investimentos simbÓlicos e institucionais na … · monarquia brasileira, parte deste estudo...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ MARTA REGINA SAVI INVESTIMENTOS SIMBÓLICOS E INSTITUCIONAIS NA LEGITIMAÇÃO DA MONARQUIA NO BRASIL CURITIBA 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

MARTA REGINA SAVI

INVESTIMENTOS SIMBÓLICOS E INSTITUCIONAIS NA

LEGITIMAÇÃO DA MONARQUIA NO BRASIL

CURITIBA

2010

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

MARTA REGINA SAVI

INVESTIMENTOS SIMBÓLICOS E INSTITUCIONAIS NA

LEGITIMAÇÃO DA MONARQUIA NO BRASIL

Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Joseli Maria Nunes Mendonça

CURITIBA

2010

A Pedro e Elena Savi,

porque todo o resto é culpa deles.

4

AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, à Professora Doutora Joseli Maria Nunes Mendonça, pela

paciência e pela persistência em uma orientação cheia de entraves e pedras no

caminho, e também por toda a disposição em ajudar a melhorar, demonstrada até em

cada simples correção das minhas manias de redação;

ao Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (e ao Serginho,

lógico) e aos professores que são parte da minha formação acadêmica;

aos que partilharam a trajetória de (pelo menos tentar) virar historiador: Carmelina,

Dani, Juliana, Janira, Otávio, Pérola, Rafael Bassi (o especialíssimo, primeiro e único

quinto Beatle!), Rodolfo e Rogerio, o caminho teria sido muito (mas muito mesmo)

menos divertido e descafeinado sem vocês;

aos amigos que eu fiz no Direito, por mais improvável que isso pareça: Manu, Ju, Fer,

Paulinho, Renan, Déa, Dener, Francês e Rodrigo, das quartas-feiras aos pipotecaday’s,

passando por recursos extraordinários, retóricas, prolixidade, juridiquês e competências

mitigadas, vocês também são fundamentais;

a uma especial professora, não só de sala de aula, com quem eu já tive e ainda tenho

a oportunidade de aprender, pura e simplesmente: Agda Julieta Martins;

às lulus, que superaram meu vocabulário paralelo e continuaram a me incluir em todos

os encontros, mesmo sendo eu só a irmã mais nova da Mari: Tainah, Bia, Carol,

Karlinha, Pati, Sâmia, Carine e Fer;

aos meus amigos de todas as horas, desde os tempos que farmácia só vendia

remédio: Bárbara (Babys), Bianca (Doutora), Regina (Rê), Renan, Thais (Dioze) e Cami

(não tão antiga, mas tão importante quanto). Mesmo nas horas mais odiosas, vocês

continuaram entrando na minha casa sem bater, foi, e é, muito importante contar com

vocês;

5

às minhas pessoas, Juliana Fleig Bueno e Pérola de Paula Sanfelice. Tenho uma

dificuldade funcional de descrever a importância de vocês nessa minha vida. Mas sei, e

até arrisco a ter certeza, que antes “I was beat, incomplete, I was sad and blue, but you

made me feel (yeah, you made me feel) shiny and new”;

a Renan Paranhos Mateus Rizzardo, o melhor amigo desde os tempos de colégio, com

quem agora eu faço planos que não soam mais absurdos. Ter você do meu lado nos

últimos anos, e principalmente nos últimos meses, independente de nossa relação ter

virado namoro, foi, sem dúvidas, uma das coisas mais importantes que já aconteceram

na minha vida. Você é a minha decisão mais acertada, de longe, de quilômetros de

distância. Amo. Sempre mais.

à minha (enorme) família: meu pai que me ensinou a ser absurdamente teimosa e

quase completamente incapaz de dizer não, minha mãe, que, mesmo não sabendo (ou

fingindo que não sabia), evitou que eu desistisse de tudo e virasse hippie muitas e

muitas vezes, Fabi, que, longe ou perto, me ensinou e ensina tanta coisa que eu não

sou capaz de mensurar, Pedro, o preferido e a razão dos pudins de leite duas ou três

vezes por ano, Mari, que me perdoou pela traquinagem da cadeira de pano e me

ensinou a ver a vida de outras perspectivas e elevações, meus cunhados: Felipe e

Josué, por todas as provocações, e a Vanzinha, por todas as vezes que me defendeu,

Noeli (minha “sogrinha”), Baixinha e meus sobrinhos João, Júlia e Luanna, que animam

a minha vida e me fazem perceber, constantemente, que eu não passo de uma criança

grande;

e a essa entidade superior, atenda Ela pelo nome que atender, por permitir, além de

tudo, que todas essas pessoas incríveis façam parte da minha vida.

6

“Why are we here? We never win.

You never win because you never play.”

(Dedication, 2007)

7

RESUMO

Esta monografia investiga os investimentos simbólicos e institucionais destinados a legitimar o governo monárquico de Dom Pedro I e da Monarquia no Brasil independente. O estudo dos investimentos simbólicos se faz através da análise de eventos que tinham por objetivo garantir a autenticidade da existência de um Imperador no país, como o envio de emissários a diversas localidades do país procurando garantir apoio, aclamações públicas do monarca e a própria cerimônia de Dom Pedro I. Já no que tange os investimentos institucionais, dá-se enfoque à adoção da Monarquia Constitucional, à participação das elites na formação do Estado brasileiro e ao funcionamento da Assembléia Constituinte e do Conselho de Estado, órgãos importantes por terem produzido os primeiros textos legais do novo país: o Projeto Constitucional de 1823 e a Constituição de 1824, respectivamente. A partir da comparação entre estes dois documentos legais, o primeiro substituído pelo segundo, pretende-se encontrar o fortalecimento da amplitude do poder do Imperador e a construção de um contexto de facilitação do governo ao lado do investimento simbólico na legitimação da monarquia e do governo de Dom Pedro I.

Palavras-Chave: História do Brasil Império, Constituição de 1824, Primeiro Reinado.

