertence ao usuário. É por isso que a

causa final comanda o processo. A causa final comanda o processo,

não como diz o Heidegger, porque ela é o lugar do desvelamento...

ela comanda o processo porque é o usuário, é ele que diz eu quero

que seja assim, por isso, por isso, por isso, porque uma cadeira, a

idéia de uma cadeira é isso, isso, isso; a idéia de uma taça sacrifici-

al é isso, isso, isso... Então, no limite, o trabalho artesanal aparece

como pura rotina, aplicação de receitas empíricas para tornar um

material conforme um modelo cuja natureza se faz conhecer de

fora pelas indicações e pelas ordens do usuário. Submetida a outro,

à outra, tendendo para um fim que a ultrapassa, como a poíesis do

artesão poderia ser sentida como uma verdadeira conduta de ação,

ou seja, como poderia passar pela cabeça do artesão definir-se a si

mesmo como trabalhador? Essa figura é inexistente; aquilo que

caracteriza os trabalhador moderno, o trabalhador contemporâneo

está ausente aqui, não pode definir-se a si próprio, portanto, como

sujeito da ação, é isso que ele não é. Nós vamos ver que existem

três tipos de figuras ligadas à técnica: o arquiteto, o engenheiro e o

artesão propriamente dito; e o artesão é essa figura que faz... que

cumpre regras rotineiras, que respeita uma ordem recebida do

usuário.

Então, submetido a outrem, tendendo para um fim que a ul-

trapassa, como a poíesis do artesão pode ser compreendida como

uma verdadeira conduta de ação? Para distingui-la da atividade

autêntica, a práxis, Aristóteles chama a poíesis de kínesis. Eu vou

voltar a isso depois. Movimento, cinemático, cinema, kínesis,

movimento que implica uma imperfeição, correndo em busca de

um fim que está para além dele, este movimento não possui em si a

enérgeia, o ato. Enérgeia é o ato, dýnamis é a potência.

Então, a natureza é a força para fazer passar ao ato aquilo

que existe em potência; práxis é isso também; força para fazer

passar ao ato o que está em potência, a poíesis é incapaz disso, ela

não tem força sozinha para poder fazer isso. Onde é que está o ato

que puxa o artesão, que faz o artesão operar? Está fora dele, está na

forma que ele tem que por na matéria e a finalidade que ele tem

que cumprir, está fora dele. Então, o ato está presente na forma

realizada, no produto e não no esforço do trabalho, na energia

humana dispensada, na produção. Quando a atividade humana,

escreve Aristóteles, não engendra nada fora dela ela é práxis e o

ato reside no interior do próprio agente; e ele acrescenta: em todos

os casos nos quais, independentemente do exercício, existe a pro-

dução de alguma coisa o ato está não no agente, mas no objeto

produzido. A ação de construir, por exemplo, está como ação,

naquilo que está construído, a ação de tecer, naquilo que está teci-

do; compreender-se-á, portanto, que nesse sistema social e mental,

o homem age quando utiliza as coisas e não quando as fabrica; o

ideal do homem livre, do homem ativo, é de ser universalmente um

Page 7: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

7

usuário, jamais produtor; o verdadeiro problema da ação, pelo

menos na relação do homem com a natureza, é o do bom uso das

coisas e não da sua transformação pelo trabalho.

Por que eu fiz essa longa menção {70’} aos textos do Hei-

degger e do Vernant? Eu fiz isso por dois motivos: primeiro, como

eu já observei, para marcar a diferença entre uma interpretação

abstrata e uma interpretação concreta da técnica na Grécia antiga e

na Grécia clássica. Em segundo lugar, para indicar que esta questão

é muito mais complexa do que eu poderia apresentar neste curso

porque este curso, portanto, é apenas uma introdução ao pensamen-

to sobre as técnicas e sobre as tecnologias; ou seja, não é um curso

que está à altura da abstração do Heidegger nem da compreensão

do Vernant. É uma introdução.

Feito isso, eu vou apresentar o quadro geral de como a téc-

nica se apresenta na sociedade grega clássica, e a concepção de

natureza e na qual ela opera; eu vou concluir este quadro apresen-

tando o grande paradigma da técnica e do pensamento da técnica

na Grécia clássica que é examinado por Cornelius Castoriadis na

“Instituição do Imaginário da Sociedade”; a conclusão do percurso

é a apresentação do paradigma grego da técnica, segundo o Casto-

riadis. (...) A sociedade grega, uma sociedade escravista, e mesmo

nas cidades democráticas... (nem todas eram cidades democráticas,

havia cidades monárquicas), mas, mesmo nas cidades democráti-

cas, o que prevalece do ponto de vista da construção de um ideário

a respeito do humano e do valor do humano é feito sob uma pers-

pectiva aristocrática. Ou seja, a perspectiva aristocrática é aquela

que tem um desprezo pelo trabalho manual e que vê o trabalho

como corruptor do corpo e da alma, o trabalho deforma o corpo e a

alma, o trabalho é ruim, e por isso que ele é ponos, pena, dor,

sofrimento, fadiga, ele é horrível.

A excelência de um ser humano, a verdadeira excelência de

um homem, por que não tem mulher lá... então, a excelência de um

homem que os gregos chamam de arete que é um termo mais

amplo do que virtude... A excelência de um homem é definida a

partir da figura do jovem belo e bom. O jovem belo é aquele que

tem o corpo feito graças ao exercício, à ginástica e a guerra; e ele é

bom porque ele respeita os deuses da... ele conhece Homero, ele

respeita os deuses da cidade e está disposto a morrer por ela. O

jovem belo e bom é, portanto, daquele corpo perfeito e está desti-

nado à guerra, à política e à teoria, contemplação filosófica. Isso

explica porque nesta perspectiva não exista nenhuma palavra para

dizer trabalho. E mais, a palavra que diz “artesão”, banausos, é

empregada sempre com um sentido pejorativo, uma coisa menor;

banausos pode ser um artesão livre, um homem livre, não precisa

ser necessariamente um escravo.

O segundo ponto a observar é, como nós vimos, pelo en-

saio de Vernant, no plano econômico, na sociedade grega, o mer-

cado interno não era importante; a riqueza provinha das grandes

trocas que vinham do comércio exterior, do imperialismo marítimo

e dos espólios obtidos na guerra, e por esse motivo não havia ne-

nhuma exigência econômica e social interna que pedisse um de-

senvolvimento, um aprimoramento, uma transformação das técni-

cas.

O terceiro ponto, a tékhne é um saber, mas ela é um saber

prático que é obtido por experiência e realizado por habilidade. Ela

exige grande capacidade de observação, memória, agudeza senso-

rial e senso de oportunidade. Eu depois vou mostrar que essas são

características que chama a inteligência prática dos gregos e que

estava sob a proteção de uma deusa chamada Métis. Mais adiante

quando eu terminar esse quadro, nós vamos ver a concepção, a

formulação da técnica que vem dos mitos, como é que há uma

formulação mítica, a respeito da origem da cultura e da técnica e é

lá que nós vamos encontrar Métis. Mas, apesar desta elaboração ter

sido feita miticamente ela permanece nos quadros da sociedade

grega depois, quando se passa do mito à razão, como qualidades

específicas que técnico tem que ter porque são qualidades da Métis:

grande capacidade de observação, agudeza sensorial, memória,

senso de oportunidade; ela se refere a toda atividade humana que se

realiza de acordo com regras que ordenam a experiência e que por

isso tem a capacidade de afastar o acaso; eu depois vou trabalhar

essa idéia. Acaso se diz týkhe.

Um quarto elemento é que a técnica, e nós vimos isso tanto

no texto do Heidegger como no texto do Vernant, a técnica opera

com a relação entre matéria (hýle) e forma (eidos); ela não é con-

cebida como uma produção no sentido moderno que nós damos a

este termo, isto é, ela não cria alguma coisa porque ela é pensada

como transformação de uma matéria el alguma coisa que essa

matéria está apta a receber; a madeira está apta a receber a forma

da mesa, a forma da cadeira, a água não; o cobre está apto a receber

a forma da estátua, a água não, o ar não. {80’} Ou seja, há uma

relação entre matéria e forma na qual o que o artesão aprende e tem

de saber é: a que está apta a matéria com a qual ele trabalha. Então,

o fio está apto a receber a forma do tecido, não a da estátua; ele

está apto a receber a forma dada pelo tecelão, mas não pelo escul-

tor. Então, esse saber é um saber fundamental para o técnico. En-

tão, a técnica opera com a relação entre a matéria (hýle) e a forma

(eidos), sem ser concebida como uma produção, criação, mas como

uma transformação, mais do que isso, ela é uma fabricação, aquilo

que os gregos chamam de demiurgia. O demiurgo é aquele que

fabrica a partir de uma matéria prévia que lhe é dada, então ele

recebe uma matéria prévia e a partir do conhecimento que ele tem

das aptidões dessa matéria e das capacidades dessa matéria para

receber determinadas formas ele imprime formas nela. É assim que

no “Timeu” Platão explica a criação do mundo; o demiurgo vai

imprimir na hýle, vai imprimir na matéria as formas das idéias que

ele contemplou; esse é o modelo da técnica. O modelo da técnica,

portanto, é de imprimir numa matéria uma forma para a qual a

matéria está apta.

Então, o técnico age sobre a dýnamis, isto é, a potenciali-

dade, a virtualidade de uma certa matéria, portanto, sobre a dispo-

nibilidade virtual ou aptidão potencial que essa matéria tem para

receber uma forma que é compatível com a sua natureza.

Um outro aspecto importante é que a técnica não é, como

será a partir da modernidade, ela não é uma intervenção para domi-

nar a natureza, ela é uma operação para usar a natureza em favor

dos homens e do que é útil para eles. E é por isso que o técnico é

definido como aquele que obedece a natureza para poder utilizá-la.

Page 8: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

8

Ele é aquele que diz: “repensem, repensem”, que é toda essa pro-

paganda ecológica que está por aí... “Repense”, não há como re-

pensar; não tem como repensar numa técnica como a nossa, que

não é de uso da natureza ela é de intervenção sobre ela para domi-

ná-la, não tem como repensar. Tem que começar tudo de novo.

Uma sexta característica da técnica, então os instrumentos

empregados na fabricação de outros objetos não são instrumentos

de precisão; eles são pensados e tomados como extensões do corpo

humano. São órgãos fabricados para ampliar as forças e as habili-

dades dos órgãos humanos. O objeto é, portanto, o homem estendi-

do no espaço, o instrumento técnico. Ou seja, a técnica toma a

força animal e a força humana como paradigma para a construção

dos instrumentos de fabricação... e, portanto, esses instrumentos

são fabricados a partir do modelo do corpo humano e do tempo

humano. Essa idéia vai permanecer até a revolução informática;

sempre a idéia de estender o poder do corpo. Mesmo quando você

tem a mudança da técnica em tecnologia, essa idéia permanece, que

você estende no espaço e no tempo é o corpo humano; e com a

revolução da informática você não estende mais nada, é o cérebro...

Não é o corpo humano que vai, é o pensamento.

A palavra grega {86’10”}(?) (?) rigorosamente significa

estratagema eficaz, invenção engenhosa, ou seja, o instrumento (?),

que é o expediente astuto por meio do qual o mais fraco pode

vencer as resistências que são impostas pelo mais forte, a natureza.

Com isso podemos dizer que a maquina grega é literalmen-

te uma maquinação, uma maquinação do homem, um estratagema

astuto para contornar os obstáculos que a natureza lhe impõe (pala-

vras gregas) (...).

Os técnicos, no seu conjunto, são chamados (?), da palavra

ergon (?), que significa obra, são os obreiros, que realizam serviço

por encomenda, como nós já vimos. Eles podem ser escravos, mas

é raro; em geral o escravo trabalha em casa fazendo trabalho do-

méstico; de um modo geral, portanto, os (?) são homens livres que

vendem os seus serviços, e sua função, portanto, é uma função

prática e econômica. Eles são de três tipos: o arquiteton {90’}, o

mecanopoios, e o banausos.

O arquiteton, o arquiteto é aquele que possui o conheci-

mento da arkhé, dos princípios que governam sua prática, ele

conhece, portanto, os princípios racionais da sua técnica, possui

uma visão sistemática dela, e é capaz de demonstrar racionalmente

este conhecimento. Sua atividade é prioritariamente intelectual e

seu conteúdo é um conteúdo intelectual, transmissível por meio da

aprendizagem. Assim, por exemplo, um construtor que conhece a

natureza, as causas e as formas de construir, é um arquiteto. Um

médico que conhece a natureza, as causas e as formas da saúde e da

doença é um arquiteto, ele conhece a arkhé por isso ele pode de-

monstrar racionalmente este conhecimento.

A figura do arquiteton indica que a técnica é concebida

como um saber, mas é um saber prático que se opõe a um outro

saber prático que é a magia. Isso é muito importante porque quando

nós chegarmos na renascença a técnica vai ser exercida como

magia, magia natural; aqui não, aqui a técnica vai se opor – depois

eu vou explicar mais adiante no curso porque o arquiteto rompe

com a magia. Ele rompe com a magia, isto é (?) moira, que é um

dom divino; e ele se opõe também ao acaso, týkhe.

Então, o saber do arquiteto, oposto à magia como dom di-

vino e ao acaso, a impossibilidade de saber, um conjunto de regras

racionais que constitui um méthodos, isto é, um caminho certo, é

isto que méthodos quer dizer; caminho certo para a operação que

vai ser realizada.

O arquiteto ocupa uma posição intermediária entre o filóso-

fo, o sábio (...) e o mecanopoios; o mecanopoios é o engenheiro, o

construtor, não só de máquinas, mas no sentido amplo do termo.

Ou seja, o arquiteto está acima, abaixo do filósofo e acima do

engenheiro, ele está numa posição intermediária. Isso não mudou

muito, né.

O mecanopoios, (?) maquina, poios (?), o mecanopoios é o

homem hábil, que a máquina é isso, uma habilidade astuciosa, o

homem hábil que tem um conhecimento prático dos princípios

racionais e das regras de fabricação das coisas; ele tem o conheci-

mento do funcionamento e do emprego dos instrumentos e das

máquinas, ele é um construtor de máquinas, ele é um inventor e é

capaz de um saber demonstrativo a respeito da sua prática constru-

tiva. Abaixo dele se encontra o artesão propriamente dito, o obrei-

ro, no sentido forte do termo, isto é, o banausos, trabalhador; este é

desprovido de todo saber teórico, ele permanece no campo da

empiria, ele cumpre as ordens do mecanopoios, ele recebe, portan-

to, regras e rotinas para a fabricação de instrumentos e para o uso

desses instrumentos, e é ele, mais do que o mecanopoios e o arqui-

teto que está submetido à figura do usuário. Cada um no seu plano

de conhecimento, o arquiteto e o engenheiro, o arquiteto e o meca-

nopoios inventam métodos cujas regras podem ser resumidas da

seguinte maneira, embora sejam métodos diferentes do que um

arquiteto propõe e do que o engenheiro propõe, o núcleo da racio-

nalidade na qual eles operam, pode ser resumida em quatro regras

que eles respeitam ao formular seu conhecimento, seu (?): primei-

ro, uma proposição não pode contradizer uma antecedente nem a

seguinte; essa é a exigência de não contradição do pensamento.

Segundo: deve-se conhecer e estabelecer regras matemáticas de

uma prática – lembrando o sentido da palavra matemática ou de ta

mathema para os gregos; matemática não é geometria, aritmética,

álgebra; a aritmética, a geometria, a álgebra, como a música, a

astronomia, a filosofia, etc, são matemáticas. Matemático significa

aquilo do qual se pode obter o domínio intelectual. Algo é matemá-

tico quando ele pode ser objeto que é integralmente dominado

intelectualmente, ou seja, eu posso conhecê-lo plenamente; por isso

que Spinoza escreve uma ética à maneira dos geômetras, uma ética

à maneira matemática, com o sentido não de o que ele vai apresen-

tar é criando princípios e sim o conhecimento completo, pleno e

total do objeto, isto é matemático. Então, é isso que é exigido desse

saber prático. É preciso que ele possa estabelecer e conhecer regras

matemáticas, ou seja, que dominam intelectualmente, que tenha o

domínio intelectual dos procedimentos que devem ser empregados

para determinar a relação correta entre uma matéria e uma forma

{100’}. O ser deve-se sempre partir de causas naturais e de princí-

pios naturais porque a técnica não se opõe à natureza, se realiza da

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9

mesma maneira que a natureza; portanto, quarta regra geral, o

técnico deve submeter-se à natureza e obedecê-la.

Uma oitava característica da técnica é que ela é insepará-

vel, como já vimos com a palavra “máquina”, ela é inseparável das

idéias de estratagema e de saber fazer, mas no sentido de savoir

faire, ou seja, ela é inseparável da idéia de um saber prático, enge-

nhoso, hábil e eficaz, que é capaz de demonstrar racionalmente,

que é capaz de ser demonstrado racionalmente, que pode ser de-

monstrado racionalmente.

Por que a técnica é essa engenhosidade eficaz, essa habili-

dade, esse saber fazer, esse savoir faire? Porque ela opera na região

do movimento, da kínesis, isto é, de tudo aquilo que está em mu-

dança. Vocês sabem, kínesis, movimento, não significa como pra

nós essa coisa muito pobre de mudança de lugar; movimento signi-

fica, não só para os gregos, mas para todos os filósofos que tratam

da noção de movimento, o caso talvez mais fulgurante seja o de

Hegel, movimento significa “devir”, transformação, mudança na

qualidade, mudança na quantidade, geração, corrupção, desenvol-

vimento, morte, não é mudança de lugar; a coisa menos importante

no movimento é a mudança de lugar; o movimento é o acontecer da

natureza. Ora, é nessa região que o técnico opera. O filósofo, seja

ele platônico, seja aristotélico, seja estóico ele faz um (?), o epicu-

rista não, é mais interessante: ele faz um esforço para se descolar

da natureza e ir em direção ao imóvel. As formas platônicas, as

essências aristotélicas, as idéias estóicas são imóveis, estão fora do

campo do devir do campo da mudança. O que que nós vamos

fazer? Graças a esse conhecimento com o que está em movimento

é outro (?), mas há um esforço inicial pra descolar a teoria do

movimento; da teoria ser um saber do conhecimento, ela própria

imóvel. Ora, o técnico é aquele que não pode fazer isso. O campo

de operação da técnica, o lugar da técnica é o do mundo em movi-

mento, da natureza movente movida, da natureza, portanto, em

transformação contínua; ou seja, o técnico opera na natureza como

acontecimento incessante; e portanto, o técnico tem de lidar ininter-

ruptamente com o acaso, o inesperado, o surpreendente, o que

parece fora de regra; ou seja, o técnico tem de dominar, regular um

campo instável, inconstante e é por isso que é requerido dele esse

saber engenhoso, essa capacidade, essa habilidade do saber fazer

que dá um golpe no inesperado, no acaso, na mudança, na mobili-

dade.

Eu vou trabalhar isso com mais detalhes quando eu mostrar

que estas são características da métis, porque embora a formulação

se faça inicialmente de forma mítica ela se torna um adjetivo;

quando você passa do mito para o não-mito, para a racionalidade,

principalmente, a métis é uma qualidade, é um determinado tipo de

qualidade da inteligência, uma inteligência prática que tem essas

características: saber lidar com aquilo que está em movimento, com

aquilo que na verdade é movimento.

Uma nona característica da técnica é que, embora o enge-

nheiro, o arquiteto e o engenheiro possuam um saber teórico a

respeito da sua prática eles não possuem ciência, no sentido platô-

nico e aristotélico do termo, isto é, eles não possuem o saber teóri-

co do universal, do necessário, do imutável, que é isso o objeto da

ciência; é por isso que a filosofia é (?), a técnica não é. Ou seja, a

ciência é o conhecimento dos princípios universais, das causas

universais e das essências universais necessárias e imutáveis que

são alcançadas exclusivamente pelo pensamento.

A técnica é um saber, mas é um saber prático que se desti-

na a enfrentar, a regular e dominar tudo aquilo que é móvel e instá-

vel, isto é, tudo aquilo que se apresenta como uma dificuldade.

Dificuldade se diz aporia. Nós vamos ver, quando estudarmos a

métis, que aporia... A Métis, a deusa Métis tem vários filhos, dois

são muito importantes: um se chama Escotos, que é o expediente

astuto, e o outro se chama Poros, o astucioso que é capaz de criar

um caminho onde não existe caminho.Por exemplo, o capitão de

um navio é um homem dotado de métis porque ele é dotado de

poros, isto é, ele é capaz de inventar um caminho onde não tem

caminho, não tem caminho no mar, inventa um; por isso o grande

técnico é um inventor de caminhos; e por isso o que é aporós? É a

ausência de caminhos. Aporia, impossibilidade de caminhar, difi-

culdade, e é isso que o objeto da técnica: a técnica deve resolver e

enfrentar aporias. Por isso que ela não é uma epistéme, ela não é

uma ciência, ela não é contemplação daquilo que é universal, ne-

cessário, imutável; ela é intervenção para resolver aporias.

Uma outra característica da técnica grega, a décima carac-

terística, como a técnica opera com a mudança e com a aporia, ela

opera com oposições, contrariedades, contradições. {110’} E é por

isso que ela se manifesta na fabricação de um objeto como uma

reunião bem ajustada de materiais naturais e isolados, são opostos

uns aos outros; a técnica é essa capacidade de ajustar e reunir

opostos.

Uma outra característica da técnica é a de que o objeto téc-

nico, o instrumento técnico, a máquina, que é o estratagema do

mais fraco, que é o corpo humano para vencer o mais forte, que é a

natureza realiza esta operação de fortalecimento do mais fraco sem

alterar as forças naturais, ele vai se utilizar delas, mas ele não vai

mudá-las.

Uma máquina é uma composição dos cinco instrumentos

simples que os técnicos conheciam que são a alavanca, martelo, pá,

enxada, foice, a alavanca, a polia, o parafuso, o êmbolo e o cabres-

tante, que a máquina de levantar grandes pesos (?). Então estes são

os cinco instrumentos simples com os quais o técnico vai trabalhar

para, por composição, criar e inventar máquinas. Máquinas, portan-

to, são uma composição desses instrumentos simples.

Ora, há uma coisa curiosa: existem relatos de que os técni-

cos gregos eram capazes de construir máquinas extraordinárias;

algumas eles construíam mesmo; há relatos, e eu vou trabalhar isso

quando for mexer na questão da relação entre a técnica e o mito (?)

se chama o objeto daidalon que é de onde vem a palavra dedalo;

dedalo não é alguém, dédalo é um tipo de objeto, que é o labirinto,

as asas do Ícaro, ou seja, o objeto daidalon é um objeto técnico

extraordinário; muitos deles são autômatos; há narrativas, por

exemplo de um templo, não lembro em que cidade, em que as

portas abriam e fechavam sozinhas, todo um sistema, uma maqui-

nária para essas portas abrirem e fecharem sozinhas. Então havia a

construção dos objetos daidalon (?); há relatos de que os técnicos

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10

gregos eram capazes de construir máquinas formidáveis e, sobretu-

do, eles eram capazes de construir autômatos.

Por que eles não faziam? Por que as máquinas efetivamente

usadas pelos gregos eram máquinas, em certo sentido, muito sim-

ples? É porque eles desprezavam estas máquinas extremamente

complexas e, em particular, eles desprezavam o (?).

A máquina é o estratagema por meio do qual o corpo hu-

mano, que é fraco, pode usar a seu favor a força da natureza para

realizar ações que permita a esse ser humano melhor realizar sua

natureza. As cinco máquinas, os cinco elementos simples que vão

entrar na composição das máquinas eles formam um todo coerente

com essa percepção da fraqueza do corpo humano e da ampliação

da sua força por meio dos instrumentos e da composição desses

instrumentos nas máquinas. Ora, quando uma máquina ultrapassa a

operação a que uma máquina está destinada que é estabelecer um

equilíbrio de forças, um equilíbrio entre forças desiguais, ou seja, o

equilíbrio entre o homem e a natureza. Quando a máquina ultrapas-

sa essa finalidade, que é a de propor um equilíbrio entre os desi-

guais, quando ela faz isso ela sai do campo da técnica e ela entra

num campo para o qual o homem não possui uma explicação raci-

onal; ele é capaz de fazer, mas ele não é capaz de conhecer o que

ele faz. Ele entra, portanto, ele passa do ponto da técnica ao campo

do irracional: O autômato é isso, uma violação da natureza pelo

homem, porque o homem produz um artefato que é capaz de operar

como a própria natureza opera, sem que o homem possa dominar

os conhecimentos que fazem o autômato operar; ele produz o

autômato, mas é uma produção cega, racionalmente cega; ele não é

capaz de explicar, de entender. Ele põe para funcionar, mas é um

objeto irracional, e como um objeto irracional, ou seja, um objeto

que funciona sem que o homem possa dizer porque ele funciona,

esse objeto é um objeto que causa estranheza, temor, pavor e colo-

ca a técnica num limite perigosíssimo com a magia. Então o técni-

co grego abomina esse tipo de máquina.

Ou seja, diante do autômato, o técnico grego vai dizer que

o autômato é inferior à máquina. Ou seja, primeiro, ele é descober-

to e feito por acaso, a máquina é descoberta e feita pelo conheci-

mento. Segundo: ele penetra um segredo da natureza que o homem

não tem o poder de controlar, é um aprendiz de feiticeiro, não tem

o poder de controlar (?) não sabe o que vai acontecer. Em terceiro

lugar, como consequência, o autômato pertence ao campo do

monstruoso, daquilo que é contrário à natureza. É isso que é o

monstro; o monstro é aquilo que é contrário à natureza. E por isso o

autômato é inútil; ele é perigoso e inútil.

Portanto, embora os arquitetos e os engenheiros tivessem

inventado instrumentos e máquinas extraordinários que permitiam

a construção dos autômatos eles não davam a estes objetos uma

finalidade técnica, uma finalidade científica porque eles não admi-

tiam o valor de uma máquina por meio da qual o homem pudesse

sem saber como nem porque dirigir, controlar, transformar e domi-

nar as forças da natureza. A técnica é o equilíbrio entre a fraqueza

humana e a força da natureza. Transformar a fraqueza humana

numa força capaz de dominar as forças naturais é sair do campo da

técnica e entrar no campo da violação, do desregramento, portanto,

do irracional.

Isso é muito importante, porque sempre se explicou a falta

de um grande desenvolvimento dos objetos técnicos {120’} na

Grécia, em decorrência da estrutura escravista da sociedade, em

decorrência das limitações da (?) da natureza... Mil e uma explica-

ções vocês podem ler na bibliografia que eu passei para vocês, há

vários textos que explicam porque os gregos não tiveram um gran-

de desenvolvimento técnico. Eles não tiveram porque eles não

quiseram; porque era contrário ao que eles entendiam por conhe-

cimento, por saber, por fabricação, por relação do homem com a

natureza. Eles tinham todas as condições de fabricar isso: eles

recusaram isso, porque isso era entrar no campo da irracionalidade,

daquilo que vai seguir por conta própria e desnaturar a natureza e

abominar o homem (...).

Isso vai explicar, por exemplo, como mostra o Vernant,

porque Arquimedes construiu máquinas ligadas à estática, mas ele

não fez todas as máquinas das quais ele tinha projetos desenhados

daquilo que é o grande conhecimento dele que é a dinâmica; não

fez as máquinas ligadas ao saber que ele tinha a respeito da dinâ-

mica porque estas máquinas seriam autômatos, não fez; e ele tinha

todos os meios para fazer.

Então, essa é uma decisão cultural, uma decisão política,

uma decisão filosófica, uma decisão ética, política de barrar a

técnica toda vez que ela vá numa direção que escape do controle

da natureza e do controle humano. Aí, onde ninguém controla,

você não vai, porque você vai desencadear forças (?) pela natureza;

há uma sabedoria.

Ora, essa relação pelo fato de que o conhecimento técnico é

um conhecimento no qual o técnico tem que conhecer a matéria e a

forma para saber que procedimentos tornam compatível determina-

da forma com determinada matéria e, se essa relação que se faz no

interior das forças naturais, então é preciso levar em conta o modo

como a técnica se relaciona com a natureza. Então, o que se enten-

dia por natureza.

Então eu passo a esse tópico, como é que do ponto de vista

da técnica, a natureza é percebida.

Primeiro lugar, a natureza é vida; phýsis é isso; ela é, mas

não é uma vida qualquer, ela é uma vida ordenada e regulada; a

natureza é, portanto, kómos, isto é, uma totalidade organizada e

auto-regulada, é isso que kósmos quer dizer.

Ela é um princípio permanente de origem de todas as coisas

e da transformação de todas as coisas; as transformações das coisas

são obra da natureza. Ela é um princípio ordenado em si mesma,

ela se auto-ordena, ela é racional em si mesma, e é por isso que a

origem e as transformações de todas as coisas são racionais. Ela é o

fundo imutável de todas as mudanças. Ela é movimento, kínesis.

Ora, o movimento só se realiza entre termos contrários, porque

movimento é mudança na qualidade, mudança na quantidade,

geração, desenvolvimento e morte, mudança de lugar. Só pode

haver movimento, portanto, entre os contrários e há apenas três

propriedades das coisas que admitem contrariedade: a quantidade,

maior ou menor; as qualidades; e a vida e a morte.

O que é então mover-se? Mover-se é passar da privação à

aquisição de uma propriedade que é essencial a alguma coisa; ou,

Page 11: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

11

ao contrário, é perder uma propriedade essencial para alguma

coisa. O movimento, portanto, é ou uma aquisição ou uma perda

que vai na direção do contrário

A natureza é, não só força que dá origem à todas as coisas,

mas ela é o que dá uma finalidade para todas as coisas, cada coisa

possui uma finalidade natural, e é por isso que a natureza de uma

coisa é a sua finalidade. Na natureza uma coisa se define pela

finalidade que ela realiza e é por isso que a causa final tem um

papel tão proeminente lá onde a gente imaginaria que a causa

eficiente seria causa principal. Ou seja, a finalidade ocupa na técni-

ca esse lugar esse lugar que socialmente cabe ao usuário, porque

tanto o técnico quanto o usuário têm a mesma concepção da natu-

reza, isto é, a natureza de alguma coisa é a finalidade que ela cum-

pre.

Então, a natureza é um vivente; ela é devir; uma ordem

imanente em que a phýsis se ordena a si mesma, e sobre ela o

homem não tem nenhum poder. E o reconhecimento disso é exata-

mente o que distingue a técnica e a magia.

E é por isso que também... assim como os arquitetos e en-

genheiros dispunham de conhecimentos e recursos para construir

máquinas extraordinárias como os autômatos, eles também se

reportavam àquilo que dificultava a construção de máquinas; não

estas excepcionais, mas da maioria das máquinas.

O que eles diziam? A técnica opera{130’}, como nós vi-

mos, com aporias. Portanto, ela opera com contradições, oposições,

contrariedades. Uma das oposições fundamentais para o trabalho

do técnico, especialmente para o arquiteto e o engenheiro, é a

oposição entre o visível e o invisível; então, muitos engenheiros,

mais que os arquitetos diziam que a dificuldade para construir

determinadas máquinas estava no fato de que elas exigiam conhe-

cimento sobre coisas invisíveis que eram inacessíveis à experiência

do técnico, porque a experiência do técnico se realiza no campo da

visibilidade, ele não parte para o campo do invisível porque o

invisível pertence ao filósofo. O técnico permanece no campo da

experiência e, portanto, da visibilidade. Havia dispositivos técni-

cos, máquinas cuja construção pressuponha um saber coisas que

pressupunham um saber que não estava dado pela experiência do

técnico, que do ponto de vista da experiência do técnico eram

invisíveis para ele, e essas (?). Ou seja, a de uma barreira de natu-

reza mesma da técnica que impunha um limite na construção de

máquinas. Então, dois tipos de máquinas têm barreiras: o autômato,

porque ele é irracional; e as máquinas que requerem do técnico um

conhecimento das coisas invisíveis porque não estão no conheci-

mento dele porque ele não é filósofo.

(...)

Pergunta: inaudível

Resposta: Não, você é uma coisa ou outra; seria uma des-

medida inaceitável por parte do técnico tentar penetrar no invisível,

e seria um rebaixamento inaceitável para o filósofo permanecer na

empiria; categorias sociais, categorias culturais distintas, um não

interfere no campo do outro. O filósofo pode conhecer tudo isso

que o técnico faz, ele jamais será um técnico. O técnico pode en-

tender tudo que o filósofo faz, mas ele próprio jamais será um

filósofo; quando ele for filósofo ele deixa de ser técnico. Alguém

pode se tornar filósofo, nenhum empecilho, mas quando isso acon-

tecer ele deixa de ser técnico. Há uma única figura na história da

cultura e da sociedade grega que vai lutar contra essa noção (...)

que é a grande figura da democracia que são os sofistas; os sofistas

são criticados e condenados por Platão, por Aristóteles (...) porque

Platão e Aristóteles têm uma visão aristocrática. O sofista é o único

democrata dali; então o sofista é aquele que vai dizer a filosofia é

uma técnica, a técnica é uma filosofia e vai misturar tudo (...) os

outros têm uma visão hierárquica. E é por isso que é só na política

e não no plano social e econômico que a igualdade vai se dar; vai

todo mundo para a assembléia, todo mundo discute, todo mundo

vota, mas é lá; no nível social, no nível econômico e no nível do

saber, não, porque é uma visão aristocrática.

(...) Uma vez que eu apresentei este quadro todo, eu quero

fechá-lo (...).

O quadro que eu vou apresentar agora com o qual eu espe-

ro fechar esta apresentação que eu fiz, é o que pode ser considerado

o grande paradigma do pensamento da técnica e da operação da

técnica na Grécia clássica e que a estrutura dos dissoi e logoi a

partir de uma análise do legein e logos e do teukhein, o que eu vou

apresentar é um resumo de um texto extraordinário do Castoriadis

na “Instituição imaginária da sociedade”; eu recomendo vivamente

que vocês leiam Castoriadis.

O que eu vou apresentar então é uma síntese do que é apre-

sentado pelo Castoriadis para poder fechar o quadro que eu trouxe

até aqui. Aí na próxima aula nós vamos ver a técnica quando ela é

pensada na forma do mito, as versões míticas da técnica e mais o

mito da Métis; depois a entrada, a ruptura com a explicação mítica

da técnica e da entrada da explicação racional com a figura dos

sofistas; aí nós vamos ver a técnica dos sofistas, a técnica no Platão

e a técnica em Aristóteles e com isso termina os gregos, e eu espero

terminar os gregos nas duas próximas aulas.

Então, diz Castoriadis que o grande operador do pensamen-

to e da prática gregos é o que ele chama dos dissoi logoi que são os

logoi opostos e contraditórios, nós vamos chegar lá. O modelo,

paradigma, diz Castoriadis, por meio dos quais os gregos entendem

a phisis, a técnica e a pólis, a cidade é dado pelo verbo legein. Esse

verbo significa escolher-distinguir-diferenciar-por-colocar-reunir-

contar-calcular-dizer, é por isso que a palavra logos e a palavra

logia são tão complicadas, porque têm todos esses sentidos. Esse

verbo é empregado para... em três circunstâncias principais: 1º.

Para se referir à relação com o outro, isto é, a relação com a nature-

za, a relação com as coisas, a relação com os outros homens. Em

2º. lugar ele é usado com a função de designação, ou seja, ele é

usado para designar alguma coisa, quando se diz: “isso é x”, ou,

“isso vale por x”. Ou seja, ele é aquilo que se refere a um ser e

enquanto um ser determinado, definido; “isto”. Em 3º. lugar, esse

verbo é usado para dar a razão de algo, explicar, explicitar, dar o

porquê, para que de alguma coisa; {140’}e é esse verbo que dá

origem ao substantivo logos que possui três sentidos principais: a

linguagem, a palavra, o discurso; o pensamento; e o cálculo. E é

compreensível que logos tenha esses três sentidos se nós tomarmos

todos os significados do verbo legein: escolher, distinguir, diferen-

Page 12: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

12

ciar, por, reunir, contar, calcular, dizer, designar, escolher. Então, o

logos que serve de paradigma para pensar a natureza e a técnica é o

dos dissoi logoi, ou seja, discursos opostos, seres opostos, seres ou

discursos contrários, seres ou discursos em conflito; portanto,

oposição, contrariedade, conflito; é o paradigma que serve para

pensar a natureza e para pensar a técnica. A natureza opera com os

contrários, os opostos, o conflito e a técnica opera com os opostos,

contrários e conflitos.

Estão submetidos ao dissoi logoi, portanto à oposição, con-

trariedade e conflito, estão submetidos a isso, a natureza, os seres

humanos, as coisas definidas pela prática humana, portanto, os

objetos técnicos e a polis ou a política; mas estão sob o comando

dos dissoi logoi, comandam, organizam a oposição, a contrarieda-

de, o conflito e desmancham a oposição, a contrariedade, o confli-

to; estão, portanto, não submetidos a ele,mas no comando do dissoi

logoi, a retórica, então os sofistas; a dialética, com Platão; e a ação

voluntária racional, com Aristóteles.

A função primordial do legein é estabelecer a identidade de

alguma coisa e a equivalência entre coisas. Mas a investigação da

identidade e da equivalência se realiza por meio da contradição, da

contrariedade e do conflito; basta abrir qualquer diálogo de Platão e

é o que se tem; não é por acaso que ali que nasce a dialética. Ora,

isso significa que a identidade e a equivalência são conhecidas pelo

homem por meio da diferença e da oposição; por exemplo: a medi-

cina só pode definir e identificar a saúde pela definição e identifi-

cação do seu oposto, isto é, a doença; a religião só pode definir e

identificar o sagrado pela definição e identificação de seu oposto, o

profano. A filosofia só pode identificar e definir o visível pela

identificação e definição do seu contrário, o invisível; o homem só

pode ser conhecido pela oposição corpo e alma; a política se define

pelos conflitos de opiniões e pela oposição entre os cidadãos da

pólis; e a matemática é o lugar da posição da mais perfeita de todas

as contrariedades, de todas as oposições, de todos os conflitos; ela

foi considerada a ciência que não tem contradição. Por quê? Porque

a matemática considera que a figura perfeita é o círculo, e o círculo

é aquela figura que vai ao mesmo tempo em dois sentidos opostos e

por isso não tem começo nem fim, o seu começo é o seu fim o seu

fim é o seu começo, e é aquela figura que é ao mesmo tempo côn-

cava e convexa; o círculo é a contradição viva no estado puro, e é

por isso que ele é perfeito.

É uma beleza, não é? Eu fico fascinada.

Agora, como a técnica vai se relacionar com os dissoi lo-

goi. A palavra tékhne deriva do verbo teukein que significa juntar-

ajustar-fabricar-construir-fazer alguma coisa a partir de outra-fazer

alguma coisa de maneira apropriada ou correta-fazer alguma coisa

em vista de outra. Ora, o esquema conceitual de teukein é o mesmo

que o de legein, ou seja, para juntar, ajustar, fabricar, construir é

preciso que – o que teuhein faz – é preciso saber escolher, distin-

guir, diferenciar, separar, reunir, é o que legein faz. Então você não

realiza o teukein (técnica, tékhne) sem o legein, sem o logos; ora, o

logos é dissoi logoi, oposição.

Então, para fazer alguma coisa – teukein – é preciso conhe-

cer a identidade, a diferença, a oposição e a equivalência dela com

outras; portanto, para fazer alguma coisa – teukein – é preciso

definir e determinar a coisa e o seu uso, o legein; a técnica é inse-

parável do logos. Por isso que ela não é cega, não é magia, ela é o

saber.

Essa relação intrínseca desses dois verbos permite compre-

ender, então, porque existem dois grandes mitos gregos para expli-

car a origem das técnicas. Em um deles, a origem da técnica se

encontra na descoberta da linguagem, o logos, só depois de se

comunicar que os homens puderam fabricar coisas e viverem jun-

tos. No outro mito, a origem da técnica se encontra no uso do fogo,

portanto, o teukein; uso do qual vieram a dietética, o alimento

cozido; a metalurgia e os primeiros instrumentos que permitiram

aos homens se relacionarem, e quando eles se relacionaram, inven-

taram a linguagem. Então, no primeiro mito é graças à linguagem

que eles vão em direção à... graças ao logos que eles vão na direção

da técnica; no outro, é graças ao uso do fogo ou, graças à uma

técnica que eles acabam inventando o lógos, a linguagem. {150’}

Por que você tem estes dois mitos indo em direções opos-

tas? Por que há uma inseparabilidade entre legein e teukein, entre o

lógos e a técnica. Então, diz o Castoriadis que o legein foi para a

sociedade grega, para o pensamento grego e para o discurso grego

duas grandes oposições: ser e não ser, ou seja, a identidade, a dife-

rença e oposição, e valer não-valer, isto é, a equivalência e a com-

paração. Teukein vai superpor a essas duas oposições, mais duas:

possível-impossível, factível-não factível. Isto significa que teukein

é que define o real, o possível e o factível, e determina a maneira

como legein vai estabelecer a distinção entre ser e não-ser, entre

valer e não-valer, mas também o contrário; legein define a maneira

de conhecer o real e determina, portanto, a maneira como o teukein

vai realizar a ação. Ou seja ser/não-ser, valer/não-valer determina o

que é possível e o que é impossível, o que é factível e o que não é

factível. Em suma: simultaneamente o discurso e o pensamento,

legein, determinam a técnica; mas a técnica, teukein, determina o

discurso e o pensamento.

Tomando os dissoi logoi e o teukein como paradigma, a

técnica lida com opostos ou contrários do ponto de vista da quali-

dade, da quantidade, da vida e da morte e do lugar, e ela faz isso

operando com a oposição entre o possível e o impossível, o factível

e o não-factível, o útil e o nocivo, a obra e o caos, a ação racional e

o acaso; sempre em pares de opostos, sempre; donde a definição da

técnica que aparece no sofista, aparece em Platão, aparece em

Aristóteles.

A definição grega da técnica é o uso da potência dos con-

trários e a inversão do curso dos contrários; inversão do curso dos

contrários (?) da doença para a saúde. É assim, por exemplo, que

Aristóteles considera que os cinco instrumentos simples, ou as

cinco máquinas simples, alavanca, polia, parafuso, êmbolo e ca-

brestante, fundam-se na natureza contraditória do círculo. O círculo

é perfeito porque nele o princípio e o fim são idênticos e ele é a

figura contraditória por excelência porque o seu princípio é o seu

fim; o círculo é aquele cujas extremidades se movem em direções

opostas e se tornam idênticas e é esse o princípio que deve reger a

fabricação e a composição das máquinas simples nas máquinas

complexas; e é essa figura da perfeição do círculo, perfeição ma-

Page 13: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

13

temática e técnica do círculo que está no centro da astronomia

grega, o fato de que é uma astronomia, antes de Aristóteles, com

Aristóteles, depois de Aristóteles, que pensa o celeste, a perfeição

do celeste, como circular; o círculo é perfeito; os céus só podem ser

circulares; e é um desastre total... e há um instante em Alexandria,

que uma astrônoma ao se dar todas as dificuldades do sistema

geocêntrico e do círculo, percebe que as dificuldades se resolveri-

am se os céus fossem, se os movimentos celestes fossem elípticos;

e ela diz, “mas não pode ser, porque o céu é perfeito e a única

forma perfeita é o círculo e é impossível que seja elíptico”; até

Kepler chegar e dizer: “sinto muito”.

Aula 02 (13-08-202)

Pudemos observar que a relação entre os verbos legein e

teukhen e os substantivos derivados logos e technae se realiza sob

o paradigma dissoi-logoi, ou seja, da relação entre contrários,

opostos, na forma de uma aporia que precisa ser resolvida. Vimos

também que este paradigma opera no pensamento, no discurso, na

prática social e política e na técnica, e portanto é um paradigma

que opera no interior de toda a cultura grega, de todas as institui-

ções gregas. Por isso não podemos estabelecer uma relçação de

causalidade mecanica entre a sociedade grega e a tecanica grega,

ou seja, a tecnica grega nao eh um efeito, um reflexo da sociedade

grega, mas uma relacao de determinacao reciproca entre ambas de

maneira que a sociedade explica a forma da técnica e a forma da

técnica explica as instituições da sociedade. Ambas agem uma

sobre a outra e essa ação de ambas, cada um em si e a relação entre

elas tem sempre a forma dos dissoi-logoi, do conflito, da contradi-

ção. Por isso se diz que um dos traços característicos da política,

filosofia, técnica gregas é o carater agonístico (ágon: luta, batalha)

na base da cultura grega.

Na aula passada caracterizamos a técnica, agora vamos

examinar o pensamento grego sobre a técnica, ou seja, as elabora-

ções teóricas que pretendem explicar a origem e o sentido da técni-

ca: uma elaboração mítica, sobre a origem e forma da técnica; e a

elaboração racional-laica sobre a origem e forma da técnica (anali-

se do discurso dos médicos hipocráticos, três filósofos em especial:

Demócrito, Empédocles, Anaxágoras; sofistas; Platão e Aristóte-

les).

ELABORAÇÃO MÍTICA

Em Homero a palavra technae possui dois principais senti-

dos: 1) atividades caracterizadas por 3 propriedades do agente

técnico, a saber, experiência, treino, habilidade). Essas atividades

técnicas são realizadas pelos demiurgos (daemos [grupo social] +

ergon [a obra]): metalurgia, carpintaria, construção de casas e

edifícios públicos, fabricação de armas, fiar e tecer (às mulheres

apenas); 2) (Heidegger) sentido de fazer-ser, trazer algo à existên-

cia, não necessariamente uma existência material, por exemplo, a

poesia é uma técnica, pois traz à existência, por meio da palavra,

personagens, ações, sentimentos. Essa atividade está relacionada

sempre a uma idéia de que é necessário um ato apropriado e eficaz,

e a noção de eficácia estabelece uma relação entre técnica e magia,

pois o que caracteriza a magia (vd Os Senhores da Verdade na

Grecia Arcaica, de Marcel Detienne) e a noção de eficácia como

núcleo da magia é que a magia é capaz, por meio da palavra, de

fazer as coisas existirem, seja um bem, um mal ou um objeto. Na

Bíblia Deus produz uma existência ou um efeito nas coisas existen-

tes apenas por meio da palavra: “faça-se a luz”. Por isso são técni-

cos neste sentido os feiticeiros, adivinhos, os videntes, poetas –os 2

últimos possuem um dom peculiar: o dom de ver o tempo na sua

totalidade, ver o invisível, que é o tempo (vd Vernant acerca de

Homero e o elogio à cegueira nos grandes poetas gregos: ver com o

olho do espirito).

Então a técnica é um dom que os demiurgos, as mulheres,

os magos, os poetas recebem de 3 patronos divinos: Efestus (dá aos

homens o domda metalurgia), Proteu (ensina os homens o poder

dos sortilegios. Deus poliforme), Atena (dá a inteligência pratica).

Em Hesíodo um mito determinado vai se tornar a propria

definicao da tecnica como magia, como dom divinio e como inteli-

gencia pratica humana, o mito de Metis (vd Vernant, Metis - a

inteligencia pratica na Grécia Arcaica). Uranus (Céu) se encontra

permanentemente deitado sobre Gaia/Gea (Terra). Uranus teme

que, dentre os filhos de Gaia, um deles possa lhe tomar o poder e

separa-lo de Gaia, então cada filho que nasce é devorado por

Uranus. Gaia pede auxilio à Deusa Réa, que substitui o recém-

nascido Zeus por um monte de pedras. Réa pede a Efestus que

fabrique uma adaga/espada e dá a Zeus, que é usada para cortar os

genitais de Uranus. Assim Zeus se torna o Rei dos Deuses.

Zeus recebeu uma poção por Métis (astúcia), que deixou

Uranus semi-adormecido.

Zeus engravida Métis, Zeus devora Métis por temer o

mesmo que Uranus. Por isso Métis é uma potência invisível.

Métis está grávida de Atena, por isso Atena nasce da cabe-

ça de Zeus. Ela [Atena] é protetora das tecnicas, tecelagem, razão

ou inteligencia prática. Metis parira 3 filhos: Escotos (noite, som-

bra, treva, ausencia de caminho, objetivo, finalidade, abismo),

Poros (estratagema, habilidade, expediente engenhoso, criador de

caminhos, resolverdor de dificuldades), Techimar (criador de indi-

ces, sinais, signos, capaz de indicar um caminho, objetivo). Metis é

a mãe da inteligância prática e da oposição primordial entre a treva

de Escotos e a resolução de Poros.

Características da Metis: se opõe ao uso da força (em toda

situação agonística a Métis garante que, se usada a força, a resolu-

ção será precária; de maneira absoluta se for utilizada a astúcia do

mais fraco), se exerce em situações ambiguas, incertas, mutaveis

(se exerce no tempo instável. Aquele que é dotado de metis é capaz

de uma premeditação vigilante, ou seja, é capaz de se concentrar

sobre o presente, maquinar o futuro e usar a experiencia passada).

Paciencia, Vigilancia e Rapidez de Decisão, pois tem capacidade

de prever. A metis é multipla, polimorfa, diversa, para sair de uma

aporia. Seu campo de ação é o movimento, fluido, móvel, mutável

e ela [metis] age sobre as coisas que não cessam de virar o seu

contrário: juventude vira velhice, o dia vira noite, etc. Por isso ela

precisa ser múltipla, polimorfa, metamorfa. Métis como potência

de engano: agir contra o adversário por meio de disfarces, másca-

ras, pela mimesis (imitação do adversário).

Page 14: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

14

Qualidades próprias da Metis

Velocidade para tomar uma decisão, é hábil, sutil, ágil, leve

e móvel. Dissimulação, de ver sem ser visto, furtividade. Ex.:

polvo.

Capacidade de perceber instataneamente a unidade do di-

verso, habilidade de distinguir o que é essencial e o que é secundá-

rio, é o senso da oportunidade, paciente e prudente, espera o

kayros, por isso ela consegue inventar um caminho onde não há um

caminho. Propõe e resolve enigmas.

Enigma da esfinge.

Métis como poder de ligar, vincular, urdir, tecer, tramar

(tecelagem, artesanato, etc).

É a facilidade para estabelecer analogias, comparações en-

tre coisas visíveis por meio das quais ela pode conhecer as coisas

invisíveis. A métis é a capacidade de ir do conhecido ao desconhe-

cido. Métis como máquina.

Daedalo (1:00:00)

Arquiteto/engenheiro supostamente nomeado Daedalo por

conta de sua obra (daedalum. Substantivo acompanhado dos verbos

fazer, fabricar, forjar, colocar, dar a ver, tecer, junto com os advér-

bios belo, brilhante, luminoso, sarapintado, formam o “fazer lumi-

noso”). Metalurgia (serralheria, joalheria. Ouro, bronze, cobre,

prata. Joias, elmos, escudos, estátuas), Tecelagem (veus, mantos,

vestidos, velas de navios), Carpintaria (mobiliário, navios, armas).

Contexto do objeto daedalo: luminosidade, semelhança e

analogia (objeto mimético), rápido, veloz, instável, sedução, astú-

cia, ardio, mentira, ilusão, medo, pânico. Objeto preciso dotado de

valor mágico: protetor mágico ou aterrorizador maléfico, ou seja,

talismã dotado de eficácia mágica. Por isso é um objeto que expri-

me todas as propriedades e qualidades da Métis.

Em Atenas atribui-se a esse técnico chamado daedalo uma

estatuária muito peculiar, que são estátuas de madeira recobertas de

ouro, abrem e fecham a boca e andam. Daedalo fabrica, pois, au-

tômatos. Em Creta Daedalo fez o labirinto em qual foi colocado o

Minotauro, fez a enorme vaca de madeira na qual Parcifae se pro-

tege contra o Rei Minos, fez os véus e vestidos de Ariadne e deu o

fio a Teseu que, assim, matou o Minotauro. Daedalo é pai de Ícaro

que, entusiasmado com as asas de cera, ignorou a sabedoria do pai

e foi em direção ao Sol (e morreu). Por isso um objeto daedalo é

mortífero.

Métis ou Astúcia

As características e qualidades que os mitos atribuem a

Metis determinam a maneira como a technae é concebida [na ela-

boração mística]. As caracteristicas da tecnica vao se manter na

elaboração racional, pois esta marca é definitiva na história da

técnica. A técnica é exigência de prudência, vigilância, acuidade

visual, golpe de vista certeiro, rapidez e senso de oportunidae,

capacidade de aprisionar uma força natural e utilizar essa força

contra a natureza mesma. Por isso nos relatos míticos as figuras

dotadas de métis são homens que recebem esse dom divino e por

isso sao capazes de lidar com a mobilidade incessante das coisas e

dos homens. São capazes de um saber prático conjectural. Os

técnicos sao homens prudentes e astutos.

A métis é a technae contra o acaso, e por isso os homens

dotados de métis são os técnicos: quem são eles? (Essa lista vai

permanecer na Grécia clássica quando a concepção da técnica está

racionalizada.) O piloto que é hábil para criar caminhos onde não

há caminho, ou seja, o mar é aporos, e o piloto, poros; o caçador e

o pescador, que são hábeis para criar laços, vínculos, permanecer

invisiveis na tocaia, mimetizar o animala ser aprisionado e são

dotados de golpe de vista; o médico que vê o invisível por analogia

com o visível, tem golpe de vista e tem senso da oportunidade, ou a

percepção do kayros; o estrategista, que é hábil em inventar estra-

tagemas, armadilhas que desoriantam o adversário; o poeta; o

adivinho e o vidente, pois são capazes de ver o invisível e agarrar a

totalidade do tempo; politico, que é o homem prudente, capaz de

ver analogias em coisas diferetens, capaz de olhar para trás e para

frente para compreender o presente, tem o golpe de vista certo para

ver a unidade e o sentido de uma situação complexa e é capaz de

tomar uma decisão com rapidez no momento oportuno. São essas

as grandes figuras da técnica como métis, e esta enumeração vai se

encontrar na fala de Prometeu em Ésquilo. Na tragédia de Prome-

teu acorrentado, Ésquilo mostra Prometeu castigado por Zeus por

ter dado aos homens o fogo e com o fogo todas as técnicas; ele está

preso à beira do mar e seu fígado é mordido incessantemente por

um corvo. Os corifeus perguntam a Prometeu o porque de seu

suplicio: “no oco de um canisso coloquei a furtiva semente do

fogo, semente que é para os mortais a mestra para todas as

te´cnicas e uma auxiliar semp reço; os mortais devem a mim o ter

deixado encarar a morte com terror, neles infundi a cega esperança.

Fiz mais ainda: concedi-lhes o fogo. Com ele aprenderam todas as

tecnicas”. E mais tarde, questionado por Oceanus e pelas Oceani-

des, ele responde: “escutai a tribulação dos mortais, escutai como

de parvos que eram os tornei racionais e dotados de inteligencia.

Eles antes olhavam sem ver, olhavam a toa. Escutavam sem ouvir,

semelhantes às formas dos sonhos, vogavam ao acaso em suas

vidas. Desconheciam cassas de tijolos inundadas de sol, não sabi-

am lavrar a madeira, viviam soterrados como ágeis formigas num

fundo de caverna sem sol. Desconheciam os sinais seguros do

inverno sombrio e da primavera florida e do verão abundante. Tudo

faziam sem saber até que um dia os ensinei a técnica difícil de

discernir o nascer e o ocaso dos astros; inventei para eles a mais

belas da ciências, o número e a composição das letras, a escrita,

que tudo conserva na memória. Fui eu quem primeiro adestrou os

animais submetendos-os à canga ou cela para substituir os homens

nas tarefas penosas (...) Eu, que com métis, dei tudo aos mortais

não encontro metis para livrar-me do meu suplício. Ouvindo o

resto ainda mais vos espantareis com as artes (tecnicas) e engenhos

(métis) que imaginei, principalmente quando alguem adoecia, não

tendo remédios, nem bálsamos nem poção, definhando por falta de

medicina, até que os ensinei o remédio certo para cada ocasião;

Page 15: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

15

ensinei a técnica da adivinhação e a distinguir nos sonhos o que se

deve ter por verdadeiro que se fará realidade, ensinei-lhes a inter-

pretar os agouros fugidios, os presságios e os sinais que surgem

nos caminhos, os guiei nas obscuridades dos precipícios, abrindo

seus olhos para o sentido das chamas até então desconhecidas. Os

tesouros escondidos nas entranhas da terra (o ouro, bronze, prata,

ferro), quem pode reclamar a descoberta deles antes de mim? Nin-

guém --tenho certeza.” Todas as tecnae os mortais devem a Prome-

teu.

ELABORAÇÃO RACIONAL DA TÉCNICA

A passagem da métis mitica para a tecnae clássica é a pas-

sagem da ideia de uma inteligencia pratica e astuta que é um dom

dos deuses para a idéia de uma inteligencia pratica e astuta que é

um saber fazer, um metodo, um caminho correto par aum fazer

eficaz posto pelos proprios homens. A tecnica é um saber laico,

uma pratica laica, e não se relaciona nem com forças divinas, sa-

gradas, nem com forças mágicas, ou seja, ela se descola do univer-

so religioso e ela é pensada agora como uma relação com a Nature-

za (physis). Essa diferença já aparece nos proprios trágicos, se nós

compararmos Prometeu de Ésquilo e a Antígona de Sófocles,

veremos que na última os homens são inteiramente responsáveis

pela invenção da agricultura, da tecelagem, da navegação, da caça,

pesca, carpintaria, metalurgia, medicina. E são inteiramente res-

ponsáveis pela criação das leis (nomos) e, portanto, da Pólis. A

questão que se coloca a partir da Antígona é que o homem pode

fazer bom ou mau uso da técnica, mas [a técnica] é algo humano do

começo ao fim.

A diferença entre a concepção mítica e laica aparece quan-

do nos voltamos à Medicina. Até os quatro grandes nomes da

Medicina, Demócrito, Anaxágoras, Empédocles, Hipócrates, a

Medicina era tida como um dom do deus Asclépio aos homens e

era ensinada em templos dedicados à Asclépio (vd Apologia, quan-

do Sócrates diz a Glauco para sacrificar um galo em favor de As-

clépio). Nessa Medicina distinguiam-se entre doenças humanas e

doenças sagradas, por exemplo: o estupor e a epilepsia eram cha-

madas sagradas, consideradas possessões de origem divina para as

quais os remédios eram encantos, canções, orações, discursos e

purificações (banhos, alimentos). Atribui-se a Hipócrates o livro A

Doença Sagrada no qual se põe contra a idéia de doenças sagradas,

afirmando que todas as doenças são naturais e possuem uma natu-

reza própria e causas naturais específicas, e podem todas elas ser

curadas. Haverá um esforço para tornar a Medicina autônoma em

relação à religião. Esse esforço está sistematizado na obra Peri-

technae (Sobre a técnica), atribuída a Hipócrates, que se destina a

demonstrar que a técnica é algo que provém de carencias ou neces-

sidades dos humanos e da experiência e do treino que os humanos

têm para responder a essas carencias e necessidades e a Medicina é

uma técnica que possui um objeto proprio, uma forma propria,

procedimentos proprios inventados pelos homens. (Vd fim da

aula.) Na mesma direção de Hipócrates, vão Demócrito, Empédo-

cles e Anaxágoras, três médicos que pretendem liberar a técnica

das explicações miticas e sacralizadas. Empédocles apresenta as

bases cosmológicas que fundamentam as tecnicas, ou seja, a idéia

de que a tecnica esta fundada na physis e ela exprime a relação

correta e adequada dos homens com a natureza. Anaxágoras afirma

que os dotes tecnicos são dotes naturais e que a tecnica é possível

pq o homem é dotado de mãos (na verdade polegar) que é capaz de

técnica; e a técnica é uma síntese de três capacidades humanas: a

expêriencia, a memória e o saber para atender as carências, neces-

sidades e exigências postas pela vida. Para estes filósofos a tecnica

é um saber instrumental, uma atividade pragmática, acima da qual

se encontram a ciência (episteme) e a filosofia como conhecimento

contemplativo.

No contexto da laiscização da técnica, a posição mais inte-

ressante é a posição dos sofistas, que se apresentavam como pro-

fessores de tecnicas e consideravam a filosofia uma tecnica e não a

pura contemplação espiritual do invisível. Enquanto Demócrito,

Empedocles e Anaxagoras procuram o fundamento da tecnica na

Natureza (physis) os sofistas abandonam as especulações cosmoló-

gicas e vão procurar o fundamento na técnica no proprio homem.

Problema geral da Cosmologia

O motivo pelo qual os sofistas abandonam a cosmologia,

Sócrates abandona a cosmologia, Platão também e Aristóteles irá

retomá-la na forma uma Física, é uma aporia que se instala no

pensamento pré-socrático entre duas posições acerca da Natureza

ou do Ser: Heráclito e Parmênides [escola eleata]. O primeiro diz

que o ser é movimento [kynesis, nascimento, geração, desenvolvi-

mento, corrupção, morte, mudança de lugar, quantidade, qualida-

de], que se realiza na direção do seu contrário, i.e., cada coisa

muda incessantemente no seu contrário, a contrariedade ou contra-

dição é o modo de ser das coisas, tudo que é não-é e tudo que é

não-é. Parmênides afirma que, se cada ser se transforma naquilo

que ele não é, o pensamento é impossível, pois não é possível

pensar o contraditório. Será preciso o sofista Górgias para que se

compreenda os dois grandes sentidos do verbo ser: existencial

(Deus é, o homem é, nós somos, etc); verbo de ligação (o homem é

adulto, o homem é velho). Até Górgias o verbo ser possui apenas

sentido existencial. Quando Heráclito diz “agora está de dia” não é

no sentido de que depois será noite, mas que o ser é dia e noite,

uma contradição. Parmênides diz “se cada ser é seu contrário ne-

nhum ser pode ser pensado, pois a condição de se pensar um ser é a

identidade”, por isso é preciso dizer que a mudança, o movimento,

são uma ilusão sensorial e nossos sentidos fazem nos ver as coisas

sem cessar. É nosso pensamento tem que recusar a mudança se

quiser ser pensamento, pois o pensamento só é possível na identi-

dade. Portanto o ser é; o não ser não é. O ser é eterno, pois se fosse

temporal teria de mudar naquilo que não é, que é não-ser, que não

pode tornar a ser o que já não é, portanto o ser é imóvel, idêntico,

etc. E não há mais a se pensar ou dizer, pois todo o restante é a

mudança, o mundo da ilusão e dos sentidos.

O pensamento filosófico grego empacou: ou tudo é mudan-

ça e a identidade, permanência, estabilidade são ilusões dos nossos

sentidos ou tudo é idêntico sempre e a mudança é uma ilusão de

nossos sentidos. Demócrito, Empédocles e Anaxágoras vão tentar

resolver o problema no nível da cosmologia, tentarão conciliar o

Heráclito e Parmênides. Os sofistas pensam ser esta conciliação

Page 16: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

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impossível e despropositada, pois o que lhes interessa não é a

physis (se é identico ou o movimento), mas interessa o nomos, a

lei, a regra, a norma, aquilo que o homem faz.

Os sofistas

O abandono da cosmologia tem como consequência a bus-

ca pelo fundamento da técnica não na Natureza como Demócrito,

Empédocles e Anaxágoras, mas no próprio homem, donde o céle-

bre dito “ad nauseam”. O homem é medida de todas as coisas, das

que são porque são e das que não são porque não são, ou seja, para

os homens tudo é nomos, traduzido frequentemente por convenção,

acordo regulado pelo costume e pela lei, regra instituída. Todo

saber verdadeiro é uma intervenção pratica na vida humano, por-

tanto todo saber verdadeiro é uma técnica. O sofista é o primeiro a

abandonar a distinção entre tecnica, ciencia e filosofia, que vai ser

vigorosamente reposta por Platão e vigorosamente tematizada para

o resto do mundo ocidental para sempre por Aristóteles. Todo

saber verdadeiro é uma intervenção pratica para benefício dos

homens.

Ora, a tecnica é responsável pela instituição de uma vida

realmente humana, como foi descrita por Prometeu, mas –diz o

sofista- o que é uma vida realmente humana? É a vida na pólis, é a

vida social e política. Isso significa que a primeira e mais funda-

mental de todas as técnicas para o sofista é a linguagem, portanto o

legein [logos], porque é pela linguagem que os homens instituiem

regras, normas, leis e o acordo, portanto a vida social e política. O

que é o nomos, o que é a lei? É o acordo entre os homens permitin-

do que o mais fraco possa sobreviver apesar do mais forte. Esta

definição da lei pelo sofista é uma definição tradicional e clássica

da técnica, portanto a lei e a técnica exprimem exatamente o mes-

mo.

A lei política é a lei mais alta de todas, a técnica de todas as

tecnicas, porque é ela que determina quais são as tecnicas necessa-

rias para uma polis e qual é a hierarquia que deve haver entre as

tecnicas conforme a utilidade social de cada uma delas. E é a lei

que diz quem tem a capacidade para exercer uma técnica e qual

técnica, ou seja, a técnica política [nomos] tem uma função diretiva

sobre todas as outras técnicas, ela é o critério, medida, método,

para avaliar todas as técnicas. Visto que para Protágoras a mais alta

das técnicas é a linguagem [legein, logos], a linguagem é o para-

digma de todas as técnicas, inclusive e sobretudo da técnica políti-

ca. Todo logos, todo pensamento, discurso, linguagem, palavra,

comporta sempre duas posições contrárias ou opostas e cada uma

delas é incapaz sozinha e por si mesma de suplantar a outra, preci-

sando por isso de um terceiro termo que avalie, julgue ambas para

decidir qual dos opostos deve ser aceito e qual deve ser eliminado.

Uma vez que a técnica é definida como o uso da potencia dos

contrários e inversão do curso dos contrarios, é preciso fixar a regra

para a decisão por um dos contrários, uma vez que a função princi-

pal do nomos é estabelecer e conservar o acordo na polis. Então

essa regra pela qual se estabelece a medida para as tecnicas, se

estabelece a avaliação entre as tecnicas contrarias –o que deve ser

mantido e rejeitado-- e o que o faz em nome da conservação do

acordo essa regra deve obedecer a três condições: 1) deve definir

quem tem uma competência tecnica e quem não a tem, ou seja, é

preciso regulamentar a prática dos oficios e essa regulementação

significa que uma técnica é um saber ensinável, transmissível e

pode ser aprendida e, portanto, o que define a competência de um

técnico é o seu aprendizado; 2) todas as técnicas devem ser ensina-

das juntas, nunca ensinar uma unica técnica de cada vez, mas todas

juntas para que uma ensine a como corrigir a outra, para que uma

possa suprir as dificiências de outra, de tal modo que embora o

técnico possa se especializar ele é educado como um generalista

primeiramente e, depois, adquire uma competência específica. Por

isso os sofistas apareciam nas cidades como professores de (todas)

as técnicas e as praticavam todas: carpintaria, marcenaria, etc; 3)

conforme as circunstâncias e os lugares o nomos se diversifica para

se adaptar à multiplicidade e à mudança das circunstâncias e dos

tempos para poder determinar com eficácia o que em determinadas

circunstancias e determinado tempo uma polis necessita como

técnica, ou seja, para determinar quais são as técnicas necessárias

para uma cidade em circunstâncias e tempos determinados, pois

uma técnica só é eficaz quando responde a uma necessidade social.

Protágoras portanto não se interessa pela técnica enquanto uma

ação sobre a matéria (tema da primeira aula e de Platão e Aristóte-

les), mas interessa a técnica como uma ação dos homens sobre

homens, portanto toda técnica é politica e a política enquanto uma

arte, tecnica humana racional, contrária à magia, recusa a idéia de

técnica seja uma ação invisível e secreta sobre a matéria. Mas a

tecnica não é apenas contrária à magia, mas também ao acaso, pois

o acaso é a desordem. Por isso para Protágoras entre as luzes so-

brenaturais da magia e a cegueira, a abismo, treva do acaso, se

interpõe a técnica como ação ético-política.

Outro grande sofista, Górgias, vai se distanciar de Protágo-

ras, pois o pressuposto do último é de que o homem é racional.

Toda essa elaboração acerca do nomos, da técnica tem como pres-

suposto a racionalidade humana e essa elaboração da técnica como

ação ético-política que explica a famosa frase de que “o homem é a

medida de todas as coisas, das que são porque o são e das que não

são porque não as são”. O homem é a medida das leis, pois é racio-

nal, dotado de logos. Górgia dirá que o logos é mínimo no homem,

que não é um ser racional, o homem é inteiramente habitado pelo

pathos, o homem é um ser passional, e portanto há apenas uma

técnica eficaz, que não é a política, uma tecnica eficaz sobre as

paixões ao qual a propria politica precisa estar subordinada: a

retórica.

A retórica é um pharmacon para as paixões, como demons-

trou Derrida no ensaio A farmácia de Platão, não é apenas um

remédio, mas poção, elixir, filtro, maquiagem e sedução, portanto a

retórica é um remédio que opera como uma poção sobre as paixões

por meio da sedução. A persuasão da retórica se faz por meio da

sedução. A retórica é a técnica de persuadir, dissuadir, machucar e

curar os homens. E a política só vai ser eficaz se empregar a sedu-

ção retórica sobre a alma do cidadão, por isso Górgias se apresenta

em Atenas como professor de retórica. Qual é o lugar essencial do

homem numa democracia? É a Assembléia. Qual é a técnica que

ele deve possui para estar na Assembléia? Retórica, técnica daquele

que é o orador e deve saber seduzir, persuadir e dissuadir os outros

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cidadãos. Para uma Assembléia ser democrática todos os cidadãos

devem aprender retórica, pois a função de cada cidadão é seduzir,

persuadir e dissuadir seus concidadãos, e é isso que o Górgias se

propõe a ensinar: uma técnica de linguagem. Enquanto para Protá-

goras é a técnica de todas as técnicas é a politica derivada do logos,

a enfase de protagoras não está nol ogos como discurso, mas como

razão, pensamento, racionalidade. Gorgias, também operando com

o logos, vai dizer que a técnica de todas as técnicas é a linguagem,

mas de uma determina maneira: o logos como palavra da sedução e

da persuasão e portanto como retórica. Independentemente como

essa diferença entre Górgias e protagoras, a reflexão destes dois

sofistas foi o que produziu de maneira sistemática um paradigma

que operava na técnica mais inconscientemente sem que ele fosse

formulado explicitamente e sistematicamente elaborado, ou seja, o

paradigma dado pelo legein e pelos dissoi-logoi. São os sofistas

que explicitam e sistematizam aquilo que sempre tinha sido a

essência da técnica, mas que eles foram capazes de expor.

Então para Protagoras a linguagem da lei para o acordo ra-

cional entre homens em conflito, linguagem da retorica para persu-

asao e seducao dos homens passionais em conflito segundo Gorgi-

as, mas nos dois casos o modelo da técnica é social e político regi-

do pelos dissoi-logoi. Assim, há nos sofistas uma teoria da ação

humana como técnica na qual agir não é fabricar objetos –isso é

secundário—, o núcleo da tecnica não é operar sobre uma matéria,

sobre a physis. Agir é ter ascendência sobre os homens na Polis:

vencê-los, dominá-los pela palavra para que eles se ponham de

acordo. Agir, portanto, é uma técnica de intervenção nas relações

humanas e é a partir desta definição da técnica principal que se

estabelece uma hierarquia das técnicas, quais são necessárias para

esta cidade, quais não são, como se ensina isso, como não se ensina

e assim por diante, mas os paradigmas dos dissoi-logoi é posto pelo

sofista. Contra eles vão se erguer Platão e Aristóteles que examina-

rei na próxima aula.

Medicina Grega

A Medicina grega encontra-se compilada pela primeira vez

numa obra gigantesca denominada Corpos Hipocráticos num total

de 53 obras. Embora tragam o nome de Hipócrates não significa

que todas as obras contidas nas obras são de Hipócrates, mas que

algumas o são: A Medicina Antiga, A Doença sagrada, o prognos-

tico, ventos aguas e lugares, epidemias (quer dizer visitar, o que o

médico fazia), aforismos e juramento. As demais obras foram

escritas por seus seguidores. De acordo com o corpus hipocrático

existe uma physis universal ou a Natureza entendida como natureza

comum a todos os seres, e há a physis individual, ou seja, a nature-

za de cada coisa, a sua constituição própria. Assim como há a

physis dos astros, dos ventos e das águas, há também a do homem,

como há a physis de Calicles, Sócrates ou Platão; Aristóteles vai

dizer “o médico não cura o homem, o médico cura Cálicles, Sócra-

tes ou Platão, é por isso que –diz Aristóteles – médico não faz

ciência”. Ele faria ciência se a ação dele fosse o homem como um

universal.

Existe a physis (natureza, constituição própria) da saúde e

as physis das doenças, que significa tanto uma como outra podem

ser conhecidas, determinadas e definidas, eis porque o médico

hipocrático afirma “não é possível conhecer a doeça sem conhecer

a natureza das doenças, e não se pode conhecer a natureza das

doenças se não se conhecer a Natureza em seu todo no seu princí-

pio (arqué, portanto o médico se vê como arquiteto). Esse papel

fundamental atribuído à physis tem um consequência precisa: a

filosofia ensina (desde os pre-socraticos) que a physis é um princí-

pio de ordenação das coisas que é em si mesmo ordenado, ou seja,

a physis é ordenada em si mesma, por si mesma e ordenadora de

tudo a partir de si mesma. O ensinamento filosófico incide sobre as

idéias médicas e sobre as idéias da saúde e da doença; o médico

deve saber que a saúde é a boa ordenação interna ao próprio corpo

feita pela physis do corpo, enquanto a doença é a desordenação da

physis do corpo. Dizer que a saúde é ordem e ordenação, isto é,

harmonia e proporção, é dizer que o corpo humano saudável mani-

festa regularidades e constâncias que podem ser conhecidas e pelas

quais podem ser conhecidas as desordens ou doenças. Ter um

conhecimento do que é regulado e constante é ter um conhecimento

daquilo que permanece idêntico e portanto umconhecimento ver-

dadeiro, por outor lado, se a doença é desordem a tarefa do médico

é de dois tipo: ou sabe que se trata de uma desordem cujas causas

são conhecidas e cessadas as ações dessas causas, a natureza do

corpo sozinha se reordena (é a idéia de que a Natureza é médica de

si mesma) ou ele sabe que a desordem é profunda, que a natureza

do corpo não possui forças sozinha para reordenar-se. No primeiro

caso ele deve deixar a Natureza seguir seu curso, ou no máximo,

ajudar a apressar o cessamento da doença com uma dieta, por

exemplo, mas no segundo caso –a desordem profunda- ele deve

intervir para ajudar a Natureza, como na cirurgia, na punção ou na

sangria.

A distinção entre o ordenamento adequado e harmonioso

ou desordem ou perda, falta de proporçao leva à distinção entre a

saúde como o que é conforme à natureza de alguém e a doença

como o que é contrário. Examinando um doente o médico deve

levar em conta seus três aspectos: o ocasional (ou a aparência

relativamente permanente do doente, ou o quanto dura a aparência

de um doente), o típico (aspecto habitual que uma doença costuma

apresentar, seja como aspecto de todo corpo, seja como aspecto de

uma de suas partes) e finanalmente, observar o específico, o eidos,

a forma de uma doença, isto é, a forma e propriedade da doença na

sua generalidade. O médico portanto olha como o paciente está

naquele momento, tudo que se repete na aparência dele, depois

deve observar o aspecto habitual do paciente como não-doente,

depois observar a doença nela mesma, a forma que a doença assu-

miu. Visto que a técnica opera com os dissoi-logoi, portanto com

oposições, contrastes e contrariedades, o médico observa o doente

levando em consideração também esses três aspectos, não apenas

no doente como também na pessoa sã, pois a doença é uma pertur-

bação da saúde. O médico deve observar o eidos, a forma da doen-

ça, mas também o homem são para conhecer o eidos, a forma da

saúde; a oposição saúde e doença é o objeto da técnica médica. Sob

esta perspectiva o eidos da saúde é a figura ou estrutura de um

corpo no qual todas as partes ou órgãos funcionam em sintonia e

Page 18: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

18

harmoniosamente cada um deles cumprindo sua função, em outras

palavras, pela realização adequada de uma função ou da finalidade

de cada finalidade do corpo é que podemos definir o eidos ou

forma da saúde, donde se conclui que a forma da doença ou eidos

da doença será determinado pela não realização da finalidade ou

pelo não cumprimento da função seja em decorrência de causas

externas ou internas. O fato do eidos tanto da saúde como da doen-

ça ser definido como a estrutura ou forma do corpo de acordo com

a physis universal e com a physis individual e ser definido pela

função ou finalidade significa que o eidos é inseparável da ativida-

de corporal interna e sua relação com as atividades da natureza

circundante ou do meio ambiente.

Esta atividade realizada pelo corpo na relação com o ambi-

ente (hoje chamada fisiologia) é denominada pelo médico grego

por dynamis: presença de uma força ou potência para mostrar-se tal

como é, em outras palavras, a dynamis se refere às ações atuais ou

potenciais que uma coisa pode realizar apenas por si mesma, por

sua natureza, e não por uma intervenção externa, técnica. O peixe

nada, sua dynamis é nadar; o passara voa; o cavalo trota; a planta

verdeja; o doente tosse e desmaia. Dessa maneira o eidos é a mani-

festação visível da dynamis em que uma natureza (physis) se reali-

za. A dynamis pode ser tomada como expressão da ação atual ou

possível de uma coisa no seu todo ou de partes dela, por exemplo,

há uma dynamis do sangue, uma outra dynamis do fígado, uma

outra do coração, etc. Embora em seu sentido fundamental a dyna-

mis se refira à força interna das coisas naturais pode também ser

empregado para a técnica, por exemplo, quando se diz que a está-

tua pode ser feita pelo escultor porque a pedra ou o bronze tinham

a dynamis capaz de receber a ação do artesão. No caso da medicina

o conhecimento da dynamis natural de um eidosé fundamental para

que o médico como técnico possa intervir, uma vez que sua inter-

venção consistirá em provocar artificualmente a atividade que a

dynamis em virtude da doença está naturalmente impedida de

realizar. As dynames são forças ou qualidades elementares (quente

frio seco úmido doce amargo leve pesado) e difere em cada parte

do corpo uma vez que cada parte possui dynamis próprias, por

exemplo, a dynamis do coração é quente, do fígado é frio; as

dynames são graus ou intensidades de forças podendo ser adequa-

das, fracas ou excessivas para seu eidos respectivo. De maneira que

a saúde é a medida da intensidade das forças e as doneças são

variaçoes para mais ou para menos dessas medidas. A dynamis é o

que explica os movimento, as kynesis (qualitativas, quantitativas,

locais), ou seja, as variações do corpo e em si mesmo ela pode ser

considerada a expressão do princípio vital de cada coisa.

O primeiro e mais conhecido dos aforismos de Hipócrates é

aquele com que se abre a obra Aforismos: “A vida (bios) é breve, a

arte (technae) é longa, o momento oportuno (kayros) fugidio, a

experiência (aempaeria. Peras [limite], póros [caminho], apaeron

[limitado], aporia [dificuldade], empiria [busca de um caminho e

de um limite, por isso ela é vacilante) vacilante e o julgamento

(krysis, o juízo emitido no momento oportuno) difícil”. Esse afo-

risma pode ser lido como a súmula da teoria do conhecimento do

medico grego, pois nele estão contidos os elementos principais com

que o médico deve lidar: a brevidade da vida, a lentidão da técnica,

a rapidez que se passa o momento oportuno para agir, a inconstân-

cia ou vacilação das provas empíricas e a dificuldade para julgar

corretamente no momento de fazer o diagnóstico e o prognóstico,

de iniciar e terminar a cura. Cabe a um médico, um técnico, reali-

zar três operações: 1) observação sensorial atenta da realidade

orientado pela regra que se deve buscar o semelhante e o desseme-

lhante; 2) converter os dados observados em sinais indicativos do

estado do corpo que o apresenta e verificar se é possível passar do

signo indicativo a um signo probatório sobre a verdadeira realidade

interna correspondente ao estado visível, trata-se de aprender com a

experiência, o médico deve usar a experiência para depois –pelo

pensamento – generalizar os sinais e construir o quadro de sinto-

mas que caracterizam uma determinada doença, isto é, fornecem o

seu eidos e sua dynamis; 3) usar a imaginação de maneira cautelosa

e sóbria para supor qual é a causa que faz com que um signo signi-

fique aquilo que realmente se está observando, para tanto um mé-

dico deve aprender a fazer (aquele que é um dos elementos centrais

da métis) analogias entre o que ele observa e realidade ou situação

mais simples e mais compreensíveis da vida cotidiana, como por

exemplo, [analogia] com os procedimentos da culinária, da tecela-

gem, da comunicação de líquidos etc. Depois vou dizer porque

esses elementos são tão importantes e particularmente a culinária,

pois a medicina grega, a menos que se vá fazer cirurgia ou punção,

é uma dietética e ginástica. (2:37:49)

O Diagnóstico médico

Todos os seres –de acordo com a cosmologia e a física do

médico – são compostos de quatro elementos: água (frio), ar (seco),

terra (úmido), fogo (quente). Tudo é uma composição disso. Nosso

corpo, além desses quatro elementos, possui quatro líquidos ou

humores: a bílis negra (melancolia), bílis amarela (cólera), fleug-

ma, sangue. Nosso corpo é a composição dos quatro elementos e

dos quatro humores e a variação individual decorre da proporção

entre estes quatro elementos e do modo com que se combinam: o

melancólico, por exemplo, tem predominância do ar e do seco; o

colérico da terra e do ar; o sanguíneo, do sangue e do quente; assim

por diante. Há uma tipologia que o médico conhece.

Na Grécia, o paciente não vai ao médico, mas é ele [médi-

co] que vai ao paciente. A palavra clínica vem do verbo clinio que

significa “debruçar-se sobre o leito de alguém”. O médico fará uma

anamnese para saber em que momento preciso e por que o doente

ficou doente. Ele perguntará sobre o local de nascimento (perto do

mar, na montanha, na planícia, onde havia muitas árvores, se era

desértico, etc), depois sobre o horário (se dia ou noite, qual a posi-

ção dos astros no céu), onde se deu o parto (casa de madeira, de

pedra, se a mãe deitava no linho, no algodão, na palha), sobre

alimentação (o que come, em que momentos, quantidade), sobre o

sono (quanto dorme, que horário dorme, se sonha, o que sonha, se

dorme bem, em que posição dorme).

Sobre esta consideração do paciente como um todo, o cor-

po dele no mundo: a posição dos astros determina a natureza do

indivíduo, se ele é colérico, fleumático, melancólico; por isso o

Page 19: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

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médico é um astrólogo. Astrologia é uma ciência. Ele conhece os

climas, por isso uma das obras se chama Tratado dos ventos, das

águas, dos ares e dos lugares; se o médico não souber como são os

ventos, as águas e os lugares, não poderá fazer o diagnóstico e não

poderá, assim, curar ninguém. Ele deve conhecer o mundo. A

relação é “pra valer” da técnica com a physis, a physis universal e a

physis do paciente.