8

ABSTRACT

This monograph investigates the symbolic and institucional investments destined to legitimize to the monarchic government of Dom Peter I and the Monarchy in independent Brazil. The study of the symbolic investments were done through the analysis of events that had for objective to guarantee the authenticity of the existence of an Emperor in the country, like the sending of emissaries to diverse localities of the country, looking for to guarantee support, public acclamations of the monarch and the proper ceremony of Dom Peter I. Returning to the subject of institucional investments, the approach is focused in the adoption of the Constitutional Monarchy, the participation of the elites in the formation of the Brazilian State and the functioning of the Constituent Assembly and the Council of State, important agencies for having produced the first texts legal of the new country: the 1823 Constitutional Constitution and the 1824 1823 Constitutional Constitution, respectively. From the comparison between these two legal documents, the first one substituted for the second, the intension is to find the reinforcement of the amplitude of the power of the Emperor and the construction of a context of facilitation of the government to the side of the symbolic investment in the legitimation of the monarchy and the government of Dom Peter I. Key-Words: History of Brazil Empire, Constitution of 1824, Dom Peter I.

9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................10

CAPÍTULO I Investimentos Simbólicos na Legitimação da Monarquia no Brasil ...............

12

A Adoção do Sistema Monárquico no Brasil ................................................

13

Investimentos Simbólicos: Aclamação, Adesão e Coroação ......................

17

CAPÍTULO II Investimentos Institucionais ...........................................................................

21

Monarquia Constitucional ...........................................................................

21

Elites e Instituições Políticas .......................................................................

23

A Assembléia Constituinte e Legislativa de 1823 .......................................

24

O Conselho de Estado e a elaboração do Novo Projeto ............................27

CAPÍTULO III Estudo Comparado entre o Projeto Constitucional de 1823 e a Constituição de 1824 ...................................................................................

30

Projeto Constitucional de 1823 ......................................................................

30

Fundamentos do Poder Político ..................................................................

35

Dos Poderes Legislativo e Judicial ...............................................................

37

CONCLUSÃO ...................................................................................................

39

FONTES ........................................................................................................ 41

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................42

ANEXOS ............................................................................................................45

10

INTRODUÇÃO

A pesquisa monográfica aqui apresentada tem por objetivo investigar os

investimentos, simbólicos e institucionais, destinados a legitimar o governo monárquico

de Dom Pedro I e da Monarquia no Brasil independente. Tal tema nasce do preliminar

estudo dos anais da primeira Assembléia Constituinte do país, datada do ano de 1823,

que tinha por objetivo compor um projeto de Constituição para o recém formado

Império do Brasil, além de regularizar a situação institucional do país.

A partir de uma consulta prévia aos Anais da Assembléia, opta-se,

especificamente, pelo Projeto Constitucional de 1823 com o objetivo de identificar as

disposições que, nele presentes, levaram o Imperador a rejeitá-lo. Nesse sentido, faz-

se necessário também estudar o texto da posterior Constituição outorgada pelo

monarca, em 1824, para que, dessa maneira, seja possível uma comparação entre os

dois documentos sob alguns aspectos determinados. É dentro deste campo que estão

concentradas as análises de legitimação institucionais e legislativas, com os textos

elaborados e suas respectivas fontes de redação: a Assembléia Constituinte e o

Conselho de Estado.

Porém, assumindo que não foi apenas no esforço institucional que se legitimou a

monarquia brasileira, parte deste estudo concentra-se nos investimentos simbólicos

para que o país fosse reconhecido como uma Monarquia, uma vez que encontrava-se

cercado por um sistema diferente de governo, a república dos também recém

independentes países da América Hispânica.

Nesse sentido, pretende-se, com o estudo a seguir, demonstrar esses maciços

investimentos simbólicos e institucionais na legitimação da Monarquia, principalmente

através das diferenças a serem observadas entre o Projeto Constitucional de 1823 e a

Constituição de 1824 no sentido de fortalecimento da amplitude do poder do Imperador

e na construção de um contexto de facilitação do governo ao lado do investimento

simbólico na legitimação da monarquia e do governo de Dom Pedro I.

Para tal objetivo, a presente monografia estrutura-se em três capítulos: O

primeiro busca entender os diversos investimentos simbólicos na figura do Imperador e

na Monarquia, como, por exemplo, a coroação de Dom Pedro I. O segundo capítulo é

focado nos investimentos institucionais na manutenção e na legitimação da Monarquia,

através da adoção da Monarquia Constitucional, da participação das elites na formação

11

do Estado brasileiro e do funcionamento da Assembléia Constituinte e do Conselho de

Estado. Por fim, é no decorrer do terceiro capítulo que se realizará o estudo

comparativo entre o projeto elaborado pela Assembléia Constituinte e a Constituição

efetivamente outorgada em 1824. Estudo que valorizará, dentro de cada texto,

limitações e concessões de poder ao monarca, buscando apresentar pontos para a

demonstração de um investimento institucional no fortalecimento do poder Imperial.

12

CAPÍTULO I

INVESTIMENTOS SIMBÓLICOS NA LEGITIMAÇÃO DA MONARQUIA NO BRASIL

Ao longo deste primeiro capítulo, procurar-se-á entender os investimentos

simbólicos na figura do Imperador e na Monarquia durante o período da Independência

do Brasil. Dessa forma, faz-se necessário um estudo preliminar, apontando a

contextualização do período, retomando-se a presença da corte portuguesa em terras

brasileiras a partir de 1808 e também as independências da América Hispânica, que

originaram, de uma única metrópole, diversos Estados republicanos através de revoltas

e independências que contaram com um caráter popular. Dentro, principalmente, deste

contexto republicano, a legitimação da Monarquia instituída no Brasil era uma

necessidade especialmente urgente, tendo em vista que evitar uma revolução de

independência era preocupação tanto dentro quanto fora do país. Assim, juntamente

com a criação do Estado Monárquico brasileiro se observam atos simbólicos que tem

por função legitimar o Império, como o envio de emissários especiais a outras

províncias, festas de aclamação do Imperador e a cerimônia de coroação de Dom

Pedro I.

Inicialmente, destaca-se a crescente impossibilidade da manutenção das

tradicionais relações entre metrópole e colônia desde meados do século XVIII1, que se

manifestou em domínios europeus em geral, fossem eles portugueses, ingleses,

franceses ou espanhóis, como apontou Ana Cristina Fonseca Nogueira da Silva:

se abandonarmos o mundo da doutrina e da filosofia política, nenhum Estado europeu se dispôs, no início do século XIX, a conceder a independência às respectivas colônias. (...) Os teorizadores mais radicais do comércio livre estavam conscientes disso e as independências violentas que eles previram – e que serviram, no seu discurso, como argumento favorável à concessão imediata da emancipação – acabaram por se suceder. Foi assim que aconteceu com a Grã-Bretanha, que tudo fez para evitar a independência das suas treze colônias norte-americanas, e também com a França e a com Espanha revolucionárias. Assim sucedeu, também, em Portugal.2

1 Nesse sentido, observa-se o primeiro capítulo da obra Da Monarquia à República, de Emília Viotti da Costa, que realiza um estudo profundo da chamada Crise do Sistema Colonial e apresenta um contexto amplo sobre causas, conseqüências e determinações gerais que transcenderam os quadros nacionais a partir da segunda metade do século XVIII. COSTA, Emília Viotti da. “Da Monarquia à República: Momentos Decisivos”. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 2007.. Páginas 21-31. 2 SILVA, Ana Cristina Fonseca Nogueira da. “Nação federal ou Nação bi-hemisférica?: O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e o "modelo" colonial português do século XIX”. Almanack Braziliense, São Paulo, nº 9, maio 2009. Disponível em: <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-81392009000900005&lng=pt&nrm=iso>.

13

Nesse sentido, no que diz respeito a tal situação refletida na América, destaca-

se aqui a Independência das Colônias Espanholas, uma vez que a maneira com que a

luta se configura nessas colônias é um dos fatores que dotam de urgência a

legitimação da monarquia brasileira, como será visto no decorrer do capítulo. Para

Denis Bernardes3, a duração e a intensidade dos conflitos da América Espanhola

explica-se pela ocupação militar da metrópole pelas tropas de Napoleão Bonaparte,

mas também pela presença, em território americano, de apoio e participação da

população nos conflitos, dotando-os de um caráter de guerra civil. Além, para

configurar os diversos Estados formados após as lutas de independência, destaca

também a desarticulação de estruturas administrativas e interesses externos hostis a

uma unidade naquela área do continente. Não é o propósito deste estudo, porém,

discutir a Independência da América Espanhola, apenas apontar tais eventos como

influentes na necessidade de legitimação da monarquia no Brasil, uma vez que o

modelo brasileiro – que mantinha a unidade territorial da colônia e também a

monarquia, sistema de governo da metrópole – era único em um continente que

respirava a república.

Adoção do Sistema Monárquico no Brasil

A despeito de todas as críticas à monarquia e da presença da república como

sistema de governo dos países vizinhos, é como Império que nasce o Brasil

Independente. Relativo a tal opção, pode-se destacar alguns fatores que figuram como

colaboradores.

Com a invasão francesa ao território de Portugal, que já vinha sendo

pressionado pela Inglaterra, sua antiga aliada, e pela Espanha, já sob domínio

napoleônico, a corte lusa decide partir para a colônia da América4. Desse modo, dá-se

início efetivo ao processo de formação do futuro Estado brasileiro, que:

teve como centelha a guerra pela hegemonia política na Europa em que se defrontavam as potências francesa, sob o impulso imperial de Napoleão, e inglesa, que lhe fazia frente. Oprimido entre ambas estava Portugal, resistindo

3 BERNARDES, Denis. “Um Império Entre Repúblicas”. São Paulo: Global Editora, 3ª edição. Páginas 20-22. 4 MALERBA, Jurandir. “A Corte no Exílio: Civilização e Poder no Brasil às vésperas da Independência (1808 a 1821)”. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Páginas 197-200.

14

como podia com sua política reticente, declarando-se fiel ora a uma, ora a outra nação5.

Ainda sobre a migração da corte portuguesa para o Brasil, pode-se observar que o

decreto oficial que anunciava a vinda da Coroa para o Brasil dava um caráter provisório

ao movimento, mas, com um olhar mais atento se identificam algumas medidas

tomadas pelo governo, como instalar-se no ponto mais estratégico da colônia, o Rio de

Janeiro, que apontavam uma intenção de permanência não tão provisória, como bem

identificou Maria de Lourdes Viana Lyra6.

Vale destacar aqui os episódios relacionados à mudança da Coroa lusa, como a

transferência da capital do Império para o Rio de Janeiro e a elevação do Brasil à

Reino Unido. Nesse sentido, quando fala-se em Império, necessariamente existe a

referência ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Assim, os projetos políticos

devem ser pensados para a união destes reinos, que encontram-se sob o controle da

coroa portuguesa7. Tal união não foi pacífica e gerou um clima de tensão entre súditos

brasileiros, que pediam maior autonomia, e lusos, que exigiam o retorno da corte e das

antigas práticas para com a colônia, da coroa. Assim, com a Revolução do Porto, em

1820, veio a convocação das Cortes portuguesas, que exigiam a promulgação de uma

Constituição e exigiam a volta imediata dos membros da coroa portuguesa ao país8.