A observação e a analogia imaginativa formam o que os

hipocráticos designam pelo verbo diagnoskiken (diagnosticar

significa conhecer por meio daquilo que se observa). A regra se-

guida pelos médicos hipocráticos consiste em construir mentalmen-

te um objeto que é inacessível à observação de meta mediante o

exame de um outro objeto que é acessível diretamente à observa-

ção, em outras palavras, operando com os dissoi-logoi (portanto

com os contrários), o médico tem que se mover no campo do visí-

vel e do invisível. Porém como a técnica exige que se permaneça

sempre no visível ele observa efeitos e ele não tem como observar

as causas (não tem como observar o interior do paciente) que são

invisíveis e por isso, para determinar estas últimas, ele estabelece

pelo pensamento uma analogia com alguma coisa ou alguma situa-

ção semelhante em que tanto os efeitos quanto as causas podem ser

observados. Por exemplo, o exame do que se passa com líquidos

em vasos como (... ...)permite elaborar mentalmente

como se daria a distribuição do sangue nas veias; o exame do que

acontece com o alimento durante o processo de (... ...)

permite elaborar mentalmente como se daria o processo da diges-

tão. Quando possível deve fazer algum experimento analógico que

permita observar que a analogia foi estabelecida apenas pelo pen-

samento, construindo analogicamente o processo da doença e da

cura. Apoiado na observação, na analogia imaginatia, no raciocínio

e quando possível em experimentos o médico pode conhecer a

physis do paciente, seu eidos e sua dynamis sadios e o eidos e a

dynamis de sua enfermidade. Feito isso ele pode iniciar a terapia

(provém do termo terapeuein (?), que significa cuidar, respeitar,

olhar com cuidado e com paciência).

A cura pode ser de três tipos: 1) esperar a natureza seguir

seu curso; 2) auxiliar a natureza com dieta e ginástic; 3) intervir no

corpo do paciente para restaurar o equilíbrio perdido. Ora, uma das

idéias importantes –e que aparece no primeiro aforisma – é que as

doenças cuja causa é a própria natureza do doente são doenças

necessárias ou doenças sobre as quais o médico nada pode; ele

[médico] pode apenas aliviar as penas do paciente. Em contraparti-

da a técnica médica é solicitada pelas doenças cuja causa não é

necessária e sim acidental, ou seja, a doença é causada por um

encontro fortuito entre o corpo do paciente e condições externas

contrárias à sua natureza. Porque é um técnico o médico lida com o

acidental, com o que pertence ao acaso e à contingência, com o que

é mutável, fluido, efêmero e por isso sua tarefa é muito difícil. É

preciso ter uma qualidade que não depende apenas do saber que ele

acumulou por aprendizado e experiência: ele precisa ser dotado de

métis. De fato, graças ao aprendizado e à experiência, o médico

pode diminuir a extensão do campo do acaso, do acidental, e não

precisa estar totalmente submetido ao poder da contingência, mas

isso não basta. Além do diagnóstico certeiro o médico precisa ter

golpe de vista e o senso de oportunidade, precisa ser dotado da

capacidade de agarrar o kayrós, o momento oportuno, que –como

diz o primeiro aforismo – é veloz e fugidio. O médico suplanta o

acaso com o seu saber e vence o acaso com sua métis.

O Tratado sobre o ventos, as águas, os ares e os lugares nos

dá acesso à maneira como a Medicina concebia o homem, a saúde

e a doença. De fato, o médico hipocrático contempla o homem no

interior do cosmos para compreender qual é a forma, a estrutura, o

eidos do corpo de alguém, como opera suas dyname, a que doenças

a sua natureza o predispõe e quais lhe podem ocorrer por acaso (o

médico leva em conta as estações do ano, a posição dos astros, a

posição geográfica dos lugares, litoral interior, planície, norte, sul,

a forma e variações dos ventos de cada região, a qualidade das

águas e dos terrenos, os costumes referentes à alimentação, à habi-

tação, ao vestuário, aos exercícios físicos e psíquicos; conhecer um

paciente individual é conhecer o mundo no qual ele vive e com o

qual se relaciona desde seu nascimento. Eis porque o médico hipo-

crático praticava a epidemia, isto é, a visita a todos os lugares para

conhecê-los diretamente, residindo em cada lugar por algum tempo

e viajando sempre, pois não era o paciente que ia ao médico, mas o

médico ia ao paciente. Um paciente nascido na primavera e sob a

constelação de peixes, nascido e morando no litoral, sob influência

dos ventos alísios, alimentando-se de frutos do mar, de vegetais e

frutas próprias da terra úmida, habitando casa de madeira, terá seu

eidos e doenças completamente diferentes de um paciente que

nasceu no inverno, nas montanhas, sob influência dos ventos norte

e sul, alimentando-se de carne de carneiro e dos produtos da olivei-

ra, habitando casa de pedra e vestindo-se com pele de animais.

OTratado sobre a natureza do homemnos esclarece quanto

ao que a medicina hipocrática entende por physis humana e por que

a physiologia é inseparável da psicologia, ou seja, trata das relações

do corpo e da alma. Os hipocráticos atribuiam ao quente ou calor a

origem da vida e colocavam o elemento fogo no sangue, do qual

julgavam vir o esperma. Embora o quente e o sangue sejam a ori-

gem da vida, o corpo humano é constituído pela mistura (krasis) de

quatro humores (kimos) ou sucos: sangue, fleuma, bílis amarela,

bílis negra. Cada um dos humores é constituído por uma combina-

ção dois-a-dois dos quatro elementos ou das quatro qualidade

fundamentais (quente, frio, seco, úmido). A diferença entre os

humores decorre da diferença de proporção entre os elementos: no

sangue predominam o quente e o úmido; na fleuma predominam o

frio e o úmido; na bílis amarela predominam o seco e o quente; na

bílis negra (ou atrabílis) o seco e o frio.

(Parênteses: logo no início das Meditações Descartes diz

que antes de fazer o discurso ele havia sido tomado pela bílis ne-

gra, diz estar preocupado, inquieto, e, com isso, faz um diagnóstico

da situação psíquica e corporal em que ele se encontrava para fazer

as Meditações. Na abertura da Segunda Meditação ele diz que

temos de fazer isso uma vez na vida, e descreve um abismo: duvi-

da-se de tudo, duvida, duvida, duvida, não há mundo, não há corpo.

Esse abismo é próprio da capacidade intelectual de um dos tipos

humanos: o melancólico. Há um texto de Aristóteles sobre os

homens excepcionais, no qual ele diz que “todos os homens de

excessão são melancólicos”, a melancolia é o caráter, o tempera-

Page 20: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

20

mento dos grandes homens. Melancolia não é uma doença; vai

haver doenças da melancolia, que são as mais terríveis.)

Embora todos os corpos humanos sejam compostos pelos

quatro elementos e suas qualidades e embora cada indivíduo seja

diferente dos demais é possível classificar genericamente quatro

tipos de mescla dos humores dos elementos, a diferença entre eles

causada pelo humor predominante. Os quatro tipos ou tempera-

mentos são colérico, fleumático, melancólico, sanguíneo. (A atrabí-

lis, em grego, é chamada maelainakole.) E são causados no mo-

mento do nascimento pelos temperamentos do pai e da mãe, pelo

estado do pai e da mãe no momento da concepção, pela hora do dia

ou da noite em que se deram a concepção e o nascimento, pela

estação do ano, pela conjunção astral, pelas condições geográficas

de onde acontece o nascimento, pelas condições sociais, religiosas

e políticas que determinam a maneira como cada temperamento

receberá a influência do ambiente por intermédio da educação.

Tudo isso para formar o temperamento (mistura, tempero dos

quatro elementos e dos quatro humores) de alguém.

Cada um dos temperamentos possui características próprias

que constituem a physis de cada um e a esses temperamentos cor-

repondem também características psicológicas, disposições físicas

e psíquicas, doenças físicas e psíquicas próprias e que variam

conforme as estações do ano, idade e sexo. Porque a doença de-

pende de fatores variados (no corpo e na alma do paciente) e das

condições ambientais, uma das marcas mais interessantes do diag-

nóstico hipocrático é a sua construção. Além dos cinco pontos

acimas como constitutivos do método ou caminho do conhecimen-

to o diagnóstico comportava também um movimento inicial de

diálogo entre o médico e o paciente que tinha como finalidade

realizar a anamnese, isto é, graças às perguntas do médico o paci-

ente se tornava capaz de narrar os acontecimentos que antecederam

o momento da doença e descrever as ações que realizara ou recebe-

ra de outros. Assim o médico perguntava quando e onde o paciente

nascera, seus hábitos alimentares, seus interesses, onde estava, com

quem estava, o que fazia, como sentira a doença, se tinha dificul-

dade para comer, se tinha dores, se era localizada.

Ao terminar a anamnese o paciente e médico dispunham

das informações e um dos sinais mais importantes da ocasião em

forma da doença, em outras palavras, o paciente não ficava passivo

diante do saber do médico, mas participava da elaboração do co-

nhecimento de sua doença, ainda que a seguir não pudesse ter

mesma participação que o médico quando este iniciasse o trata-

mento. Um segundo aspecto interessante do tratamento estava no

modo de ação do médico: em alguns casos o médico não intervia;

os casos de intervenção podem ser direta (cirurgia, punção, remé-

dio) ou indireta (a dieta: alimentação, exercícios físicos e psíqui-

cos, banhos, perfumes, aromas, repousos, óleos, isto é, um regime

de vida que buscava modificar os hábitos do paciente para adequá-

lo a sua physis, ao eidos do seu corpo e de sua alma). Ao realizar a

anamnese e conhecer a constituição própria do paciente, bem como

as condições em que ficara doente, o médico era capaz de reconhe-

cer se a doença era crônica ou passageira, como e por que o equilí-

brio ficara perdido nas doenças crônicas ou abalado nas passagei-

ras, e a dieta não só contrabalançava os excessos e faltas dos conti-

tuintes mas também trazia hábitos capazes de restaurar e conservar

a harmonia. Sob este aspecto a dietética hipocrática não se direcio-

nava apenas aos doentes, mas também aos sadios que desejassem

conservar a saúde.

E como um médico alcançava a um paciente? Porque a

maioria das doenças eram consideradas psicossomáticas e ele

precisaria convencer o paciente a realizar a anamnese. Para isso ele

usava três procedimentos: a doce persuasão (agindo com calma e

serenidade, imputando o mais grave e exortando o paciente a dese-

jar a cura consolando-o de suas aflições); emprego da música e a

poesia (para excitar alegrias na alma do paciente afastando triste-

zas, temores e angústias); escolha da alimentação noturna (de modo

a afastar pesadelos e provocar bons sonhos levantando o ânimo do

paciente). O mais importante, porém, era o modo com que fazia o

diagnóstico no momento de sua intervenção. Feito o diagnóstico, o

médico sabia que, para o tratamento funcionar, ele deveria iniciar o

tratamento no momento oportuno, pois se errasse este exato mo-

mento a cura não poderia ser feita. Esse momento é a krysis: mo-

mento preciso no qual o médico é capaz de julgar o todo da doença

que ele vê e qual intenveção deve executar e para isso ele precisa

de golpe de vista certeiro, vigilância e paciência com o que é fluido

e móvel, capacidade para agarrar o kayrós e a combinação de

experiência, observação, memória, treino e julgamento, ou seja,

para curar é preciso esperar a crise, que supõe um golpe de vista

capaz de ver num único olhar essa complexidade e quando ele deve

intervir e agarrar o kayrós.

Aula 03 (20-08-2012)

O pensamento grego sobre a técnica – Platão e Aristóteles

Platão – primeira sistematização. O Ocidente é herdeiro da

sistematização de Aristóteles.

Nos diálogos, o jovem Platão coloca na boca de Sócrates

um discurso muito otimista com relação à técnica e uma boa von-

tade com relação aos técnicos. Sócrates, em vários diálogos, irá

afirmar que os técnicos são aqueles que sabem o que fazem e por

que o fazem (contrapõe aos políticos, que não sabem o que fazem e

por que o fazem). Tal oposição aparece em Apologia, qd Sócrates

coloca os técnicos como superiores aos políticos e aos poetas.

Apesar desse otimismo com relação à técnica, Platão desde a ju-

ventude estabelece um limite à técnica – ela não tem a possibilida-

de de alcançar o universal. Por isso, entre os vários erros cometidos

por Protágoras, 2 são os principais: supor que a competência técni-

ca é a mesma em todos os campos técnicos. Cada um tem a sua

competência particular. O outro, julgar que a

técnica pode ser estendida à política, considerando a política uma

técnica particular. Platão vai mostrar que a política não é uma

técnica, é um saber teórico que alicerça um saber prático. Para

saber o que é um técnico, é preciso definir a essência da técnica; e

para isso é preciso determinar o campo em que a prática técnica se

exerce. Platão vai dizer que cada técnica, embora particular, é

tomada nela mesma uma totalidade, ou seja, opera sempre com os

mesmos procedimentos, os mesmos princípios, as mesmas regras

Page 21: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

21

para todos os objetos do seu campo de ação. É por isso que a medi-

cina é uma técnica, e o médico um técnico, mas a poesia não é uma

técnica, nem o poeta um técnico. Embora uma técnica trabalhe com

a totalidade, ela não é uma totalidade e sim uma competência

específica.

Na maturidade, as ideias de Platão irão mudar, sem que o

vocabulário mude. Por meio desse vocabulário, ele vai sistematizar

um pensamento sobre a técnica. Esse vocabulário não está vincula-

do exclusivamente à técnica, mas aos conceitos da filosofia platô-

nica. É empregado por Platão para entender ou elaborar um enten-

dimento sobre as essências (e o que se procura é a essência da

técnica) e esse vocabulário é aplicado para a técnica tb. O campo

conceitual será o mesmo. Desse vocabulário, vou mencionar ape-

nas os termos que fazem referência à técnica: o primeiro é a dyna-

mis como potencialidade ou possibilidade de estar inscrito na natu-

reza de alguma coisa e que é invisível ou está escondido. O outro, a

arethé, a excelência de alguma coisa, a sua perfeição, o ponto

máximo, a sua função excelente. Perfeição de alguma coisa qd a

dynamis está atualizada. O terceiro, o termo que vai receber o

sentido platônico: eîdos, ou a forma inteligível, a ideia como essên-

cia que não é captada só pela inteligência, mas porque a inteligibi-

lidade é o ser dela mesma e não uma propriedade. O eîdos é tb o

modelo, o paradigma ideal de perfeição que orienta o movimento

correto de atualização de uma dynamis. É a essência imóvel (senti-

do grego) e, portanto, a forma perfeita. É uma realidade imaterial,

necessariamente. Existe, portanto, separada em um outro mundo,

que não é o mundo material das coisas sensíveis, o mundo como

nós o percebemos, é um mundo à parte, exclusivamente imaterial e

inteligível. O mundo inteligível é o mundo da matéria, corporal,

sensível, o mundo mutável, portanto, porque mutável, é uma

dynamis que precisa ser atualizada. A epistéme é a ciência como o

conhecimento teórico do eîdos, conhecimento que se dá pelo inte-

lecto puro, que vê o eîdos. O que ele vê, portanto, é a forma perfei-

ta. Em termos da técnica, esse conhecimento é o conhecimento de

paradigmas eternos. A mímesis é a atividade técnica dirigida pela

epistéme para fazer com que a dynamis da coisa sensível, natural,

corporal, material, seja atualizada não de qq maneira, mas de acor-

do com o eîdos, isto é, de acordo com um modelo ideal ou o seu

paradigma. Somente qd a coisa material atualiza suas potencialida-

des em conformidade com a sua ideia ou forma inteligível ou seu

paradigma é que ela alcança a sua arethé. A técnica, então, é uma

imitação (mímesis) para as coisas sensíveis do modelo ou do para-

digma das essências inteligíveis e tem que ser guiada pela epis-

téme. Só o conhecimento da forma permite uma técnica adequada.

Mesmo o arquiteto e o engenheiro, que conhecem os princípios

e as causas da sua prática, não tem o conhecimento do para-

digma. Alguém tem que fornecer a eles o conhecimento do

paradigma para que eles possam propor princípios e causas de

uma técnica especializada que o artesão tem que realizar. O

paradigma só pode ser proposto pelo filósofo. Só aquele que

conhece a forma (eidos) pode dizer aos outros o que eles tem

que fazer. O filósofo oferece ao técnico o conhecimento do

paradigma do seu campo de ação. Finalmente, a técnica, essa

imitação do paradigma ideal, se realizada como demiurgia, ou seja,

o técnico não fabrica a matéria sobre a qual ele vai operar, não cria

a matéria da sua operação. Opera sobre uma matéria dada e atuali-

za-a. A isso chamamos demiurgia. O demiurgo platônico não cria

matéria.

Com Platão, physis, epistéme e técnica tornam-se insepará-

veis. Por natureza, as coisas do mundo sensível - os homens, os

animais, as plantas - são compostas de matéria e, por isso, manifes-

tam a essência daquilo que é material ou corporal. Qual é a marca

da matéria? A falta, a privação. Ou seja, a matéria é o inacabado, o

incompleto e, por isso mesmo, não cessa de mover-se, pois, através

das mudanças espera acabar com a sua carência, a sua provação.

Qd Platão diz que o eîdos é imóvel e a coisa natural é móvel, ele

quer dizer que o eîdos é perfeito, nada lhe falta. A matéria precisa

mover-se porque lhe falta tudo. Uma das tarefas do técnico é ajudar

a matéria a atualizar potencialidades. As coisas do mundo sensível,

do mundo material, são contingentes porque estão necessariamente

em devir (tornam-se incessantemente diferentes daquilo que são).

A mudança se faz sempre por oposição, por contradição. A coisa se

torna oposta do que ele é. O quente esfria, o úmido seca, o novo

envelhece, o pequeno cresce, o dia vira noite... O mundo sensível é

móvel, temporal e contingente porque a mudança se dá sempre na

direção do seu contrário. É uma mescla de ser e não ser, o lugar da

privação e da carência. A mudança pode se dar de 2 maneiras: ao

acaso, desordenadamente (como a natureza opera) ou ordenada-

mente, controladamente. Como é possível uma mudança ordenada

da mescla do ser e não ser? As mudanças ordenadas são as ações

operadas pela técnica. A natureza não faz isso sozinha. Platão está

dizendo que uma mudança ordenada, capaz de atualizar as suas

potencialidades em conformidade com o seu paradigma, é a opera-

ção realizada pela técnica, que arranca as coisas naturais do acaso e

da contingência e opera para suprir-lhes as faltas e carências. A

coisa natural é passiva e graças a isso ela pode receber a atividade

do técnico. Para agir, são necessárias 3 condições: 1) conhecer a

coisa sobre a qual se vai agir, 2) os meios adequados para realizar a

ação e 3) a finalidade da coisa (núcleo grego clássico). Para que a

técnica possa agir, precisa, portanto, desses 3 conhecimentos: a

natureza, os meios e a finalidade. Quem lhe dá esse saber é a epis-

téme, que traz o conhecimento da essência da coisa na medida em

que ela é o conhecimento da forma ideal da coisa que a ação do

técnico deve imitar, ela é o conhecimento de que a finalidade pró-

pria da ação sobre uma coia determinada é realizar a sua arethé. É

ela que diz que isso é possível porque a coisa é dynamis, e é ela que

apresenta para o técnico os instrumentos adequados para a ação que

ele irá realizar. No Banquete, Platão afirma que a técnica faz passar

uma coisa do seu não ser (da sua potencialidade) ao seu ser (a sua

atualidade excelente). Essa passagem é uma mimesis porque o

artesão consegue a gênese da coisa graças ao seu conhecimento da

ideia da coisa, da sua forma perfeita e acabada (que determina a

finalidade e a finalidade é o que suscita a ação do técnica – a ação

do técnico é determinada pela finalidade da coisa). Platão diz que a

ciência é o saber dos contrários, que permite conhecer a identidade

de um ser (essência) e os contrários a ele (ou seja, a epistéme per-

mite conhecer o eidos e a arethé da coisa a fim de impedir que a

contingência, o acaso, arraste essa coisa em direção àquelo que é

contrário a ela – guiando a técnica para que a coisa não se torne

contrária a sai mesma, não se violente a si mesma). Para entender a

Page 22: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

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physis (a natureza) de alguma coisa e a physis em seu todo, Platão

diz que é preciso referi-la ao ser, ou seja, é preciso compreender

que a realidade natural (physis) está cindida entre a forma inteligí-

vel que lhe serve de paradigma (o ser) e a matéria sensível, desgar-

rada, sempre contrária a si mesma, passível, contingente, móvel,

isto é, o não ser. A cisão do ser e do não ser é a cisão entre a forma

ideal (o eidos, a essência) e a coisa natural (a matéria). A matéria

está sempre no não ser, porque está sempre contrária a sai mesma,

transformando-se no que não é, enquanto a forma permanece na

plena identidade consigo mesma, que é a exigência primeira do ser.

A realidade, portanto, está cindida entre a forma inteligível e móvel

e a coisa sensível material, móvel. Por isso, a natureza (physis) é

uma mistura inevitável de ser e não ser. Imita a essência, busca o

ser, mas não cessa de mudar, não deixa de ser o não ser. É no

interior dessa cisão da physis entre o ser e o não ser que o técnico

vai agir. O que torna possível a ação do técnico é algo que lhe é

oferecido pela própria natureza (cisão entre a forma e a matéria). É

por isso que a atividade do técnico tem que ser necessariamente

uma mimesis, senão ele não consegue dominar o acaso do não ser

da matéria. Ele só pode fazer isso se puder imprimir nela (na maté-

ria) o paradigma ideal, se puder fazer com que ela imite, dentro dos

limites que lhes são dados, os limites da matéria, a identidade da

forma. A técnica traz para o que não é idêntico a si mesmo a possi-

bilidade da identidade. Em Timeu, Platão explica a atividade técni-

ca de um técnico determinado (o demiurgo) - para explicar a exis-

tência do mundo sensível, o porquê de o mundo (o cosmos, a reali-

dade ordenada) não ser um caos completo, para que se possa falar

em mundo – há um cosmo natural graças à ação de um técnico

divino, o demiurgo, que conhece as formas e vai imprimir na maté-

ria essas formas, esses paradigmas, vai dar forma ao sensível, à

natureza. Muito importante no século 17: a natureza, enquanto

cosmos, é um artefato divino, um produto técnico. O pensamento

de Platão vai fazer com que a physis seja absorvida pela técnica.

No Íon, a técnica é definida como uma competência teórica

e prática especializada. Cada técnica possui seu campo, seu objeto,

suas regras, os instrumentos definidos pela finalidade e pelo uso do

objeto e se opõe à epistéme (à ciência) porque essa é um saber do

universal. A atividade é técnica, diz Platão, qd estamos diante de

uma ação que emprega sempre os mesmo princípios, as mesmas

regras e os mesmos objetos para o seu campo de ação. Portanto, é a

permanência dos princípios, das regras, dos procedimentos e dos

objetos que distingue uma técnica de outras e de outras atividades

humanas. Em Carmidis, Platão diz que, como uma técnica é uma

atualização de uma potencialidade inscrita na coisa, ela é o

exercício de uma ação sobre alguma coisa que é diferente da

própria ação. (Essa ideia será muito importante, principalmente qd

chegarmos em Aristóteles.) Então, a técnica se instala na auterida-

de entre o agente e a obra, entre a ação e o objeto da ação. Isso

significa, diz Platão, que a técnica não possui em si mesma e por si

mesma a capacidade da sua operação porque a possibilidade da

operação se encontra no objeto, que vai dizer ao técnico o que deve

ser feito. A técnica não age por si mesmo nem sobre si mesma, não

é uma prática reflexiva, não se volta sobre ela mesma, porque ela é

inteiramente determinada pela exterioridade, pelo seu objeto. Em

Hipias Maior, Platão diz que a dynamis (ou a potencialidade) é

anterior ao fazer do técnico e é ela que comanda a prática do técni-

co. É por isso que a técnica tem que ser precedida pela ciência. A

técnica é uma ciência aplicada, um saber aplicado ou a execução de

uma possibilidade cientificamente conhecida. Com isso, Platão está

definindo o arquiteto e o engenheiro.

GÓRGIAS – Em Górgias, Platão vai dizer que técnica é

diferente de mera experiência. A experiência limita-se a estabele-

cer, por meio da memória, relações entre coisas isoladas que se

repetem sempre da mesma maneira. A experiência, então, possui as

seguintes características: ignora a necessidade intrínseca de uma

relação entre coisas (ela comprova essa relação, mas não sabe qual

a necessidade intrínseca dessa relação), 2) a experiência é uma

constatação, é capaz de oferecer a causa do seu objeto, dos proce-

dimentos das operações que ela realiza (a experiência é cega, não

vê o lógos, o eidos), 3) a experiência busca o prazer e não a exce-

lência. Exemplo: a culinária pretende ser o mesmo que a dietética,

mas é uma falsa imitação da dietética, que visa a excelência do

corpo, a saúde, e a culinária visa ao prazer do corpo. O autômato

que visa ao prazer é uma contrafação da máquina, que visa a um

produto ou obra útil. A retórica visa à sedução e ao prazer e se

opõe à dialética, que visa ao saber e à verdade. Em Políticos, Platão

afirma que é preciso manter a diferença entre técnica e experiência

e vai hierarquizar a tácnica:

1 – técnica como poiesis, como fabricação ou artesanato

(demiurgia) – técnicas produtivas humanas e divinas, que fabricam

os objetos a partir da potencialidade das coisas

2 – técnica como noiesis, como conhecimento, empregada

para adquirir conhecimentos téoricos (a matemática, por exemplo)

e práticos (a ética e a política) e aquelas com capacidade crítica (a

dialética). As técnicas noéticas, portanto, são diretivas, dirigem e

subordinam, as técnicas poiéticas ou de fabricação.

No Sofista, existe uma distinção entre técnica como noéti-

cas e técnicas poiéticas. No Sofista, Platão vai acrescentar mais 2

distinções: as técnicas de aquisição (caça e pesca, que não fabricam

nada, mas exigem regras e procedimentos específicos) e as técnicas

que exigem aquisição de conhecimento (a geometria, a astronomia,

a música). Além disso, as técnicas de uso, que são aquelas para se

conhecer ou guiar o bom uso das técnicas de fabricação e de aqui-

sição (a dialética e a política). É nesse diálogo que Platão retoma a

distinção dos 2 tipos de mimesis (a boa mimesis e a contração): a

técnica poiética ou fabricadora realiza uma mimesis, ou seja, ao

artesão é oferecido o conhecimento do paradigma ou do modelo da

coisa que ele tem que fabricar. Sua tarefa é aprender os procedi-

mentos para atualizar a dynamis da coisa para que ela realize um

modelo – a mimesis é aqui uma gênese do objeto técnico pela

imitação do seu paradigma. É por isso que pode haver 2 tipos de

mimesis, a verdadeira, que faz com que a coisa natural seja uma

cópia fiel do modelo, e a falsa mimesis, que faz aparecer não a

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cópia fiel, mas o falso remédio, a poção (é uma imitação da imita-

ção – aqui a técnica é ilusão, aparência, falsidade, mentira). Os

eidola são o objeto da fúria de Platão: em primeiro lugar, como

eidola, o trabalho dos sofistas, e tb os autômatos e as artes (escultu-

ra, pintura, retórica, poesia, teatro). Tudo isso é simulacro, imitação

da imitação. Por isso, os artistas não têm lugar na República de

Platão, nem os sofistas.

Resumindo o quadro platônico, a técnica é uma ciência, um

saber cuja finalidade é atualizar na coisa natural uma possibilidade

natural inscrita nela para que ela alcance a sua excelência. Para

isso, a técnica é uma ação mimética, que deve aproximar a coisa

natural do seu paradigma inteligível. Para fazer isso, realizar essas

2 finalidades, a técnica opera de 2 maneiras sucessivas: pelo esta-

belecimento da concordância entre a coisa e o modelo e pela

comunidade dos fins. Ou seja, a operação técnica só é perfeita e

adequada qd estabelece a harmonia, o acordo e a concordância

entre os elementos contrários e as partes contrárias que constituem

todo ser sensível (todo ser sensível é constituído de contrários

porque ele é uma mescla de ser e não ser). Par Platão, então, a

primeira tarefa da técnica é pacificar os conflitos que constituem

um ser estabelecendo uma proporção e um equilíbrio entre os

componentes. A técnica visa à harmonia, à simetria e à proporção

de uma coisa. O núcleo da operação técnica, seja ela qual for, é a

matemática. Em segundo lugar, a técnica deve produzir em cada

ser uma comunidade entre as suas partes e entre os vários seres,

uma comunidade de relações entre eles. Ela deve estabelecer uma

relação regrada e hierárquica de funções entre as partes ou se um

ser ou entre vários seres relacionados. Tem que fazer isso para

obter um todo ordenado. A medicina é o

melhor exemplo dessa realização.

Tb aparece no Político, a técnica como atividade social,

submetida aos conflitos sociais, que podem lhe desfigurar. Por isso,

é preciso uma ação diretiva sobre ela. E a política é isso, uma

técnica diretiva de ação, orientada pela técnica dialética e pela

técnica de conhecimento (epistéme) e deve governar as técnicas

produtivas para o bem da pólis.

ARISTÓTELES - Diferentemente de Platão, Aristóteles

não concebe a epistéme como uma técnica de conhecimento direti-

va das demais técnicas. Pelo contrário, ele vai separar drasticamen-

te e rigorosamente a epistéme (o saber filosófico e científico) do

saber técnico. O saber filosófico e científico é teorético, ou seja, é

um saber conforme o objeto ou a natureza de um ser examinado

pelo conhecimento. O conjunto dos saberes teoréticos divide-se em

3 grandes saberes ou ciências teoréticas: a física, a matemática e a

filosofia primeira (metafísica), a mais alta das ciências teoréticas,

aquela que estuda o ser enquanto ser. As ciências teoréticas abran-

gem o conhecimento dos seres naturais (a física ou compreende

biologia, botânica, zoologia, psicologia, cosmologia, isto é, todos

os seres da natureza. Abrange os conhecimentos matemáticos, e o

conhecimento dos primeiros princípios e das primeiras causas de

todas as coisas, isto é, o ser puro e imóvel, Deus). As ciências

teoréticas são aquelas cujos objetos existem independentemente da

vontade ou ação dos homens. É por isso, que a única coisa que os

homens podem fazer com relação a esses objetos é contemplá-los.

É o conhecimento contemplativo, já que esses objetos não depen-

dem da nossa ação para existirem.

Há um outro conjunto de ciências que, sendo ciências, são

teóricas, mas não são teoréticas, isto é, não são o conhecimento

daquilo que depende da ação e da vontade dos homens, - economia,

ética e política. Aristóteles para se referir às ciências cujo objeto

depende da ação humana divide essas ciências em práticas e pro-

dutivas.

Diz Aristóteles, toda e qq ciência só é ciência se investiga

os princípios e as causas e a essência dos seres que são o seu objeto

de estudo. Só há ciência qd conhecemos segundo as causas (nos 4

sentidos). Esse é o lema de Aristóteles, que diz que para cada

gênero de ser existe um tipo determinado de ciência. Para ele é

impensável a ideia de física matemática (cada gênero de ser não

pode ser confundido com o ser de um outro gênero). Para cada

gênero de ser existe uma ciência. Essa diferença na natureza das

coisas investigadas, faz com que os princípios e as causas em cada

ciência sejam diferentes. Por isso, ele classifica as ciências em 3

grandes grupos: as ciências teoréticas, cujo fim é a verdade, as

ciências práticas, cujo fim é o bem humano, as produtivas cujo fim

é uma obra. O saber teorético é o conhecimento do universal e do

necessário (não existe ciência do particular e do contingente), é

o conhecimento da essência das coisas, é conhecimento do princí-

pio e das causas de todos os seres e um conhecimento de 2 tipos de

seres, os imóveis, Deus e os astros, e os móveis (um tipo bem

preciso, aqueles que têm na sua própria natureza o princípio do

movimento, que mudam sempre, os seres naturais estudados pela

física). As ciências práticas, ao contrário, são aquelas cuja causa é

o homem como agente da ação, mas ação cuja finalidade é o pró-

prio homem, e que dependem de uma decisão humana. O objeto

dessa ciência é particular e contingente. São aquelas cujo agente, a

ação e a finalidade da ação são uma coisa só, inseparáveis. O obje-

to dessa ciência é a práxis, uma atividade que não produz algo

diferente do agente e cuja causa é a vontade humana entendida

como escolha livre, racional e deliberada. São ações que visam

alcançar o bem do próprio agente (economia, ética e política) . As

ciências produtivas referem-se à ação fabricadora. Em grego, essa

ação é poiesis. São conhecidas como ciências poiéticas. A poiesis

difere da práxis porque nela o agente, a ação e o produto da ação

que o agente realiza são 3 termos diferentes e separados. A finali-

dade ação está na obra, no produto ou no artefato ou numa ação

dirigida a um outro e não no próprio agente (por exemplo, a medi-

cina). Na práxis há uma interioridade entre ação, agente e o resul-

tado da ação, na poiesis há uma exterioridade.

As ciências produtivas não lidam apenas com o possível,

como as práticas, nem apenas com o particular. Lidam sobretudo

com o contingente, o imprevisível, o acaso. São conhecimentos

para vencer o acaso. A ação produtora ou fabricadora realiza uma

finalidade; o fim, que é o critério da ação, é o paradigma daquilo

que vai ser fabricado ou daquilo que se vai fazer. O paradigma ou

modelo oferece às técnicas um conjunto de procedimentos corretos

(um método) pelos quais o técnico pode operar com regularidades e

tornar racionais, menos inseguras e instáveis, menos contingentes

Page 24: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

24

as coisas sobre as quais ele vai agir. Na Ética a Nicômaco, Aristó-

teles caracteriza a técnica da seguinte maneira: sua origem é a

experiência, mas não qq experiência, mas apenas aquela generali-

zada, que conhece as causas para a produção de uma obra, mas não

conhece o porquê a produção, que pertence à ciência teorérica ou à

prática ou ao usuário da obra.

A técnica se distingue da metafísica porque o objeto da

metafísica é aquilo que não está submetido à gênese, não se trans-

forma. Tb se distingue da física porque o objeto da física é o uni-

versal e o necessário. A técnica se distingue da práxis pq a práxis

tem por objeto a interioridade entre agente, ação e finalidade.

As ciências produtivas são aquelas que se referem a um

aspecto particular da capacidade fabricadora do homem. Por isso,

são tão numerosas quanto as possibilidade produtivas dos seres

humanos.

O que distingue Aristóteles de Platão e dos sofistas? Es-

ses 2 últimos colocam na multiplicidade dos objetos as possibilida-

de técnicas. Aristóteles coloca no ser humano, nas potencialidades

de intervenção dos seres humanos. Ele vai buscar no técnico e não

na coisa, a pluralidade das técnicas. Não é a coisa que suscita a

pluralidade das técnicas, é o ser humano. Do que ele é capaz?

Na técnica operam as 4 causas. Isso foi visto no texto do

Heidegger:

- causa formal, a forma ou essência

- a causa material, a matéria de que é feita

- a causa motriz, que faz a forma penetrar na matéria e

- a causa final ou finalidade da coisa.

Na técnica, a causa material é aquilo de que a obra é feita.

A causa formal é aquilo que dá à obra o seu aspecto acabado; a

causa final é o uso a que se destina a obra e a causa motriz é o

técnico. Aristóteles considera que para cada coisa existe uma forma

acabada ou perfeita que serve de modelo ou paradigma para a ação

do técnico ( a forma perfeita de saúde para um médico).

“A técnica é um estratagema para vencer um obstáculo na-

tural” - Aristóteles recupera todo o campo da métis.

Mas ainda há algo mais inovador que ele deixará para a

Renascença: a natureza aspira a identidade consigo mesma, sem

mais ter que mudar, mover-se, seu télos, aquilo que a faz mudar, é

o desejo do imóvel. A natureza não pode realizar o seu desejo. Está

imersa em uma impotência que a impede. Imitar a natureza agora

significa que a técnica vai além da natureza para ajudá-la a realizar

o seu desejo de perfeição e imobilidade: aquilo que a natureza

deixada a si mesma nunca poderia realizar (um dos núcleos do

pensamento renascentista sobre a técnica).

Aula 04 (27-08-2012)

Marilena justifica por qual razão fará um resumo da técnica

na Idade Média (14 séculos de pensamento) antes de

entrar na Renascença. Pretende apresentar o modo como o pensa-

mento sobre a técnica a partir de Aristóteles consolidou-se e siste-

matizou-se nos séculos 11 e 12, principalmente.

Vou destacar 3 aspectos no pensamento a respeito da técni-

ca nesse longo período de tempo. O primeiro é a sua relação com a

teologia; o segundo, a distinção entre técnica divina e técnica

humana; e o terceiro, a relação entre técnica e natureza. A pala-

vra que começaremos a usar agora, já que a filosofia vai começar a

falar latim, é ars, tradução correspondente em latim para o termo

técnica. Daqui por diante, falarei em arte e somente em casos

muito excepcionais, direi belas artes, porque essa noção de belas

artes só surgirá no século XVIII. Antes desse período, o termo artes

era empregado para referir-se a todas as técnicas.

O primeiro aspecto é o da técnica inseparável da teologia,

porque Deus cria o mundo a partir do nada. Nos textos medievais,

Ele é chamado de artífice magno, pintor e arquiteto. E como se

dá a técnica divina? No seu intelecto, Deus tem as ideias que con-

cebe desde toda a eternidade, que estão no seu intelecto desde

sempre e foram concebidas por Ele como essências universais (e

por que universais? Do pensamento grego, sobretudo de Platão e

Aristóteles, vem a ideia de que para conhecer alguma coisa singu-

lar ou particular é preciso que essa coisa seja dotada daquilo que a

individualiza, e isso não pode ser a sua essência, porque ela, a

coisa, compartilha tal essência com outras coisas; então, o que a

individualiza é a matéria: as coisas são individualizadas graças aos

seus corpos. Ora, isso significa que eu só conheço coisas particula-

res por meio da sensação, pois é ela que me permite acesso ao

corpo material externo ou ao meu próprio corpo. Deus é puro

espírito e, portanto, não tem sensação; sendo assim, não conhece as

coisas particulares.

Aqui Marilena diz que abrirá um parêntese: Deus só co-

nhece os universais. Isso não seria nenhum problema para os ju-

deus nem para os apóstolos. Gregos, bizantinos e a elite romana

convertem-se ao cristianismo para pensá-lo com os conceitos da

filosofia. Não é possível tal associação – crença tribal e filosofia –

para explicar universal do cosmos. Uma das catástrofes dessa

associação é essa: Deus só conhece os universais. Aristóteles diria

isso sem dificuldade, pois o Deus da filosofia grega não tem qual-

quer relação com os homens nem com o mundo; o demiurgo de

Platão também não. Esses deuses não tinham que se relacionar com

os homens. O Deus judaico-cristão, no entanto, é pura relação com

os homens. Cria o mundo, vigia e pune o homem, promete o Mes-

sias, faz mil coisas! Há uma relação de Deus com os homens e com

cada homem. Não há relação mais pessoal nem direta que essa!

Como juntar isso e um Deus que só conhece os universais? Pelo

mistério da fé. Cada vez que não se pode explicar algo, recorre-se a

um mistério da fé. Creio porque é absurdo (Sto. Agostinho). Se

não fosse absurdo, eu entenderia, como eu não entendo, eu só

posso crer; a crença está ligada à noção de absurdo.

Deus tem desde toda a eternidade as ideias, que são as es-

sências universais de tudo o que é possível. No momento da cria-

ção, a vontade onipotente de Deus toma as ideias concebidas pelo

intelecto divino como um protótipo de todas as coisas, e por esse

ato da vontade onipotente, Deus cria o mundo a partir do nada. O

mundo, então, é obra do pensamento divino, do seu intelecto, da

Page 25: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

25

sua vontade onipotente. O mundo, então, é uma obra especulativa,

ou seja, é produzido do nada pela sabedoria divina. Deus, como o

arquiteto supremo opera segundo a harmonia, a proporção, a ordem

e a simetria, porque ele é um geômetra. Deus cria, portanto, o

mundo, porque ele é um arquiteto e um geômetra. O mundo é uma

obra técnica, mas de natureza especulativa porque é o saber divino

que cria o mundo. Isso nos introduz ao segundo tema, que é a

diferença entre a arte divina e a arte humana. Essa diferença é de

ordem quádrupla: primeiro, a arte divina é criadora, cria a

forma e a matéria das coisas. A arte humana é fabricadora, coloca

uma forma numa matéria preexistente. Em segundo lugar, a arte

divina é especulativa: Deus pensa e o mundo é criado pelo simples

fato de Deus o pensar. Por isso, a criação é um fiat: Deus pensa e o

seu pensamento é traduzido como “faça-se”. Ao contrário, a técni-

ca humana é produtiva, isto é, é uma operação regulada pelas 4

causas. Em terceiro lugar, na arte divina, a forma que é impressa na

matéria é chamada de forma subsistente, isto é, quando a matéria

perece, a forma não se dissolve junto com ela porque a forma é

uma ideia divina imperecível, é uma essência eterna que recebe

uma existência particular no momento da criação, e que retorna à

sua condição de essência pura qd a matéria na qual estava inserida

desaparece. Portanto, a forma subsiste antes da matéria e depois

dela. Ao contrário, na arte humana, a forma impressa na matéria é

chamada de inerente, ou seja, dissolve-se qd a matéria na qual ela

está perece. A obra dissolve-se por inteiro.

Marilena abre um outro parêntese: Guilherme Ockam

opõe-se a toda essa tradição: ‘eu não posso separar intelecto e

vontade divinos, que são inseparáveis. O intelecto

divino, porque idêntico à vontade divina, está sempre em criação.

Então, se não há diferença e Deus está em constante criação, não

existem ideias como essências universais guardadas no seu intelec-

to. Toda ideia pensada por Deus, desejada por sua vontade, é sem-

pre singular. Só existem ideias singulares. Ockam irá dizer, então,

que a noção de mundo como uma ordenação articulada de nexos

causais entre as coisas é uma criação da mente humana. Somos

nós que fazemos as generalizações, as universalizações; o mundo é

, na verdade,uma coleção de singularidades, sem articulação ne-

nhuma. Por isso, diz Ockam, Deus pode criar e aniquilar algo sem

que o mundo mude (na teoria de cosmos articulado, se Deus ani-

quilasse uma das coisas por Ele criada – a lua, por exemplo, tudo ia

se desarticular. No mundo pensando por Ockam, como Deus só

cria singularidades, Ele pode aniquilar as coisas, sem que isso faça

a menor diferença. O poder de criação e aniquilação é idêntico.

Mas a condição para pensar dessa maneira envolve passar da ideia

de separação do intelecto e vontade divinos e a ideia de que há

essências universais. “Fechei o ()”.

O quarto ponto da diferença entre a arte divina e a arte hu-

mana decorre de uma semelhança entre ambas. Ambas são míme-

sis, ou seja, tanto em Deus qt no homem, a forma, a ideia, o mode-

lo, o arquétipo, o protótipo, o paradigma (todos são termos sinôni-

mos), existem primeiro no espírito do artífice. A coisa criada por

Deus e a coisa fabricada pelo homem são a materialização de uma

ideia, e nisso as duas artes são iguais. A coisa imita ou mimetiza o

seu modelo. Entretanto, vai haver uma diferença nesses 2 tipos de

mímesis: Deus cria as próprias ideias, as formas, os modelos.

O homem recebe no seu entendimento a ideia da coisa sob a forma

de um modelo que ele deve seguir para fabricar a obra. Portanto, o

intelecto divino é agente, cria a ideia, e o intelecto humano é paci-

ente, recebe a ideia como um modelo que ele deve realizar. Além

disso, não só as ideias, ou a ideia da obra, mas tb as máquinas, os

instrumentos preexistem na mente do artífice como modelos que

ele precisa compreender antes de agir. Ora, na arte divina nada

preexiste. Será mantida a ideia aristotélica de que o técnico é um

mediador entre o modelo preexistente e a obra produzida por ele.

Ele é o meio pelo qual um modelo se concretiza em uma obra. Uma

forma se imprime em uma matéria. O outro ponto é a relação entre

a técnica e a natureza. Na natureza, a forma, que é a ideia das

essências das coisas, preexiste às coisas, está no intelecto divino,

de tal modo que um ser pode engendrar um outro ser da mesma

espécie ou gênero que ele. O homem engendra o homem, o

cavalo engendra o cavalo, a roseira engendra a roseira e assim por

diante. Engendrar significa transmitir para uma outra matéria a

mesma forma. A mesma forma pode ser transmitida porque a for-

ma preexiste ao engendramento. A natureza, portanto, pressupõe a

forma como algo anterior a ela e que ela transmite. Ora, na técnica,

a forma tb preexiste à obra, mas apenas porque ela existe primeiro

no espírito do técnico, que vai imitá-la no momento da fabricação.

E é essa diferença no modo pelo qual a forma preexiste na natureza

e na técnica que permite conservar a afirmação aristotélica que a

arte imita a natureza. Por que? Em primeiro lugar, porque age

como a natureza, introduz uma forma numa matéria. Porém, na

natureza, que é um artefato divino, a forma subsiste (por isso ela

pode ser transmitida pelo engendramento), enquanto que na técni-

ca, tanto a forma qt a matéria são perecíveis.

A Idade Média conserva a divisão das artes proposta pelos

romanos, isto é, a divisão entre as 7 artes liberais, aquelas pratica-

das pelos homens livres, e as artes mecânicas ou servis. As artes

liberais vão formar o curriculum na educação do jovem romano e

depois serão sistematizadas por Varrão para constituírem-se no

currículo das universidades medievais. O quadrivium, primeira fase

do aprendizado, é constituído por 4 artes: aritmética, geometria,

astronomia e música ou harmonia. O trivium é constituído por 3

artes, a lógica, a dialética ou eloquência e a filosofia. A filosofia,

por sua vez, permaneceu dividida em teorética (física e teologia) e

prática (ética e política). Por razões óbvias da estrutura da socieda-

de latina e medieval, as artes mecânicas não entram no currículo de

formação do jovem romano nem na formação universitária medie-

val; não pertencem ao campo do saber, pertencem ao campo da

experiência, de uma experiência submetida a regras, preceitos e

procedimentos. São artes mecânicas a medicina, a pintura, a escul-

tura, a construção, a serralheria, a carpintaria, a olaria, a agricultu-

ra, a tecelagem, ou seja, tudo o que envolvia o uso do corpo. Os

artesãos são aqueles trabalham com as mãos e os pés, são os servos

da Idade Média (isso só muda quando surgem os burgos e, no seu

interior, os artesão livres). São artes servis, inferiores, que nenhum

homem livre deve fazer. Tudo o que nós dissemos a respeito da

técnica na sua relação com a natureza refere-se às artes liberais, só

muito parcialmente refere-se às artes mecânicas.

Os técnicos são chamados, a partir do termo grego mecha-

né, de mecânicos ou homens hábeis, e estão inicialmente na servi-

Page 26: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

26

dão (e, posteriormente, nas corporações de ofícios no interior dos

burgos, que são altamente hierarquizadas, e onde os procedimentos

são segredos a serem transmitidos exclusivamente aos seus mem-

bros. Quero fazer aqui uma observação sobre essa hierarquia das

artes mecânicas: por que até ela hierarquizadas? Porque a socieda-

de medieval tb é totalmente hierarquizada. Na fase inicial de con-

versão ao cristianismo pelo Império Romano, uma obra neoplatô-

nica importantíssima é produzida por Dionísio de Aropagita, “A

Hierarquia Celeste”. É ele quem introduz a ideia de um mundo

divino hierarquizado – pela influência neoplatônica de mundo

hierarquizado. A partir da noção neoplatônica de universo como

uma hierarquia de emanações (então, tem-se o impronunciável, do

qual emana o intelecto, do qual emana a inteligência, da qual ema-

na o ser, do qual emana a forma, da qual emana a matéria, da qual

emana os corpos, dos quais emanam as trevas, isto é, o universo

está hierarquizado em termos neoplatônicos da luz pura às trevas).

Cada um desses momento é um grau de perfeição, de realidade.

Essa noção é aplicada pela Dionísio ao mundo celeste. Depois, os

teólogos e juristas medievais vão aplicar isso à sua sociedade me-

dieval. Os teólogos colocam no topo Deus que, por um eflúvio dá

como graça o poder aos homens (que perderam todo e qualquer

poder depois do pecado de Adão). Se há homens com poder é por

graça divina. Para enviar a sua graça, Deus tem um mediador, que

não precisou receber graça nenhuma, foi diretamente escolhido

para ter essa função: o papa). O papa recebe de Deus o direito de

distribuir o favor divino (para o rei, os barões, com toda a hierar-

quia dentro do baronato, os homens livres, que são os artesãos dos

burgos e os servos. Esta hierarquia não se move, ninguém passa de

um nível para o outro. É inconcebível mover-se do lugar estabele-

cido por Deus. Essa concepção de hierarquia cósmica, que é neo-

platônica, hierarquia celeste e hierarquia terrestre, irá impor uma

hierarquia das artes, com as liberais superiores às mecânicas, que tb

serão hierarquizadas. É importante lembrar essa hierarquia socio-

política, que só será destruída pela Reforma Protestante, pelo se-

guinte: como é o papa quem dá ao rei a condição de rei, alguém só

se torna rei no momento em que há uma sagração feita pelo papa e

a coroação feita por ele. Durante 15 séculos, é o papa quem faz

surgir o imperador, graças à sagração: os barões escolhem entre os

seus pares um para ser sagrado rei e coroado imperador. A sagra-

ção consiste em ungir o óleo com que Davi e Salomão foram sa-

grados reis. Só poderá ser rei aquele ungido pelo papa. Feito isso,

ocorre a coroação pela qual o ungido torna-se imperador. Na ceri-

mônia da coroação, o papa tem o direito de coroar o rei porque

Constantino fez uma doação (famosa) no momento em que se

converteu ao Cristianismo: entregou a coroa, o cetro, o anel e o

manto. Graças a essa doação, o papa é o detentor dos sinais do

Império. O papa põe a coroa, dá o cetro, põe o anel e cobre com o

manto. (Nós vamos ver que, quando Lorenzo Valla escreve seus

estudos filológicos, ele demonstrará que a doação de Constantino

foi forjada, é uma falsificação, porque as palavras latinas emprega-

das não são aquelas empregadas no Império, são um latim medie-

val popular. Exemplo: a palavra para designar coroa é tiara, que é

uma fita que os escravos usavam para segurar o cabelo e trabalhar.

Então, na língua popular, as pessoas diziam tiara. O teólogo que

falsificou os textos usou este termo. A doação é forjada da primeira

à última linha e isso só será demonstrado na Renascença, graças

aos estudos de filologia. A Renascença vai demolir a Idade Média,

pedra por pedra, em cada um dos seus aspectos, graças a mil e uma

atividades técnicas, uma das quais a filologia).

Nos seus escritos, os mecânicos mostram que foram capa-

zes de inventos formidáveis: o moinho de vento, de água, a primei-

ra bússola, a ferradura, o estribo, o relógio, novos procedimentos

para a construção de canais, novos procedimentos de metalurgia

para a fabricação de armas e as catedrais. No entanto, esses escri-

tos, por meio dos quais soube-se como cada um dos inventos foi

pensado, são receitas empíricas, manuais de fabricação destinados

a resolver os problemas que um técnico encontrasse no momento

do seu trabalho, ou seja, não há uma teoria mecânica, não há qual-

quer colaboração entre os mecânicos e os teóricos. No caso da

Idade Média, diferentemente do que ocorreu na Grécia, não há

relação entre os mecânicos e o geômetra, o arquiteto, o astrônomo,

ou o físico, como na Grécia. Essa distância entre as artes liberais e

mecânicas foi tematizada por inúmeros autores medievais e siste-

matizada sobretudo por Tomás de Aquino, que hierarquizou os

conhecimento e as práticas segundo a importância dos seus fins e a

autonomia para se alcançar esses fins: o fim mais nobre é o espiri-

tual (quando se tem o espiritual pelo espiritual, tem-se a arte mais

nobre, a Teologia) e o mais vil é o prático. Portanto, as artes mecâ-

nicas são chamadas artes vis, feitas pelos vilões nas vilas. No topo

da hierarquia encontra-se o saber cuja finalidade é ele mesmo, e

não depende de outros para se realizar, é o mais autônomo, que é a

Teologia. Por esse critério, todos os demais serão hierarquizados:

no ponto mais baixo, encontra-se a experiência dos artífices, que é

corporal, dependente, não apenas da matéria com a qual se vai

trabalhar, mas também do usuário. Não há autonomia alguma,

como o que ocorre com o corpo, que é uma atividade dependente e

não autônoma, a mais baixa e vil de todas. Uma das tarefas da

Renascença será quebrar essa hierarquia, acabar com a divisão

entre as artes liberais e as artes mecânicas, transformar todas as

artes em liberais (o que será tratado pelo tema que eu espero poder

tratar hoje: “dignidade das artes” – dignitas em latim quer dizer

algo objetivo) . Quando falei sobre a técnica na Grécia, eu apresen-

tei 2 textos, um do Heidegger e outro do Vernant. Hoje eu vou

abordar também 2 textos, um do Panofsky (renascimento das artes)

e outro do Colombero (renascimento filosófico). Vou ler e fazer

comentários.

Começarei pelo texto (trechos) de Panofsky, que se chama

Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental, fazendo alguns

comentários (Panofsky utiliza o termo no plural porque examina 2

renascimentos que ocorrem durante a Idade Média, um com Carlos

Magno e o outro no século XII).

“Como todos sabem, e foi reconhecido pelos próprios con-

temporâneos, a ideia de uma revivescência sobre a influência dos

modelos clássicos foi concebida e formulada por Petrarca, impres-

sionado mais do que as palavras podem exprimir, pelas ruínas de

Roma e com uma grande consciência do contraste entre um passa-

do de grandeza que se espelhava no que restava da sua arte e litera-

tura e na memória viva de suas instituições e um presente deplorá-

vel, que enchia Petrarca de dor e indignação e despreza, ele elabo-

rou uma nova versão da história. Aquilo que os pensadores cris-

Page 27: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

27

tãos, antes dele, tinham concebido como uma evolução contínua,

começando com a criação do mundo e chegando até a própria

época do escritor, viu ele como claramente dividido em 2 períodos,

o clássico e o recente, compreendendo o primeiro as historiae

antiquae e os últimos, as historiae novae. E a concepção que seus

antecessores tinham dessa evolução contínua como um constante

progresso das trevas pagãs para a luz, que era Cristo, quer o nasci-

mento deste fosse referido à última das 4 monarquias de Daniel,

quer à última das 6 idades correspondentes aos 6 dias da criação,

quer à última das 3 eras, tal interpretação foi contrariada pela inter-

pretação de Petrarca, que viu no período em que o nome de Cristo

começou a ser celebrado em Roma e ser adorado pelos Imperado-

res Romanos, o princípio da idade das trevas, de decadência e do

obscurantismo, enquanto que o período anterior, que para ele era

simplesmente o período da Roma real, republicana e imperial,

havia uma idade de luz e de glória.”

Antes de prosseguir, há duas observações que são muito

importantes neste texto. A primeira é a seguinte: a caracterização

desse período como um período de trevas será feita por Petrarca em

‘300’ (conjunto de 300 sonetos), que começa no instante em que

os imperadores romanos convertem-se ao Cristianismo. Portanto, a

idade das trevas começa em um momento muito preciso, o Império

Romano do Oriente, com Bizâncio, em Constantinopla. O contra-

ponto a isso é a perfeição da Roma Republicana Imperial, da qual

só restam agora as memórias, os monumentos destruídos e os

fragmentos que foram recuperados da literatura e da filosofia. É

isso que Petrarca vai glorificar. A segunda observação, que eu irei

retomar quando for analisar a palavra renascimento, é a observação

do Panofsky de que Petrarca introduz uma nova concepção de

história quando a divide em 2 grandes períodos, história antiga e

nova, havendo entre uma e outra algo no meio, a idade do meio, a

Idade Média. O importante é o seguinte: que mudança foi empre-

endida por Petrarca? Panofsky vai referir-se a uma mudança com

relação à elaboração cristã (e eu irei completar essa observação

com o modo como ele recupera a concepção grego-romana do

tempo, mas isso ficará para mais adiante). O que diz Panofsky?

Como a Idade Média e o Cristianismo concebem a história? Nós

sabemos que, tanto para os gregos quanto para os romanos, a histó-

ria é sempre algo que se refere ao particular (isso foi referido inclu-

sive por Aristóteles), a um acontecimento determinado a respeito

do qual se tem a memória, e o bom historiador ou é aquele que foi

testemunha ocular do acontecimento, ou entrevistou testemunhas

oculares. Assim, não pode haver uma distância temporal muito

grande entre o historiador e o seu relato, é preciso que ele tenha

visto ou conheça testemunhas que viram o acontecido. Esse acon-

tecimento é singular e, em geral, uma guerra (a guerra de Troia, a

guerra entre gregos e persas, entre Esparta e Atenas, as guerras de

Roma contra Cartago, ou seja, o objeto da história, esse objeto

singular narrado, é uma guerra, porque o que se narra é um aconte-

cimento que modificou inteiramente as condições anteriores e

produziu condições novas – é por isso que a guerra é o centro da

narrativa. Isso não está relacionado, portanto, à ideia de que há um

tempo que corre, à ideia de que um acontecimento causa um outro,

que causa um outro, ou seja, de que há uma relação causal para

produzir aquele acontecimento que, uma vez terminado, leva con-

sigo a cadeia causal. Para nós é difícil entender isso porque somos

herdeiros da concepção judaico-cristã da história, que será rapida-

mente mencionada por Panofsky e que eu irei apresentar com um

pouco mais de detalhes.

Ao lado desse tempo fragmentado, singularizado de que a

história trata, existe o tempo, o verdadeiro tempo, o tempo circular,

o tempo do retorno (do dia para a noite, as 4 estações do ano, que

se repetem, o movimento da lua, do sol, dos planetas, enfim, tudo

que se realiza sob a forma do retorno contínuo é o tempo, cuja

forma é o círculo, sem começo nem fim). Para nós é difícil pensar

um tempo sem começo nem fim, porque estamos acostumados com

a ideia de que tempo é aquilo que sem um término. O contraponto

a essa concepção circular do tempo é a concepção judaico-cristã

(a formulação cristã está na dependência do que está no Antigo

Testamento). A primeira formulação tem como pressuposto a ideia

de que o tempo é o modo de relação de Deus com o homem ou do

homem com Deus. Por isso, o tempo está escandido em 6 eras, que

constituem a semana cósmica, e que exprimem a relação de Deus

com o homem: a criação, a queda, o dilúvio, os patriarcas, Jesus e o

juízo final. A ideia é de um tempo linear, e não circular, dotado de

finalidade. A finalidade é a redenção, após a queda, e o juízo final,

quando tudo acaba. A outra versão, tb mencionada por Panofsky, é

aquela do livro de Daniel - os 4 impérios ou monarquias - cuja

concepção continuará em todas as versões proféticas milenaristas

messiânicas do Cristianismo medieval. Daniel interpreta um sonho

do rei no qual ele viu um enorme gigante com cabeça e outro,

tronco de bronze, braços de prata, pernas de ferro e pés de barro. O

rei viu uma pedra (a pedra gloriosa) ser lançada. Essa

pedra atinge os pés de barro do colosso, que desmorona. A inter-

pretação de Daniel é a seguinte: trata-se de 4 impérios ou monar-

quias do seu tempo. Daniel diz que a pedra gloriosa é o quinto

império, a quinta monarquia, aquela que virá para ser eterna. Os

judeus dizem que a pedra gloriosa é Israel e os cristãos dizem que é

Jesus Cristo. Há, então, uma periodização da história segundo 4

grandes formas despóticas de poder, até a chegada de um quinto

poder, que será bom e perfeito, e durará mil anos. Segundo alguns

intérpretes, após esses mil anos, Jesus descerá do céu para a grande

batalha do Armagedon contra o anticristo; finda a batalha, vem o

juízo final. Há uma periodização da história segundo a mudança da

forma de poder: passa-se da tirania à liberdade, que produz mil

anos de felicidade ao final dos quais encontra-se a a felicidade.

Há também uma outra periodização mencionada por Pa-

nofsky, que é feita por Paulo, depois por Agostinho e retrabalhada

por Joaquim de Fiori. Que elaboração é essa? Trata-se de uma

elaboração jurídica envolvendo 3 eras: a era antes da lei, de toda a

humanidade até Moisés, a era sob a lei, que vai de Moisés até o

nascimento de Cristo, e a terceira era, sob a graça, a era cristã.

Joaquim de Fiori irá propor uma outra periodização para essas 3

eras: a primeira era, ou era anterior à lei, ou era dos patriarcas e dos

homens casados, a segunda era, a era sob a lei, ou era do mundo

politicamente organizado, sobretudo a partir de Moisés, e a terceira

era, ou era sob a graça, ou era da ciência e do saber. Para isso,

Joaquim de Fiori irá recorrer a 2 textos, um de Daniel e outro de

Isaías, que dizem mais ou menos a mesma coisa: os homens esqua-

Page 28: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

28

drinharão toda a Terra e conhecerão todos os segredos que estão

escritos no livro do mundo. Então, Jesus Cristo virá pela segunda

vez e o mundo acabará. O que significa, então, esquadrinhar a

Terra e conhecer os segredos do mundo? Os grandes navegadores

estavam convencidos de que estavam esquadrinhando os segredos

do livro do mundo e que, ao chegarem ao novo mundo, Cristo

voltaria. Os navegantes estavam convencidos de terem chegado ao

paraíso. E é essa concepção de tempo que Petrarca nega, afasta

na Renascença (mas que não chegou a desaparecer completamente,

porque nós veremos mais adiante que ela reaparecerá com Fran-

cis Bacon no final da Renascença e início de era Moderna cuja

ideia é a de que chegamos à terceira era, a era do saber ou da ciên-

cia. Ele está convencido disto).

Petrarca, então, irá fazer uma concepção da história como

um movimento temporal linear, dotado de finalidade e com um

término, não para recuperar a concepção greco-romana da história

(outros irão recuperá-la), mas para partir o tempo e em 2 histórias,

a antiga ou luminosa, e a nova, que vai regressar a essa luminosi-

dade, e entre uma e outra, a treva.

Eu prossigo no texto do Panofsky: “A consciência cristã de

Petrarca não poderia deixar de se dar conta, pelo menos em certos

momentos, de que uma tal concepção da antiguidade clássica,

como uma idade de puro esplendor, e da era que começou com a

convenção de Constantino como uma idade de obscura ignorância,

equivalia a uma total subversão dos valores estabelecidos. Ele

estava, porém, tão profundamente convencido do fato de que a

história nada mais era do que o louvor de Roma, que não podia

abandonar o seu ponto de vista. E, ao transferir para o terreno da

cultura intelectual precisamente os mesmos termos que os teólogos,

os padres da Igreja e a própria Sagrada Escritura tinham aplicado

ao estado da alma lux et sol por oposição a nox et tenebrae, desper-

tar por oposição a torpor, visão por oposição a cegueira, ao afirmar

que os romanos pagãos é que tinham caminhado na luz e os cris-

tãos nas trevas, Petrarca revolucionou a interpretação da história

não menos radicalmente do que Copérnico 200 anos mais tarde

haveria de revolucionar a interpretação do Universo. Petrarca

olhava para a cultura em geral, e a clássica em particular, com os

olhos do patriota, do erudito e do poeta. As próprias ruínas de

Roma não provocavam nele o que nós chamaríamos de uma reação

“estética”. Não obstante a sua admiração pessoal pelos grandes

pintores do seu tempo, pode-se afirmar, sem grande de injustiça,

que a sua concepção da nova era pela qual ele ansiava, era larga-

mente em termos de regeneração política e, sobretudo, uma purifi-

cação da gramática e da dicção latinas, uma ressurgência do grego,

um regresso dos compiladores e comentadores e autores medievais

aos antigos textos clássicos.Uma tal definição restrita do Renasci-

mento não foi, contudo, a que prevaleceu entre os herdeiros e

sucessores de Petrarca. Por volta de 1500, o conceito da grande

revivescência tinha já incluído praticamente todos os ramos da

cultura, e esse alargamento principiara sob os olhos do próprio

Petrarca com a inclusão das artes visuais, a começar pela pintura. A

ideia condensava na expressão de Horácio, na pintura como na

poesia, na poesia como na pintura, de que existe uma analogia e

até uma afinidade natural entre a poesia e a pintura, é muito antiga

e mantivera-se presente na opinião pública graças a um debate

sempre recorrente sobre a admissibilidade ou não admissibilidade

das imagens sagradas. No princípio dos 300, essa foi a ideia con-

cretizada e, por assim, dizer, ela ganhou um significado temático

nos famosos versos de Dante sobre a transitoriedade da glória

humana. Tudo qt dissemos leva à conclusão de que a velha pergun-

ta “quando os homens do Renascimento se vangloriavam da revi-

vescência ou do renascimento da arte e da pintura queriam falar de

uma ressurreição espontânea da pintura como tal, comparável ao

despertar da natureza na primavera, ou de uma revitalização cons-

ciente da pintura clássica?” Impossível responder sem algumas

distinções históricas e sistemáticas. Poderíamos dizer que, para

Petrarca, uma tal alternativa não teria sentido, apenas surgindo

quando, com Boccaccio, a revivescência da literatura começou a

ser acompanhada pela da pintura e a da escultura, vindo a tornar-se

mais acentuada quando, nos princípios do século XV, se tornou

visível na arquitetura uma grande influência clássica e na pintura

um naturalismo não menor. Cedo, porém, haveria essa separação

entre as várias esferas da atividade cultural e, consequentemente,

entre 2 princípios, o regresso à natureza e o regresso aos clássicos.

Essa separação começaria a diminuir com o conceito de proporção,

que iria unir as artes figurativas à arquitetura, a arquitetura à músi-

ca, e os conceitos de invenção, composição e iluminação uniram as

artes figurativas à literatura. Existiam, assim, as condições para

uma reconciliação geral, mesmo que temporária, entre uma inter-

pretação da história, que via a destruição dos bárbaros e a supres-

são eclesiástica dos valores clássicos como uma calamidade a ser

tratada com um único remédio, e uma teoria das artes, que não iria

conhecer oposição até o final da Renascença, que solucionava a

dicotomia regresso à natureza / regresso à antiguidade clássica,

pela tese de que a própria arte clássica, ao manifestar o que a natu-

ra naturans tinha pretendido, mas que a natura naturapa não tinha

conseguido realizar, representava a forma mais elevada e verdadei-

ra do naturalismo. Dürer, escrevendo em 1523, atribuía honesta-

mente aos italianos, pelo menos a partir da maturidade de Giotto e

do nascimento de Brunelleschi, a aplicação do termo arte ao exer-

cício da pintura, à teoria das proporções humanas, e em nenhum

caso deixa a menor dúvida de que o que tinha sido trazido à luz,

depois de estar perdido durante 1000 anos, fora dominado e tido

com honra pelos gregos e romanos e perecera com a queda de

Roma. O que significa para Dürer, no século XVI, e para Petrarca

nos 300, no século XIV, que a distinção entre revivescência da arte

e revivescência da arte clássica não era mais uma alternativa, e o

mesmo se aplica ao novo nível da consciência histórica, como

aparece no grande historiador do Renascimento, que foi Giorgio

Vasari.”

Agora Panofsky vai falar um pouco sobre Vasari que, no

século XVI, vai fazer uma história daquilo que ele vai batizar de

Rénascita. A palavra Renascimento só aparece no século XIX, na

França. Ninguém, nos séculos XIV, XV, XVI, XVII e XVIII, usava

a palavra renascimento.

“Vasari foi o primeiro a afirmar explicitamente que as 3 be-

las artes (a pintura, a escultura e a arquitetura) são filhas do mesmo

pai, o desenho. O primeiro a tratar delas no mesmo, enquanto que

os seus predecessores haviam feito isso em livros separados. O

primeiro a apresentar os ultrajes dos bárbaros e o arrebatado zelo

Page 29: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

29

da nova religião cristã como causas conjuntas de uma única e

mesma catástrofe que ele viu, que o renascimento da arte era um

fenômeno total que ele designou com uma palavra coletiva

La Rénascita. Com a vantagem de se situar em 1550, Vasa-

ri encara o progresso dessa Rénascita como uma evolução que se

desenrola em 3 fases ou idades, correspondentes a outros tantos

estágios da vida humana e começando, grosso modo, com o início

de um novo século. A primeira fase, comparável à infância, é

introduzida por Cimabue e Giotto na pintura, por Arnolfo de Cam-

bio, na arquitetura, e por Bizannes, na escultura. A segunda fase,

comparável à adolescência, recebeu a sua marca de Masaccio,

Brunelleschi e Donatello, a terceira fase, comparável à maturidade,

começou com Leonardo da Vinci e culminou no modelo de uomo

imortalle de Michelangelo. Vasari dividiu a sua obra em 3 partes e,

quer no prefácio geral a essa tríade, quer no prefácio de cada uma

das partes, procurou definir os estágios da totalidade da Rénascita.

Para concluir, a distância criada pelo renascimento privou a anti-

guidade do seu caráter real.”

O que Panofsky está dizendo é o seguinte: o tempo todo

durante a Idade Média, os medievais se referiram ao mundo clássi-

co, aos gregos e romanos, cuja referência é feita continuamente. O

que acontece é que para eles, os antigos estão à mão para serem

usados em seu próprio trabalho. O que o Renascimento faz não é

isso: ele olha a Antiguidade Clássica como algo distante e diferente

do nosso presente e, que por isso, precisa renascer, surgir de novo.

Para os renascentistas, a antiguidade não estava lá disponível, mas

havia memórias a serem traduzidas de volta, mas com uma distân-

cia entre o presente e o passado clássico. O mundo clássico deixa

de ser uma posse, como para os escolásticos, e uma ameaça,

que foi o modo como ele passou a ser visto quando nas mãos

dos renascentistas, para ser tornar o objeto de uma apaixonada

nostalgia, que encontrou a sua expressão simbólica na reemergên-

cia, depois de 15 séculos, dessa visão de encanto, a arcádia. O

renascimento veio a compreender que Pan tinha morrido, que o

mundo da antiga Grécia e da antiga Roma estava perdido, e só no

espírito poderia voltar a ser alcançado. Pela primeira vez, o passado

clássico era olhado como uma totalidade separada do presente e,

consequentemente, como um ideal a que se aspira, em vez de uma

realidade simultaneamente utilizada e temida.

Cada autor que escreveu sobre o Renascimento entre os

anos 20 e 70 discutiu o sentido do termo Renascimento e até mes-

mo a sua própria existência. Todos fazem isso apresentando cente-

nas de interpretações existentes. Podemos dizer que havia 4 gran-

des interpretações. A primeira, a histori-ciência evolucionista, ou

seja, uma concepção positivista, progressista, historicista e evoluti-

va sobre o processo, sendo a Renascença um período como tantos

outros que compõem a História. Um outra interpretação, trata a

Renascença como um período sem identidade, confuso, que não

quer mais o que havia na Idade Média, mas ainda não elaborou o

que vai ser a Idade Moderna, está entre um e outro, é um momento

confuso onde o novo é justificado pelo antigo e o antigo pelo novo,

e assim por diante. Há muitos autores que vão nesta direção - o

Renascimento como a idade da ausência de identidade. Portanto,

um entre situado entre dois. A terceira interpretação é

a reação católica, poderosíssima sobretudo no século XIX, que diz

“não houve Renascimento”, ou melhor, houve 2 grandes renasci-

mentos, um com Carlos Magno, ou renascimento carolíngio, e a

criação das universidades, e o renascimento do século 12, com as

universidades de Paris, Bologna e Pádua, e Tomás de Aquino. Uma

quarta posição aparece em Panofsky, Colombero, Garin, Foucault,

na famosa escola de Warburg, e que atribui muito identidade muito

precisa ao renascimento. Eu vou tratar da posição do Foucault

quando eu for examinar a questão da magia natural, porque ele

generalizou para a renascença inteira um único aspecto dela, e

aquele que aparece no neoplatonismo e na magia natural, que é a

ideia da semelhança – trata-se do grande capítulo de Les mots e les

choses (um capítulo sobre a similitude). Foucault ainda estava

muito marcado por Heidegger - a Idade Moderna é a idade da

representação e o renascimento é a idade da semelhança; é uma

analogia (eu vou voltar ao F. mais adiante)

A escola de Warburg, Panofsky (ligado a ela) e os outros

italianos que eu mencionei vão afirmar a identidade do renascimen-

to. No caso de Panofsky, que está tratando das chamadas belas

artes, o núcleo identidade da Rénascita é a ideia de dois regressos:

um regresso à antiguidade clássica (em Petrarca, por exemplo, um

retorno à literatura e à filologia) e um retorno à natureza (isto é, em

vez da vida asséptica, monacal da idade média, o que se propõe é a

comunhão do homem com a natureza. Os 2 pontos altos

dessa concepção serão, sobretudo, Leonardo e Miguelangelo – com

eles, a natureza entrará na arte, não como um naturalismo, mas

como uma maneira pela qual o artista será capaz de imitar a natu-

reza. Voltarei a isso mais adiante.

A periodização do Panofsky está ligada a esta ideia. Ele diz

que, no início, em Petrarca (nos 300), há um regresso à Antigui-

dade. Depois, no século XV, a ideia é de retorno à natureza.

Embora haja duas periodizações, uma de regresso à antiguidade

clássica e uma de retorno à natureza, nos três períodos os 2 regres-

sos acontecem em doses diferentes. Quando passamos a Colombe-

ro, o critério será a relação do homem com a natureza e a ideia

de dignidade do homem. O que vai dar identidade ao renascimen-

to é a noção de dignidade do homem, a qual irá determinar uma

discussão sobre a dignidade das artes (disputa que percorreu todo

o renascimento até culminar com o abandono da separação das

artes liberais e mecânicas, que é o que nos interessa na nossa

discussão). Que caminho será feito para que essa separação desapa-

reça? Para que a hierarquia entre as artes desapareça?

No Colombero, então, a identidade do renascimento será

dada pela relação do homem com a natureza e a ideia de digni-

dade do homem. O que Colombero fez e que Panofsky não fez foi

situar a sociedade que tornou possível esse acontecimento.

Do mesmo modo que tivemos Heidegger e Vernant, agora temos

um historiador descrevendo que sociedade permitiu isso.

No final do trettento e início do quatrottento, sobretudo na

Itália, desenvolve-se um novo ideal de cultura. Na origem disso,

está uma ligação polêmica com uma discussão e um abandono do

pensamento medieval, que não ignorou, mas desnaturou o patrimô-

nio do mundo clássico. Esta nova cultura, chamada de humanísti-

ca, não pode ser caracterizada apenas com base na sua oposição à

Page 30: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

30

época precedente. Não se desenvolve em função de uma relação de

antítese ou analogia, mas, ao contrário, de certas exigências da sua

própria época e seu desenvolvimento e legado. A cultura humanís-

tica é própria de uma nova classe de intelectuais, classe esta que é

expressão de um novo tipo de sociedade. Trata-se de uma socie-

dade de caráter urbano e mercantil, a qual exprime uma categoria

de intelectuais e na qual se desenvolvem os ideais humanos e de

vida próprios do primeiro humanismo. Trata-se de uma nova classe

de dirigentes a qual corresponde uma nova classe intelectual, e que

exprime as aspirações culturais próprias dessa nova realidade

social. Encontramos, assim, uma espécie de aristocracia burguesa

ativa, dinâmica, com gosto pela participação na vida econômica e

política do mundo comunal. Surge o mito de Florença como a nova

Atenas. Lá floresce o ideal de vida ativa contraposta à vida con-

templativa. Assim, a primeira característica que o Colombero vê

não envolve apenas a questão da regressão aos clássicos, mas

envolve a política como a principal característica do primeiro

humanismo. Quando as cidades, particularmente Florença, perde-

rem a sua dimensão republicana e tornarem-se senhorias ou duca-

dos, a participação política deixará de ser possível. Ocorrerá uma

mudança de pensamento, da vida ativa (política) para a magia

natural. Essa nova sociedade colocará um intelectual que terá na

política a sua expressão mais importante. Quando a república não

existir mais, a atividade será concebida como atividade técnica (a

magia é vista como uma técnica; passa-se da política para a técni-

ca).

Os temas originários do pensamento humanístico renascen-

tista, particularmente, a valorização do indivíduo e a glorificação

do ser humano, nascem disso: de um ideal de atividade constru-

tiva, de participação e empenho político e social. O humanismo

nasce como um humanismo civil. A aspiração a uma Rénascita que

acompanha isto é a aspiração da Rénascita da cidade-estado do

mundo clássico na qual são realizados esses valores. A Rénascita

literária é uma consequência da Rénascita política. O ideal de

empenho e participação, de dedicação à vida civil, entretanto,

concerne a uma aristocracia burguesa. A nova cultura é patrimônio

de uma elite. Esse fato, por um lado, articula a cultura humanístico-

renascentista à cultura medieval, mas por outro, diferencia ambas:

tanto numa quanto na outra, a cultura que exprime o espírito do

tempo é elaborada por uma categoria restrita de intelectuais: na IM

eram os intelectuais eclesiásticos, agora, os intelectuais laicos. A

cultura destinada a impor-se é laica, mas não irreligiosa. O intelec-

tual do primeiro período humanístico, o trettento, não é eclesiásti-

co, mas provém de uma tradição de estudos jurídicos, que nunca

perdeu sua vitalidade na Itália. Devia ser, portanto, de tipo jurídico

a formação de um intelectual todo voltado para a teorização dos

aspectos civis, políticos da atividade humana. É isso que vai deter-

minar o caráter da nova cultura e que explica os motivos da cha-

mada disputa sobre as artes, a polêmica contra a medicina como

ciência da natureza. Na origem deste debate está a intenção de

abandonar uma certa tradição de estudos e endereçar as forças do

espírito humano para o âmbito civil e político. A primeira disputa

será entre a medicina e o direito, entre uma e outra arte para provar

qual delas é superior a outra (ainda uma mentalidade hierárquica,

que dura até o século XVI, quando todas serão igualmente dignas).

Um outro aspecto antitradicional da cultura humanística

consiste no fato de que ela não se desenvolve nas universidades. O

novo intelectual não é um professor, mas um douto que conversa

em círculos, em academias, mais ou menos organizadas. Esse

discurso reclama aquele da sua relação com a aristocracia econô-

mica dominante e a categoria depositária da nova cultura e é esse

trato que se recolhe em torno das grandes famílias burguesas como,

por exemplo, os Médici e os Bórgia. Nascem, assim, os círculos

humanísticos; o espírito de mecenato que vai caracterizar o campo

artístico tem sua origem nas grandes famílias burguesas, O primei-

ro humanismo parece sair direto dos próprios interesses do mundo

e da natureza. O ideal da vida civil é uma maneira de exprimir a

dignitas hominis, cuja realização é colocada inicialmente no exclu-

sivamente âmbito humano da vida associada, prescindindo de

qualquer teorização sobre uma possível condição de privilégio do

homem no confronto com a natureza. A política e vida social são

vistas como um desembocadouro mais imediato da atividade hu-

mana. Mas, em breve esse desembocadouro será fechado. Agora,

para o pensamento serão projetadas outras direções de desenvolvi-

mento, será proposto um outro âmbito, aquele da natureza ou do

mundo natural na sua totalidade, no qual se pede a atuação de uma

dignidade e glória humanas as quais já não encontram mais espaço

no mundo do homem construído (no mundo civil não haverá

mais espaço para afirmar a dignidade do homem). Vai ser

preciso encontrar um outro âmbito para a dignidade do homem,

esse novo âmbito vai ser a natureza. O aspecto político da dignitas

hominis é substituído por um aspecto mítico, consequência das

mudanças político-sociais. A aristocracia burguesa decai, o espírito

de ativismo que lhe era próprio acaba. Assim, já não tem mais

sentido uma classe de intelectuais de formação político-jurídica,

teóricos do retorno às cidades-estados. Torna-se um absurdo procu-

rar a dignidade do homem na vida política. Desenvolve-se o con-

ceito de ser inteiro da natureza e de microcosmo. O aspec-

to mítico da dignitas hominis será afirmar que o homem é um

microcosmo. Trata-se de conferir ao homem um novo prestígio,

colocando-o no vértice de uma ordem que lhe é favorável, ainda

que, em certo sentido, essa realidade o envelheça. Isso não signifi-

ca refugiar-se em um mito , mas a fuga contribui para individuar o

problema da relação homem-natureza. Essa relação determina-se

de um modo que será típico da cultura do renascimento, a magia

natural”

Para Colombero, então, o núcleo de identidade do renasci-

mento é a ideia da dignitas hominis e do seu deslocamento. No

primeiro humanismo, a dignitas hominis é dada pela política, no

segundo, pela relação desse homem com a natureza.

Aula 05 (10-09-2012)

Eu havia feito uma dupla apresentação da Renascença, uma

feita pelo Panofsky no campo das artes, e outra feita pelo Colombe-

ro no campo da política, das artes e da filosofia. Panofsky conside-

ra que o núcleo da Renascença na sua ruptura com a Idade Média é

a afirmação de um duplo regresso. o gresso à antiguidade clássica e

o regresso à natureza. Colombero, tb na ruptura com a Idade Mé-

dia, vê como núcleo da Renascença a nova relação do homem com

Page 31: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

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a natureza e a afirmação da dignidade do homem. Essas duas ma-

neiras de se estabelecer um núcleo para a Renascença não são

excludentes nem incompatíveis, são complementares. Eu havia

proposto recomeçar tomando como ponto de partida o fato de os

protagonistas da Renascença não terem usado, pelo menos no

início, essa palavra para designar a sua posição na filosofia, na

ciência e nas artes. Ela só foi empregada no final por Vasari que ele

usou o termo Rénascita. O que os protagonistas diziam em latim

era Renovatio e Restitutio. O sentido da Renovatio e o sentido da

Restitutio vai ser sintetizado por aquele que é o último dos renas-

centistas e o primeiro dos modernos, Francis Bacon, quando ele

utilizará o termo (uma síntese) Instauratio. Instauratio reúne os

dois sentidos, o do novo e o da recuperação do antigo, e restitutio,

com a expressão restitutio in integro (restituição integral), será o

termo usado pelos reformadores Lutero e Calvino para indicar a

restituição integral do Cristianismo à sua pureza, tal como no iní-

cio. Essa expressão retoma algo que está em curso no campo da

religião durante a Renascença, e cuja expressão mais alta é Erasmo,

que é a ideia de devotio moderna, um esforço para reformar a

Igreja Romana cuja corrupção e autodestruição chegaram a um

ponto tal que os próprios católicos decidiram que algo precisava ser

feito. Antes da Reforma, há uma tentativa interna de reforma,

tipicamente renascentista. Erasmo irá retraduzir o Novo Testamen-

to, originalmente em grego. Tudo isso forma o quadro da maneira

pela qual os protagonistas da Renascença e da Reforma referem-se

a si próprios. É possível perceber que todos esses vocábulos estão

articulados a uma ideia de tempo, que vai implicar em uma certa

tomada de posição dos renascentistas com relação à dupla concep-

ção do tempo, a clássica ou greco-romana, e a judaico-cristã. A

concepção greco-romana do tempo é circular; o tempo, a partir da

experiência que os seres humanos têm dos fenômenos da natureza

(estações de ano, a vida e a morte dos seres vivos), é um retorno. O

tempo é um eterno retorno, é circular, não tem começo nem fim.