Assim, no Brasil como cede do governo do Império português, de um lado

encontrava-se um grupo específico formado por nobres e burocratas, que alcançaram

títulos, cargos ou riquezas na transferência da regência do príncipe regente D. João

para o Rio de Janeiro9. Tal grupo, na tentativa de fortalecer sua influência política

dentro desse contexto, apóia a tentativa da implantação de um império luso-brasileiro,

que viria a ser um reino português com sua sede no Brasil. Idéia esta, chamada por

Costa de monarquia dual, que foi proposta perante as Cortes portuguesas e pedia a

manutenção da unidade entre Portugal e Brasil, caso fossem justas as condições

dessa união10. Apesar de trazer agregado a si um sentimento de identidade, com o

pertencimento à nação lusa, tal modelo não foi visto como viável, por cercear a

autonomia outrora concedida temporariamente à colônia. Ainda dentro dessa idéia de

5 Idem. Página 197. 6 LYRA, Maria de Lourdes Viana. “A Utopia do Poderoso Império: Portugal e Brasil: Bastidores da Política 1798-1822”. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994. Página 131. 7 OLIVEIRA, Eduardo Romeiro. “A Idéia de Império e a Fundação da Monarquia Constitucional no Brasil”. Tempo, Rio de Janeiro, v. 9, nº 18, janeiro/junho 2005. Página 50. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-77042005000100003&script=sci_arttext&tlng=en> 8 COSTA, Emília Viotti da. Op. Cit. Páginas 44-47. 9 OLIVEIRA, Eduardo Romeiro. Op. Cit. Página 51. 10 COSTA, Emília Viotti da. Op. Cit. Página 49.

15

manter o elo político com Portugal, também existiam aqueles que prezavam pela

chamada independência ou soberania política, sem almejar o rompimento total com o

reino luso. Tal proposta vinha, principalmente, de fazendeiros e negociantes da capital

ou mesmo de membros da corte de Dom João que haviam fixado residência no

Brasil.11

De outro lado, entretanto, existiam os interesses metropolitanos e os súditos

europeus, que culpavam a recém adquirida autonomia da colônia ao se transformar em

sede do Império por todos os males sofridos por Portugal e exigiam o retorno imediato

da família real e do pacto. Márcia Berbel aponta que revolução liberal que começava

em 1820 em Portugal juntava-se ao coro iniciado pela Espanha. As cortes hispânicas,

compostas por deputados da metrópole e das colônias, retomavam, naquele ano, a

Constituição elaborada entre 1810 e 1814, que anunciava a resistência espanhola

perante a invasão de Napoleão Bonaparte e firmava a soberania da nação, tanto a

européia quanto a americana. Porém, o retorno do texto encontrou as colônias

americanas pleiteando por suas independências dentro de um contexto de

desintegração de uma nação que estava separada pelo oceano e acelerou o processo

de desmembramento da metrópole e suas colônias12.

Já sem motivação explícita para a corte portuguesa permanecer no Brasil, uma

vez que a ameaça napoleônica estava contida há anos, os ibéricos exigiam o retorno

de Dom João e, com a recusa do governante, explodiu a Revolta do Porto, que

exaltava “o sentimento de abandono político, a má situação econômica de Portugal e a

interferência inglesa nos assuntos internos. (...) [além de chamar] a atenção para a

‘restauração’ das instituições liberais na Espanha e para a possibilidade de se

reproduzir algo similar no Reino português”13. A Convocação das Cortes Portuguesas

serviu para acelerar o processo de independência do Brasil, principalmente a partir de

decisões que previam o retorno de várias instituições do Império a Portugal e com a

divulgação da idéia de uma Monarquia Dual, mas em moldes que favoreciam a

metrópole e cerceavam a autonomia da colônia. Então, resta apontar os motivos da

eleição de um sistema monárquico análogo para reger o novo Estado em formação.

Entender, afinal, porque o Brasil surgiu como uma monarquia em meio a um continente

que havia claramente optado pela república. 11 OLIVEIRA, Eduardo Romeiro. Op. Cit. Página 51. 12 BERBEL, Márcia Regina. “A Constituição Espanhola no Mundo Luso-Americano (1820-1823)”. Revista de Indias, Norteamérica, v. LXVIII, nº 242, abril 2008. Disponível em: <http://revistadeindias.revistas.csic.es/index.php/revistadeindias/article/view/641/707> 13

Idem.

16

Pode-se atrelar a construção da autoridade central à superação da ameaça que

representava a presença portuguesa e à associação com os poderes locais. Sobre

estes, Emília Viotti da Costa, pautada nos relatos de viagem de Saint-Hilaire, que

percorria São Paulo no início da década de 1820, aponta14: o que parecia ser levado

em conta era a atitude do chefe local em detrimento das idéias políticas, uma vez que

as populações rurais, imersas na ignorância, seguiam as opiniões emitidas por aqueles

em quem depositavam as decisões importantes a serem tomadas. Dessa forma, a

presença da autoridade central, da monarquia, se fez através de relações com os

Poderes Locais15.

Para José Murilo de Carvalho16, a independência monárquica feita sem revoltas

e mantendo a unidade territorial não foi fruto direto da maior centralização portuguesa

frente à espanhola ou a presença da corte no Brasil. Descarta duas idéias: a primeira

de que o ciclo do ouro teria garantido sozinho uma explicação válida para a forma

como se deu a independência, uma vez que no século XVIII já estava em declínio,

apesar de ter levado a uma maior integração entre algumas partes da colônia17 e a

opção pela centralização ter sido realizada por ser ela facilitadora da escravidão,

apontando que a união do Estado em formação poderia favorecer, mas, por mais

reforço que ganhasse a manutenção da escravidão, ela figurava como conseqüência

da unidade territorial, não vice-versa18. Para o historiador, a adoção da monarquia “foi

uma opção política entre outras possíveis na época, (...) [uma vez que] não havia nada

de necessário em relação a várias decisões políticas importantes que foram tomadas,

embora algumas pudessem ser mais viáveis do que outras”19.

14 COSTA, Emília Viotti da. Op. Cit. Páginas 45-46. 15 MARTINS, Maria Fernanda Vieira. “A Velha Arte de Governar: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842 – 1889)”. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. Página 51. 16 CARVALHO, José Murilo. “A Construção da Ordem: a elite política imperial”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Páginas 13-22. 17 Nesse sentido, Carvalho aponta que o declínio do ouro nas colônias espanholas, no século XVII, contribuiu para o isolamento de centros comerciais, mas também observa esse refluxo no Brasil após a segunda metade do XVIII. E, ainda sobre a integração da colônia, afirma que “o país não era um arquipélago econômico, havendo fluxo interno de mercadorias e de linhas de comunicação, mas esse fluxo estava longe de abranger toda a colônia, e era certamente de peso secundário em relação ao comércio externo que era base do sistema colonial”. Idem. Página 15. 18 Idem. Página 19. 19 Idem. Ibidem.

17

Investimentos Simbólicos: Aclamação, Adesão e Coroação

Dessa forma, entende-se que o “grito” de independência, em 1822, tinha outro

propósito, uma vez que desde 1808 o país detinha cada vez mais autonomia e, desde

1815, junto com, e não subordinado a, Portugal integrava um Reino Unido. “O que

estava em jogo no início da década de 1820 era mais uma questão de monarquia,

estabilidade, continuidade e integridade territorial do que revolução colonial”20. Nesse

sentido, aqui pretende-se é destacar o investimento simbólico do qual utilizou-se a

monarquia recém iniciada para consolidar-se, legitimar-se e fazer-se valer no Brasil.

São diversos os instrumentos de legitimação monárquica. A chegada da corte,

em 1808, trouxe consigo vários, entre eles a prática da concessão de honras e

privilégios por parte do monarca, como recompensa para aqueles que tenham o

auxiliado em momentos de perigo21. E Dom João VI soube usar desses recursos no

equilíbrio de tensões e agregar súditos de diversas regiões, conseguindo construir para

si a imagem de monarca paternal. Atrelado a isso estava também presente o caráter

sagrado da realeza, a fundamentação de que o poder do rei tinha uma origem divina.

“A aclamação de dom João em terras brasileiras foi o momento propício para o reforço

de algumas vigas mestras da arquitetura do poder real”22 e deu subsídios para que,

assumindo a nova nação brasileira, a classe dirigente pudesse dar continuidade a esse

caminho23, ainda que na Europa, Portugal começasse a trilhar outro.

Para Kenneth Maxwell, evitar uma revolução no Brasil era preocupação tanto

dentro quanto fora do país. Externamente, tanto a Inglaterra como os países membros

da Santa Aliança tinham a mesma preocupação, expressada pelo secretário britânico

de Assuntos Estrangeiros em 1823: “a única questão é se o Brasil, independente de

Portugal, será uma monarquia ou uma república (...). A preservação da monarquia

20 MAXWELL, Kenneth. “Por que o Brasil foi diferente? O contexto da independência”. In.: MOTA, Carlos Guilherme (org). “Viagem Incompleta: a Experiência brasileira (1500-2000) Formação: Histórias. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000. 2ª edição. Página 186. 21 MALERBA, Jurandir. Op. Cit. Página 203. 22 MALERBA, Jurandir. Op. Cit. Página 208. 23 Nesse sentido, destacam-se os dois primeiros capítulos da obra de Lilia Moritz Schwarcz, As Barbas do Imperador. Embora trate predominantemente do Segundo Reinado brasileiro, sob o comando de Dom Pedro II, a historiadora inicia sua obra fazendo uma reflexão sobre a realeza, apontando que em nenhum outro sistema de governo a “etiqueta”, as representações, estão tão perto e são, por vezes, confundidas com a realidade. Aponta Schwarcz que, não fugindo à regra, a monarquia no Brasil também se valeu dessa ritualística e afirmação teatral para se construir e ganhar espaço na representação nacional através da memória construída e da monumentalidade. SCHWARCZ, Lilia Moritz. “As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos”. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 2ª Edição. Páginas 32-61.

18

numa parte da América é objetivo de vital importância para o Velho Mundo”24. Entre os

grupos internos que apoiaram a independência as divergências, que, sem dúvida,

existiam não eram tão grandes a ponto de tornar impossível a união em torno de um

governante25, mas ainda era preciso legitimar o sistema de governo fora dos limites do

Rio de Janeiro. Dentro desse contexto, os primeiros atos concentraram-se no envio de

emissários especiais a outras províncias.

Outra forma de legitimação pode ser encontrada nas diversas aclamações do

Imperador promovidas através do território nacional26. A aclamação dava continuidade

à prática do poder público presente no país desde os tempos de colônia, o que

facilitava a compreensão da população, que conseguia localizar a presença de um

poder a partir de mecanismos que representassem o Imperador sem a necessidade da

presença física de Dom Pedro I. Nesse sentido, durante esse período foram utilizados

mecanismos que criavam uma oportunidade de integração dentro do território nacional.

O primeiro mecanismo de destaque é o espetáculo público, realizado através de festas

oficiais:

No momento da festa, a palavra e o gesto transformam o mundo, engendrando uma ordem em meio a uma cerimônia que inaugurava um novo tempo de ordem. (...) De norte a sul do país, integrava-se o seu território por meio da aclamação e do contrato que lhe era inerente, repetindo-se aqui e acolá uma mesma estrutura da festa, dando uma mesma feição comemorativa ao Brasil, erigindo-o numa mesma sociedade, com um mesmo povo, com um mesmo soberano.27

Os sermões religiosos foram utilizados para dotar a monarquia de referências

bíblicas e construir entre o monarca e Deus uma relação de proximidade e

continuidade, dotando as manifestações de aceitação do Imperador de significado

divino e maior28.