Há uma figura que exprime essa noção de tempo eterno, que é a

figura mitológica das fênix, que vive 10 mil anos e morre e das

suas cinzas nasce uma nova fênix. Essas duas imagens, o círculo e

a fênix exprimem a visão greco-latina do tempo. Isso não exclui o

tempo linear, aquela da sucessão, que é um tempo na superfície do

tempo. Os acontecimentos são sucessões na superfície do tempo

circular. O contraponto a essa concepção é a concepção judaico-

cristã do tempo, que é linear, teleológico, ou seja, dotado de finali-

dade. O tempo judaico-cristão exprime a relação de Deus com o

homem e, por isso, há 3 grandes formulações acerca da temporali-

dade cristã: uma, conhecida como semana cósmica, toma os princi-

pais momento da relação de Deus com o homem como a escanção

que estrutura o tempo: a criação, a queda, o dilúvio, os patriarcas e

a lei, o nascimento e a morte de Jesus Cristo e o juízo final. Há

uma sétima era, fora do tempo, que é o jubileu, quando Deus que

salvará e condenará os homens. O tempo vai da criação até a re-

denção. A outra figura desse tempo sucessivo e dotado de finalida-

de está representado por 3 eras, a era antes da lei, a era depois da

lei ou era da graça, e a era da sabedoria. Agora, o que escande o

tempo é a imagem cristã da trindade. Os protagonistas da Renas-

cença vão operar com essas 2 concepções de tempo, fênix e finali-

zado, o tempo da promessa. Essa operação é feita a partir de uma

elaboração encontrada no grande poema de Ovídio ‘As Metamor-

foses’, no qual ele narra as idades do mundo: a era de ouro perdida

(o paraíso), a era do bronze e a era do ferro (as eras são uma deca-

dência). Qual é a elaboração de Ovídio ao descrever as eras? Defi-

nir duplamente o tempo: existe a imagem do tempo edax (o tempo

devorador) e do tempo da verdade (veritas filia tempus ou a ‘ver-

dade é filha do tempo’, que destroi, mas renova e restaura). O

tempo que consome e destroi, inventa e progride, retorna e restau-

ra. Isso significa que o novo é a realização das promessas do anti-

go. É a destruição do antigo enquanto passado e velho, porque para

restaurar o antigo é preciso que ele seja o presente e o atual. É esse

o sentido do regresso à antiguidade. Respeitando a periodização

feita por Vasari no século XVI, retomada depois por todos os

historiadores da Renascença, principalmente por Panofsky e Co-

lombero, pode-se fazer uma periodização do renascimento pensan-

do nas 3 maneiras pelas quais o tempo é trabalhado. Pode-se falar

em 3 grandes temporalidades: o tempo da ação política, da vida

civil, da vida ativa em oposição à contemplativa, o tempo da inter-

pretação dos segredos do homem e da natureza pela magia natural,

e o tempo instrumental do conhecimento do homem e da natureza

com o nascimento da filosofia experimental. Esses 3 tempos indi-

cam que em cada deles um há uma ação e um conhecimento. Ao

que o conhecimento visa quando se leva em conta essas 3 tempora-

lidades? Visa alcançar os arcanos, os mistérios e segredos escondi-

dos, que são três: no tempo da vida civil, os arcanos do poder, no

tempo da magia natural, os segredos que Deus depositou no mun-

do, e no tempo da filosofia experimental, os segredos da natureza.

Os segredos do poder estão ligados à renovação florentina do

republicanismo; os segredos de Deus são conhecidos pela magia

natural e por uma nova leitura e interpretação dos textos sagrados a

partir da filologia, e os segredos da natureza serão conhecidos pela

filosofia experimental nascente.

Nesta aula eu quero retomar o final da aula passada:

Colombero periodiza o renascimento italiano em três mo-

mentos: o da vida ativa ou vida civil, que ressalta o valor e a capa-

cidade do homem como agente; um segundo momento, qd as con-

dições políticas desfizeram as liberdades republicanas e foram

instaladas as senhorias e as formas monárquicas e cuja ênfase irá

recair sobre a relação do homem com a natureza sob a influência

do platonismo e neoplatonismo, e um terceiro momento, cuja ênfa-

se vai recair sobre o interesse na relação do homem com a nature-

za, mas sob influência do aristotelismo. Segundo Colombero, a

diferença entre o platonismo e o aristotelismo não está na diferença

entre uma concepção teológica platônica e uma concepção natura-

lista aristotélica. Tal diferença não faz sentido. A dife-

rença é social. O platonismo foi retomado pelas elites intelectuais

contra a tradição medieval, mas essa retomada foi feita fora do

mundo universitário, desvinculada da ideia de ensino. Em contra-

partida, o aristotelismo manteve-se como filosofia de escola e

permaneceu vivo assim por toda a renascença. O que se vai ter é

uma distinção entre as sedes: a sede do platonismo e do neoplato-

nismo será Florença e a sede do aristotelismo será Bologna e Pá-

dua. A distinção é: aqueles que se apropriam da tradição da filoso-

Page 32: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

32

fia antiga são socialmente diferentes e a destinação que eles dão à

filosofia antiga é diferente. Vou acrescentar alguns aspectos a essa

periodização do Colombero: além do platonismo/neoplatonismo e

do aristotelismo, a filosofia epicurista teve um papel importante

nos círculos humanísticos. Lorenzo Valla vai traduzir as famosas

‘Cartas à Meneceu’, de Epicuro, e Bracciolini redescobre perdido

nas universidades europeias o manuscrito ‘Da Natureza’, de Lucré-

cio.

(Marilena sugere ler o capítulo 2 do seu livro Introdução à

Filosofia para uma visão geral do epicurismo-ceticismo e pirronis-

mo/platonismo e aristotelismo )

O platonismo e o aristotelismo, sob a ação dos renascentis-

tas, vão passar de uma atitude teorética da natureza para uma atitu-

de prática de intervenção sobre a natureza. Do lado do platonismo,

a técnica vai de desenvolver como magia natural. Do lado do aris-

totelismo, serão dados os primeiros passos da filosofia experimen-

tal. Isso terá um peso decisivo sobre a mudança na concepção da

técnica, que estará agora inserida no saber. O conhecimento será

uma ação inseparável do agir sobre a natureza. Essa passagem da

contemplação para a ação implica na mudança do que se entende

por conhecimento, que se torna anagógico, ou seja, vai dirigir-se à

estrutura fabricadora ou poiética da natureza ou do mundo. Surge a

noção de fabrica mundis. A estrutura do mundo é uma fabricação,

o mundo é um artefato fabricado por Deus, que é um artesão. Sua

obra, a natureza, tb é artesão. Por isso, conhecer a estrutura secreta

da natureza, ou a sua fábrica, é o caminho para transformá-la ou

dominá-la a serviço do homem. A magia natural dirá que o homem

pode criar outros mundos. O que é conhecer? Conhecer é penetrar

na estrutura secreta da natureza, conhecer os vínculos e laços secre-

tos que unem as coisas. A natureza é um tecido, uma rede de con-

cordâncias e oposições internas, invisíveis, cujo conjunto é uma

harmonia, e a harmonia é a coincidência dos opostos. Marsilio

Ficino, um dos grandes representantes da magia natural, diz que o

homem, sendo um geômetra como Deus, pode criar outros mundos

desde que encontre matéria para isso (a diferença entre Deus e o

homem é que Deus criou a matéria com a qual irá trabalhar e o

homem precisa encontrá-la). Fora essa diferença de grau, ambos

são criadores. G. Bruno, outro representante da magia natural, diz

que os deuses deram aos homens a inteligência e as mãos para que

eles pudessem fabricar outros mundos possíveis, tornado-se eles

próprios deuses (deificação do homem na fase final da magia natu-

ral). Essa presença de todas as filosofias antigas na Renascença vai

explicar a sua peculiaridade: a Renascença não é apenas um desejo

de restauração do antigo, de restituição do antigo, ela é o desejo da

restituição da origem, ou seja, dos princípios que dão origem ao

homem e à natureza, que não é o que está lá atrás, é aquilo que,

aqui e agora, neste lugar e nesta hora, continua produzindo os seus

efeitos. É um princípio que não está no passado, mas que está a

todo instante sustentando os seus efeitos, o que está presente no

mundo inteiro. Os renascentistas, então, estão em busca do segredo

da natureza, de Deus e do mundo. Ao contrários do que dizem os

historiadores, não há nenhuma contradição no renascimento em

procurar o antigo e buscar o novo, uma vez que os renascentistas

estão procurando a origem, o princípio, que estava lá atrás e agora

está aqui na frente. O que é o antigo? É o passado no sentido roma-

no, um fundatio, que é o princípio originário, aquele que permane-

ce no presente e cujos efeitos constituem o presente. O antigo é a

fundação. Na política, o antigo é a república romana, o modelo a

ser restituído; nas artes, são as artes greco-romanas; no conhe-

cimento, é aquilo que está na origem das próprias filosofias

(o conhecimento originário), um saber formulado no Egito, que

seria uma mensagem dos deuses aos homens, formando, do lado

greco-romano, o corpus hermeticus, e do lado judaico-cristão, a

cabala. Estão convencidos de que há uma fundação do saber que

deve ser recuperada para que todo o saber faça sentido. Os renas-

centistas acreditavam que tudo isso estava em um passado muito

distante, mas depois descobriu-se que tudo datava do século III

d.C. No plano da religião é a restitutio in integro da palavra

original de Cristo e dos apóstolos consignada no Novo Testamento

(tradução dos textos do Novo Testamento do aramaico e do grego

para o latim por Erasmo para uma reforma dentro da própria Igreja;

tradução para o alemão e o francês por Lutero e Calvino e tradução

para o inglês pelos ingleses). Para assegurar esta relação direta do

fiel com Deus era preciso que os fieis soubessem ler a bíblia. O

efeito disso foi a alfabetização das massas e a possibilidade de

todas as revoluções ocorridas na Europa.

Mas o que é o novo? É a realização perfeita do antigo, ou

seja, a realização das promessas originárias que Deus fez aos ho-

mens. Na política, a invenção de novas cidades, o surgimento de

um novo gênero literário, que é a utopia; no conhecimento, na

magia natural e na filosofia experimental, o novo é a conquista do

lugar do homem no Universo tal como Deus determinou no mo-

mento da criação; e na religião, o cumprimento das profecias refe-

rentes à terceira Era, o tempo do Espírito Santo, o tempo da ciência

e da sabedoria. Sobretudo com a descoberta da América, é a reali-

zação das profecias de retorno do homem ao paraíso. Esse mundo

ao qual se chega é chamado Novo Mundo, novo não porque desco-

nhecido, mas porque prometido por Deus desde a criação, a ori-

gem, o paraíso terrestre, que estava escondido, e que os navegantes

descobriram. O antigo como a origem e o novo como a restitutio

explicam porque o conhecimento, a política, as técnicas e a filoso-

fia apresentam-se como o conhecimento dos arcanos (isto é, dos

segredos de Deus, dos homens e da natureza). O segredo que se vai

descobrir é que o novo é a origem.

Feito isso, eu queria propor uma periodização mantendo o

sentido de Parnofsky, Colombero e Vasari, mas fazendo-lhe acrés-

cimos e dando-lhe novos sentidos. O primeiro

tempo é aquele no qual a temporalidade é dada pela história civil,

isto é, o tempo da vida cívica pensado como kairós, ou fortuna, ao

qual é preciso contrapor como forma da ação humana uma virtude

que é a prudência. A prudência é o que ensina a um homem conhe-

cer o passado e dominar o futuro. Por isso, o grande par proposto

neste momento para lidar com o tempo da história civil é aquele

proposto por Maquiavel, fortuna (kairós) e virtude (virtu), ou seja,

o tempo como uma virtude humana (prudência). A métis está de

volta. O segundo tempo é o que vamos chamar de tempo herméti-

Page 33: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

33

co, tempo da magia natural, da alquimia e da astrologia como

busca do momento originário da criação divina, das formas natu-

rais, secretas e invisíveis. O terceiro tempo, ou ter-

ceiro período, é o da história natural ou do conhecimento da natu-

reza, que dará ao homem o poder de transformá-la e dominá-la

tecnicamente. É o tempo da experimentação. Pela primeira vez, o

tempo será medido e calculado. Esses 3 tempos têm um pressupos-

to em comum, que é a ideia que se tem do que seja o homem, a

natureza e as técnicas. E para desvendar essa ideia vamos trabalhar

com um termo do qual Colombero já havia se aproximado, e que é

nuclear nos textos renascentistas: a ideia de dignitas (dignidade do

homem, da natureza e das técnicas).

Qual o sentido da palavra latina dignitas? A dignitas per-

tence ao campo do discurso e da prática políticos de Roma. Não é

uma qualidade moral subjetiva, é um dado objetivo. Ela é o posto

público, o cargo público, o prestígio e a proeminência públicos. A

ideia é a de que o ofício, o cargo, o posto determinam quem você

deve ser e fazer. A dignitas é a configuração do espaço público por

meio dos cargos, postos e ofícios. A dignitas também é adquirida

por eleição para a magistratura, o posto do magistrado. A dignitas é

a magistratura, e é conservada como uma honra quando o título de

magistrado termina. A dignitas tb pode ser ampliada pelos feitos

públicos.E a dignitas é perdida quando se cai em desgraça pública.

É um poder e um império, entendendo-se por império como o

poder de comandar, de promulgar as leis, fazer cumprir as leis,

portanto, o poder de coerção. A dignitas é o exercício de uma

autoridade (cujo termo em latim autoritas significa ‘aquele que

está autorizado a arbitrar conflitos’). O homem digno é aquele que

possui esse privilégio e esse poder. O indigno,

submetido à desonra pública, é aquele que perdeu a dignitas. A

dignitas supõe uma hierarquia de cargos e ofícios, de poderes e de

valores. É esse complexo conceito que é retomado quando os re-

nascentistas vão propor a dignidade do home, da natureza e das

técnicas.

Dignidade do homem – seu expoente maior encontra-se na

obra de Piccolo della Mirandola, Oratio de Hominis Dignitate. Nós

sabemos que a ideia de humanismo é sempre tomada como a marca

definidora do Renascimento, mas é preciso lembrar que tal ideia é

construída em 2 processos sucessivos: em um primeiro instante, o

humanismo está ligado ao studia humanitates, isto é, ao cultivo das

letras, da eloquência, das artes liberais como expressão da humani-

dade do homem – esse é o primeiro sentido de humanismo. Em um

segundo instante, do qual Piccolo della Mirandola é a súmula, o

humanismo é definido a partir do lugar que é atribuído ao homem

na hierarquia dos seres e dos poderes do Universo. Portanto, no

segundo instante, o humanismo é a dignidade do homem. Se to-

marmos o Oratio de Piccolo della Mirandola, veremos que a digni-

dade do homem encontra-se no fato de ele ser um microcosmo no

interior de um macrocosmo. O que isso significa? Em primeiro

lugar, significa que o homem é uma parte que contém o todo (pars

totalis). É por isso que os pintores, os escultores e os arquitetos

tomam o corpo humano (masculino) como medida, critério e mode-

lo para as proporções da natureza. O corpo é a medida, a proporção

que serve de modelo para as proporções da natureza. Em segundo

lugar, ele é copula mundi, o lugar da cópula do mundo, a mediação

universal, o espelho do Universo, porque é por seu intermédio que

todas as coisas do mundo se comunicam e é nele que a natureza

inteira se reflete. Ele é o misterium magnum, o mistério supremo,

porque é o centro do Universo. O Universo é a harmonia ou a

coincidência dos opostos e o homem é o modelo de todas as har-

monias e de todas as coincidências entre os opostos. Por que o

homem ocupa o topo da dignidade? Porque Deus lhe deu duas

qualidades que Ele recusou a todos os outros seres: a razão e a

vontade livre. Enquanto a Idade Média é teocêntrica, o Renasci-

mento é antropocêntrico. O mundo deixa de ser geocêntrico para

tornar-se heliocêntrico. No primeiro humanismo (trettento), a

dignidade do homem encontra-se na literatura antiga, no conheci-

mento das leis e no conhecimento da história civil, na vida ativa.

No segundo humanismo (quattrotento), a dignidade do homem

encontra-se na ação do conhecimento e das artes e técnicas para

fazer a natureza revelar os seus poderes. No terceiro humanismo

(quinhentos), a dignidade do homem encontra-se no conhecimento

de si e da natureza enquanto poderes (homem e natureza como

poderes), de tal maneira que o homem tem que encontrar para si

um lugar na natureza de modo a dominá-la e obrigá-la a servi-lo.

Se o homem é isso e o Universo é a harmonia ou a coincidência

dos opostos, o que é o conhecimento? Conhecimento é eros, amor

e desejo. O homem não se coloca diante da natureza, coloca-se

dentro dela, há uma relação de fusão do homem com a natureza. É

lógos, isto é, pensamento, um ato do entendimento para encontrar a

ordem racional das coisas conhecendo os signos delas. É ratio, ou

seja, proporção e simetria, isto é, conhecer é estabelecer relações

de proporção e simetria entre as coisas (modelo mais perfeito, a

perspectiva artificial). Conhecer é encontrar o bom ponto de vista.

Conhecimento é vinculum, ou seja, vínculo. É buscar correspon-

dência entre as coisas, a unidade orgânica de um todo com as suas

partes, as conexões de simpatia e antipatia entre as partes, encon-

trar para cada ser a sua vida própria, a sua ordem, a sua simetria

interna e as suas relações de simpatia e antipatia com os demais

seres do Universos. Conhecer é uma actio, uma forma de ação, pois

o conhecimento visa ou restabelecer a origem que estava escondida

ou criar uma realidade nova e perfeita. Conhecimento é mímesis,

mas em um um sentido diferente do sentido grego. O conhecimento

e a técnica não imitam a natureza, mas são a ação criadora de Deus.

A mímesis não é, portanto, uma reprodução, é uma invenção e uma

inovação porque é a deificação do homem. Essa concepção da

dignidade do homem e do conhecimento introduz uma ideia muito

cara à Renascença que é a de teatro do mundo, no qual o homem é

o protagonista, o expectador e o juiz. Está no palco e acima dele.

Dignidade das artes e das técnicas – a mudança do lugar do

homem na natureza, do lugar do homem no conhecimento, a mu-

dança do próprio conhecimento, que deixa de ser contemplativo

para ser ativo, implica em mudança com relação à técnica. Deus e o

homem procedem da mesma maneira, tanto no conhecimento, pois

conhecem as causas e os efeitos, como na produção. O homem é

igual a Deus na produção, isto é, a criação do homem por Deus foi

o primeiro ato da pintura e da escultura. A sociedade grega e a

medieval mantiveram a divisão entre as artes liberais (dos homens

livres) e as artes mecânicas (ou servis). A Renascença irá iniciar

Page 34: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

34

uma batalha pela dignidade das artes mecânicas ou das técnicas –

dignidade como lugar, poder, ofício, autoridade - com dois grandes

objetivos: desfazer a divisão, considerando todas artes igualmente

liberais; e propor uma nova relação entre as ciências e as técni-

cas. No primeiro humanismo, mantém-se a distinção romana e

medieval entre doctus e vulgus, douto e vulgar, porque o que se

afirma é a dignidade das letras e do direito. São elas que estão no

topo e, portanto, têm a dignidade. A medicina está subordinada ao

direito, por exemplo (ponto de vista de Petrarca).

No segundo humanismo, com a magia natural, a medicina,

a arquitetura, a pintura e a escultura estão no topo da dignidade,

porque, ao fazer o homem a sua imagem e semelhança, Deus o

esculpiu e pintou e o fez criador dessas artes. Se o homem quiser

exprimir o seu poder criador, é por meio dessas artes, portanto, elas

estão no topo da hierarquia. No terceiro período, as artes mecânicas

tornam-se inseparáveis do conhecimento científico experimental e

todas são consideradas dignas. Desaparece a distinção entre artes

liberais e mecânicas. Só existem artes. A distinção perde o sentido.

Marilena vai ler um texto do último período escrito por

Varchia, porque ele é a súmula do processo que apagou essa distin-

ção. A dignidade de uma ciência ou uma técnica, segundo Varchia,

consiste em ter o bem do homem como o seu fim. É o lugar do

homem que determina a dignidade das ciências e das artes. Então,

teríamos que considerar o Direito superior à Medicina? Não, res-

ponde Varchia, ambas têm como fim o bem do homem e, sendo

assim, ambas têm a mesma dignidade. Varchia propõe outra dis-

tinção: física, metafísica e matemática como as primeiras; e todas

as demais como subordinadas.

Aula 06 (17-09-2012)

Vamos ver se hj concluímos a Renascença para entrarmos

na Filosofia Moderna.

Eu dividi a aula de hoje em duas partes: na primeira parte,

eu vou mostrar as consequências da luta pela dignidade das chama-

das artes mecânicas (que eu chamei de “desforra dos mecânicos”),

e na segunda parte eu vou abordar o outro lado do tratamento da

técnica, que é a magia natural.

Podemos ter uma ideia dessa “desforra dos mecânicos”

com relação aos doutos, aos eruditos, se tomarmos dois textos do

final da Renascença sobre o uso do termo mecânico. Um deles,

citado pelo Paulo Rossi no livro O Filófoso e as Máquinas, é um

texto de Guidobaldo del Monte mencionada na obra Mecanicorum

liber. Guidobaldo escreve o seguinte: “Mas visto que esta palavra

mecânica não será talvez entendida por qualquer um pelo seu

verdadeiro significado, ou seja, encontrar-se-ão alguns que estima-

rão ser ela termo injurioso, costumando-se, em muitas partes da

Itália, chamar alguém de mecânico por escárnio e grosseria e al-

guns, por serem chamados de engenheiros, sentem-se desdenhados.

Mas não será fora de propósito lembrar que mecânico é um vocá-

bulo honradíssimo, conveniente a homem de alta condição que

saiba com suas mãos e conciso mandar executar obras maravilho-

sas de excepcional utilidade e deleite do viver humano.” (Fim da

leitura) (Marilena retoma) Há, então, uma reviravolta e a mais

honrada das artes será sempre uma arte mecânica e o mais honrado

dos homens será aquele capaz de se servir das suas próprias mãos.

Estamos, portanto, no polo oposto ao ponto de partida. Um outro

texto aparece em Agricola no livro De re metallica, um livro sobre

metalurgia, no qual Agricola defende a arte dos metais,(a metalur-

gia, diante da acusação de que ela é indigna e vil em comparação às

artes liberais. Paulo Rossi comenta a atitude de Agricola de defen-

der a metalurgia comentando o seguinte: “As duas acusações de

que Agricola tenta se defender são: a) a que sustenta que a

arte metalúrgica é coisa do destino ou nasce ao acaso; b) a que

pretende que tal arte é um trabalho servil, vergonho e desonesto

para o homem livre, isto é, para um nobre honesto e respeitado. A

primeira acusação tende a reduzir a atividade do técnico a um nível

de trabalho manual que requer mais fadiga do que engenho e saber

e a qual, portanto, deve ser estranha qualquer pretensão de cientifi-

cidade. A segunda acusação, que reflete a opinião que remonta aos

gregos, chega ao mesmo resultado contrapondo a técnica, entendi-

da como trabalho manual, a uma ciência concebida como contem-

plação desinteressada. Agricola reage a essa dupla acusação mos-

trando que a atividade do técnico implica toda uma série de rela-

ções com as várias ciências e não pode vir desacompanhada de um

efetivo conhecimento dos diversos campos do saber. O metalúrgi-

co, diz Agricola, deverá ser, em primeiro lugar, um perito no reco-

nhecimento dos terrenos, deverá saber distinguir perfeitamente os

veios, as diversas espécies de pedras preciosas e metais, deverá

conhecer, enfim, todos os artifícios de fazer experiências com a

matéria que tenha em mãos. A ele (ao metalúrgico), serão igual-

mente necessárias a filosofia, a fim de que conheça o nascimento,

as causas e a natureza das coisas subterrâneas, a medicina, naquilo

que possa prover para que os escavadores e outros trabalhadores

não caiam naquelas doenças em que, mais do que todos os outros,

em tal mister estão propensos a cair, a arte das medições, o ábaco, a

arquitetura, para fazer ele próprio as máquinas e armações, ou seja,

fazer com os outros entendam melhor a maneira de fazê-las. Além

disso, ele deve conhecer a arte do desenho, as leis e o direito.” (Fim

da leitura do texto) (Marilena retoma) Portanto, quando Agricola

faz a defesa da técnica metalúrgica ou do tratamento dos metais,

sua defesa vai, em primeiro lugar, na mesma linha daquela de

Guidobaldo del Monte de afirmar que não há nada de vil nem de

desonroso ou vergonhoso na arte mecânica. Feito isso, vai adiante

e, como Guidobaldo, ele vai dizer que ela é a mais digna que as

artes liberais. Depois acrescenta a afirmação de que esta técnica,

como toda verdadeira técnica, exige uma série de outros saberes

graças aos quais poderá ser realizada com perfeição, os quais vão

desde o conhecimento da matemática, da arquitetura, da medicina,

das leis, da jurisprudência e de outras correlatas. Portanto, a ideia

de que uma técnica envolve um conjunto de outras técnicas (rela-

ção entre as várias técnicas) é nova, assim como é nova a ideia de

que uma técnica está vincula a conhecimento científico. São duas

ideias novas cujo sentido só será compreendido no mundo mo-

derno, o qual irá explorar essas duas afirmações feitas pelos mecâ-

nicos ao final da Renascença. O que está posto agora é que o traba-

lho do técnico não pode se separar do trabalho do cientista. Portan-

to, os que contrapõem trabalho livre/servil e técnica/conhecimento

científico são considerados ignorantes do ponto de vista da técnica

e do ponto de vista da ciência. Os mecânicos irão afirmar que,

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daqui para frente, será ignorância não apenas classificar as artes

em mecânicas e servis, mas também classificá-las como indig-

nas e separá-las do conhecimento científico. Nota-se, então, a

partir deste momento, um entrosamento entre técnica e ciência.

Esse entrosamento, portanto, é novo no final da Renascença.

Saber como Ação – Ciência como Ação

A partir do final do século XVI surge a ideia de que o saber

é uma ação, a ciência é uma ação. A ideia do saber contemplativo

vai sendo deixada de lado para dar lugar a uma ideia de conheci-

mento como ação, e esse aspecto ativo do conhecimento será reali-

zado pela técnica. Os tratados dos técnicos vão passar por uma

crítica impiedosa dos letrados, dos doutos, daqueles que acreditam

que o saber é uma atividade contemplativa, os quais vão criticar de

modo impiedoso os mecânicos. Um dos exemplos mais conhecidos

dessa crítica está em Vesálio (eu vou fazer uma longa citação de

um texto de Vesálio que está no De Fabrica humani corporis), o

outro exemplo é o de um ceramista e vidreiro francês chamado

Bernard Palissy – e eu vou citar para vocês o título de duas obras

de Palissy – os demais exemplos são o de um marinheiro inglês

chamado Robert Norman e o de um erudito espanhol, que é Vives.

Todos vão insistir na necessidade de os letrados abandonadores os

livros e voltarem os olhos para o trabalho realizados pelos mecâni-

cos e artesãos. Vão defender a ideia de que o sábio, o cientista deve

aprender com os técnicos. Temos, portanto, a ideia de um aprendi-

zado do próprio saber filosófico e científico a partir do conheci-

mento daquilo que faz o artesão. Palissy vai dizer que, ao levar

alguém para o seu laboratório durante algumas horas, tal pessoa vai

tornar-se mais conhecedora de filosofia natural do que se passasse

50 anos em um escritório lendo os livros de filosofia natural. Palis-

sy dirá que se o indivíduo aprender a se voltar para as próprias

coisas em vez de se voltar para as palavras vai aprender o que é a

natureza e entender o que é uma filosofia da natureza. Eu vou ler

para vocês o título de duas das obras mais interessantes do Palissy,

a primeira, e mais conhecida, chama-se “Discursos admiráveis

sobre a natureza das águas e das fontes, tanto naturais quanto artifi-

ciais, dos metais, dos sais e salinas, das pedras, das terras, do fogo

e dos esmaltes, com muitos outros excelentes segredos das coisas

naturais, mas um tratado muito útil e necessário para aqueles que

tratam de agricultura, tudo isso é feito através de diálogos pelos

quais são introduzidos a teoria ao teórico e ao prático.” Por Monsi-

eur Bernard Palissy, inventor de rústicas figurinhas para o jardim

do rei, da rainha sua mãe, e para o muito alto e muito potente An-

toine de Pons, cavaleiro da ordem do rei. A outra obra chama-se

“Receita verdadeira pela qual todos os homens da França poderão

aprender a multiplicar e a aumentar os seus tesouros” A receita é a

agricultura. Palissy vai apresentar um tratado para agricultura,

plantações em grandes extensões, pomares e jardins. A ideia é

assegurar, em ambos os casos, uma vida melhora para os seres

humanos se eles abandonarem o eruditismo vazio, se forem das

palavras às coisas.

Vives, por sua vez, insiste na necessidade de os doutos li-

vrarem-se do desdém que têm pelo conhecimento possuído pelo

vulgo, pelo artesão e pelo mecânico, e não envergonharem de ir às

oficinas para aprender com os técnicos o verdadeiro conhecimento

da natureza. Contra os letrados, Vives vai escrever que os dialéti-

cos, porque são ignorantes do que seja a natureza, inventaram

monstruosidades teóricas e palavras abstrusas as quais deram o

nome de metafísica para indicar o que estava para além da física,

para além da natureza, portanto, para indicar uma mente que tem

horror à natureza. E ele cita as palavras (todo o vocabulário da

escolástica): formalidade, esseidade, pseidade, essencialidade e, se

fosse nosso contemporâneo, citaria abusividade, praticidade, ab-

surdidade, todo esse “besteirol” que parece uma coisa nova e con-

ceitualmente séria.

Na mesma linha de Palissy e Vives, Vesálio vai escrever o

seguinte na introdução do De fabrica (para combater Galeno e toda

a tradição da medicina, não pelo simples desejo de combatê-los,

mas pelos efeitos que a medicina de Galeno teve sobre a prática

médica). Vale a pena ver o que aconteceu com a medicina por meio

dessa análise que Vesálio faz.

“Depois das invasões bárbaras, todas as ciências, que antes

haviam gloriosamente florescido e sido praticadas a rigor, arruina-

ram-se. Naquele tempo, e antes de mais nada na Itália, os doutores

da moda, imitando os antigos romanos, começaram a desprezar a

obra da mão. Confiavam aos escravos os cuidados manuais que

julgavam necessários a seus pacientes e pessoalmente limitavam-se

a supervisionar. O sistema para cozinhar e preparar os alimentos

para os doentes foi deixado aos enfermeiros, a dosagem dos remé-

dios aos farmacêuticos, as operações manuais aos barbeiros. As-

sim, com o passar do tempo certos doutores, proclamando-se médi-

cos arrogaram-se pessoalmente a prescrição dos remédios e dietas

para obscuras doenças, e abandonaram o resto da medicina aos que

chamavam de cirurgiões e consideravam apenas escravos. Infeliz-

mente, dessa forma, afastaram de si o ramo mais importante e mais

antigo da arte médica, aquele que (admitindo-se que realmente

exista um outro) se baseia sobretudo na investigação da natureza.

Quando todo o procedimento da operação manual foi confiado aos

barbeiros, os doutores não só perderam rapidamente o verdadeiro

conhecimento das vísceras, como também rapidamente terminou a

prática anatômica. Isso, sem dúvida, decorreu do fato de que os

doutores não se arriscavam a operar, ao passo que aqueles a quem

era confiado tal encargo eram ignorantes demais para ler os escritos

dos mestres de anatomia. Assim aconteceu que essa deplorável

divisão da arte médica introduziu em nossas escolas o odioso sis-

tema ora em voga, com o qual alguém realiza a dissecação do

corpo humano e outro descreve suas partes. este último está enca-

rapitado num alto púlpito como uma gralha e, com modos muito

desdenhosos, repete até à monotonia notícias sobre fatos que ele

não observou diretamente, mas decorou dos livros de outros ou dos

quais tem uma descrição diante dos olhos. O disse-

cador, ignorando a arte do falar, não está à altura de explicar a

demonstração que deveria se seguir às explicações do médico,

enquanto o médico nunca põe as mãos ao trabalho, mas dirige

desdenhosamente a nau com a ajuda do manual, e fala. Assim, cada

coisa é mal ensinada, perdem-se os dias com questões absurdas e

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ensina-se confusamente aos estudantes menos do que um açouguei-

ro, do seu balcão, poderia ensinar ao doutor.”

Assim, o ambiente de desforra dos mecânicos não é apenas

aquele de afirmação das artes mecânicas, mas é, agora, o ambiente

da afirmação da indignidade do saber teórico e do horror que essa

concepção da valorização da teoria sobre a prática implica para

determinadas artes, como é o caso da medicina (embora haja textos

que mostram isso para o direito). Ou seja, trata-se de afirmar,

considerando-se cada lugar onde a relação entre a teoria e a prática

é essencial, o mal que a separação entre artes liberais e artes mecâ-

nicas causou e o estado precário das próprias artes mecânicas, se

elas não se recuperarem como trabalho das mãos, como trabalho da

observação e, sobretudo, com a sua relação com as ciências.

Paulo Rossi e Robert Mandrou lembram, a partir desse

quadro, a posição de Rabelais quando ele escreve Gargantua. Rabe-

lais vai propor um programa de ensino e estudo para Gargantua, o

qual colocava o conhecimento das obras dos artesãos como ele-

mento primeiro e indispensável para a formação do jovem. Gargan-

tua ia às oficinas e estudava ciências naturais, aritmética, geometria

e fazia exercícios físicos. Nos dias de chuva, dedicava-se à pintura

e à escultura. Depois, acompanhava seu mestre às oficinas dos

fundidores de metais, dos ourives, dos quebradores de pedras, dos

alquimistas, dos relojoeiros, dos tecelões, dos tintureiros e dos

organistas. A formação do jovem Gargantua era tal que o conhe-

cimento técnico e o conhecimento das artes liberais e da filosofia

da natureza eram inseparáveis. Rabelais está exprimindo no pro-

grama de estudos para Gargantua exatamente aquilo que os novos

técnicos (Vesálio, Palissy, Vives) estão propondo para as artes e as

ciências. Eu leio o comentário de Paulo Rossi:

“Palissy, o marinheiro inglês Norman, Vives e Rabelais,

em diversos níveis e com diferentes intenções, haviam dado ex-

pressão à exigência, muito difundida na cultura do século XVI, de

um saber em que a observação dos fenômenos, a atenção às obras,

a pesquisa empírica fosse mais importantes do que as evasões

retóricas, as complacências verbais, as sutilezas lógicas e as cons-

truções apriorísticas. Em nenhuma das obras dos técnicos, eviden-

temente, é possível ver o nascimento de um novo método, consci-

ente de suas implicações, e capaz de trazer modificações às siste-

matizações teóricas e determinadas das ciências.”

Marilena abre um parêntese: esse novo método será obra de

dois grandes modernos, Bacon e Descartes; são eles, assim como

Galileu, evidentemente, que trarão a noção de que isso que estão

fazendo exige um novo método. Nas obras dos técnicos e de alguns

dos filósofos naturais, por exemplo, Zabarella, não há a ideia de

que isso que está sendo feito precisa ser sistematizado por meio de

um novo método de conhecimento. Ainda não há essa ideia.

(continuação do texto de Paulo Rossi)

“Qual é, então, o significado, dessa mutação que aparece na

obra dos técnicos, e que eu estou chamando de “a desforra dos

mecânicos”? Seu significado deve ser buscado em outra parte, qual

seja, na capacidade mediante um recurso à natureza e à elaboração

de técnicas transcritivas transmissíveis de questionar os quadros

tradicionais de um saber no qual a apresentação sistemática era

uma atividade marginal ou secundária.”

O que Paulo Rossi está dizendo é que a novidade que é tra-

zido pelos técnicos é a introdução como prioritário aquilo que ou

era inexistente ou secundário, ou seja, a observação direta da natu-

reza. Não se pode cobrar isso de Aristóteles que, diferentemente de

Platão e da maioria dos filósofos gregos, era um médico, um biólo-

go, um observador da natureza. Tudo o que ele escreveu, ele o fez a

partir da observação. Mas é isso que o correr do tempo esquece,

sobretudo porque há uma determinação socioeconômica na divisão

entre artes mecânicas e artes liberais. Não podemos dizer, no entan-

to, que isso é um retorno à Aristóteles, mas um retorno a uma certa

compreensão de que o saber só se realiza por observação direta da

natureza. Isso terá consequências gigantescas para o saber moder-

no, que veremos mais adiante.

Essa atitude que aparece nos técnicos não é isolada: apare-

ce na Espanha de Vives, na França de Rabelais e na Inglaterra de

Gilbert, autor da primeira grande obra sobre o magnetismo, De

Magnete, que propõe um programa de educação para o jovem

gentleman, que devem aprender não só as ciências, mas a filosofia

natural, por meio da observação, e frequentar os ateliês e as ofici-

nas dos técnicos. Esse novo gentleman está sendo preparado para

frequentar uma nova classe social em ascensão, a burguesia, que

não tem a menor vergonha de usar as mãos.

Robert Mandrou, em Dos Humanistas ao Homens de Ciên-

cia, séculos XVI e XVII, faz uma apreciação do que acontece com

a mudança no campo das técnicas tomando como ponto de partida

a invenção da impressa, portanto, o surgimento do livro. Ele vai

afirmar que a invenção da imprensa criou uma quantidade nova de

ofícios, que não existiam antes e, sobretudo, um tipo novo e muito

peculiar de intelectual, o livreiro-impressor-editor, que realiza em

seu ateliê todas as etapas da produção de um livro. Tal produção

começa com a necessidade de o indivíduo ser um leitor, para saber

o que vale a pena ser editado, e um artesão para fazer a prensa, os

tipos, as tintas e imprimir. Ora, à medida que a impressão vai-se

tornando uma técnica poderosa e rica, o que um indivíduo fazia

sozinho, vai sendo distribuído em vários ofícios. Vai haver um

conjunto de novos ofícios que se articulam como efeito de uma

técnica nova, a imprensa. Aqui o que se tem é o efeito no campo

social do surgimento de ofícios novos e atividades novas a partir de

uma técnica, a da imprensa. O que Madrou vai mostrar é que, aos

poucos, o que surge é a ideia de um conjunto de atividades interli-

gadas. O que caracteriza a atividade de um técnico ou de um arte-

são é o fato de ele, sozinho, fabricar o objeto. Isso é tão importante

que cada artesão tem a sua assinatura, deixa a sua marca no objeto.

A grande diferença entre o objeto artesanal e industrial é a sua

individualização (você sabe quem fez o objeto, para quem ele foi

feito e por que razão foi feito). A história da fabricação do objeto

artesanal está escrita nele. O caso da imprensa, entretanto, é muito

peculiar porque, à medida em que ela se espalha por toda a Europa

Page 37: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

37

e se torna uma técnica indispensável para todas as classes sociais,

vai-se impor a necessidade de uma produção de livros em série. E o

ateliê do livreiro deixa de ser o de um artesão que faz o livro inteiro

e cada tarefa vai caber a um artesão. É a primeira experiência, do

ponto de vista da técnica, de trabalho interligado, anunciando o que

vai vir, quase um século depois, com a manufatura. Uma outra

consequência da invenção da imprensa é o fato de ela ser uma

técnica uniformizada e espalhada por toda a Europa. Assim, há

uma homogeneidade na arte da imprensa que não há nas outras.

Mandrou também comenta os primeiros resultados das via-

gens marítimas. O primeiro resultado das viagens

marítimas será a mudança na cartografia. Os mapas eram obra de

fantasia. Agora nasce uma técnica específica de cartografia, que

primeiro introduzi a ideia de mediação, relação entre o navegador e

o traçado no mapa do lugar por onde ele passa e a definição da

posição do céu no mapa. É um conhecimento geográfico, astronô-

mico e de desenho. Além da cartografia, há um conjunto de novos

instrumentos de precisão para a navegação, como o astrolábio, por

exemplo. A navegação trouxe a exigência de instrumentos ade-

quados (o astrolábio, a luneta, a agulha magnética e, depois, a

bússola e o relógico com pêndulo). A navegação

é determinada por uma razão econômica – o fechamento da rota

para o Oriente - e pela exigência de instrumentais fundamentais.

Vejamos um texto do Mandrou quando ele diz que algo

mais acontece. Antes, no entanto, vamos ler um outro texto em que

ele enumera uma série de elementos técnicos que irão entrar.

“Astrônomos, cartógrafos, geógrafos trabalham juntos; os

primeiros, que estudam os pontos fixos propostos para os navega-

dores para seguir o seu caminho e estabelecer a sua posição no

curso da viagem, quando estão longe de toda a baliza terrestre; os

segundos, que procuram construir e desenhar os mapas de que

esses mesmos marinheiros precisam para fixar os itinerários mais

rápidos e mais seguros e reconhecer os lugares de escala e de trân-

sito; e os geógrafos, enfim, para dar a todos aqueles que, na Euro-

pa, se interessam pelos mundos novos, pelas descrições dos países,

dos homens e das suas riquezas. Tudo tem que ser renovado com

relação ao saber antigo, que se revelava inutilizável. Esse lento

trabalho se efetuou com ardor de um mundo cheio de iniciativas,

nos portos e nos meios principescos, isto é, em todo lugar onde a

demanda por esses instrumentos era uma pressão feita. As etapas

dessa elaboração lenta e difícil em escala mundial, e do mundo

agora reconhecido, foram fixadas pelas descobertas e realizações as

mais notáveis até hj. Por exemplo, em 1539, Mercator constroi o

primeiro mapa que contém o essencial das costas reconhecidas

entre 1492 a 1520. E, 30 anos mais tarde, publica o famoso planis-

fério estabelecido segundo a projeção, que porta o seu nome, e

permite a representação da totalidade das terras conhecidas na

superfície do globo. Simultaneamente, Münster se consagra à

mapas às dezenas, e a sua obra fundamental é a cosmografia publi-

cada em 1544. Da mesma maneira, os geógrafos que utilizam os

primeiros relatos dos viajantes e descrevem homens, plantas e

animais por referência às espécies europeias, fornecem dados, a

cada ano, muito mais elaborados e em grande parte renovados.

Dessa maneira, compreende-se que esse trabalho se desenvolveu de

maneira pragmática e durante um longo tempo sem suscitar inquie-

tações e censuras. Mas, os seus postulados essenciais punham em

causa uma parte importante dos ensinamentos consignados nos

livros sagrados, pois toda representação gráfica de uma Terra

redonda girando sobre ela mesma em torno de um sol fixo contra-

diz o sistema ptolomaico ao qual o Antigo Testamento faz referên-

cia: uma Terra plana, no centro do mundo, um céu ordenado a

partir da Palestina, e esse concepção não tem mais nenhum sentido

para quem pratica os novos mapas e a navegação de longo curso.

Enquanto os teólogos continuam a ensinar nas universidades o

velho sistema do mundo, os cartógrafos e astrônomos, na sua práti-

ca cotidiana, racionam a partir de dados da experiência dos mari-

nheiros e verificados pouco a pouco pelos seus cálculos, que esta-

belecem uma imagem nova da Terra.”

O que vai acontecer é que, de modo imperceptível, sem se

colocar sob uma perspectiva religiosa, os geógrafos, os cartógrafos

e os astrônomos, postos a serviço das navegações, vão produzir

uma figura da Terra, do sol, do céu e do mundo que não tem nada a

ver com o sistema ptolomaico posto pela bíblia. E isso sem grande

alvoroço. Vai demorar para a Igreja colocar todos na fogueira e

queimar livros: a reviravolta no plano da técnica, que acompanha o

que é observado pelos marinheiros, arrebenta um sistema científico

completo que vem desde Aristóteles até o século XVI. Tudo que

estava posto cai por Terra, sem que ninguém se dê conta disso, pois

todos estão muito ocupados com os lucros das grandes navegações.

Impérios estão sendo construídos com isso.

Vou ler mais um texto do Mandrou:

“A esfericidade da Terra, o seu movimento sobre si mesma,

entraram na prática corrente da gente do mar, e sem nenhum pro-

blema. Só se tornaram uma questão, evidentemente, quando os

impressores e cientistas que trabalham nessas novas representa-

ções, sem abandonar suas preocupações astrológicas e meteoroló-

gicas, não tiveram escrúpulos de prosseguir nas suas tarefas neces-

sárias: o planisfério, a melhor explicação do novo sistema, tudo

isso exprime essa primazia das necessidades técnicas sobre os

artigos da fé. Ao mesmo tempo, a coexistência, mais ou menos

cômoda, que se estabeleceu, de fato, entre os técnicos e a fé: de um

lado, uma constatação que afirma a esfericidade da Terra, admitida

com todas as suas consequências, e de outro, a afirmação contradi-

tória e considerada uma verdade revelada, não discutível e que, às

vezes, estão sob a mesma cabeça. Não é necessário pensar em

dramas de consciência, por enquanto, porque não parece que os

mais audaciosos cosmógrafos, cartógrafos e geógrafos embaraça-

ram-se com os escrúpulos da fé, e não hesitaram em levar em conta

que os mapas e os dados da experiência eram tão válidos quanto

aquilo que estava na bíblia. O mesmo, entretanto, não aconteceu

com os astrônomos, e sobretudo com o maior da sua geração,

Copérnico. A revolução copernicana é, de uma certa maneira, em

parte, misteriosa. Este sábio passou 40 anos da sua vida exercendo

a medicina e construindo uma nova teoria do mundo em conformi-

dade com os dados fornecidos pelas grandes descobertas marítimas

e apoiados sobre uma massa considerável de cálculos concernentes

à posição da Terra em relação ao Sol e à Lua. Os novos cálculos

que ele realizava determinavam a curva do trajeto realizado pela

Page 38: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

38

Terra em torno do Sol e os limites do mundo finito em cujo centro

está o Sol. O heliocentrismo de Copérnico descreve um céu novo,

que se define ao mesmo tempo como limitado, muito mais vasto

que o céu de Ptolomeu de Alexandria, mas que ainda não é um

espaço infinito. Copérnico avança muito rápido na sua construção

de um conjunto que põe nos seus devidos lugares os elementos de

um novo sistema solar e os define matematicamente uns com rela-

ção aos outros, mas não publica nada. Em 1543, alguns anos antes

da sua morte, ele publica, o famoso tratado De Revolutioni-

bus Orbium Coelestium, a primeiro exposição ainda não completa

de uma cosmologia solar.”

Mandrou mostra como o trabalho dos técnicos, cosmógra-

fos, cartógrafos, geógrafos, marinheiros, etc, teve efeito sobre

aquela que era considerada a mais alta e a mais digna de todas as

ciências, a astronomia. Afeta o saber da mais alta das ciências, a

astronomia. E não afeta pouco, muda o mundo. Em última instân-

cia, teremos uma grande transformação teórica exprimindo a gran-

de mutação técnica que ocorre no final da Renascença. Nesse

período, começam a surgir, não apenas os tratados de pintura,

escultura e arquitetura, mas também tratados sobre máquinas e sua

construção (no final do quatrottento e começo do cinquettento). É

óbvio que a partir das grandes navegações há uma exigência clara

de novas máquinas. E é isso que aparece no Palissy, que propõe

uma quantidade grande de máquinas, e em Leonardo, que estava

interessado em imaginar as máquinas, inventá-las. Um outro sujeito

chamado Kircher, por exemplo, propõe uma máquina para se ler

automaticamente um livro e uma máquina de espionagem para o

rei. Na verdade, esses homens estão inventando autômatos. Há uma

ideia de que a técnica pode propor objetos novos, máquinas novas.

A técnica aparece, então, como uma lógica da invenção, um ins-

trumento para a fabricação de máquinas.

A ideia é que a técnica, enquanto tal, é um tipo de saber

instrumental que permite inventar máquinas novas. Se a gente

resumir o que eu estou chamando de “desforra dos mecânicos”

podemos resumir o que aconteceu com a técnica nos seguintes

pontos: 1) os objetos técnicos agora destinam-se a resolver proble-

mas práticos em todos os domínios da atividade humana. Técnica

significa agora solução de dificuldades práticas em todos os domí-

nios

2) os objetos técnicos são inventos para resolver problemas

antigos e novos

3) os objetos técnicos são projetos para a construção de

máquinas

4) os objetos técnicos são pensados como ferramentas para

o trabalho, instrumentos para a ciência, máquinas para dominar a

natureza

5) como aparece em Vesálio e com o desenvolvimento da

cartografia, a técnica começa a ter uma atitude descritiva, o que

permite a aparição dos herbários e bestiários (fundamentais para a

biologia), de jardins, pomares e grandes extensões de plantações,

essenciais para a agricultura nas Américas.

Os ateliês mesclam a atividade de compra e venda de obje-

tos os quais eles estão destinados a fabricar e combinam isso com a

noção de experimentação. Ainda não é o experimento, mas já é

uma experimentação do tipo ensaio e erro.

Eu passo agora à segunda parte da aula

O outro lado do desenvolvimento da técnica

Há um outro desenvolvimento que é feito, sobretudo, pelos

platônicos e neoplatônicos de Florença, a partir da tradução enco-

mendada por Lorenzo de Médici a Marsilio Ficino do Corpus

Hermeticum, que vai se estender pouco a pouco para o restante da

Itália e toda a Europa, a magia natural. A magia natural vai se

desenvolver, por exemplo, na Inglaterra com Dee, astrólogo da

rainha Elizabeth, e com o grupo que está no Colégio Invisível de

Rattle; na Alemanha, com Paracelso e os Rosa Cruz; e na Itália, até

encontrar o seu apogeu com G. Bruno e Agripa. Espalha-se por

toda a Europa.

A magia natural é constituída pela astrologia, alquimia,

medicina hermética e numerologia. Não há um rei, um imperador

em toda a Europa que não tenha o seu astrólogo ou o seu alquimis-

ta.

Para entendermos as principais ideias que estão sendo de-

senvolvidas pela magia natural (que se autodenomina A Arte – a

magia natural é dita A Arte), eu gostaria de lembrar rapidamente

como se organiza o cosmo sob o ponto de vista da Renascença

(platônica). Vou tomar como exemplo o capítulo 2 do livro de

Foucault, Les mots e les choses , intitulado A prosa do mundo. Há

um equívoco neste texto porque F. considera que a descrição que

ele vai fazer é válida para toda a Renascença. Não é, é válida ape-

nas para o platonismo renascentista. Não é válida para o aristote-

lismo, estoicismo e epicurismo.

De acordo com F., o saber da Renascença organiza-se em

torno de um núcleo fundamental, a semelhança. A semelhança é o

grande dispositivo teórico e prático para a construção do saber até

o final do século XVI. A semelhança vai constituir uma trama

semântica obtida por meio de 4 grandes articulações ou maneiras

pelas quais a semelhança se apresenta. A primeira é a conveniência

ou a concordância. São convenientes ou concordantes as coisas

que se aproximam até se juntar e depois se fundir, de tal modo que

a extremidade de uma é o começo da outra. As coisas se comuni-

cam e comunicam os seus movimentos, as suas paixões e as suas

propriedades. E essa comunicação que estabelece a concordância

entre as coisas decorre do lugar, ou seja, a concordância se estabe-

lece entre coisas espacialmente próximas (a alma e o corpo, os

peixes e a água, os pássaros e o ar). Essa proximidade espacial é o

signo de um parentesco entre as coisas, que convêm umas com as

outras porque são parentes. O que acontece é que, de

proximidade em proximidade, todas as coisas se avizinham. A

última é vizinha da primeira graças a toda a cadeia de coisas vizi-

nhas. Assim, o mundo é uma cadeia contínua de concordância ou

parentesco entre as coisas. A segunda articulação é a aemulatio ou

emulação. Agora a concordância não vai mais depender da proxi-

midade espacial, pelo contrário, irá se realizar à distância, sem

contato. Por exemplo, os nossos olhos emulam as duas grandes

Page 39: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

39

luminárias do céu, o sol e a lua. O nosso intelecto emula

o intelecto divino, as flores emulam as estrelas do céu, as estrelas

do céu emulam as flores da terra. Não há contato, apenas um espe-

lhamento, as coisas se espelham, se imitam umas as outras, sem se

tocar, de tal forma que o mundo é um espelho de milhares de espe-

lhos, uma reduplicação interminável. E a mais célebre das emula-

ções é a que o olho é a janela da alma e a alma é o espelho do

mundo. É por isso que, na pintura renascentista, os olhos de toda

criatura pintada tem uma pequena mancha branca, que é a luz

indicando a alma que está atrás desse olho. A terceira forma de

semelhança é a analogia. Agora não se trata mais de proximidade

espacial nem de imitação à distância ou de espelhamento à distân-

cia. A analogia opera com a semelhança invisível ou sutil. Por

exemplo, a planta é um animal de cabeça para baixo e o animal é

uma planta de cabeça para cima. A analogia é a semelhança mais

universal, a mais privilegiada de todas as semelhanças, porque é ela

que define o ser do homem como microcosmo. O homem é um

microcosmo porque é a analogia de todo o Universo. E, finalmente,

a quarta articulação da semelhança é a simpatia, que não precisa da

proximidade, como a concordância; do espelhamento, como a

emulação; nem da invisibilidade, como a analogia. A simpatia é o

processo de mobilidade de todas as coisas, os movimentos pelos

quais as coisas aproximam-se, tornam-se convenientes, imitam-se,

emulam-se ou entram em analogia. É, portanto, o princípio das

outras semelhanças, o que torna possível as outras semelhanças,

porque refere-se às qualidades secretas das coisas, as quais deter-

minam o deslocamento das coisas umas em direção às outras, para

se fundir umas nas outras e perder a identidade singular. Por isso, a

simpatia é perigosa, pois, se tudo funde-se com tudo, o cosmo, a

ordem do mundo, desaparece. É preciso um contrapeso para a

simpatia, que é a antipatia, a qual permite o isolamento entre as

coisas, a preservação das espécies. A antipatia é o que vai encerrar

cada espécie nela mesma, odiando todas as outras que queiram

fundir-se com ela. E é esse balanceamento simpatia-antipatia a

condição da realização da concordância, da emulação e da analo-

gia. Ora, para que as coisas possam operar, para que todos os seres

possam se reconhecer para se aproximar ou se afastar, é preciso

que todos os seres sejam signos, sinais. E o conhecimento é, por

isso, um deciframento de sinais: conhecer é decifrar e interpretar os

signos. Assim, a semelhança nas suas 4 articulações é o fundo

invisível no qual todas as coisas e suas operações tornam-se visí-

veis para nós. Mas a própria semelhança permanece invisível, é o

fundo invisível de toda essa visibilidade. E é ela que precisa ser

decifrada e interpretada, ela é a estrutura do mundo. Ora, o deci-

framento e a interpretação da semelhança é a magia natural. A

magia é essa decifração e interpretação do fundo invisível do cos-

mo. Isso significa que a magia natural vai partir de uma concepção

muito determinada do mundo ou da natureza. Em primeiro lugar,

uma vez que a semelhança opera com essas 4 articulações, é óbvio

que a natureza como tal opera sob a ação do desejo. A natureza é

desejante e desejosa. É por isso que as relações entre os seres são

relações de concórdia e discórdia, atração e repulsão, simpatia e

antipatia, harmonia e contradição, enfim, todas as maneiras como

as coisas se relacionam decorrem do fato de a natureza estar estru-

turada como desejo. Isso porque a natureza é um ser vivo. Segunda

característica da natureza: ela é sempre o resultado da conformida-

de entre a matéria e a forma de um ser e a conformidade delas,

matéria e forma, com a causa eficiente que coloca a forma na maté-

ria. É por isso que o mago, além de conhecer a matéria e a forma,

tem que saber qual é a causa eficiente. A natureza é um ser vivo,

um vivente, constituída qualitativamente de um sem número de

substâncias individuais, todas formadas a partir dos 4 elementos:

água, ar, fogo e terra. Tudo são esses 4 elementos. As coisas de-

pendem de como esses 4 elemento vão se combinar em função da

forma que irão receber. Por que a natureza é um ser vivo? Porque é

um ser animado, tem uma alma, a alma do mundo. A alma do

mundo é que determina os laços secretos entre todas as coisas. É

ela que permite que a alma do homem possa agir sobre os corpos e

dispô-los de maneiras variadas, agindo tanto direta quanto indire-

tamente (indiretamente por meio dos sonhos, da linguagem, dos

talismãs). A magia natural considera que o Universo é uma hierar-

quia de seres segundo o seu grau de perfeição (concepção neopla-

tônica), indo da luz pura, Deus, até a treva absoluta, que é a matéria

sem forma. Entre o mundo celeste e o mundo terrestre, existe um

mundo intermediário, o mundo astral, o mundo dos 7 planetas.

Esse mundo é invisível de espíritos, almas e demônios. O homem,

na condição de microcosmo, possui um corpo material (água, ar,

terra e fogo), ou corpo terrestre, e um espírito com o qual ele parti-

cipa do mundo celeste. Ocorre, entretanto, que a delicadeza do

espírito e a brutalidade da matéria (dos 4 elementos) tornaria a

relação impossível (haveria uma antipatia ontológica). O que torna

possível a reunião é o fato de o ser humano possuir também um

corpo astral, um corpo sutil, que não é o espírito nem a matéria. É

uma anima sutil, que permite não apenas que o espírito penetre no

corpo sem se machucar, isto é, que o corpo consiga receber o espí-

rito (porque vem envolvido no corpo astral), mas é esse corpo

astral que permite ao homem conhecer a natureza, porque conhecer

a natureza é conhecer a alma do mundo, o corpo astral do mundo.

É por isso que a astrologia tem o papel que tem.

Como o homem é um microcosmo, opera exatamente como

a natureza e, por isso, pode agir na natureza e sobre ela. Tem um

poder absoluto sobre a matéria e vai agir sobre ela por meio do

mundo astral, ou da magia astral, a astrologia. O que é, então, a

magia? A magia é a ciência das causas ocultas que as demais ciên-

cias não são capazes de demonstrar. É por isso que ela é A Arte, a

ciência que é condição para todas as demais. O que é o mago? O

mago é aquele que reverencia a natureza, mas que opera para acele-

rar ou desacelerar as operações naturais. Para poder agir, acelerar

ou desacelerar processos naturais, o mago precisa conhecer todas

as coisas (os 4 elementos, as 4 causas, as 4 articulações da seme-

lhança, a relação entre os vegetais, os minerais, os animais e os

astros. Por exemplo, para fazer uma poção que funcione, primeira-

mente o mago deve conhecer o temperamento do paciente; essa

poção pressupõe que ele, mago e médico, conheça quais são as

pedras, as flores, as ervas, os vegetais, os animais, os astros, os

perfumes, etc, mais adequados a esse temperamento. Nessa peque-

na poção está contida a súmula do Universo inteiro. O mago deve

conhecer todos os vínculos.) É preciso conhecer

todas as coisas para poder intervir na natureza. É por isso que se

diz que Paracelso e G. Bruno exprimem o espírito fáustico da

Renascença (referência a Fausto, de Goethe): vende-se a alma para

Page 40: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

40

o demônio se isso significar a possibilidade de infusão do conhe-

cimento completo do Universo. Paga-se qualquer preço para se ter

isso. O mago tem que conhecer o sistema completo das semelhan-

ças do Universo, de cada espécie, dos homens em geral e do indi-

víduo sobre o qual ele vai agir. É a arte operando do universal para

o particular, ao contrário da técnica, que opera do particular para o

universal.

A pergunta é: por que a magia é possível? A resposta é du-

pla: 1) porque a própria natureza é maga, ou seja, cada coisa da

natureza possui uma qualidade secreta, uma propriedade secreta e

uma potência secreta, que são mágicas. O mago apenas desvenda,

acelera ou desacelera esse segredo. A própria natureza já é magia.

A segunda resposta é 2) a magia é possível porque o espírito do

homem é mago; o homem recebeu de Deus o poder criador. Ora, o

que é a criação por parte do homem. É essa capacidade que ele tem

de transformar em coisas o que existia como pensamento e palavra.

Uma passagem da imaterialidade do pensamento e da palavra para

uma coisa é que mostra que o homem é mago, que tem a potência

criadora. Neste momento, Marilena apresenta o quadro que compa-

ra magia e técnica (ver cópia).

Diferença entre a magia natural e as técnicas: magia natu-

ral, no singular, dita a arte; as técnicas, no plural, ditas as artes. O

mago é aquele que conhece as hierarquias dos seres e os vínculos

secretos entre as coisas; o técnico, aquele que resolve problemas e

dificuldades práticas em domínios específicos da atividade huma-

na. O mago decifra a natureza, o técnico, descreve-a; o mago reve-

rencia a natureza, o técnico usa a astúcia perante a natureza. Na

arte, alguma coisa é produzida graças a conformidade entre o mo-

delo que existe no espírito do mago e as coisas, o visível, e as

ideias, o invisível. A técnica é uma lógica da invenção

cuja metáfora é a caça: penetrar em território desconhecido e agar-

rar a presa. A arte depende do conhecimento da natureza e da

cooperação dos elementos constitutivos da natureza. A técnica

depende do engenho do técnico. A arte depende da cooperação

entre o visível, os 4 elementos, e o invisível.

A técnica depende da capacidade do técnico e dos instru-

mentos disponíveis para invenção de um instrumento novo. Os

instrumentos do mago são: talismãs, poções, amuletos, números,

figuras místicas, palavras místicas. Os instrumentos do técnico são:

aparelhos de medição, ferramentas, máquinas, instrumentos de

precisão. Finalidade da magia: penetrar em um segredo da nature-

za. Finalidade da técnica: agir com eficácia para resolver um pro-

blema prático ou teórico.

Aula 07 (24-09-2012)

Contextualização histórica

(Comentários acerca do desenho na lousa, que envolve a

passagem da Renascença para a Modernidade)

No final do séc. XVI as conquistas ultramarinas, a forma-

ção dos impérios ultramar e o desenvolvimento do capitalismo

comercial ou capitalismo mercantil ou mercantilismo criou um

conjunto de exigências do ponto de vista econômico e político que

incidiram diretamente sobre as técnicas. Havia exigências da nave-

gação, da manufatura, do comércio que impulsionaram as artes

mecânicas de uma maneira muito peculiar que será o objeto do

nosso estudo em torno da Modernidade que é a articulação que se

estabelecerá entre as artes mecânicas (ou técnicas) e o conhecimen-

to científico e vice-versa. Então, no caso da navegação, a questão

da velocidade dos navios; na urbanização a construção de canais

navegáveis para receber os navios próximos das cidades para que o

comércio se desenvolvesse, a necessidade de ter uma orientação

mais segura nos oceanos porque agora não é mais uma navegação

pelos mares em que as costas são razoavelmente próximas, mas é

uma navegação por aquilo que era chamado de mar oceânico, a

imensidão, lá onde não tem caminho, então problemas de astrono-

mia, cronometria, teoria das marés, teoria dos ventos, a necessidade

da construção de relógios de precisão, por outro lado a descoberta

das minas nas Américas e depois o início do desenvolvimento de

uma manufatura vinculada à metalurgia criou uma série de proble-

mas ligados à mineração: ventilação das minas (aerostática), a

necessidade de bombas hidráulicas (hidrodinâmica), formas de

extração e transporte dos minérios, abastecimento urbano de água,

desenvolvimento para um mercado da tecelagem, da tintura, que

colocavam problemas químicos e vão provocar uma passagem da

alquimia para a quimica propriamente dita, o nascimento da cha-

mada arte da guerra mecânica, baseada na nova mecanica, nas

novas leis do movimento, que vaõ determinar a balística e constru-

ção de armas.

Há um conjunto de acontecimentos econômicos e políticos

que vão incidir sobre a questão das técnicas e essa incidência vai

exigir um tipo de operação técnica que vai articular doravante e

para sempre a técnica e a ciência. Aquilo que vimos no começo do

curso, a saber, que a idéia antiga está sistematizada em Aristoteles

e que a ciencia é contemplacao de um lado e a a técnica é experiên-

cia e aplicação de outro; isso que já a Renascença foi pondo em

questão agora se completa o processo da articulação entre a ciência

e a técnica. O segundo ponto é que apesar da célebre afirmação de

Descartes, nas Regras para a direção do espírito, e depois no Dis-

curso do Método, que a ciência é obra de um só (cada um deve

fazer sozinho o percurso completo de reflexão para realizar uma

ciência –que tem a ver com a metafísica cartesiana) tornou-se

evidente que a ciência não pode ser obra de um só. Ela vai se tornar

um empreendimento coletivo e público. O trabalho científico vai

começar a ser patrocinado pelos reis, o Estado começa a patrocinar

pesquisar científicas e o saber será pensado como saber público,

em oposição ao saber secreto das igrejas e o saber secreto dos

magos. O saber se torna uma obra coletiva e pública, [obra] de

cientistas (cientista significa filósofo. A distinção entre Filosofia e

Ciência ocorre no final do séc. XIX a partir de Auguste Comte.

Antes disso ciência é o conjunto de todos os saberes, isto é, a filo-

sofia) e técnicos de tal maneira que os laboratórios não são apenas

lugares de pesquisa, mas também lugares de colaboração e coope-

ração coletiva.

As correspondências no séc. XVII são extraordinárias –não

havia revistas, periódicos –, pois há troca ininterrupta de idéias. A

correspondência é tão essencial quanto as obras individuais de cada

pensador e os trabalhos realizados nos laboratórios; ela é o momen-

to no qual o caráter público do conhecimento melhor se manifesta.

Page 41: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

41

A troca de correspondências não é apenas um “dar notícias de”, por

exemplo, há uma troca epistolar entre Espinosa e Boyle em que o

último apresenta ao primeiro os experimentos que ele está reali-

zando com o nitro e Espinosa examina esses experimento e os

refuta. As cartas de Descartes para Mersenne, para os geômetras do

tempo; as cartas de Hobbes para os matemáticos de (...

...), ou seja, há um conjunto de expressões

epistolares que são constitutivas das obras, não algo que se passa à

margem. A correspondência determina mudanças no pensamento

de um cientista, de um filósofo, e ele provoca essa mudança nos

outros. A idéia é: o saber circula, é público e coletivo. Isso signifi-

ca que os pontos mais altos se realizam evidentemente fora das

universidades, que são avessas a um pensamento novo (como

exemplo temos a Universidade de Pádua, onde está Galileo, o

College de France em Paris e o Society em Londres) e permanecem

vigorosamente aristotélicas. Até o instante (séc. XVII) em que

Francis Bacon consegue ser estudado nas universidades inglesas, e

no restante do continente, Descartes.

Exame da Astronomia como (lento) processo à

Modernidade

Esse quadro que desenhei representa a mutação que ocorre

da técnica em tecnologia. Tecnologia significa o objeto técnico é

produzido a partir de um conhecimento científico e ele intervém na

produção de conhecimentos científicos, não é portanto um simples

instrumento para fabricação de alguma coisa –é também, mas

principalmente – um instrumento de precisão. Essa passagem da

Renascença para a Modernidade não é um salto: sabemos que o uso

da expressão Revolução Científica e a idéia desenvolvida pelo

Michel Foucault, pelo Thomas Kuhn de que a história da ciência é

descontínua e ela se faz por ruptura não significa que a ruptura é

um salto instantâneo; a ruptura é resultado de um lento processo,

então eu sou a favor da noção de continuidade. O resultado da

continuidade vai numa direção tal que o que ela vai acumulando

nela produz uma mudança irreversível. Quero exemplificar esse

lento processo tomando como referencia a Astronomia (embora

pudéssemos usar qualquer Ciência, a Física, a Química) por razões

quase poéticas. Temos no desenho [da lousa] o modelo geocêntri-

co, cuja idéia fundamental é que a Terra está imóvel no centro e os

sete planetas que circundam a Terra (“planeta”, do grego, significa

errante) e o céu das estrelas fixas –as quais vemos, a partir do

mesmo lugar, a mesma configuração imutável de estrelas, ao con-

trário dos planetas em termos de localização, pois sua trajetória

obedece a muitas variáveis – e, finalmente, a trajetória dos planetas

é circular, pois (segundo os gregos) o círculo é a figura perfeita:

não tem começo nem fim e é a união dos opostos, é côncavo e

convexo ao mesmo tempo. Então o céu só pode ser perfeito, porque

Aristóteles já explicou, existem cinco substâncias: o ar, a água, a

terra, o fogo (materiais e corruptíveis, formam o mundo sublunar) e

o éter (substância diáfana e sutil, eterna e incorruptível). O céu é

composto de esferas nas quais os planetas ficam presos, através das

esferas diáfanas, transparentes.

Qual é o problema posto pelos errantes? Eles nunca estão

no mesmo lugar, então os astrônomos tiveram de desenvolver um

sem-número de procedimentos que culminam posteriormente na

astronomia ptolomaica de alexandria com os chamados epiciclos,

os aferentes e eferentes, isto é, um conjunto de círculos sobrepostos

e articulados uns aos outros para cada planeta para explicar a mu-

dança de lugar (de círculo) no céu.

Copérnico mantém o círculo, mas coloca, por conta dos

navegantes, o Sol no centro do sistema, ademais os errantes e o céu

das estrelas fixas. Este sistema é recusado pelo maior astrônomo

depois de Copérnico Tycho Brahe. Ele [Tycho] se mantém no

geocentrismo, mas se caracteriza por algo novo: desenvolveu uma

série de instrumentos para a medição dos astros, o cálculo do nú-

mero de astros, o cálculo do movimento dos planetas e o cálculo

dos aferentes e eferentes que permitiu a ele simplificar enorme-

mente o sistema ptolomaico. Demonstrou que há movimento dos

planetas, mas este movimento é regular se tomarmos como referên-

cia o Sol em vez da Terra. Tycho não se torna, com isso, um co-

pernicano. Kepler se dedicou muito à análise dos movimentos de

Marte, pois dentre todos os planetas aquele que tem o movimento

mais irregular e desesperador para os astrônomos é Marte. Neste

romance que lerei a vocês há toda uma suposição de que Kepler ia

ao laboratório que o rei da Dinamarca fez para Tycho Brahe vascu-

lhar os escritos de Tycho acerca dos movimentos de Marte e o

romance diz que, quando Tycho morre, Kepler rouba os papéis

com os cálculos e medições de Marte. Assim, Kepler chega a con-

clusão que não apenas é necessário manter o heliocentrismo mas,

sobretudo, que o movimento dos astros é elíptico. Tycho fez des-

cobertas que derrubaram a idéia de que a substância do céu era

incorruptível, eterna e diferente da substância sublunar ou terrestre:

descobriu uma estrela nova, fases da Lua, manchas solares e um

cometa atravessando a atmosfera de Vênus, isto é, desmanchou a

noção de perfeição do céu. Ele possuia explicações para alguns

destes casos: o evento da estrela nova que, enquanto tal pode ser

explicada como um evento excepcional, não interfere na perfeição

celeste, mas as manchas solares não puderam ser explicadas em

absoluto.

Kepler imediatamente propõe um sistema heliocêntrico e

elíptico, mas mantém fixo o limite do universo ao sistema solar –

até Nicolau de Cusa, Giordano Bruno, Galileo Galilei, Descartes,

Espinosa e Leibniz, quando se introduzirá a noção de universo

infinito. Kepler admite que deve haver um limite, pois se não o

houver o mundo é incalculável, irracional, e não poderia ser um

mundo feito por Deus, o geometra perfeito. É por razões teológicas

que Kepler exige que o universo tem um limite. Galileo e Descartes

não ousam dizer infinito, pois eles ainda estão ligados à noção

clássica, aristotélica, de infinito como infinito potencial, isto é,

aquilo que não tem começo nem fim, que não é infinito mas indefi-

nido. Giordano Bruno diz que não há nenhuma razão (causa racio-

nal) para que a natureza (universo) não seja infinita e que não haja

infinitos mundos infinitos, portanto a idéia de que há um limite é

irracional. Bruno é o primeiro a afirmar: não o limitado nem o

indefinido, mas o infinito. Mas será preciso esperar Espinosa para

que este infinito seja um infinito atual: o infinito não é o que não

tem começo nem fim, mas aquilo que existe pela necessidade de

Page 42: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

42

sua própria essência; o infinito é, portanto, Deus. E veremos por-

que Deus é imanente ao universo que é um efeito Dele, portanto o

universo é um efeito infinito da potência infinita de Deus e esse

infinito é atual, aqui, agora, já, e essa idéia será retomada matema-

ticamente por Leibniz quando este cria o cálculo infinitesimal. É

preciso quase um século e meio para que tudo isso se desenvolva e

é esse processo, essa lenta mudança que receberá o nome –num

ponto preciso – de Modernidade.

Tycho Brahe, Kepler e Galileo: Pré-

Modernidade

(Supus o que era citação e o que não era, mas pode haver

mistura eventual dos elementos

O romance O homem que mudou o céu, de Francesco On-

garo, narra a obra e vida e Tycho Brahe e a criação do observatório

na Dinamarca. Essa história é contada por um anão que é colocado,

desde muito jovem, como empregado de Tycho carregando instru-

mentos, lavando etc. Pouco a pouco Tycho Brahe se dá conta que

Jep é promissor e deixa que ele comece a trabalhar com alguns de

seus discípulos nas medições e contagem das estrelas que era feito

por Tycho acerca dos planetas e Jep acerca das estrelas fixas.

Tycho morre, a família se dispersa, o laboratório é destruído, os

discípulos se dispersam, Jep vai embora. Depois Jep volta no anti-

go observatório que está em ruínas e recomeça a anotar o número,

a posição e o tamanho das estrelas e, certo dia, um dos discípulos

de Tycho vai ao observatório visitar Jep. O discípulo traz um pão e

um objeto estranho enrolado num pano.

“A lua havia descido, a noite estava negra. No céu, salpica-

do de estrelas, distinguia-se com clareza a via láctea, as constela-

ções deslizavam na calma deriva da abóboda celeste. Olhei para o

alto procurando a estrela para a qual deveria apontar meu triqueto

naquela noite. Até a noite anterior não havia nada no pé do setentá-

rio, mas ali eu percebi um astro de brilho incomum, seu fulgor

superava o de qualquer outro planeta (porque será precisa esperar

Galileo para dizer que planeta não tem luz própria. Aqui, no con-

texto do romance consideramos que planeta é uma estrela errante)

cintilante como um diamante, rutilava como todas as cores do arco-

íris imóvel nas proximidades de saturno e jupiter quase em conjun-

ção e bem mais luminoso que eles. Arrebatado olhei para a estrela

por instantes que pareceram eternos, imóvel como uma pedra

mantive uma única dúvida. Uma estrela nova. Num céu flamejante

pareceu penetrar naminha mente, fogo e luz riscavam a esfera do

meu céu eterno. Eu também, assim como Tycho havia encontrado a

minha estrela. Preparei um instrumento para medir sua posição, eu

tremia, custei a apontar o braço móvel. Talvez aquilo fosse um

sinal divino, um fio esticado que me ligava a meu protetor, como-

vi-me profundamente. O céu me sussurrava que o caminho que eu

havia tomado estava certo”

(Aí vem o amigo italiano.) Eles conversam: “Montano não

respondeu a minha pergunta, cerrou os olhos como que para des-

cansar as pálpebras no último dia do calor.

– Estou cansado, ele diz, da viagem, dos anos. É possível

se cansar também dos anos que recebemos do destino? O último

raio de luz desapareceu atrás do horizonte, a sombra da noite como

se fermentasse nas folhages sacudida pelo vento engoliu a costa –

levantei e me disse – Eu queria rever esses lugares e depois espera-

va encontrá-lo. Perguntei como sabia que eu estava aqui. –Para

onde mais poderia ter ido?

Atravessamos a casa dirigidos à cozinha. Através dos anos

as minhas frágeis forças não souberam impedir a ruína. Parte da

cobertura da biblioteca e do observatório meridional haviam desa-

bado. (... ...), como vê, está muito diferente do que era

antigamente, eu disse. Na lembrança é igual. Onde hoje qualquer

um só consegue ver desolação nós dois vemos a vida que há no (...

...). Cabe a nós manter vivo o passado. Fiz com

que ele se sentasse perto do fogo apagado. Eu havia fabricado para

mim uma mesa e um par de bancos.

–Posso lhe oferecer algo para comer? – servi-lhe uma tijela

de verduras refogadas ainda quente. Comeu devagar, em silêncio,

os olhos fixos na fuligem que cobria os tijolos do fogão. Quando

tinha quase terminado me perguntou:

–O que você fez em todos esses anos?

–O catálogo das estrelas, respondi. Agora são mais de mil,

está tudo escrito aqui, até a estrela nova, que apareceu no céu

poucos meses depois da minha chegada à ilha – Montano pegou

meu trabalho e o estudou. –Ainda está incompleto, eu disse.

-Até que ponto você quer ir?

-Quero catalogar todas as estrelas visíveis – Um suspiro es-

capou de seus lábios. Me devolveu as folhas e me olhando fixa-

mente me disse devagar: -Muitas coisas aconteceram nestes anos,

novas descobertas apontaram caminhos desconhecidos, a Astrono-

mia não é mais aquela de Tycho, se renovou como ele desejava.

Kepler demonstrou matematicamente utilizando observações de

Marte que os planetas se movem em torno do Sol seguindo uma

trajetória elíptica e não circular, e também explicou a razão das

diferentes velocidades dos planetas em seus percursos sem usar os

equantes (aferentes e eferentes), mas simplesmente levando em

consideração a área varrida pela linha da conjunção Sol-planeta.”

Uma trajetória elíptica? – Sim, a elipse, como já havia ex-

plicado Apolônio, é uma curva que se obtém interceptando um

cone com um plano não perpendicular ao seu eixo e que não passe

pela sua base. Kepler a reconstruiu ponto por ponto usando as

observações de Tycho.

Da interpretação ptolomaica e aristotélica não resta muito.

Poucos a defendem. (00:42:57) Despertou muito reboliço a obra de

um italiano chamado Galileo, que aperfeiçoou o instrumento de um

flamengo, instrumento tal que aproxima os objetos muito distantes

e teve uma intuição genial ao apontar este instrumento para o céu e

ver o que nenhum outro homem antes viu: os montes e canais

lunares, quatro novas luas em torno de Júpiter, as fases de Vênus e

uma das provas a favor do sistema copernicano. Empalideci e

quase balbuciando consegui dizer: -Meu Deus, até você se tornou

copernicano!

Page 43: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

43

-O que você precisa completar? – pergunta Montano

-Já te disse: um catálogo com todas as estrelas que se vêem

no céu. Todas. E quando ficar pronto o enviarei a você. Você me

ajudará a vê-lo impresso? – juntou as mãos atrás das costas e não

respondeu. Eu desejava acompanhar Montano ao embarque, mas

ele não quis que eu descesse ao porto. Nós nos despedimos na

aldeia. Ele parecia me evitar, permanecia ao meu lado, quieto.

Depois tirou da bolsa um objeto envolvido em alguns pedaços de

pano. – Pegue, me disse, é uma cópia exata do perspicillum de

Galileo. Fiquei na dúvida por um bom tempo. Depois que me

contou do seu trabalho eu pensei em não o dar a você, pois você

vai usá-lo apontando para o céu e daí vai tirar só desapontamentos.

Mas depois fiquei convencido e por mais dolorosa que seja você

tem direito de saber a verdade. Você é um filho de Tycho Brahe

como eu. – Jep passa dias rodeando a luneta.

Os primeiros clarões da manhã me encontravam agarrado

com as duas mãos ao corpo do perspicillum exausto. Acompanhei

as fases de Vênus que se distribuiam ordenadamente durante as

inovações do astro em torno do Sol e os planetas que Galileo havia

nomeado medicianos se alternarem em torno do imenso volume de

Júpiter. Eu me vi desabando dentro de um precipício transparente,

arremessado no vazio da visão que se tinha desdobrado diante de

mim. Se as previsões de Copérnico estavam corretas as dimensões

do universo eram muito maiores que qualquer cálculo aceitável

racionalmente. As paredes reconfortantes do universo de Tycho

tinham sido escancaradas deixando nas garras do nada. Ingênuo,

arrogante, eu pretendera catalogar o que não era catalogável, o que

representava um pálido reflexo da misteriosa vontade divina e não

a sua humana interpretação. Montano achava que eu tinha o direito

de saber a verdade, mas a verdade tinha um gosto que empastava a

boca e que apagava para sempre todo o sentido e toda a esperança

da minha vida. (Ele viu o infinito.) Na virada de uma noite abando-

nei a observação do céu e oprimido pela frustração e com os olhos

cegos de lágrimas parti o perspicillum em mil pedaços. Depois

peguei meu colchão de palha, deixei a cozinha e me retirei para o

subterrâneo onde tinha sido o laboratório de alquimia. As bocas

vazias dos fornos me acolheram em um negro risinho de sua deso-

lação. Abandonei o céu para me arrastar no ventre da terra como se

as sombras representassem a única proteção que me restava. Arran-

jei-me o melhor que pude. Uma vez mais na minha vida eu me

encontrava recomeçando de um monte de restos.

Ele viu um céu que não tinha fim e faz a seguinte pergunta:

(se vocês olharem esses três mundos antes disso aqui ficar (...

...) é muito fácil entender porque a história da

filosofia até Giordano Bruno e depois até Espinosa puderam con-

ceber a transcendência de Deus ao mundo, à Natureza.) onde está

Deus? Por detrás da curvatura imperceptível da esfera das estrelas

fixas pronto para nos acudir, nos punir, pronto para nos conceder

suas palavras de advertência, agora, ao contrário em que lugar o

exilaram? Existe um Deus adequado para este universo infinito?

Devemos inventar um outro, substituí-lo por um número, por uma

nova substância? O mundo assim como eu aprendi não existe mais.

Uma luz irreverente invadiu a cena rarefazendo a sombra em que

se alinhava o mistério. No fundo, até Tycho Brahe procurava por

isso. Pagamos um preço justo? Era isso que ele aspirava? E essa

pergunta vocês reencontrarão no famoso pensamento de Pascal, “o

silêncio desses espaços infinitos me apavora”, porque agora não

sabemos mais onde Deus está, porque no infinito o centro está em

toda parte. E só foi capaz de enfrentar isso quem pensou a imanên-

cia de Deus ao universo: Bruno e Espinosa. Aqui (no modelo geo-

cêntrico, referente aos mundos lunar e supralunar) há lugar para a

transcendência, mas quando o universo se torna infinito não há

lugar para Ele, pois ou Ele está em toda parte ou não está em lugar

algum. É isso o início da Modernidade, que se inicia quando o

infinito é descoberto.

Pesquisas de Kepler

Agora, então, já que eu insisti que é um processo lento, vou

tomar hoje dois filósofos que fazem essa transição da Renascença

para a Modernidade. Primeiro vou tratar de Kepler, eminente as-

trônomo e astrólogo, qual a maneira que ele vai se relacionar com a

astrologia e de sua crítica da astrologia; depois Francis Bacon.

Kepler narra uma fábula, um sonho, no qual visita a lua e

pelo qual ele defende o copernicanismo.

Em 1602 Kepler publica uma espécie de almanaque no sen-

tido clássico (Não é do tempo de vocês, mas antigamente na Liber-

dade havia um lugar chamado o Trabalho do Pensamento [?] que

tem tudo, as fases da lua, horóscopos, as marés, avisos aos nave-

gantes, aos tecelões, tem histórias etc. Na origem almanaque é uma

palavra árabe, o primeiro almanaque foi feito por um matemático

judeu para produção de horóscopos. Ele faz um horóscopo para mil

anos. E essa idéia, do almanaque como estudo do ano vinculado à

astrologia e ao horóscopo se consagrou) que se chama Sobre o

fundamento preciso da Astrologia, no qual Kepler apresenta três

razões para que os fenômenos terrestres possam ser previstos por

meio dos fenômenos celestes: razões provenientes da causalidade

natural física, psíquica e a razão divina ou providencial. Kepler

mantém a idéia tradicional de que há duas luminárias no céu, o Sol

e a Lua; mantém também a idéia de que o Sol é masculino, quente

e seco, a Lua é feminina, fria e úmida, e mantendo a oposição entre

os quatro elementos (quente, frio, seco, úmido) e mantendo a opo-

sição entre feminino e masculino ele mantém as figuras tradicio-

nais dos planetas ou sete governadores (Vênus é feminina, Marte é

masculino, Saturno é maléfico), mas Kepler não se satisfaz com

essas descrições dos astros. Ele quer saber quais as razões físicas

para que estes astros se apresentem com essas qualidades, ou seja,

porque o Sol é quente e seco, a Lua é fria e úmida etc. Ele dirá que,

quando a luz celeste chega à Terra por meio do Sol, as leis da ótica

mostram que essa luz incide diretamente sobre a Terra e é por isso

que causa calor e secura; a luz da Lua, ao contrário –de acordo com

as leis da ótica – , é uma luz indireta, refletida, que chega portanto

indiretamente à Terra, fraca, e por isso, úmida e fria.