A aclamação também se valeu de símbolos nacionais: cores, a nova bandeira e

armas da nação, objetos que, presentes no cotidiano, eram capazes de representar o

Estado. Um dos principais objetos que representavam a aclamação foi o retrato do

Imperador, uma vez que a imagem era capaz de preencher a ausência de Dom Pedro

I. Tratado como se fosse a presença do monarca, em cada vila onde era recepcionado

24 WEBTER, Charles K. (org.). “Britain and the Independence of Latin America, 1812-1830: Select Documents from the Foreign Office Archives”, Vol. I. London/New York: Oxford University Press, 1938. Páginas 240-241. Apud. MAXWELL, Kenneth. Op. Cit. Página 187. 25 COSTA, Emília Viotti da. Op. Cit. Páginas 48-52. 26 SOUZA, Iara Lis Carvalho. “Pátria Coroada: o Brasil como corpo político autônomo – 1780–1831. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. Páginas 256-268. 27 Idem. Página 257. 28 Idem. Página 266.

19

o retrato difundia sentimentos religiosos, uma vez que carregava consigo a divindade

do Imperador, e uma moral pública, de obediência e amor a Dom Pedro I.29

Juntamente às aclamações, uma outra forma de legitimação pode ser notada no

interior das Câmaras. Donas de uma dinâmica muito específica, entre os anos de 1822

e 1823, essas instituições foram capazes de investir na figura do monarca uma

determinada soberania30. Tendo em vista que a Câmara desempenhava as funções

tanto de administração quanto judicial, uma vez que fazia, em nível local, o debate e o

arbitramento sobre o poder político e respondia por instituições de justiça, fazenda e

milícia frente à autoridade central, ela dotava de credibilidade e estabilidade da

monarquia recém constituída.31

Essa adesão, que vinha sob a condição da elaboração de uma Constituição para

o país, dava a substância para o caráter constitucional do soberano sem com que a

aura divina fosse questionada32. Assim, “a origem de D. Pedro, portanto, na qualidade

de imperador não advinha apenas de sua condição dinástica, mas também desta

espécie sistemática de "eleição" que ocorreu em muitas vilas brasileiras”33, através da

representação das Câmaras. Para que se tornasse evidente a escolha, as Câmaras

organizavam autos de aclamação e festas:

Ato contínuo a esta eleição, precisava-se tornar visível e pública a escolha por D. Pedro (...) com procissão, pálio, estandarte imperial, bênçãos, sermões, solicitação de retratos de D. Pedro para serem reverenciados. Dito de outro modo: a festa de aclamação consubstanciava o contrato perante toda a localidade34.

Essa manifestação tinha um caráter duplo: aceitar o soberano e também

reconhecer e enaltecer a independência do Brasil, viabilizando, teoricamente, o

reconhecimento dos participantes da nova nação.

Dando continuidade às aclamações públicas, que haviam sido realizadas em

diversas cidades do país, em primeiro de dezembro de 1822 é realizada a coroação de

Dom Pedro I35. Na ocasião, uniram-se à Família Real autoridades de Estado, militares,

a Igreja Católica e também populares do Rio de Janeiro.

29 Idem. Páginas 258-263. 30 SOUZA, Iara Lis Carvalho. “A adesão das Câmaras e a Figura do Imperador”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, nº 36, 1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01881998000200015&script=sci_arttext&tlng=en> 31 Idem. 32 SOUZA, Iara Lis Carvalho. “Pátria Coroada...”. Página 260. 33 SOUZA, Iara Lis Carvalho. “A adesão das Câmaras...” 34 Idem. 35 SOUZA, Iara Lis Carvalho. “Pátria Coroada...”. Páginas 274-281.

20

A cerimônia, realizada a partir do rito católico da Benção e Coroação do Rei,

segundo o Livro I do Pontifical Romano, que caracterizava outro estreitamento da

relação entre Igreja e Estado, foi elaborado de forma a dar destaque a todos os

personagens envolvidos na coroação. Contou com uma missa, dividida em momentos

que culminaram em um juramento de comprometimento com Deus por parte de Dom

Pedro, na benção recebida pelo novo monarca e na unção, dotada de um caráter

sublime, que exorcizava o Imperador. Ainda dentro da Igreja, Dom Pedro é agraciado

com os símbolos de seu poder: a espada, reforçando o caráter de guerreiro cristão; a

coroa, colocada sobre sua cabeça por todos os bispos, que significava a glória da

santidade, honra e fortaleza; o cetro, representante da verdade e da virtude; a

condução ao trono pelos mesmos bispos, em um sinal de mediação entre clero e povo

por parte do agora rei. Após, existiu a realização de outro juramento, agora civil por

parte do então coroado Imperador. Ao sair da Igreja e ser recebido sob o Estandarte

Real do país pela população, Dom Pedro estava constituído por dois poderes e

transformava-se no governante legítimo do Brasil.

Durante todos os investimentos simbólicos aqui apresentados foi reafirmada a

posição de que aquele era um Império constitucional, caracterizando a importância e a

interligação entre simbolismo e instituições centrados na futura Constituição do país,

que antes mesmo de existir já legitimava simbolicamente a Monarquia e o Imperador36.

Dessa forma, apresentado o estudo sobre os investimentos simbólicos e sua

extrema importância na legitimação da Monarquia, agora se faz necessário o estudo da

formação do Estado passando pela centralização do poder, pela manutenção de

hierarquias sociais preestabelecidas e pela formação de uma estrutura burocrática que

garantirá a administração através da criação de instituições que asseguram tal modelo

de ações de legitimação37, como se destacará no capítulo a seguir.

36 Essa recorrente presença da Constituição pode ser notada tanto nas obras de Iara Lis Carvalho de Souza quando na de Eduardo Romeiro de Oliveira. 37 MARTINS, Maria Fernanda Vieira. Op. Cit. Páginas 45-52.

21

CAPÍTULO II

INVESTIMENTOS INSTITUCIONAIS

O presente capítulo visa entender os investimentos institucionais na manutenção

e na legitimação da Monarquia e do poder imperial da forma como foram

implementados por algumas instituições políticas, em especial a Assembléia

Constituinte, o Conselho de Estado e a Constituição.