Kepler buscou um encadeamento racional de causas que

possam explicar a influência material dos astros sobre a Terra e

sobre os seres humanos, ou seja, ele eliminou o mistério dessa

influência do céu sobre os seres terrestres encontrando numa ciên-

cia, na ótica, a explicação do modo de relação destes astros com a

Page 44: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

44

Terra. Por isso Kepler, astrólogo, é moderno, porque ele não se

satisfaz com a descrição e o mistério; ele quer a explicação causal

por meio de leis científicas, típico de um moderno. Operação seme-

lhante pode ser notada quando ele vai procurar não as causas dos

efeitos materias do céu sobre a Terra, mas as causas dos efeitos

psíquicos dos astros, isto é, na Astrologia a influência dos astros

sobre a alma humana é explicada não apenas pelas qualidades que

cada astro possui, mas também pela posição que ele ocupa e a sua

relação com outros astros que possam ter qualidade semelhantes às

suas, em relação de simpatia com elas, ou opostas às suas, em

relação de antipatia. Portanto, essas qualidades mais a posição mais

a articulação entre os planetas forma figuras chamadas aspectos. A

Terra, Natureza possui uma alma, um ser vivo, animada, prova

disso é o período de gestação e parto dos vulcões, nos minerais que

brotam do solo, na vivificação das plantas, então a Terra é mãe.

Todos compartilham da alma do mundo. Então a influência dos

astros incide sobre todas as coisas, as marés, o comportamento

humano. O estudo dos aspectos é muito importante porque eles

podem ser benéficos ou maléficos; eles permitem prever o tempo

(metereologia), colheitas, guerras, quedas ou ascenção de impérios,

nascimentos, pode-se fazer tudo isso a partir do estudo dos astros.

Kepler quer saber como matematicamente se pode explicar

porque os aspectos (configurações) dos astros atuam sobre as al-

mas. Ele diz que a recepção e a percepção da luz de cada astro

pelas almas dos seres se dá de maneira inconsciente. Essas luzes

chegam incessantemente sobre as almas dos seres, nós a recebe-

mos, mas não as percebemos diretamente, apenas [percebemos]

seus efeitos. Os aspectos exercem influência sobre as almas das

coisas e sobre a alma humana porque eles não são senão a maneira

pela qual em termos matemáticos e óticos a luz de cada astro inci-

de, se reflete ou refrata em cada uma das coisas. Portanto o que

Kepler faz é afirmar que há uma razão, uma causa racional que

pode explicar o por que da influência dos astros sobre os seres

terrestres. E é possível dizer que a Terra se emociona quando há

uma conjunção dos planetas superiores, ela se emociona num

eclipse, na passagem de um cometa, a Terra treme, chora chuvas

torrenciais, maremotos, e isto que se passa com a Terra se passa

também em cada ser natural e com a alma dos homens. Então a

pergunta é “por que isso é possível?”. Kepler fará uma série de

cálculos geométricos acerca das configurações e ele vai dizer que

só são significativas para a alma da Terra e para as almas dos ho-

mens as configurações dos astros que formam polígonos regulares

(Kepler propõe um modelo de poliedros encaixados uns dentro dos

outros). Sempre que o aspecto formado pela conjunção (qualidades

do astro, posição dele, articulação com o outro) astral, sempre que

houver esse encontro e for determinada a posição destes astros e as

qualidades que eles possuem, se isso formar um polígono regular

eu posso calcular matematica e opticamente a incidência da sua luz

na Terra. Todas as outras formas que forem irregulares não são

significativas e devem ser deixadas de lado. Novamente em busca

de uma explicação racional para um acontecimento que é astrológi-

co, afastando o caráter misterioso deste acontecimento e o trans-

forma num acontecimento racionamente compreensível. Por isso

ele é um moderno.

Num ensaio sobre Kepler, de Gerard Simon, no capítulo

chamado “A Astrologia no séc. XVI” o comentário de Simon sobre

Kepler é o seguinte: “Kepler reinterpretou as velhas técnicas astro-

lógicas tentando encontrar para elas um fundamento natural. Para

aquilo que é decifrado antes dele como signos ele procura explicar

pelas causas (o pensamento renascentista opera com signos, seme-

lhança, sinais. Kepler passará da noção de sinal para a noção de

causa; do conhecimento como hermenêutica para o conhecimento

como causalidade. A modernidade vai acontecendo nessa mutação

no interior de uma disciplina que é uma das mais clássicas da

renascença), as propriedades das luzes, das luminárias, dos plane-

tas, a grandeza angular dos aspectos, e ao fazer isso embora con-

servando a influência da tradição entretanto faz com que ela perca

seu mistério.” Resta explicar os fenômenos terrestres que escapam

da regularidade: surgimento de cometas, surgimento de uma estrela

nova. A Bíblia narra acontecimentos excepcionais, a parada do Sol

para que Josué possa ganhar a batalha, narra o surgimento de uma

estrela nova que guiará os reis magos até Belém. Os seguidores de

Aristóteles nunca contestaram que esses acontecimentos pudessem

se dar, mas eles não os consideravam acontecimento astronômicos,

mas metereológicos, coisas que aconteciam no nível do clima, por

conta dos ventos, da chuva, da neve, de tal modo que nossa percep-

ção terrestre era de algo novo e inusitado no céu, mas na verdade

era porque entre o céu e a Terra se interpôs uma camada de aconte-

cimentos metereológicos ou atmosféricos, por isso nós tínhamos a

ilusão de estar diante de acontecimentos astrológicos de fato.

Kepler vai seguir nesse ponto Copérnico e Tycho Brahe:

não são fenômenos metereológicos, mas astronômicos e excepcio-

nais, irregulares, e do ponto de visto astrológico, são os mais im-

portantes porque eclipses e cometas significam guerras gigantescas,

ascenção de imperadores, os grandes acontecimentos políticos.

Descartes, durante a infância, no Colégio de LaFléche, (01:16:45)

presencia a passagem de um cometa. Tudo que se escreveu acerca

desse cometa, a doença de Luís XIII, a ascenção de Luís XIV, tudo

isso foi o cometa, a ponto que Belle, no final do séc. XVII escreve

um tratado sobre os cometas para desmanchar as superstições em

torno dos cometas. Estes acontecimentos irregulares, excepcionais

eram os astrologicamente os mais importantes, então era preciso

dar uma explicação para eles. É preciso dizer qual é a causa natural

desses acontecimentos. Kepler como um bom europeu cristão

protestante recua: “são acontecimentos astronômicos, manifestação

da vontade providencial e insondável de Deus. Não é possível

explicá-los por causas naturais, só pode explicar quem recebeu de

Deus um dom para interpretar esse sinal, é o dom da profecia.”

Então os profetas recebem de Deus uma inteligência especial que

lhes permite decifrar o sentido desses acontecimentos excepcionais.

Ora, o que Kepler está fazendo ao dar esse recuo? Ele está estabe-

lecendo a diferença entre conhecimento científico e conhecimento

revelado. No ato mesmo do recuo ele estabelece uma distinção

claramente moderna, que é a distinção entre revelação e ciência.

Ele não diz que possui o dom da profecia e é capaz de explicar os

acontecimentos astronômicos excepcionais, mas diz que tais fenô-

menos não pertencem ao campo da ciência, pertencem ao campo da

religião; isso é moderno.

Page 45: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

45

A modernidade de Kepler aparece na crítica que ele vai fa-

zer à concepção tradicional do zodíaco. Vocês sabem que além das

propriedades atribuidas aos planetas, conforme sejam masculinos

ou femininos, representem este ou aquele dos quatro elementos, e

além dos aspectos, isto é, das figuras que formam em conjunção

com outros ou por suas oposições, os astrólogos também conside-

ravam que a influência de cada planeta poderia aumentar ou dimi-

nuir dependendo da posição ocupada por ele no zodíaco (zodíaco é

aquele cinturão que corresponderia à via láctea onde estão fixadas

as constelações), isto é, qual é a casa zodiacal que o planeta ocupa.

Os planetas vão variar sua influência pelas suas propriedades,

aspectos e casa zodiacal. Como são sete planetas as casas zodiacais

são distribuidas uma para o Sol, uma para a Lua e duas casas para

cada um dos outros cinco governadores. Quando um planeta ocupa

a casa do signo que lhe pertence, então ele é predominante, são

suas qualidades e aspectos vão exercer sua influência sobre al-

guém, um animal ou sobre algum acontecimento político; ele é

dominante quando está na sua casa. Quando um planeta está na

casa que pertence ao outro, ele é governado por este outro, por isso

sua influência é mediada pela influência do signo cuja casa ele está.

Combinadas as propriedades dos planetas, seus aspectos e configu-

rações num dado momento e a sua posição zodiacal pode-se prever

o que acontecerá na Terra, o que acontecerá com alguém, ou seja,

as propriedades, os aspectos e as posições zodiacais são signos que

o astrólogo decifra e interpreta de acordo com as quatro grandes

articulações da semelhança: analogia, conveniência, simpatia,

antipatia.

Kepler fará a crítica dessa astrologia: não há nenhum moti-

vo racional para a divisão do zodíaco em doze partes, tampouco

para o nome destas partes ou signos (crítica da arbitrariedade, pois

poderiam ser dez ou nove casas). É um astrólogo moderno, usa os

critérios próprios dos modernos para refutar a astrologia zodiacal,

mas mantém as outras duas formas da astrologia. O que o exemplo

do Kepler nos dá é que haverá uma mutação que é fruto de um

processo lento e contínuo.

Francis Bacon: idéias gerais

(Farei um apanhado dos principais pontos pelos quais eu

quero marcar o Bacon também como uma transição em direção à

modernidade)

Bacon conservará três legados da magia natural renascen-

tista: 1) o ideal da ciência como uma potência ativa para modificar

a situação do homem e da natureza; 2) mantém a definição (expli-

citamente no começo do Novum Organum) do homem como “mi-

nistro e intérprete da natureza”, não como de homem animal racio-

nal; 3) a Natureza é organismo vivo, vivente, constituído por for-

mas secretas que precisam ser desvendadas, o conhecimento é

desvendamento das formas secretas da Natureza. Esse tríplice

legado da magia natural explica alguns dos principais temas da

filosofia baconiana: primeiro: todos os corpos são dotados de

percepção que lhes permite escolher a relação com outro corpo e

essa percepção precede todo operação que o corpo realizará.

Segundo: existe entre todos os seres um vínculo de caráter

universal que se manifesta como potência de atração ou potência de

repulsão.

Terceiro: há em todos os corpos um princípio de vida e nu-

trição, assim como de dissolução e de corrupção.

Quarto: a natureza é feita de formas em movimento, isto é,

os seres naturais são todos apetite e inclinação. A Natureza possui

um princípio interno de transformação segundo leis fixas e deter-

minadas que vão determinar suas alterações e a instabilidade da

suas permanências. A Natureza é movimento ininterrupto.

Quinto: a Natureza ama esconder-se, ou seja, a Natureza é

constituída por estruturas ou formas escondidas que homem só

poderá alcançar por meio do conhecimento experimental. Os expe-

rimentos permitem alcançar as formas secretas da Natureza por

meio do conhecimento daquilo que Bacon chama de naturezas

simples, que são como um alfabeto da Natureza, deve ser lido indo

do múltiplo ao simples –a Natureza sempre se coloca como uma

complexidade –, do indefinido em direção ao definido, da compo-

sição à decomposição, ou seja, deve-se fazer na Natureza como se

faz na gramática, por isso Bacon diz “encontrar o alfabeto”. Isso

significa que a Natureza deve ser conhecida analiticamente. O que

são as naturezas simples, esse alfabeto? A cor, o peso, a dutilidade,

a solidez e fluidez. (A hora que Descartes e Galileo aparecerem

tudo isso desaparecerá e será chamado de quarteto [? 01:37:25]

secundário.) Essas qualidades ou naturezas simples devem ser

graduadas e reunidas para formar uma outra natureza com base no

conhecimento nos elementos constantes e universais da Natureza.

Então para que esse procedimento analítico para chegar às nature-

zas simples ou a essas propriedades mínimas que todo ser possui?

Porque se eu as conhecer eu as posso compor de outras maneiras e

produzir naturezas novas (que era o que a magia natural queria

fazer). Bacon dispunha de meios científicos e experimentais para

fazer isso [produzir naturezas novas], não é necessário ficar na

caverna do mago fazendo isso. Esta é uma peculiaridade interes-

sante que vai explicar por que Bacon escreve a Nova Atlântida, na

qual a casa de Salomão tem como função fazer com que as pesqui-

sas nos permitam criar novas naturezas, criar aquilo que a Natureza

não cria (anacronicamente, é o genoma). No caso da Nova Atlânti-

da, se o cientista conhecer as propriedades simples do peixe de

água salgada e do peixe de água doce ele será capaz de recombinar

essas propriedades e terá, com isso, peixes que sobrevivem em

ambos os ambientes.

Sexto: a Natureza existe de três maneiras: natura libera (na-

tureza livre que, por sua própria potência, engendra as espécies e as

coisas naturais), natura vaga (natureza errante, que está submetida

à revolta e corrupção da matéria, é a natureza quando se desgover-

na e produz monstros), natura vexata et constricta (natureza ator-

mentada e jugulada pelo homem, submetida pela arte e pela técni-

ca, pelo ministério humano para produzir coisas artificiais de modo

que é a Natureza alterada pelo homem por meio da técnica para

produzir o que é útil ao homem.

Sétimo: visto que a Natureza é movimento, a ação do ho-

mem sobre ela só será eficaz se for pelo movimento. Por isso Ba-

Page 46: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

46

con diz que a técnica consiste no movimento de juntar ou separar

corpos e esse é o único poder que o homem tem sobre a Natureza,

pois o restante a Natureza faz por si mesma. Se o homem só pode

agir sobre a Natureza aproximando ou afastando os corpos naturais

onde ele não puder juntar ou separar o homem não terá nenhum

poder. Ora, se a natureza é movimento e a técnica é movimento,

Bacon vai dizer que a técnica é apenas um prolongamento da ação

da natureza sob condução do homem. A técnica não rompe, não

difere, mas prolonga a natureza sob condução humana. É por isso

que o terceiro aforismo do Novum Organum diz que o homem só

pode dominar a natureza se ele começar por obedecê-la.

Oitavo: Bacon escreve uma história das técnicas que é um

capítulo da história das ciências. Isso é uma novidade radical com

relação à tradição, pois agora para exercer a técnica é preciso ter o

saber científico. Porque a técnica só pode operar se agir sobre as

formas, isto é, sobre as estruturas secretas da natureza e se conhe-

cer as naturezas simples, portanto sem as ciências e sem a experi-

mentação científica a técnica não pode se realizar plenamente. A

idéia fundamental é que na medida em que a técnica é aquilo que

vem do conhecimento científico de tal maneira que é possível

atormentar e dominar a natureza por meio dos experimentos para

que ela ofereça o seu alfabeto e a técnica possa refazer as palavras,

fazer outra língua com aquele alfabeto, isso significa que não só a

técnica depende da ciência (porque depende do conhecimento da

natureza) mas significa também que a técnica é uma maneira de

manipular a natureza prolongando a atividade da natureza numa

direção que a natureza ela mesma não realizaria. A técnica é o

homem acrescentado à natureza; não é mais mimesis, não é mais

imitação, mas intervenção nela.

Essa idéia do Bacon aparece numa obra praticamente con-

temporânea escrita por um italiano, Giovanni Ciampoli, que escre-

ve o seguinte no livro que se chama Do corpo humano: “não há

alimento mais comum do que o pão, mas bom Deus, quantos traba-

lhos são necessários para que o trigo seja atormentado antes que o

possamos utilizar sob a forma do pão que nos conserva. E o infeliz

trigo, depois de tão grande martírio, tem a glória de fazer esse pão

e reduzido sob essa forma preserva nossa saúde e a vida. Entretan-

do, se o comêssemos tal como a natureza o fez, com suas belas

espigas e arestas, com as quais está por assim dizer armado, ele nos

daria doenças e a morte”. A natureza fornece o material, se eu o

tomar como natureza livre grandes catástrofes podem acontecer;

para que eu possa operar sobre a natureza e colocá-la a meu serviço

eu preciso atormentá-la. O tormento da natureza é o experimento,

ou seja, provocar a natureza para que ela produza efeitos que natu-

ralmente ela não produziria, forçá-la para direções para as quais ela

não iria. O modelo baconiano das ciências e das técnicas (agora

inseparáveis) é triplo e lembra as heranças da magia natural.

O primeiro modelo é a jardinagem, aquilo que ele chama

de a geórgica (do poema de Virgílio que são dedicados à agricultu-

ra). O agente (cientista) nesse modelo é o artesão jardineiro, inter-

fere no movimento natural, irrigando ou drenando o solo, aduban-

do, semeando, podando, enxerta, desloca lacustres para montanhas,

espécies de beira-mar para desertos, ergue estufas, varia o solo para

uma mesma espécie etc. O jardineiro é um transportador como a

abelha, por isso não há diferença entre o mel natural da abelha e o

açúcar artificial que o jardineiro fabrica. Então o homem intervém

na natureza no modelo da jardinagem como aquele que realiza uma

operação, a antecipação do tempo. O técnico opera como alguém

que fizesse nascer rosas em março ou crescer uvas maduras, obras

que não são contrárias, não estão acima da natureza, mas fazem eco

à própria natureza quando o técnico é capaz de escutar a voz da

natureza. Bacon dirá que ele pode violentar a natureza porque ele

sabe abraçá-la. O modelo da jardinagem a técnica acelera ou atrasa

o processo natural (ou o tempo).

O segundo modelo vem da alquimia, da purificação. A téc-

nica vai operar com aquilo que é o núcleo da natureza, o lugar onde

a vida natural se dá, que é o calor. A técnica opera com o calor

natural que é princípio do movimento e da vida e a maneira do

alquimista com seus alambiques o que o técnico usa é a natureza

como fornalha; ele não faz fornalhas para agir. Ele toma a natureza

como uma imensa fornalha que é capaz de purgar e despurgar seus

próprios elementos de tal modo que a função do técnico é fazer

com que a natureza seja capaz de se livrar de todas as matérias que

são prejudiciais, putrefatas, corrompidas, para que ela possa operar

sozinha e bem. Se no modelo da jardinagem se trata de antecipar o

tempo, no modelo da purificação se trata de misturar ou separar,

inocular e enxertar no interior da própria natureza.

O terceiro modelo vem de Vesálio, ou melhor, da anatomia

tal como ela foi proposta por Vesálio. A tarefa do cientista e do

técnico é conhecer as articulações ocultas entre as partes das coisas

e as articulações secretas das partes de uma coisa com as partes de

outra coisa de tal maneira que o técnico possa fabricar novas arti-

culações e produzir coisas novas. Nos três modelos é possível

perceber a tarefa da técnica: fazer vir ao mundo aquilo que a natu-

reza sozinha não é capaz de fazer acontecer. Não há diferença de

essência entre a técnica e a natureza, a técnica é simplesmente a

natureza prolongada, melhorada, benéfica, mais produtiva. Essa é a

imagem extremamente otimista que o Bacon tem da técnica. Nós

ainda não temos aqui aquele elemento pelo qual já entramos na

tecnologia. Alguns autores atribuem o advento da tecnologia ao

Bacon. Eu acho que é muito cedo. Está tudo pronto, mas quem dá o

passo à modernidade é Galileo. Da mesma maneira que Kepler

opera sobre os dados da Renascença, mudando a maneira de lidar

com esses dados Bacon toma toda a herança da magia natural e

refaz essa herança numa forma nova. Faz a modernidade surgir de

uma reformulação da magia natural.

Aula 08 (08-10-2012)

A minha proposta hoje é acompanhar em alguns textos do

Bacon aquele conjunto de ideias dele sobre a natureza e sobre a

técnica, que eu apresentei na aula anterior,e examinar um pouco os

três grandes modelos da técnica: o da jardinagem, o da alquimia e o

da anatomia, para depois, fazer a passagem efetivamente os mo-

dernos, tomando como principal referência Descartes e Liebniz,

evidentemente, com o pressuposto deles que é Galileu.

Eu vou mencionar, aqui, de início, alguns aforismos No-

vum Organum, de Bacon. Porque estes aforismos nos permitem

Page 47: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

47

entender melhor esta curiosa definição que Bacon propôs para a

técnica ou arte: é o homem acrescentado à natureza; então, é a

primeira vez que se rompe a noção de mimeses (da técnica como

imitação da natureza) e vai se pensar, por enquanto, como um

acréscimo, aquilo que o homem acrescenta à natureza. Nós vamos

ver que o passo seguinte, passo moderno propriamente dito, não é

mais aquilo que o homem acrescenta à natureza, mas é a mudança

que o homem opera na natureza. A técnica como uma transforma-

ção da natureza pelo homem. Então, na tradição,aproveitamento da

natureza pela técnica, a técnica imita o que natureza faz. No instan-

te intermediário, renascentista, e com expressão mais clara em

Bacon, a técnica é, na verdade, a presença do homem na natureza,

homem como um agente sobre a natureza e, finalmente, o instante

moderno, a mutação (depois de 25 séculos, a grande mutação) que

é: técnica é a transformação da natureza pelo homem, portanto,

uma intervenção que o homem faz natureza para alterá-la. Isto

preparado pela concepção baconiana, mas vai ultrapassar a concep-

ção baconiana. O primeiro aforismo, do Novum Organum, diz: "O

homem, o ministro de e intérprete da natureza, faz ele entende

tanto quanto constata pela observação dos fatos, ou pelo trabalho

da mente, sobre a ordem da natureza. Não sabe, nem pode, mais do

que isso". O primeiro ponto importante é a maneira como o homem

apresentável. O homem é apresentado como ministro e como intér-

prete. Ministro significa... Bacon usa uma expressão que tem a sua

origem em Cícero, quando este distingue entre: ministerium e

magisterium, a partir dos dois comparativos latinos (minus = me-

nos magis = mais). Entre, portanto,ministerium e magisterium ou

entre aquele que é o administrador de algo que é maior do que ele,

ele é menor de que aquilo que ele cuida e o magister, o mestre, o

senhor, aquele que a maior do que aquilo que ele cuida, ele é supe-

rior àquilo que ele cuida. O que faz Bacon? Bacon define o homem

como ministro da natureza, portanto, como inferior à natureza. Ele

é aquele que administra a natureza. Mas ele não é só o administra-

dor da natureza, ele é também o intérprete. De Bacon limita o

poder do homem a esta administração e esta interpretação, ou seja,

o que o homem sabe e o que ele faz depende de tudo aquilo que ele

pode conhecer ou constatar por meio da observação dos fatos ou

pelo trabalho do entendimento, seja pela experiência (observação

constatação dos fatos), seja por teoria (elaboração de ciência teóri-

ca), seja por esse caminho ou pelo outro e, de preferência, pela

combinação de experiência e teoria, é que o homem pode adminis-

trar e interpretar a natureza. O homem não pode mais do que isso.

Por que é esta restrição? O que visado por Bacon quando ele esta-

belece uma restrição ao dizer "isto é tudo que o homem sabe, isto é

tudo que o homem pode"? Ele não sabe mais do que isso, não pode

mais do que isto. É crítica de Bacon à tendência renascentista de

que o homem pode mais do que a própria natureza. Lembrem-se, a

ideia de Giordano Bureau, Agripa, de que o homem é capaz criar

novos mundos. O que Bacon está dizendo: não! O homem é capaz

de administrar este mundo ao qual ele foi ele foi dado, e que ele

pode conhecer este mundo, mas ele não pode mais do que isto.

Ocorre que o quarto aforismo, diz: "No trabalho com a na-

tureza, o homem não pode mais do que unir e apartar corpos, o

restante realiza-o a própria natureza em si mesma". O primeiro

aforismo de o quarto aforismo estabelecem limites para o homem.

O que o homem pode fazer? Ele pode conhecer a natureza, consta-

tando ou elaborando teorias. E elepode agir da natureza. Esta ação

é uma ação na qual ele pode, ou reunir corpos, ou afastar corpos.

Isso é o que ele pode fazer sobre a natureza. Então, o que é apre-

sentado, por Bacon, é extremamente modesto, "o que o homem

pode e o que ele não pode", sobretudo, porque ele vai dizer, no

caso o que o homem pode fazer, ele diz: a natureza faz sozinha

todo o restante. Ora, isso é muito estranho, este aforismo 1 e o

aforismo 4 são muito estranhos se nós levarmos em conta o que é

dito entre um e outro, ou seja, os dois aforismos mais conhecidos

do Bacon. Aqueles pelos quais quando se vai falar em Francis

Bacon é com estes dois outros aforismos que se começa. O aforis-

mo dois diz: "Nem a mão nua, nem o intelecto, deixados a si mes-

mos logram muito. Todos os feitos se cumprem com instrumentos

e recursos auxiliares de que dependem, em igual medida, tanto o

intelecto quanto as mãos. Assim como os instrumentos mecânicos

regulam e ampliam o movimento das mãos, os da mente aguçam o

intelecto que o precavem".

O que o aforismo 2 diz é que: o homem contra uma série

de recursos auxiliares pelos quais ele pode ampliar o poder das

mãos e ampliar o poder do intelecto. O aforismo 1 diz: o homem só

pode o que os seus olhos constatarem que o que é a sua mente

puder pensar. Portanto, o que a experiência lhe ensinar e a teoria

lhe comprovar. Mas o 2 diz: este poder (da experiência, portanto, o

poder das mãos) do conhecimento (e portanto, o poder do intelecto)

podem ser ampliados. O homem pode encontrar instrumentos pelos

quais ele amplia estas duas únicas coisas que ele pode. Ele pode

constatar e ele pode conhecer. Ele só pode fazer isto, não pode

mais. Só que só isto que ele pode, agora, o aforismo 2 dá a enten-

der que isto pode ser enormemente aumentado, se o homem tiver

instrumentos adequados para fazer isso. E a comparação imediata

que seria impensável num texto antigo é a comparação com os

instrumentos mecânicos. Assim como os instrumentos mecânicos

ampliam o poder das mãos, assim também os instrumentos intelec-

tuais vão poder aumentar o poder da mente. O instrumento intelec-

tual é o Novum Organum, é a proposta de um novo método para o

instrumento. Ele vai ser o grande instrumento de que vai ser ofere-

cido ao conhecimento; e, para as mãos, vão ser as técnicas.

Mas o aforismo 3 vai ainda mais longe, ele diz: "O saber e

poder do homem coincidem, uma vez que sendo a causa ignorada,

frustra-se o efeito, pois a natureza não se vence senão quando se

lhe obedece. E o que a contemplação apresenta-se como causa é a

regra na prática. Este aforismo que é, sem dúvida, o mais conheci-

do ("Saber é poder ") é apresentado... Nós vamos ver já, já uma

série de elementos muito importantes que vão ser colocados aqui,

mas este terceiro aforismo introduz a noção de causalidade, a exi-

gência de que o conhecimento seja o conhecimento causal e que

você só tem poder sobre a natureza se você começar por obedecê-

la. A ideia, portanto, é de que é pela obediência à natureza que

você exercerá poder sobre ela.

Estes quatro primeiros aforismos.... (e eu vou, daqui a

pouquinho, deter um pouco mais no terceiro) dependem desta

afirmação que é feita no primeiro e no quarto de que na natureza e

a única coisa que acontece é "ad movere" e "amovere", ou seja, na

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natureza reúne e separa, reúne e separa, corta, e esta é a única ação

que o homem pode fazer: reunir e separar corpos. A ação do ho-

mem sobre a natureza paraaí. Ora, isso significa, o verbo "ad mo-

vere" e "amovere"derivados de "movere": a natureza é movimento.

É isto que ela é. A natureza é um movimento que ela possui, por

ela mesma, força para criar e mudar as coisas, ou seja, a natureza

cria e modifica as formas secretas que constituem a estrutura das

coisas. E isto significa que a natureza é este movimento criador das

formas das coisas e transformador das formas das coisas, a nature-

za é: vida. E deste ponto de vista, Bacon que é um grande filólogo,

respeita o significado latino da palavra "natureza". Natura se deriva

do verbo depoente, sempre conjugado na voz passiva, que é o

verbo "nascor", que é a nascer e "dar nascimento a". Natura signi-

fica aquilo que nasce ou aquilo que tem o poder de "dar nascimento

a alguma coisa". Natura significa a ação de fazer vir à existência. E

é por isto, então, que a natureza é vida. Ela é fonte de vida,causa de

vida e ela própria, no seu conjunto, é exercício de vida.

Bacon vai dizer que a natureza é feminina. Ela é feminina,

isto é, ela é fecunda, ela age de dentro de si mesma para engendrar

todos os seres. E ela existe (como eu disse a vocês na aula passada)

em três grandes estados: a natureza libera (livre), que é a natureza

no seu estado normal, engendrado as coisas (as formas das coisas),

as espécies naturais; a natureza vaga (ou errante) que é submetida à

corrupção e aos desvios e desordens que são próprios da matéria, a

natureza quando ela engendra os monstros; e a terceira forma da

natureza existir é a natureza constrita (ou a natureza jugulada,

controlada, dominada) pelo ministério humano, isto é, pela arte,

pela técnica.

Então, a natureza é uma fêmea e ela pede o macho que a

ajude a orientar os seus movimentos. Deixada a si própria, ela faz

pouco, ela é quase que "preguiçosa", no mínimo. E, sobretudo,

deixada a si mesma, ela corre o risco de produzir delírios, mons-

tros. Ela precisa, portanto, de um agente másculo que possa contro-

lá-la, dominá-la, orientá-la, isto é, jugulá-la. Este a gente é o ho-

mem, através da técnica. E é este o sentido da definição baconiana

da técnica, a técnica é: o homem acrescentado à natureza. É por

isto que a técnica não é mais imitação da natureza, mas é a inter-

venção do homem sobre a natureza. Ora, isso significa que, pela

primeira vez, é que não há diferença de essência entre as coisas

naturais e as coisas artificiais; ou entre as coisas produzidas espon-

taneamente pela natureza e as coisas produzidas pela natureza sob

orientação do poder da técnica. Por que? Porque a natureza é mo-

vimento: o movimento de unir e separar corpos. E a técnica é exa-

tamente isto. E é o que aparece no quarto aforismo em que diz: o

homem só pode reunir ou separar corpos. Ou seja, ele só pode fazer

o que a própria natureza faz. Só que agora ele vai fazer isso com

uma série de critérios, finalidades, determinações, orientações, que

a natureza sozinha não teria. Então, é a primeira vez, no pensamen-

to e na prática ocidentais, que o produto da técnica e o produto da

natureza, são iguais, são de mesma essência.

O que faz ficar claro ou porquê de Bacon dizer: o homem

só pode fazer isto e não pode fazer mais do que isto. Só que isto

que, aparentemente, era uma enorme limitação, Bacon e diz: o

homem pode só isto, não pode mais do que isto! Mas esta limitação

é dizer: o homem pode o que a natureza pode! E, portanto, é um

poder imenso que o homem tem. Então, sob a aparência de limitar

o poder do homem no quarto aforismo, o que Bacon preparou foi a

afirmação que o homem tem, praticamente, o poder ilimitado,

desde que a operação da técnica seja igualzinha a operação da

natureza, reunir e separar corpos, não mais do que isto.

Agora, fica claro porque o terceiro aforismo vai exigir que

o homem primeiro obedeça à natureza porque só com esta obediên-

cia ele poderá dominá-la. Obedecer à natureza significa: conhecer

as formas secretas que a natureza produz e conhecer os movimen-

tos que a natureza realiza. A partir do momento em que eu conheço

as formas e os movimentos e eu posso alterá-los. O homem tem,

portanto, o poder sobre a natureza quando ele conhece o que ela é

e, portanto, ele se submete ao que ela é; mas é justamente o porquê

ele se submete e sabe o que ela é ele pode alterar aquilo que ela é.

Ele não pode fazer que a natureza deixe de ser o movimento, não

pode fazer que a natureza deixe de ser em vida, não pode fazer que

a natureza seja produção de formas, de estrutura das coisas: isso

não vai acontecer. Mas, ele pode alterar inteiramente a maneira

como a natureza opera nos seus movimentos e na produção das

formas. E é por isto que ele terá poder sobre ela.

É para este poder sobre ela que ele precisa jugular a nature-

za, é preciso que ela esteja no seu terceiro estado: a natureza cons-

trita, isto é, atormentada. E este tormento é o laboratório. Então,

daqui por diante o laboratório se torna o lugar no qual a natureza

deve ser atormentada para que, depois de conhecida, possa ser

alterada pelo homem.

"Dando ao homem o lugar de um intermediário entre a na-

tureza (as leis naturais) e a natureza (as coisas artificiais, porque as

coisas naturais e as coisas artificiais são naturais, todas elas; é tudo

unificação o separação de corpos em movimento), a função do

homem é ser um mediador entre as coisas naturalmente produzidas

pela natureza e as coisas artificialmente produzidas pela natureza.

E é isto que significa o homem ser ministro. Ele é ministro da

natureza porque ele é o intermediário entre duas capacidades que a

natureza sozinha tem, mas que sozinha ela não exerce, ela precisa

do homem para exercer; e que era a de realizar sempre, de maneira,

a operação natural de engendramento de formas e de realizar sem-

pre, de melhor maneira desejada pelo homem, a produção das

formas artificiais. A natureza é, portanto, sempre trabalho: o traba-

lho de produzir ou as formas espontâneas, ou as formas impostas

pelo ministro, pelo administrador). Ou seja, nós estamos em plena

concepção capitalista do que seja a natureza. A natureza não é mais

a grande mãe, embora ela seja pensada como vida, ela é um labora-

tório inesgotável para a ação do homem. É isto que ela é.

Isto torna compreensível porque o primeiro grande modelo

da técnica é a jardinagem; porque o técnico pensado como um

jardineiro. É porque o primeiro modelo grande é o do homem

interferindo no movimento que naturalmente a natureza realiza.

Ele: irriga e drena o solo, aduba, semeia, poda, enxerta, transplanta,

desloca espécies lacustres para montanhas, espécies montanhosas

para regiões de lagos, aquilo que de beira-rio para beira-mar, o que

é de beira-mar para beira-rio, o que é de beira-rio e de beira-mar

para desertos, o que é de desertos para de rios e de mares; ele ergue

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em estufas, constrói herbários, protege do sol ou expõe aos raios

solares, protegido vento ou expõe ao ar, varia os solos para uma

mesma espécie ou coloca diferentes espécies em um mesmo solo, e

assim por diante.... Isto tudo um jardineiro faz ele é isto que um

técnico faz. Um técnico é aquele que opera exatamente à maneira

de um jardineiro: ele vai simplesmente operar sobre operações que

a natureza realiza mas que ela não realizaria sozinha, e alterar o

curso dela, seja por mudança de ritmo, seja por mudança de lugar,

e assim por diante.... Mudança de condições. Então, Bacon vai

dizer: o jardineiro é um transportador como a abelha, não há dife-

rença de essência entre o mel natural que a abelha produz que o

açúcar artificial que o técnico fabrica. Esse primeiro procedimento

vai, entretanto, pedir um complemento. Bacon vai mostrar que o

procedimento da jardinagem, que é uma continuação do procedi-

mento natural da natureza, pede uma acréscimo que acompanhe

também um outro procedimento natural da natureza, mas que seja

capaz de intervir também aí. Este outro procedimento que natural-

mente a natureza realiza é aquele que tem como modelo, no plano

da técnica, a alquimia. Então, além da jardinagem, a alquimia. Por

quê? A natureza é vida, movimento vital, porque ela é um calor

natural. Bacon vai manter uma ideia que vai estar presente em

Descartes, vai estar presente em Liebniz, vai estar presente prati-

camente até o século 19, que uma ideia de origem hipocrática,

galênica e aristotélica que é articular vida e calor; a fonte da vida e

o calor. E é por isso que o coração tem o lugar que tem nas tradi-

ções médicas. Que eu vou ver isto daqui a pouquinho, vocês vão

ver, na hora em que Harvey faz uma revolução porque ele descobre

a circulação do sangue e mantém a ideia do calor. E quando Des-

cartes vem para refutar Harvey e também propor uma outra teoria a

respeito da circulação do sangue, ele mantém a ideia do calor

natural. Vida significa: calor interno natural. Então, "a natureza é

vida" significa: a natureza é um calor interno natural, ela é uma

fornalha natural, ela era um alambique natural. Ora, o que faz o

alquimista? Por meio das fornalhas, por meio dos alambiques? Ele

faz um esforço para purificar a natureza, para purgar e expurgar a

natureza de todos aqueles elementos que são contrários à a verda-

deira essência de uma coisa natural. Tanto que o alquimista espera-

va deste processo extremo de purificação poder transformar todos

os metais em ouro. A explicação não era uma coisa misteriosa, um

mistério alucinado; você tem esta pluralidade de metais por causa

das misturas, são as impurezas; se você purificar todos os mentais,

tudo vira ouro; o procedimento, portanto, era o da purgação e da

purificação. Então, Bacon propõe que o segundo elemento impor-

tante na técnica, e que vem se acrescentar à técnica como ação de

jardinagem, é a agora a técnica como ação de purificação, purga-

ção,expurgo das formas naturais. O que o técnico faz liberar a

natureza de tudo aquilo que atrapalha seu desenvolvimento, seu

crescimento, sua plenitude de vida. O técnico, portanto, ajuda a

natureza a se realizar melhor ainda.

A estes dois modelos da técnica vai se acrescentar um ter-

ceiro. Este agora vem diretamente dos procedimentos da medicina,

em particular, da anatomia e da fisiologia. Ou seja, é preciso disse-

car as coisas naturais para encontrar sob elas a sua forma secreta. A

dissecção [a dissecção na área da anatomia humana é o ato de

explorar o corpo humano através de cortes que possibilitam a

visualização anatômica dos órgãos de regiões que existem no corpo

humano e assim possibilitar o seu estudos] e a vivessecção [ato de

dissecar um animal vivo com o propósito de realizar estudos de

natureza anatomo-fisiológica] são fundamentais como operações

técnicas de desvendamento daquilo que está em segredo na nature-

za.

Desta maneira, embora Bacon conserve muito do vocabu-

lário renascentista, ainda fale em simpatia, antipatia, falem ainda

empregando termos da medicina alquímica, usando termos da

astrologia; apesar de haver todo este conjunto conceitual e vocabu-

lar de tipo renascentista, o que ele está apresentando (e neste ponto,

se separando da renascença) é uma concepção inteiramente artifici-

alista da natureza; ou seja, em um primeiro momento, o que a gente

viu é que não há diferença entre a natureza e a arte. A parte faz o

que a natureza faz. O procedimento seguinte, quando você aplica a

jardinagem, a alquimia e a anatomia (portanto, o como você aplica

os procedimentos técnicos sobre a natureza e você a depura ao seu

ponto máximo e descobre seus constituintes mínimos sobre os

quais você poderá alterar, você inverte e você vai mostrar que, em

última instância, a natureza, ela própria, não difere em nada de uma

operação de tipo técnico). Então, em primeiro instante eu olho a

natureza e digo: se eu quiser agir sobre ela, eu tenho pensar uma

técnica que esteja em acordo com as operações naturais. Depois, eu

descubro que a natureza costumam se esconder, que é preciso

decifrá-la, interpretá-la, que quem faz isto é o laboratório onde a

natureza é atormentada para que ela possa mostrar as suas formas.

Esta amostragem é união e separação à maneira do jardineiro;

purificação e depuração, à maneira do alquimista; e chegada aos

elementos simples, mínimos de combinação, como no anatomista.

Ora, quando eu chego neste ponto, eu não posso estabelecer ne-

nhuma diferença de ciência entre o modo de ação da natureza e o

modo de ação da técnica. Eu começo dizendo que a técnica é o

homem acrescentado à natureza para concluir que não há diferença

entre natureza e arte. Que, portanto, a natureza é, ela própria, um

enorme artifício; natureza é: um objeto técnico!

Podemos, então, resumir a posição do Bacon a partir de

uma obra que ficou inédita (que não foi concluída, também, por

ele) chamada Sylvasylvarum (A Floresta Das Florestas) que preten-

dia ser uma enciclopédia universal das ciências e das técnicas, em

que Bacon pretendia reunir uma única história, apresentar uma

história universal da natureza e das artes. Então, nós estamos acos-

tumados: "História da natureza", "História natural", "História das

artes", "História da ação humana". O que este movimento (pelo

qual o eu procurei mostrar a vocês, que a natureza se transformou,

a partir de Bacon, num enorme artefato técnico) permite Bacon

imaginar uma história universal do saber que História Da Ciência,

História Da Natureza e História Das Técnicas: uma história só. Isto

é o que ele pretende fazer neste livro e, embora o livro não tenha

sido concluído, o que ele apresenta cinco pontos que foram decisi-

vos para a formação do pensamento moderno. Primeiro: todos os

corpos são dotados de percepção, mesmo os inorgânicos; e é esta

percepção que permite a um corpo estabelecer relações com outros

corpos e realizar as operações que ele realiza. Além de todo corpo

ser uma percepção, em todos os corpos há o apetite ou a inclinação,

isto é, uma força interna de atração ou de repulsão do movimento.

Page 50: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

50

Terceiro: todos os animais e todos os homens são dotados de fanta-

sia, isto é, de imaginação como um conjunto de imagens sensoriais

que vão determinar as operações dos seus corpos. Em quarto lugar:

há em todos os corpos um princípio de vida e de nutrição que

garantem a manutenção do corpo, mas também um princípio de

dissolução e corrupção que explica a morte. E em quinto lugar: a

ação do homem que é apenas um prolongamento da ação da natu-

reza. E aquilo que o vulgo toma por milagre e mistério é apenas

obra natural feita pelo homem, porque o homem consegue anteci-

par o tempo, prolongar o tempo e alterar o tempoda natureza. Eu-

leio o que devo escreve: "O homem intervêm na e sobre a natureza

como uma antecipação do tempo, como alguém que fizesse nascer

com rosas em março ou crescer uvas maduras, o obras que não são

contrárias à natureza nem se encontram acima ou fora da natureza,

pois na arte adere ao natural, faz-lhe eco, porque lhe escuta a voz

que lhe responde, podemos violentar a natureza porque sabeabraçá-

la. Acelerar ou retardar o movimento natural, isto é, antecipar ou

atrasar o tempo, eis a ação da técnica, verdadeiro ministério, como

do verdadeiro médico, que violenta a natureza para que esta possa

agir plenamente sozinho".

Então, tem neste admirável mundo novo, trazido pelo capi-

talismo, que a natureza e finalmente se transforma neste laboratório

inesgotável como se estivesse desde sempre predisposta a todas as

ações que os seres humanos queiram realizar sobre ela, desde que

eles primeiro tenham tido o cuidado em conhecê-la. Ora, nós va-

mos encontrar em contraponto ao jardineiro baconiano, ao modelo

de jardim de Bacon, um outro jardim. Um outro jardim praticamen-

te contemporânea ao jardim inglês proposto por Bacon, mas que é

um jardim à francesa. O modelo de jardim proposto por Bacon (o

famoso jardim inglês, que é vigente até hoje; lá na Inglaterra esta é

uma das joias da coroa, mostrar o jardim) é da seguinte maneira:

você entra, tem um gramado.... Eu tenho um amigo, que foi passar

um fim-de-semana na casa de um lorde inglês... e aí, estão lá senta-

dos, tomando o chá das cinco,... aquelegramado... e aí, este meu

amigo virou para lorde... "Isto é uma beleza, né? Como vocês

fazem ficar assim?" e aí o lorde disse para ele: "Muito simples.

Durante 500 anos, você corta e volta... corta e volta... cota de vol-

ta... e fica assim!". Então, você tem o gramado (este gramado que

você leva 500 anos para fazer), em seguida ao gramado vem jar-

dim, isto é, uma certa distribuição de flores e de plantas, mas, ao

fundo, deve ser mantida a lembrança do que é natureza se o homem

não fizer nem o gramado nem o jardim.... e que é a floresta, não

tem um bosque (tem o Robin Hood lá... no bosque). Agora, este

bosque é um bosque baconiano; isto significa o seguinte: ele é

cultivado para parecer selvagem, que ele não é aquilo o que a

natureza, atabalhoadamente, vai fazendo; não! É para lembrar que

a natureza pode fazer estas coisas, mas a melhor maneira de lem-

brar que a natureza pode ficar de enlouquecida em fazer as coisas

crescerem tudo fora do lugar e tudo fora de ordem, é fazendo isto

você mesmo. Você controla o bosque, você escolhe o que vai ser

implantado, onde vai podar, o que é mais para cima ou mais para

baixo, ou seja, o bosque inteiramente artificial. E ele é, na sua

artificialidade, total: a imagem que um baconiano tem da natureza.

Isto é um jardim à inglesa. O jardim àinglesa é, portanto, o domínio

da entrada pelo gramado, domínio da percepção e da beleza pelo

jardim e o aviso de todo o poder que você tem que exercer sobre a

natureza no bosque que ficou... (?).... Agora, nós temos um outro

tipo de jardim, que é um jardim à francesa. Normalmente, e a gente

usa a referência Versailles como o caso típico, mas Versailles é um

dentre muitos dos casos do jardim francês. O que Versailles tem, o

que há de paradigmático no caso do jardim de Versailles é que nele

se torna legível aquilo que será ideia moderna da técnica a partir

da Contrarreforma e da monarquia sua luta. Se a gente toma o

modo como Bacon concebeu a técnica... vocês recebem? É sempre

o homem trabalhado; e trabalha daqui, jardinagem de lá... é a ideia

protestante de que o trabalho dignifica homem. Então, a técnica é

pensada como trabalho. Quando você passa para o modelo francês

(e que vai depois estar presente na Espanha, na Alemanha)... quan-

do você passa pelo modelo da Contrarreforma, portanto, modelo

católico, romano da técnica, o modelo da técnica não é o trabalho,

o modelo da técnica é o poder absoluto. E é por isso que o caso de

Versailles é o caso exemplar, porque ele é a expressão máxima do

poder de Luís XIV. Por que? Que poder é este? É transformar o

natural em algo inteiramente artificial e fazer com que o artifício

que criou este objeto artificial, que este artifício, apareça como

natural. Este artifício que vai aparecer como natural é o poder do

monarca absoluto. É ele quem tem poder de artificializar a natureza

de ponta a ponta.

Um dos engenheiros que escrevi depois um dos famosos

guias do jardim universalis... porque, os jardins franceses, e em

particular, o jardim de Versailles, tem esta peculiaridade de preci-

sar de guia. Hoje para nós isto é a coisa mais simples do mundo,

porque todo mundo está acostumado a viajar e a levar o guia. Eu

acho que o mais interessante é o turista norte-americano, porque

ele leva guia, as máquinas (o turista japonês também faz isto),

então ele vai, ele se hospeda em um hotel norte-americano (ou em

um hotel japonês), ele come a comida americana ou comida japo-

nesa, convive com os americanos e japoneses, que estão lá no

ônibus junto com ele... e aí ele: clica clicaclicaclica; quando ele

chegar em casa, ele vai mostrar e aí ele vai viajar; ele viaja na hora

em que ele chega em casa. Por que a viagem são os objetos artifici-

ais que ele produziu no correr das suas andanças. Ele não viaja, ele

não tem como viajar. Ele tem um conjunto de objetos técnicos que

o protegem do risco de viajar, de tal modo que ele possa depois

tranquilamente viajar, em casa (ficar em casa para viajar). Ora,

para este tipo de turista, em que nós nos mas formamos (porque a

estupidez é universal), falar que o jardim de Versailles precisava de

um guia vir a bobagem. Agora, tentem pensar no século XVII um

sujeito que vai da Córsega para Versailles que chega lá e vê um

treco jamais visto, não é só o que tem aquela forma geométrica e

aquele jardim que não acaba nunca. Por causa de todos estes obje-

tos que têm neste jardim ele vai encontrar fontes que cantam, nin-

fas que dançam, cenas de Homero que se realizam, batalhas entre

os titãs, entre os deuses, vai haver mudanças... é uma coisa inacre-

ditável que ele vai ver! Isso sem que ele veja um único operário,

um único indivíduo mexendo em todas aquelas coisas; um seja, ele

vai fazer experiência alucinante dos autômatos. É isso que ele vai

ver. E o guia é um guia... você sabem: a famosa obra de Descartes,

que tem a gente considera que e no muro pensamento moderno,

que são As Regras Para A Direção Do Espírito. Eu costumo dizer

Page 51: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

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que os primeiros guias de Versailles são "As regras para a direção

do olhar". Quer dizer, o guia ensina você a olhar o jardim. Porque

se você não souber o olhar jardim, você não vai entender o que o

jardim é. Ou seja, o jardim é o poder de Luís XIV de criar um

mundo a partir do nada. É isto que a técnica visa.

Então, um dos autores, um dos engenheiros, que é autor de

um guia, diz o seguinte: "Pode-se dizer que Versailles é um lugar

onde a arte trabalha sozinha e que a natureza e parece haver aban-

donado para dar ocasião ao rei de aí fazer aparecer uma espécie de

criação, em várias obras magníficas e uma infinidade de coisas

extraordinárias". Então, o jardim é apresentado como sendo da

ordem do magnífico e do extraordinário; e é o local onde a arte

trabalha sozinha que a natureza... foi embora.... A natureza foi

embora e deixou por conta da técnica tudo! Este texto é exemplar

porque, agora, eu não tenho mais a noção de que a natureza está ali

e é uma técnica que trabalha na natureza. Então, não,a ideia é: a

natureza não precisa da natureza mais, nós não precisamos dela; ela

pode ir embora, porque a técnica faz sozinha tudo! Isto é o jardim,

este é como o jardim. Ou seja, o jardim de Versaillesexige um guia.

Porque o guia está encarregado de impedir que o visitante se perca;

ele tem que guiar os passos e o olhar do espectadordando a ele

regras para olhar e regras para andar, ou seja, o guia não é uma

descrição, o guia é um conjunto normativo, ele é um conjunto de

regras e de normas para o espectador do jardim saber em que e

lugar ele deve se colocar, dali para onde o ele deve olhar, o que ele

vai ver, o que significa isso que ele está vendo, ou seja, ele recebe

uma explicação completa do objeto do qual ele está. Por quê?

Porque este objeto é um objeto técnico em estado puro, não sobrou

nada que o olhar do visitante pudesse identificar... "Ah, lá na minha

terra é assim também" ou "Ah, que bonita aquela árvore, com

aquela flor...". Não sobrou nada que se possa identificar como algo

que é comum à natureza. Os indivíduos estão postos diante do

artifício levado a suas últimasconsequências. É técnica pura. Nós

podemos dizer que a função do guia é oferecer.... Agora eu vou

parodiar o título da obra de Descartes: "Oferecer regras certas e

fáceis para a direção do olhar". "Oferecendo-lhe a ordem e a medi-

da dos objetos e dos lugares para que ele possa experimentar (por-

que esta é função principal do guia) uma quantidade inumerável de

sensações e de sentimentos que jamais experimentados por ele".

Então, não é só que ele vai ver o que nunca viu, ele vai sentir o que

ele nunca sentiu.

Ora, o guia tem a peculiaridade (quando você lê o guia) de

apresentar esta artificialidade total como se isto fosse a natureza,

isto é, os objetos que estão ali, o modo como eles estão dispostos,

os recursos que o espectador é convidado a fazer, são de tal nature-

za que o que o visitante do jardim tem que experimentar é a repre-

sentação unívoca do poder do rei como poder absoluto para domi-

nar de substituir a natureza. Então, a função do guia é fazer com

que, ao visitar aquilo que nós consideraríamos aquilo que há de

mais natural. Que pode haver de mais natural que no jardim? Em

um jardim, a natureza impera. Ora, ao fazer, o viajante, o especta-

dor, o visitante do jardim, que era a experiência do jardim como

aquilo que é produzido por um ato da vontade do rei, o que o jar-

dim deve produzir no visitante é a experiência da desnaturação e da

invenção de uma outra natureza por força do poder do rei. Portanto,

a natureza não é senão o artifício que o poder artificial do rei cria.

Há uma inversão do percurso e lá no final do percurso a natureza é

uma invenção do rei.

Os guias se demoram sobre as águas, já que há rios, ria-

chos, pontes, lagos, tudo o que você possa imaginar no jardim. Os

guias levam a páginas e páginas falando sobre as águas, sobre a

fluidez das águas. E o fato de que isso que parece indominável, que

é esta coisa fluida de solta no mundo, é sobre isso que aparece o

primeiro exercício de poder técnico, que é a transformação desta

fluidez líquida, a fluidez aquática, em lagos, fontes, remansos, ou

seja, o aprisionamento e o recondicionamento deste elemento

natural em algo inteiramente artificial. Mas que é artificial sob a

forma do natural; um lago é natural, um riacho é natural, um rio

énatural, uma fonte é natural. É sob o aspecto da máxima naturali-

dade que você tem a máxima artificialidade. E é por isso que o guia

o enfatiza, já que você está diante de uma operação extraordinária

pela qual a natureza se desnaturalizou e os objetos técnicos que

foram colocados são objetos naturais. Não há, portanto, nenhuma

distinção possível entre arte e natureza.

Um outro autor de guia,... (?)..., escreve o seguinte: "Po-

demos dizer que o vosso príncipe se apraz em fazer com que arte

ultrapasse e embeleze a natureza em toda parte. Para ele (o prínci-

pe), não é problema mudar os lagos de lugar, a mesma água que faz

tantos outros milagres em outras partes do jardim, com as fontes,

os remansos, retorna pacificamente de onde veio e parece tão mo-

desta e tranquilo quanto antes. Deve se felicitar a essas máquinas

que acionam as fontes por deixarem os riachos em seus leitos, tanto

é verdade que arte sabe presentemente ultrapassar a natureza". E a

introdução deste elemento, o que é mais importante aqui, são as

máquinas que estão fazendo isto. As máquinas, que ninguém vê,

estão todas escondidas. É um espanto... daqui a pouco vou citar um

texto de Descartes sobre isto. O visitante vem andando, de repente,

ele dá de cara com uma sereia e um fauno que estão dançando, e

jogam água de um para outro, e esta queda d'água faz na forma de

uma melodia, e desta melodias saem passarinhos voando. Imagina

tudo isso no século XVII: ninguém vê de onde tudo isso apareceu!

Há uma brutal acontecimento, isto é, um conjunto fantástica de

autômatos dançando, cantando, produzindo mil e um efeitos, e não

há nada que você possa ver e dizer: "Ah, é por isso!". Não tem, não

tem! Eu penso... são essas coisas que nunca mais pode acontecer

com ninguém, infelizmente o tempo não volta para trás. Eu imagi-

no que a experiência de um visitante de um jardim deste no século

XVII deixaria no chinelo qualquer videogame. É uma experiência e

inacreditável porque você não tem distância, você está imerso na

máquina, você está dentro dela. Um jardim (e é isto que eu quero

dizer agora para vocês, é isto que eu quero desenvolver), o jardim

de Versailles é a expressão acabada da máquina perfeita: é isto que

foi produzido. Foi produzida uma máquina perfeita e ela é perfeita

porque ela é constituída de autômatos invisíveis, cujo funciona-

mento é inteiramente visível e porque não sobrou mais nada que

você possa chamar de natural. No entanto, todo este artifício (nós

vamos ver) é natural; há uma certa concepção do que seja natureza

que vai fazer estes artifícios, toda essa maquinaria, ser perfeitamen-

te natural. Que é o que o guia dizia, não há? "A arte sabe, presen-

temente, ultrapassar a natureza".

Page 52: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

52

Então, para nós termos uma ideia do que vai acontecer

agora com a técnica e o que significa, portanto, o advento da má-

quina efetivamente. Porque agora nós vamos entrar no mundo da

máquina, não é mais no mundo de instrumentos técnicos, nós

vamos entrar num mundo onde os instrumentos técnicos vão estar

inseparavelmente ligados a um outro tipo de objeto técnico que é a

máquina. Nós estamos num momento de emergência do maquinis-

mo.

Para termos um quadro do que é neste momento, eu vou

ler uma passagem de um texto de Gerand Simon, que está na bibli-

ografia de vocês, no capítulo As Máquinas No Século XVII: Usos,

tipologia, ressonâncias simbólicas, que está no livro Sciencesetsa-

voirsau XVI et XVII siècles. Neste capítulo, o autor escreve o se-

guinte: "Para compreender o trabalho de imaginação suscitado

pelas máquinas no século XVII é importante lembrar o que era

designado sobre esta palavra máquina, que tipos de objetos e de

engenhos aí estavam classificados e o que podia sugerir o espetácu-

lo do seu uso e do seu funcionamento. Entende-se for máquina nos

anos 1650 toda invenção engenhosa produzindo, graças a meios

combinados, um efeito esperado. A palavra permanece próxima do

seu sentido etimológico (máquinas, lembram? Estratagema; o

primeiro sentido desta palavra que nós vimos) que agrupa três

acepções amplas que devemos a distinguir: primeiro, a palavra

designa, de início, um engenho articulado ou não, que vai da má-

quinas simples, como a alavanca ou a polia, até a arma de fogo e o

veículo e cuja causa motriz pode ser indiferentemente água, o

vento, o animal ou o homem. Um navio, um canhão, uma carrua-

gem, se colocam, assim, na mesma categoria de um relógio, um

jato d'água ou um moinho". Este é o primeiro sentido da máquina.

"... em segundo lugar, designa-se pelo termo máquina uma maqui-

naria, uma combinação de máquinas, várias delas frequentemente

complexas. Os usos que são feitos dela são muito variados". Desde

o início, da... (?)..., quando você fecha o pântano? Drenagem...

desde a drenagem dos pântanos da Holanda, a hidráulica fez gran-

des progressos e suscita muitos trabalhos de prestígio; assim, por

exemplo, a famosa máquina de Marly agrupava 259 bombas repar-

tidas em três andares para elevar, com um grande ruído, água do

Senna até os castelos de Marly e de Versalhes para alimentar os

seus jardins, as suas fontes, as suas ninfas e os seus... (?).... Mas o

sentido primeiro, sem dúvida mais fundamental, é o de maquina-

ção... máquina, né? Máquina, maquinação, astúcia... a noção de

que, seja na sua acepção material seja na sua acepção simbólica,

ela implica sempre a noção de artifício que põe em movimento

molas escondidas da natureza ou do natural para chegar ao fim

procurado. Longe de evocar o fantasma de um mundo desumano,

porque contra a natureza, a máquina suscita, antes, o mito de uma

natureza inteiramente humanizada porque domesticada e domina-

da. A máquina é sempre, e em todos os sentidos da palavra, um

produto da técnica. Ela resulta, de início, de um trabalho do artesão

que se estima que se aprecia. No ateliê ou na manufatura, cada

corpo de ofício intervêm, toura tour (um por vez), com todo seu

savoir fair (tato, a habilidade de comportar-se e falar apropriada-

mente

em qualquer situação). No começo do seu diálogo sobre as

duas novas ciências, de 1638, Galileu se descreve flanando com

seus amigos no arsenal de Veneza. Ele ama, ele lhes diz, afirma

aqui passear, dirigindo-se aos artesãos que aliam necessariamente a

maior habilidade de juízo e juízo, o mais penetrante. Ele gosta de

conversar com os artesãos para discutir sobre as observações que

seus predecessores lhes negaram que aquelas que eles próprios

fizeram. É deles, diz Galileu, que ele tira a sua melhor informação.

É com eles que ele se interroga sobre a razão de ser de certos para-

doxos mecânicos. Quando ele toma os exemplos das máquinas, ele

pensa naturalmente ou num navio, ou num relógio, elas relevam de

domínios nos quais as técnicas do tempo e iam até o máximo delas

próprias. Nunca tinha havido cuidado tão grande para terminar

obras tão difíceis de realizar como os navios de guerra, os objetos

de relojoaria, que eram absurdamente decorados. Hoje em dia estas

indústrias produzem os engenhos em séries, identificados pelos

seus modelos. Mesmo os nossos navios, ainda que construídos um

por um, e dotados de nome próprio, se situam numa classe definida

por um protótipo. No século XVII, porém, cada máquina é singular

e destinada a um uso singular; ela é frequentemente comandada de

antemão pelo futuro utilizador que define as características pelas

quais ele vai pagar muito caro. Obra de fabricação corrente, a

máquina é enfeitada para honrar o seu autor e seu possuidor. Ela é

uma obra-prima no momento da sua realização, quando ela é com-

plexa ou luxuosa e sempre destinada aos grandes, ela é magnifica-

da por um cenário que a transforma em uma obra de arte. Um

sentimento mais corrente que a máquina inspira é o da admiração.

Ao mesmo tempo diante da engenhosidade que ela pressupõe e dos

efeitos surpreendentes que ela produz por si mesma, ela é sempre

uma curiosidade e um espetáculo e frequentemente ela é produtora

de espetáculos. As máquinas mais custosas não estão destinadas a

usos artesanais ou industriais, a maior parte delas serve para entre-

ter nas casas dos príncipes e dos reis para produzir a experiência

permanente do maravilhoso (são os jardins). Uma das funções da

máquina, a mais frequentemente apontada, é a de prolongar de

imitar a natureza, dando corpo aos artifícios e aos simulacros;

graças a ela, que já é uma astúcia, se faz agora uma astúcia dupli-

cada em ilusão. A máquina empurra sempre para mais longe a

fronteira do verossímil, porque ela conferiu ao imaginário visibili-

dade; ela torna o estatuto da visibilidade equívoco, embaçado e a

ancora na vida, fazendo crer muito pouco naquilo que se vê". É a

abertura do Discurso Do Método. Dá para entender porque que

Descartes começa o Discurso do jeito que ele começa..... "Instru-

mento por excelência do maravilhoso, a máquina faz melhor do

que representar os sons, ela os alimenta de ela o faz muito além da

arte do espetáculo; ela se torna o espetáculo do cotidiano e o coti-

diano como puro espetáculo".

Então, este é... vamos dizer... o mundo no qual a máquina

faz a sua aparição inicial. Ora, embora ela faça esta aparição inicial

e embora num contexto que nós vimos quando estudamos os gre-

gos, quando estudamos os medievais e mesmo quando estudamos a

renascença, que é um certo desprezo pela máquina enquanto produ-

tora de espanto, de maravilha, de surpresa e de mistério; agora, ela

está inserida num outro espaço político, econômico-político, no

qual a produção do maravilhoso, do misterioso, da duplicidade da

percepção (você não sabe se está vendo ou não, você não sabe se

estão ouvindo ou não); ou seja, deste modo de tornar o conjunto da

Page 53: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

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percepção altamente duvidoso e, ao mesmo tempo, estranhamente

assombroso, é próprio do mundo das monarquias absolutas de é

próprio do mundo capitalista em expansão. Então, nós não vamos

ter a repetição tradicional do desprezo por essas máquinas formi-

dáveis e pelo o autômato, ao contrário, isto vai ser objeto de refle-

xão, objeto de pensamento e de elaboração, que vai desembocar na

grande mutação moderna que é o nascimento da tecnologia. E é

isto que nós vamos ver agora. Porque a tecnologia nasce.

Eu vou ler... [um aluno pergunta qual a diferença entre

técnica e ciência]. É isso que nós vamos ver agora, disso que nós

vamos falar. Por enquanto o que você tem é a parte são clássica,

tem os artesãos lá, formidáveis, descobrindo 1001 coisas, tem os

cientistas aqui: tudo isso vai se embrulhar, agora.

Então, eu vou ler um texto conhecidíssimo de vocês....

[Uma nova pergunta de aluno] Resposta: faz tudo parte de um

mesmo processo de exercício da dominação, não há a menor dúvi-

da; e, no caso da etiqueta, ou livrinho do Renato Janine é precioso;

e também o do Salinas sobre os reis que a etiqueta; porque a função

da etiqueta, a invenção disso por Luís XIV, que depois se espalha

pelo resto da Europa, é a maneira inteligente de destruir o feuda-

lismo por dentro, retirar da nobreza todos os seus privilégios e

poderes, concentrá-la em Versalhes e mantê-la lá. Então, você vai

ter os nobres disputando quem é que segura o guardanapo do rei,

quem é que traz... quem é que o de manhã pega o pinico do rei...

isto só para quem for “hiper-conde” dos duques de não sei de onde

que vai ter o direito de pegar a pinico do rei. [risos]. Ou seja, é

duma sabedoria, duma inteligência o que a corte do Luís XIV faz...

muito mais do que os Tudors haviam conseguido fazer; Henrique

VIII, sobretudo, Elizabeth já tinham montado um esquema de

controle através da corte, mas, igual ao Luís XIV... e depois como

as monarquias absolutas ou fazer, ninguém! Só ele vai.

Então, eu vou ler um texto que é muito conhecido de vo-

cês, mas que talvez não tenha sido lido nesta perspectiva; por isto é

que vou lê-lo agora. Então, na abertura do Leviatã,Hobbes escreve:

"Do mesmo modo que em tantas outras coisas a natureza (e agora

vem entre parênteses a definição hobbesiana da natureza). A natu-

reza (arte, mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada

pela arte dos homens também nisto: que lhe é possível fazer um

animal artificial, pois vendo que a vida não é mais do que movi-

mento dos membros, cujo início ocorre em alguma parte principal

interna. Por que não poderíamos dizer que todos os autômatos

(máquinas e se movem a si mesmas por meio de molas, tal como

ou relógio) possuem vida artificial? Pois, o que é o coração, senão

uma mola, os nervos, senão outras tantas cordas e as juntas, senão

outras tantas rodas, imprimindo movimento ao corpo inteiro tal

como foi projetado pelo o artífice? E arte vai mais longe ainda,

imitando àquela criatura racional, a mais excelente obra da nature-

za, o homem. Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã que

se chama Estado ou cidade, cívitas em latim, que não é senão um

homem artificial e no qual a soberania é uma alma artificial, pois

da vida e movimento ao corpo inteiro. Os magistrados e outros

funcionários judiciários ou executivos são as juntas artificiais. A

recompensa e o castigo são os nervos que fazem o mesmo no corpo

natural. A riqueza e a propriedade de todos os membros individuais

são a força. A concórdia, a saúde, a sedição, a doença, a guerra

civil, é a morte. Por último, os pactos e convenções assemelham-se

àquele fiat: "Façamos o homem", proferido por Deus na criação".

A primeira coisa que é interessante é que o texto se abre

definindo a natureza como técnica. A natureza é um objeto técnico

que foi fabricado por Deus. Este é o primeiro ponto novíssimo.

Não quer que haja a possibilidade de identificar a natureza e técni-

ca... tudo o que nós vínhamos vendo até aqui. Agora não! Agora,

de imediato, a definição de natureza é a da natureza como objeto

técnico. É isto que ela é. Ela é produto da arte divina. E a arte

aparece, classicamente (com a afirmação clássica), como imitação

da natureza. Mas, não é curioso? Que a natureza é arte, que signifi-

ca dizer que a arte imita a natureza. O que a Hobbes está fazendo

aí? Porque ele está dizendo é que há uma potência da arte para criar

não apenas coisas artificiais, mas para criar um animal artificial.

Agora, não é pouco o que a arte vai criar. Porque agora nós entra-

mos em um campo em que arte cria... vida! Ela vai criar um ani-

mal. Então, é imenso o que está sendo dito aqui. A natureza é arte

divina e a arte humana imita a arte divina porque assim como deus

disse "Faça-se o homem", o homem foi feito; o homem diz "Faça-

se o Estado", o Estado é feito. Ou seja, Deus criou o homem natu-

ral, e o homem é capaz de criar um homem artificial. Epor que tudo

isso possível? Porque é tudo técnica; não tem natureza mais, não

tem nada natural; tudo isto é possível porque a ação de Deus e a

ação do homem são idênticas. Isto é, eles são técnicos, eles são

themakers, eles são fazedores. E o que é interessante é o modo ...

Extraordinário, é uma beleza que este texto do Hobbes Leviatã

inteiro é uma beleza, mas este texto é precioso porque o natural,

que é o corpo humano, é descrito como um mecanismo artificial:

rodas, molas, relógio... então, um corpo humano, que é natural, é

descrito por Hobbes com o uso de referências artificiais: polia,

roda, corda... por aí vai.... E, ao contrário, ele vai descrever o corpo

político, que é um artifício, usando só elementos naturais: os ner-

vos, o coração, o sangue, a saúde, a doença. Então, o que significa

esta montagem fantástica deste texto? O natural é descrito em

usando como referência os objetos artificiais (... o corpo humano

como um relógio) e o artificial é descrito como natural (o corpo

político descrito a partir de funções anatômicas e fisiológicas de

um corpo humano natural). O fato de que você possa descrever o

natural com os elementos técnicos de possa descrever uma criação

técnica usando as referências naturais significa (e é isto a definição

da natureza como arte divina e da política como arte humana)...

significa dizer: não há mais diferença entre natureza e técnica!

Acabou! Tudo é natural, tudo é artificial, tanto faz! A clivagem, a

separação, entre o natural e o artificial caiu por terra. É isto que

desapareceu. É claro que nós vamos ter que ver por que isso acon-

teceu. Estou dando a vocês o instante em que o processo está con-

sumado, isto se consumou: é assim.... E nós temos que saber por

que isto aconteceu, o que foi que fez que isso acontecesse.

Uma coisa mais interessante do que em Descartes escreve

no Tratado Do Homem. O que nós poderíamos dizer: " Hobbes já

falou que a metafísica é uma bobagem, já explicou que a física tem

os seus limites, que nós podemos conhecer aquilo que nós podemos

fazer, portanto, ciência mesmo é a matemática, a psicologia, a ética

e a política: o resto é tudo elucubração e nós temos que contar com

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experiência... enfim, destes lugares comuns que a gente usa para

falar do Hobbes e dos chamados a empiristas ingleses. Mas com

Descartes a coisa é mais complicada porque o homem cria a meta-

física moderna, é ele que traz a passagem da pluralidade substanci-

al para três substâncias, a distinção metafísica entre estas três subs-

tâncias, a simplificação total, completa, da tradição aristotélico-

escolástica, todo aquele universo deixado pela escolástica, pelo

aristotelismo, tem as é a separação nítida, claríssima, sem a qual

Descartes não é Descartes, que é a separação da res extensa, o

movimento, e a res cogitans. ora, se é assim, nós poderíamos per-

guntar: não é estranho ver Descartes escrever uma coisa que faz

pensar em Hobbes? Porque no Tratado Do Homem, Descartes

escreve o seguinte: "Eu suponho que o corpo (ele está falando do

corpo humano) e nada mais seja do que é uma estátua ou uma

máquina de terra que Deus forma, deliberadamente, para torná-la

mais possível semelhante a nós". Então, num primeiro instante,

criação do homem: o homem é um objeto técnico, ele é uma está-

tua, feita por um extraordinário artesão, que é Deus. Como é lá em

Hobbes.

"Vemos os relógios, as fontes artificiais, os moinhos e ou-

tras máquinas semelhantes, que sendo feitas só pelos homens não

deixam de ter a força de se mover por si mesmas, de diversas ma-

neiras. E eu não poderia imaginar tantas espécies de movimentos

que supõem sejam feitos pelas mãos de Deus, nem lhe atribuir

tantos artifícios que não possa imaginar que esta máquina (esta

máquina que é o corpo) não os possua mais ainda. Vemos nas

fontes e nas grutas que há nos jardins dos nossos reis que a única

força pela qual a água se move ao sair da sua nascente para nela

mover diversas máquinas ou mesmo fazer tocar com os instrumen-

tos ou ainda pronunciar palavras conforme as diferentes disposi-

ções dos tubos que a conduzem. O que verdadeiramente pode-se

muito bem comparar os nervos da máquina que escrevo (nosso

corpo, né?) ao tubos da máquina destas fontes. Seus músculos e

seus tendões a outros diferentes engenhos de energia que servem

para movê-la; seus espíritos animais podem ser comparados à água

que as move, cujo coração é a nascente e as concavidades do cére-

bro são as aberturas. Os objetos exteriores, que só por sua presença

agem contra os órgãos dos seus sentidos e que assim determinam à

máquina a se mover de diversas maneiras, conforme a disposição

das partes do seu sério, são como estranhos que entrando em algu-

mas dessas fontes causou, inconscientemente, os movimentos que

nela se fazem em sua presença, pois não podem caminhar aí senão

alguns canteiros, de tal maneiras dispostos que, por exemplo, se ele

se aproximam de uma Diana que se banha, eles a farão esconder-se

em algum caniço; se passarem mais adiante para segui-la, o farão,

contra si um Netuno, que os ameaçará com o seu tridente; ou, se

forem para a algum outro lado, farão sair o um monstro marinho,

que eu lhes vomitará água contra o rosto, ou coisas semelhantes,

conforme o capricho dos engenheiros que as fabricaram para os

jardins dos nossos reis. E enfim quando houver uma alma racional

nesta máquina, ela terá sua sede principal no cérebro que será nela

como um encarregado da fonte que deve estar nas aberturas onde

vão ter todos tubos nesta máquina quando quiser excitar, impedir

ou mudar de algum modo os seus movimentos".

Esta descrição que Descartes faz do corpo humano, ele vai

repeti-la com outras variações na quinta parte do Discurso Do

Método (eu vou voltar para isto), ela vai ser retomada em várias

cartas, ele tem uma longa troca epistolar a respeito dos autômatos,

ele está empenhadíssimo na fabricação de autômatos; mas, o que

interessa neste primeiro momento aqui não é tanto o interesse de

Descartes pelas máquinas, pelos autômatos, é o fato de nós vemos

uma descrição que em tudo se assemelha à de Hobbes, só que

agora, o que Descartes está descrevendo, é a maneira como Deus

fabricou o corpo humano. Então, invés de "Faça-se o homem" que

o homem foi feito; ou "Seja feito à nossa imagem e semelhança...".

Não, não... Deus foi lá que fabricou, como um artífice, como umar-

tesão. E ele fabricou este corpo, dando a este corpo todas as carac-

terísticas de uma máquina. O nosso corpo é, portanto, uma máqui-

na; e uma máquina que se assemelha a essas máquinas maravilho-

sas que estão nos jardins dos nossos reis que são os autômatos. Mas

é disso que se trata. Então, nós temos aqui em Descartes a mesma

colocação, o mesmo estilo de colocação, que foi feita pelo Hobbes.

O Hobbes para descrever o animal político e Descartes para des-

crever o animal humano ; seja como for um animal que esteja

sendo descrito, é a primeira vez que nós vamos ver um animal

descrito como uma máquina; até o instante que Descartes vai for-

mular este conceito, e ele vai descrever o corpo como um animal-

máquina. A expressão animal-máquina é criada por Descartes para

descrever os corpos (os corpos vivos).

Então, a nossa tarefa é saber por que isso acontece e como

isso acontece. Para nós entendermos como se chegou a esta total

indiferenciação entre a natureza e a técnica, e como se chegou a

esta imagem da totalidade dos seres como formas variadas de

máquinas, nós temos que perguntar o que foi que aconteceu com o

objeto técnico. Para que a máquina pudesse se tornar isso que ela

se tornou, algo deve ter acontecido com o os objetos técnicos: qual

é a mudança dos objetos técnicos sofrem para que eles possam vir a

ocupar este lugar.

Eu vou abrir esta discussão com as primeiras frases de Ga-

lileu no Mensageiro Das Estrelas. Galileu abre o Mensageiro Das

Estrelas escrevendo seguinte: "São, em verdade, grandes as coisas

que neste pequeno tratado proponho aos olhos e à reflexão de todos

os observadores da natureza. Certamente, grandes por sua própria

excelência e sua novidade sem precedentes, pois nunca conhecidas

em todos os tempos passados, mas também por causa do instru-

mento, graças ao qual, manifestaram-se aos nossos sentidos".

Então,Galileu começa dizendo que o que ele vai apresentar

é novo pelo conteúdo; é a descoberta de estrelas inumeráveis, até

então jamais vistas, a superfície irregular da Lua, os satélites de

Júpiter, enfim, tudo o que ele vai apresentar no livro; mas, ele

acrescenta este dado novo: ele diz que o que ele está apresentando

é novo por causa do instrumento que o permitiu a ele fazer as

descobertas que ele está transmitindo. Então, é a primeira vez que

um cientista se refere a um instrumento técnico como um elemento

que é constitutivo de um novo saber que ele está produzindo. Há,

portanto, um objeto chamado perspiscillum que não é mais a lune-

ta; a luneta era o que os comerciantes e navegantes holandeses

usavam do mar; aqui não é uma luneta, aqui é um telescópio. Isto é,

Page 55: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

55

a existência de um instrumento que interfere e determina a produ-

ção de um saber novo. Galileu vai descrever este instrumento e ele

vai dizer que a construção deste instrumento resultou da aplicação

das leis da óptica de refração da luz na fabricação das lentes, ambas

planas, mas uma delas com uma face convexa e a outra com uma

face côncava. Por que ele dava esta longa explicação a respeito da

cientificidade do objeto? Ele não diz: "Olha! Eu fui experimentan-

do e conversei com os artesãos... e a gente viu que se fosse por

aqui... se fosse pular... polia uma lente assim... polia uma leite

assado.... Eu sei que os padres estão dizendo que a gente não pode

ver nada disso porque tudo isso são fenômenos meteorológicos que

estou tomando por fenômenos astronômicos, porque essas lentes

causam ilusão.... Eu sei de tudo isso". Não! Não é isto que ele diz.

Ele diz: "Este objeto aqui foi construído graças à aplicação, na sua

construção, das leis da óptica que permitiram determinar o modo

como as lentes tinham que ser fabricadas, a posição que elas ti-

nham que ocupar e o modo como elas tinham que ser usadas. En-

tão, em instante nenhum, Galileu diz que foi por ensaio e erro, por

tentativa... graças ao auxílio dos artesãos.... Não! Ele diz: eu tenho

nas mãos um objeto que não engane, como os padres estão dizendo

que enganam, que me fariam ao ver o que não há, que me fariam

ver manchas onde não tem, que deformam. Não! Eu tenho nas

mãos um instrumento que foi produzido por um saber científico e,

portanto, este instrumento e não me engana e não engana nenhum

observador. Então, é a primeira vez, portanto, que um objeto téc-

nico é apresentado como objeto científico que leva Galileu a dizer:

este objeto tem uma precisão porque, além de aproximar os obje-

tos, ele permite vê-los sem nenhuma nebulosidade e sem nenhuma

de formação. Seja, nós não estamos mais diante de óculos para

míopes por mero uso que se fez das lentes, não são lunetas para a

diversão no circo e não são as lunetas usadas pelos navegantes, em

particular, os de Veneza e os da Holanda. Não! O que nós temos

agora é um objeto tecnológico. Por que este objeto não é um objeto

técnico, porque ele é um como objeto tecnológico? Ele é um objeto

tecnológico porque ele é ciência encarnada, ciência aplicada. A

fabricação dele pressupõe um conjunto de conhecimentos que não

são empíricos, que não são práticos, que não são artesanais: são

conhecimentos sobre as leis da óptica, são conhecimentos, portan-

to, sobre a luz. E mais: este instrumento se tornou possível graças a

um saber científico que se depositou nele e, ele próprio, vai ser

responsável pelo surgimento de novos conhecimentos científicos.

Ele torna possível a Galileu apresentar todas as descobertas astro-

nômicas e as mudanças astronômicas que ele está propondo. Então,

o objeto técnico mudou de sentido e é esta mudança (que eu vou

examinar um pouco mais) que está no cerne da noção de máquina e

com ela, da noção de natureza. Isso que acontece com o telescópio

vai acontecer com o microscópio também. Ou seja, seguindo o

adágio do Bacon que "a natureza ama se esconder", dois ingleses,

Hook e Pawer, se dedicaram à construção, simultânea à que está

acontecendo também na Holanda, do microscópio. E eles escrevem

numa obra chamada Micrografia em que eles trabalham com a

noção de desproporção entre o olho e os objetos naturais, seja por

causa da vastidão da natureza que o olho no alcança, seja por causa

da pequenez dos objetos naturais que o olho também não alcança.

Ou seja, eles vão propor o microscópio como um instrumento

também baseado nas leis da óptica, baseado, portanto, no conheci-

mento científico e a respeito da óptica, e da dióptrica, para a cons-

trução deste objeto, que é o microscópio, cuja finalidade é, eles

dizem, permitir penetrar naquilo que a natureza se esconde, naquilo

que a natureza oculta. Eles estabelecem, então, duas grandes condi-

ções para que o microscópio possa ser cientificamente empregado:

em primeiro lugar, é preciso que a observação se volte para aquilo

que é constante, frequente e certo nas coisas particulares, ou seja,

não observar qualquer coisa, é preciso determinar a natureza do

objeto que vai ser observado; ele tem que ter algumas característi-

cas que permitam dar a ele um tratamento científico; e a segunda

condição é que este objeto técnico seja um olho artificial que se

acrescenta ao olho natural. Então, a tarefa do microscópio, ao

tornar visível o invisível, vai libertar a filosofia de todas as cons-

truções mitológicas (particularmente, as construções respeito de

monstros) e vai libertar também os filósofos de conjecturas vazias e

de especulações vazias. Ou seja, os construtores do microscópio,

como se pode perceber, são leitores da fervorosos de Lucrécio. E a

ideia, portanto, de que aquilo que pode ser efetivamente observado

pelos homens com rigor liberta os homens da especulação mitoló-

gica, da religião, da superstição e do medo. Há, portanto, um lado

Lucreciano numa convicção do caráter liberador que um instru-

mento tem. Eles consideram que, graças ao microscópio, vai ser

possível construir uma espécie de alfabeto das formas complexas,

ou seja, assim como a geometria tem pontos, linhas, corpos sim-

ples, para depois poder trabalhar os corpos complexos, assim tam-

bém o microscópio. Ele vai começar com a fluidez, a fixação e a

cristalização de partículas; depois, a relação entre as partículas, e a

germinação e animação das plantas; e a sensação, a percepção e a

imaginação dos animais. A ideia, portanto, é que o microscópio vai

permitir esclarecer o mistério de ações à distância que se atribuía à

simpatia, antipatia, à semelhança; eu posso me livrar de todas essas

noções, porque agora eu vou ver a ação das partículas; são as ações

das partículas que, reunindo ou se afastando, que vão explicar

aquilo que mitologicamente se chamava de simpatia, antipatia,

amor, ódio e etc; vai livrar a natureza de todos antropomorfismos e

antropocentrismos. E, ao mesmo tempo, vai tornar inteligível a ida

do simples ao complexo. É isso que este instrumento tecnológico

vai fazer. Então, é possível, pelo trajeto que nós fizemos desde os

gregos até aqui, observar que entramos em um outro mundo, é um

outro lugar, estamos num outro espaço (é um outro lugar); estamos

não só num outro tempo, nós estamos num outro espaço de pensa-

mento em que o objeto técnico é a agora constitutivo do saber

científico, tanto para sua construção quanto para o avanço do pró-

prio saber. É esta a mutação que ocorreu. Então, nós sabemos que

desde o final do século XV mas, sobretudo, o XVI até o XVII, os

problemas de velocidade e orientação dos navios conduzem a arte

da navegação, pouco a pouco, para as vizinhanças da astronomia e

dos estudos das marés. Ora, a arte da navegação leva à ideia de um

controle do tempo e da marcação da relação entre o espaço e o

tempo e, portanto, a arte da navegação vai conduzir, pouco a pou-

co, à noção de cronometria, ou seja, de um tempo dotado de preci-

são. Deste modo, a navegação se aproxima da astronomia para que

ela seja uma técnica adotada de precisão e, ao mesmo tempo, ela

propõe pelas suas próprias necessidades da marcação exata do

tempo e do espaço (da relação entre o tempo de o espaço) o surgi-

mento de uma disciplina científica que vai ser a cronometria. E vai

Page 56: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

56

ser o nascimento do relógio como objeto de precisão ou, como

diz... (?)..., não é o relógio é o cronômetro: o relógio é o relógio, o

que nasce agora é o instrumento de precisão chamado cronômetro.

Da mesma maneira, os problemas de ventilação nas minas... sejam

as minas descobertas nas Américas, sejam as minas de carvão na

Europa (porque nós estamos no início da manufatura, se aproxi-

mando da primeira revolução industrial)... então, há problemas de

ventilação nas minas e da capacidade para extrair os metais; isto

vai aproximar a mineração da aerostática e da hidrodinâmica, de

tal modo que a técnica de extração dos metais passa a pedir elabo-

ração científica pela hidrodinâmica e pela hidrostática as quais, por

seu turno, ganham a possibilidade de construir instrumentos técni-

cos para o seu própria avanço graças aos procedimentos nas minas

americanas e nas minas europeias. Ou seja, o mesmo acontece com

a fabricação das bombas hidráulicas com os problemas de tingi-

mento postos na arte da tecelagem e que vão desembocar no o

desenvolvimento da química. A arte da guerra vai exigir uma nova

balística, e ela vai obter esta nova balística graças ao momento em

que a mecânica vai se encaminhando em direção da cinemática

para a dinâmica. Ou seja, o que está acontecendo, desde o final do

século XV e, sobretudo, durante o XVI e XVII, o instante no qual o

capitalismo finalmente se concretiza, o que se dá é uma transfor-

mação na relação entre as ciências e as técnicas adjacentes a elas e

que nunca tinham tentado em relação. Cada uma dessas disciplinas

já existia, cada uma destas práticas já existia; o que não existia era

a relação entre elas. O fato de que uma ciência se vale de uma

técnica para produzir um novo conhecimento científico ou que um

novo conhecimento científico atue sobre uma técnica para produzir

uma mudança no plano da prática, no plano da economia. Então, o

que o capitalismo faz é esta coisa gigantesca de entrelaçar... e ele...

nós vamos ver quando estudarmos o mundo contemporâneo que

nós chegamos ao apogeu deste entrelaçamento. O que o capitalis-

mo fez foi entrelaçar, de maneira impossível de você desmanchar,

o universo das técnicas e o universo das ciências. E é este entrela-

çamento, pelo qual o conhecimento científico produz novos objetos

técnicos e os novos objetos técnicos alteram os conhecimentos

científicos, esta mutação é o que se chama: o advento da tecnolo-

gia. A tecnologia é isto.

Nós podemos ver matematização disso por todos os filóso-

fos. Nenhum deles deixa de tratar diretamente deste tema, da rela-

ção entre os instrumentos técnicos e o saber, e da relação entre arte

e natureza e assim por diante.... Este é um tema constante que vai e

volta incessantemente durante toda a modernidade, durante todo o

século XVII. Então, no Discurso Do Método, por exemplo, Descar-

tes vai dizer que é possível chegar a conhecimentos muito úteis e

para a vida desde que se abandone esta filosofia especulativa que

se ensina nas escolas. Ele abre o Discurso Do Método com isso. E

ele vai dizer que... ele vai iniciar as Meditações dizendo que seria...

ele está à procura, na filosofia, daquilo que Arquimedes ofereceu

para as ciências e as técnicas: um ponto seguro com o qual você

pode levantar o globo terrestre. Então, a hidrostática e a hidrodi-

nâmica de Arquimedes permitem uma alavanca que era impossível

construí-la, mas ela é inconcebível... uma alavanca por meio da

qual o homem podia erguer o globo terrestre, mudar o globo terres-

tre de lugar. Descartes tem sempre o programa mínimo; o progra-

ma mínimo de Descartes era: mudar a terra de lugar, fazer uma

medicina para ninguém morrer nunca mais... ele é o máximo! Eu

acho Descartes o máximo; porque todo o filósofo é muito maluco

(tem que ser isto — porque senão a gente estava aqui). Tem que ter

um bom um grão de loucura, sobretudo porque uma das coisas que

a gente tem que ver é: está tudo errado, não tem nada desse jeito,

vamos fazer de um outro jeito... bem, um bando de indivíduos que

chega diante de um mundo que está todo satisfeito e diz que estava

tudo errado, vão fazer tudo diferente.... Somos nós! Nossa função

é:.... Temos que ter um grão de loucura razoável. Nos grandes

filósofos o grão de loucura é imenso, aliás, o grão de loucura o

homem é um grão é um treco... os outros, mais modestos, quer

dizer... é um grãozinho de loucura, mas tem que ter! Então, o do

Descartes é maravilhoso, porque Descartes está a espera de mudar

a Terra de lugar e, sobretudo, ele é explícito, e ele não tinha o

menor interesse de escrever as Meditações, ele não tinha o menor

interesse de escrever os Princípios Da Filosofia, de escrever o

Discurso Do Método; ele escreveu o isto porque a “padraiada” da

universidade de Paris e Sorbonne ia botar ele na fogueira como já

tinham quase feito com Galileu; então, ele resolveu dar uma expli-

cação metafísica... mas, o que Descartes queria fazer era aquilo,

que foi o sonho dele, é a medicina... medicina... o sonho de Descar-

tes era começar garantindo a longevidade e, depois, dentro de

limites: é isto que ele está procurando. E é por isto que, na perspec-

tiva dele, a separação entre a res cogitans e a res extensa é funda-

mental. Para ele poder bolar uma medicina na qual o corpo se torna

uma máquina e mortal, inviolável, ele precisa separar as duas

substâncias, garantir a autonomia da res extensa, que é sobre a qual

a medicina vai operar. E é o instante mais interessante, ao lado dos

textos de medicina que ele escreveu, é o Tratado Das Paixões Da

Alma, porque aí ele dá início tudo aquilo que viria a se a psicologia

moderna, porque ele vai explicar um conjunto de acontecimentos

que se atribuía à mente. Ele vai mostrar que é o corpo... e que há

uma capacidade do corpo de fazer tudo aquilo, porque que Descar-

tes são os automatismos corporais: a figura do autômato. A ideia do

animal-máquina não é uma elucubração metafísica, é uma ideia que

é fundamental para um medicina que tem como programa mínimo

a imortalidade. É isto que ele quer. Então ele fala no Discurso Do

Método, ele fala a isso nas Regras Para A Direção Do Espírito — é

uma ideia que o Liebniz também tem — que é o absurdo que nem

os sábios, os filósofos, sentiram sempre pelos técnicos; pelos arte-

sãos. Do mesmo modo que Galileu dias: eu passeio de aqui pelo

arsenal e converso com os artesãos porque eu aprendo com eles,

Descartes faz essa afirmação e Liebniz vai fazer também esta

afirmação: um dos maiores atrasos da Europa foi de ter sido inca-

paz de estabelecer a relação entre os técnicos e os sábios, a técnica

e a ciência, de os sábios irem até os ateliês, às oficinas, aos o labo-

ratórios, o para aprendercom os artesãos, para aprender com os

técnicos. A ideia é(esta é uma ideia que só pode surgir no capita-

lismo) de que o conhecimento tem que ser o último para o bem-

estar dos seres humanos; o conhecimento não é só alegria de saber

das coisas, o conhecimento é poder fazer com que a vida seja me-

lhor: melhorar a vida dos seres humanos, é para isto que se desen-

volve o conhecimento. E, deste ponto de vista, que ele vai fazer um

elogio dos mecânicos.

Page 57: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

57

Liebniz vai escrever o seguinte: "Não há arte mecânica, por

menor ou desprezível que seja, que não possa fornecer algumas

observações ou considerações notáveis e todas as profissões ou

vocações possuem certas habilidades engenhosas que não é fácil

notar que, no entanto, podem servir a muitas consequências mais

relevantes. Pode-se acrescentar que a matéria importante das manu-

fatura de do começo não poderia ser bem regulada senão por uma

descrição exata do que pertencem a todos tipos de arte; de que os

negócios de milícia, finanças, marinha, dependem muito das ma-

temáticas e da física. E o principal defeito de muitos cientistas, que

se diverte em apenas com discursos vagos e repetidos, quando há

todo um campo para exercer o espírito com objetos sólidos e reais

para a utilidade do público". E, por isto mesmo, também, tanto

Descartes quanto Liebniz criticam as Corporações De Ofício; eles

dizem: do lado dos cientistas e dos filósofos, toda esta ignorância

de não perceber essa necessidade de ir ao conhecimento prático dos

artesãos e de não perceber o quanto saber teórico depende deste

conhecimento prático; mas, do lado dos artesãos, os segredos das

corporações — corporações fechadas sobre si, hierárquicas, verti-

cais e mantidas pelo segredo. De tal modo que vem, procura a

corporação, ele precisa de dados, precisa de informações, ele preci-

sa de uma série de recursos instrumentais e a corporação se nega a

dar, porque ela defende o segredo de um ofício. É um momento

crucial, porque é um momento de quebra da especulação, enquanto

mera especulação, e de lutacontra as corporações.

Neste novo quadro econômico, filosófico, político, o qual

é o novo estatuto da técnica? (eu vou fazer só mais isso e eu con-

cluo na próxima aula, explicando porque a natureza é máquina —

eu deixo para explicar a identidade entre a natureza e a máquina na

próxima vez). Então, qual é o estatuto da técnica? Primeiro, os

objetos técnicos estão destinados a resolver problemas técnicos,

práticos, em todos os campos da atividade humana de eles são

vistos como invenções. Em segundo lugar, eles são projetos para a

construção de outros instrumentos e de outras máquinas. E estas

máquinas e estes outros instrumentos são vistos como instrumentos

de precisão. Em terceiro lugar, o objeto técnico se insere num

contexto novo que é a do surgimento dos primeiros laboratórios. E

a articulação que passa a haver entre a física, a biologia, a química,

a astronomia e a matemática. Em quarto lugar, o objeto técnico é,

na verdade, o objeto tecnológico ou ciência aplicada. E os casos

exemplares são o telescópio, o microscópio e o cronômetro. Sobre

o cronômetro, eu vou ler uma passagem do Koyré sobre qual é o

significado do relógio de precisão, que nasce a partir de todo o

trabalho de Huygens sobre as leis do pêndulo; vai primeiro traba-

lhar as questões do pêndulo, a partir das leis do pêndulo, a questão

da isocronia, e a partir da isocronia, a construção dos cronômetros.

Então eu cito Koyré: "Até a primeira metade do século XVI, o

tempo é ainda tempo vivido; aquele tempo do senso comum, se-

gundo o qual a vida passa de acordo com as medidas naturais do

dia e da noite ou dos movimentos da abóboda celeste. Somente na

metade do século XVI, em correspondência com o crescimento da

riqueza urbana sobre a camponesa, que se mostra a necessidade de

uma medida mais exata do tempo;porém, o relógio precisam, o

relógio concebido não como simples objeto de uso, mas como

instrumento científico, nasce no momento em que o contato da

técnica e da ciência alcança o seu pleno amadurecimento da obra

de Galileu e de Huygens. Em Galileu que, pela primeira vez, en-

contramos historicamente realizada há plena convergência entre a

tradição, que e desemboca nas experiências e na prática dos arte-

sãos e técnicos e a grande tradição teórica da mecânica e metodo-

lógica da ciência europeias. A investigação teórica da mecânica

prática e a sua transformação em ciência são obras de Galileu; em

sua obra fundam-se, num sólido conhecimento teóricos, a mecânica

empírica e a ciência do movimento; e é no interior dessa ciência do

movimento que Huygens construirá o primeiro objeto de precisão

respeito do tempo: o cronômetro".

O que vai se tornar, também, evidente na partida desta mu-

tação do estatuto da técnica e da relação entre técnica e ciência e a

percepção de que a ciência não pode ser obra de um só. É a percep-

ção de que a ciência é uma obra coletiva: uma obra coletiva dos

teóricos com o os práticos. E é isto que explica a ideia de que a

ciência é um saber público e não saber secreto, que o laboratório

que é um lugar não só de pesquisa, mas de cooperação, de colabo-

ração coletiva; e isto dá o nascimento dos colégios científicos,

separados, distantes das universidades que são dominadas pela

igreja. Então, você tem na Inglaterra a Royal Society, na França,

College de France e na Itália, a academia dos Linces.

Todas estas mudanças têm um pressuposto teórico (elas

todas têm um pressuposto econômico, social e político — é o

advento do capitalismo que está fazendo tudo isso) importante que

é a mudança do conceito de natureza. Isso nós vamos ver na pró-

xima vez, então... o que acontece? A natureza que era,kineses, vida,

mãe, organismo vivente... a natureza vai gerar: máquina. E é isto

que nós vamos ter que apreciar.

Aula 09 (15-10-2012)

Vamos concluir hoje os modernos, porque, na próxima vez,

eu vou fazer um salto (do mesmo modo em que eu fiz um salto

quanto a idade média) com relação ao século XVIII, vou fazer aqui

e ali alguma referência, e vou direto ao século XIX, e aí eu vou

retomar a discussão (como a gente fez no início do curso), que é a

relação entre a questão da técnica, da sociedade e da economia;

porque no percurso que o fiz até aqui, o que foi sendo estabelecido

foi o vínculo entre a técnica e ciência até nós chegarmos a noção de

tecnologia. Nós temos que retomar agora — mas vou retomar a

partir do XIX — o vínculo entre técnica e ciência, economia e

sociedade. Portanto, a questão... a relação entre técnica e trabalho,

que foi o nosso ponto de partida (lembram?)... técnica e trabalho...

e aí a partir da relação entre técnica e trabalho a relação entre téc-

nica e do modo de produção capitalista e as duas revoluções indus-

triais, ou seja, nós vamos entrar de maneira muito breve e muito

simplificada na análise que Marx faz do maquinismo... e a partir da

análise marxista do maquinismo e da técnica, e portanto da condi-

ção do trabalho, a minha ideia é, no mês novembro, nós examinar-

mos, finalmente, o que aconteceu com a técnica nos dias de hoje

que é esta controvertida noção de técnica e ciência: a sociedade do

conhecimento e tecno-ciência. Então, a minha perspectiva é con-

cluir os modernos, hoje, e aí, na próxima vez, fazer uma breve

menção a um alguns pontos do século XVIII, e depois tomar a

Page 58: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

58

análise do maquinismo que Marx faz no Capital; vincular técnica,

trabalho e modo de produção capitalista, para depois passar para a

segunda revolução tecnológica, no instante que vai se passar da

máquina efetivamente para o autômato; e a partir do momento em

que se passa da técnica para a extensão dos membros (das pernas,

dos pés e dos órgãos dos sentidos — é isto que a técnica fazia) para

a extensão do cérebro; e portanto, a mudança na natureza do objeto

técnico. Uma coisa é objeto técnico quando ele é uma expansão da

visibilidade do corpo, outra coisa é a com objeto técnico quando

ele é a expansão da invisibilidade do cérebro, o seja, quando o ele é

a expansão do pensamento. Não mais a função física, corporal, mas

a força psíquica. E o que acontece quando você tem esta mudança

da natureza do objeto técnico? Porque o que nós estamos exami-

nando é (o que eu pretendo estabelecer como conclusão hoje é...)

como se passa de uma visão da natureza como um organismo vivo

no interior do qual o homem e a técnica estão inseridos de tal ma-

neira que a técnica é pensada como uma imitação da natureza para

a separação entre o homem e natureza, técnica e natureza, de tal

maneira que a técnica deixa de ser imitação da natureza para se

transformar em uma intervenção sobre a natureza e o exercício de

um poder sobre a natureza, com o advento da tecnologia. Este foi o

trajeto. O momento seguinte é o instante em que esta tecnologia é

tomada diretamente de como força produtiva. E ao ser tomada

como força produtiva, no interior do modo de produção capitalista,

como a técnica opera, e depois o instante em que há uma mutação

na natureza do objeto técnico quando ele passa de máquina a autô-

mato propriamente dito; e o fato de que o grande modelo neste

segundo caso, modelo invisível do objeto técnico, vai ser a biolo-

gia, vai ser o ser vivo. É interessante, porque nós vamos abando-

nando pouco a pouco a ideia da natureza como um ser vivo (nós

vamos ver a consumação disso hoje), a natureza se torna uma

máquina e o movimento posterior (quando se passa da máquina

para o autômato) é encontrar o autômato perfeito: e o autômato

perfeito é o corpo humano; de tal modo que a biologia ressurge

como (não a biologia da renascença, evidentemente) concepção

biológica, concepção do vivente, reaparece como modelo do objeto

técnico. Mas em instante nenhum nós não vamos pensar isso como

um círculo; porque se nós pensássemos como um círculo nós terí-

amos que abandonar a noção de História; nós teríamos, pura e

simplesmente, a repetição. Não é uma repetição, é uma mutação:

uma mutação gigantesca! O que é curioso, entretanto, é que esta

mutação recupere a noção de vida como modelo da técnica — só

isso.

Bem, eu vou tomar alguns poucos que já apresentei aula

passada só para... [interrupção da aula devido ao barulho, Marilena

pede para que a porta seja fechada]. Eu vou tomar alguns pontos

que eu havia apresentado no fim da aula passada, porque eu quero

salientá-los como pontos importantes da conclusão deste percurso,

agora.

Então, nós vimos que desde o século XV e, sobretudo,

desde meados do século XVI, como as grandes navegações e a

formação do impérios coloniais ultramarinos... houve um conjunto

de exigências feitas no plano da navegação, da guerra, do comércio

e da mineração que impulsionaram as artes mecânicas. E as empur-

raram em direção, como já vimos, o ao conhecimento científico; ou

seja, problemas, por exemplo, com velocidade e orientação dos

navios vão levar a arte da navegação para as vizinhanças da astro-

nomia e para o estudo das marés, mas também vão conduzir a

astronomia pela sua relação com a arte da navegação à cronome-

tria, à marcação de espaços e de lugares, lá onde não tem espaço

nem lugar, que é o mar, ou seja, a criação das latitudes e longitudes

e a produção da cartografia como a expressão real daquilo o que é

o objeto das viagens; não mais uma cartografia mítica e fantástica,

mas o mapa com o retrato fiel da realidade. Então, uma aproxima-

ção da astronomia com o à navegação leva ao surgimento dessas

formas de medição (como são a latitude e a longitude), mas tam-

bém ao surgimento da ideia de que é preciso uma marcação de e

absoluta precisão de espaço e tempo; e o simples relógio mecânico

já não é suficiente para isto; vai ser desenvolvido em todo o traba-

lho, sobretudo por Huygens, no campo da cronometria. E a ideia

agora, através da figura do pêndulo, da marcação da isocronia no

pêndulo, o surgimento do relógio como instrumento de precisão,

isto é, o cronômetro. Depois, surge a marcação da temperatura, o

termômetro; a marcação da variação da umidade e da secura do ar,

o barômetro; e, ao lado disso, evidentemente, na astronomia, a

passagem da luneta ao telescópio; e na biologia, especialmente da

zoologia, a passagem, ou a descoberta e a invenção do microscó-

pio. Nem então, há um conjunto de exigências que são feitas inici-

almente no plano econômico e que vão ao pedir o surgimento de

objetos técnicos de uma natureza nova. Além disso, por exemplo

no caso das minas, de ouro e prata nas Américas, e as minas de

carvão na Europa, começam a surgir problemas de sustentáculo das

minas, garantia de profundidade da escavação e ventilação. O que

vai unir a mineração aos estudos na física de aerostática e de hidro-

dinâmica. Então, as ciências vão sendo atraídas para uma articula-

ção entre elas (articulação que não havia) que são pedidas por

exigências econômicas ligadas a técnica. A mesma coisa vai acon-

tecer com toda a indústria da tecelagem, seja do ponto de vista de

novos fios (no caso, por exemplo, do aparecimento do algodão que

foi uma verdadeira revolução)... a maneira de trabalhar o algodão

que é diferente da maneira de trabalhar o linho, diferente da manei-

ra de trabalhar a seda. Então, você tem novos fios, diferentes exi-

gências na maneira de trabalhar esses fios, mas não só no modo de

fiá-los e sim o modo de tecê-los; e sobretudo no modo de tinji-los.

O que é convocado, então, em alta escala pela manufatura da tece-

lagem é química; enquanto a física e a astronomia são puxadas pela

mineração e pela navegação, a tecelagem vai puxar o trabalho da

química; e assim por diante. Ou seja, o modo de produção, que é,

por enquanto, o capitalista-mercantil, mas já rumando para o capi-

talismo manufatureiro, esta nova forma do arranje econômico vai

provocar uma mudança no modo de relação entre ciência e técnica

e do conceito de objeto técnico; tudo isto vai se transformar.

Esta nova relação entre o saber que a prática é que vai ser

tematizada pelos filósofos. (O nosso curso não é um curso sobre a

técnica, quer sobre o pensamento da técnica.) Então, como é que os

filósofos tematizam dessa relação. Descartes vai escrever no Dis-

curso Do Método que, eu cito: "É possível chegar a conhecimentos

muito úteis para a vida, desde que seja abandonada esta filosofia

especulativa que se ensina nas escolas". É por isso que ele inicia o

Discurso do Método e as Meditações exprimindo o desejo de que

Page 59: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

59

houvesse para a filosofia algo que estava prometido para as ciên-

cias, que é encontrar para filosofia o mesmo que as ciências já

havia encontrado, o ponto de Arquimedes, ou seja, que ele ponto a

partir do qual possível construir uma alavanca que levanta o uni-

verso. Descartes vai encontrar esse ponto, esse famoso ponto fixo,

essa alavanca arquemediana no cogito; embora, ele vá provar a

existência de Deus, a primeira verdade não é Deus, a primeira

verdade é o cogito.

Esta referência que é feita por Descartes à hidrostática de

Arquimedes e não é casual, há referência a Arquimedes vai se

tornar uma constante no final do século XVI e no início do século

XVII. Por quê? Porque um dos primeiros desenvolvimentos técni-

cos e científicos que vão ocorrer neste período estão ligados à

hidrodinâmica; a passagem da hidrostática para a hidrodinâmica,

donde o papel que Arquimedes vai ter. Arquimedes é aquele que

formula a teoria de uma hidrostática e de uma hidrodinâmica que

poderia, dadas as condições materiais e as condições teóricas para

isso, se transformar em técnica. Então, há uma referência contínua

à figura do Arquimedes; e esta referência vai aparecer inclusive

quando são pensados modelos para o corpo humano, quando Har-

vey...? [XVII:13]. Quando Harvey pensa o modelo para o coração,

e a descoberta que ele faz da circulação do sangue, o modelo é a

bomba hidráulica. É lá na hidrostática e na hidrodinâmica que ele

vai procurar um modelo, que era o mesmo modelo que vai estar

presente em Descartes; há uma constante, uma presença fortíssima,

do modelo hidráulico para pensar o funcionamento das máquinas,

sobretudo até primeira metade do século XVII. Depois, este mode-

lo vai em uma outra direção, mas inicialmente o grande modelo é o

modelo hidráulico. E por isso a importância da figura de Arquime-

des. Na parte cinco do Discurso Do Método, depois que Descartes

expõe de maneira abreviada o percurso das Medicações... quando

chega na parte cinco, ele vai apresentar o programa de uma nova

filosofia. E este programa, esta nova filosofia, é apresentada por ele

da seguinte maneira (eu vou citar Descartes): "Mas, tão logo adqui-

ri algumas noções gerais relativas à física, e começando a compro-

vá-las em diversas dificuldades particulares, notei até onde podiam

conduzir e o quanto diferem dos princípios que foram utilizados até

o presente e julguei então que não podia mantê-las ocultas sem

pecar grandemente contra lei que nos obriga procurar o que depen-

de de nós o bem geral de todos os homens, pois elas me fizeram

ver que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à

vida e que ao invés da filosofia especulativa que ensina na escola

que se pode encontrar uma outra prática pela qual, conhecendo a

força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de

todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como o

conhecemos os diversos ofícios dos nossos artesãos, poderíamos

entregá-los da mesmo maneira em todos os usos dos quais são

próprios e assim nos tornar como que os senhores e possuidores da

natureza. O que é desejável, não só para a invenção de uma infini-

dade de artifícios que permitiriam gozar sem qualquer custo os

frutos da terra e de todas comodidades que nelas se acham, mas

principalmente o também para a conservação da saúde, que é sem

dúvida o primeiro bem, fundamento de todos os outros bens, desta

vida". Este é, portanto, o programa de Descartes. Como vocês

vêem é um programa... se gente toma o que aconteceu na história

da filosofia e a consagração de Descartes causa das Meditações,

nós vamos ver como a história é, no fundo, curiosa; porque ela

consagra Descartes por aquilo que para Descartes não tinha grande

importância. A única importância que tinha para ele no caso das

Meditações era assegurar a clara separação entre o corpo e alma

(ou entre a res cogita e a res extensa) porque a condição para todo

este programa técnico e científico que ele propõe, todo este pro-

grama ligado as artes mecânicas e a medicina, dependia, de acordo

com Descartes e de acordo com Galileo, de finalmente desespiritu-

alizar a natureza; fazer com que a natureza não fosse mais (a natu-

reza que vem desde Aristóteles) dotada de finalidade, o processo de

busca da perfeição, tudo aquilo que nós vimos que a natureza era.

A ideia é desvencilhar a natureza de toda esta concepção qualitati-

va e finalista para pensá-la (eu vou mostrar isso para vocês já-já)

como algo quantitativo, mensurável e perfeitamente conhecido do

ponto de vista a matemático. É a matematização da natureza, a

matematização da extensão que interessa para Descartes. Então, a

função das Medicações é assegurar que esta distinção entre a res

cogita (o pensamento, a alma ) e os corpos, a natureza que Descar-

tes quer. Ele é consagrado pela Meditações, mas o programa que

ele vocês viram qual é: o desenvolvimento da mecânica, para que o

homem possa fluir, sem esforço, os frutos da terra e a medicina,

porque a saúde é o mais precioso de todos os bens; por isso, Des-

cartes quer uma filosofia prática, ele foi consagrado como um

grande metafísico, que não era intenção dele.

Este programa proposto por Descartes é o que o leva ao

elogio dos mecânicos, o elogio dos artífices; e nós fomos encontrar

exatamente o mesmo elogio aos artífices e a mesma crítica a uma

filosofia inteiramente especulativa em Leibniz, o monadologia

Leibniz vai escrever para: "Não há arte mecânica, por menor que

seja, que não possa fornecer algumas observações e considerações

notáveis e todas as profissões, ou vocações, possuem certas habili-

dades engenhosas que não é fácil notar que, no entanto, podem

servir a muitas conseqüências das mais relevantes. Pode-se acres-

centar que a matéria importante das manufaturas e do comércio não

poderia ser bem regulado não por uma descrição exata do que

pertence a todos os tipos de arte e que os negócios de milícia,

finanças, marinha, dependem muito das matemáticas e da física

particular; e o principal defeito de muitos cientistas e que se diverte

apenas com discursos vagos e repetidos quando há todo um campo

para exercer o espírito com objetos sólidos e reais para a utilidade

do público".

Então, Leibniz vai lamentar que os teóricos nunca tenham

ido ao observar os artesões, nunca tenho ido as oficinas, aos ateli-

ers, as minas, aos moinhos, as manufaturas de fiação e tecelagem.

O que efetivamente os técnicos, os mecânicos, os artesãos faziam,

e, por isso, o que eles deixaram escrito sobre as artes e as ciências

não tem valor nenhum. Ao mesmo tempo, Leibniz também critica

as corporações de ofício. Do mesmo modo que Descartes diz que

seria um crime eu fazer as descobertas que fiz e mantê-las secretas

quando elas concernem ao bem público; do mesmo modo, Leibniz

para fazer a crítica das corporações de ofício que trata cada um dos

ofícios como um segredo. Ou seja, o que está surgindo, nestas

afirmações que já apareciam nas obras de Galileo, está surgindo a

ideia de que o conhecimento científico e as técnicas são públicos.

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60

Eles não são conhecimentos, saberes, práticas secretos e concentra-

dos apenas nas mãos de alguns: eles são bens públicos. Isso é uma

novidade, uma grande novidade, também.

Então, diante destas mudanças, qual é o estatuto da técni-

ca? Bem, isto eu já apresentei rapidamente para vocês na aula

passada, eu retomo hoje. Primeiro, os objetos técnicos são conside-

rados como soluções para problemas em todos os domínios da

atividade humana. Eles não são objetos para este ou aquele Campo

da atividade humana e, mas para toda atividade humana você pode

ter objetos técnicos que são soluções para problemas existentes

nestas atividades. E por isso os objetos técnicos são considerados

invenções. Eles são inventos destinados a resolver a problemas

práticos em todos campos da atividade humana. Todos. Em segun-

do lugar, eles são concebidos a partir de projetos de construção.

Eles não são empiricamente tentados: "Em um experimento, que o

fazia assim, não deu certo, tento de um outro jeito — não, não!".

Agora, existe a noção de uma engenharia dos inventos, a noção de

que é preciso ter projetos para a construção destes objetos. E como

eles são, portanto, produtos de projetos de construção, eles me são

vistos como instrumentos de precisão. Em terceiro lugar, portanto,

o objeto de precisão vai se inserir numa lógica nova. Na tradição, a

lógica era pensada como a... que é a arte do silogismo proposta por

Aristóteles. A lógica, com acréscimos aqui e lá permaneceu intoca-

da como arte de demonstração, como técnica de demonstração,

desde os Segundos Analíticos. Agora, esta expressão vai ser dire-

tamente usada por Descartes — é o primeiro, na Regras Para A

Direção Do Espírito, ao usar essa expressão e depois se expande.

Ele vai falar em... (?)... e na ciência é uma arte de descoberta, ela é

uma lógica da invenção de solução para problemas. Então, o objeto

técnico vai se inserir nesta nova lógica científica que a da invenção,

a da descoberta de solução para problemas teóricos e práticos. E,

em quarto lugar, como uma já vimos, o objeto técnico se torna um

objeto tecnológico, ou seja, ele é ciência aplicada. E os casos

exemplares são, evidentemente, o telescópio, o microscópio e o

relógio. Porque, o relógio, ao ser transformado em cronômetro

muda concepção que se tinha do templo. Eu cito uma pequena

passagem do Quaret (?) para a [32:06], explicando justamente esta

mutação na percepção do tempo, ele diz: "Até primeira metade do

século XVI, o tempo é o tempo vida, é o tempo do senso comum,

segundo qual a vida passa de acordo com as medidas naturais do

dia e da noite ou dos movimentos da abóboda celeste. É somente

na metade do século XVI, em correspondência com a riqueza da

riqueza urbana sobre camponesa que se mostra a necessidade de

uma medida mais exata do tempo. Porém, o relógio de precisão, o

relógio concebido não como um simples objeto de uso, mas como

instrumentos científico nasce em um momento em que o contrato

entre a técnica e ciência alcança o seu pleno amadurecimento da

obra de Galileo e de Huygens. É em Galileo que pela primeira vez

encontramos historicamente realizada a plena convergência entre a

tradição que desemboca nas experiências e na prática dois artesãos

e técnicos e a grande tradição teórica da mecânica e metodológica

da ciência européia. A transformação da mecânica em ciência com

obra de Galileo e a obra de Huygens. Em suas obras só vão se

fundir no solo do conjunto o conhecimento teórico, a mecânica

empírica, a ciência do movimento". Então, o que o cronômetro

introduz é percepção do tempo como algo matematicamente men-

surável, o tempo não é o tempo da nossa experiência vivida: o dia,

à noite, o nascimento, o crescimento, a morte... não é mais esta

referência, as quatro estações do ano... o tempo não é medido mais

por essas referências que são as referências da nossa vida cotidiana

de um tempo que é qualitativo e psicológico, este tempo que dura

mais ou dura menos dependendo da experiência que estou tendo.

Por exemplo, uma experiência de imenso prazer percebe-se um

tempo que não dura nada; se a experiência de um terrível mal: este

tempo não acaba nunca. É este tempo que desaparece. Nós vamos

ver que vai desaparecer o espaço da percepção, o espaço qualitati-

vo da percepção, o espaço onde há lugares, o onde existe o longe, o

perto, o alto, baixo: tudo isto são qualidades parciais, vindas da

percepção, tudo isto é abandonado pela ciência moderna. A ciência

moderna não lida com o espaço qualitativo, ela lida com o espaço

geométrico, o espaço inteiramente quantificada; portanto, com

espaços em lugares (sem alto, nem embaixo, bem próximo, bem

distante — acabou isto). Da mesma maneira, o tempo; não o tempo

longo, curto, o amanhã, o ontem, o depois de amanhã, o futuro, o

passado: o tempo é o tempo cronometrado; o tempo se geometriza,

também. Ou seja, o que a nova ciência está apagando a noção de

um mundo qualitativo no qual mãos vivemos, ela vai substituir este

mundo qualitativo da nossa experiência comum e cotidiana por um

mundo limpo, límpido, claro e distinto, que é um mundo inteira-

mente matematizado e mecanizado. É isso mundo novo no qual a

técnica se torna tecnologia.

Eu vou apresentar um texto de Jean Pierre Cerry ... ? ...

[36:53], ele está na bibliografia de vocês... um trecho do livro que

sintetiza este percurso total de mostrar para vocês. O texto do Cerry

diz o seguinte: "Medida que matematização dos fenômenos se

tornam inseparáveis e doravante vão juntas. A articulação nova e

de ciência e técnica encontra aí a sua razão de ser". Tanto que torna

possível esta articulação nova e inesperada entre ciência e técnica,

foi, justamente, a mensuração e a matematização dos fenômenos;

ou seja, a desaparição da qualidade e a sua substituição pela quan-

tidade. Eu prossigo: "Até por volta de XVI00 a astronomia era a

única ciência que utilizava instrumentos. Quando nós chegamos na

altura de XVII00 (portanto, um século depois) nenhuma ciência

podia pretender passar sem instrumentos. O emprego de instrumen-

tos havia se tornado uma dimensão de toda e qualquer ciência. A

demanda por instrumentos de precisão não é uma demanda externa

e sim provêm dos próprios meios científicos. A demanda por ins-

trumentos de precisão traduz uma exigência interna a própria ciên-

cia. É o caso da cronometria, dos instrumentos para produzir um

vácuo, dos telescópios e microscópios. O universo da precisão, o

livro da natureza escrito em caracteres geométricos como dissera

Galileo não permanece o objeto ideal de uma experiência de pen-

samento, mais é que ele mundo que tem que ser encontrada pela

medição. Como tentam fazer todos os sucessores de Galileo. O

instrumento científico está na junção do mundo material e do fe-

nômeno matematicamente concebido. Ele produz realmente o

fenômeno matematicamente conduzido". Ou seja: a ideia é que vai

se desenvolvendo um pouco a pouco... não passa pela cabeça de

um sábio do XVII, de jeito nenhum. Mas vai ser a ideia de um

sábio do XIX que o objeto da ciência não é um objeto de uma

Page 61: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

61

descrição que ele é o objeto de uma construção. O objeto científico

não existe como um dado da natureza, ele era construído pelo

cientista no laboratório. Esta construção já começam XVII. Basta...

um livro fascinante, está na bibliografia de vocês... que é uma

discussão que Shaifen a ...?... [40: 39] da e Chapiro fazem... a

discussão entre Hobbes e Boyle a respeito do vácuo. Boyle vai nos

ler uma bomba para construir o vácuo, porque toda a teoria e quí-

mica de Boyle é uma teoria... ela não é atomista, ela é, vamos

dizer, molecular; mas ela depende da existência do vácuo; então, o

nascimento da química moderna com Boyle depende de que o

vácuo que exista. Porque, você sabe, desde os gregos, com exceção

dos e pecuaristas (portanto, com exceção de Epicuro e de Lucrécio)

sempre se disse que o vácuo é inexistente, a natureza odeia o vá-

cuo, o vácuo é impossível. Descartes vai dizer que o vácuo impos-

sível, Spinoza vai dizer que o vácuo impossível... Leibniz vai

titubear, como tudo que é próprio do Leibniz... "Pode ser que aqui

e ali...". É o conciliador, e a figura de gentil... o Leibniz, né? Então,

ele acaba não se decidido, finalmente, entre a afirmação ou a nega-

ção do vácuo... "Em certas coisas há vácuo, em outras não há...". (é

um pouquinho como pensam Leibniz). Mas, no caso do Boyle, a

nova química só é possível se ele demonstrar que o vácuo existe.

Bom, vai haver uma briga colossal como Hobbes, que vai dizer:

"Não existe vácuo". Porque, dizer que o vácuo existe, significa

dizer que o nada existe; os seja, em termos eleatas, platônicos,

gregos, significa dizer que: o não-ser é. É isso que o vácuo signifi-

ca: o não-ser é. Então, não pode haver o vácuo. E Hobbes vai lá, na

Royal Society... as experiências do Boyle provar os enganos que

Boyle está cometendo. Então, Hobbes está dizendo: "Não tem

vácuo, coisa nenhuma! Tem uma enorme rarefação do ar. Por isto

que estas coisas aí acontecem". Mas, Boyle para dizer: "Tem vá-

cuo". Eu estou mencionando isto só pelo seguinte: a condição para

que uma ciência moderna como a química nasça é a existência de

um objeto tecnológico, um instrumento tecnológico, um instrumen-

to de precisão que garanta uma tese teórica. Então, Boyle vai cons-

truir uma máquina de fazer o vácuo. Torricelli vai fazer o tubo. Ou

seja, o que Cerry está dizendo é: a exigência de objetos técnicos,

como objeto de precisão, não é uma coisa que se passa externamen-

te à ciência. Este tipo de objetos se torna uma exigência imanente a

própria ciência. As ciências precisam destes objetos, até para se

conste do ele como tais. E o caso típico... nomes já vimos na astro-

nomia que sem luneta, o telescópio, Galileo não poderia fazer o

que fez. Galileo precisou da hipótese do vácuo para produzir a

primeira grande teoria mecânicas do movimento, e Boyle vai cons-

truir este objeto, que e é a bomba de produzir vácuo para garantir....

É isto que está acontecendo, esta mutação que está sendo feita. O

instrumento científico está na junção do mundo material e do fe-

nômeno matematicamente concebido. Ele produz, realmente, o

fenômeno. O caso de Galileo, agarrando a luneta, que empirica-

mente tinha encontrada por um holandês, mas, virando-a para o

céu... é um episódio que não se reduzirá mais. Por quê? Por que

doravante considerarão que é um dever seu construir seus próprios

instrumentos de observação, os seus próprios instrumentos de

medida e os seus próprios instrumentos de operação. Assim, não

deve causar espanto que sejam os cientistas que se vejam obrigados

a fazer, segundo as circunstâncias, o papel de artesãos. Eles somen-

te eles, e não os artesãos propriamente ditos, podem garantir o

sentido da exigência de queda solução técnica de problemas. A

qualidade (isto já falei e na aula passada) dos vidros das lentes,

indispensáveis para o uso das luneta astronômicas e os telescópios

e sem nenhuma medida comum com aquilo que faziam os fabrican-

tes de óculos. Não se contam os exemplos deste novo tipo de diá-

logo e de coloração. Descartes colabora com Ferrier ...?... [ 46:42]

para construir uma máquina de cortar vidros, Huygens trabalha

com Isaac Tourre ... ?... e depois com Salomão Coster ...?... para

fabricar pêndulo. Pascal precisa do seu artesão, De Ruan ...?..., o

para fabricar sua máquina de vácuo. Ou seja, o tempo todo o cien-

tista e o técnico com sendo indiserníveis. Newton consegue cons-

truir o seu telescópio com espelho quando... alguns anos antes, dois

excelentes artesões, Richard...?... e Christopher Cock fracassaram

para fabricar esse instrumento para o matemático James Gregory.

Huygens é também, em larga medida, o realizador e construtor dos

seus próprios instrumentos. Na pesquisa da precisão, que eles

animam, os promotores da ciência moderna são mesmo tempo

promotores de uma técnica que rapidamente vai se tornar um mo-

delo de toda a técnica perfomativa e progressista, que se pode

agora chamar agora de tecnologia da precisão. Os modernos não

erravam é medir a preeminência da sua ciência com relação aos

antigos, pela superioridade instrumentos como o telescópio e o

microscópio. E na verdade eles poderiam acrescentar o relógio ao

piano, a bomba de Boyle ao termômetro e ao barômetro. Poucos

homens de ciência não deixaram doravante o seu nome ao um

dispositivo material: uma máquina, um aparelho, a um.... Você fala

na máquina de pascal, na máquina de Boyle, na máquina de Torri-

celli, na máquina de Descartes; ou seja, eles deixam o seu nome

ligado à produção de um instrumento técnico, tanto quanto de uma

ciência. Explicar e produzir se tornaram estreitamente associados

nessa nova epistemologia. O conhecimento da natureza passa a

pelo conhecimento e produção de artifícios. O fenômeno elaborado

está no ponto final de uma técnica muito mais do que no seu come-

ço. A técnica é pensada mais como uma imitação da natureza, mas

como um enriquecimento, extensão, prolongamento da natureza ao

ponto de que a referência mesma a natureza começa a se tornar

cada vez mais supérflua e desnecessária. A referência constante é a

experiência, ao experimento, instrumentado e cuidadosamente

descrita. É assim que se deve descrever a narrativa feito por New-

ton da suas experiências em ótica. A experimentação é, daqui e por

diante, uma técnica dos efeitos científicos reproduzíveis e repetí-

veis à vontade. O tubo de Torricelli, a bomba de ar de Boyle, estes

dispositivos, que pela primeira vez, criam um ambiente totalmente

artificial, dando lugar a experiências cruciais da nova ciência.

Pode-se estabelecer que, por exemplo, o som, diferentemente da

luz, não se transmite no vácuo e que os corpos, mesmo de dimen-

sões e peso diferentes, caem com a mesma velocidade na ausência

do ar. Então,... foi este longo percurso que o descreveu os seis, nos

quais, no ponto final, o objeto técnico se torna decisivo para a

produção de um conhecimento científico. No ponto inicial, o co-

nhecimento científico se vale destes objetos; no ponto final, estes

objetos é que permitem a elaboração do próprio conhecimento

científico. Ora, todos estes acontecimentos evidentes para os mo-

dernos que nenhuma ciência pode ser o obra de um só; mas, que ela

tem de ser uma empresa coletiva. Em que ela não pode se desen-

volver se for mantida a ideia do segredo. Que portanto além de ser

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62

obra coletiva, ela tem que ser uma obra pública. E pela envergadu-

ra dela, os sábios vão dizer (e há textos de Descartes, de Leibniz,

de Boyle, de Hobbes... todos eles) que esta empresa tem que ser

patrocinada pelo estado, patrocinada pelos reis e se realizar longe

das universidades. As universidades atrapalham o novo conheci-

mento científico. (elas são, como expliquei vocês nó passada,

profundamente conservadoras e reacionárias — então, os grandes

acontecimentos filosóficos e científicos da modernidade ocorrem

fora das universidades).

A recuperação do valor das velocidades parecer feita no

século XVIII a partir da revolução francesa. A revolução francesa

recria a ideia de universidade, a ideia de escola pública, de um

saber público, e a partir da revolução francesa você tem, então, a

reformulação das universidades em toda a Europa. E aí o valor que

elas passam a ter em toda a Europa. Mas é preciso esperar a revo-

lução francesa para isso acontecer. Ou seja, precisa esperar o ins-

tante no qual finalmente alguém diz, com todas as forças as armas,

põe a religião de lado, põe a religião de lado, põe os profetas fora

deste pedaço, põe o santos lá longe, os anjos mais longe ainda... e

vamos trabalhar!... se se quer uma universidade... tem que fazer

isso. Mas precisou da revolução francesa para fazer isso. Então,

além desta ideia de que é um saber público, de que é um saber

coletivo, de que é um saber que tem de ser um empreendimento do

próprio estado, que tem que ser dar à distância das universidades;

portanto, com a criação de colégios, academias, sociedades, associ-

ações, laboratórios, dos pesquisadores... também surge a ideia de

que há um desenvolvimento das ciências e das técnicas. Ou seja,

ideia que vem desde Giordano Bruno e Bacon, em que agora se

torna uma experiência real dos salários que é a ideia de progresso

das ciências. Progresso das ciências, o progresso das técnicas de A

ideia de que, portanto, o conhecimento se desenvolve. Toda esta

mudança pressupõe ainda uma mudança no conceito de natureza:

muda o que se pensa da técnica, muda o que se pensa do conheci-

mento científico e, evidentemente, muda o conceito de natureza.

Nós vimos que, desde os gregos, a natureza era pensada como

kinesis ...?... [ 56:33]; ou seja, como movimento entendido como

um processo de geração, vida e morte de todos eles, como um

processo dotado de finalidade e como um conjunto de mutações

qualitativas dos seres. A natureza era, portanto, esse grande orga-

nismo, que ser vivo, qualitativo, dotado de discussões internas

decorrentes dos seus componentes (água, ar, a terra de fogo), de-

correntes dos lugares naturais (os leves sobem, os pesados caem, a

substância do mundo sub lunar, são os quatro elementos no mundo

celeste, é o quinto elemento, ou éter, corruptível... e assim por

diante). E estes lugares, além de serem lugares naturais determina-

dos pelos elementos de que as coisas são feitas, estes lugares natu-

rais também são lugares inseparáveis da nossa percepção do espa-

ço. Estes lugares são marcados pelo: longe, perto, alto, baixo; os

corpos são marcados por: pesados, leves, quentes, frios; ou seja, a

natureza é toda feita de um tecido de qualidades. O tempo é o

tempo vivido, portanto qualitativo; o espaço, é um espaço organi-

zado qualitativamente e a natureza é este ser vivo em kinesis ...?....

O que é a natureza? A natureza se torna, em primeiro lu-

gar, algo inteiramente quantitativa, geométrico, matematizável. As

qualidades existentes não são qualidades da natureza, são qualida-

des que a percepção de imaginação humanas colocam na natureza.

O mundo qualitativo é o mundo subjetivo. A natureza objetivamen-

te não tem qualidades. A natureza se torna uma estrutura matemáti-

ca homogênea. Não há diferença mais

o céu e a terra, a lua e a terra; a primeira coisa que a astro-

nomia vez foi isso: a homogeneidade do universo. E a homogenei-

dade daquilo que todos os seres do universo realizam, isto é, o

movimento; só que o movimento não é mais de kinesis, o movi-

mento não é mais: nascimento, vida, morte... alterações qualitativa;

o movimento não é a um processo (que é que a kinesis é). O mo-

vimento é o estado do corpo, e um estado que pode ser medido.

O novo conceito de natureza decorrem, portanto, de duas

grandes mudanças que a ciência da natureza introduz. A primeira é

aquilo que Cuarre ...?... [61:06] chama "A geometrização do espa-

ço". O espaço deixe de ser pensado como um conjunto de lugares

naturais, que corpos que se distinguem uns dos outros pelas suas

qualidades ou pelos seus elementos e se torna um meio neutro,

homogêneo, sem qualidades, inteiramente mensurável; o espaço

são: linhas, pontos e figuras. É isto o espaço. Não há, portanto,

lugares naturais e não há distinção entre os corpos segundo sejam

pesados, leves, quentes, frios, próximos, distantes... tudo isso desa-

parece. Em segundo lugar, a mecanização do movimento, ou seja, o

movimento de ser mudança qualitativa, geração, vida e morte e a

realização de finalidades para se tornar o estado momentâneo de

um corpo.

As quatro causas desaparecem e a natureza explicada por

uma única causa, justamente aquela que na tradição era menos

importante de todas e que agora se torna sinônimo de causalidade,

que é a causa eficiente. Causa eficiente é a causa de todos fenôme-

nos naturais. Vocês se lembram que na tradição a causa mais im-

portante era a causa formal, a essência, e a causa final, o motivo

pelo qual algo acontecer. A causa forma auxiliava à causa material

para explicar porque uma coisa era assim que ou assada. E a causa

eficiente tinha este papel perfeitamente secundária que era o de

permitir que uma forma fosse ocupar uma determinada matéria, ou

que uma matéria recebesse uma determinada forma. Você se lem-

bram que nos vimos na definição aristotélica da técnica: a saúde

vem da saúde, por meio do médico; a casa vem da casa, por meio

do pedreiro. Nós havíamos visto que na concepção da técnica, a

técnica era efetivamente a causa eficiente, e a causa eficiente era

apenas um instrumento para que as verdadeiras causas pudessem

alterar. A operação da causa final, da causa formal e da causa

material pedia a contribuição de uma causa instrumental que rela-

cionava, que punha em relação, a forma, matéria, a finalidade.

Você se lembram que no caso das sociedades a causa eficiente era

o artesão. E vocês se lembram das análises que nós fizemos na

famosa taça de prata, do que o mais importante era a a finalidade, o

sacrifício, ao qual as estava destinada e o usuário. Ou seja, a causa

final comandavam processo e a causa eficiente, simplesmente,

obedecia os mandamentos impostos pela forma, pela matéria e pelo

fim. A forma, matéria, e o fim deviam à causa eficiente, estou é, ao

artesão, o que ele tinha de fazer. Ele próprio nunca tinha o autono-

mia nenhuma, liberdade nenhuma, inventividade nenhuma; ele era

um realizador de rotinas exigidas pela matéria, pela forma, pelo

Page 63: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

63

fim. Isso tudo desapareceu. Não há mais finalidade, não se fala

mais em causa formal, não se fala mais em causa material: a natu-

reza é, pura e simplesmente, um conjunto de todos os movimentos

mecanicamente explicáveis pela causalidade eficiente. E é por isso

que era essencial, para Galileo primeiro, e para Descartes depois,

dizer: "Vamos separar, de uma vez por todas, o pensamento, a alma

e a extensão". Para que se façam uma ciência da natureza, para que

se conquiste a natureza, para que a natureza seja dominada é preci-

so desumanizá-la, isto é, tirar dela tudo aquilo que era uma visão

antropomórfica e antropocêntrica dela; pensá-la como mãe, pensá-

la dotada de fins, dotada de alma, dotada de inteligência: tira tudo

isso. E o que é que temos? Temos uma estrutura geométrica, uma

estrutura matemática de movimentos que explicam a existência de

todos corpos e de todos fenômenos naturais. Uma vez liberada a

natureza do peso do qualitativo e do peso do antropomorfismo e do

antropocentrismo a ciência e a técnica podem caminhar juntas sem

problema mais. Por que? Porque a técnica é justamente a famosa a

causa eficiente e a natureza é só causa eficiente; ou seja, o que

acontece agora é que a natureza deixe de ser um conjunto orgânico

e vivente de formas, essências, qualidades inerentes, funções, fins,

para se tornar de grandezas mensuráveis, cientificamente demons-

tráveis e sob a alteração exclusiva da causa eficiente. Todos os

fenômenos naturais, portanto, são corpos constituídos por partícu-

las dotadas de grandezas, figura e movimento. E o seu conhecimen-

to se dá por meio de leis necessárias do modo de composição e de

decomposição de partículas segundo as leis necessárias do movi-

mento: é pura mecânica. A ciência moderna é uma mecânica.

Consequente mente, o que é a natureza? A natureza é uma máqui-

na. E a máquina não é mais pensada como um estratagema astucio-

so e habilidoso para vencer uma dificuldade, a máquina é pensada

como um modo natural, normal de regular o funcionamento de

todos os corpos em movimento. É isto a máquina.

Boyle vai escrever o seguinte: "O universo é a máquina

semovente, o relógio determinado pelos dois princípios universais

dos corpos: a figura e o movimento". É isto natureza. Para esta

nova natureza, Deus, ainda que ele receba referência de "arquiteto

do diverso", "O geômetra perfeito", essas figuras ainda a pareçam,

na verdade, deus é pensado como um engenheiro; ele fabrica a um

mundo que está inscrito em caracteres matemáticos, como disse

Galileo (conhecer o mundo é saber ler o mundo escrito e caracteres

matemáticos), deus fabrica este mundo perfeito e caracteres mate-

máticos, mas — diferentemente de todos os demiurgos que durante

vinte e tantos séculos o comparam a metafísica, em que é o caráter

geométrico do mundo, perfeição geométrica do mundo, que conta

— agora não é isso que conta, o que conta é a perfeição da máqui-

na que fabrica e por isto que a imagem com a qual praticamente

todos os modernos se referem ao universo e a natureza é do reló-

gio: deus é este o relojoeiro perfeito. É célebre e a passagem de

Leibniz na harmonia preestabelecida quando ele diz: "Deus fez

dois relógios perfeitos , deu corda ao mesmo tempo e os pôs a

funcionar. O relógio da matéria e o relógio do espírito. E é a opera-

ção sincrônica, harmônica, simultânea, uníssona e perfeita destes

dois relógios que constituem o universo. O universo é a harmonia é

estabelecida por deus e entre um relógio que é o espírito e o relógio

que é matéria". É isto o universo. E, com é a diferença entre deus e

nós? A gente faz um relógio e... (agora não mais, né? Agora a

gente só toca bateria) dá corda. Deus deu corda uma vez só e aca-

bou.... Não sei se vocês percebem que a diferença entre nós e deus

não é de essência, é somente de grau. O relógio que eu fabrico, eu

preciso sempre dá corda nele. Deus faz e ele dá corda uma vez só.

Mas é sempre um relógio que um relojoeiro fabricou. Essa é a

figura da natureza, de um imenso relógio.

É por isso que Descartes nos Princípios Da Filosofia vai

inscrever o seguinte: "Não há diferença alguma entre as máquinas

que os artesãos constroem e os diversos corpos que se compõe a

natureza senão esta: que o os esforços das máquinas de vendem

apenas das ações dos tubos ou das molas e de outros instrumentos

que devendo possuir alguma a proporção com as mãos daqueles

que as constroem são sempre suficientemente grandes para deixar

aparecer suas figuras de seus movimentos, enquanto que os tubos e

as molas, produzidos pelos efeitos naturais, são geralmente bastan-

te minúsculos para serem percebidos por nossos sentidos". Portan-

to, a diferença entre o objeto natural e o objeto técnico é uma dife-

rença de grau. O objeto técnico depende do corpo do artesão de

portanto a capacidade de miniaturização que este corpo tem é

pequena, ou seja, eu percebo os elementos componentes da máqui-

na, eu abro o relógio e vejo as molas, as rodas, os dentes das rodas;

eu vejo tudo; porque isto é o máximo que o corpo do relojoeiro,

seus olhos e suas mãos, consegue fazer. Se eu olhar um verme,

mesmo que eu o olhe (daqui a pouco, eu vou citar um texto de

Leibniz)... com um microscópio poderosíssimo haverá partes dele

que eu não enxergarei como rodas, molas e estudos; porque o

relojoeiro divino, deus, fez isso em um grau de miniaturização e de

invisibilidade que um artesão humano não é capaz de fazer. Mas a

diferença é de grau. Quer dizer, o que e Leibniz vai dizer é: a dife-

rença é de grau porque, no nosso caso, por mais que eu diminua, eu

vou dar sempre tem algo que é incompatível com a minha mão de

meu o olho; e no caso a natureza vai muito além do que pode o

meu olho ou a minha mão. Mas é só esta diferença. Então, essa

identificação entre a natureza e a máquina, ou entre máquina e a

natureza, este processo pelo qual, primeiro, a ciência e a técnica se

articularam, e uma não vai sem a outra; e esta articulação decorren-

te da maneira com que a natureza é conceituada como matematizá-

vel e mecânica e redutível à dimensão de compreensão da mecâni-

ca (portanto, da máquina), todo este processo, faz com que se

estabeleça uma relação inédita, até então impensável, entre o saber

e o fabricar. Há um vínculo, agora; tal quis saber é saber fazer. Este

vai ser o grande adágio epistemológico do século XVII: só sabe

quem faz. Este é o núcleo da epistemologia do século XVII. Eu vou

voltar para a isto daqui a pouco.

Saber era saber fazer. E só sabe quem faz. Então, esta rela-

ção entre saber e fabricar (portanto, entre teoria e técnica) faz com

que a relação entre teoria e técnica (ou entre saber e técnica) tenha

algumas características muito novas. Primeiro, há uma inovação

quanto ao modo de emprego dos objetos técnicos, ou seja, eles se

tornaram instrumentos para fornecer informações quantitativas e

qualitativas sobre as coisas. Em segundo lugar, eles próprios são

produzidos a partir de informações científicas. Em terceiro lugar, e

como conseqüência, estes instrumentos, que fornecem estas infor-

mações de que foram eles próprios produzidos fora informações

Page 64: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

64

científicas, passam a determinar os resultados das pesquisas cientí-

ficas; e, portanto, eles passam a determinar o conteúdo dos conhe-

cimentos teóricos, que era impensável antes desta mudança. Os

objetos técnicos não são meros auxiliares da observação, eles não

são uma melhoria dos nossos órgãos dos sentidos, eles não são

apenas o que nos permitem ver o que sem eles ficaria invisível.

Eles são tudo isso, mas isso não é o essencial. Estes objetos não

vêem mais ou melhor do que nós, não percebe mais ou melhor do

que nós; eles percebem, veem de outra maneira, de uma maneira

que nós poderíamos ter. Eles não são, portanto, uma prótese, eles

são o aparecimento de uma dimensão perceptiva, independente dos

olhos, que é absolutamente gigantesco. Se isso não vai dá para

entender o surgimento do automatismo do século XIX, do maqui-

nismo e do automatismo do século XIX. Tem que se perceber que

algo distinto do corpo humano, embora guardando todas as seme-

lhanças para uso humano (microscópio, telescópio, barômetro)

guardam essa semelhança, mas eles não são mais o nosso corpo

melhorado, eles são um outro corpo, visto, de modo geral, como

um corpo mais perfeito que o nosso. É assim, por exemplo, que o

microscópio, quando Leibniz toma o microscópio, ele considera

que o microscópio é o instrumento fundamental do que ele precisa

para a demonstração da metafísica do infinitamente pequeno. Mas

não porque o microscópio o faz ver coisas infinitamente pequenas,

e porque o microscópio faz ver a densidade e a continuidade dos

seres, do infinitamente grande ao infinitamente pequeno; o que o

microscópio permite é a verificação de uma tese metafísica sobre a

ausência de descontinuidade na natureza. É afirmação de que a

natureza é de tensão e descontínua. É isto que o microscópio faz...

ou seja, ele permite ver aquilo que eu jamais veria, porque nos

olhos não vêem desta maneira. O microscópio vê de uma outra

maneira, e esta maneira que ele vê garante uma tese metafísica, que

a tese da densidade e da continuidade de todos os seres do univer-

so. O telescópio havia garantido para Galileo a tese metafísica da

homogeneidade dos movimentos do universo inteiro; que não há

diferença entre o céu e a terra, entre o mundo lunar e o mundo

celeste. O telescópio permitiu isso; e o microscópio vai permitir a

Leibniz a demonstração da metafísica da continuidade.

Evidentemente, vocês se lembram, eu comecei a parte dos

modernos com os jardins, os jardins de Versalhes. Por quê? Porque

a paixão dos modernos, aquilo que estão procurando, é o autômato.

Eles estão procura da máquina perfeita, porque o que deus fez foi

um autômato. Quando você diz que deus é um relojoeiro perfeito, é

um ligeiro perfeito, o universo que ele fez é um autômato; precisou

do impulso inicial, depois do funciona sozinho. A marca do autô-

mato é não só a capacidade do funcionamento, mas de auto-

regulação... o autômato é capaz de corrigir seus erros e de auto-

transformação; um autômato é capaz de produzir uma mudança

qualitativa naquilo que ele faz. E então, o sonho dos modernos que

é uma máquina que seja um autômato. O que é um autômato?

Descartes vai dizer, no Discurso Do Método, o seguinte: "Uma

máquina móvel, que a ou o engenho humano pode produzir sem

pregar nisto se não pouquíssimas peças em comparação com o

corpo humano". Então, a máquina ideal, a norma de uma perspecti-

va maquinista é a da máquina que possui nela mesma o princípio

do seu movimento, o princípio da sua ação, o princípio da sua auto-

regulação e o princípio da sua autotransformação. Para os moder-

nos, a máquina, o autômato que eles conseguem fazer com toda

estas características é o relógio, mais que os autômatos que estão

nos jardins do rei: é o relógio. Mas, onde está o modelo do autôma-

to? O que leva a pensar autômato como a forma perfeita da máqui-

na, o modelo do autômato, a forma perfeita? É o corpo humano, é

ele o grande e o autômato. Eu vou ler um texto, o célebre, de Des-

cartes, no Tratado Do Homem, em que ele vai escrever o corpo

humano (é de Descartes que veio conceito de animal-máquina; ou

animou-máquina é o corpo do animal vivo, do qual o nosso corpo é

o caso é exemplar): "Relógios, fontes artificiais, moinhos e outras

máquinas do mesmo gênero, embora construídas pelos homens,

não estão desprovidas de forças para se moverem a si mesmas de

maneiras diversas e também para aquela máquina que supomos

feita pela mão de deus: o corpo humano. Para ela, não me parece

poder imaginar tantos tipos de movimento, nem atribuir-lhe tantos

artifícios que possam impedir pensar ainda em outros". Agora, eu

salto em trecho; vamos ver algumas descrições que ele faz da

máquina humana. "A respiração e outras ações comuns de nature-

zas semelhantes, como a circulação do sangue do coração e cére-

bro, a respiração, outras ações comuns de natureza semelhantes

desta máquina que depende do movimento dos espíritos animais

podem ser comparadas ao movimento de um relógio ou de um

moinho que a queda d'água pode tornar contínuo". Então, você

pode pensar em um moinho como um o autômato, assim como o

relógio é um autômato se eu esquecer um momento em que é preci-

so dar corda. Na Monadologia, Leibniz escreve o seguinte: "Assim,

cada corpo orgânico de um vivente é uma espécie de máquina

divina, ou autômato natural, que ultrapassa empiricamente todos

autômatos artificiais, porque uma máquina feita pela arte do ho-

mem não é máquina em cada uma das suas partes, por exemplo: o

ambiente de uma roda de latão de partes ou fragmentos que já não

são artificiais (então metal estava lá natureza). E já nada tem que

assinale a máquina com relação ao uso ao qual a roda estava desti-

nada; mas, as máquinas da natureza, isto é, os corpos vivos, ainda

são máquinas em suas menores partes até o infinito. É isso que faz

a diferença entre a natureza e a arte; isto é, entre arte divina e a

nossa". Então, a nossa arte há um limite, no instante que o objeto

que está compondo a máquina feita é um objeto encontrado na

natureza, este objeto não foi feito. Enquanto que no caso da máqui-

na divina, aquela que deus faz, ela é a máquina até o fim, ela foi

produzida por deus até o fim. Mas a diferença é de grau novamen-

te. A máquina que o ser humano faz é finita, a máquina que deus

faz é infinita. Mas,...?... são iguaizinhos, não há diferença entre

elas. A única diferença entre o artefato e o corpo vivo está no fato

de que sou corpo vivo é a máquina até o infinitesimal da sua cons-

tituição; e é por isto que o autômato perfeito é aquele que é um

autômato completo, ou seja, aquele que é uma máquina infinitesi-

mal, de tal modo que o ser vivo (ou o ser orgânico) é apenas um ser

mecânico levado a uma interação finita de si mesmo, e vice-versa.

O ser mecânico é organizado até a sua ínfima parcela de tal manei-

ra que existe máquina nas partes infinitesimais do organismo natu-

ral. E assim, também no organismo, as partes infinitesimais são

máquinas naturais. É por isso que, para Leibniz, mais até que para

Descartes, tecnologia deveria se voltar preferencialmente à tecno-

logia do infinitamente pequeno; porque se nós desenvolvermos a

Page 65: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

65

tecnologia dos infinitamente pequeno, nós estaremos cada vez mais

próximos da capacidade divina de produzir autômatos perfeitos. Há

dois modelos, dois grandes modelos, dou o autômato moderno. O

primeiro, já mencionei aqui muitas vezes, vem da astronomia e é o

relógio; e o outro, que eu já mencionei aqui também, veio da hi-

drodinâmica, é a bomba hidráulica. O relógio como máquina per-

feita, ou como o autômato perfeito, vai aparecer pela primeira vez

em Kepler; e o modelo do o autômato perfeito como uma bomba

hidráulica era trazido pela descrição do coração e da circulação do

sangue por...?...Harvey [94:46]. Kepler escreve o seguinte: "A

máquina do universo não é semelhante ao ser divino animar (por-

tanto, há um organismo vivente) e; a máquina do universo é seme-

lhante a um relógio e nela todos os variados movimentos dependem

de uma simples força ativa material, assim como em todos os

movimentos do relógio são devidos a um simples pêndulo". No

Mistério Cosmográfico, a máquina do universo é pensada por

Kepler geometricamente (era para eu para ter trazido a figura para

mostrar para vocês, aqueles que não conhecem, mas é fácil... em

qualquer google vocês encontram; peçam para ver a máquina do

universo projetada pelo Kepler) poliedros encaixados uns dentro

dos outros até o encaixe final, aquele que abriga todos poliedros e

que é o círculo; e Kepler vai dizer e este encaixe dos poliedros no

círculo era o que vai explicar o número de planetas, a ordem dos

planetas e a assimetria dos movimentos que eles realizam. Mas esta

concepção, que é uma concepção sinemática do universo vai ser,

logo em seguida, substituída por uma outra, que é uma concepção

dinâmica na qual o relógio vai entrar. Nesta concepção dinâmica,

Kepler vai substituir o círculo, que era a medida do encaixe de

todos os poliedros, pela elipse. Ou seja, a elipse de Kepler é a de

formação do círculo ou aquilo que tende para o círculo ao infinito;

então, a elipse é uma tendência ao circulo, mas uma tendência que

nunca se realizará. Ela é o círculo deformado. Mas porque que a

elipse entra? A elipse e lenta porque ela vai provocar àquilo que era

impossível provocar no círculo. Na concepção do círculo você tem

uma sinemática: um movimento regular continuo que o círculo

realiza. Agora, isto não dá conta do sistema planetário, porque o

sistema planetário não pode ser explicado sistematicamente; ele

tem que ser explicado dinamicamente; isto é, é preciso uma força.

Kepler vai falar em potência, é preciso uma potência; só Newton

que efetivamente vai introduzir a força da gravitação. Mas antes

que Newton fale em uma força, Kepler vai introduzir a noção de

potência. E a potência é aquilo que a elipse exprime. A elipse

espreme um um círculo que tem a potência de se mover em pólos

diferenciadas; ele pode, portanto, ele pode colocar os planetas em

diferentes pólos das diferentes elipses e explicar todo o sistema

planetário sem precisar daquela monstruosidade que eram os ele-

mentos que acabavam no sistema ptolomaico. A coisa se simplifica

enormemente desde que você pense a elipse como um círculo que

tem a potência de um movimento desigual. Isto que é introduzido

aqui. Ora, quando isso é introduzido é introduzida a ideia de que se

tem um autômato, de que o universo é um autômato, porque deus

colocou nele uma potência para se mover a si mesma. Então, invés

do movimento ser a (...?...) de todos os astrônomos, aquilo pelo que

eles foram parar na fogueira, aquilo pelo que os livros foram quei-

mados, agora a dinâmica, a força, a potência, movimento, torna-se

a melhor prova o da existência de deus como a inteligência supre-

ma; porque deus fez o autômato perfeito; porque a elipse é a prova

do automatismo perfeito do universo, a máquina perfeita do univer-

so. Agora, Harvey [foi um médico britânico que pela primeira vez

descreveu corretamente os detalhes do sistema circulatório do

sangue ao ser bombeado por todo o corpo pelo coração] vai escre-

ver o seguinte sobre a circulação do sangue: "Comecei a pensar que

onde há movimento, deve acontecer em um círculo". O ponto

interessante é o seguinte: quase que contemporâneos, Kepler vai

afastar o círculo da astronomia (não há mais lugar para o círculo na

astronomia), mas Harvey vai introduzir um círculo no interior do

corpo humano, porque a circulação do sangue é pensada por ele

como um movimento circular. "... comecei a pensar que onde há

movimento deve acontecer em um círculo". E aqui Harvey menci-

ona longamente Aristóteles e o movimento circular da água como

as nuvens, descem com a chuva rumo à terra, etc. Harvey é um

aristotélico; está fazendo uma revolução, mas ele é um aristotélico.

"... comecei a pensar onde é há movimento deve acontecer em um

círculo, e de modo semelhante, deve passar-se no corpo por meio

do movimento do sangue quando retorna ao seu soberano, o cora-

ção, como sua fonte ou morada mais interior para recobrar o estado

de excelência ou de perfeição. Aqui (no coração), o sangue e recu-

pera a fluidez natural, recebe a infusão do calor natural, férvido,

espécie de tesouro de vida, impregnada-se com os espíritos e com o

bálsamo para novamente dispersar-se. Tudo isso, depende, apenas,

do movimento e da ação do coração. O coração, consequentemente,

é o início da vida, o sol do microcosmo, assim como o sol em

movimento deve ser designado como o coração do universo". Feita

esta apresentação, Harvey vai descrever como se dá a circulação do

sangue, a grande que é pequena, o papel dos pulmões, diferenças

entre o sangue venenoso e o sangue arterial, e vai fazer toda uma

demonstração que destrói a anatomia e a fisiologia galênica, lucrá-

tico-galênica, porque agora ele vai demonstrar (e o livro em que ele

demonstra isto se chama De motumcordis - Do movimento do

coração), ele vai fazer uma apresentação do movimento do coração

que explica a vida. O coração é responsável pela vida. E ele é

responsável pela vida por causa do movimento que ele realiza; e

este movimento é de uma bomba hidráulica. A decisão que Harvey

faz da circulação do sangue e do movimento do coração é de uma

bomba mecânica. E é por isto que no final do século XVII, a fusão

do modelo astronômico do relógio e do modelo atômico (a bomba

hidráulica), fisiológica, vão se fundir para produzir a imagem ideal

do o autômato. E Borelli, no final do século XVII, escreve o se-

guinte: "O autômato tem uma certa sombra de semelhança com o

os animais na medida em que ambos são copos orgânicos automá-

ticos que empregam as leis da mecânica e são movidos por potên-

cias naturais". Portanto, a naturalização do o autômato e a arteficia-

lização da natureza.

Agora, eu quero completar... todas estas mudanças estão

articuladas a essa noção, que eu disse vocês, é o adágio epistemo-

lógico crucial do século: só sabe quem faz. Então, por exemplo,

Gassendi, vai escrever o seguinte: "A respeito das coisas naturais,

indagamos do mesmo modo que sobre as coisas que nós próprios

somos autores. Das coisas da natureza em que o isto é possível

usamos a anatomia, a química, e todos tipos de auxílios, a fim de

compreender, analisando e decompondo os corpos, até onde for

Page 66: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

66

possível, de que elementos de segundo quais critérios eles são

compostos". Gassendi considera que nós não estamos impedidos de

conhecer a máquina do mundo, porque pela a análise das sensações

e dos corpos, por composição e decomposição, até o limite, nós

podemos descobrir do que os corpos são feitos de como eles são

feitos e como ele se se movem". Por causa disso, Gassendi vai

dizer: não há diferença entre as máquinas que compõe o mundo e

aquelas que nós sabemos fazer; e, é porque aquilo que nós sabemos

fazer, e as coisas que estão no mundo, são de mesma natureza em,

eu posso conhecer o mundo. Mercenne, por sua vez, vai escrever:

"É difícil encontrar princípios ou no verdades na física. Pertencen-

do o objeto da física às coisas criadas por deus, não devemos nos

surpreender se não pudermos encontrar as verdadeiras razões e o

modo como essas coisas agem que padecem. Conhecemos, de fato,

apenas as verdadeiras razões daquelas coisas que podemos constru-

ir, seja com as nossas mãos, seja com o nosso intelecto; mas, nós

não podemos construir nenhuma das coisas feitas por deus". Contra

isto que o Descartes vai escrever para Mersenne, dizendo: podemos

fazer tudo. Esta ideia de Mersenne reaparece por motivos diferen-

tes em Hobbes, ele vai dizer como Mersenne: as coisas que deus

fez, estas nós não podemos conhecer. Mas porque Hobbes diz isto?

Enquanto Mersenne disse isso para garantir o mistério da ação de

divina, e a criação, e etc, e a religião... Hobbes diz: não dá para

conhecer, não dá para fazer uma física, não dá para fazer uma

metafísica, vamos deixar isso de lado, a religião que cuide disso,

nós vamos fazer outra coisa; nós fomos fazer política, vamos es-

crever sobre a política, sobre a ética, sobre a psicologia; isto é,

sobre aquilo que nós podemos fazer. Nas "Seis lições para os pro-

fessores de matemática", do instituto Servian, Hobbes escreve

seguinte (é a greve consagração do homem como o "themaker", o

homem como aquele que faz): "Entre as artes, algumas são de-

monstráveis, outras, indemonstráveis. São demonstráveis aquelas

nas quais a construção do objeto está no poder do artista (do arte-

são) que na demonstração apenas deduz as conseqüências da sua

operação. A razão disso está em que a ciência de um objeto é sem-

pre derivada do conhecimento prévio das suas causas, geração e

construção. Consequentemente, ali onde as causas são conhecidas,

há lugar para a demonstração, mas não onde as causas são procura-

das. A geometria era, pois, demonstrável, porque as linhas e figu-

ras, a partir das quais raciocinamos, foram traçadas e descritas por

nós mesmos. E a filosofia política é demonstrável porque somos

nós mesmos que fazemos do corpo político; mas, porque e dos

corpos naturais não conhecemos a construção e procuramos conhe-

cê-los pelos efeitos, não há demonstração do que são as causas que

buscamos, mas apenas o do que poderiam ser". Assim, o cuidado

que Hobbes tem, na abertura do Leviatã, que nós vimos aqui, é de

estabelecer uma analogia entre alteração divina (a natureza que a

obra de arte de deus) e a operação humana (o Estado é obra do

homem). Ambos os dois são máquinas, o homem, como deus, é "

The maker", o artesão,, é o fazedor. E assim como deus sabe o que

faz, o homem também. E só faço quem sabe; caso contrário, são

conjecturas, está fora do campo do que interessam para uma de-

monstração e para uma ciência, sobretudo para a ação humana.

Essa exigência de que é preciso saber aquilo se faz, e só se faz um

tiro que se sabe, esta exigência vai ser mantida para todos os filóso-

fos, independentemente deles afirmarem ou não a possibilidade da

metafísica, deles afirmarem ou não a possibilidade de uma física,

como é o caso, por exemplo, de Descartes. É claro que, para garan-

tir que se possa ter uma metafísica, que baseado nessa metafísica se

pode ter uma física (ou seja, que se tenha uma física tem que ser a

res extensa, independente da res cogitas — para isso se precisa ter

uma metafísica que mostre que existem só dessas duas substâncias

de como elas são separadas, para isso um deus veraz tem que ser

demonstrado). Descartes precisa demonstrar um deus veraz. Ele

precisa disso para garantir quando nós conhecemos, nós conhece-

mos verdadeiramente as causas das coisas. Por que ele precisa

disso? Ele precisa disso para segurar que a operação pela qual deus,

como um engenheiro, faz a natureza, é uma operação que nós

podemos conhecer e que nos permite, por nossa vez, sermos novos

engenheiros e criar nos nós naturezas e dominar nos esta natureza

que deus que fez. Então, a natureza criada, que é demonstrável para

Mersenne e para Hobbes, é perfeitamente demonstrável, segundo

Descartes. Ele faz uma metafísica que permita a isso. Então, ele vai

dizer que deus não está submetido a nenhuma verdade e nenhuma

lei, deus cria as verdades eternas de criar todas as leis. No momen-

to em que ele cria, esta criação era inteiramente contingente: deus

poderia perfeitamente ter decidido que dois mais três são oito; não

há nenhuma razão intrínseca à vontade divina que dois mais três

seja cinco. 2 + 3 são 5 porque deus decidiu que ia ser assim. Deus,

por um ato absolutamente contingente da sua vontade, cria as

verdades eternas e cria as leis necessárias da natureza; a partir daí,

estamos conversados: deus, se quiser, muda, faz milagre, muda,

suspende tudo isto (isto é lá com deus, ele sabe se ele quer suspen-

der tudo isto, fazer milagre, acabar com esse mundo... fazer outro...

isto é lá,... isto eu não posso saber). Mas, este mundinho aqui que

ele fez, este um aqui... tudo o que ele colocou aqui, ele colocou

como lei universal-necessária (eu posso conhecer como lei univer-

sal e necessária, portanto eu posso conhecer a natureza e possa

fabricar outras: deus me deu a capacidade para conhecer a sua

criação de — e se eu conheço a criação, e só sabe quem faz, eu sei

o que deus fez e agora vou saber o que eu faço). O melhor caminho

para isto, diz Descartes, é pensar a física como uma fábula: "nao

posso garantir que deus fez mesmo fundo deste jeito, mas posso ser

como Copérnico e de dizer, por hipótese, eu vou considerar que é

assim, assim e assim..."; no entanto, a minha metafísica vai garantir

para mim que esta física é verdadeira; então, se eu fizer física sem

metafísica, eu tenho que ficar numa posição igual à de Copérnico,

dizer: "É uma hipótese, por enquanto nenhum fato contrariou esta

hipótese". E explicar o mundo através da física que está nos Princí-

pios da filosofia. Se, entretanto, eu fizer uma metafísica que asse-

gure:1) quer características da a res extensa e são estas; 2) e que

depois que deus decidiu que estas eram as características da res

extensa, ela se torna leis universais e necessárias, a física está

garantida. Então, eu não tenho só a garantia da matemática, eu

tenho a da física também; e se eu a garantia da matemática e da

física, é óbvio que eu tenha garantia de toda a mecânica; e se eu

tenho a garantia da mecânica é óbvio que vou ter a garantia da

medicina. E é isto que interessa. O que Descartes que fazer... o

programa de Descartes, eu já disse vocês, é a medicina, que é o que

interessa para ele. Como Descartes e vai chegar lá? Como ele vai

da metafísica para física e da física para a medicina? Ele vai passar

um por uma compreensão do que seja o corpo humano. Ele produz

Page 67: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

67

a famosa teoria do animal-máquina, os seja, ele vai explicar o

corpo humano em termos da mecânica. Ele dispõe de uma física

que vai permitir a ele uma anatomia e uma fisiologia mecânicas

que depois vão garantir uma medicina. O animal-máquina é conce-

bido por Descartes como um autômato; é a figura do autômato que

vai presidir a elaboração cartesiana do corpo humano. O modelo,

para Descartes,, como foi para Harvey, é a bomba hidráulica: ele

vai pensar um modo de funcionamento do nosso corpo a partir da

bomba hidráulica, porque para ele, como para Harvey, o coração é

a sede da vida; que ele pensou coração, como Harvey, como fonte

de um calor interno de que a vida este calor interno. A diferença

entre Harvey e Descartes é que um considera coração um músculo

e outro, não; que esta diferença vai dar em outra. Mas, basicamen-

te, eles concebem o coração como fonte da vida, fonte da vida

porque ele é o centro do calor e o modelo era o da bomba hidráuli-

ca. Eu vou ler um pequeno trecho, de Descartes, que é muito céle-

bre, em que o corpo humano como máquina, ou como um autôma-

to, é descrito por ele no Tratado do homem: "Que já teve oportuni-

dade de ver de perto os órgãos das nossas igrejas, sabe como neles,

os foles impulsionam o ar em alguns receptáculos que, parece-me,

são chamados de porta-ventos. E como este ar entra nos túmulos,

ora em uns, ora em outros, segundo as diversas maneiras como o

organista move seus dedos sobre o teclado. Pode-se aqui conceber

que o coração e as artérias que impulsionam os espíritos animais as

concavidade do cérebro que de nossa máquina são como os foles

deste órgão que impulsionam o ar aos porta e-ventos e que os

objetos exteriores que se movem conforme os nervos faz com que

os espíritos animais contidos nestas concavidades entrem de lá em

alguns poros que sejam como os dedos do organista que, segundo

os toques que eles pressionam, fazem com que o ar que entre dos

porta-ventos a alguns tubos. E como a harmonia dos órgãos não

depende deste arranjamento dos seus tubos que se vê de fora, nem

da configuração dos seus porta-ventos e outras partes, mas só de

três coisas a saber: do o ar que vem dos foles, dos tubos que fazem

o som e da distribuição deste ar nos tubos. Assim também, quero

advertir que as funções, que são tratadas aqui no corpo humano,

não dependem de forma alguma da configuração exterior de todas

essas partes visíveis que os anatomistas distinguem da substância

do cérebro, nem das suas concavidades, mas só dos espíritos ani-

mais que vêm do coração, dos poros do cérebro por onde passam e

do modo como eles se distribuem nestes poros. Desejo que se

considerem todas as funções: respiração, a circulação do sangue, o

crescimento dos membros, nutrição, sono, vigília, recepção da luz e

do som, sensação, percepção, imaginação, memória, que todas elas

seguem naturalmente nesta máquina somente da disposição dos do

seus órgãos, nem mais e nem menos do que fazem os movimentos

de um relógio ou de um outro autômato, seus contra-pés e suas

rodas; de modo que não é necessária conceber, quanto a elas, al-

guma outra alma (alma vegetativa, alma sensitiva), nem um outro

princípio de movimento de vida além do seu sangue e que os espí-

ritos agitados pelo calor do fogo que queima continuamente no seu

coração e que não é de outra maneira que todos os fogos estão nos

corpos inanimados. Basta isto para saber que somos máquinas,

autômatos perfeito". O ponto culminate deste caminho... você se

lembram começa lá com Galileo, virando a luneta para o céu, Tico

Brahe e Kepler discutir dos movimentos de Marte, o microscópio e

telescópio passando a oferecer o infinitamente pequeno e o infini-

tamente grande, e o caminho pelo qual sabe quem faz, de tal modo

que finalmente a mecanização da natureza e a naturalização da

técnica conduzem, ao fim e ao cabo, não sou a essa transformação

da concepção de ciência e na concepção de técnica, mas da maneira

pela qual um ser humano passa a ser visto. Ele vai ter uma alma...

depois Descartes vai dizer, tendo uma alma, muita coisa vai funci-

onar de um outro jeito, mas do ponto de vista do seu corpo, o ser

humano é um autômato perfeito, criado por deus. E como nós

sabemos que ele é assim, nada nos impede de criar outros tão per-

feitos quanto. Os engenheiros criam os de jardins dos reis, Descar-

tes tinha um sonho de fazer isso na medicina e garantir para nós

não só longevidade mas de preferência, programa mínimo, a imor-

talidade.

Então, terminamos os modernos. Da próxima vez, Marx,

revolução industrial, trabalho e técnica do modo de produção capi-

talista e tudo o que vai acontecer até chegar no virtual.

Aula 10 (22-10-2012)

Hoje nós vamos examinar o surgimento daquilo que cons-

titui a nossa própria maneira de ter um pensamento e uma experi-

ência respeito da técnica (mesmo no mundo contemporâneo)...e

que é a identificação da técnica com o maquinismo, e que é aquilo

que se realiza quando o modo de produção capitalista passa da

forma manufatura para a forma indústria. Portanto, é aquilo que se

passa no modo de produção capitalista com a chamada Primeira

Revolução Industrial que vai ocorrer no final do século XVIII até

meados do século XIX. A Segunda Revolução Industrial, que

começa na segunda metade do século XIX e vai até a altura dos

anos de 1950 e, depois, a partir dos anos 50 do século XX; mas,

sobretudo, dos anos 60 à terceira revolução, só que esta não é a

chamada mais de "Revolução Industrial", ela é considerada uma

revolução pós-industrial. E ela é chamada de revolução informáti-

ca.