Tais instituições respondiam anseios de participação das elites e definiam limites

e concessões ao exercício do poder do Imperador. Dessa forma, estuda-se inicialmente

a adoção da Monarquia Constitucional, conduzida através da participação da elite na

formação do Estado brasileiro. Conjuntamente, debate-se o diálogo entre tal elite e a

autoridade central e o desenvolvimento da administração do Estado para, por fim,

estudar a breve Assembléia Constituinte que, encerrada pelo Imperador, deu ao

Conselho de Estado a função de elaborar a nova Constituição do país.

Monarquia Constitucional

A monarquia constitucional foi a forma de governo adotada pelo novo Estado

que surgia após a independência. Este “caminho” foi radicalmente diverso do adotado

pelas ex-colônias espanholas na América hispânica. Apesar da similaridade de

condições vividas pelas colônias americanas no início do século XIX – a crise do

Sistema Colonial, o amadurecimento dos interesses antimetropolitanos dos grupos

dominantes e a presença de lutas internas que deveriam ser contidas a fim de não

colocar em risco a dominação dos grupos dirigentes38 – os encaminhamentos foram

bem distintos: o Brasil emergiu como um Estado monárquico enquanto as demais

regiões organizaram-se sob regimes republicanos. Esta condução relaciona-se ao

importante papel das elites na construção do Império, uma vez que é a partir do temor

de revoluções e levantes populares que se passa a defender um projeto de transição

que não alterasse a ordem, realizada em torno de um líder comum, o príncipe

regente39.

38 BERNARDES, Denis. Op. Cit. Página 19. 39 Interpretações estas presentes em: COSTA, Emília Viotti. Op. Cit. Capítulo I e em MARTINS, Maria Fernanda Vieira. Op. Cit. Capítulo I, além de BERNARDES, Denis. Op. Cit. Capítulo I.

22

Porém, não havia uma posição unânime quanto à forma de governo a ser

adotada. As próprias expectativas em torno da ascensão do príncipe ao trono

divergiam, como indica Emília Viotti da Costa:

Convergiram para o príncipe aspirações as mais contraditórias. Para os portugueses, ele representava a possibilidade de manter o Brasil unido a Portugal. Acreditavam eles que só a permanência do príncipe no Brasil poderia evitar um movimento separatista. Os brasileiros que almejavam a preservação das regalias obtidas e pretendiam a criação de uma monarquia dual consideravam também essencial a permanência do príncipe. Os mesmo pensavam os que almejavam a Independência definitiva e total, mas temiam agitações do povo40.

Além dos que viam no príncipe a possibilidade de uma continuidade da união

entre Brasil e Portugal, já vencidos, de acordo com o estudo de Eduardo Romero de

Oliveira, durante a coroação de Dom Pedro I, duas correntes divergentes se destacam:

A aclamação de D. Pedro I como Imperador do Brasil (...) expõe este confronto de projetos: de um lado, D. Pedro agradece ao povo, reunido no Paço, pelo “título” que [este] lhe concede; de outro, José Clemente declara que a “vontade do povo” o havia aclamado para governar o reino independente. (...) Em torno do título disputa-se o tipo de governo político: monárquico ou representativo. O discurso de José Clemente afirma o princípio de soberania popular, um governo de caráter representativo (por alusão aos representantes das Câmaras municipais). De seu lado, José Bonifácio e o grupo ao redor de D. Pedro coordenam a supremacia do poder político do novo Imperador, supremacia que exclui a participação política popular (alegando a legitimidade hereditária do príncipe-regente).41

Ademais, de acordo com Martins, destaca-se, nas elites, a repulsa pela

monarquia absoluta após as revoltas liberais observadas na Europa. Nesse sentido,

essa elite teria sido partidária da monarquia constitucional42 e a Constituição passa a

ser um importante elemento simbólico de legitimação da monarquia. Eduardo Romero

de Oliveira, retomando a descrição da coroação feita por Frei Sampaio em um sermão,

caracteriza a intensa força simbólica da constituição no ritual. Mesmo que não existisse

como lei escrita ainda, o Imperador Dom Pedro I jura figurar como o Defensor da

Constituição, defendendo os interesses e anseios da nação e tomando para si a função

de direção do povo na busca por liberdade e afirmação de direitos invioláveis, que

serão transcritos à Constituição43.

Dada, então, a importância da Constituição não só na conformação do novo

Estado, mas na própria legitimação da monarquia, o estudo da carta constitucional

ganha especial relevância.

40 COSTA, Emília Viotti. Op. Cit. Página 49. 41 OLIVEIRA, Eduardo Romeiro. Op. Cit. Página 53. 42 MARTINS, Maria Fernanda Vieira. Op. Cit. Página 43. 43 OLIVEIRA, Eduardo Romeiro. Op. Cit. Páginas 53-54.

23

Elites e Instituições Políticas

Variando em alguns pontos e assumindo formas mais ou menos sofisticadas de

acordo com o período, a formação de Estados nacionais monárquicos dependeu, em

grande parte, da capacidade de dialogar com a elite. De maneira geral, considera

Martins, essa relação incluía entregas de títulos, honrarias e privilégios, além de

representações em conselhos e órgãos da administração central e uma parcial

privatização de serviços, pois, na falta de um aparelho burocrático capaz de dar conta

do novo Estado, era através da transferência para particulares que se atrelava o recém

constituído poder estatal à ordem social vigente. Assim, a existência dessa relação

entre autoridade central e elite apresenta uma forma de legitimação e, também, de

limitação de uma por parte de outra44.

Outro ponto que precisou ser desenvolvido para possibilitar a conformação do

novo Império do Brasil foi a própria autoridade central. Era necessário lidar com a

presença portuguesa, que ocupava parte dos quadros estatais, tendências

separatistas45 e influentes grupos locais, geralmente com suporte em redes de

relacionamentos comerciais e políticos constituídas e dotadas de poder há anos. Dessa

forma, o acesso a essas redes, que surge como uma forma de controle, é realizado

através da negociação com seus líderes – a partir de troca de favores, representação

de interesses, apoio político e concessão de cargos e privilégios46.