Mas, nessas três etapas, tanto na primeira como na Segunda

Revolução Industrial, como na revolução informática, a técnica

está vinculada à noção de maquinismo. Por que estou enfatizando

isto? Eu estou enfatizando isto porque é evidente que nem toda

técnica é uma máquina; basta nós lembrarmos que a palavratecné,

cuja tradução latina ars envolve as chamadas artes liberais, tanto

quanto às artes mecânicas e, portanto, envolve a dança, à música, a

escultura, a pintura; tudo aquilo que a partir do século XVIII o

pensamento burguês passou a chamar de belas-artes. Mas também

envolve aquilo que a antropologia passou a mostrar como constitu-

tivo da cultura: a culinária, o vestuário, a forma da agricultura e

assim por diante; ou seja, há um conjunto de técnicas a que se

referem, seja a questão das belas-artes, seja a questão do modo de

organização da cultura em diferentes sociedades que não identifi-

cam técnica e máquina.

No entanto, a Primeira Revolução Industrial, depois, a Se-

gunda Revolução Industrial, estabeleceram para a sociedade oci-

dental capitalista esta identificação entre a máquina e a técnica. Por

quê? Em primeiro lugar, porque (e é isto que nós vamos ver hoje) a

Page 68: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

68

máquina vai se tornar a condição da existência de todos os outros

objetos técnicos; então, todos os objetos técnicos que não são

máquinas (por exemplo, os objetos de precisão ou os objetos ne-

cessários para as belas-artes, ou ainda para vida cultural), sejam

eles de que tipo forem, tem, como condição para sua existência, a

máquina. Nós vamos ver que a máquina produz objetos técnicos.

Em segundo lugar, a máquina vai se tornar, na sociedade

industrial (capitalista), o paradigma da racionalidade, da sistemati-

cidade, da normatividade, que caracterizam as técnicas. Por quê?

Porque a máquina vai aparecer como o exemplo primordial, o caso

primordial, de uma causalidade controlada pelo homem, de uma

continuidade segura de ações e de um conjunto de concatenações

eficazes. Então, esses elementos do controle (controle da causali-

dade), a segurança (continuidades segura das ações) e a eficácia

(das concatenações produzidas por esta ação) fazem com que a

máquina se torne o paradigma, o modelo do que seria uma ação

racional.

E, em terceiro lugar, porque a máquina vai expandir a no-

ção de objeto tecnológico, que nós vimos, antecede à Revolução

Industrial (que é o momento do século XVII). Por quê? Porque a

máquina vai exigir novos conhecimentos científicos e vai permitir

a implementação de novos conhecimentos científicos. Então, aqui-

lo que era próprio do objeto de precisão, como definição do objeto

tecnológico, agora se transfere para a máquina: a máquina se torna

o objeto tecnológico por excelência; primeiro, porque ela é produ-

zida a partir de um saber teórico e, segundo, porque ela permite o

desenvolvimento de novas ferramentas para o desenvolvimento do

saber teórico, também. Então, ela provém de um conhecimento

científico e ela assegura que o desenvolvimento posterior desse

conhecimento científico. Então, ela é esteobjeto tecnológico que

tem a peculiaridade de... (eu vou insistiu muito nisso hoje) fabricar

outros objetos tecnológicos. Você tem o pêndulo, o cronômetro, o

relógio, o microscópio, o telescópio: eles são instrumentos tecnoló-

gicos, mas eles próprios não produzem um novo objeto tecnológi-

co. Eles são ferramentas que tem o seu uso claramente definido e

determinado, este objeto começa e termina nele o uso que ele tem.

A peculiaridade da máquina, como objeto tecnológico, é que ela é

capaz de produzir novos instrumentos tecnológicos; produz-se,

graças ao maquinismo, novos objetos. Então, vamos dizer, os

objetos tecnológicos como objetos de precisão clássicos são aque-

les que existem e cumprem uma função determinada; o objeto-

máquina (o objeto tecnológico "máquina") tem a peculiaridade de

ser capaz, dependendo das instruções recebidas, da finalidade

proposta e pelo controle que vai ser exercido, este instrumento é

capaz de produzir um instrumento novo: a máquina produz máqui-

nas, é isto que ela faz.

A máquina se torna o modelo, o paradigma do pensamento

da técnica, sobretudo, pelo modo como ela vai se relacionar com o

trabalho. Você se lembram que no início deste curso, o que eu

procurei mostrar foi a concepção do trabalho existente na Antigui-

dade, na Idade Média, e até um certo ponto da Renascença, que

circunscrevia a técnica em um campo mínimo da ajuda para o

homem na relação com a natureza, isto é, uma ajuda para que o

homem pudesse vencer um conjunto de obstáculos, postos a ele

pela natureza, e não mais do que isto; dada a função do trabalho

nas sociedades escravistas, dado o lugar menor ocupado pela inter-

venção técnica sobre a natureza, e a concepção mesma da natureza

como um ser vivente, autônomo, capaz de produzir a sua própria

existência. A concepção de natureza, a organização social escravis-

ta, o modo de conceber o trabalho como dor, fadiga, pena, castigo,

aquilo de que você precisa se livrar, e o vínculo entre a técnica e

uma natureza que opera por si mesma (e, portanto, a técnica sim-

plesmente imita a operação natural, todo este conjunto de concep-

ções está vinculada a este lugar menor que o trabalho tem nessas

sociedades).Ora, sabemos que o modo de produção capitalista só

existe porque inventa a figura do trabalhador livre (o trabalhador

livre como um trabalhador assalariado) e o crescimento da riqueza

(que é o capital, que é um caso inédito) – esta é a única forma

econômica na qual riqueza cresce e que se deve a um modo muito

peculiar da exploração do trabalho: o trabalho como força produti-

va. Então, esta alteração sem precedentes que o modo de produção

capitalista vai realizar sobre, primeiro, a figura do trabalhador. O

trabalhador deixe de ser um escravo, deixe de ser o servo da gleba

e deixe de ser o pequeno camponês independente e o pequeno

artesão independente – ele é expulso da terra, ele é expulso das

corporações e só resta a ele vender seu próprio corpo que o seu

próprio espírito, que é o que ele vai fazer no mercado da força de

trabalho: o chamado trabalhador livre, como Marx vai explicar.

Este capítulo que eu considero uma das coisas mais sensa-

cionais que alguém já escreveu, que o famoso capítulo que conclui

o primeiro volume do Capital, que é a acumulação primitiva, na

qual Marx vai mostrar como é que surge essa figuraesdrúxula

chamada de "trabalhador livre". E Max vai dizer: ele livre sim,

livre de possuir a terra para trabalhar, ele é livre dos instrumentos

para o artesanato, ele é livre de possuir um lugar para deitar, ele é

livre de possuir comida para comer, e assim por diante.... Ou seja,

ele não tem nada! Está completamente espoliado e expulso do

campo para a cidade. Na cidade, a espoliação dos artesãos, no

campo, a espoliação do campo por que os proprietários de terra vão

criar, por exemplo, as ovelhas para a indústria têxtil. E vão destruir,

portanto, toda a economia agrária-familiar e o pequeno proprietário

familiar, ou seja, toda uma população que é levada do campo para a

cidade e uma população da cidade que está espoliada. Esta massa

que surge vai ser a massa dos trabalhadores que têm uma única

propriedade para oferecer um mundo regido pela propriedade

privada: ele tem a propriedade do seu corpo, isto é, a propriedade

da sua força produtiva. É isto que ele tem, mais nada! E é isso que

ele vai vender no mercado. O proprietário privado dos meios soci-

ais de produção (que é isto que o capitalista é, é isto que o burguês

é)...

Eu vou abrir parênteses aqui. O que a direita, em toda a

Europa, nos EUA, então, através do departamento de estado norte-

americano, e depois pegando todas as Américas e aí, as igrejas, nos

púlpidos, etc., identificavam, e a partir evidentemente da exibição

hollywoodiana do Doutor Givago, a ideia de que o comunismo é o

fim da propriedade privada. Não é! O comunismo é distinção clara

entre a propriedade individual dos bens necessários à vida e ao

desenvolvimento corporal e mental de cada um que a sociedade

tem que assegurar para a todos. E a socialização da propriedade

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69

privada dos meios sociais de produção. A propriedade capitalista

não é a propriedade privada. A propriedade privada existiu na

história do começo ao fim. A peculiaridade é que ela é a proprieda-

de privada dos meios sociais de produção: são os meios sociais de

produção que estão nas mãos do interesse privado, do poder priva-

do. Essa era a ideia de que o socialismo e o comunismo iam destru-

ir. Eles iam assegurar que os meios sociais de produção fossem

sociais e não privados. O que você tem então no momento no

momento da formação do capitalismo? Você tem a propriedade

privada dos meios sociais de produção; portanto, não é...

Alguns de vocês, eu acho, não eram nascidos na campanha

do Fernando Collor – a campanha do Fernando Collor foi uma das

coisas mais geniais, porque nem departamento de estado, nenhum o

pentágono nos seus momentos mcartistas mais burros teriam sido

capazes de uma coisa igual a esse e que surtiu efeito; a campanha

do Collor dizia o seguinte: primeiro, a rede Globo passava toda

noite, na sessão das dez, o Doutor Givago, e, de preferência, o

instante em que você tem a população de Moscou ocupando os

castelos da nobreza... e pegando tudo que era da nobreza, repartido

tudo; tinha o Doutor Givago toda noite e a propaganda do Collor

era a seguinte: "Você tem um apartamento, e o seu apartamento

tem três quartos, mas você usa só dois... então o pessoal do PT vai

invadir seu apartamento e pegar o terceiro quarto, porque é isto o

comunismo; você tem duas televisões – uma na sala e outra no

quarto – o pessoal do PT vai vir e pegar uma das televisões, porque

vai dizer que a família precisa de uma só, porque é isto o comu-

nismo"; então, o comunismo é pegar televisão, pegaram quatro,

pegar o segundo... é de uma burrice, de uma estupidez absoluta,

total! Só se compara à mulher do Serra carregando estátua de Nos-

sa Senhora Aparecida. [risos]. Só! Igual, eu nunca vi na minha

vida! E funcionou.... Funcionou porque a classe média... qual é o

terror da classe média? Perder a suíte, perder a terceira garagem,

perder o segundo carro. "– Imagine! A minha televisão liquida

(sic), lá, digital...". Os comunistas vão pegar tudo isso! Não pode!

Então, mas por que é possível toda esta ideologia absolu-

tamente alucinada! Porque se toma a noção de propriedade privada

dos meios sociais de produção como se fosse a propriedade privada

dos bens individuais necessários à vida de cada um. O que acontece

na emergência do capitalismo? Você tem uma massa que está

despojada de todas as formas de propriedade: da propriedade dos

meios de produção, da propriedade dos bens individuais para a

reprodução da vida e da propriedade do seu espírito do seu corpo

para se locomover, isto é, a liberdade de ir-e-vir. Você tem esta

massa espoliada e a propriedade privada dos meios sociais de

produção nas mãos de um grupo que vai formar a burguesia. É

nesse lugar que vai se dar a exploração. E o que vai acontecer é

que, ao vender a sua força de trabalho – que é a força produtiva –

para os proprietários privados dos meios sociais de produção, nessa

venda, evidentemente, o comprador é que ganha à parada.

Eu vou fazer uma caricatura aqui. E vocês não contem pa-

ra ninguém. Marx vai se torcer no túmulo com o que eu vou fazer

aqui, mas... não contem para ninguém.

A coisa é mais ou menos a seguinte: o trabalhador é con-

tratado para produzir 4 m de linho, coisa que ele pode produzir em

4h (1h para cada metro). Ele vai receber R$4. Só que ele vai traba-

lhar 8h, produzir 8 m de linho que vai ganhar R$4. Os R$4 que ele

não ganhou vão formar o capital. Então, o capital – esta riqueza

extraordinária que nunca houve na face da terra igual – esta riqueza

que é capaz de que crescer. Até chegar no capitalismo, a riqueza

não crescia, a riqueza se deslocava: Você faz uma guerra e a rique-

za deste reino que perdeu vai toda para o reino vitorioso; este reino

vitorioso e entra numa outra guerra e a riqueza dele vai para um

outro, se ele perder; e assim vai.... a riqueza se deslocava, ela não

crescia. O máximo de crescimento que você tem é aquilo que se

chama de riqueza suntuária, ou seja, os metais preciosos; mas

mesmo caso dos metais preciosos, isso não aumento da riqueza

social. No caso dos metais preciosos é o caso do aumento simbóli-

co da riqueza; porque esta riqueza suntuária não tem nada a ver

com a produção. Ela não tem nenhuma relação com o sistema

produtivo. Então, o capitalismo, é esta coisa fantástica de ser a

primeira forma de econômica na história humana em que a riqueza

cresce. E como a riqueza cresce? Então, a ideologia burguesa

explica que a riqueza cresce na hora do comércio. Então, o fusca

custou R$5.000 ao ser produzido e, aí, a Volkswagen põe na loja

dela por R$10.000. Então, estes R$5.000 a mais que ela vai ganhar

em cada fusca é que é o lucro. Não é nada disso! Isso tudo é bestei-

ra. A hora um em que o capital cresce é a hora em que o trabalho

na produção não foi pago. Então, um trabalhador trabalhou 8h,

produziu 8 m de linho e recebeu R$4, correspondente a 4 m de

linho que ele faria em 4h. Estes R$4 que não foram pagos vão

constituir a mais-valia, ou mais-valor, e isso que vai fazer o capital

crescer. Muito bem.

É neste espaço que a máquina vai aparecer. Quando se

passa... a primeira forma em que o capital... que o capitalismo vai

assumir no campo da produção vai ser a manufatura, que é o mo-

mento no qual as corporações são todas desfeitas e surge, nas

cidades, a reunião dos artesãos para tarefas em comum, e isso vai

prosseguir, evidentemente, com a indústria. O que interessa que

não é questão da manufatura; aqui, não interessa só a questão da

Revolução Industrial... e não ela, propriamente dita (vamos tratar

disso), mas, por que que com ela o paradigma da máquina se trans-

forma no grande paradigma sócio-cultural do ocidente, esta refe-

rência fundamental à máquina e ao maquinismo, ou seja, a identifi-

cação da técnica e da máquina, ou a técnica como maquinismo. É

isto que me interessa na aula de hoje.

Com relação ao trabalho, o que a máquina vai fazer? Na

medida em que ela é o paradigma da ação racional, que ela garante

a sistematicidade, a normatividade, o controle, a eficácia da ação, a

máquina vai aparecer com o poder de uniformizar diferentes traba-

lhos, regularizar diferentes trabalhos, retificar as ações dos traba-

lhadores que, sobretudo, vai amplificar os gestos necessários dos

trabalhadores na produção. Ou seja, a máquina vai ser um elemento

poderosíssimo de controle social. Ela não é apenas um objeto de

desenvolvimento econômico, ela é também um objeto técnico que

assegura o controle social. Essa é uma nova peculiaridade que a

técnica vai assumir. Este lugar ela nunca tinha tido; e ela nunca

tinha tido porque em nenhuma outra sociedade o trabalho e a ex-

ploração do trabalho tiveram o sentido que tem no capitalismo. Na

medida em que o trabalho e a exploração do trabalho no capitalis-

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70

mo é o que explica a produção do capital, a acumulação do capital,

a reprodução do capital, a ampliação do capital, é óbvio que tudo

vai girar em torno do poder que vai ser exercido sobre o trabalho: o

capital depende intrinsecamente do trabalho e, portanto, a ideiaé de

exercer um controle total sobre o processo de trabalho.

O primeiro elemento que vai realizar isto, nesta fase da Re-

volução Industrial, é a máquina. Ela que vai fazer isto. E é sobre

isso, com uma variante que ficou faltando, mas que eu só vou

explorar na próxima aula... mas... é disso que trata Charlie Chaplin

nos Tempos Modernos. É o trabalhador inteiramente devorado pela

máquina, porque ele é controlado por ela. A máquina vai controlar

o tempo, espaço, os gestos, o corpo, o espírito, do trabalhador. É a

primeira vez que a técnica não vai ser apenas aquilo que os moder-

nos esperavam que ela fosse. O que eles esperavam? Que ela fosse

este instrumento poderosíssimo a exercer o domínio sobre a natu-

reza a serviço de uma vida melhor para os seres humanos. Era este

o sonho dos modernos. O sonho de Bacon, de Descartes, de Leib-

niz. Eles sonharam com isto, como sonharam os magos da Renas-

cença. Haviam sonhado com isto... que você possa ter um controle,

um domínio sobre a natureza tal que favoreça a vida humana.

Agora, nós vamos ter uma situação completamente diferen-

te, porque não só a técnica vai ser esta operação de exercer condo-

mínio e o controle sobre a natureza, mas ela vai ser este procedi-

mento para exercer condomínio e o controle sobre os seres huma-

nos. Esta é uma mudança também sem precedentes. Vocês se

lembram que até aqui havia uma certa autonomia do ser humano

com relação aos objetos técnicos, mesmo que ele os produzisse,

que eles fossem objetos de precisão, que eles ajudassem no cresci-

mento das ciências, mas o instrumento está lá e o ser humano está

aqui. Agora, não é mais isso. Agora o instrumento está aqui, absor-

vendo a natureza, ele faz isto, absorvendo e controlando trabalha-

dor. E isto se chama "o maquinismo". E é o maquinismo uma

invenção do modo de produção capitalista.

O primeiro tópico que eu quero mencionar é o aparecimen-

to de um novo campo científico que seria impensável até o final do

século XVII e que começa a se desenvolver no século XVIII pega

todo o século XIX, que é uma ciência chamada "ciência das má-

quinas" ou "mecânica industrial". No final do século XVIII, no

início do século XIX, portanto, quando está começando a se reali-

zar a Primeira Revolução Industrial, vai surgir um tipo novo de

escola, que é a escola que vai trabalhar com a ciência das máquinas

ou com a mecânica industrial: a escola de engenharia. E o que é

interessante, nós temos a ciência das máquinas (ou mecânica indus-

trial) e o nome que a escola de engenharia recebe –é o nome que

ela tem na França, primeiro, e isso se repete também na Alemanha,

na Itália, e vai aparecer na USP, criada por uma missão francesa: a

escola de engenharia se chama Escola Politécnica. Ela é o lugar da

técnica. Então, esta identificação da técnica com a máquina, essa

identificação da máquina com mecânica, a mecânica com a indús-

tria,engendra uma exigência de saber e de conhecimento que pro-

duz o nascimento de um tipo de ciência novo e um tipo de escola

novo, que é a escola politécnica. E não é por acaso que ela se cha-

ma "poli" técnica, ela é uma escola que ensina técnicas. Mas que

técnicas, ensina uma escola de engenharia? Ela ensina máquinas:

construir pontes, derrubar pontes, construir túneis, derrubar túneis,

construir um metrô, derrubar metrô... automóveis, aviões... todas

essas coisas que se fazem numa escola de engenharia. É construção

e demolição de máquinas: é isto que ela é.

Qual é a novidade? A novidade é que, nós já tínhamos visto

que os renascentistas haviam firmado a dignidade das artes mecâ-

nicas, nós havíamos visto que os modernos mostraram que sem a

tecnologia não era possível o desenvolvimento da ciência; portanto,

colaboração entre o conhecimento mecânico, ou dos mecânicos, e o

conhecimento científico na produção dos objetos de precisão. Mas

agora um passo a mais é dado, um passo inteiramente novo que não

é mais o de afirmar a dignidade das artes mecânicas, nem de afir-

mar que elas são necessárias para o desenvolvimento da ciência, é

afirmar que elas são objetos científicos, elas são elevadas à digni-

dade de ciência. A técnica se torna, portanto, objeto de ciência, ela

não é mais aquilo que a gente viudesde o começo do curso, esta

prática que ou é menosprezada, ou é elogiada, ou que é colocada na

condição de auxiliar... agora não. Agora ela ganhou o estatuto de

ciência; a técnica ganha, portanto, o estatuto de conhecimento

teórico para o projeto, a invenção, o projeto e a construção de

máquinas.

E as escolas de engenharia europeias (e, depois, vai ser o

caso da politécnica em São Paulo) estão diretamente vinculadas à

grande indústria, ou seja, os programas das escolas de engenharia

são determinados pelas necessidades, carências e exigências da

grande indústria. É aquilo que é preciso para o desenvolvimento da

grande indústria que se torna o objeto de ensino nas escolas poli-

técnicas ou nas escolas de engenharia. O núcleo deste ensino, que é

o coração da máquina, é o de propor o desenvolvimento da explo-

ração industrial sistemática das fontes de energia e das formas de

energia. Passar de energia animal e da energia humana à energia

natural, mas uma energia natural controlada. Donde a importância

que vai ter a máquina a vapor e todas as máquinas ligadas à hidro-

dinâmica. Depois deste lugar ocupado pelo vapor e pela hidrodi-

nâmica se associa auma outra fonte de energia, que é o carvão, a

exploração do carvão, e depois vapor e carvão cedem o lugar (eles

não desaparecem, mas eles cedem a primazia como fonte de ener-

gia) para a eletricidade. Então, o percurso vai: hidrodinâmica,

vapor, carvão, eletricidade... e prossegue.

Aideia nuclear é: a ciência das máquinas é inseparável do

desenvolvimento de conhecimentos e formas de exploração siste-

mática das fontes de energia. Isto é inteiramente novo, também;

mas, é isto que vai definir uma máquina. Quando ela deixa de ser

movida pela força do homem, como a alavanca, ou pela força do

animal, como o moinho ou o arado, quando ela passa a ser movida

por outras fontes de energia. Este é o núcleo das escolas de enge-

nharia.

E é por isto que um dos pontos centrais na mudança do es-

tudo das máquinas – seja para sua invenção, seja para sua constru-

ção – a mudança teórica mais importante, que vai ocorrer, produzi-

das pelas escolas de engenharia, é a passagem do estudo do que

eles chamavam de a máquina em repouso, ou a máquina em estado

de equilíbrio, para a máquina em movimento, ou a máquina nem

alteração. Ou seja, a máquina em estado de equilíbrio, ou a máqui-

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71

na em repouso, é a máquina geometricamente e fisicamente conce-

bida. A máquina em movimento é a máquina em operação, que é

concebida, agora, pelo engenheiro. E essa operação, esta máquina

em movimento, esta máquina em operação, vai se chamar "a má-

quina em trabalho". Surge a ideia do trabalho mecânico como

trabalho que a máquina executa. Nós temos, portanto, o trabalho

como força do trabalhador e o trabalho como aquilo que a máquina

realiza. E é por isso que o trabalhador e a máquina fazem parte das

forças produtivas.

Eu não vou mexer nisso aqui, mas, mais adiante, a gente

pode falar. Mas, toda a análise que Marx faz da maneira pela qual o

trabalho morto, que é a máquina, se apropria do trabalho vivo, que

é o trabalhador. O que eu quero assinalar é simplesmente isto: que

a máquina em operação, a máquina em movimento, é chamada "em

trabalho". Então, lá no início do curso nos vimos que não existia

nem palavra para designar trabalho; havia, nas línguas antigas não

existia nenhuma palavra para designar trabalho. Agora, o trabalho

se torna nuclear e é ele que define o que a máquina faz.

O segundo aspecto que eu quero mencionar aqui é o sur-

gimento da figura do engenheiro; o técnico como um engenheiro.

Um dos engenheiros mais interessantes que é muito estudado nos

livros de história da técnica, e da história das máquinas, é um

inglês chamado Smeaton. É ele o primeiro, no caso da Inglaterra, a

estabelecer uma relação clara e sistemática com os empresários

capitalistas. E de pensar a função do engenheiro como a de um

inventor de objetos mecânicos postos para o desenvolvimento da

grande indústria; da passagem da manufatura para a grande indús-

tria. E, para isto, este engenheiro, vai introduzir uma noção nova

com relação às máquinas de que explica porque que a noção de

máquina em movimento vai se tornar tão importante e porque se

fala em trabalho mecânico. O que ele vai introduzir é a ideia de que

uma máquina produz uma multiplicidade de instrumentos.

[42:36]Em geral, se pensa a máquina como uma ferramenta

que produz um efeito: ela levanta um peso, ela derruba um objeto,

ela abre um sulco na terra, ela torce o fio; a ideia de que uma má-

quina possa produzir uma multiplicidade de efeitos era a grande

novidade que vai ser colocada na máquina e que vai explicar por

que se fala em trabalho, porque se fala em trabalho mecânico; ou

seja, a máquina é pensada como uma multiplicidade de operações

simultâneas ou sucessivas que permitem, através de um conjunto

de defeitos diferenciados, realizar um trabalho que é o único. O

trabalho realizado é único; as operações, entretanto, são múltiplas,

elas estão articuladas e conectadas entre si para produzir um resul-

tado único, de tal modo que as máquinas têm que ter um centro

operatório, que garanta a pluralidade dos efeitos, a simultaneidade

(ou sucessão) deles e a articulação segura entre eles. Este centro

pensado como um autômato. Então, é ideia de que a máquina tem

que ter um centro automático que vai garantir a pluralidade de

efeitos que ela capaz de realizar na produção de um trabalho. E é

por isso que ela é pensada como um trabalho, já que a noção de

autômato está ligada fundamentalmente ao homem. O homem é a

máquina, por excelência, que se move si mesmo. O trabalho é a

expressão deste automovimento. O que se pensa é uma máquina

que tenha um centro automático capaz de controlar, na simultanei-

dade e na sucessão, uma pluralidade de operações. Como o ser

humano controla o trabalho da mão direita, da mão esquerda, do pé

esquerdo, do pé-direito, do torso, da cabeça, os olhos, etc. O corpo

inteiro do trabalhador está posto em ação; é o corpo inteiro da

máquina que vai ser posto em ação. É Smeaton o primeiro que

pensa isto.

Eu cito um pequeno trecho de Séris (está na bibliografia de

vocês), no livro Machineetcommuniction (ele se refere à contribui-

ção de Smeaton): "Ele procura alguma coisa que inquietava não os

artesãos mas os industriais com métodos que são os métodos dos

físicos experimentais. Sua tentativa se inscreve na série de esforços

para definir uma unidade de potência (ou uma unidade de força) e

uma unidade de trabalho. Esta pesquisa é um dos traços que carac-

terizam o final do século XVIII, isto é, o esforço para particular

uma mecânica racional com uma mecânica prática".

O terceiro ponto que eu quero mencionar, terceira figura

que é importante, é a do professor de engenharia, que é o cientista.

O cientista (professor de engenharia)... e, eu vou tomar aqui um

dos professores, porque ele é um dos criadores da polytechnique,

na França, que é Carnot. Carnot vai explicar aos seus alunos o que

é a ciência das máquinas. A primeira coisa, ele diz: "Essa ciência

ainda não existe, essa ciência é uma ciência que nós estamos crian-

do, e estamos criando na escola polytechnique, nós estamos crian-

do na escola de engenharia. Por quê? Porque o que se tem até agora

(diz ele) são tratados que explicam máquinas particulares: este tipo

de máquina, aquele ativo de máquinas, e, sobretudo (diz ele), os

tratados sobre as máquinas as máquinas simples (as cinco máqui-

nas simples: a alavanca, a polia, o cabrestante, o parafuso, etc.).

Não só os tratados se referem a máquinas particulares, como, de

um modo geral, eles se referem aos instrumentos, as ferramentas,

que são as suas cinco máquinas simples. Ora, o que é preciso? É

preciso passar dessa pluralidade de máquinas e das ferramentas

simples a uma concepção universalizante da máquina, o que é a

máquina em geral, quais são as propriedades e funções que toda a

máquina tem que ter de, sobretudo, o trabalho deve se voltar para

as máquinas compostas e não para a descrição de uso de máquinas

e simples, que são ferramentas". Então, a primeira coisa importante

proposta por Carnot é a da generalização do conceito de máquina;

e, nesta generalização, a importância que é dada à composição da

máquina. O que é a composição (vou trabalhar mais isto daqui a

pouco) na máquina de uma ferramenta. E esta distinção, vocês vão

ver, é fundamental para Marx, a distinção entre a máquina e a

ferramenta; ou o que Marx chama de a máquina-ferramenta; a

máquina e a máquina-ferramenta. Esta, então, é a primeira exigên-

cia do que seria a ciência das máquinas.

Em segundo lugar, esta ciência, que tem ambição de ser

universalizante ou o mais geral possível e, portanto, não se deter

nas propriedades específicas de máquinas específicas, ela deve

considerar aquilo que não foi feito, segundo Carnot, até então, ela

deve considerar a máquina um corpo intermediário, cuja massa e

cuja inércia devem ser deixadas de lado para ficar apenas com este

corpo em ação ou em operação. Isso significa que a partir de Car-

not surge uma teoria das máquinas como não mais um ramo parti-

cular da mecânica, mas como sendo a mecânica propriamente dita.

Page 72: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

72

Agora, eu cito, um texto de Carnot. Carnot diz o seguinte: "Trata-

se de considerar a ação recíproca das diferentes partes de um sis-

tema de corpo, que é a máquina, entre os quais se encontram aque-

les que estão privados da inércia que é comum a todas as partes da

matéria, tal como existe na máquina da natureza para ficar com

aquelas que retiveram da natureza o nome de máquina. A máquina

não é apenas um corpo, ou um conjunto de corpos, desprovidos de

partes e de propriedades, mas sim, há um conjunto articulado de

órgãos. A máquina é uma força natural". Então, a ciência das má-

quinas vai apropriar, portanto, da totalidade da mecânica. Primeiro,

ela se apropriou da mecânica prática que, depois, da chamada

mecânica operacional. A tarefa, portanto, da ciência das máquinas

é encontrar o movimento a real que uma máquina fará graças à

ação recíproca dos corpos que a compõe. Distinguindo o que um

corpo natural faria e o que este corpo artificial fará; mas, pensando

estes dois corpos, o natural e o artificial, da mesma maneira, isto é,

como força (como energia). A máquina, então, vai ser definida

pelos primeiros professores de engenharia, ou pelos primeiros

cientistas-engenheiros, como um sistema de corpos duros no qual o

movimento virtual (o movimento que ele pode realizar) é alterado e

modificado por um outro movimento real (aquele que está sendo

realizada) de tal modo que a máquina deve ser pensada como uma

interação entre corpos duros que possuem movimento real e movi-

mento virtual. Esse vai ser um modelo clássico da máquina do

maquinismo da Primeira Revolução Industrial. Na verdade, vai

atingir a Segunda Revolução Industrial, também; a noção de eletri-

cidade não vai modificar isto. O que são as máquinas, portanto?

Carnot diz o seguinte: "As máquinas, em geral, são corpos que nós

interpomos entre duas com mais potências para transmitir a ação de

um para o outro, seguindo determinadas condições, de acordo com

o que o objeto pode preencher. De que a potência se trata? De que

a ação se trata? Trata-se do efeito que a máquina deve produzir.

Estes efeitos são completamente diferentes se a máquina é pensada

como estando em equilíbrio ou se ela é pensada como estando em

trabalho. No caso do equilíbrio, não se tem como considerar senão

a intensidade das forças que operam; mas, no caso da máquina

emmovimento, no caso da máquina em trabalho, deve-se conside-

rar não só a intensidade das forças em alteração, mas também o

caminho que em cada uma delas tem que percorrer e as articula-

ções entre elas). Esta concepção, eu venho ao meu quarto ponto,

que é a da máquina em movimento e da máquina em trabalho, essa

concepção de que se trata de uma interação entre corpos duros,

segundo os movimentos virtuais e movimentos reais em interação

para obter uma pluralidade de efeitos (é isso a máquina), essa

concepção (da máquina) vai levar à ideia de que a máquina é um

organismo. Que ela tem que ser pensada como um organismo.

Carnot diz o seguinte: "O efeito de uma máquina em repouso e o

efeito de uma máquina em trabalho são efeitos muito diferentes. E

mais: são heterogêneas. No caso da máquina em equilíbrio ou em

repouso, trata-se de destruir, a de impedir, o movimento. No se-

gundo caso, o da máquina em movimento ou da máquina em traba-

lho, o objeto é fazer nascer o movimento de conservar o movimen-

to; e é claro que o movimento exige uma consideração muito maior

do que o repouso. O que é exigido agora? É exigido conhecer a

velocidade real de cada ponto do sistema". Nós não podemos avali-

ar o que significa isto se nós não pensarmos qual é a máquina que

está na cabeça desses engenheiros. A máquina que está na cabeça

desses engenheiros, em primeiro lugar, é a máquina a vapor; mas, é

sobretudo um conjunto de correias de transmissão, com rodas

dentadas, múltiplas engrenagens, alavancas, paradas, procedimen-

tos, centro de calor, centro de resfriamento, e assim por diante... ou

seja, (já, já, quando nós tomarmos o texto de Marx nós veremos do

que se trata). Trata-se de um corpo absolutamente colossal, consti-

tuído de um conjunto colossal de partes que estão articuladas umas

às outras segundo lugar que elas ocupam, a velocidade com o qual

elas operam e o tipo de efeito que cada uma dessas operações sobre

as outras partes da máquina e a máquina no seu todo. Ou seja, a

noção de máquina em trabalho, ou a noção de trabalho mecânico, é

isso: é percepção da máquina como uma complexidade de partes,

todas elas articuladas que essa articulação determinando o modo de

relação das partes entre si, a maneira como há uma transmissão (eu

vou já, já, falar da questão da transmissão) de movimento de uma

parte para outra e o modo como essa transmissão se dá segundo

velocidades distintas, temperaturas distintas para a obtenção de

efeitos distintos. Então, uma única máquina é esta pluralidade de

máquinas, no fim das contas, operando em conjunto. É disso que se

trata quando eles falam em trabalho mecânico ou a máquina em

movimento. Agora, por que ela é pensada como um organismo?

Porque esse conjunto de objetos, de partes, que constituem a má-

quina, constituem em primeiro lugar aquilo que se chama a força

da máquina ou potência da máquina, a energia da máquina. E

Carnot vai dizer: "As forças são consideradas na razão direta dos

efeitos a serem obtidos, de tal maneira que nós agora podemos

entender o conceito leibniziano de forças vivas". Eu não vou de-

senvolver aqui, não é o caso, mas toda a metafísica leibniziana vai

chegar ao conceito de forças vivas. Leibniz estava trabalhando e

chega à noção de força; Newton está trabalhando e chega à noção

de força; os dois vão chegar à noção de força. Só que, no caso de

Newton é esta força geral, genérica, universal, da natureza que é a

gravitação e no caso de Leibniz é um tipo de potência que todos

seres do universo possuem e que é mais do que aquilo que tem

Spinoza, em Descartes, em Hobbes, se chamava conatus. O cona-

tus é o esforço de autoperseverança na existência. A força viva,

segundo Leibniz, é mais do que isso, ou seja, com a noção de força

viva, e com a noção de força da gravitação, o que estes dois pensa-

dores introduzem é uma concepção dinâmica do universo. O mo-

vimento que era pensado de maneira cinemática, passa agora,

graças à noção de força, a ser pensado dinamicamente. Só que um

está lá explicando o que acontece no céu, e assim no céu como na

terra; e o outro, faz uma elaboração metafísica. Carnot diz agora:

"Se eu trabalhar com a máquina com este conjunto de corpos duros

em interação, numa interação e uma articulação para a produção de

uma pluralidade de efeitos, em função da maneira como um se dá a

ação de um corpo sobre outro e o modo como cada um transmite ao

outro o seu movimento, eu dei concreticidade àquilo que metafísica

chamava de força viva, ou seja, eu tenho que pensar a máquina

como um corpo dinâmico". A máquina é mecânica, porque ela é

movimento, só que este movimento não é mais o da máquina em

repouso, que é cinemática, mas é o da máquina em trabalho, que é

a dinâmica. A ciência da máquina, portanto, é a introdução de uma

concepção dinâmica do objeto técnico. Ele não é possível objeto de

precisão, ele não é a ferramenta útil, ele é uma operação de energia.

Page 73: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

73

É isto que ele é, e é por isso que a função das escolas de engenharia

é ensinar as maneiras sistemáticas, racionais, e mais eficazes, de ter

o controle das fontes de energia; porque é isto que uma máquina é:

ela é uma operação de energia.

Isto significa que, eu dizia a vocês, vai haver a tendência

a... Se eu introduzo a noção de pluralidade de partes, a articulação

dessas partes, transmissão de movimento de uma parte para outra, e

penso tudo isso como uma operação simultânea e sucessiva de

energia, é óbvio que o modelo que subjaz à concepção da máquina,

agora que ela é dinâmica, já não pode ser um modelo que valia para

uma máquina em equilíbrio, a máquina em repouso, a máquina

cinemática. O modelo para ser o do corpo humano, ou do organis-

mo vivo; a máquina vai ser pensada como um organismo. Então,

quando era pensada como um organismo, ela é estudada pelas

escolas de engenharia que propõem estudar as máquinas por de-

composição das suas partes primordiais e imitar (é textual isto; os

professores de engenharia dizem); um professor de engenharia e o

conhecedor das ciências mecânicas ou da ciência das máquinas é

aquele que deve imitar o anatomista e o fisiologista; ele deve de-

compor todas as partes que formam a estrutura da máquina ele

deve conhecer a função de cada uma dessas partes e o modo de

relação entre essas funções. A máquina é portanto um organismo

vivo. A gente roda, roda, roda... e chega lá... sempre! Nós vimos

que a concepção de natureza vai, vai, vai... ele é sempre um grande

organismo vivo! Aí você separa a técnica da natureza, dizendo que

é uma coisa não tem nada a ver com outra, a técnica não imita a

natureza... tudo o que nós já vimos.... E aí vamos pensar como é a

máquina...: a máquina é um organismo vivo! Ela é pensada como

um organismo vivo. Tanto é assim que as máquinas possuem ór-

gãos; então, as partes são descritas como órgãos; elas têm: órgãos

receptores, que são aqueles que estão destinadas a receber a ação

imediata dos motores (os agentes dos motores, das fontes de mo-

vimento); possuem órgãos comunicadores, que são aqueles que

transmitem os movimentos de uma parte para outra e transformam

estes movimentos através desta transição; possuem órgãos modifi-

cadores, que são aqueles que modificam a velocidade das partes

móveis; possuem órgãos suportadores, que são os que servem

centro de suspensão, de rotação e de apoio para os outros órgãos;

possuem órgãos reguladores, que corrigem todas as irregularidades

dos movimentos de cada parte, previnem o desgaste, diminuem os

efeitos nocivos das resistências do meio, regulam a grandeza de

duração da intensidade dos movimentos, as interrupções, as reno-

vações, e assim por diante. Ou seja, os órgãos são os responsáveis

pela operação do conjunto diversificado dos efeitos de uma máqui-

na e, depois, do seu efeito geral; porque é uma máquina é pensada

a partir do efeito que ela produz, e é para isto que ela existe: qual a

finalidade que ela tem em que efeito a vai produzir.

Eu vou ler então dois trechos este livro que está na biblio-

grafia de vocês do Séris que se chama Machineetcommuniction. O

primeiro texto, o primeiro trecho que vou ler, vai se referir justa-

mete à relação entre as escolas de engenharia (o nascimento das

escolas de engenharia) e a Revolução Industrial. Eu vou ler as

páginas 453 e 454, primeiro. Séris diz o seguinte : "Os inícios da

grande indústria e as primeiras escolas de engenharia de introdu-

zem a noção de hoje atividade do trabalho ligado ao valor que

permite formular um programa sistemático para a exploração in-

dustrial da energia. Assim, três linhas de força se acoplam a ideia

da máquina como um instrumento de comunicação. É em virtude

de uma necessidade secreta, mas imperativa, que faz as máquinas

convergiram para uma perspectiva comum. A manobra dos navios

faz de espera a esperança clássica de um domínio da máquina pelo

saber do controle e do comando. É a comunicação ótima do capitão

com o navio com sua equipe e com o mar. A questão dos atritos

que atrapalham e prejudicam na máquina, isto é, que são obstáculos

à comunicação do movimento e à comunicação da força leva a uma

investigação que favorece a apreensão do funcionamento das má-

quinas como processos, segundo um eixo em que a transmissão não

é apenas correspondência e proporção entre dois extremos com

relação centro. A transmissão que se encontra como operação no

interior da máquina e que anula os atritos na trama experimental e

conceitual dos primeiros ensaios de quantificação que o abandono

a força humana pontual e instantânea para tomar o trabalho huma-

no na continuidade do seu exercício normal. Estes percursos permi-

tem concluir que a máquina se realiza como um princípio da

transmissão do trabalho. A máquina, de funcionamento uniforme, é

o lugar de uma única ação de movimentos que é emprestado na

entrada e restituído na saída. A máquina empresta alguma coisa da

força que se consome para mover, mas ela fornece uma coisa os

corpos que ela move em que resistiam a ela. Trata-se de compreen-

der a história deste problema até definição daquilo que as máquinas

comunicam e daquilo que se paga com seu funcionamento: do

trabalho, fonte e produção do valor (o valor no sentido marxista do

termo) como trabalho, a máquina nos faz alcançar um novo tipo de

positividade e apresenta uma configuração na qual o conceito físico

de energia poderá vir se inscrever. A noção de trabalho é elaborada

ao termo de uma longa reflexão sobre as máquinas, sobre as má-

quinas hidráulicas, mais do que sobre as máquinas em geral . Esta

reflexão não deve nada à máquina a vapor. Pelo menos, não lhe

deve nada diretamente, porque, em última análise, a prática e a

necessidade de substituição das forças motrizes, na perspectiva da

economia e do lucro é o que chama escolher à atenção dos sábios

para esta moeda mecânica que é a máquina".

E o segundo texto, no final do livro, Séris diz o seguinte:

"A máquina, em funcionamento, é o lugar no qual se realiza um

certo desgaste, um desgaste de trabalho, um desgaste dinheiro.

Quando se diz que a força viva é aquilo que precisa ser pago, a

força viva, ou seu representante, isto é, o trabalho como quantidade

de ação, é uma mercadoria que se compra para explorar e tirar

proveito. A nova positividade surge num ponto em que se articu-

lam trabalho e valor (valor, no sentido de Marx). Sabe-se que da

grande propensão da economia clássica de confundir com frequên-

cia o valor do trabalho e o trabalho como fonte do valor de troca,

mas, mesmo autores como Petty e Adam Smith, passando por

Benjamin Franklin, acabam em fórmulas que não tem equívoco e

que foram durante muito tempo incapazes de dar ao trabalho o

papel que efetivamente têm no capitalismo de fonte de todo valor.

A aparição simultânea do conceito de trabalho mecânico ao termo

de uma longa história que durou dois séculos, invés de ser um

efeito de uma importação metafórica do que se passava na fábrica

para que se passa na máquina, muito pelo contrário, resulta de um

Page 74: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

74

mesmo abalo que percorreu o saber no seu todo, isto é, trata-se

agora de pensar o trabalho e a máquina como inseparáveis na me-

dida em que eles são longos os produtores de valor, e isto é o capi-

tal". Então, com isso nós temos, eu penso, um quadro no qual nos

podemos avaliar a mutação ocorrida: se eu tomo Platão e Aristóte-

les, MarsilioFicino e Giordano Bruno, Bacon e Descartes, e agora

eu tomo o engenheiro, ou a escola de engenharia, nós temos uma

percepção do que ocorre, da mutação que ocorre, esta mutação – o

que eu quis enfatizar até aqui é como se, no ponto final (ou num

ponto quase final – estamos na Primeira Revolução Industrial),

como se ao chegar na Primeira Revolução Industrial, a Primeira

Revolução Industrial agarrasse aquilo que é impensável no início

do percurso. Quer dizer, no início do percurso a técnica esta coisa

minimalista de imitação da natureza e que corresponde algum tipo

de sociedade de cultura para a qual nem existe a palavra trabalho,

para, no ponto final, técnica, trabalho, trabalho humano, trabalho

da máquina, serem uma só e mesma coisa. Ia haver uma ciência

disso. A elevação do trabalho, do trabalho mecânico e da máquina,

à condição de ciência. Então, esta é uma mutação gigantesca. Gi-

gantesca! Mas, que levou 26, 27 séculos para acontecer. Porque... o

susto que nós vamos levar daqui a pouco (daqui duas aulas, na aula

da outra segunda-feira) é a mutação que vai ocorrer na altura dos

ano XIX50 e, sobretudo, 60 e 70. A mutação que é a informática ou

a eletrônica vai introduzir. É como se a história tivesse precisar de

26 séculos para chegar até a mutação da Revolução Industrial e

depois em 50 anos que ela tivesse dado um salto correspondente a

mais de 26 séculos. E que é típico do tempo capitalista; esta é uma

das coisas que caracteriza o capitalismo que é a devoração da

temporalidade. É isso que o capital faz. E não é por acaso que

Benjamin Franklin cunhou a máxima: "Tempo é dinheiro".

Agora, eu vou passar.... Antes de passar a Marx, eu quero

ler um trechinho para ficar claro o contraste que vou estabelecer

entre Marx e a tradição da história da técnica ligada à Revolução

Industrial.

Eu vou ler... isto aqui também está na bibliografia de vo-

cês. Eu vou ler para vocês um ensaio chamado A Dinâmica Das

Tecnologias De Longo Termo, por François Caron. Vou ler um

trechinho só. Só para esclarecer: ele está escrevendo este ensaio

para indagar o que acontece para o surgimento da primeira grande

Revolução Industrial e a passagem da primeira para Segunda Revo-

lução Industrial. Então, ele diz que há três perguntas que precisam

ser respondidas, quando se quer examinar o que é que tornou pos-

sível cada uma destas revoluções industriais e qual foi a mudança

que ocorreu na passagem de uma para outra, então, as perguntas

que é necessário responder são as seguintes: "Em que medida

Revolução Industrial britânica (porque o termo "Revolução Indus-

trial" é aplicado ao que aconteceu na Inglaterra) constituem, na

história mundial, a grande descontinuidade ou uma fratura o mai-

or?". Então, a Primeira Revolução Industrial da qual a Inglaterra é

o paradigma, o modelo, não só porque ela aquela vai ocorrer, mas é

de lá que se expande para o resto da Europa, então, em que medida

a Primeira Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra deve ser

entendida como uma descontinuidade histórica, ou como uma

fratura temporal. Segunda pergunta: "Sob quais processos se efetua

a passagem de um sistema técnico para outro?". Ou seja, como se

passa da manufatura para a Primeira Revolução Industrial e da

Primeira Revolução Industrial para segunda. Então, da manufatura

para a Primeira Revolução Industrial: o vapor e o carvão (ele vai

dizer: o vapor e o carvão– são as fontes de energia ); Segunda

Revolução Industrial: eletricidade. Terceira pergunta: "Quais são as

características das recomposições estruturais que acompanham o

aparecimento dos novos sistemas econômicos?". Ele vai responder

a essas questões afirmando que há uma descontinuidade, uma

descontinuidade histórica que não aparece ao olho nu, mas que

pode ser percebida quando você efetivamente faz uma análise das

condições de surgimento de uma nova forma econômica. Ele está

se opondo, é óbvio, a uma concepção marxista da leitura da trans-

formação econômica. Em Max, a forma nova está pressuposta pela

forma antiga; acontece que a forma antiga só pode pressupor estes

elementos, ela não tem como por estes elementos na existência. É

no momento em que a forma antiga não conseguem repor os seus

próprios pressupostos é que ela abre o campo para a forma nova

que estava contida nela. A forma nova vai fazer o que? Vai ter a

força para por o que na forma anterior estava só pressuposto. E

quando esta forma não tiver mais força para repor o seu pressupos-

to, ela vai a lugar a uma forma seguinte. O exemplo clássico, que é

dado por Marx, é a forma econômica do capitalismo ela está pres-

suposta lá no modo de produção feudal, mas o modo de produção

feudal não tem como por esta forma, por que? Para por esta forma

é preciso ter a separação do trabalhador e os meios de produção; o

trabalhador tem que estar desligado da terra, estar desligado da

corporação, não pode ter posse de nenhum instrumento de trabalho;

enquanto isso não acontecer, nada muda. Então, no modo de pro-

dução feudal não tem como por esta figura do trabalhador;...?... na

aula de hoje, eu disse a vocês, o famoso trabalhador livre. Só que

isto está pressuposto no modo de produção feudal porque estão

aparecendo em todos os elementos pelos quais o camponês vai

perder a terra ou vai ser expulso dela, o artesão vai perder a corpo-

ração, vai ser expulso dela e vai perder a posse instrumentos de

trabalho. É na hora em que isso efetivamente acontece, que o modo

de produção feudal acaba, e o modo de produção capitalista come-

ça. O modo de produção capitalista só se manterá enquanto ele

estiver força para repor o seu grande pressuposto: o pressuposto do

modo de produção capitalista é a separação entre a propriedade

privada dos meios sociais de produção e as forças produtivas.

Enquanto o capitalismo for capaz de fazer essa reposição, portanto

foi capaz de repor esta divisão, que é o constitutivo dele, ele se

manterá. Quando ele não tiver mais força para repor os seus pres-

supostos, os seus pressupostos serão postos pela forma seguinte. A

forma seguinte vai fazer o quê? Vai destruir esta divisão. Esta

divisão estava pressuposta. Porque ela estava pressuposta? Ela

estava pressuposta porque como o capitalismo não conseguia mais

repor a divisão, significa que ela estava no fim. Ela estava acaban-

do. E é este final, isto que está acabando, que a revolução comunis-

ta vai efetivar que vai, então, colocar como... vai ser aquilo que vai

ser posto pela revolução, era o que estava só pressuposto pelo

capitalismo. Então, há pelo menos quatro maneiras de escrever a

história de Max. Pelo menos quatro. Cada uma delas, diferente da

outra, em contradição com a outra. É isto que caracteriza um gran-

de pensador. Se um grande pensador pensar tudo linearmente, ele

não é um grande pensador, ele é igual a nós. Então, Max tem, pelo

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75

menos, quatro formulações de como pensar a história. Uma delas é

esta de que a forma seguinte está pressuposta na fórmula anterior.

E ela surge quando a forma anterior não tiver mais força para

impor seus próprios pressupostos. Continuidade, portanto, e o

movimento da história é posição,reposição, impossibilidade da

reposição, a nova posição, em que é o esquema hegeliano, dialético

clássico.

Este é o autor aqui que eu estou mencionando chamado Ca-

ron afirma: "É a descontinuidade..." Nós não vamos passar de uma

forma econômica para outra, de uma formação econômica para

outra, de maneira contínua, como nesta explicação de que o poste-

rior está posto na forma anterior. Então, o que ele vai dizer? Como

posso ler a descontinuidade? É isto que me interessa aqui. Ele vai

dizer que: "A descontinuidade vai aparecer, em primeiro lugar,

pelo crescimento brutal e considerável das taxas de investimento na

indústria, rompendo os antigos ritos de crescimento e com dados

estatísticos, agora, que mostram que esta alta das taxas de investi-

mento foi lenta, progressiva e monumental, que os exames dos

dados técnicos mostram, também, que há um conjunto de procedi-

mentos técnicos, que vem desde o final do século XVIII, que vão

produzir uma deformação estrutural na economia anterior até che-

gar a sua forma moderna, de tal modo que o sistema vai resultar em

um difícil processo de adaptação a esta nova forma". Ele diz: nós

podemos usar vários exemplos do fato de que a passagem de uma

forma para outra é lenta, é demorada, mas quando você passa de

uma para outra, o que você tem que é uma diferença; a nova forma

não estava preparada, pressuposta pela anterior, ela é outra coisa;

há uma ruptura, a nova forma rompe com a forma anterior. E os

dois exemplos que ele vai dar são: o primeiro é o que significa usar

carvão como fonte de energia e o segundo, que ele considera ainda

mais importante, é a máquina a vapor. Então, os dois grandes

elementos ligados ao modo como se dá a exploração das fontes de

energia, são para este autor uma prova, uma evidência, da ruptura.

Não é só que você substituiu a força humana e a força animal por

uma outraforça motora; é que a nova força motora, ela própria

exige uma exploração técnica; você tem que trabalhar o carvão

para que ele possa ser uma fonte de energia que você tem que

trabalhar a fonte hidráulica e água para que o vapor possa ser uma

fonte de energia. Então, o que ele diz é: qual é a ruptura? A ruptura

está no fato de que não se passou apenas da força humana e da

força animal para uma força aparentemente natural maior, mas o

que se tem é que fazer uma intervenção na natureza para que isso

que a natureza produz seja uma fonte de energia. É um modo,

portanto, de operar com carvão e o modo de operar com o vapor ou

com a água que transforma isso em fonte de energia. Portanto, eu

tenho de ter uma ruptura tecnológica, era uma outra maneira de

operar tecnologicamente com carvão ou com o valor, que vai ex-

plicar porque que há uma Primeira Revolução Industrial. E porque

a Primeira Revolução Industrial é aquela que se baseia no carvão

que no vapor. A segunda, vai se basear na eletricidade, etc., etc.

Eu só mencionei isso, porque agora nós fomos ao texto de

Marx que vai demolir essa suposição de que o carvão e a máquina

a vapor o surgimento da grande indústria...........

Eu vou começar lendo o texto de Marx. O texto é longo,

mas era um texto que se a gente cortar ou apenas parafrasear é

desses textos que você destrói. É um pouco como a abertura da

terceira meditação cartesiana. Se você fizer uma glosa da abertura

da terceira meditação, você acaba com ela. Do mesmo modo que se

você fizera uma glosa do apêndice da parte um da Ética de Spino-

za... não é legal. Há textos que tem de ser eles mesmos. Depois que

você os têm, aí sim, que se comenta... e é isto que eu vou fazer

aqui. Eu vou apresentar; evidentemente, não é o texto inteiro; o

capítulo XV é aquele momento em absolutamente glorioso da

descrição do maquinismo, e depois eu vou fazer alguns comentá-

rios de como Marx interpreta o advento do maquinismo. O que

significou a transformação da técnica de maquinismo, que a foi o

objeto da aula de hoje.

O texto que eu vou ler está no tomo primeiro do Capital,

no capítulo XV. O que vou citar tirei da minha edição de Marx, que

não era nem a edição alemã, nem a francesa, nem a brasileira; é a

reedição do Fundo De Cultura. Eu estou dizendo isso é porque eu

vou dizer, para os que têm esta edição, ou que consultem esta

edição, é o texto que vai... está no volume 1, que vai da página 305

à página 312, da edição que eu estou citando.

Eu começo: "Os matemáticos e os mecânicos definem a

ferramenta como uma máquina simples, e a máquina como uma

ferramenta composta. Os matemáticos e os mecânicos não enxer-

gam diferenças essenciais entre ambas que dão o nome de máquina

até para às potências mais simples, como a alavanca, o plano incli-

nado, o parafuso, etc. (o que foi o que nós vimos desde o começo: a

máquina se aplicando, inicialmente, a estes objetos simples). É

certo que toda máquina se compõe dessas potências simples (ou

destas forças simples), qualquer que seja a forma em que se disfar-

cem ou se combinem. Entretanto, do ponto de vista econômico,

esta definição é inaceitável". Os matemáticos e os mecânicos di-

zem que a ferramenta que era uma máquina simples de que é uma

máquina é uma ferramenta composta. Marx vai dizer: do ponto de

vista da percepção imediata, é isto aí mesmo! Não há dúvida que e

isto mesmo. Esta percepção imediata, entretanto, que identifica a

ferramenta e a máquina, não é válida do ponto de vista econômico.

Portanto, do ponto de vista da análise da economia, considerar que

a ferramenta é uma máquina simples (ou que a máquina simples é

uma ferramenta) e que a máquina é uma ferramenta composta, não

vale. Economicamente, isto não funciona. Entretanto, do ponto de

vista econômico esta definição é inaceitável "... pois não leva em

conta o elemento histórico.

Aula é interrompida para entrada de alunos de curso do en-

sino médio que foram convidados a assistir aula.

01: 43:00

Eu vou explicar, então, o que nós estamos fazendo aqui ho-

je.

O professor de vocês devem ter contado que este em curso

é um recurso que está trabalhando com a ideia de técnica. As várias

maneiras pelas quais, na história da filosofia e na história da ciên-

cia a técnica foi pensada. É a aula de hoje... Bem, nós fizemos um

Page 76: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

76

percurso que começou lá na Grécia, passou pela Grécia, por Roma,

depois fizemos alguma menção à Idade Média ; depois, nós che-

gamos na Renascença (nos artistas que nos filósofos do renasci-

mento); depois, nós chegamos a um momento muito importante na

história da técnica e da formulação da técnica, que era o pensamen-

to moderno no século XVII, quando há uma passagem da técnica

para a tecnologia. Qual é diferença entre a técnica e tecnologia? A

técnica é uma maneira pela qual os seres humanos dispõem de

certos instrumentos, realizam certas ações, pelas quais eles estabe-

lecem uma relação com a natureza que possa servir aos interesses

da vida humana. Então, a técnica é esta maneira de intervir na

natureza usando alguns instrumentos que permitam uma melhoria,

o uma segurança, na vida humana; por exemplo: o arado (é um

objeto técnico), a alavanca (é um objeto técnico), a polia (é um

objeto técnico), um barco (é um objeto técnico). A característica do

objeto técnico é que ele está ligado diretamente a uma certa serven-

tia e, em geral, um artesão pode fabricá-la para o uso de outras

pessoas. Mas, às vezes, é o próprio usuário que vai fazer. Você

pode ter um camponês que corta árvore, faz o arado, corta o coro

na pele de algum animal, faz correias, pega o seu boi ou o seu

cavalo, a mula, o jumento, etc., prende lá... e ara a terra. Então, o

objeto técnico foi mais ou menos isto.

O objeto tecnológico é diferente do objeto técnico porque

ele era um objeto para a cuja fabricação é necessário um conheci-

mento teórico, é necessário um conhecimento científico. O objeto

tecnológico era um objeto no qual está inserido um saber científico

que permite fabricá-la. Os três exemplos clássicos desses objetos

tecnológicos são: o telescópio – porque, a uma coisa é o artesão

fabricar óculos para quem é míope, ou fabricar óculos para quem

tem hipermetropia (pole a lente de tal modo que ajuda a olhar); o

telescópio não é um objeto para ajudar a olhar, o telescópio terra

objeto que depende de uma ciência chamada dióptrica que deter-

mina o modo pelo qual as lentes operam, a relação entre as lentes

que a luz; exige, portanto, um conhecimento da física, das teorias

físicas sobre a luz, sobre a reflexão e a refração da luz, a relação

entre as lentes e o modo de reflexão refração da luz, e assim por

diante... exigem cálculos, exige uma série de coisas para que você

faça as lentes de tal modo que você construa um objeto que têm

uma finalidade científica, que é conhecer o movimento dos astros

que a natureza dos aços, isto é, conhecer o céu; eu vou obter um

conhecimento científico porque eu coloquei o conhecimento cientí-

fico na fabricação de um objeto que me permite fazer isto. A mes-

ma coisa é o microscópio. É o exemplo clássico é um tipo de reló-

gio, um relógio de precisão, chamado cronômetro. Então, na técni-

ca simples, você tem o relógio de sol; você tem lá aquelas duas

varetas e pelo modo como a sombra se espalha pelo no lugar onde

o objeto está colocado, você sabe que hora do dia é. Depois, você

tem o relógio mesmo, carrilhão, com suas engrenagens. Um cro-

nômetro não é isto. Um cronômetro era um objeto de precisão para

estudar o tempo que marcar a distância de latitudes e longitudes. O

que os modernos fizeram com o surgimento da tecnologia foi de

fazer surgir o objeto técnico que tem ciência nele, o conhecimento

científico. Ele permite avanços de conhecimento científico. Ele

nasce do uso da ciência e ele promove o desenvolvimento da ciên-

cia.

O terceiro momento que nós estamos vendo na aula de ho-

je é o instante no qual o objeto técnico volta para aquilo que ele era

no começo, isto é, o objeto ligado ao trabalho, a maneira como os

homens se relacionam com a natureza por meio do trabalho; só que

de seu objeto técnico não é mais um objeto simples (um arado ou

uma alavanca). Este objeto se tornou um objeto extremamente

complicado, um objeto complexo, um objeto respeito do qual vai

haver ciência, chamada "Ciênciadas máquinas". O objeto técnico se

transformou numa máquina. E é a máquina é um objeto complexo.

Vão surgir teorias a respeito das máquinas, portanto, ciência das

máquinas; vai surgir uma disciplina nova chamada mecânica indus-

trial e vai surgir um tipo novo de escola, de universidade, de facul-

dade, onde se vão estudar as máquinas, como se as constrói, se

projeta, se programa, se explica o que é uma máquina, os diferentes

tipos de máquina, a relação entre a máquina e o trabalho, a relação

entre a máquina, o trabalho e a natureza, a relação entre a máquina,

trabalho, o ser humano, e assim por diante.... Estas escolas novas

que surgem com o objeto de fazer uma ciência das máquinas e de

introduzir um conhecimento novo chamado de mecânica industrial,

essas escolas são as "Escolas de engenharia". A USP tem uma que

se chama, não por acaso, "Escola politécnica". É transformação da

técnica emo objeto de ciência; ele esta técnica transformado em

objeto de ciência é a técnica cujo objeto são as máquinas; portanto,

o aquilo que é necessário na indústria.

Então, o que nós estamos vendo na aula de hoje é o que

acontece no final do século XVIII e no correr do século XIX e XX

com o aparecimento da grande indústria. E o objeto técnico da

grande indústria é a máquina. E é a maneira pela qual as escolas de

engenharia nasceram a serviço dos empresários capitalistas. As

escolas de engenharia não nasceram a serviço dos trabalhadores

industriais; elas nasceram a serviço dos proprietários privados dos

meios sociais de produção, isto é, os capitalistas. São eles que

precisam das teorias e dos conhecimentos sobre as máquinas nas

quais eles vão colocar os trabalhadores.

Nós esmiuçamos da primeira parte da aula o que é uma

máquina, porque a máquina é chamada de trabalho, e assim por

diante.... O que a segunda parte da aula e fazer (eu estava come-

çando quando vocês chegaram) é tomar um texto considerado um

texto exemplar, um dos mais importantes na história do entendi-

mento do que seja a grande indústria, do que seja a Revolução

Industrial e do que seja uma máquina, que era um texto de Marx,

no Capital. Um capítulo que se chama A Grande Indústria ou A

Revolução Industrial. O que eu vou fazer é ler uns trechos do capí-

tulo XV do volume 1 do capital. Eu vou ler, vou fazer algumas

observações, e no final desta leitura, de um texto que é razoavel-

mente longo, eu vou fazer alguns comentários, eu vou interpretar

alguns pontos deste texto. Está claro? Dá para acompanhar? Então

vamos lá.

Deixei explicar para os alunos que estão aqui. É um con-

junto de alunos do Ensino Médio que vieram com seu professor de

filosofia, que é ameno deste curso de que vieram para ouvir uma

aula de graduação de filosofia.

Bem, eu vou é começar a leitura.

Page 77: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

77

"Os matemáticos e os mecânicos definem a ferramenta

como uma máquina simples e a máquina como uma ferramenta

composta. Os matemáticos dos mecânicos não enxergam diferenças

essenciais entre ambas. E dão nome de máquinas até para as potên-

cias mecânicas mais simples, como a alavanca, o plano inclinado, o

parafuso, etc. É certo que toda máquina se compõe daquelas potên-

cias simples. Qualquer que seja a forma em que elas se disfarcem e

se combinem. Entretanto, do ponto de vista econômico, esta defini-

ção é inaceitável, pois não leve em conta o elemento histórico".

Então, o ponto inicial do texto de Marx é tradicional... que os

engenheiros (é disso que ele está falando, quando ele fala dos

matemáticos e dos mecânicos, ele está falando dos engenheiros)

não vêem nenhuma diferença entre o que eles chamam de ferra-

menta e o que eles chamam de máquina. Eles chamam a ferramenta

que uma máquina simples (por exemplo, a alavanca) e chamam

uma máquina de ferramenta composta (por exemplo, o relógio que

tem um monte de coisas lá dentro – e ela é composta)". Então, diz

Marx, os engenheiros, os mecânicos, os matemáticos, não veem

nenhuma diferença de natureza, nenhuma diferença de essência,

entre a ferramenta e a máquina. Mas eles estão enganados, porque

do ponto de vista de nossa percepção dos objetos parece óbvio que

eu possa chamar uma ferramenta de máquina simples e uma má-

quina de ferramenta composta – é óbvio, eu estou vendo, que uma

só tem uma coisa e outra tem várias; embora, isto pareça óbvio do

ponto de vista da nossa percepção direta, isto é incorreto. Porque

esta "indistinção" entre a ferramenta e a máquina não leve em

conta a história. Vamos ver o que Marx vai explicar.

"Outras vezes, se pretende encontrar a diferença entre fer-

ramenta e a máquina dizendo que (agora é a crítica do texto que

acabei de ler para vocês de Caron) a força motriz da ferramenta é o

homem (é o homem que pega a alavanca, que uso parafuso,que

precisa da polia, é ele que a força motriz), enquanto que a máquina

se move impulsionada por uma força natural distinta da força

humana (a força animal, a água, o vento – você tem o moinho de

vento, você tem o salto d'água, você tem a mó do moinho gerada

por animais, e assim por diante). Então, se diria: "Não, a ferramen-

ta e a máquina são diferentes, a diferença está no fato de que a

força que permite usar uma ferramenta é a força humana, enquanto

que a força que move uma máquina não humana. São os animais

ou a própria natureza (água, vento, etc.)". Marx vai dizer: esta

diferença é tão inadequada quando a diferença anterior; anterior-

mente havia uma indiferença entre máquina de ferramenta, agora,

se estabelece uma diferença, mas novamente, assim como aquela

"falta de diferença" era inadequada, esta maneira de fazer a dife-

rença, levando em conta qual é a fonte de energia (porque é isto o

que está sendo feito aqui), é inadequada. E acontece que, na histó-

ria da técnica ... Não foi por acaso que eu quis citar para vocês

Caron, mas eu citei vários autores no início da primeira aula, que

vão nessa direção, de estabelecer a diferença onde a diferença é

dada pela fonte de energia); então, que Marx está dizendo: a dife-

rença não passa por aí. Então, há diferença, mas não esta "da fonte

de energia".

"Toda maquinária, um pouco desenvolvida, se compõe de

três partes substancialmente distintas. O mecanismo de movimento,

o motor, o mecanismo de transmissão e a máquina-ferramenta ou a

máquina de trabalho. A máquina motriz (o mecanismo de movi-

mento) é a força propulsora de todo o mecanismo, a máquina mo-

triz pode engendrar a sua própria força motriz, como por exemplo é

o caso da máquina a vapor, a máquina elétrico-magnética, da má-

quina calórica, ou então ela pode receber o impulso de uma força

natural externa disposta para produzir este efeito, como uma roda

hidráulica do salto de água, a pá de um moinho de vento, etc". O

primeiro componente da máquina, o mecanismo motor (este é o

primeiro componente), e que pode vir da própria máquina ou de

uma fonte externa à máquina. O segundo é a transmissão. A má-

quina-transmissão, ou o componente transição, feito por meio de

correias, alavancas, rotas circulares, rodas de engrenagem, etc.,

regula o movimento, distribui o movimento, muda-lhe a forma, se

necessário, e o transmite à máquina-ferramenta. A máquina-

ferramenta é a última, a qual ainda não foi falada por ele.

"As duas primeiras partes do mecanismo (a máquina-

motor e a máquina-transmissão), só existem para comunicar à

terceira (a máquina-ferramenta) o movimento que a faz atacar o

objeto de trabalho e modificar sua forma. A máquina-ferramenta

não por acaso é por isso chamada máquina-trabalho". Vocês se

lembram que no percurso que nós fizemos até que era indiferente à

que aspectos da máquina era usado o termo trabalho. A máquina

era chamada de trabalho. Ela era chamada de trabalho mecânico. A

primeira coisa que Marx faz é retomar esta distinção esta colocada

aqui como o motor da transmissão da ferramenta, estava lá no

Carnot, lá no começo, lá nos primeiros engenheiros; nós vimos

isto. Mas o que é que Marx faz? Ele retoma esta tripartição para

modificar o significado desta tripartição. O que é o motor, o que é

transmissão e o que é ferramenta? É isto que interessa para ele.

Fazer essa distinção dos componentes da máquina, que é só essa

terceira parte que Marx dá o nome de trabalho. Para as outras

partes ele não dá o nome de trabalho; é esta que recebeu o nome de

trabalho; nós vamos ver por quê. As duas primeiras partes do me-

canismo, o motor e transmissão, só existem para comunicar a

terceira (máquina-ferramenta) o movimento que a faz a atacar o

objeto de trabalho, modificar a sua forma. A máquina-ferramenta,

não por acaso chamada máquina-trabalho, inaugura do século

XVIII a Revolução Industrial; portanto a Revolução Industrial não

começa nem com a máquina a vapor nem com o uso do carvão. O

que Marx está dizendo é: a Revolução Industrial não começa quan-

do tomam o motor ou a transmissão, que é o que a história da

técnica, a história do maquinismo, e a história da indústria fazem.

Em que hora começa a Revolução Industrial? Na hora em que eu

vou explorar o carvão ou na hora que surge a máquina a vapor...

Max diz: não! A Revolução Industrial surge quando o mecanismo

do motor e o mecanismo da transição estão a serviço do mecanis-

mo "ferramenta" ou estão a serviço mecanismo "trabalho".

"A máquina-ferramenta, não por acaso, chamada máqui-

na-trabalho, inaugura a Revolução Industrial. Ela serve de ponto

de partida toda vez que se trata de transformar um ofício ou a

manufatura em exploração mecânica".

Um outro trecho, que vou citar agora: "A partir do momen-

to em que o homem, invés de atuar diretamente com a ferramenta

sobre o objeto trabalhado, se limita a atuar como força motriz sobre

Page 78: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

78

uma máquina-ferramenta, a identificação da força motriz com o

músculo humano deixe de ser um fator obrigatório e pode ser

substituído pelo ar, pela água, pelo vapor, etc". Portanto, em que

momento eu introduzo seja o ar, seja o vento, seja o vapor, como

algo que é importante na Revolução Industrial? Não instante em

que eu suponho que graças a eles a Revolução Industrial começa,

mas no instante em que vejo que ação eles têm sobre a força huma-

na que operava sobre a máquina-ferramenta. Quando para operar a

máquina-ferramenta (a alavanca, o parafuso, o plano inclinado, a

polia...), quando para fazer a ferramenta funcionar, eu não preciso

da força humana, eu posso destruir a força humana por uma outra

força, como por exemplo o vapor: entrei e Revolução Industrial.

Não sei se vocês percebe onde vai a ênfase do Marx. A ênfase do

Marx vai.... Não é o que acontece com motor (portanto, com fonte

de energia), nem o que acontece com a transmissão movimento (a

composição interna da máquina); não é aí que está a Revolução

Industrial; a Revolução Industrial que está no que acontece com o

terceiro componente da máquina, que é ferramenta. Porque é ela

que tem ligação direta e imediata com força humana, é com ela

com que o trabalhador se relaciona. Portanto, o que Marx está

fazendo é... para entender a Revolução Industrial tem que ser pen-

sada a figura do trabalhador. O que se passa na máquina que altera

a figura do trabalhador: é isto que conta. Então, esta de composição

sutil que Marx está fazendo.

Agora vem o texto seguinte: "Uma máquina, da qual parte

a Revolução Industrial, é que substituiu o operário, que maneja

uma única ferramenta por um mecanismo que altera com uma

massa de ferramentas iguais, ou parecidas, ao mesmo tempo que

movidas por uma única força motriz, seja qual for a forma desta.

Nisto consiste a máquina com a qual nos encontramos aqui como

um elemento simples da produção maquinizada". O que a máquina,

na exposição de Marx? A máquina, a partir da qual a Revolução

Industrial acontece, é aquela máquina que substitui o operário, que

maneja uma ferramenta, por um mecanismo que o era simultanea-

mente com a massa de ferramentas de uma só vez. Então, a Revo-

lução Industrial ocorre no momento em que o operário é substituí-

do por um mecanismo. O operário que trabalha com uma ferramen-

ta é substituir por um mecanismo que trabalha com muitas ferra-

mentas ao mesmo tempo. Max vai dizer que a máquina e é isto,

máquina é este objeto que substituiu o operário.

"Ao se ampliar o volume da máquina de trabalho (que era a

ferramenta) e multiplicar-se o número de ferramentas com que ela

opera simultaneamente, torna-se necessário um mecanismo motor

mais potente e, por sua vez, este mecanismo para poder vencer e

dominar a sua própria existência e exige uma força motriz mais

potente do que a humana. À parte o fato do que o homem era um

instrumento muito imperfeito de produção, quando se trata de

conseguir movimentos uniformes e contínuos). O que Marx está

fazendo? Agora está invertendo a explicação tradicional sobre a

origem da Revolução Industrial. O que está dizendo? Ele está

dizendo: é porque vai haver a substituição do operário que maneja

uma máquina-ferramenta por um mecanismo que opera em simul-

tânea um grande conjunto de ferramentas que e é preciso uma força

motora maior. Ou seja, a maneira pela qual a máquina vai operar é

ela, enquanto ferramenta, que vai pedir a máquina a vapor. O que

Marx está dizendo é: a Revolução Industrial não começa com a

máquina a vapor. A máquina a vapor é uma consequênciada Revo-

lução Industrial. Da mesma maneira: a Revolução Industrial não

começa com o carvão; a exploração do carvão é uma consequência

da Revolução Industrial; porque, a Revolução Industrial se dá no

momento em que há uma revolução da máquina, em que muda o

que a máquina é. Por isso que é tão importante para Marx dizer:

tem que distinguir entre a máquina e a ferramentas. Por que eu

tenho que distinguir? Porque a ferramentas é aquela componente da

máquina da qual depende haver ou não haver Revolução Industrial;

da qual depende haver ou não haver a grande indústria. Então, se

eu identifico a máquina e a ferramenta, eu não tenho como explicar

o surgimento da Revolução Industrial; porque o elemento que vai

fazer a Revolução Industrial acontecer é justamente a mudança

ocorrida na ferramenta. Se eu não a distingo da máquina, eu não

posso explicar como revolução a Revolução Industrial acontece. O

uso do carvão como fonte de energia, o uso da máquina a vapor ou,

depois, o uso da eletricidade, o uso destes elementos: primeiro, não

definem o que uma máquina é; segundo, não são a causa da Revo-

lução Industrial; terceiro, são efeitos da Revolução Industrial. A

Revolução Industrial acontece quando eu substituto um operário

que maneja uma única ferramenta por para mecanismo que altera

com uma multiplicidade simultânea de ferramentas e que, por isso,

precisa de uma força motriz, de uma fonte de energia, maior, mais

forte. Portanto é a máquina que vai fazer esta exigência da nova

fonte de energia.

"Quando o homem apenas intervêm como simples força

motriz, isto é, quando sua antiga ferramentas deixou o posto para

uma máquina instrumental, nada mais se opõe a que o homem seja

substituído como força motriz pelas forças naturais". Uma vez

ocorrida primeira mudança, ocorrida a mudança do operário que

lida com uma ferramenta para um mecanismo opera com uma

pluralidade simultânea de ferramentas, força motriz humana se

torna desnecessária, portanto, nada impede que ela seja substituída

por qualquer outra força natural (o carvão, o vapor, a eletricidade).

O que está sendo descrito é o movimento pelo qual o homem, no

caso o trabalhador, vai se tornando dispensável para a máquina.

Nós vamos ver em que hora o trabalhador se torne indispensável,

mas, por enquanto, nós temos um movimento pelo qual é o traba-

lhador uma sendo perfeitamente dispensável para a máquina-

trabalho.

"Foi a segunda máquina a vapor de Watt, a chamada má-

quina dupla, a que introduziu o primeiro motor, cuja força motriz

se engendrava nele mesmo, alimentando-a com carvão e água e

cuja potência era controlável em um todo pelo homem. Uma má-

quina móvel, suscetível de ser utilizada na cidade e não apenas no

campo, como era o caso da roda hidráulica, que permitia concentrar

a produção nos centros humanos, ao invés dispersá-la pelo campo.

Uma máquina universal por suas possibilidades tecnológicas de

aplicação e relativamente pouco supeditada(?) em seu aspecto

geográfico à circunstância de ordem".

O que a máquina a vapor vai significar? Ela é usada, inici-

almente, para auxiliar nos trabalhos de mineração. Só depois você

percebe que ela tem uma aplicação muito mais ampla, muito mais

Page 79: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

79

poderosa, e muito mais interessante, que é a que vai ser pela grande

indústria. Mas ela é esta máquina formidável não só porque ela vai

ser o elemento motriz do conjunto das máquinas dentro da grande

fábrica; é porque ela pode operar com outros objetos técnicos fora

da fábrica. Por exemplo: o transporte público; você vai ter o trem –

vai surgir o trem. Não só você tem o barco a vapor funcionando, já

há também superando o navio à vela... você tem o barco a vapor,

você tem o trem; você tem lá dentro da fábrica e depois você vai ter

variações na forma de transporte e depois ela começa a entrar numa

série de coisas, sendo que, a primeiras experiências com a eletrici-

dade vão ser feitas a partir do impulso dado pela máquina a vapor.

É ela quem funciona para que a eletricidade opere. Mas ela só

aparece, ela só tem este papel, depois que o homem foi substituído

como força motriz. Antes disto ela não tem este papel.

Agora vem o texto seguinte (eu estou avisando que são

textos seguintes porque eu não estou lendo o capítulo inteiro):

"Depois de converter as ferramentas de instrumentos do organismo

humano tem instrumentos de um aparato mecânico (a máquina-

ferramenta) a máquina motriz reveste uma forma substantiva to-

talmente emancipada das travas (dos obstáculos) em que tropeça a

força humana. Com isso, a máquina-ferramenta que era uma má-

quina isolada se reduz a um simples elemento da produção à base

de maquinária. Agora, uma única máquina motriz pode acionar

muitas máquinas de trabalho ao mesmo tempo; e ao multiplicaram-

se as máquinas de trabalho, acionadas simultaneamente, cresce a

máquina motriz e se desenvolve o mecanismo de transmissão,

convertendo-se em um aparelho volumoso". O que Marx está agora

fazendo é estar iniciando a descrição de uma máquina, de uma

máquina industrial.

"Abolida a figura humana e introduzida a ferramenta com-

plexa (a máquina-ferramenta complexa) que exige, então, agora

um mecanismo motor fortíssimo, no caso, o vapor; feito isto, ago-

ra, este mecanismo (do motor) vai se espalhar como mecanismo de

transmissão para que todas estas múltiplas ferramentas (ou estas

múltiplas máquinas-trabalho) operem simultânea ou sucessivamen-

te".

Então, o que se tem agora é a figura da máquina, propria-

mente dita. Eu não sei se vocês percebem... vocês lembram na hora

em que eu li que a máquina era descrita como um organismo, com

seus órgãos, etc.? Qual é diferença entre a descrição feita por Car-

not, a descrição feita pelos engenheiros, esta, proposta por Caron o

que Marx está dizendo. As outras são uma espécie de fotografia

instantânea máquina; é como se a máquina, tudo que ela é e tudo

que ela tem, existisse de uma vez só, num dado momento. O que

Marx está fazendo? Marx está narrando a história do surgimento da

máquina complexa; que estão mostrando cada elemento que foi

necessário, que fosse modificado, eliminado, introduzido, operado

assim, operado assado, para que a máquina surgisse. Ou seja, o mar

que se está narrando para nós o advento da máquina, o surgimento

dela. Nós temos aqui uma história, uma história de como a máqui-

na surgiu e não uma fotografia da máquina pronta, como se ela

tivesse existido assim, desde sempre; uma espécie de... vamos

dizer: do mesmo modo que a imagem teológica do mundo é a "

Deus disse: faça-se, e se fez...faça-se, e se fez...faça-se, e se fez... "

e o mundo ficou prontinho, em sete dias você tem o universo...

prontinho. Assim também, Carnot, Caron, os engenheiros... todo o

mundo descreve a máquina desta maneira: ficou pronta em sete

dias. E quanto ao Marx, este que está escrevendo um longo proces-

so de transformação do interior doprocesso de trabalho; e é a toda

essa transformação no interior do processo de trabalho que vai se

exprimir o surgimento da máquina, nesta complexidade que ela

tem.

"Ao multiplicarem-se as máquinas de trabalho acionadas

simultaneamente em cresce a máquina motriz (no caso, a máquina

a vapor) e se desenvolve o mecanismo de transmissão, converten-

do-se em um aparelho volumoso. Ao chegar neste ponto, temos que

distinguir duas coisas: a cooperação de muitas máquinas semelhan-

tes e no sistema da maquinaria. No primeiro caso (da cooperação

de máquinas semelhantes), todo o trabalho se executa pela mesma

máquina, ela que realiza as diversas operações que o operário

manual executava como a sua ferramenta. As que realizava, por

exemplo, o tecedor no seu tear ou as que levavam a cabo os vários

operários manuais com diversas ferramentas, que fosse indepen-

dentemente ou por turno, como membros de uma manufatura".

Então, o que caracteriza a manufatura? O que caracteriza a manufa-

tura era o tipo de máquina e de cooperação que a máquina realiza.

Então, não é que na manufatura não havia máquina, o que havia era

uma máquina diferente da máquina da grande indústria. A máquina

da manufatura é na verdade um conjunto, uma corporação de má-

quinas semelhantes que a juntas vão realizar uma única tarefa. É

por isso que o exemplo que Marx dá é o da fiação e da tecelagem.

Você tem lá um conjunto de máquinas operando para produzir o fio

ou para produzir tecido. Um exemplo também simples, que Marx

não dá a mas nós podemos tomar, é a máquina de costura. A má-

quina de costura é um conjunto de máquinas semelhantes que você

opera para obter um único resultado, um único efeito. Você vai

obter uma coisa costurada, é isso que ela vai fazer, não mais do que

isto. Então, diz Max: uma coisa é um sistema de máquinas seme-

lhantes operando em conjunto para produzir um efeito; isto é o que

se passa na manufatura. Não sei se vocês se lembram como Marx

descreve o aparecimento da manufatura. Você tem lá, antes da

manufatura, os artesãos; cada qual no seu ofício; e o que caracteri-

za o artesão é que ele faz o objeto por inteiro. Um carpinteiro corta

a madeira, corta o formato do banco, ele prende as partes do banco,

ele lixa as partes do banco, ele e encera o banco, ele faz o banco

inteirinho; ele faz um armário inteirinho; ele faz um tecido que

inteirinho, ele tece o fio, ele tinge o fio, que faz o tecido por inteiro.

Ou seja, um artesão é aquele que é capaz de fazer um objeto do

começo ao fim. É isso que ao manufatura vai destruir. A manufatu-

ra vai colocar os diferentes artesãos juntos, no mesmo espaço, ela

vai criar (daqui a pouco vou falar disso um pouco mais) a primeira

figura do chamado trabalhador coletivo. Então, eles estão todos no

mesmo espaço, trabalhando em conjunto, só que agora cada um faz

um pedaço do objeto. O caso mais fantástico na descrição de Marx,

da manufatura, o caso mais duro de doloroso, é o da fabricação do

alfinete. Nesta fabricação carro um que puxa o metal, um outro que

corta, um outro afina, um outro faça a pontinha, um outro gruda a

pontinha, um outro lixa tudo isso, um outro põe na caixinha. Agora

são centenas de pessoas fazendo isso. É realmente uma coisa mons-

Page 80: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

80

truosa, porque... o que vai acontecer? O cara que sabe puxar o fio,

agora, só sabe puxar o fio de metal; ele não sabe fazer o alfinete

inteiro mais. Então, ele foi espoliado de tudo (nós vimos no come-

ço da aula), e agora, ele está sendo espoliado do que era mais pre-

cioso que ele tinha: ele está sendo espoliados do saber, que ele

tinha; estão tirando dele o saber que ele possuía de reduzindo saber

que ele a uma ação puramente automática de fazer um gesto: um

estica, outro gruda a cabecinha do alfinete, outro, lixa isso.... É isto

que é o caminho da alienação. O que é a alienação? A alienação é:

o trabalhador não se reconhece no produto do trabalho dele. A

palavra "alienação" vem do uma palavra latina: alienus, que quer

dizer "outro do que". Na medicina, esta palavra era usada para falar

alguém que se tornava "outro do que ele próprio", de alguém que

perdia sua identidade e se tornava um "outro", isto é, louco, um

alienado. O alienado é aquele que se torna outro do que lhe é, perde

na sua identidade. Marx vai usar a alienação no sentido em que é

usada por Feuerbach; já era usada por Hegel, mas Marx vai dar um

sentido preciso a isto. No processo de trabalho, o trabalhador pro-

duz o produto, só que ao invés de ele considerar que o produto é

uma expressão objetivada daquilo que ele pensou, daquilo que ele

quis ter dos gestos que ele realizou, desde o produto ser, portanto, a

expressão objetiva da subjetividade do trabalhador, daquilo que ele

pensou, quis, fez, etc., daquilo que ele realizou, desde o produto

ser, portanto... o trabalhador fora... é ele que está lá, porque aquilo

é ele, foi ele que realizou. É isto que se perde, agora. Quando você

tem um cara que só faz a cabecinha do alfinete, que só faz puxar o

fiozinho de mental; como é que alguém pode se identificar com

isso? E dizer: isto é obra "minha". Então, o que você tem é "a

alienação do trabalho". Ou seja, o trabalhador não se reconhece no

produto. Porque ele não é o produtor completo, total, do produto. E

isso vai se agravar, a cada vez mais; na hora em que é para se fazer

[o produto] de tal jeito, em tanto tempo, tal quantidade; ou seja, no

instante que o trabalhador for espoliado do seu saber, do tempo...

espoliado de tudo! E ele simplesmente obedece às ordens da fabri-

cação. Que Marx está dizendo aqui é que: é diferente a situação

quando um conjunto de máquinas semelhantes executa uma mesma

tarefa, que seriam tarefas que um único operário realizaria – agora,

são vários que vão realizar, porque cada um deles vai operar uma

das máquinas – ele diz: isto é diferente do maquinismo da grande

indústria. Esta situação, que é própria da manufatura, é aquela na

qual... eu releio: "A máquina realiza diversas operações que o

operário manual executavam com a sua ferramenta, como por

exemplo as que realizava o tecedor com o seu tear ou a que levava

a cabo os diversos operários manuais, com diversas ferramentas,

quer independentemente, quer por turno, como membros de uma

manufatura". Agora é diferente. Como é? "Hoje, uma máquina de

fazer executa todas as tarefas. Uma única máquina, trabalhando

com diversas ferramentas combinadas, executa a todo o processo

que a manufatura se descompunha em várias fases graduais. Além

disso, agora, aqui na grande indústria, existe uma unidade técnica,

visto que, todas estas máquinas uniformes de trabalho recebem

simultânea e homogeneamente o seu impulso de um único motor

comum por meio de um mecanismo de transmissão, que, em parte,

é também comum a todas elas. E do qual partem correios que

transmissão especiais para cada máquina. De assim como muitas

ferramentas formam os órgãos de uma única máquina de trabalho

(Marx que está recuperando a descrição organicista que a que nós

vimos na primeira parte da aula), agora, todas estas máquinas de

trabalho funcionam como tantos outros órgãos harmônicos do

mesmo mecanismo motor. Mas, para que exista um verdadeiro

sistema de maquinaria que não uma série de máquinas e indepen-

dentes, é necessário que o objeto trabalhado percorra diversos

processos parciais articulados entre si, como outras tantas etapas

que executados por uma cadeia de máquinas diferentes, porém

relacionadas umas com as outras de que se complemento mutua-

mente". Não vamos esquecer: Marx está fazendo uma descrição

muito boa antes de ter aparecido aquilo que vai aparecer no come-

ço do século XX, com o fordismo, que é a linha de montagem.

Quando nós chegamos na fase da linha de montagem, aí, o desastre

já está... aí já "dançamos". Porque, a linha de montagem... ela sim...

a alienação levada ao seu máximo. Na verdade, é a linha de monta-

gem que está no filme do Chaplin, Os Tempos Modernos... aquela

loucura ... até ele ser devorado pela máquina. Mas o que já Marx

está descrevendo é a (só ele é capaz de perceber isso) percepção do

que a grande indústria está fazendo. Ou seja, já era a descrição da

linha de montagem antes de ela ter sido inventada por Ford. É isto

que está escrevendo. Porque o que ele está descrevendo é a maneira

pela qual a máquina vai impor a distribuição do espaço, o uso do

tempo, e as operações do corpo operário. É isso que ele está de

escrevendo. Quer dizer, você tem uma inversão do processo que

nós viemos até aqui; até que nós vimos o ser humano comandar a

ferramenta. Tanto que vocês se lembram quando da antiguidade e

na Idade Média , mesmo na Renascença, se têm o repúdio pelo o

autômato. E quando, entre os modernos, o autômato está lá, enfei-

tando os jardins dos reis, é que este autômato indica o instante no

qual o homem não tem nenhum controle sobre o objeto técnico.

Nenhum! O objeto técnico vai operar o conta própria. Mas isso não

seria grave; seria bom você ter um monte de objetos que operam

por conta própria– seria ótimo, mesmo para Asimov. Seria ótimo!

O que acontece é que estes objetos não vão funcionar por conta

própria sem primeiro submeter e dominar o espírito e o corpo do

ser humano que vai realizar um trabalho. Ele é isto que Marx está

escrevendo. Nós fomos ter um espaço predeterminado pela máqui-

na, depois, um tempo de operação, determinado pela máquina, um

conjunto de gestos que vão ser determinados pela máquina. Portan-

to, máquina determina: espaço, tempo, operações corporais, gesti-

culação corporal, corpo de espírito. É isso! A maquinária é isso!

Eu repito: "Mas, para que exista um verdadeiro sistema de

maquinária, não uma série de máquinas independentes, é necessá-

rio que o objeto trabalhado percorra diversos processos parciais

articulados entre si como outras tantas etapas de executados por

uma cadeia de máquinas diferentes, mas relacionadas umas com as

outras e que se complementam mutuamente. Aqui, voltamos a nos

encontrar com aquela cooperação baseada na divisão do trabalho

que era característica da manufatura, mas agora, por combinação,

não de diferentes trabalhos e sim, de diferentes máquinas parciais.

As ferramentas específicas dos diversos operários especializados

converte, agora, em ferramentas de outras máquinas específicas de

trabalho, cada uma das quais constituem um órgão especial criado

para uma função especial dentro do sistema do mecanismo instru-

mental combinado". Então, lembram-se, órgãos receptores, órgãos

Page 81: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

81

controladores, órgãos suportadores... todo aquele conjunto de

órgãos que definem a máquina são retomados aqui por Max para

dizer: é o corpo do operário que é completamente substituído pelo

corpo da máquina. É isto que está acontecendo.

Texto seguinte: "Na manufatura, os operários, isoladamen-

te ou em grupos, têm que executar cada sucesso parcial específico

com as suas ferramentas. E se o operário é assimilado pelo proces-

so de produção, é porque é um processo de produção, primeiro,

teve de se adaptar ao o operário. Na produção, com base na maqui-

naria, desaparece o princípio subjetivo da divisão do trabalho.

Aqui, o processo total se converte num processo o objetivo, é um

processo que se examina por si, se analisa por si, se realiza por si,

em todas as etapas e fases que o integram. O problema de executar

cada um dos processos parciais e de articular esses diversos proces-

sos parciais num todo é resolvido pela aplicação técnica da mecâ-

nica, da química, etc., para o qual, como é lógico, as ideias teóricas

tem que ser necessariamente corrigidas e completadas em grande

escala pela experiência prática acumulada. A máquina de trabalho

combinada que agora orgânico de diversas máquinas e grupos de

máquinas é tanto mais perfeita quanto mais contínuos o seu proces-

so total, isto é, quanto menores são as interrupções que se deslizam

no trânsito da passagem da matéria-prima, desde a primeira fase,

até a última. E, portanto, o processo é um tanto mais perfeito quan-

to menor a intervenção da mão humana no processo. E, quanto

maior o mecanismo que vai da fase inicial até a fase final, o siste-

ma de maquinaria, quer se baseie nas simples operação de máqui-

nas (de máquinas de trabalhos de um mesmo tipo, como por exem-

plo nas fábricas têxteis) ou na combinação de máquinas diferentes,

como nas fábricas do fio, constitui, por si, sempre e quando esteja

impulsionada por um motor que não receba a força de outra fonte

motriz consiste num grande autômato. Tão logo, como a máquina

pode executar, sem a ajuda do ser humano, todos os movimentos

necessários para elaborar matéria-prima, ainda que o homem a

vigie e intervenha de vez em quando temos um sistema automático

de maquinaria suscetível, como é lógico, de constante aperfeiçoa-

mento nos seus detalhes. Como sistema orgânico de máquinas,

movidas por meio de um mecanismo de transmissão, impulsionado

por um autômato central, a grande indústria adquire aqui a sua

fisionomia mais perfeita. A máquina simples é substituída por um

monstro mecânico, cujo corpo enche a fábrica inteira e cuja força

diabólica, que antes se ocultava na marcha rítmica, causada, quase

solene, dos seus membros gigantescos, desborda agora num torve-

linho fabril, febril, louco. Este mecanismo enlouquecido dos seus

inumeráveis órgãos de trabalho". É esta que eu considero uma das

descrições mais gigantescas, mais perfeitas, do que seja a máquina

moderna. Não criatura caso que Marx se apropria da discrição que

estava construída pelos engenheiros, de que para entender a máqui-

na, você deve ser como um anatomistas e como o um fisiologista;

decompor em todas as suas partes, entender a estrutura, depois,

recompor pelas suas funções de entender a máquina como um

conjunto regulado de órgãos. Era esta a proposta. E a descrição dos

vários órgãos. Marx diz: é isto mesmo! E este corpo que nós temos

era um monstro: a máquina é um corpo monstruoso. E, mais do que

monstruoso, ela é um organismo completamente enlouquecido;

porque, a menos que você esteja de fora, com todos os controles, e

diga: "Está fazendo isto porque isto, está fazendo isso por isso, está

fazendo aquilo por aquilo", se não for assim... e aí a máquina vai

errar, vai parar, vai quebrar... vai ter todos os problemas que ela vai

ter que ter; mas, caso contrário, se você entra na fábrica e vê aquilo

em funcionamento.... Eu não sei se vocês já tiveram a oportunidade

de entrar em uma fábrica e ver aquilo na fábrica... é louco! É um

"treco" completamente louco, não faz sentido. Agora, vocês imagi-

nem isto numa fábrica do século XIX, escura, enorme, um barulho

alucinado, uma poeira fora do comum, ou seja, o que há de terrível

está aí. E é neste lugar, terrível, que se tem este corpo gigantesco,

febril e enlouquecido funcionando. Funcionando rigorosamente a

todo vapor. É assim que ela está funcionando.

O que me interessa... eu quero destacar deste longo texto

alguns pontos que eu acho que são importantes com relação ao

nosso curso. Por que este texto de Marx é tão importante em um

curso sobre a técnica.

Primeiro ponto, a ideia central deste trecho é a de que a

máquina deixa de ser um utensílio ou instrumento para se tornar

capaz de produzir novas máquinas. E abrindo, portanto, o campo

para a etapa seguinte, que vai ser o automatismo, que nós vamos

estudar na próxima aula. O que nós temos aqui? Nós temos uma

história imanente da técnica, simultânea à história econômica e

social que determina a técnica. De tal maneira que é pela economia

e pelo social que a máquina se torna inteligível, mas ao mesmo

tempo os características da máquina vão explicar como é o univer-

so econômico e social. O que Marx nos faz entender a sociedade e

economia no meio da descrição da máquina, como processo de

trabalho, e depois, uma descrição da máquina tal que ela só se torna

compreensível se eu compreender a determinação econômica e

social dela. O que Marx faz é inseparável: eu só posso entender

uma técnica se eu entender as condições econômicas e sociais que

a produzem. Ao mesmo tempo, esta técnica ilumina a sociedade e a

economia que a produziu. Eu posso entender melhor essa economia

que esta sociedade graças aos objetos técnicos que ela possui.

Então, é um movimento imanente em que a história econômico-

social que esclarece a história da técnica e a história da técnica

esclarece as determinações, as características, próprias daquela

história social e econômica. Este é o primeiro aspecto importante

deste texto, que, na verdade, é uma característica do modo como

Marx pensa. Mas que aparece com muita clareza neste texto. Ou

seja, o que Marx faz? Marx narra um movimento pelo qual a má-

quina (e é por isso que ele insiste em distinguir máquinas e ferra-

menta, por isto que faz isso) se liberta, se separa, do modelo do ser

vivo, do organismo humano, para adquirir a sua própria vida, para

adquirir sua própria forma, seu próprio modo de funcionamento; de

tal modo que ela é aquilo que a sua estrutura de funcionamento

exige que ela seja. É como se Marx dissesse: questões técnicas que

exigem soluções técnicas e criam novas questões técnicas. Eu

posso a entender, de maneira imanente, as questões técnicas susci-

tando as suas próprias soluções e suas novas questões; esta é a

primeira coisa que ele faz; é por isso que foi tão importante dizer:

máquina e ferramenta não é a mesma coisa. A segunda coisa, nesta

maneira de Marx fazer a inter-relação entre a técnica e o social é o

modo como ele mostra que a grande indústria, ou a indústria mecâ-

nica, vai se iniciar sobre uma base material que inadequada para

Page 82: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

82

ela. Por quê? Porque ela vai se iniciar sobre a base da manufatura,

sobre a base, portanto, da operação de um conjunto de máquinas

semelhantes que operam para produzir um único efeito. O ora, o

que a indústria vai fazer é romper com isso. E fazer com que você

tenha uma multiplicidade de máquinas diferentes com um comando

comum, automático, que produz uma multiplicidade de efeitos

simultâneos, ou sucessivos. O ponto de partida sendo a manufatura,

a base material sobre a qual a grande indústria vai ceder é justa-

mente a ferramenta, a máquina-ferramenta. E é aquilo que é exigi-

do pela máquina-ferramenta que vai introduzir a exigência de uma

mudança na máquina-motor. Ou seja, aquele percurso pelo qual

Marx inverteu, ao invés de dizer que a grande indústria começa

com a máquina a vapor e como se trabalha em carvão, ele diz o

contrário: ela começa com a ferramenta e a maneira como articula

e constrói um sistema de ferramentas exige que, para isto funcio-

nar, ela precisa de uma força motriz nova. E por isso que ela vai

parar na máquina a vapor. É, portanto, a máquina a vapor, aquilo

que é exigido pela base material deixada pela manufatura. A manu-

fatura deixa o sistema de ferramentas quando o sistema de ferra-

mentas começa a operar não mais pela semelhança, mas como uma

diversificação e complementaridade de tarefas e de estruturas: isso

aí pede uma nova força motriz, pede uma nova máquina-motor.

O que Marx está dizendo é: a forma assumida pela grande

indústria nasce nos pressupostos deixados pela manufatura. Há

uma continuidade que vai da manufatura para a grande indústria.

Porque é a maneira pela qual a manufatura opera é deixada para a

grande indústria; só que agora na forma de um problema, que

precisa ser resolvido com uma nova fonte motriz, ou seja, com uma

nova fonte de energia. Esse modelo, nós podemos aplicar para a

segunda revolução de industrial e mostrar como a eletricidade vai

entrar para resolver os problemas deixados pela ferramenta da

Primeira Revolução Industrial. E toda questão, que fica para a

próxima vez, quer saber se a revolução informática,eletrônica, está

assentada... tem seus pressupostos na Segunda Revolução Industri-

al ou não. Isso nós temos que resolver pela nossa própria conta

porque não teremos nenhum texto do Marx para explicar isso para

nós.

Há um momento em que Marx descreve o seguinte, e que

deixa claro porque que a grande indústria vai alterar esta mutação

na manufatura que é, entretanto, a sua base material; ele escreve o

seguinte: "A grande indústria e entrou em conflito do ponto de

vista tecnológico com a sua base dada pela manufatura. As dimen-

sões crescentes do motor e da transmissão, a variedade das máqui-

nas e ferramentas, a sua construção cada vez mais complicada, a

regularidade matemática que exigiam um número, a multiformida-

de e a delicadeza dos seus elementos constituintes a medida que se

afasta do modelo fornecido pelo ofício e pela manufatura e que se

transforma em formas incompatíveis com aquelas que são pura-

mente mecânicas, levam ao progresso do sistema automático e o

emprego de um material difícil de manejar. O ferro, por exemplo,

no lugar da madeira, e a solução de todos estes problemas que as

circunstâncias faziam surgir quase sucessivamente, batia sem

cessar nos limites pessoais do próprio trabalhador coletivo da

manufatura que não sabia como resolver. A grande indústria foi,

portanto, obrigada a se adaptar ao seu meio característico de prote-

ção, a máquina, para produzir outras máquinas a fim de que sua

máquina pudesse funcionar". O segundo ponto interessante que eu

quero comentar neste texto de Marx é que: a tripartição motor,

transmissão, ferramenta, era a tripartição clássica da mecânica

industrial e da ciência e das máquinas (como nós vimos no início

da aula), ela que Carnot, por exemplo, se opõe. E esta tripartição

era usada para explicar a gênese da Revolução Industrial. Então, o

que a Marx fez foi mudar a perspectiva, como eu expliquei. Na

perspectiva tradicional, não é o domínio de uma fonte de energia

gigantesca (carvão e vapor) que vai produzir a Revolução Industri-

al, é o contrário. São todos os problemas colocados pelas máqui-

nas-ferramentas para operar em conjunto, simultânea e sucessiva-

mente, que vão pedir a mudança da máquina-motor. Ora, isso

significa então que para Marx o ato de nascimento da Revolução

Industrial é o momento que passa despercebida a superfície social e

econômica, ou seja, que não se percebe como o momento no qual a

Revolução Industrial é o momento em que o órgão de operação

manual e mecanizado; é na hora em que a ferramenta manipulada

pelo homem é mecanizada e afasta o trabalhador é uma da supera-

ção. Portanto, era instante em que o trabalho concreto de um traba-

lhador se transforma no trabalho abstrato da fábrica que a Revolu-

ção Industrial acontece. A Revolução Industrial acontece, portanto,

por uma mudança na natureza do trabalho, na natureza da força

produtiva.

É por isso que Marx vai dizer: a máquina a vapor existia

no período da manufatura. Por que que lá no período da manufatu-

ra, ela não revolucionou nada? É por que no período da manufatura

não havia ainda surgiu condição pela qual a máquina vapor se

tornaria esse motor gigantesco que ela iria se tornar. Que não tinha

acontecido no período da manufatura? A separação entre o traba-

lhador e a ferramenta. Na hora em que a ferramenta se maquiniza,

o trabalhador é separado dela, agora sim a máquina a vapor, que

existia antes, vai poder funcionar. O que Marx está dizendo é:

nunca é a fonte de energia que explica a mudança na economia.

Eu estou frisando muito isso porque as ideias de desenvol-

vimento sustentável, do Greenpeace, da ecologia, da reciclagem...

todo trabalho que a Petrobrás está tendo estes últimos anos... e o

ministério do desenvolvimento... era tudo um equívoco! Porque

todo o pensamento em torno de: o que vamos fazer com as fontes

de energia. "O aquecimento se deu porque... não sei quê lá... o

desmatamento...". Não estou dizendo que essas coisas não estão

acontecendo, é claro que estão! A leitura da origem disso, da causa

disso, o modo de lidar com isso, é que está equivocada. E não é por

acaso que o equívoco venha de onde ele veio: ele veio dos EUA.

Quer a cabeça mais equivocada que é a dos norte-americanos? Não

tem. Eles pensam tudo errado, sempre! Porque eles pensam com a

careça capitalista, eles não enxergam um palmo adiante do nariz!

Não enxergam! Então, todo mundo contra isso.... "Quem é o gran-

de inimigo? O grande inimigo é a China com o". Claro que a China

tem que dar um jeito com carvão... aliás, a China não tem que dar

um jeito só com o carvão. Pelo amor de Deus! As coisas que a

gente compra da China, que dura uma vez; não há um brinquedo

que você use mais que uma vez. Eu não tenho coragem de comprar

um (?), porque ele não tem segurança nenhuma, é claro que ele vai

virar no meio da rua... ele não tem segurança nenhuma... ele é que

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nem um aviãozinho. A camiseta, usa uma vez,... lavou, acabou!

Quer dizer, dominam o mercado, a China domina o mercado... mas

com essas coisas! Que todo mundo acho muito bom... tem trabalho

escravo, precinho camarada e dura um dia. Mas, o que as pessoas

gritam? As pessoas gritam: é carvão que a China usa, é este que é o

problema. Este é um dos problemas, mas este não é o problema da

economia chinesa... usar o carvão. E eu insistir de ler este texto

longuíssima do Marx e fazer este movimento com vocês porque a

mensagem que Marx deixa para nós é: o problema não é a fonte de

energia! O problema um modo de articulação do econômico com

social e: a operação de produção. E é lá, no modo como se articula

e se estrutura a produção que entra a questão da energia. Ora, o que

nós temos feito, o que o mundo tem feito nos últimos vinte anos,

pelo menos? E agora com mais intensidade do que antes. Tem

mexido só na questão da energia, ou seja, continua pensando que a

Revolução Industrial foi causada pela máquina a vapor, quando ela

não foi causada pela máquina a vapor. A máquina a vapor foi um

efeito da Revolução Industrial. A revolução em industrial precisou

dela para se cumprir, mas ela não causou a Revolução Industrial.

Nós estamos fazendo a mesma coisa, nós estamos pensando em

termos dos efeitos como se eles fossem as causas, ao invés de

trabalhar com as causas econômicas e sociais do problema. Esta-

mos fazendo tudo errado!

Eu sempre faço um comício... hoje é o comício contra a

ecologia.

O terceiro ponto que eu queriaenfatizar no texto de Marx é

que a maneira como ele apresenta a história da Revolução Industri-

al mostra que não elimina apenas a suposição de que há uma de-

terminação técnica na economia, ou seja, que o que se passa na

economia tem como causa o elemento da técnica, que a técnica é a

causa do que se passa na economia. Não só ele elimina essa ideia

como elimina também a ideia de que (que era a grande parte da

ideologia burguesa) o desenvolvimento técnico tem como objetivo

facilitar o trabalho, facilitar a vida humana, ou seja, a Revolução

Industrial é determinada pelas exigências do capital para explorar o

trabalho, maximizando a produtividade por meio das máquinas. É

isto a Revolução Industrial! Por que se diz que ela é uma revolu-

ção? Porque a máquina ultrapassa os limites orgânicos do corpo

humano e os limites das ferramentas manuais que imitavam os

órgãos do corpo humano, ou seja, é uma revolução porque a grande

indústria introduz a máquina como um trabalhador coletivo dotado

de mil mão e de mil olhos e com um ferramenta diferente em cada

mão e um olhar diferente em cada direção. É isso que é revolucio-

nário! É um instante no qual que pela primeira vez o objeto técnico

e o corpo humano se separaram. Não há nenhum parentesco, ne-

nhuma analogia, nenhuma semelhança, entre a máquina e o corpo

humano, entre o objeto técnico que era uma expansão do corpo

humano que este novo objeto técnico. E é por isto que Marx o

descreve como orgânico, como contendo órgãos, e como um mons-

tro.... Porque não é um corpo, não é um organismo, mas se você o

descrever assim, ele é um monstro.

O último aspecto que quero mencionar é justamente esta

questão da monstruosidade. Nós podemos pensar que Marx descre-

ve a monstruosidade da máquina para se referir também ao que se

conhece desde Hegel com a expressão "a astúcia da razão".

"A razão é astuciosa, ela faz as coisas acontecerem, diz

Hegel, independentemente do que os homens, como indivíduos,

como coletividade, pensam, querem". Ou seja, a razão está se

lixando para o que os homens, como indivíduos ou como coletivi-

dade, querem, sentem e pensam. A razão, o espírito, tem o seu

próprio caminho fazer, o seu próprio percurso a fazer, seus próprios

objetivos, que os homens são (seres humanos) um instrumento

disto. A razão, entretanto, é a astúcia porque ela convenceu os

homens de que isso é bom; os homens acham ótimo tudo isso,

porque eles estão convencidos de que é melhor para todos que seja

assim. A astúcia da razão é, portanto, convencer os seres humanos,

enquanto indivíduos, e enquanto coletividade, que o curso da histó-

ria, o percurso que a história faz, é ótimo. E que é bom para todos.

Esta famosa ideia do progresso. Não há ideia mais astuciosa, por

parte da razão, do que a ideia do progresso. Quando os homens

estão convencidos de que isto é um progresso, e que o progresso

significa aperfeiçoamentos e melhorias, a astúcia da razão ganhou a

parada. Se eu brecar e disser: primeiro, não há progresso; segundo,

não é bom.... Aí, a gente levanta os braços e diz: vamos fazer al-

guma coisa. Mas, enquanto eu acreditar que: há progresso, o pro-

gresso é bom, o progresso é o aperfeiçoamento, que não há nada

melhor para nós do que o progresso, a razão astuta ganhou a para-

da. Então, o que Marx está fazendo? Ao descrever a maquinaria da

grande indústria como uma monstruosidade febril e louca, ele está

pondo um breque no otimismo burguês, sobretudo, na primeira da

segunda metade do século XIX, quando havia um triunfalismo com

relação à Revolução Industrial. Os seres humanos, a humanidade,

tinha alcançado o seu pontodominante de progresso e desenvolvi-

mento. Então, é esta visão que Marx combate. Mas ele combate ao

mesmo tempo mais uma coisa que está embutida na astúcia da

razão na ideias do bem que ao progresso técnico. Vocês se lem-

bram, lá nas primeiras aulas, quando falei para vocês da idade de

ouro e falei de Aristóteles, vocês se lembram que um dos sonhos

do retorno dos seres humanos à idade de ouro, quando a terra sozi-

nha produz o alimento, a caça cai na sua porta, a pesca cai na sua

porta, os seres humanos não nascem e não morrem, já estão todos

adultos e prontos... a felicidade geral. Esta ideia reaparecem em um

texto belíssima de Aristóteles, quando ele diz: dia virá em que as

rocas e fusos trabalharão sozinhos de os homens não terão a dor e a

pena de fiar e de crescer, nem de plantar nem de colher. A ideia,

portanto, é que chegariam dia em que as máquinas trabalhariam

para os homens. Eles não teriam, não só a dor, o sofrimento e a

pena do trabalho, mas quando eles ainda teriam os frutos do traba-

lho. Então, a descrição de Marx é para dizer: os fusos estão traba-

lhando sozinhos, as rocas estão trabalhando sozinhas, quer infelici-

dade maior do que esta?

Aula 11 (05-11-2012)

Eu pretendo na aula de hoje fazer duas incursões a partir

daquela análise que eu fiz do texto do Marx sobre a Revolução

Industrial e o Maquinismo. A primeira é uma comparação entre

Marx e Heidegger. Porque Heidegger, vocês se lembram, eu come-

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cei o curso com Heidegger e a questão da técnica, e eu havia pro-

metido a vocês que eu voltaria ao Heidegger quando nós entrásse-

mos no mundo contemporâneo. Então eu vou retomar agora o texto

do Heidegger, mas não mais o momento em que nós já tínhamos

visto em que o Heidegger analisa a técnica grega, mas o momento

em que ele se refere ao que ele chama de a técnica moderna. A

segunda incursão é uma comparação entre o que Marx diz e algu-

mas considerações e, eu fiz um recorte do que diz o Foucault em

Vigiar e Punir. Feita essa apreciação que nos dá um conjunto de

reflexões a respeito de um pensamento da técnica moderna aí eu

pretendo marcar o momento em que realmente se define a ideia de

que existe o objeto técnico. Eu vou tomar como referência o Si-

mondon, está na bibliografia de vocês, o Simondon, e a partir daí

colocar a passagem do maquinismo, que foi o que nós vimos do

século XVII até a aula de hoje, o que significa o maquinismo, do

maquinismo para o automatismo, a chamada revolução eletrônica e

o automatismo. Eu não sei se dará tempo na aula de hoje de che-

garmos ao automatismo. Se não der, ele será o objeto de estudo das

próximas aulas.

Então vamos retomar, muito brevemente, a perspectiva do

Heidegger, vista na primeira aula, e a do Marx, vista na aula ante-

rior, porque vão nos auxiliar a ter um quadro do pensamento sobre

a técnica moderna. Quando nós examinamos o ensaio do Heidegger

sobre a questão da técnica, eu me detive, evidentemente, naquele

momento a questão da poiesis, ou seja, a maneira pela qual, Heide-

gger apresenta a sua compreensão sobre a técnica antiga. O ensaio

do Heidegger, entretanto, prossegue porque ele vai contrapor a

poiesis grega à técnica moderna. A técnica grega na compreensão

do Heidegger, portanto entendida como poiesis e como mimesis, se

apresenta como uma ação no qual o homem não interfere na natu-

reza. Ele se coloca como um mediador para que a natureza se

mostre a si mesma, ou para usar o termo heideggeriano, a natureza

se desvele a si mesma e realize a sua própria ação. Por isso Heide-

gger vai dizer que o camponês ara a terra, semeia e depois ele

espera que a própria terra realize a ação de fazer a planta nascer,

crescer e amadurecer para a colheita. O trabalho do camponês

termina no ato de arar e semear e retorna no ato de colher, mas a

trajetória inteira é feita pela própria terra, sem que o camponês

intervenha nela.

A mesma coisa acontece, diz o Heidegger, com o moinho

de vento. A ação do homem é construir a torre, as pás do moinho,

colocar o moedor do grão, mas esse objeto só funcionará se houver

o vento e, portanto, é a natureza que vai moer o grão na medida em

é ela quem move as pás do moinho. Então, vocês se lembram, que

o exemplo que examinamos na primeira aula, famoso exemplo da

taça sacrificial, em que o ourives ou o artesão, tem como tarefa

fazer surgir no metal uma forma que, potencialmente, o metal era

capaz de receber. O artesão, portanto, é apenas o mediador que faz

aparecer em uma matéria à forma que inicialmente que ela tinha

em potência. Essa é a ideia de que, na técnica antiga, a técnica

colabora com a natureza e é por isso que ela imita a natureza, para

que a natureza possa operar, e fundamentalmente, o ponto nuclear

do Heidegger é de que a técnica antiga jamais comete uma violên-

cia contra a natureza. Ela colabora, ela é mediadora, ela imita a

natureza, mas ela não pratica nenhuma violência contra a natureza.

Em contrapartida, a técnica moderna, de acordo com o

Heidegger, em um ensaio que se chama À época da imagem do

mundo, é um ensaio que está em uma coleção chamada Caminhos

que não levam a parte alguma ou Caminhos perdidos. Há uma

tradução argentina excelente da Losada que se chama Sendas Per-

didas. Neste ensaio Heidegger vai dizer que a técnica moderna

coincide com o momento em que, pela primeira vez na história do

pensamento ocidental europeu é proposta uma cisão entre o sujeito

e o objeto. O que o Heidegger tem em mente, evidentemente, é

Descartes. É a metafísica cartesiana que de alguma maneira vai

dominar o pensamento moderno e propor aquilo que todas as ten-

dências e diferentes filosofias modernas afirmarão que é a separa-

ção, a distinção e diferença entra a natureza do sujeito e do objeto.

Para o Heidegger é a distinção metafísica proposta por Descartes

que vai converter o mundo em um objeto, um objeto perante o

sujeito. O mundo se torna uma imagem ou uma representação. Ele

é uma objetividade cuja verdade é dada pelo ato de representação.

É o sujeito que vai dizer o que é verdadeiramente o objeto, no caso

o que é verdadeiramente o mundo. Se o mundo se torna objeto, o

homem se torna sujeito. Assim, muito mais do que a ideia de que a

modernidade é a afirmação da autonomia da razão, que é a defini-

ção kantiana, hegeliana, husserliana da modernidade. Kant, Hegel e

Husserl dizem que o que caracteriza a modernidade é a autonomia

da razão. A autonomia da razão perante a igreja, a religião, perante

o Estado. É um pensamento que vai se realizar fora do universo

universitário, portanto, fora do campo regido pela igreja e do cam-

po regido pelo rei. Heidegger vai dizer que muito mais do que a

autonomia da razão, o que define a idade moderna, é a mudança

absoluta sofrida pela essência do homem quando este se converte

em sujeito. Eu vou citar o texto do Heidegger, À época da imagem

do mundo, em que ele vai explicar o que significa o homem se

transformar em sujeito. Ele diz: “O homem passa a ser aquele

existente no qual se funda todo o existente, à maneira de seu ser e

de sua verdade, isto é, tudo o que existe vai depender do ponto de

vista da verdade, vai depender de um existente que é o homem. O

homem se torna, portanto, o fundamento do existente, da verdade

do existente. O homem se converte em meio de referência do exis-

tente como tal. Quando o mundo passa a ser imagem, isto é, uma

representação, o existente em conjunto se põe como aquilo em que

o homem se instala. O que, como consequência, quer levar para

diante de si e manter diante de si, e desta maneira, por diante de si

em um sentido decisivo.” Por que o Heidegger está insistindo em

por diante de si, estar diante de si? É porque o objectum é ob(para

fora)+(jactum) > lançado > para fora. Objectum significa aquilo

que está posto fora, lançado para fora, objeto significa a exteriori-

dade. Então, o mundo é posto por este existente que é o homem,

como um objeto, como uma exterioridade cujo o sentido e a verda-

de vai depender do que o sujeito disser. O ser do existente se pro-

cura e se encontra na condição de representação do existente. Re-

presentar significa por diante de si o existente como um oposto.

Referi-lo e fazê-lo voltar a entrar nessa relação consigo como

domínio. O homem passa a ser o representante do existente no

sentido de que ele é o representante do que está frente a ele. A

representação é a maneira pela qual... ... (A professora para a aula

para explicar a definição de representação):

Page 85: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

85

Quando é feita a distinção entre res estensa e res cogitans,

a questão que é nuclear para esta distinção, e foi fundamental para

o nascimento de toda a física moderna, e ela é fundamental, mesmo

no Hobbes, que não admite a existência de uma res cogitans, o

nuclear é a ideia de que não há uma relação de causalidade entre

substâncias ontologicamente ou metafisicamente distintas. Isso

significa que a res extensa não pode exercer uma ação causal sobre

a res cogitans, e a res cogitans não pode estabelecer uma relação

causal sobre a res extensa, ou seja, os corpos não causam efeito no

pensamento e o pensamento não causa efeitos nos corpos. Pensa-

mentos causam pensamentos e corpos causam corpos, e é isso que

permite estabelecer uma física. Qual é o problema que é posto para

os modernos, para todos eles. Se o pensamento e a natureza, ou as

coisas, são substancialmente distintas e se entre elas não pode

haver uma relação de causalidade, eu não posso à maneira inocente

como pensavam o gregos ou os medievais supor que a natureza

causa em mim pensamentos como eu não posso considerar que

meus pensamentos produzam corpos. Se não existe esta relação,

como é que o conhecimento é possível? Porque sempre se pensou:

o que é o conhecimento? É a ação causal que alguma coisa exerce

ou sobre meus órgãos dos sentidos ou sobre o meu intelecto. Ora,

agora os corpos não podem ter uma relação causal com a alma,

então a pergunta é? Como é que a alma conhece os corpos? Se ela

não recebe a ação dos corpos, como que ela pode conhecê-los, e

como que ela sabe que os conhece? Essa é a trajetória da dúvida

metódica. É isso o que descartes está fazendo. Ele diz “não posso

aceitar como sempre se aceitou que eu conheço tudo que me é

dado. Eu tenho que saber o que é que eu, efetivamente, posso

conhecer”. E a questão, portanto, é saber como é que o mundo

exterior, a natureza, as coisas a res extensa pode ser conhecida pelo

pensamento sem que ela cause as ideias. A resposta vai ser a repre-

sentação. O que é a representação? A representação é o ato pelo

qual, a mente a alma, o espírito, o intelecto, pensamento, converte

em ideia o objeto externo. E é por isso que eu não tenho acesso ao

objeto externo como tal. Eu tenho acesso ao objeto externo enquan-

to ideia desse objeto, portanto, enquanto uma representação. É isso

que o Heidegger está dizendo, que é o núcleo da modernidade. Para

Heidegger é o surgimento da noção de representação. O conheci-

mento é uma representação. Aquele meio pelo qual, o sujeito de-

termina, decide, define o que é o objeto. E é por isso que o sujeito

se torna o fundamento da objetividade. Porque aquilo que a objeti-

vidade é, é aquilo que o sujeito vai dizer que ela é. Vocês podem

imaginar todas as dificuldades postas por este percurso. Não vai ser

a toa de que nós vamos chegar ao Kant. Quando Kant disser: “o

mundo mesmo, as coisas em si, o objeto tal como ele é metafisica-

mente em si mesmo é inalcançável. Nós só temos representações.”

Nós só temos, portanto, aquilo que a nossa razão formula, é isso

que nós temos. Nós vamos passar para o idealismo por isso. O

idealismo é consequência das dificuldades postas pela separação

entre o sujeito e o objeto e a transformação do objeto em uma

representação. Aí será necessário o passo seguinte quando Hegel

disser que, não nos interessa aqui por que isso não é um curso de

História da Representação. O que interessa para o Heidegger neste

momento é explicar que a cisão, sujeito e objeto, culmina na trans-

formação do mundo em uma representação feita pelo sujeito. Uma

imagem produzida pelo sujeito. Quando o homem se põe como

sujeito, ele simultaneamente se põe, ele põe o mundo como objeto,

e a tarefa da representação é suprir a dificuldade posta pela hetero-

geneidade das substâncias, ou seja, duas substâncias heterogêneas

não podem se relacionar causalmente. Então é preciso encontrar

um termo que torno o objeto e o sujeito homogêneos e esse termo

que homogeiniza o sujeito e objeto, que permite a relação do sujei-

to e do objeto é justamente a representação. Ora, por meio da re-

presentação, o que aconteceu, o homem como sujeito domina o

mundo. O homem tem uma relação de dominação com o mundo.

Não é outra coisa que Bacon e Descartes haviam dito que eles

queriam. O sujeito, diz Heidegger, vai se tornar o fundamento.

Heidegger vai usar o termo grego: hypokheímom, ou termo latino

que traduz hypokheímom que é fundamentun. O homem se torna o

fundamento. Logo veremos o que vai acontecer com a natureza.

Cito Heidegger novamente: “O fundamento, o que esta tem como

liberdade é o subjectum. O subjectum é aquilo que está sotoposto.

Aquilo que está sob, que é lançado posto sob alguma coisa.” É por

isso que ele é o fundo de alguma coisa. O objectum é o que está

lançado diante e o subjectum é o que está pressuposto, é o que está

posto como fundamento. E é isso: subjectum é a tradução que o

Heidegger vai usar para o termo grego hypokheímom, porque

Aristóteles usa hypokheímom para se referir a substância, mas não

vou me alongar porque complica muito.

O sujeito, o subjectum hypokheímom é o fundamento. O

subjectum tem que ser algo certo que satisfaça as exigências de sua

essência. Qual é essa certeza que forma o fundamento e dá o fun-

damento? O ergo cogito ergo sum. A certeza, é uma proposição

que postula aqui, ao mesmo tempo que o pensar do homem, ele

próprio está presente sem a menor dúvida. Isto é, ele é dado de uma

só vez ou ao mesmo tempo.

O que o Heidegger está dizendo é: a primeira certeza nesse

processo pelo qual o sujeito vai poder ter a garantia de que ele tem

acesso verdadeiro ao objeto, o primeiro passo, é que o sujeito

garanta que ele tem acesso a si próprio, que ele tenha um acesso

verdadeiro, certo, indubitável, a si próprio.

Então essa certeza inicial que é o que vai garantir que o su-

jeito é uma verdade, e que sendo uma verdade ele pode ser funda-

mento de outras verdades é “ego cogito, ergo sum”. É preciso

chegar ao cogito. É por isso que Descartes, segundo Heidegger, vai

fazer todo percurso de tal maneira que ele possa demonstrar que o

primeiro conhecimento absolutamente indubitável, a primeira

verdade que vai permitir a formação da cadeia de razões ou da

cadeia de verdades é o pensamento. Então o ergo cogito se apre-

senta como o autoconhecimento pelo qual o sujeito se põe a si

mesmo como verdadeiro. E é a verdade do sujeito que vai dar a ele

a condição de ser fundamento de todas as outras verdades. É claro

que Heidegger está fazendo uma economia de Deus, porque Des-

cartes ainda vai provar Deus. O que o Heidegger está fazendo é

uma leitura kantiana, hegeliana, husserliana das Meditações, e

portanto, é o cogito. Em Descartes é o cogito e Deus. Se você tirar

Deus não sobra muita coisa para cogito.

De todo modo, o que Heidegger está dizendo é como é que

surge o sujeito? O sujeito surge através da figura do cogito, e que é

dado de uma só vez. É por isso que ele é uma intuição, você não

Page 86: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

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deduz o cogito, você não obtém o cogito por uma argumentação de

raciocínio. O cogito é uma intuição, ou seja, ele é dado ao pensa-

mento de uma só vez, num único instante, num único olhar espiri-

tual. É isso a intuição cartesiana.

A certeza é uma proposição que postula que, ao mesmo

tempo que, o pensar do homem, ele próprio está presente, o próprio

pensamento, sem a menor dúvida, isto é, dado de uma só vez ou ao

mesmo tempo. Pensar é representar. Relação de representação com

o representado. Representar significa, a partir de si mesmo, do

cogito, pôr algo diante de si (objectum) e garantir o que foi posto

como tal. Ser subjectum passa a ser agora o distintivo do homem

como ente pensante representador.

Então de acordo com Heidegger, a partir de Descartes, não

só a verdade se torna submissão do ser, a ideia posta pelo sujeito,

mas ainda como consequência, vai mudar o estatuto da ciência. E é

dessa maneira que o Heidegger vai interpretar tudo aquilo que nós

vimos com o nome de matematização da ciência moderna. Nós

vimos a matematização como a geometrização da natureza. Ora,

qual é a explicação do Heidegger? O Heidegger vai á expressão

grega tà mathéma, que é uma expressão que significa tudo aquilo

que se sabe verdadeiramente e com certeza de antemão sobre al-

guma coisa e que permite dominá-la inteiramente pelo pensamento.

É por isso que a geometria é tà mathéma, aritmética é tà mathéma,

aspira-se a uma astronomia que seja tà mathéma. É por isso que,

em termos aristotélicos, é impossível uma física tà mathéma, por-

que a physis é movimento, passagem da potência ao ato, eu não

tenho como dominá-la intelectualmente.

Então tà mathéma significa aquilo sobre o que eu tenho

domínio intelectual. Tudo aquilo sobre o que eu tenho o domínio

intelectual completo é um objeto matemático. A matemática não é,

portanto, esse conjunto de disciplinas que a gente aprendeu a cha-

mar de matemáticas. A matemática é uma maneira de conhecer. É

aquela maneira de conhecer que ocorre quando eu tenho o domínio

completo e absoluto sobre o objeto do conhecimento.

No caso das disciplinas chamadas matemáticas é obvio que

eu tenho esse domínio porque é o pensamento que constrói esses

objetos. Eles são uma construção do próprio pensamento, que,

portanto, domina inteiramente a sua própria construção. Todo ideal

moderno que aparece na ideia de Descartes que vocês certamente

estudaram nos outros cursos de História da Filosofia, quando Des-

cartes propõe a mathésis universalis, isto é, quando ele propõe uma

matemática universal que abrange a filosofia e a totalidade das

ciências, o que Descartes está propondo, a ideia da mathésis uni-

versalis, é a totalidade do conhecimento: é tà mathéma, isto é, o

pensamento pelo domínio completo, integral e perfeito de todos os

objetos do conhecimento. É isso a mathésis.

Muitos que leem Descartes, dizem: mas que história é essa

de que ele matematiza? Leia as Meditações. Cadê a matemática?

Ora, as Meditações são a matemática em estado puro. Em primeiro

lugar porque as Meditações se realizam segundo um método defi-

nido pela matemática euclidiana como análise, que é um procedi-

mento que vai do efeito para a causa e esse procedimento só é

possível se para cada elemento posto eu determinar a sua causa e

mostrar que ele é um efeito e mostrar que ele é causa do elemento

seguinte, o qual, por seu turno, é um efeito que é causa do elemento

seguinte. É isso a ordem das razões. É isso a cadeia das razões.

Então, pega a primeira Meditação, pega o percurso que

Descartes vai fazer até chegar a Deus. Primeiro instante: “Estou eu

aqui, ao pé do fogo, olho a cera, ela derrete, muda de cor, perde o

perfume”. O primeiro instante é: o meu corpo diante de outros

corpos, relação de pura exterioridade. O meu corpo tendo a relação

de sensação ou de percepção de objetos externos. Se eu ficar nessa

pura exterioridade eu duvido de tudo porque essa exterioridade

muda de forma, de grandeza, muda ininterruptamente. Não há

nenhuma identidade a qual a minha percepção, a minha sensação,

possa se agarrar. Movimento seguinte, isso o que eu percebo lá nos

corpos, provavelmente está nos meus sentidos, então eu vou de lá

pra dentro. Agora eu venho pro meu corpo e examino os meus

sentidos. Uma vez que eu vim para o meu corpo e examinei os

meus sentidos, eu continuo sem poder fazer nada com aquilo por-

que isso ainda é objeto de dúvida, porque os sentidos estão me

enganando. E eu agora vou fazer mais um passo pra dentro, e o

passo que eu vou fazer pra dentro é: “será que eu estou sonhan-

do?” Como é que eu distingo o sonho da vigília? E se eu não puder

fazer essa distinção, vamos dar um passo mais pra dentro: “será

que eu estou louco?” Vocês percebem, é de um rigor absoluto o

trajeto que Descartes faz, é da exterioridade pra uma primeira

interioridade, uma segunda interioridade, uma terceira interiorida-

de, uma quarta interioridade, até dizer cogito, penso. Só que uma

vez que eu digo penso, o que é que eu penso? Tá lá fora. Como é

que eu me relaciono com isso que tá lá fora? Agora eu preciso um

terceiro termo, que garanta que o que eu penso e o que tá lá fora

são verdadeiros. Eu preciso de um Deus verdadeiro. Isso aí é um

procedimento rigorosamente matemático. As Meditações são escri-

tas num estilo matemático, segundo um método matemático, igual-

zinho à ética de Espinosa.

A ética de Espinosa fica mais fácil porque Espinosa escre-

ve definição, axioma, postulado, proposição, então fica na cara

graças aos termos matemáticos que ele emprega, mas qual é a

diferença entre o procedimento matemático de Descartes e o de

Espinosa? É que o procedimento de Descartes vai do efeito para a

causa, esse é o procedimento da análise. Espinosa procede com o

método sintético, ele vai da causa para o efeito. Descartes vai

chegar a Deus no percurso, Espinosa vai partir de Deus. Então tudo

isso é tà mathéma. Tudo isso é mathésis universalis. Bom, fecho

parênteses.

Voltemos ao Heidegger. A partir de Descartes então a ideia

de um ideal do saber como mathésis universalis lembrando-se,

portanto, que tà mathéma significa tudo aquilo que se sabe de

antemão sobre alguma coisa e que permite dominar inteiramente

essa coisa pelo pensamento.

Então, ao se tornar uma matemática universal, nesse senti-

do, a ciência moderna põe seu objeto, ela constrói o seu objeto a

partir de decisões que são tomadas pelo sujeito. Heidegger pergun-

ta o que significa esta posição do mundo como objeto de um cálcu-

lo, significa exercer o domínio sobre o mundo e, por isso, diz o

Heidegger, nós não temos que nos espantar com o sentido novo

Page 87: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

87

comparado com os gregos, sentido novo que vai ser assumido pela

técnica na medida em que a técnica agora aparece como uma impo-

sição do homem sobre as coisas. Por meio da técnica o homem

dispõe da natureza, a natureza se torna disponível para as ações

humanas e por meio dela o homem transforma a natureza. Vocês se

lembram, a natureza se torna idêntica ao artefato, ao artifício, ao

artificial. A diferença entre o natural e o artificial é só de grau, não

de natureza. Porque tudo é artefato, a natureza é um artefato divino,

depois artefato humano através da técnica. Tudo é artefato. Diz o

Heidegger: com os modernos o que se inicia é o percurso no qual o

homem finalmente se põe como distinto da natureza e como capaz

de instaurar o mundo autônomo, separado da natureza, graças à

maneira pelo qual o homem vai usar a natureza. Esse mundo autô-

nomo por meio do qual o homem usa a natureza e se separa dela se

chama cultura. É o nascimento da cultura, a oposição entre nature-

za e cultura surge, portanto, quando a modernidade cria o sujeito e

o objeto e quando a técnica se torna dominação sobre a natureza.

Heidegger vai dizer a técnica se torna, portanto uma vio-

lência, uma violência exercida sobre a natureza, porque ela vai, o

homem vai impor à natureza, à representação de um objeto domi-

nável e controlável. Essa violência, nas traduções dos textos do

Heidegger, em alemão ele diz gestell, e a tradução desse termo

“provocação”. Vocês de lembram do Bacon e a natura vexata?

Que o laboratório deve atormentar a natureza para que ela apresen-

te tudo o que esconde. É essa a ideia da provocação do Heidegger.

O homem provoca a natureza, a técnica é uma provocação feita

sobre a natureza.

O que a técnica visa? Ela visa, e esse é o ponto que me in-

teressa porque aqui, esse é um ponto chave para marcar a distancia

entre o Marx e o Heidegger, o que visa a técnica? Segundo Heide-

gger, a técnica visa liberar todas as formas de energia naturais para

uso e controle humanos. O que é a natureza? O homem é o funda-

mento e a natureza é o fundo. Um fundo inesgotável. A gente fala

em propriedade fundiária para se referir a terra porque a terra é o

que aparece como primeiro fundo, mas a técnica concebe agora a

natureza como um fundo inesgotável. Nesse fundo se escondem

formas de energia que devem ser exploradas e acumuladas para se

tornarem disponíveis para o homem.

Eu vou citar agora uma passagem do texto “A questão da

técnica”, até aqui eu estava me referindo ao texto sobre a imagem

do mundo, agora eu vou voltar ao texto sobre a questão da técnica e

citar. Heidegger diz: “O que é a técnica moderna? Ela é como a

antiga, um desvelamento. É somente quando demoramos o nosso

olhar sobre esse traço fundamental é que podemos ver o que há de

novo na técnica moderna. O desvelamento, entretanto, que rege a

técnica moderna, não se desdobra numa pro-dução no sentido da

poiesis.” O trabalho de desvendar, desvelar numa matéria uma

forma que ela já possuía. Heidegger vai dizer: “Não é isso agora

mais. O desvelamento que rege a técnica moderna é uma provoca-

ção pela qual a natureza é posta sobre a condição de liberar uma

energia que possa ser extraída e acumulada. Ora, não se poderia

dizer isso sobre o moinho de vento? Não. Suas asas giram ao vento

e são dadas diretamente ao seu sopro, mas se o moinho de vento

coloca a nossa disposição a energia do ar em movimento, não é

para acumular essa energia.” Essa é chave pro Heidegger. Do

mesmo modo que a técnica antiga, a moderna desvela, mas a técni-

ca antiga não tinha a pretensão de acumular as energias naturais, de

extrair as energias naturais e de acumulá-las para uso humano. A

energia natural era despendida como tal, é o caso do moinho de

vento. A energia do vento é despendida no movimento das abas do

moinho e acabou. Ao contrário, agora vem a acumulação. Ao

contrário, uma região é provocada para extração de carvão e de

minerais. A crosta terrestre se desvela hoje como uma bacia carvo-

eira e o solo como um entreposto de minerais. Tudo era completa-

mente diferente, o campo tal como ele aparecia para o camponês

que o cultivava outrora, quando cultivar significava cuidar. O

trabalho do camponês não provocava a terra cultivável quando ele

semeava o grão, ele confiava a semente às forças de crescimento e

cuidava para que ela prosperasse. No intervalo, a cultura dos cam-

pos ela também foi tomada num movimento aspirante de um modo

de cultura de outro gênero que requer a natureza no sentido de

provocação, em outras palavras, a agricultura é hoje não o cultivo

da terra, mas uma indústria de alimentação motorizada. O ar é

requerido para o nitrogênio; o solo para os minerais; o mineral, por

exemplo, para o urânio; este para a energia atômica e esta pode ser

liberada para fins pacíficos ou de destruição. O modo de provocar

as energias naturais é uma avanço no sentido pejorativo do termo, é

avançar o sinal, que visa fazer avançar, aparecer uma outra coisa,

isto é, fazê-la crescer rumo a sua utilização máxima e com os me-

nores gastos. O carvão extraído não está posto lá para que ele fique

simplesmente lá. Ou não importa onde, ele é estocado, isto é, ele é

colocado num lugar para que o calor solar contido nele possa ser

usado para outra coisa. Assim, cada coisa é liberada para produzir

um efeito como no caso do carvão em que um forte calor vai levá-

lo ao vapor cuja pressão aciona um mecanismo e dessa maneira

mantém uma fábrica em atividade.

Outro exemplo do Heidegger: uma central elétrica é cons-

truída no Reno, ela o obriga a liberar sua pressão hidráulica que,

por sua vez, faz as turbinas girarem. Esse movimento, por sua vez,

faz girar a máquina, cujo mecanismo produz a corrente elétrica

para qual a central regional e a sua rede são levadas para os fios de

transmissão. No domínio dessas consequências, se encadeia uma

outra, a partir da colocação da energia elétrica de tal modo que o

rio Reno aparece ele também como alguma coisa a acumular. A

central não é construída na corrente do Reno, como uma velha

ponte de madeira construída outrora, é antes o rio que é murado na

central, isso que ele é hoje como rio, ou seja, um fornecedor de

pressão hidráulica. E ele o é pela essência da central. O que o

Heidegger vai dizer, todo esse movimento conduz a uma maneira

de intervir tecnicamente sobre a natureza em que a natureza não só

é provocada, violentada, para que ela ofereça os seus materiais,

mas a ideia de, primeiro: deve haver uma acumulação desses mate-

riais e que esses materiais se interligam como fontes de energia

para um terceiro elemento. Por exemplo, você tem a terra, o sol e o

carvão. O aquecimento do carvão e o vapor, o vapor e a máquina, a

máquina e a fábrica. Então o que o Heidegger está dizendo é, o

artesão realizava por completo na sua oficina um objeto partindo

dos elementos que a natureza lhe dava e dos instrumentos que ele

havia construído. Não havia uma cadeia, aqui o que a técnica faz é

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88

encadear todos os elementos naturais como energia acumulável

para que essa energia acumulável se desemboque numa outra for-

ma de energia acumulável que desemboca numa outra até desem-

bocar nas máquinas e na operação industrial. É a ideia, portanto, da

natureza como um deposito inesgotável de fontes de energia acu-

muláveis para a operação industrial, é isso a técnica. Fim as cita-

ção.

O que me interessa no ensaio do Heidegger sobre a técnica

moderna são três aspectos:

O primeiro é que ele, ao propor a relação entre a técnica e

as ciências naturais modernas, ele faz com que a técnica

dependa da cisão metafísica e epistemológica entre sujei-

to e objeto. O primeiro ponto importante é esse. É a cisão

metafísica do sujeito e do objeto e o resultado disso sobre

as ciências que determina a forma moderna da técnica.

O segundo ponto é o fato de que ele toma a técnica na

perspectiva da apropriação de fontes naturais de energia,

sem fazer qualquer referencia ao estatuto e as mudanças

do trabalho produtivo.

E em terceiro lugar o fato de que ele apreende perfeita-

mente, corretamente, o caráter cumulativo e acumulativo

da técnica, sem, entretanto, estabelecer nenhuma relação

com o lócus que define a acumulação como núcleo da so-

ciedade moderna, que é o modo de produção capitalista.

Então nós temos neste ensaio, ele é um exemplo perfeito de

idealismo. A técnica vem de uma cisão metafísica, ela acumula a

energia natural, porque ela faz uma violência à natureza, e ela tem

um processo cumulativo porque é tudo tà mathéma. E o mundo

gira.

Esses três aspectos é que eu acho que contrastam justamen-

te com a perspectiva do Marx. Com a perspectiva histórico-

materialista do Marx. Tomando como referência apenas aqueles

elementos que eu propus na aula passada, não vou avançar mais

nada no pensamento do Marx. Tomando a maneira como ele esta-

belece a gênese do modo de produção capitalista e a maneira como

ele descreve o maquinismo ou a grande indústria isso nos permite

fazer a distância entre o Marx e o Heidegger.

Primeiro, a cisão que é determinante do processo de trans-

formação da técnica não se encontra na cisão metafísica, entre o

sujeito e o objeto, e sim entre a cisão entre o trabalhador e os meios

de produção ou na cisão social entre os detentores dos meios soci-

ais de produção e as forças produtivas.

Segundo, no tocante à relação entre a técnica e as fontes

naturais de energia nós vimos que era clássica a tripartição motor-

transmissão-ferramenta para explicar a revolução industrial. Essa

tripartição é que é mantida pelo Heidegger. Quando ele coloca no

motor, portanto, nas fontes naturais de energia o lugar onde se dá a

mudança da técnica, ou seja, a mudança da técnica era explicada

pela sua referencia às fontes de energia, nisso é mantido e desen-

volvido pelo Heidegger. O que nós vimos que Marx faz, Marx vai

mudar toda essa perspectiva de compreensão da revolução industri-

al e da operação da técnica, mostrando que não é o domínio de uma

força gigantesca como, por exemplo, o vapor que vai ser responsá-

vel pelo surgimento do objeto técnico máquina. A mudança técnica

não se realiza a partir do motor, a partir da fonte de energia, ela se

realiza a partir do que acontece com a ferramenta, isso é, com o

homem. São as máquinas-ferramentas, que são independentes da

máquina-vapor que existiam antes da máquina a vapor, são elas

que vão ser inseridas na lógica industrial e elas é que vão exigir,

para sua operação eficaz o surgimento da máquina a vapor, ou seja,

Marx inverte. Você tem a aparência. Agora vamos usar a expressão

no seu rigor dialético. A mutação técnica aparece como uma muta-

ção no emprego das fontes naturais de energia, essa maneira pela

qual ela aparece não é, entretanto, aquilo que ela é, o seu modo de

aparecer oculta necessariamente o modo pelo qual ela é efetiva-

mente posta. A técnica é posta, o objeto técnico é posto a partir de

algo que acontece na relação dos próprios objetos técnicos pré-

existentes quando eles são considerados forças produtivas, e é esse

elemento que vai determinar, vai pôr, a mudança da técnica, no

caso um conjunto de ferramentas que pré-existiam à máquina e

cuja articulação e cujo uso eficaz para o capital pede que elas sejam

reunidas através da máquina a vapor. É, portanto, algo que se passa

na esfera do trabalho que vai determinar o uso que se vai fazer de

energia, a explicação empírica, metafísica, clássica é: mudou a

fonte de energia, muda a técnica, muda a economia. Marx: muda a

economia, a mudança da economia determina uma mutação no

processo social do trabalho, a mutação no processo de trabalho

implica uma mutação no emprego das ferramentas ou dos instru-

mentos cuja articulação vai pedir uma mutação técnica que é a

máquina, no caso a máquina a vapor. Ou seja, o que o Marx vai

mostrar é que para compreender o processo eu tenho que inverter a

aparência, aparece assim, não é assim! Portanto, é do lado do traba-

lho que se deve buscar a emergência necessária da mudança na

técnica e não nas fontes de energia.

Terceiro ponto, com relação ao caráter cumulativo da téc-

nica, Marx mostra que o maquinismo é o momento no qual uma

máquina vai dar origem a outras máquinas, isto é, o motor usado, a

energia usada, vai se afastar cada vez mais da força humana, da

energia humana, da energia animal e vai pôr em movimento um

número enorme de máquinas articuladas, umas as outras, que

transmitem movimento umas as outras. A cumulação técnica,

portanto, não se dá pelo fato de que a natureza é considerada um

reservatório inesgotável, eu extraio as fontes de energia e acumulo

essas fontes de energia para usá-las em determinada direção. Ao

contrário. O processo pelo qual, o primeiro movimento de emprego

da energia natural leva a produção de um objeto técnico, no caso a

máquina, cuja operação vai por ela mesma exigir novas máquinas

e, portanto, mais energia e outro acúmulo de energia. É no interior,

no caso do Heidegger você tem a impressão pela análise que ele faz

das fontes de energia, que ele está fazendo uma análise imanente da

mudança da técnica e que o Marx estaria fazendo uma análise

externa ou transcendente, porque ele estaria pegando o processo de

trabalho. É o contrário. O que o Marx está mostrando é que, é

imanente à operação do maquinismo o engendramento de uma

máquina por outras máquinas. De tal modo que a fábrica, a grande

indústria, é esse corpo gigantesco de máquinas articuladas umas as

outras, que transmitem umas as outras movimento. O que se tem,

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89

portanto, é a ideia de que a maquina industrial é uma maquina

diferente de todas as outras máquinas que já foram construídas pelo

homem, porque ela é na verdade um sistema de máquinas. Ela não

é uma máquina, mas um sistema articulado, um sistema combinado

de múltiplas máquinas. E é por isso que a imagem que o Marx

apresenta é a imagem do monstro, essa coisa gigantesca que ocupa

o edifício inteiro da fábrica e à qual os trabalhadores estão acopla-

dos. É nesse campo que se compreende aquilo que Marx chama “a

servidão dos trabalhadores na grande indústria”. Você tem a

dominação, tem a exploração, tem tudo aquilo que sabemos, mas

há algo peculiar no modo pelo qual a exploração e dominação na

grande indústria se dão, é aquilo que Marx vai dizer. É a servidão

do trabalhador e se apresenta de duas maneiras principais:

Em primeiro lugar, Marx distingue duas formas simultâ-

neas do capital. O capital constante, que é matéria prima e os

meios de produção. E o capital variável, que é a força de trabalho.

Por conseguinte, Marx vai deixar claro que o objeto técnico, na

medida em que ele está lá no capital constante, ele não produz mais

valia, ele não produz valor. O que produz valor, produz mais valia,

é o trabalho. Portanto, o objeto técnico, como tal, não é aquilo o

que produz capital. O que é que produz capital? O homem e a

natureza. Eles são considerados pelo Marx fundos, mas eles não

são fundos por causa da técnica, como supõe o Heidegger. Eles são

fundos por causa da relação de produção. São as relações de produ-

ção que tornam o homem e a natureza fundos, e não a técnica. E

não pode ser a técnica porque a técnica não produz valor.

O segundo aspecto importante nessa servidão dos trabalha-

dores é que a grandeza da produção de valor, produção de mais

valor, de mais valia, da cumulação do capital, nós sabemos que ela

depende do tempo de trabalho socialmente necessário para repro-

duzir o trabalhador, reproduzir, portanto, a força de trabalho, a

subsistência do trabalhador e para acumular o capital. Ora, interes-

sa ao capitalista como classe, não ao indivíduo burguês, mas ao

capitalista como classe, interessa diminuir esse tempo socialmente

necessário para produção. Por quê? Porque se você diminui esse

tempo você aumenta a força produtiva do trabalho, ou seja, em

menos tempo vai se produzir mais. Isso significa que a introdução

da máquina está ligada não a toda fantasmagoria da técnica violen-

tando a natureza, a máquina é introduzida como fator essencial

para a diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário,

para produzir uma quantidade cada vez maior de mais valia. Por-

tanto, do ponto de vista do capitalista como classe a máquina au-

menta a força produtiva do trabalho permitindo produzir em menos

tempo a mesma quantidade de mercadorias e aumentar a cumula-

ção do capital. Em segundo lugar, do ponto de vista do capitalista,

a máquina abaixa os custos do capital variável, isto é, do trabalho.

Ela abaixa o custo do salário, ela abaixa o custo da reprodução da

força de trabalho, ou seja, ela abaixa o custo da subsistência do

trabalhador.

Em terceiro lugar, o caráter cumulativo da máquina não é

algo inscrito nela como objeto técnico e sim no fato de que a má-

quina, ela acumula e ela é cumulativa e ela vai acoplando outras

máquinas, porque ela não cessa de operar. Uma vez posta em mo-

vimento, seja com o vapor, seja depois com a eletricidade, uma vez

ela posta em movimento ela não cessa de operar, e com isso ela vai

provocar uma apropriação crescente da força de trabalho, isto é, ela

vai aumentar o número de trabalhadores, ela vai prolongar a jorna-

da de trabalho, porque o trabalhador não pode deixar a máquina

parar, ela vai exigir do corpo e do espírito do trabalhador um esfor-

ço gigantesco, porque qualquer perda de atenção ou ele é engolido

pela máquina ou ele produz uma paralisia da máquina, e ele é

penalizado com isso, e, sobretudo, essa cumulação que intensifica o

trabalho e vai permitir que, para as operações mais simples das

máquinas, a força de trabalho seja feminina e infantil. Então você

tem o trabalho das mulheres, o trabalho das crianças nesse processo

de alongamento, encompridamento da jornada de trabalho e dimi-

nuição do salário, ou seja, a máquina acumula sim, ela acumula a

servidão do trabalhador, é isso que ela faz.

E nós sabemos, eu vou passar brevemente sobre isso por-

que depois eu vou voltar, mas nós sabemos que essa servidão

prosseguiu com as transformações no modo de produção capitalista

quando se tem como foco ou como núcleo a exigência da diminui-

ção do tempo de trabalho socialmente necessário para a produção

crescente de mercadorias. É essa exigência da diminuição do tempo

de trabalho que determina mudanças técnicas e, como se vê, quan-

do se passa para o uso dos motores à combustão, o emprego de

energia fóssil, o uso da eletricidade na organização do trabalho. E o

caso exemplar desse instante no qual a eletricidade entra como

modo pelo qual a máquina entra em operação e o modo como a

partir daí ela articula todas as ações da força de trabalho, todas as

ações dos trabalhadores, o caso exemplar é evidentemente a orga-

nização fordista do trabalho industrial, ou seja, a linha de monta-

gem, a produção em série e a linha de montagem. E se isso não

bastasse, houve essa coisa formidável que foi inventada no começo

do século XX e prosseguiu até hoje chamada taylorismo. A ideia

do Taylor, do taylorismo, é aquilo que é chamado de gerência

científica do trabalho, é a ideia de que não apenas se trata de dimi-

nuir o tempo socialmente necessário para a produção de uma quan-

tidade crescente de mercadorias, mas é preciso exercer um controle

sobre o tempo do trabalhador, não apenas um controle que a má-

quina exerce, a máquina define o tempo do trabalhador, ela define

o tempo, ele opera no tempo dela, mas o que a gerência científica

propõe, o que o Taylor propõe é um estudo, uma ergometria, um

estudo do corpo do trabalhador na relação com a máquina para

estabelecer as formas mais eficazes, mais eficientes, mais redutoras

de tempo do uso do corpo do trabalhador.

Então, qual é a posição que ele tem que ficar em pé: pés

afastados ou pés juntos? Mãos afastadas ou mãos juntas? Quanto

tempo ele leva para fazer esse movimento? Será melhor, portanto,

digamos que ele leva meio segundo pra fazer isso nessa altura,

formidável, formidável. Então vamos elevar um pouco a altura da

máquina pra ele fazer isso. Não, a gente despede o trabalhador

baixinho e põe um alto, porque o trabalhador alto faz esse movi-

mento no meio segundo requerido. Em que tipo de cadeira ele deve

sentar naquelas funções que exigem que ele se sente? Cadeira alta,

cadeira baixa? Cadeira com encosto, cadeira sem encosto, banqui-

nho? Giratório, não giratório? Tudo é controlado.

Page 90: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

90

Quantos passos ele tem que dar desse lugar onde ele está

para apertar um parafuso ao ponto seguinte no qual ele aperta o

segundo parafuso? Tem que dar três passos? Se ele for uma pessoa

pequena ele precisa dar quatro, então nós vamos contratar o traba-

lhador maior que tem uma passada maior, porque nós vamos calcu-

lar o tamanho da passada para saber em quanto tempo ótimo o

trabalhador aperta esse botão e depois o outro. Quantos passos ele

precisa dar para ir até o banheiro? E quantas vezes ele deve ir ao

banheiro? Ele deve tomar água quantas vezes? Onde deve estar o

bebedouro para que ele faça rapidamente o percurso até o bebedou-

ro e volte até o seu posto de trabalho? Ou seja, é um controle com-

pleto do corpo do trabalhador na sua relação com a operação da

máquina.

E a gerência científica, agora eu vou abrir um parênteses,

que é uma coisa que eu gosto muito, eu adoro contar isso, é o meu

comício de hoje. Bom, e isso se aplicou depois aos escritórios,

então o tamanho do clipe, o peso do grampeador, o tamanho da

máquina de datilografia, a forma da escrivaninha, o lugar onde o

secretário ou a secretária senta, a taquigrafia, ou seja, controle total.

Não há um trabalhador, em qualquer setor do trabalho capitalista,

com exceção de nós aqui evidentemente, que não seja controlado,

ferozmente controlado no seu corpo e no seu espírito a cada segun-

do. Bom, mas a gerência cientifica, que isso tudo é chamado de

gerência científica, a gerência científica é baseada na sobreposição

da divisão social das classes com uma nova divisão. A divisão

fundamental é o capital e o trabalho, o burguês e o operário e

assim por diante, você tem essa divisão fundamental. A gerência

científica introduz uma segunda divisão no campo do trabalho. Ela

distingue entre a direção e a execução, ou seja, a medida em que o

processo industrial e que as mudanças técnicas vão ocorrendo,

considera-se que a complexidade técnica da produção ultrapassa a

capacidade do trabalhador. Ele não tem capacidade pra isso. Então

é preciso que haja, agora sim, especificamente designados com esta

palavra, é preciso que haja técnicos, que são especialistas no co-

nhecimento de todas as minúcias e complexidades da grande forma

que foi assumida pela indústria, sobretudo pela indústria fordista.

Esses técnicos são chamados de gerentes da produção. E

eles são definidos pela posse do saber. Eles possuem o saber sobre

a complexidade técnica que os trabalhadores não possuem. Como

ele dispõe desse saber, ele tem a função de comando, ele manda, e

os trabalhadores que são despojados de saber, executam. Então

você tem a divisão social entre os que sabem e mandam e os que

não sabem e executam ou aquilo que eu chamei a ideologia da

competência. O competente manda e o incompetente obedece.

Essa é a divisão em todas as esferas da produção e dos serviços

capitalistas.

Então, há uma greve absolutamente genial que os operários

fazem, faziam né, em todos os países, conhecida, não sei se vocês

sabem, ela era conhecida como a greve do zelo. A greve do zelo

consistia no seguinte: os trabalhadores iam para a produção, espe-

cialmente os da linha de montagem e executavam tudo o que era

estabelecido pelas regras da gerência científica. Eles não faziam

nada que envolvesse alguma habilidade própria, algum saber pró-

prio, algum conhecimento próprio, nada. Eles executavam, como

autômatos, as regras da gerencia cientifica, eles eram zelosos. E

quando chegava lá no final o produto era imprestável, não servia

pra nada, estava todo errado, todo defeituoso, era uma porcaria

completa. Por quê? Porque o saber dos trabalhadores, a competên-

cia dos trabalhadores, a habilidade dos trabalhadores estava ausente

da produção. Então a gerência científica é essa coisa formidável,

extraordinária de querer diminuir o tempo, aumentar a acumulação,

produzir mais mercadorias e dar com os burros n’água, porque ela

é totalmente incompetente, porque ela não conta efetivamente com

a figura do trabalhador, ela eliminou a figura do trabalhador. Então

eliminar essa figura, ela destrói a produção. Fim do meu comício

de hoje.

Então o que eu estou querendo apontar é que quando Marx

descreve o maquinismo da grande indústria como monstruosidade,

como ele fala “num monstro” e na servidão dos trabalhadores a

esse “monstro”, o que ele está antecipando e colocando como

elementos pra uma análise que futuramente se pôde fazer, é o que

acontece a medida que se dá aquilo que, e eu vou examinar isso em

outra aula através do Marcuse, em que se dá a chamada racionali-

zação da produção por meio dos instrumentos técnicos.

Ora, isso o que o Marx vê na grande indústria, primeiro ele

vê isso na manufatura, depois na grande indústria, é exatamente o

que o Foucault vai mostrar que vai acontecer socialmente no nível

do corpo e da alma dos trabalhadores no momento em que começa

a revolução industrial no final do século XVIII. E essas ideias, bom

ele apresenta primeiro, vocês sabem, a da Loucura no XVII. Agora,

o bio-poder, toda a história da sexualidade e esta questão, da pro-

dução do corpo, do que ele chama os corpos dóceis para o trabalho,

ele faz em Vigiar e Punir. Então ele começa assinalando a diferen-

ça entre a forma monárquica da punição e forma da punição após a

queda do antigo regime, após a Revolução Francesa e com o ad-

vento da produção capitalista. Ele vai dizer que, no Antigo Regime,

a punição era um suplício que visava destruir o corpo do punido e

culminava com o cerimonial público, o espetáculo público da sua

execução, isto é, a sua subida ao cadafalso, seja a forca, seja a

guilhotina, seja depois o tiro com a espingarda, mas havia um

espetáculo público para manifestar a vingança do soberano contra o

criminoso e produzir o terror nos súditos que contemplavam o

espetáculo da execução e frequentemente a execução era acompa-

nhada até depois do esquartejamento e de salgamento, no caso do

Tiradentes por exemplo.

Ora, Foucault vai mostrar que depois da Revolução France-

sa, depois da queda do antigo Regime e com o início do modo de

produção capitalista, a punição muda de caráter, ela não pretende

mais destruir o corpo do culpado e sim domesticar esse corpo.

Tornar esse corpo disciplinado, contido, dócil, apto para o trabalho

industrial. Portanto, em lugar da tortura destrutiva ela passa a

praticar o que Foucault chama de uma tortura científica, que opera

para não desfazer o corpo e sim discipliná-lo na prisão, ou seja, por

meio do confinamento do criminoso. Ora, para realizar essa domes-

ticação, essa disciplina do corpo e da alma dos punidos, vão ser

necessárias inúmeras técnicas que vão operar sobre os corpos dos

prisioneiros nos seus mínimos detalhes e essas técnicas são prove-

Page 91: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

91

nientes de conhecimentos científicos. Além disso, para que a prisão

seja eficaz ela deve ter duas características:

Em primeiro lugar ela deve aparecer como um centro de

educação. Ela vai reeducar o condenado, o prisioneiro, para que ele

se torne socialmente útil. A ideia, portanto, é de que houve um

desvio na educação que produziu esse efeito. É claro, excluídos

todos os casos nos quais a psiquiatria vai dizer que é loucura. Aí

você não põe na prisão, você põe no hospício, você confina num

outro lugar, é também tudo muito científico. Você confina o louco

num hospício, mas se ele não for louco, você confina na prisão. A

primeira coisa é confinar para reeducar.

Mas a segunda coisa é que isso só será eficaz através de um

sistema de vigilância, ou seja, é preciso que o prisioneiro saiba e se

sinta vigiado 24 horas por dia em todos os seus gestos e que, por-

tanto, ele está sob o controle do vigilante. Para isso é preciso o

recurso, a arquitetura e a engenharia, e esse recurso, a arquitetura e

a engenharia vai produzir algo que o Foucault vai chamar de uma

máquina de poder que é o famoso pan/opticum (olhar/ver tudo).

Então agora eu vou citar alguns trechos do Vigiar e Punir.

O primeiro trecho que eu vou citar se refere à mudança na forma da

punição e depois o segundo trecho que eu vou citar é o controle, a

disciplina, o controle, a operação técnica do panoptico:“Existe ao

cabo a seguinte divergência: a cidade é punitiva ou deve haver

uma instituição coercitiva? De um lado um funcionamento do

poder penal repartido na totalidade do espaço social presente em

toda parte como cena, espetáculo, signo, discurso, lisível como um

livro aberto, operando por uma recodificação permanente do

espírito dos cidadãos, assegurar a repressão do crime pelos obstá-

culos colocados a partir da ideia de crime e agindo de maneira

invisível sobre as fibras do cérebro como dizia o médico Servan.

Um poder de punir que corria ao longo de toda rede social e agi-

ria em cada um dos seus pontos e acabaria por não ser mais per-

cebido como um poder de alguns sobre alguns, mas como uma

reação imediata de todos com relação a cada um”. Ou seja, a

primeira possibilidade é pensar a estrutura da cidade como uma

estrutura política, e ele vai mostrar como o urbanismo do início da

Revolução Industrial em toda Europa é isso. A cidade é uma rede

penal. É isso que ela é. Isso tá ligada à ideia que vai ser desenvol-

vida pelos historiadores Thompson, Christopher Hill, Hobsbawm, a

ideia de que os trabalhadores constituem uma massa perigosa, que

inunda as cidades e, portanto, é preciso que a cidade, como tal, seja

uma rede penal de controle, vigilância e disciplina. Essa é uma

coisa que o urbanismo, as técnicas de urbanismo vão fazer. Mas há

uma segunda questão colocada ao lado dessa, e no caso das técni-

cas de urbanismo, vocês sabem, quem analisa isso maravilhosa-

mente é Walter Benjamin quando ele analisa Paris, capital do

século XIX, por que Paris tem os grandes boulevards, que foi a

maneira que o arquiteto e engenheiro Haussmann inventou para

impedir as manifestações dos trabalhadores.

A outra possibilidade é um funcionamento compacto do

poder de punir. Um encarregar-se meticulosamente do corpo e do

tempo do culpado, um enquadramento dos seus gestos, das suas

condutas, por um sistema de autoridade e de saber, uma ortopedia

que se aplica aos culpados a fim de reerguê-los e readestrá-los

individualmente. Uma gestão autônoma desse poder, que se isola

tanto do corpo social quanto do poder judiciário propriamente dito.

É nisto que se engajou a emergência da prisão moderna. A institu-

cionalização do pode de punir ou mais precisamente o poder de

punir está mais assegurado quando ele se esconde sobre uma fun-

ção social geral não só na cidade punitiva ou punidora, mas tam-

bém quando ele se investe numa instituição coercitiva, num lugar

fechado, onde se possa ter um reformatório. Em todo caso pode-se

dizer que se encontra no final do século XVII são três maneiras de

organizar o poder de punir.

A primeira é aquilo que funcionava ainda apoiando-se no

velho direito monárquico, portanto no cerimonial da punição e da

execução;

As outras duas se referem a uma concepção preventiva, uti-

litária, corretiva de um direito de punir que pertenceria à sociedade

inteira, mas essas duas maneiras são bem diferentes umas das

outras no nível dos dispositivos técnicos que elas exigem. Esque-

matizando muito, pode-se dizer que no direito monárquico a puni-

ção é um cerimonial de soberania, ela utiliza as marcas rituais da

vingança que ela aplica sobre o corpo do condenado. Ela desdobra

aos olhos dos expectadores o efeito de terror tanto mais intenso

quanto mais descontínuo irregular e sempre acima das suas pró-

prias leis. Isto é, ela trás a presença física do soberano e do seu

poder. Ao contrário, no projeto dos juristas reformadores, a puni-

ção é um procedimento para requalificar os indivíduos como sujei-

tos de direito. Ela utiliza não marcas, mas signos, conjuntos codifi-

cados de representações do qual a cena do castigo deve assegurar a

circulação a mais rápida possível, a aceitação, a mais universal

possível. No projeto de instituição carcerária que se elabora, a

punição é uma técnica de coerção dos indivíduos, que ela põe em

obra por meio de procedimentos de amansamento do corpo. Por

meio de traços e sinais sob a forma de hábitos ela opera sobre os

comportamentos e ela supõe a posição de um poder específico de

gestão técnica da pena. Passa-se do soberano e de sua força e do

corpo social para o aparelho administrativo. O corpo que é suplici-

ado, a alma, cujas representações são manipuladas, o corpo que é

domado, aí estão três séries de elementos que caracterizam três

dispositivos enfrentando-se uns aos outros no final do século

XVIII. Não se pode reduzi-los nem a teorias diferentes do direito,

nem identificá-los a aparelhos e a instituições, nem fazê-los derivar

de escolhas morais, eles são modalidades, segundo aos quais se

exerce o poder de punir, são postar em marcha, portanto, três tec-

nologias de poder. O problema é então o seguinte: como aconteceu

que o terceiro, a punição via carcerária foi aquele que finalmente se

impôs. Com relação aos outros dois, do soberano e ao da cidade.

Como o modelo coercitivo corporal solitário, secreto, do poder de

punir, substituiu o modelo representativo, cênico, significante,

público e coletivo, do antigo regime? Bom, Foucault vai responder

a esta pergunta dizendo que a sociedade que se institui no final do

século XVIII, portanto, após a Revolução Francesa, e a queda do

antigo regime, propõe outra organização do poder no qual a racio-

nalidade administrativa se torna central. E do ponto de vista políti-

co, social e econômico, ela propõe a substituição da cerimônia

pública de vingança punitiva pelo confinamento na prisão, porque a

prisão está encarregada de domesticar e disciplinar os corpos para o

Page 92: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

92

trabalho industrial e, por isso, a prisão surge como uma técnica

mais racional e mais eficaz do que as outras formas de punição.

Agora resta saber como que opera essa racionalidade prisional, ou

seja, como é que a racionalidade técnica da prisão vai operar. En-

tão, para isso, Foucault vai analisar a invenção de uma tecnologia

de vigilância e controle que ele apresenta como uma máquina do

poder e que é o panóptico. Sugiro que vocês peguem alguma edi-

ção do “Vigiar e Punir” para ver as várias propostas do panóptico.

A que o Foucault analisa é a primeira que é a do Bentham, mas

depois, ele vai se reproduzir em toda parte, e o que nós vamos ver é

que o formato que o panóptico tem vai ser o formato que a grande

indústria terá particularmente na etapa Fordista. A organização

arquitetônica da grande fábrica vai ser idêntica a da prisão, a do

panóptico. É a mesma técnica de vigilância que é usada nos dois

casos. Eu cito Foucault: “O panóptico de Bentham é a figura arqui-

tetônica da composição desta ideia. Conhece-se o seu princípio.

Como é essa arquitetura? Na periferia, um edifício em anel, no

centro uma torre. Esta é furada com grandes janelas que abrem para

a face interior do anel. O edifício periférico e dividido em celas.

Cada uma atravessa toda a espessura do edifício. Elas têm duas

janelas. Uma virada para o interior, que corresponde às janelas da

torre, e outra, virando para o exterior, que permite a luz atravessar

a cela de ponta a ponta. Basta então, colocar um vigia na torre

central e colocar em cada cela um prisioneiro, que pode ser um

louco, um doente ou um condenado, um operário ou um estudante.

É feito contra as revoltas estudantis, as revoltas populares, portan-

to, os estudantes e os operários, e, claro, é o instante no qual, você

tem o confinamento dos loucos, e dos doentes, os embestiados, e os

criminosos. Mas é o mesmo procedimento para todos. Ou seja,

você vai à prisão, no hospital, ou na fábrica, é a mesma técnica

arquitetônica que está presente. Portanto, o que se tem é a vigilân-

cia. O controle e a vigilância. Pelo efeito da luz do sol que penetra

na cela, quem está na torre pode ver exatamente as pequenas silhu-

etas dos cativos nas celas, que estão na periferia do edifício em

anel. Há tantas celas, tantos pequenos teatros, para cada ator, por-

que em cada uma há um único ator que é perfeitamente individua-

lizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza

as unidades espaciais que permitem ver sem cessar e reconhecer

imediatamente. Em suma, inverte-se o princípio da antiga prisão,

na antiga prisão, pensem na Bastilha, em prisões como ela você

enfia o cara em um buraco e esconde ele lá. Agora mudou comple-

tamente. Inverteram-se as três funções. Encerrar, privar de luz, e

esconder. Disso se guarda a primeira função e suprimem-se as duas

outras. Em plena luz, o olhar de um vigilante capta melhor do que

na sombra que finalmente, na antiga prisão. protegia. A visibilidade

é uma armadilha. O que permite de inicio, como um efeito negati-

vo, é evitar que as massas, compactas, perigosas, que existiam nas

prisões antigas, aconteçam novamente. Agora, cada um está no seu

lugar. Bem fechado numa cela, e ele é visto de frente pelo vigilan-

te. Mas as paredes laterais o impedem de entrar em qualquer conta-

to com seus companheiros. Enquanto que na prisão antiga, estava

todo mundo junto num buraco só. Ou seja, ele não vê, ele não

informa, ele não é sujeito de uma comunicação. A disposição de

sua cela, diante da torre central, lhe impõe uma visibilidade axial,

mas as divisões do anel, as celas bem separadas, implicam uma

invisibilidade lateral. Se vocês tomarem o livro “O direito a pre-

guiça”, a descrição que é feita da grande fábrica é exatamente essa

aqui. As celas bem separadas implicam uma invisibilidade lateral.

É esta a garantia da ordem. Se os detentos são condenados nenhum

perigo que eles façam complôs; que haja uma tentativa de fuga

coletiva; projetos de novos crimes para o futuro; más influências

recíprocas. Se eles são doentes acaba o perigo do contágio. Se eles

são loucos, nenhum risco de violência recíproca. Se eles são crian-

ças, nada de malandragem, nada de barulho, nada de tagarelice,

nada de dissipação. E se eles são operários, nada de brigas, nada de

roubos, nada de coalizões, nada destas distrações, que atrasam o

trabalho, que tornam o trabalho menos perfeito, ou provoquem

acidentes. A multidão, a massa compacta, lugar de trocas múltiplas,

de individualidades que se fundem, um efeito coletivo é abolido em

proveito de uma coleção de individualidades separadas. Sob o

ponto de vista do vigilante ela é substituída por uma multiplicidade

contável e controlável. E do ponto de vista dos detentos, por uma

solidão sequestrada e vigiada. Vem daí, o principal efeito do panó-

ptico. Induzir no detento, ou no operário, um estado consciente e

permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automá-

tico do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente nos seus

efeitos, mesmo se ela for descontínua na sua ação. Que a perfeição

do poder tenda a tornar inútil a atualidade do seu exercício. Que

este aparelho arquitetônico seja uma máquina para criar e sustentar

uma relação de poder independente daquele que o exerce. Em

suma, que os detentos, ou os operários estejam tomados numa

situação de poder na qual, eles próprios acabam se tornando os

portadores. Para isso é preciso, ao mesmo tempo, mais e pouco,

que o prisioneiro esteja sem cessar observado por um vigilante.

Muito pouco, porque o essencial não é que ele esteja vigiado, e

sim, que ele se saiba vigiado, muito, porque não há necessidade de

que ele o seja efetivamente.

Para isso, Bentham colocou o princípio que o poder devia

ser visível, e inverificável. Visível, sem cessar, o operário terá

diante dele os olhos da alta silhueta da torre central a partir da qual

ele é espiado, inverificável, ele nunca saberá se está sendo atual-

mente olhado, mas ele deve saber que ele pode sempre estar sendo

vigiado. O panóptico é uma máquina para dissociar o par ver e ser

visto. No anel periférico, se é totalmente visto, sem jamais ver. Na

torre central se vê tudo, sem jamais ser visto.

Dispositivo importante porque ele automatiza e desindivi-

dualiza o poder. Este tem o seu princípio menos em uma pessoa e

mais numa certa distribuição organizada dos corpos, das superfí-

cies, das luzes, dos olhares, numa aparelhagem, cujos mecanismos

internos produzem a relação nas quais os indivíduos estão presos.

Há uma maquinaria que assegura a dissimetria, o desequilíbrio e a

diferença. Pouco importa por consequência, quem exerce o poder.

Um indivíduo qualquer, quase ao acaso, pode fazer a máquina

funcionar. O panóptico é uma máquina maravilhosa que a partir

dos desejos dos mais diferentes fabrica perfeitos homogêneos de

poder. O panóptico é utilizado como uma máquina para fazer expe-

riências. A submissão real nasce mecanicamente de uma relação

fictícia. Por isso, já não é mais necessário recorrer aos meios da

força para constranger o condenado à boa conduta, o louco a acal-

ma, o operário ao trabalho, o estudante a aplicação, o doente a

observação da receita. Não são mais necessárias grades. É suficien-

Page 93: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

93

te que as separações sejam claras e as aberturas bem dispostas. É

por isso que o panóptico é utilizado também como uma máquina

para fazer experiências, isto é, para modificar o comportamento,

domesticar, e domar os indivíduos. Experimentar medicamentos e

verificar seus efeitos. Ensaiar possíveis punições aos prisioneiros

de acordo com seus crimes ou seu caráter, procurar os mais efica-

zes. Ensinar simultaneamente diferentes técnicas para os operários.

Estabelecer qual é a melhor. Podem se tentar experiências pedagó-

gicas, em particular, retomar o célebre problema da educação

reclusa, utilizando as crianças perdidas. Vê-se então, se está em

presença de crianças muito bem educadas. Pode-se verificar assim,

que diferentes crianças podem se educadas em diferentes sistemas

de pensamento fazendo alguns acreditarem que dois e dois não são

quatro, que a lua é um queijo, e depois colocá-los todos juntos

quando estiverem com vinte ou vinte e cinco anos e ter-se-ia então,

um conjunto de discussões que valeriam bem as conferências pelas

quais se dispensa tanto dinheiro. Ter-se-ia com isso então uma

educação capaz de fazer novas descobertas no domínio da metafí-

sica.

O panóptico é o lugar privilegiado para as experimentações

sobre os homens, e para analisar, com toda a certeza, as transfor-

mações que podem se obter deles. Ele é um aparelho de controle

que controla os seus próprios mecanismos. Ele é, portanto, essa

máquina que se acopla com outras máquinas para operar sozinha.

Na sua torre central, o diretor pode espiar todos empregados que

têm sobre sua ordem, enfermeiros, médicos, contramestres, profes-

sores, guardiães. Ele poderá julgá-los continuamente e modificar a

conduta deles, lhes impor métodos que ele julga melhor. E ele

próprio, por sua vez, poderá facilmente ser observado. O panóptico

funciona assim como um laboratório do poder. Graças aos seus

mecanismos de observação, ele ganha em eficácia e em capacidade

de penetração no comportamento dos homens em crescimento de

saber, que vem se estabelecer sobre todos os avanços do poder, e

descobre objetos a conhecer sobre todas as superfícies sobre as

quais ele venha a se exercer. Ele é a grande máquina vigilante,

controladora, disciplinadora, do período da máquina industrial.

Então, o que eu quis fazer, trazendo Foucault, foi explicitar

aquilo que o Marx chamou de a servidão do trabalhador e que o

Marx apresentava apenas no interior da fábrica, e o que o Foucault

faz é mostrar que o espaço da fábrica finalmente se torna o espaço

da cidade e o espaço de todas as formas de confinamento. E que

tudo isso opera com uma técnica de controle arquitetônica, numa

obra de arquitetura, de engenharia, de pedagogia, de medicina, de

psiquiatria, tanto quanto de instrumentos e ferramentas.

Aula 12 (12-11-2012)

Quero dar dois avisos. Primeiro aviso: eu penso que a pru-

dência que exige que... porque na próxima segunda-feira nós não

teremos aula; na outra segunda-feira, que será a última aula, eu

proponho começar às duas da tarde. Se não precisar ir até às seis,

não vamos até às seis, se precisar ir até às sete, estamos aqui. Por-

que aí, eu concluo o curso. Na segunda-feira, da conclusão do

curso, eu vou trazer as três questões para vocês escolherem o que

querem fazer; e o prazo que eu coloquei para a entrega é na quinta-

feira, dia 6 de dezembro. Eu peço que vocês entreguem até às 7 da

noite, porque lá pelas 8,9, eu venho aqui buscar para passar o final

de semana na vossa companhia.

O que mais?

Acho que os meus avisos eram estes.

[ao responder uma pergunta, Marilena informa que quanto

à correção das questões elaboradas por ouvintes – ela a fará, mas

dará prioridade para os alunos]

Eu quero começar aula de hoje é... a aula de hoje vai ser

praticamente toda ela dedicada... [alguém interrompe a aula a fim

de disponibilizar uma lousa]

[alguém pergunta a respeito em quantas páginas o trabalho

deverá ser feito ao que ela responde: duas!, quem escrever três,

pode escrever;, escreve três, escreve quatro... eu leio duas! — risos

— não tem limite para vocês escrever, mas tem limite para eu ler;

tá? é se ficar... faz as duas páginas de falta um parágrafo de conclu-

são, é claro! vai pôr o parágrafo de conclusão na página três, é

óbvio! mas não uma página três, uma página quatro; eu me sinto

humilhada de fazer este pedido para vocês, mas é que não tem

jeito, porque a gente é posto para trabalhar em escala industrial,

então... é entrar na linha de montagem]

Então, o que eu vou ler dizer é que, praticamente toda aula

de hoje, eu vou dedicar a uma elucidação do objeto técnico enquan-

to tal; porque nós vimos a técnica: a técnica, o pensamento sobre a

técnica, e nós vamos ter que entrar (o que nós vamos fazer na

próxima aula)... sobre as condições que levaram à tecnologia con-

temporânea a ser o que ela é; mas, em uma aula eu me detive no

objeto técnico no objeto técnico como tal (nas características do

objeto técnico enquanto tal). Então, eu vou desdobrar esta discus-

são, primeiro com a diferença entre o objeto técnico artesanal e o

objeto técnico industrial; depois, a diferença entre o maquinismo e

o automatismo e depois as características gerais dos objetos técni-

cos, sejam eles os antigos, os medievais, os renascentistas, os

modernos e os contemporâneos. Algumas características que os

objetos técnicos possui que valem para todos ; mas valem para

todos eles.

Eu quero começar pedindo a vocês que olhem este quadro.

Eu fiz este quadro a partir de um texto de Simondon (Simondon, G.

Du mode d'existencedesobjetstechniques), está na bibliografia de

vocês. O livro este: O Modo De Existência Dos Objetos Técnicos.

Então, Simondon propõe fazer a distinção entre o artefato artesanal

e o artefato industrial (ou o objeto técnico artesanal e o industrial)

da seguinte maneira: o artefato artesanal, nele, primeiro, cada

objeto é único, o mesmo que o artesão que fabrica em vários. A

prova disto é o instante em que você vai ao antiquário, ou você vai

ao museu, e você vê as peças antigas. Se você vai, por exemplo, ao

Louvre ou ao BritishMuseum, que fizeram imperialisticamente, o

sequestro e o roubo de toda a produção da antiguidade... você vai

no Egito, você não vê nada, você vai na Grécia, você vê muito

pouco... para ver toda a civilização antiga, você vai lá nos dois

centros imperiais que roubaram tudo e puseram nos seus museus.

De toda maneira, feito este pequeno comício, você vai o que você

vê coleções de objetos, por exemplo: vasos, ânforas, arcas, cofres,

Page 94: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

94

vestidos, mantos; e, muitas vezes, são vários, que foram feito, às

vezes, na mesma cidade, às vezes, na mesma época e, no entanto,

cada um deles é inteiramente diferente do outro, porque o artesão

opera com os meios técnicos diretos ligados à operação que ele

realiza com as mãos e na circunstância dada. Suponha, por exem-

plo, que ele está soprando o vidro e começa a chover... e caem

algumas gotas de água sobre o vidro que ele está soprando, vai sair

um tipo de vidro. Ele está soprando e venta; e, a massa é mole, ela

se curva. Então, você tem um vaso cuja forma é curvada. Ou você

tem um carpinteiro que está fazendo uma arca. Dependendo de

como o martelo bate, a madeira reage, se a madeira estava verde, se

a madeira estava muito madura, e assim por diante, embora, ele

faça cofres ou arcas muito semelhantes, cada uma delas é comple-

tamente diferente. Então, a primeira característica do objeto artesa-

nal é que ele é único, cada um é um, mesmo que o artesão faça

inúmeros; sobretudo porque ele é um profissional que faça aquilo.

Então, ele vai fazer, realmente, muitos. Mas cada um deles é distin-

to do outro, porque está vinculado às condições diretas da confec-

ção do objeto.

Em contrapartida, o artefato industrial é um objeto em sé-

rie, ele é padronizado de eles são todos iguais.

O único lugar, eu acho, os objetos padronizados não são

rivais é no Brasil. [risos]. Você compra de cada um acaba sendo de

um jeito, como se fosse uma coisa artesanal: uma tragédia! Mas, de

toda maneira, no nível dos princípios, no nível abstrato dos princí-

pios, um objeto industrial é um objeto padronizada: idêntico a

todos os outros; não existe, portanto, a individualidade do objeto.

Como consequência, o artefato artesanal é personalizado:

você sabe... pelo menos... se você não souber quem foi o artesão,

você sabe, pelo menos, onde, quando, aquilo foi feito e para quem

foi feito. O artefato industrial é completamente impessoal. O arte-

fato artesanal, nós vimos isto quando estudamos a técnica na Anti-

guidade: o uso que determina a fabricação, ou seja, o usuário é que

encomenda o objeto, e é em função do uso que vai ser feito do

objeto que ele é fabricado. No artefato industrial, é o contrário. No

modo capitalista de produção, é a fabricação que vai impor o uso.

A produção cria o uso, ela inventa o uso.

O artefato artesanal é um objeto que analítico, ou seja, ca-

da elemento tem função própria e finalidade própria. O objeto pode

ser decomposto em suas partes e cada uma delas conserva sentido e

finalidade: se você desmonta um artefato,... você desmonta uma

arca, você não destrói partes que a compõe, tanto que você poderia

recompô-la ou fazer um outro objeto com aquilo. Ou seja, cada

parte mantém a sua integridade, porque elas foram simplesmente

acionadas com umas das outras.

O artefato industrial era um objeto sintético. Cada elemen-

to opera pela relação com outros, há dependência interna entre os

constituintes, troca de energia entre eles e se você desmonta, você

não remonta nunca mais, porque cada peça só funciona naquela

posição e naquela relação: ela não tem autonomia. Você desmonta

uma arca antiga e faz um cofre, você desmonta uma cadeira de

plástico e não faz mais nada. Você desmonta um rádio ou você

desmonta uma televisão antiga, você não vai fazer nada com as

peças separadas, elas não têm nenhuma possibilidade de uso quan-

do elas estão fora da relação com as outras peças com as quais elas

compõem o objeto, ou seja, as partes não tem autonomia, não tem

identidade fora da relação.

O objeto artesanal tem uma coerência interna frágil, seja,

cada parte realiza sua função sem as outros. Você pensa, por

exemplo, uma máquina artesanal em que cada parte da máquina

(pensa num moinho)... em que cada parte realiza sua função, de tal

maneira que se você corta uma das funções, as outros podem conti-

nuar se realizando. O moinho, provavelmente, não cumprirá sua

função, mas as outras partes funcionarão. É muito curioso porque

você tem um objeto analítico, um objeto cujas partes são indepen-

dentes umas das outras, e, ao mesmo tempo, uma coerência muito

frágil, porque cada parte na medida em que é separável e indepen-

dentes das outros, ela pode ser retirada. Isto modifica a operação

que o objeto vai realizar, mas ele opera assim mesmo.

O objeto industrial tem uma coerência interna forte. Ou se-

ja, há uma sinergia das funções e troca recíproca das energias e de

informação: o objeto é um sistema ou uma estrutura de múltiplas

funções interligadas.

Eu vou depois, mais adiante na aula, explorar esta noção

de que o objeto técnico é um sistema; que a sistematicidade é um

elemento fundamental na sua definição.

E no caso do artefato industrial você tem uma transforma-

ção, ou uma modificação. Vou evitar usar a palavra história... e

vocês vão ver durante aula porque eu vou evitar usar a palavra

história. Nós, do ponto de vista temporal, vamos dizer assim, o

objeto industrial passa por duas grandes formas distintas. Na sua

forma inicial, ele é um objeto mecânico (é a máquina, que nós

vamos ver, é o maquinismo), ou seja, ele é baseado na comunica-

ção de movimento entre as partes, por exemplo: a manivela, com

que se fazia o automóvel a começar a funcionar; iniciava a manive-

la na frente do motor e girar a manivela de era ela que fazia o

motor iniciar o trabalho. A mesma coisa ocorreu com telefone:

você geravam uma manivela atéacionar a energia necessária para o

telefone se comunicar com a telefonista, quer dizer, não se comuni-

cava com mais ninguém, se comunicava com a telefonista e ela

fazia a alteração que ligavam você com a pessoa com quem você

queria falar. No elevador, a mesma coisa: não só o elevador era

uma máquina inteirinha visível... você entrava (vocês são muito

jovem...) no elevador, via tudo do elevador, via tudo, porque ele

era de grades, ele era todo vazado e você via, para cima e para

baixo, e... tinha o ascensorista... tinha um cara lá... e ele não era um

ascensorista que tocava um botão, ele girava uma manivela para

fazer o elevador subir ou descer: aí uma operação inteiramente

mecânica para o elevador funcionar. O outro exemplo mais clássico

é o da máquina a vapor, ou seja, a forma inicial de um objeto técni-

co industrial é a forma mecânica e era máquina; e, como máquina,

e a operação dele é baseada na comunicação de movimento para

ele: você tem que imprimir o movimento nele para que ele possa

funcionar. A forma atual do objeto industrial, do objeto técnico,...

ele é um objeto automático, ele é um autômato e, portanto, ele não

se baseia na comunicação de movimento, que é o que caracteriza a

Page 95: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

95

máquina, ele se baseia na comunicação de informação entre as

partes.

Antes de nós examinarmos esta diferença entre o autômato

e a máquina,quero comentar pouco este quadro do Simondon. O

primeiro aspecto interessante deste quadro é que ele mostra o

objeto técnico artesanal dependendo das relações com o mundo

percebido, o mundo natural percebido, isto é, os aspectos qualitati-

vos da matéria são fundamentais para que o objeto seja produzido:

duro, mole, quente, frio, seco, úmido, grande, pequeno, comprido,

curto, ou seja, aquilo que, depois, na história da filosofia, vai rece-

ber o nome de "as qualidades secundárias", que são as qualidades

sensoriais. Então, são essas as qualidades com as quais o artesão

trabalha; que trabalha a partir desta maneira com que a matéria se

apresenta para ele, porque são estas as características da matéria

que vão determinar a forma que ele vai poder imprimir nela. Então,

o artesão preciso obedecer às condições que são impostas a ele que

a matéria. Ou seja, ele só pode colocar na matéria uma forma para

a qual a matéria está preparada. A matéria tem que estar potencial-

mente disposta, ou preparada, para receber aquela forma.

O objeto técnico industrial não tem mais nenhuma relação

imediata, ou direta, com um mundo natural percebido. Ou seja, ele

é regido pelas leis científicas da física e da química e, portanto, ele

é tratado do ponto de vista quantitativo. E é por isto que digo técni-

co, no mundo industrial, não é um artesão, ele é um engenheiro.

Ele dispõe de conhecimentos científicos, que são a física e química

(e a matemática, evidentemente), para determinar a fabricação, a

produção, do objeto. Simondon vai explicar um pouco o quadro

que ele apresentou, e eu vou citar um texto do Simondon que está

nas páginas 34 e 35 do modo de existência dos objetos técnicos.

Simondon diz o seguinte: "O objeto técnico artesanal é a abstrato

(ou seja, ele pode ser dividido nas suas partes), o objeto técnico

industrial é concreto (é uma síntese). A essência da concretização

do objeto técnico é a organização em subconjuntos funcionais no

funcionamento total. Cada estrutura preenche uma função, mas no

objeto técnico abstrato (que é o objeto artesanal) ela preenche

somente uma função, essencial e positivo, integrada no funciona-

mento do conjunto. No objeto técnico industrial concreto, todas as

funções preenchidas pela estrutura são positivas, essenciais e inte-

gradas no funcionamento do conjunto. No objeto concreto (indus-

trial), cada peça não é somente aquilo que deve corresponder à

realização de uma função desejada pelo construtor, mas era uma

parte de um sistema no qual se exerce uma multidão de forças que

se produzem efeitos independentes da intenção fabricadora. O

objeto técnico concreto é um sistema físico-químico no qual as

ações mútuas se exercem de acordo com as leis da ciência. A fina-

lidade da intenção técnica só pode atingir a sua perfeição na cons-

trução do objeto se estiver em identificada, portanto, com o conhe-

cimento científico universal. O fato de que o objeto técnico perten-

ce à classe de objetos factíveis que respondem a alguma atividade

humana definido nãolhe limita nem define em nada o tipo de ações

físico-químicas que podem se exercer neste objeto, ou entre este

objeto, no mundo exterior. A causalidade produtora neste objeto

técnico industrial não é a vontade nem a intenção do fabricador,

mas é a causalidade natural físico-química que o fabricador precisa

conhecer para que o objeto preencha a finalidade que lhe vai ser

dada".

Se observa, portanto, no Simondon e pela comparação en-

tre estas duas formas de objetos técnico é que vai se estabelecendo

uma quase independência do objeto em relação ao seu produtor.

Isto é essencial para nós entendermos o que se passa na grande

indústria quando Marx descreve o processo de alienação. O que

torna possível o processo de alienação do trabalhador, o seja, o fato

de que ele nãose reconhecer no produto do seu trabalho não é só a

fragmentação que a manufatura produziu e a hiperfragmentação

que a maquinária produziu. Não é só isso. É o fato de que a ação

que ele realiza é uma ação determinada por um conhecimento

técnico-científico que ele, trabalhador, não possui. Quem possui

isso era o engenheiro, é o arquiteto, que impõe um confronto de

ações que o trabalhador tem que realizar. Nós temos a ação do

trabalhador sob duas grandes formas. A primeira é: ele não pode se

reconhecer no produto do trabalho porque o trabalho se fragmen-

tou. A segunda é: ele não pode se reconhecer no produto do traba-

lho porque as condições da fabricação deste produto que ele vai

produzir não são estabelecidas por ele, são estabelecidas "fora"

dele, pelos técnicos e engenheiros. Isso significa que, portanto, vai

havendo uma independência, crescente, do objeto com relação ao

seu produtor. E é isto que suscita as posições (que eu vou examinar

na última aula)... as posições pessimistas com relação aos objetos

técnicos, isto é, a ideia de que os objetos técnicos (industriais)

escapam do controle humano. Eles escapam do controle humano...

primeiro, eles escapam do controle do fabricador, isto é, eles esca-

pam do controle do trabalhador; mas, depois (nós vamos ver isto

com o automatismo), eles vão escapar do controle do usuário e,

finalmente, eles vão escapar do controle do técnico e do engenhei-

ro. É como seu objeto ganhasse uma vida própria que é indepen-

dente da sua produção e do seu consumo. Estas visões pessimistas

vão aparecer não só as críticas à técnica (todas as obras de crítica à

técnica contemporânea), mas vão aparecer também com o surgi-

mento de um tipo novo de literatura, que só foi possível a partir de

um mundo industrial, que é a ficção científica. Portanto, a crítica

filosófico-científica da técnica, quanto a crítica literária da técnica

pela ficção científica, estão muito vinculadas a este movimento

pelo qual o objeto técnico, ou o objeto produzido pela tecnologia

cada vez mais avançada, escapa do controle do seu produtor, e

depois, do controle do seu consumidor.

[pergunta de aluno]

Boa pergunta! O Simondon está usando (eu devia ter dito

isto desde o começo) a distinção hegeliana entre abstrato e concre-

to. Para Hegel, aquilo que é dada e imediatamente a nossa experi-

ência, a nossa percepção, àquilo que oposto apontar com medo e

dizer: "Isto é azul", "Isto é uma parede", "Isto é um microfone",

"Isto é o meu colar", "Isto são vocês", isto que constitui, portanto, o

conjunto da experiência sensorial perceptivo é o que, Hegel diz,

isto é abstrato. Tudo o que é dado imediatamente a nós é abstrato.

Por quê? Deste ponto de vista, Hegel tem um predecessor muito

interessante, que é Espinosa. Porque Espinosa diz exatamente a

mesma coisa: aquilo que é dado na experiência imediata é abstrato.

Por quê? O que é algo abstrato? É abstrato aquilo cuja causa des-

Page 96: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

96

conheço, é abstrato aquilo cujo modo de produção eu desconheço.

É abstrato aquilo cuja origem eu desconheço. Então, tudo aquilo de

que eu tenho a experiência imediata e direta é a experiência do

aparecer do mundo para mim, o mundo aparece para minha consci-

ência desta maneira; mas eu ignoro porque ele é assim. Qual é o

movimento que produz tal como ele se apresenta para mim? E é o

desconhecimento da origem, o desconhecimento da causalidade (no

caso hegeliano é o desconhecimento do processo de engendramen-

to) é o que faz com que isto que eu percebo seja abstrato. É claro

que se você toma a fenomenologia husserliana (e dentro dela,

Merleau Ponty, por exemplo, vai fazer uma inversão completa

disso e vai propor uma fenomenologia da percepção e vai dizer que

não há nada mais concreto que a percepção. Mas, Simondon está

operando neste campo de origem — vamos dizer,espinosana-

hegeliana — em que o dado imediato (àquilo que é dado imediata-

mente na experiência), porque não me fornece a sua origem, a sua

causa, o processo da sua constituição, é abstrato. Ao contrário, o

concreto (agora eu vou usar o Marx)... Marx diz: o concreto é o

concreto porque síntese de muitas determinações, unidade do uni-

verso. É isto que é o concreto. O concreto é aquilo cuja gênese

necessário, cuja produção necessária e cujo processo necessária de

surgimento e de articulação dos componentes da produção de uma

síntese, unitária e identidade, são dados. É por isto que, tanto o

Hegel do como Marx, e na construção da Ética de Espinosa nós

poderíamos dizer um pouco isto, o concreto é dado lá no ponto

final. Eu não sei o que é o Capital quando eu leio o primeiro capí-

tulo do Capital. Quando eu leio o primeiro capítulo do Capital,

Max é taxativo; a palavra que ele usa, o verbo que ele usa é o mais

hegeliano possível, ele diz: o mundo capitalista, a sociedade capita-

lista, aparece como um mundo de mercadorias.... Aparece. No

último capítulo, do último volume do Capital, nós vamos saber

porque aparece assim. O capital é como a Fenomenologia Do

Espírito, do Hegel, ou como a grande lógica do Hegel, é um movi-

mento para explicitar a inversão da aparência na essência compre-

endida. É esta diferença entre o abstrato e o concreto: abstrato é o

ponto de partida, concreto é o ponto de chegada. Fundamentalmen-

te é isto. Salvo dois casos. Guimarães Rosa que diz: o concreto não

está nem no começo (...?...) nem no fim, ele está na travessia.

[Neste autor, se lê o seguinte: "Eu atravesso as coisas — e

no meio da travessia não vejo! — só estava era entretido na ideia

dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente

quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é

num ponto mais, bem diverso do que em primeiro se pensou (... ) o

real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é

na travessia..."]

Antonio Machado: "Caminante, no haycamino, se haceca-

minoal andar"; portanto, é o caminho que constitui o concreto e

não o ponto final e Merleau Ponty quando ele diz: "O revolucioná-

rio navega sem mapas porque ele não possui o álgebra da história".

Posições nas quais se contestam concepções hegelianas e herdada

por Marx de que lá no ponto final o concreto vai aparecer. Qual é o

concreto hegeliano? O Espírito absoluto, isto é, o Espírito que

recolheu dentro de si toda a sua história e, agora, ele é consciente

de si e sabe de si e, portanto, a história terminou. A história do

Espírito. A história empírica ainda continua, nós continuamos aí

empiricamente, mas a história, com "H" maiúsculo, que é um

movimento do Espírito para conquistasse a si próprio, acabou. Que

dia que acabou? Acabou no dia em que Hegel escreveu a última

página da grande lógica. No Marx ainda vai acabar na revolução,

enquanto o comunismo não chegar, o concreto não chega também.

O capitalismo é a abstração pela qual tem que passar para chegar à

concretude socialista e comunista. Então, são estas ideias.

É isto que está pressuposto aqui no texto do Simondon

quando ele diz: o objeto artesanal é abstrato. O que ele quer dizer

com isto? É dado na experiência direta, o imediata, o artesão de-

pende das qualidades que ele percebe: quente, frio, duro, mole,

comprido, curto... é por isto que é abstrato. O objeto industrial é

concreto no sentido em que ele é uma sistematicidade produzida

por uma causalidade físico-matemática. Então, eu conheço a gêne-

se dele; por isto ele é concreto.

Muito bomvocê ter perguntado, porque senão eu iria passar

batido aqui.

Por favor, de vez em quando me façam perguntas, porque

eu vou passando batido... eu sei o que dizer isto na penúltima aula é

o fim da picada... [ risos] mas, nunca é sem tempo; porque às vezes

eu passo batido achando que é cristalino... e não é! Precisa de uma

explicação.

Eu vou concluir com mais uma citação do Simondon. Esta

distinção entre o objeto de prata e o objeto concreto leva Simondon

a propor uma distinção. Esta distinção, nós poderíamos dizer, é

profundamente iluminista; ele distingue entre minoridade técnica e

maioridade técnica. Então, ele diz: "O estatuto deminoridade é

aquele segundo a qual o objeto técnico é, antes de tudo, um objeto

de uso, necessário à vida cotidiana, fazendo parte do ambiente no

meio do qual o indivíduo humano cresce e se forma. O encontro

entre o objeto técnico e o homem se situa, neste caso, é essencial-

mente durante a infância. O saber técnico é implícito, não reflexi-

vo, o costumeiro. O estatuto de maioridade corresponde o contrá-

rio, a uma tomada de consciência e a uma operação refletida do

adulto livre que tem a sua disposição os meios do conhecimento

racional e elaborado pelas ciências. O conhecimento do artesão se

opõe ao do engenheiro".

Então, minoridade técnica significa abstração e o objeto

voltado para o uso; maioridade técnica significa concreção e o

objeto de terminar por um conhecimento científico.

Nós vamos — eu espero —, na última aula, por um pouco

em questão esta distinção.

Há um discípulo do Simondon, Sévis, que trabalha um

pouco essa distinção entre minoridade e maioridade técnica. Um

dos exemplos interessantes que ele dá... ele dá vários exemplos do

que acontece quando você tem um objeto técnico inicial de sua

forma final. Ele vai dizer: há uma tecnicidade, e o grau da tecnici-

dade é tanto menor quanto mais avançado for o objeto técnico. O

que ele quer dizer o seguinte: a tecnicidade é de que conhecimentos

eu tenho que dispor para produzir um efeito técnico. O primeiro

exemplo que ele dá é o do fogo; ele diz, se você toma o mundo

primitivo e o mundo da descoberta do fogo, o fogo é obtido através

de rituais religiosos, ele é considerado mistério sagrado e ele é

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97

compartilhado por pouquíssimos, que são aqueles que detêm o

saber sobre a produção do fogo. (...?...) ele, hoje, com que a criança

da esquina acende isqueiro, risca um fósforo, solta uma bombinha,

acende o fogão, o seja, não há mais necessidade de nenhum conhe-

cimento técnico para usar o fogo. Então, você alcança a maioridade

técnica, do ponto de vista do usuário, quando você não precisa ter

nenhum conhecimento para usar essa técnica. E a minoridade

ocorre quando para usar esta técnica você precisa de um saber

imenso, em geral, ritualístico, secreto, misterioso... então, a ponta

da minoridade é as exigências que são feitas para que você tenha

acesso àquele objeto técnico. E a maioridade e terra: não é feita

mais nenhuma exigência a você. Outro exemplo que ele dá que

muito divertido. Ele diz: se você tomar a maneira como se juntam

essas de roupa, você vai ver que (no caso da Europa ocidental), no

caso dos gregos e romanos, não tem costura, você tem grandes

planos de você enrola, você pregueia, você faz uma série de coisas,

mas não há ideia de uma costura. E no caso, por exemplo, dos

guerreiros, se você tem tiras de couro, cipós que amarram, que são

usadas no vestuário de guerra. Se a gente caminhar um pouco,

chegar, por exemplo, na idade média; se você olhar... não dá para

tentar ver isto em filme de Hollywood; se você olhar estes objetos

em museus... em alguns filmes ingleses dá para ver isto, em filmes

franceses, também. A conexão entre as partes é por tiras: você

junta a manga e o ombro, amarrando uma série de tiras (a mesma

coisa atrás); ou seja... o resultado disto, de duas que , uma: se você

é um camponês, você põe aquela roupa e vai até ela acabar; se você

é nobre, você tem três ou quatro serviçais que vestem você e te

ajuda a se vestir, porque é um acontecimento, você se vestir. Você

tem que amarrar coisinha por coisinha.

Se você passa o momento da manufatura e da primeira re-

volução industrial, você tem o botão... o botão e a casa, e aí, facili-

ta. Aí, quando você vai chegando ao final da primeira guerra mun-

dial, surge o zíper e, com a viagem espacial, esta coisa maravilhosa

que é o velcro. Acabou!

Então, você vai da ausência de conexão na roupa a uma

elaboração desesperada de fios, fiapos de fitas para amarrar tudo

aquilo; depois... Não sei quantos de vocês já viram fazer o caseado

para um botão — não aquilo que a máquina faz..., não! — a costu-

reira fazer o caseado, e a mãe fazer o caseado de ensinar a fazer o

caseado: é um horror, é um inferno, fazer o caseado; você tem que

cortar no tamanho certinho, põe o botão, vê se deu bem e aí, você

vai costurar as bordas, depois, você vai as bordas inteiras, você vai

provar outra vez o botão, se ele passar, você vai repetir esta opera-

ção, agora, pelo avesso; e, de tal maneira que, quando a casa está

pronta, não se percebe mais que ela foi manualmente produzida:

ela é uma perfeição, parece que ela esteve lá desde que o pano

apareceu, esta é a casa perfeita. A mesma coisa, achuriar a barra,

quando você faz do vestido. Imagina!,se no meu tempo tinha esta

máquina estranhíssima (esqueci o nome dela) que faz a barra (in-

dustrialmente, ela faz a barra, este treco que está aqui). Você fazia

na mão; se fosse filó, cetim..., se fosse musseline, o modo de fazer

a barra era secompletamente diferente. Se você pega alguma coisa

de algum (...?...) de brim, você faz... chama-se de pé-de-galinha...

e... a arte de fazer isso, a verdadeira costureira, não deixa jamais

do lado direito aparecer que ela está fazendo pelo lado esquerdo; o

que significa que ela tem que pegar, a cada vez, um minúsculo fio

pelo avesso e passar a linha por aí, porque do lado de cá não pode

aparecer a confecção da barra. Eu tinha uma tia que quando ela via

estes trecos aqui — minha tia era costureira— ...quando ela via

estes trecos aqui, ela dizia: isso se chama carregação, isto é roupa

de carregação; ela ficava o horrorizada com fato de que ficava tudo

aparecendo. Mas se você vai fazer na musseline, se você vai fazer

no cetim, você não pode fazer o pé-de-galinha, você vai fazer um

achuriado, que são pequeninas... mas, pequeninas!... passagens que

a agulha faz entre o avesso e a barra de minúsculas, você não pode

fazer isto ser grande, porque se for grande... desmancha ou, depois,

surge uma folga e a barra começa a ficar toda embalada; tem que

ser rigorosamente feito, e todos do mesmo tamanho. Você é treina-

do para fazer tudo em um tamanho.

É claro que tudo isto aqui é um elemento fundamental da

liberação feminina; é o óbvio! Coisa melhor que as mulheres in-

ventaram para fazer tudo na máquina, aguentar tudo na máquina...

botar o velcro e: para bens! Vamos viver a vida! Por que você se

gastava e se desgastava de esta bobagem; mas isto era a exigência

que a minoridade técnica fazia do que era "a boa costura". Então, o

objeto técnico costurável. eu recomendo vivamente que vocês

leiam o livro da dona Gilda sobre a moda em que ela vai descre-

ver... há um instante em que ela faz uma descrição maravilhosa da

renda. Porque a renda era feito em casa (você fazia a renda), de-

pois, você aplicava a renda, e você bordava em cima da renda. Era

o que acontecia com as meninas operárias que para seguir a moda

faziam isto também, que faziam isto à noite à luz de vela até quase

ficarem cegas. Não é uma história engraçada, a história da técnica,

é sempre uma história de uma violência fora do comum. No caso

das mulheres, a cada passo, a exigência da perfeição no desempe-

nho no cotidiano foi sendo posta de lado, felizmente posta de lado.

Depois, claro (nós vamos ver isto até o final da aula), há um instan-

te no qual (isto ocorreu sempre desde o começo)... os grandes

instantes de grandes mutações técnicas estão vinculados à guerra

(são exigências feitas pela guerra que produzem isto). A primeira

guerra, todos determinados efeitos, no caso, felizmente, todas as

mulheres param de usar roupas compridas, dez anáguas, dez calci-

nhas, cinco meias, dois chapéus, cinco luvas, um babado... toda

aquela coisarada que elas tinham que usar. E passam, lépidas, nos

anos 10,20 e 30, a usar aquelas roupas frágeis, leves, de cotadas...

sem nada embaixo! Leves! Aí, vem a segunda guerra. O que a

segunda guerra faz! A segunda guerra faz uma coisa maravilhosa:

precisa das mulheres na fábrica; os homens foram todos para a

guerra e a produção industrial tem que continuar.... Como você põe

as mulheres na fábrica, se elas têm a casa para cuidar... e os filhos.

Então, você inventa a escola em tempo integral, creche, o jardim de

infância, o maternal... tudo isso... e os eletrodomésticos: os Estados

Unidos criam os eletrodomésticos. Por que, se a mulher tem: fogão

elétrico, o aspirador, o liquidificador, a máquina de lavar roupa, a

máquina de lavar prato... pronto! Ela faz isto de noite, quando ela

volta da fábrica. O que não se avalia era o que significa isto, por-

que, na hora em que você está liberada da carga, do besteirol do-

méstico. Não há nada mais idiota do que o trabalho doméstico

porque, você acabou de lavar um prato e vem um filho com uma

xícara e... você lava a xícara e você lava xícara e vem o tio com

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98

um copo e... você acaba de lavar o copo e vem a filha com a blusa

para lavar e outro para engomar... é uma coisa fora do comum!

Fora-do-comum! Quando você está liberado disto, quanta coisa

você vai fazer, né? Vai para escola, vai para a universidade, vai

viajar, vai escrever... você vai fazer mil coisas. E aí depois... bem

depois inventaram esta coisa extraordinária (com todos problemas

que ela tem)... inventarama pílula. Na hora em que inventaram a

pílula... o feminismo, liberação feminina, a liberação sexual... e

tudo ficou ótimo!

É uma pena que tudo isto aconteceu sob o modo de produ-

ção capitalista. Que a gente sabe tudo isto acontecer sob um modo

de produção capitalista. Mas, enquanto tal, são coisas interessantís-

simas para a gente passar para minoridade técnica para a maiorida-

de técnica. Vocês imaginem todos os procedimentos... por que

ficavam por conta das mulheres, né? Os homens nunca tiveram que

tomar providências nenhuma, nenhuma! Então, todas as providên-

cias artesanais que as mulheres tinham que tomar para não engra-

vidar. E tudo o que elas faziam depois que elas engravidavam. Ora,

vem a pílula... ponto e parágrafo!

Eu não tenho uma visão otimista da técnica porque ela se

realiza no modo de produção capitalista, mas eu não tenho uma

relação de tecnofobia. O que poderíamos fazer com os objetos

técnicos? Uma transformação social. Que é o que acontece com

eles: uma transformação social. (Antecipei a minha última aula).

Então, vamos lá!

Agora, agora vou passar para a questão de qual é a dife-

rença entre a máquina e o autônomo, para entender o objeto técnico

contemporâneo.

Numa obra intitulada "A Sociedade Informática", Adam

Schaff (ele está na bibliografia de vocês), se refere à revolução da

microeletrônica e ele nota que nós estamos completamente rodea-

das por ela no nosso cotidiano de tal maneira que nós não a perce-

bemos. Ou seja, o relógio de (...?...), a calculadora de bolso, o

telefone celular, os computadores, os voos espaciais... tudo isto nos

rodeia sem que a gente, agora, se surpreenda ou se dê ao trabalho

de uma reflexão sobre isso: eles estão dados aí, na nossa experiên-

cia e no nosso cotidiano. Ele fala também na revolução da microbi-

ologia que vai o ocorrerá a partir da descoberta do código genético

(dos seres vivos) e da qual nasce a engenharia genética que pode

alterar o código genético das plantas, dos animais e dos seres hu-

manos e estão aí nos transgênicos (a fazer sua festa no globo terres-

tre). Ele fala também da revolução da energia nuclear, ou seja, a

obtida mediante a fissão e a fusão controlada de átomos e que

poderia propiciar novas formas de energia, mas que está destinada,

até que se prove o contrário, aos militares, apesar de toda a fala do

seu uso pacífico.

Estas revoluções que são "micro", hoje em dia recebem

uma referência ainda mais "micro", que é a referência à "nano"; e

você passa a falar não numa microtecnologia, mas numa nanotec-

nologia. A ideia fundamental, trazida pelo Schaffer, e que a noção

de nanociência e nanotecnologia desenvolve, é o acesso do conhe-

cimento, e depois, das técnicas, ao infinitamente pequeno. É o

poder, o acesso, ao infinitamente pequeno.

No entanto, antes de examinar o que isto significa, é im-

portante compreender como é a mutação que a revolução da micro-

eletrônica, mais do que a da microbiologia e mais do que a da

energia nuclear, do ponto de vista de uma história da técnica. Os

antigos objetos técnicos, até a segunda revolução industrial, diz

Schaffer, eram objetos que a ampliavam a força do corpo humano,

eles eram uma ampliação do corpo. Na antiguidade, ampliação da

capacidade das mãos dos pés; depois, na modernidade, das mãos,

dos pés e dos olhos; com a grande indústria e as máquinas, o corpo

inteiro; mas era sempre um objeto que tinha como referência o

corpo humano do ponto de vista de troncos e membros e o aparelho

sensorial. Os novos objetos tecnológicos, nascidos desta revolução

da microeletrônica não ampliam mais as forças físicas, elas preten-

dem ser uma ampliação das forças intelectuais humanas, ou seja,

uma ampliação da capacidade do pensamento; porque estes obje-

tos, diferentemente dos anteriores, lidam com um novo paradigma.

Os objetos técnicos até a revolução da microeletrônica eram obje-

tos que lhe davam com a comunicação de movimento, eram má-

quinas; máquinas simplíssimas, como as cinco máquinas gregas (a

alavanca, a polia, o parafuso, o martelo, etc.) até a maquinária

complexa da segunda revolução industrial; mas eram máquinas,

comunicação de movimento. Ora, a novidade é que, agora, os

objetos técnicos dependem de informações e eles operam por in-

formações e comunicação de informações.

Esta ampliação da capacidade intelectual ou, pelo menos, a

ampliação das operações do cérebro, são evidentes com o compu-

tador. Ele amplia a capacidade de pensamento de uma maneira

gigantesca, ele realiza em segundos o que seria necessário séculos

para realizar, ele amplia a capacidade de memória, ele torna a

nossa memória quase nada, diante da memória que ele é capaz de

armazenar e mais, este objeto que amplia as capacidades intelectu-

ais, que amplia o pensamento, amplia a memória, opera por infor-

mação, ele está organizado de maneira a se autocorrigir; na maior

parte das vezes, ele é capaz de corrigir suas falhas e de corrigir seus

erros cometidos alguma, em algum processo; ou seja, ele possui

aquelas características que nós vimos com Descartes e Liebniz, em

Hobbes, definiam um autor.

Durante a primeira e a segunda revolução industrial, o

corpo humano se estendeu no espaço; primeiro, com o telescópio, o

microscópio, a máquina a vapor (que deu o trem, que deu o bonde),

depois, com as máquinas elétricas (o telégrafo, o telefone, o rádio,

o cinema, televisão) e as máquinas a combustão, como o automóvel

de o avião. Agora, com os satélites e a informática, é o nosso sis-

tema nervoso central que se amplia, se estende, no espaço que no

tempo. Nós podemos dizer que, como não há limites esta tecnolo-

gia nova, não há limites para estender o nosso sistema nervoso no

espaço e no tempo, nós podemos dizer que essa tecnologia (eu vou

examinar isto na última aula) caminha na direção de não apenas de

diminuir distâncias espaciais e diminuir intervalos temporais, ela

caminha no sentido de eliminar a distância espacial e o intervalo

temporal, ou seja, ela caminha na direção de um "aqui total" e de

um "agora total". É um mundo sem os horizontes do espaço e sem

os horizontes do tempo. Ela é uma tecnologia que abole a geogra-

fia, abole a diferença entre o distante e o próximo e do perto e

longe de que abole, do ponto de vista temporal, a distinção clássica

Page 99: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

99

entre passado, presente e futuro. Então, esta tecnologia é distinta da

que aconteceu até a segunda revolução industrial, porque o que

altera é o nosso modo de inserção (...?...), porque ela altera o nosso

sistema perceptivo. E é por isto que com esta nova tecnologia se

diz que o universo está online durante 24h. Ele não tem um obstá-

culo de distâncias e de diferenças geográficas, de distâncias de

diferenças sociais e políticas e ele não opera com a distinção entre

o dia e noite, ontem, hoje e amanhã. Então, tudo se passa aqui e

agora e isso se vê, não apenas na sala de bate-papo, mas se vê no

modo de operação do capital financeiro, que faz as suas operações

num piscar de olhos, entre empresas e bancos situados nos confins

do planeta, instantaneamente. É um mundo, portanto, do instantâ-

neo.

Esta revolução vai nos conduzir do maquinismo para o au-

tomatismo, ou seja, vai nos conduzir para um objeto técnico cuja

finalidade é substituir uma gente vivo nas funções de execução,

comando, vigilância e controle da produção, seja, o autômato não

imita o ser vivo (não aparece na ficção científica com os robôs,

não); o que o autômato faz é substituir o ser humano.

O automatismo se refere a três aspectos principais: o prin-

cípio do movimento, a operação e a execução da obra e as funções

de comando, regulação, vigilância e controle do objeto.

Princípio do movimento.

A palavra grega automaton significa algo que se move a si

mesmo, algo que é automotor, automovente e que tem em si mes-

mo o princípio do movimento. Era por isto que os modernos (nós

vimos) afirmavam que o autômato perfeito era o corpo humano, a

natureza, feita por Deus, porque depois Deus a cria ela passa a

funcionar por ela mesma que o corpo humano. Você se lembram do

texto do Liebniz da diferença entre a máquina feita pelo homem e a

máquina feita por Deus, no caso corpo humano, a máquina feita

pelo homem, ela esbarra, chega um momento em que as partes

componentes não são máquinas; enquanto que, no caso do corpo

humano, até a mais que ínfima parte, ainda é máquina e, por isso,

ainda é o autômato. Então, este sentido inicial é palavra autômato

tem, de mover-se a si mesmo, leva a considerar que uma máquina

que tem o seu próprio motor, que funciona a partir de si mesmo, é

um autômato. Ou seja, passa-se a falar em automatismo tanto lá

para os antigos quanto para os modernos, quanto para nós quando a

força animal, a força natural e a força humana são substituídas por

uma força técnica como um motor. Quando o motor da máquina

não é nem a força animal, nem a força natural, nem a força huma-

na, mas é uma força, ela própria, técnica, nós dizemos que temos

um automatismo. O autômato é aquele cujo motor é ele próprio um

objeto técnico. Nesse sentido do automatismo envelheceu. O objeto

técnico automático, ou o automatismo (autômato contemporânea),

é muito mais que o sentido que os antigos e os modernos deram

para o autômato. Então, nós entendermos este novo sentido que o

automatismo contemporâneo tem, ou que o autômato contemporâ-

neo tem, nós temos que levar em consideração as duas outras ca-

racterísticas do autômato. Não basta se referir à questão do movi-

mento e dizer: "bom, o autômato é aquilo que tem, em si próprio, o

princípio do movimento". Isto não basta! — para caracterizar o

autômato contemporâneo.

A segunda característica que o autômato tem (e isto é já a

marca do autômato contemporâneo): é a operação e a execução da

obra.

Considera-se que a máquina passa realizar sozinho e por si

mesmo todas as operações que vão executar a obra. Ela é capaz de

comunicar movimento a suas partes. E esta comunicação é chama-

da de automatismo operacional. Mas este elemento que é essencial

para entender o automatismo contemporâneo ainda não nos dá o

núcleo do automatismo contemporânea.

O que nos dá o núcleo do automatismo contemporânea é a

terceira característica do autômato: o comando, a regulação, a

vigilância e o controle exercido sobre a produção.

O objeto técnico automático contemporâneo pertence ao

sistema técnico dominante que é o sistema da tecnologia eletrônica.

Por isso, este objeto tem as seguintes características (e é isto o

autômato contemporâneo): primeiro, ele realiza operações que

implicam pensamento, isto é, se implicam linguagem; porque ele

opera com comunicação e informação de comunicação. Ele opera,

portanto, graças a uma codificação legível e compreensível para a

máquina. E é porque a máquina compreende o código que ela é

capaz de estabelecer as relações entre as suas funções e, é por isso,

que ela pode agir por si mesma e em si mesma.

O que são, portanto, as operações que a máquina realiza?

Essas operações são sistemas de sinais codificados sob a forma de

programas matemáticos e formalizadas em termos da lógica formal

contemporânea. Vocês sabem, em francês, o comprador se chama

"logiciel" [na verdade, este vocábulo em francês, antes, significa

"programa" em português; wikipédia: "Eninformatique, unlogiciel

est un ensemble d'informationsrelatives à destraitementseffectué-

sautomatiquement par unappareil de informatique"], para marcar

que ele opera graças à formalização lógica. Ou seja, o código, que

é um código de informação, que a máquina compreende transmite

as suas partes e indica que opera por mensagens, ela recebe mensa-

gem e envia mensagem. As suas partes estão interligadas por men-

sagens. E não dá para gente dizer "ah, que antropocentrismo louco,

escrever à máquina, parece que eu estou descrevendo...". Não!... é

isto mesmo que ela é. Ela é isto! Ela é aterradora, mas ela é isto;

ela é a compreensão de códigos matemáticos e lógicos que ela

transforma em mensagens e que ela envia para todas as suas partes

as quais trocam entre si mensagens. A ideia era: nós poderíamos

ser inexistentes, alguém tocou um botão e a máquina se pôs a

funcionar. A humanidade termina e a máquina está lá... funcionan-

do; ou seja, ela não precisa de nenhum ser humano para fazer o que

ela faz. Esta é a sua primeira característica.

Segunda característica: ela é dotada de autorregularão, ou

seja, ela é capaz de se voltar sobre si mesma para assegurar o seu

funcionamento correto, o seu equilíbrio interno e a correção dos

seus erros.

Terceiro. Ela opera com três tipos de comunicação: comu-

nicação clássica de movimentos, comunicação clássica de energia e

comunicação nova de informação.

Em quarto, ela opera em diálogo com o mundo exterior e

com o seu utilizador. E ela fazia isto graças ao programa. Sévis vai

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100

nos explicar o que é um programa. Ele está na bibliografia de vocês

também. "O programa é a ingestão pela máquina de uma parte

constante das informações que podem vir do exterior e das instru-

ções dadas ao utilizador e recebidas do utilizador". É isto o pro-

grama.

Em quinto lugar, o autômato contemporâneo não é uma

máquina que se move a si mesma, ele é uma inteligência artificial.

Nós chegamos, portanto, à forma contemporânea do objeto

técnico.

Eu proponho, agora, fazer mais um percurso para exami-

nar as características que fazem com que um objeto seja considera-

do como um objeto técnico. E não só, tomando agora o objeto

técnico contemporâneo, mas o objeto técnico em geral. Aquilo tudo

que a gente viu no decorrer deste curso.

Basicamente, um objeto técnico é um objeto que se refere

a dois tipos de usos possíveis: ou como meio para a produção de

um outro objeto (portanto, como um instrumento, ferramenta,

máquina), ou como um resultado obtido pelo trabalho, pela fabri-

cação, pela produção; ou seja, um objeto técnico é tanto a ferra-

menta, o instrumento, a máquina, que produz um objeto, quanto é o

próprio objeto produzido, na medida em que ele... encarna nele, ele

traz dentro dele, o processo que o produziu. Ele é um objeto da

técnica. Então, eu tenho o objeto técnico como um processo... os

instrumentos para produzir um objeto e um resultado. O resultado

também é um objeto técnico.

Sob esta perspectiva, nós podemos dizer que um objeto

técnico tem as seguintes características (o objeto técnico em geral).

Primeiro: ele é fabricado pelo homem ou ele tem um homem como

causa produtora; ele é uma obra, ou seja, ele não é um efeito de

uma causalidade natural, ele é produto de trabalho.

[aparentemente, a professora "pulou" a segunda caracterís-

tica]

Terceiro: ele é um meio de produção e um produto. Por

exemplo, um martelo é um meio de produção; mas ele próprio foi

produzido, portanto, ele é um produto técnico. Ou seja, em objeto

técnico pode ser um instrumento para a produção ou a finalidade de

uma produção.

A outra característica é que, portanto, pela sua finalidade o

objeto técnico é um utensílio, ou seja, ele é um objeto de uso. Por

exemplo, o vestuário, o transporte, o calçado, os objetos de uso

doméstico e assim por diante. Ele pode ser uma operação humana:

culinária, agricultura, medicina, escrita, as obras de arte; tudo isto é

técnica, tudo isto que nós vimos no correr deste curso. Este conjun-

to de característica não é, senão, a enumeração que nós fomos

vendo no decorrer do curso.

Seja como instrumento de produção, seja como o utensílio,

ou seja, como uma operação, nos três casos a fabricação do objeto

técnico tem um pressuposto básico necessário que são as funções

naturais, ou seja, as matérias-primas disponíveis para a sua fabrica-

ção ou para a realização das suas operações. Mesmo que eu tome o

autômato contemporânea que... (não há nada mais distante do

mundo natural do que ele) há um conjunto de pressupostos que são

dados para que ele possa existir. E que são pressupostos naturais.

Então, o primeiro pressuposto são as condições naturais, que po-

dem ser totais, como no objeto técnico antigo, e mínimas, como no

objeto técnico contemporâneo. As condições históricas , isto é, as

condições sociais, econômicas, culturais, religiosas, científicas,

políticas, que permitem a sua fabricação ou a sua utilização, ou até

que provocam a sua fabricação ou a sua utilização.

O que significa dizer que é preciso considerar que as con-

dições históricas? Entendidas como condições econômicas, sociais,

políticas, culturais. Por exemplo: nós sabemos que os chineses

dispunham, desde toda antiguidade, das condições materiais e

naturais que permitirão a eles a invenção da pólvora e da bússola.

A pólvora é empregada para a diversão, para os fogos de artifício.

E a bússola era vista como uma curiosidade. Foi necessária passar

as condições históricas do início do capitalismo, portanto, uma

mudança nas condições econômicas, sociais e políticas, para que

estes dois objetos técnicos, antiquíssimos, se tornassem aquilo que

eles se tornaram: a pólvora, um elemento de guerra e a bússola, um

elemento de navegação, ou seja, se tornaram instrumentos técnicos

propriamente ditos.

Um outro exemplo. A bíblia narra que Deus não aceitou a

oferenda de Caim, mas aceitou a oferenda de Abel, e foi por isto

que Caim matou Abel. Ora, o que é que cada um ofertou a Deus?

Caim ofertou a Deus os produtos agrícolas, ele era um agricultor. E

Abel ofereceu a Deus os produtos do pastoreio, ele era um pastor.

A narrativa indica, em termos sociológicos e antropológicos, que

nós estamos perante uma sociedade que desvaloriza a agricultura e

valoriza o pastoreio; e isto que significa "Deus não aceitou a ofe-

renda de Caim, aceitou a de Abel e Caim matou Abel". É a luta

entre duas formas da produção econômica, entre a agricultura e o

pastoreio, que vai se repetir na história seguinte, a de Esaú e Jacó,

com um prato de lentilhas, é a mesma história que vai se repetir.

Este era um elemento paradigmático da estrutura sócio-econômico-

política do mundo e hebraico. E nós poderíamos pegar Homero ver

como era isto no caso da Grécia, pegar Virgílio e ver como era isto

no caso de Roma, ou seja,não é possível pensar o significado e a

importância de um sistema técnico ou de um objeto técnico no

interior de uma mesma sociedade sem levar em conta as condições

históricas e desta própria sociedade. Então, eu preciso das condi-

ções materiais, mas eu preciso também das condições históricas;

senão, o objeto técnico fica incompreensível. Então, você lê a

história de Abel e Caim ou lê a história de Esaú e Jacó e fica per-

guntando... por que Jeová não aceitou... Caim plantou com tanto

cuidado, colheu e elevou lá... diabos! Que deus mais tonto, mais

injusto! É que não é isto que está sendo narrado. O que está sendo

narrado é qual é o modo socioeconômico válido perante os hebreus

naquele período. É o pastoreio.

O outro exemplo nós já examinamos aqui, nós sabemos

que a luneta foi inventada pelos flamengos no século XVI e ela nos

circos, nos parques de diversão, como um objeto de curiosidade.

Ora, depois, com as navegações, ela se tornou um objeto náutico,

porque ela servia para aproximar as distâncias; mas, só quando

Galileu vira a luneta para o céu que ela se torna um objeto técnico

do mundo astronômico e da nova ciência.

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101

Então, a história dos objetos técnicos está ligada, sem dú-

vida nenhuma, a uma história das invenções; mas, a invenção

destes objetos só pode ser compreendida se nós levarmos em conta

as condições históricas desta invenção. Mas isto não é suficiente

para que uma invenção técnica seja transformada em um objeto

técnico, isto é, naquilo que é ou utensílio, ou ferramenta, ou ins-

trumento, ou máquina, ou produto; é preciso que haja novas histó-

ricas, sociais, econômicas, que transformem uma invenção efeti-

vamente num produto técnico.

Então, o que nós podemos dizer é que o objeto técnico só

ganha sentido quando a sua finalidade e o seu uso são definidos por

um sujeito técnico que é determinado pelas condições econômicas,

sociais e políticas nas quais ele vive.

O quarto ponto que eu queria apresentar, ainda em redor

da qualificação do que seja um objeto técnico, é um conjunto de

critérios que servem para definir o que é um objeto técnico. E, em

particular, agora, pensando o objeto técnico da segunda revolução

industrial (portanto, o maquinismo) e a contemporânea (o automa-

tismo). Embora, várias das características que eu vou apresentar

aqui sejam válidas para todos os objetos técnicos.

Há três critérios para que se diga que o objeto escolheu um

objeto técnico: a sistematicidade, a normatividade e a historicidade.

Sistematicidade. Nenhum objeto técnico existe isolada-

mente, ele faz parte de um sistema, de uma rede de técnicas e de

uma cadeia de operações que o produzem e que determinam o seu

modo de funcionamento ou seu emprego. Isto vale para o objeto

técnico em qualquer tempo. Esta sistematicidade pode ser menor

ou maior, mas simples (abstrata) ou mais complexa (concreta), mas

ela existe, sempre. Isto significa que a racionalidade do objeto

técnico, ou da inteligibilidade do objeto técnico, não é dada apenas

pela sua finalidade, produzir um determinado fim, mas também a

racionalidade, a inteligibilidade dele, provém das relações que ele

mantém com saber prático e o saber teórico contemporâneo a ele.

O caso mais interessante, que eu acabei de mencionar, foi o caso da

luneta, transformada em telescópio; mas, isto vale para todos os

objetos técnicos.

Assim, nós podemos dizer queum objeto técnico é um sis-

tema de relações técnicas necessárias para sua produção, para sua

existência e para o seu emprego. nós podemos dizer que o objeto

técnico é um sistema sob três aspectos: primeiro, pelo conjunto das

condições teóricas e práticas da sua produção; segundo, pela ma-

neira em comum nele cada elemento opera na relação com outros,

de tal modo que há uma dependência interna entre os componentes

do objeto, que pode ser uma coerência frágil ou uma coerência

forte, como nós vimos no quadro do Simondon, mas tem que haver

esta coerência. E, em terceiro lugar, pelo conjunto das demais

técnicas que condicionam o seu uso [92:33]. Em uma coisa banal,

não há eletrodomésticos sem eletricidade.

[pergunta de aluno]

... entra tudo isto, mais adiante eu vou colocar isto, porque

entra a estrutura cognitiva como entra o lugar que ele ocupa no

interior das relações sociais. As duas coisas vão funcionar, ele é

sujeito neste sentido, como operador.

A ideia de que há um conjunto de condições, que são pres-

supostas para o objeto técnico tem que mostra que ele é um siste-

ma, você pode ter... por exemplo, se você tomar o caso do automó-

vel. O automóvel pressupõe, primeiro: um saber teórico, pressupõe

física e química, no mínimo; ele pressupõe um saber prático, ou

seja, uma rede de ações técnicas que são realizadas nas fábricas

onde ele é produzido; ele pressupõe em conjunto de outras condi-

ções técnicas como a extração da matéria-prima, as condições

técnicas das operações dos trabalhadores, as condições técnicas de

estocagem, as condições técnicas de distribuição, etc., e ele pressu-

põe um conjunto de condições técnicas para o seu uso, ou seja, o

aprendizado da manipulação do produto (é preciso aprender a

dirigir), a existência de uma malha rodoviária (onde ele possa

circular), a existência de uma rede de combustível (onde ele possa

se alimentar), a existência de postos de assistência técnica, as

regras do trânsito, mapas, locais de estacionamento doméstico e

público (ele afeta, portanto, a arquitetura e a urbanização) e assim

por diante. É um sistema! O automóvel não era um objeto técnico

que possa ser tomado isoladamente, ele só e compreensível se eu

levar em contaos pressupostos teóricos, os pressupostos práticos, as

condições efetivas para sua fabricação e as condições efetivas para

o seu uso e o que ele implica, portanto, para uma sociedade se ele

estiver em operação, tanto do ponto de vista da sua fabricação,

quanto do ponto de vista da sua circulação ou do seu consumo. Ou

seja, no caso de São Paulo (isto é tão óbvio), nós temos as monta-

doras — isto definiu por um período longo o que era a indústria de

São Paulo, o que era os metalúrgicos em São Paulo, o que elas

montadoras em São Paulo — e, ao mesmo tempo, hoje, o que

significa que esta afluência do nível do consumo por parte da clas-

se trabalhadora ampliada e por parte da classe média e que trans-

formaram São Paulo neste inferno que São Paulo se transformou.

Tudo isso se chama:automóvel. E este objeto, portanto, só faz

sentido se eu o ligar ao sistema todo do qual ele depende; senão, eu

nunca vou compreendê-lo. E isto vale para qualquer objeto técnico.

Qualquer um. A compreensão de um objeto técnico pede, portanto,

uma ida à sistematicidade interna, as articulações das suas partes

eos seus pressupostos (de fabricação e de uso). Então, nós podemos

dizer que um objeto técnico é um sistema porque ele se comunica

com todos os outros sistemas técnicos de uma sociedade a partir de

alguns sistemas técnicos dominantes; por exemplo: houve um

momento em que o sistema técnico dominante era o sistema hi-

dráulico, tudo o que se faz com a força da água; há um momento

em que é o sistema elétrico, o sistema petroquímico, o sistema

eletrônico, o sistema nuclear e, e assim por diante; ou seja, isto não

significa que os vários os sistemas não coexistam, não possam

coexistir numa mesma sociedade, mas já significa que um deles

numa sociedade é o dominante; e é ele que determina as formas de

relação do objeto técnico com os outros sistemas.

A segunda característica, o segundo critério de definição

do objeto técnico, é a normatividade. Um objeto técnico é um

savoirfaire (um saber fazer) que pressupõe um saber prescritivo e

normativo.

Vocês se lembram quando nós vimos os gregos que eu

examinei o verbo grego poien, de onde vem poíesis [ ação de fabri-

car, fabricação. Confecção de um objeto artesanal. Composição de

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102

uma obra poética. O verbo poiéo significa: fabricar, executar,

confeccionar — obras intelectuais como um poema — , construir,

produzir — no trabalho agrícola de — , provocar — riso, doença,

vergonha, pobreza, lágrimas, riqueza — , fazer — sacrifícios aos

deuses, a guerra, o bem ou o mal a alguém — ; agir com eficácia

produzindo um resultado — um remédio, uma arma, um artefato —

. Aristóteles explicita o sentido principal da poíesis como uma

prática na qual o agente e o resultado da ação estão separados ou

são de natureza diferente. A poíesis Liga-se a ideia de trabalho

como fabricação, construção, composição e a ideia de tékhne — do

livro Introdução à História da Filosofia, de Marilena Chauí]. E que

poien significa medir, pesar, contar, juntar, separar, comparar,

distinguir, ou seja, desde o seu início, as operações da técnica

sempre foram (e são) e normas com regras de ação. Comparar,

medir, pesar, ajuntar, separar... ou seja, o objeto técnico não é um

achado, ele é um resultado que de um trabalho regrado ou de um

trabalho metódico. Não é por acaso que nas sociedades tribais

antigas, a tarefa técnica estava a cargo do feiticeiro (do pajé, do

xamã), porque é alguém que tinha que dispor de condições físicas,

psicológicas e de tempo para a este trabalho regrado e metódico na

produção de um objeto técnico.

Então, o que é a normatividade? A normatividade é o esta-

belecimento de modelos padrões, paradigmas, para a produção de

uma objeto chamado "objeto bem-feito". Aquilo que no início da

aula, quando eu falei da costura, quais eram os critérios para dizer

que aquilo era alta-costura, era a verdadeira e acabou costura.

Todos aqueles pequeninos critérios que eu mencionei aqui estão

ligados a esta ideia de que você tem que ter modelos-paradigmas

padrões que definem o que é o objeto bem-feito ou o objeto acaba-

do. Ou seja, a normatividade determina, para cada tipo de objeto,

levando em conta a sua finalidade, quais devem ser as suas medi-

das, as suas dimensões, de que materiais ele deve ser feito, qual é o

tempo para sua fabricação, o qual é a regulagem específica que ele

tem que ter, qual foi ser a sua durabilidade, e assim por dian-

te....Séris vai dizer que o objeto técnico é o produto de uma seleção

de possibilidades que são... uma seleção que é definida pela esco-

lha de um conjunto de normas e de regras que especificam o modo

da fabricação de um modo do uso do objeto. Por exemplo, uma

coisa “simplésima”(sic), os objetos eletrodomésticos que especifi-

cam se eles podem ser usados a 120 ou a 220 volts; os aviões espe-

cificam o tipo de um combustível que eles têm que usar e as condi-

ções em que eles podem alçar voo e aterrissar (claro, se for da Gol

e da TAM, não prestam a atenção nisto, mas, em todo caso, é exi-

gido — é normatividade saber as condições para decolar de aterris-

sar— por isto que.... vocês viram o que aconteceu ontem, um avi-

ãozinho lá que aterrissou... literalmente aterrissou!). Esta normati-

vidade aparece para o usuário (não para o fabricador, não para o

trabalhador que faz o objeto), mas ela é visível quando o usuário

recebe o manual de instrução do objeto que ele comprou: ele adqui-

re um objeto, e este objeto é um objeto técnico que obedece a

normas, padrões, paradigmas e eu só posso usá-lo se eu soubesse

operar no interior do padrão, do paradigma, da norma, que foi

estabelecida; por isto é que você tem o manual do usuário. Eu

costumo ler, não entender nada de errar tudo. É uma desgraça! Eu

sou uma desgraça com o manual do usuário. Então, o que a norma

ou a regra visa? Ela visa às seguintes coisas: primeiro, determinar

as necessidades intrínsecas para a produção do objeto; segundo, a

rapidez e a eficiência da produção; terceiro, o aumento da quanti-

dade de objetos produzidos; quarto, a qualidade do chamado "bom

objeto" (essas qualidades são: rendimento, solidez, durabilidade,

rentabilidade). Hoje em dia, a nova forma assumida pela acumula-

ção do capital, não há mais a noção de qualidade nem de durabili-

dade; essas normas se tornarão irrelevantes. A norma dos objetos

contemporâneos é a norma do descartável. Então, não tem que ter

qualidade, não tem que ter durabilidade, não tem que ter estoque,

estocagem... não tem nada disso; ele deve durar o tempo que dura

uma rosa....

A outra finalidade da norma é instituir um objeto padrão,

porque é pela figura do objeto padrão que vai se determinar qual é

o desempenho que este objeto tem no mercado e se ele pode como

competir com outros. E, finalmente, a função da normatividade é

instituir valores, no sentido simbólico; ou seja, o significado sim-

bólico que o objeto vai ter.

Finalmente, o terceiro critério para definir o objeto técnico

é a historicidade. Existem duas grandes explicações principais para

a mudança do objeto técnico. A primeira é a chamada de explica-

ção imanente. O que se diz: o objeto técnico, pelas suas caracterís-

ticas, pelo seu uso, vai suscitando inovações que o aperfeiçoam,

que determinam mudanças no seu modo de fabricação, e no modo

de fabricação com os demais objetos com que ele se relaciona. De

tal maneira que isto produz uma mudança em cadeia no conjunto

dos objetos técnicos. E, além disso, os defeitos e os problemas de

um objeto técnico suscitam também modificações que resultam em

objetos técnicos novos. A ideia, portanto, da explicação imanente é

que, no interior da própria técnica, se instala uma temporalidade

que é definido por ela mesma, ou seja, os objetos técnicos carre-

gam, deles mesmos e por eles mesmos, uma temporalidade que se

explica, seja pelas inovações que eles trazem, que acarretam a

mudança dos outros, seja pela correção dos seus defeitos, e assim

por diante.... A segunda explicação é a explicação histórica propri-

amente dita. Em primeiro lugar, há uma explicação que é histórico-

econômica que foi a que procurei enfatizar neste curso. Ou seja, as

mudanças na estrutura social e econômica é que produzem as

mudanças dos objetos técnicos. Ainda no campo histórico, aquilo

que se chama de uma explicação histórico-cultural, ou seja, as

mudanças no objeto técnico decorrem pelointervalo que se estabe-

lece entre o conhecimento científico e a sua aplicação, ou seja,

quando novos conhecimentos científicos propiciam uma mudança,

há um surgimento de um novo objeto técnico.

Frequentemente, se considera que as duas explicações, a

imanente e a histórica, são excludentes. Na verdade, elas não são.

Eu tentei, deste curso, mostrar que elas são... elas estão articuladas,

eu não posso entender as mudanças na técnica sem o subsolo dos

pressupostos econômicos, sociais e políticos, mas eles não me

explicam, no objeto técnico como tal, a mudança que este objeto

sofre. Para isto, eu preciso da explicação imanente a própria técni-

ca. Então, as duas explicações são fundamentais para nós defini-

mos, para nós termos um verdadeiro critério temporal a respeito do

objeto técnico. Então, sistematicidade, normatividade, temporali-

Page 103: Aulas Marilena Chaui - A Questao Da Tecnica

103

dade (ou historicidade), são os critérios pelos quais eu compreendo

o que é o objeto técnico e posso diferenciar, portanto, os objetos

técnicos das diferentes épocas e das diferentes sociedades.

Como eu examinei sempre as condições históricas, sociais,

da técnica nos vários períodos que nós examinamos aqui, é preciso

agora examinar quais são as condições históricas (portanto, sociais

e econômicas) no tocante à forma contemporânea da técnica. Isto é,

depois das revoluções micro e nano, na ciência e da tecnologia, o

que acontece com a forma contemporânea da técnica....uma coisa

que nós podemos dizer desde já. Na sociedade contemporânea, os

objetos técnicos se tornaram a mediação necessária e universal de

todas as condutas individuais, de todas as relações sociais e de toda

vida cultural. Sobre este aspecto, a sociedade contemporânea se

distingue dos períodos anteriores que nós analisamos. Isso me leva

então... eu vou fazer este último tópico. É rapidinho, este último

tópico.

Já que se trata de indagar das condições atuais, a primeira

coisa ao observar é a nova forma da inserção social da ciência.

Com a revolução informática, ou com o automatismo em sentido

pleno, nós estamos presenciando os efeitos (não as causas) de uma

nova forma de inserção do saber e da tecnologia no modo de pro-

dução capitalista. Nas revoluções técnicas, e tecnológicas, anterio-

res, a pesquisa científica, teórica, era autônoma; e ela se transfor-

mava em ciência aplicada quando ela era empregada na produção

econômica por meio de tecnologias vinculadas à produção econô-

mica; ou quando resultados teóricos eram retomados com fins

econômicos em laboratórios mantidos pelas grandes empresas de

produção.

Hoje, a ciência, na sua face teórica quanto na sua face

aplicada, que se tornou uma força produtiva. Ou seja, ela deixou de

ser um suporte para o capital, por meio das tecnologias, e se con-

verteu num agente da acumulação do capital (e da reprodução,

portanto). Entre outras consequências, isto mudou o modo de

inserção social dos cientistas, porque eles se tornaram agentes

econômicos diretos; aquilo que se chama o complexo industrial,

militar, é na verdade um complexo científico, industrial, militar. E

por quê? Porque hoje a força e o poder capitalista se encontram no

monopólio informação. Então, não é pouco nós termos visto que o

objeto técnico contemporâneo (o autômato) é um objeto de infor-

mação; ele é produzido por informação, ele opera por informação,

ele distribui informação, ele comunica informação, e assim por

diante.... Ele é o objeto técnico contemporâneo (o autômato), ele é

a expressão do lugar onde se situa hoje a força e o poder do capita-

lismo, que é sobre o conhecimento científico e sobre monopólio da

informação.

Há pessoas que têm uma visão muito tranquilo a este res-

peito e, sob certos aspectos, muito otimista.

Eu vou citar texto, está na bibliografia de vocês, o livro do

Manuel Castells, A Sociedade em Rede; na página 69 ele escreve o

seguinte: "Que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a

centralidade de conhecimentos e informação, mas a sua aplicação

para geração de novos conhecimentos e de dispositivos de proces-

samento e comunicação da informação e um ciclo de realimentação

cumulativo entre a inovação que o uso. As novas tecnologias da

informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas,

mas são processos a serem desenvolvidos".

Ora, quem é que desenvolve estes processos? Quem de-

senvolve esses processos é paciência incorporada ao complexo

empresarial, incorporada, portanto, ao capital. Castells não diz isto

(...?...), eu é que estou dizendo isto.

O segundo texto que eu vou citar, também é a página 79,

ele diz: "Há, por conseguinte, uma relação muito próxima entre os

processos sociais de criação de manipulação de símbolos (a cultura

da sociedade) e a capacidade de produzir bens e de distribuir bens e

serviços (as forças produtivas)". Ou seja, o que ele está dizendo é o

seguinte: tradicionalmente, mas éramos capazes de distinguir for-

ças produtivas (toda a operação da economia) e forças simbólicas,

seja o conjunto de formulações para o ocultamento do que se passa

com as forças produtivas (portanto, a produção de e ideologia), seja

a criação cultural como a criação de símbolos. O que castells diz, e

neste ponto ele tem absoluta razão: dado o modo novo de inserção

da ciência e da tecnologia na produção, se tornaram forças produti-

vas, ele tem toda razão em dizer que se estabelece uma relação

muito próxima entre os processos sociais de criação e manipulação

de símbolos (isto é, a cultura da sociedade) e a capacidade de pro-

duzir e distribuir bens e serviços, isto é, as forças produtivas. Pela

primeira vez na história, a mente humana é uma força direta de

produção e não apenas um elemento decisivo no sistema produtivo;

pelo que nós vimos. O que objeto tecnológico é ser uma inteligên-

cia, um intelecto, uma ampliação da mente e, portanto, ele é a

mente ampliada em operação, como inteligência artificial. Então,

eu repito: pela primeira vez na história, a mente humana é uma

força direta de produção; não apenas um elemento decisivo no

sistema produtivo. Então, antigamente, a ciência dava uma série de

contribuições para o sistema produtivo; agora, ela não faz isto:

agora, ela "é" o sistema produtivo; a mente humana (isto é, o saber)

é o sistema produtivo. Assim, computadores, sistemas de comuni-

cação, decodificação e programação genética, são todos amplifica-

dores e extensões da mente humana. " O que pensamos e como

pensamos é expresso em: bens, serviços, produção material, a

produção ou intelectual, sejam, alimentos, moradia, sistemas de

transporte, comunicação, mísseis, saúde, educação ou imagens.

Com certeza, os contextos culturais e institucionais que a ação

social intencional interagem de forma decisiva com o novo sistema

tecnológico, mais este tem a sua lógica própria, caracterizada pela

capacidade de transformar todas as informações em um sistema

comum de informações, em uma rede de recuperação e redistribui-

ção potencialmente (...?...)". Esta, eu considero uma das descrições

mais perfeitas da nova situação da tecnologia.

Nós havíamos visto que um traço essencial da nova forma

do capital é esta transformação da ciência em força produtiva. Essa

transformação da ciência em força produtiva deu origem a uma

expressão (e agora esta expressão como uma instituição) que é a

expressão

"Sociedade do conhecimento". Ou seja, com esta expressão

o que se pretende indicar é que a economia contemporânea se

funda sobre a ciência e a informação com o uso competitivo do

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conhecimento do mercado. Ela se funda, também, na inovação

tecnológica e da informação, nos processos produtivos e financei-

ros. Portanto, tanto no setor de serviços como da educação, saúde e

lazer. Há uma homogeneização da idade que se torna, por isto,...

recebe o nome de "sociedade do conhecimento". É a sociedade da

informação. Não sentido de que nós estamos bem-informados

(muito pelo contrário, acho que nós nunca estivemos tão mal in-

formados... na nossa existência), mas no sentido que a ideologia da

informação era o operador fundamental da economia e da socieda-

de.

Vou citar o Castells, mais uma vez. "A produtividade e a

competitividade na produção informacional baseiam-se na geração

de conhecimentos e no processamento de dados. A geração de

conhecimento e a capacidade tecnológica são ferramentas funda-

mentais para a concorrência entre empresas, organizações de todos

os tipos de, por fim, entre países. O desenvolvimento econômico, o

desenvolvimento competitivo, não se baseiam na pesquisa funda-

mental (teórica ou básica), mas na ligação entre a pesquisa elemen-

tar e a pesquisa aplicada e sua difusão entre organizações e indiví-

duos. A pesquisa acadêmica avançada de um bom sistema educaci-

onal são condições necessárias, mas não suficientes, para que os

países, as empresas e os indivíduos ingressem no paradigma infor-

macional". A sequência é interessante: os países, as empresas e os

indivíduos... ingressem no paradigma informacional. "O desenvol-

vimento tecnológico global precisa da conexão entre a ciência, a

tecnologia e o setor empresarial, bem como com as políticas nacio-

nais e internacionais". Fim da citação.

Se nós dissemos que o objeto técnico se define pela siste-

maticidade, normatividade e temporalidade, este texto do Castells é

a síntese desses três elementos para o objeto técnico contemporâ-

neo.

[pergunta de aluno, quanto ao objeto da política, etc.]

... é um objeto da última aula. Na última aula vou discutir o

virtual, a liberdade, a felicidade e a política. Se der tempo, nesta

ordem.

Então, qual é o problema posto neste nível? Porque tem

um ainda não discuti o capitalismo. O que eu propus é: o que acon-

teceu com a ciência na forma contemporânea do modo de produção

capitalista; ela se tornou força produtiva. E ela se tornou força

produtiva porque o núcleo do poder econômico, da força econômi-

ca, do domínio econômico, é o conhecimento; portanto, é a infor-

mação. O objeto técnico é pensado como um sistema informacional

que o poder econômico é pensado como um poder da informação e

sobre a informação, o universo informacional. Este é o chamado

paradigma em que está montada a ciência contemporânea com a

tecnologia que lhe corresponde e a economia que a pressupõe. Ora,

a pergunta neste nível que fica é: quem é que tem a gestão desta

massa incalculável de informação que controla a sociedade? Quem

é que utiliza este informação? Como e para que utiliza a informa-

ção? Estas perguntas decorrem no fato de termos que considerar

um dado técnico. O dado técnico é: a operação que define a infor-

mática (a sociedade em rede...), a operação técnica que define a

informática é possibilidade da informática, é a concentração e a

centralização da informação. Ou seja, tecnicamente, os sistemas

informáticos só operam se eles operarem em rede e, portanto, se

eles operarem com a centralização dos dados e a produção de

novos dados pela combinação do que já foi coletado. E a pergunta,

portanto é: quem tem a gestão desta massa de informação, quem

tem controle dessa massa de informação? Ou seja, quem tem o

controle, quem tem a vigilância, quem tem o poder? Esta é a per-

gunta. E não é por acaso que, filósofos como Foucault, como De-

leuze, como Guattari, se interessaram em analisar a sociedade

contemporânea. E isto vocês já viram desde Vigiar e Punir, Fou-

cault vem vindo com isto... aideia da sociedade e da disciplina, em

Foucault, que vai exercer o controle final, seu máximo de controle,

é o controle sobre a vida; portanto, toda a revolução da microbiolo-

gia. E, no caso do Deleuze, o que ele chama de "A sociedade do

controle". Então, nós temos a vigilância e o controle; e é esta massa

de informação que está aí para exercer a vigilância e o controle.

Então, esta é a questão que eu pretendo trabalhar na última

aula. Na última aula vou examinar este problema da concentração

do poder e a questão do que é o virtual, e que problemas o virtual

coloca para nós.

Na próxima aula eu vou, se der tempo, examinar um pouco

como a ficção científica mexe com isso. No caso da microbiologia,

eu quero falar um pouco de Matrix; no caso da automação, eu

quero falavam pouco do Asimov; no caso da vigilância e do con-

trole, do Orwell e do (...?...); ou seja, se der tempo, eu vou falar um

pouco... porque eu tenho fascinação pela literatura de ficção cientí-

fica, eu sou completamente fascinada por ficção científica. Então,

se der tempo, eu quero falar um pouco sobre isto, porque você tem

toda uma concepção que vem desde Bacon, que é uma concepção

utópica sobre o progresso da ciência da técnica e uma ficção cientí-

fica que oscila entre a oposição utópica e a distopia, que é o aniqui-

lamento da utopia na forma do seu dilaceramento interno. Como

dizia um escritor-apresentador de programas de televisão, o Júlio

Gouveia (ele que colocou Monteiro Lobato na televisão)... a gente

assistia de verdade, toda a tarde, o Sítio do Pica-pau Amarelo, não

este besteirol disneylândico que a rede Globo faz, era de verdade o

Monteiro Lobato... e a cada vez que ele terminava, ele dizia: "Mas

isto é uma outra história que fica para uma outra vez". Então, se der

tempo, falarei da utopia, da distopia, da ficção científica... se não

der tempo, fica para uma outra vez.