Por fim, era necessário o desenvolvimento da administração47, que figura como

nodal para o estabelecimento e consolidação de um novo governo centralizado. Nesse

sentido, como parte dos serviços tidos como públicos restava em mãos de particulares,

na forma de exploração de recursos como tributação, majoritariamente, era preciso

construir métodos de controle para a incorporação dos capitais gerados por tais redes,

tanto localmente quanto no território como um todo. Assim, inicia-se o desenvolvimento

da burocracia, que possibilita a instituição e a aproximação, direta ou indireta, das

redes e do Estado, meio para ampliações de poder de influência e controle. Tal

processo foi longo e viu, muitas vezes, instâncias únicas concentrarem funções

44 MARTINS, Maria Fernanda Vieira. Op. Cit. Páginas 46-47. 45 Colocando de lado revoltas provinciais durante o período da Independência, que tinham, em sua maioria, tais tendências separatistas, a questão territorial “era antes um dado preestabelecido do que uma demanda necessária à construção da autoridade central”. Idem. 49. 46 Idem. Página 50. 47 Idem. Página 50-52

24

bastante diferentes por conta da resistência de estruturas tradicionais. Nesse sentido,

Martins destaca o papel do Conselho de Estado, que viria a ser criado ao final de 1823,

após o fechamento da Assembléia Constituinte, para elaborar um novo projeto de

Constituição:

O próprio Conselho de Estado espelharia essa situação, contatada pela multiplicidade de funções a que estava destinado, senão pelo próprio regimento, ao menos por sua prática cotidiana, acumulando uma atuação legislativa, judiciária e administrativa.48

Essa intensa participação de poderes locais, que futuramente seria uma das

motivações para a abdicação de D. Pedro em 1831, “explica a sobrevivência das

estruturas tradicionais de produção e das formas de controle político caracterizadas

pela manipulação do poder local pelos grandes proprietários”.49.

Outra forma importante de legitimação está presente na formação do direito e

das leis. Assim, o Estado estaria legitimado pela existência de uma Constituição, que

limitasse e desse direção às ações do monarca e que, ao mesmo tempo, definisse os

contornos de todas as demais instituições, das leis que vigeriam no território nacional;

dos parâmetros que regulassem as atividades da vida pública. Deve-se, porém,

ressaltar novamente o estudo da coroação de Dom Pedro para dotar de limites essa

ação: “foi atribuída ao Imperador sagrado uma autoridade que ultrapassa o julgamento

humano e não poderia ser questionada pela Assembléia Constituinte. (...) A realização

da Assembléia não deveria, portanto, colocar em dúvida este fundamento imperial do

poder político”50. Dessa forma e sob tais aspectos, a Assembléia Constituinte assumiu

a direção da elaboração do projeto de Constituição.

A Assembléia Constituinte e Legislativa de 1823

A Assembléia Geral Constituinte e Legislativa foi convocada antes mesmo da

independência formal do Brasil, em junho de 1822. Os deputados chegaram a reunir-

se nos meses seguintes, unindo-se em torno da pessoa do príncipe-regente D. Pedro

I51. É importante registrar que a convocação ainda não era uma declaração formal de

independência, pois o decreto dispunha explicitamente sobre a continuidade das

relações com Portugal:

48 MARTINS, Maria Fernanda Vieira. Op. Cit. Página 52. 49 COSTA, Emília Viotti. Op. Cit. Página 60. 50 OLIVEIRA, Eduardo Romeiro. Op. Cit. Página 57. 51 Idem. Página 53.

25

a Convocação de uma Assembléa Luso-Braziliense, que investida daquella porção de Soberania, que essencialmente reside no Povo deste grande, e riquissimo Continente, Constitua as bases sobre que se devam erigir a sua Independencia, que a Natureza marcara, e de que já estava de posse, e a sua União com todas as outras partes integrantes da Grande Familia Portugueza, que cordialmente deseja.52

Dessa forma, o objetivo primeiro da Assembléia Constituinte não era a criação

de uma Constituição para o Brasil independente, mas sim a avaliação de uma Carta

Constitucional que seria elaborada pelas Cortes Gerais em Portugal e válida para a

manutenção da unidade entre os Reinos e Brasil e Portugal53. Antes mesmo de

começar a operar, entretanto, já em setembro de 1822 o objetivo principal da

Assembléia mudou juntamente com a condição do Brasil, que agora clamava-se

independente: naquele instante a missão era dar a luz à primeira Constituição do

Brasil54.

A sessão inaugural, realizada em 3 de maio de 1823, traz a fala do Imperador

Dom Pedro I, permeada de avisos aos deputados que compunham a Assembléia:

Como imperador constitucional, e mui principalmente como defensor perpetuo deste imperio, disse ao povo no dia 1º de Dezembro do anno proximo passado, em que fui coroado, e sagrado, que com minha espada defenderia a patria, a nação e a constituição, se fosse digna do Brazil e de mim. Ratifico heje mui solemnemente perante vós esta promessa, e espero que me ajudeis a desempenhal-a, fazendo uma constituição sabia, justa, adequada, e executavel, ditada pela razão, e não pelo capricho, que tenha em vista tão somente a fidelidade geral, que nunca póde ser grande, sem que esta constituição, tenha bases solidas, bases que a sabedoria dos seculos tenha mostrado, que são as verdadeiras, para darem uma justa liberdade aos povos, e toda força necessaria ao poder executivo. (...) Uma assembléa tão illustrada, e tão patriotica, olhará só a fazer prosperar o imperio, e cubri-lo de felicidades; quererá que seu imperador seja respeitado, não só pela sua, mas pelas mais nações: e que seu defensor perpetuo, cumpra exactamente a promessa feita no 1º de Dezembro do anno passado, e ratificada hoje solemnissimamente perante a nação legalmente apresentada – IMPERADOR CONSTITUCIONAL E DEFENSOR PERPETUO DO BRASIL.55 (ênfase nossa)

Pode-se destacar das palavras de Dom Pedro a grande força que a coroação, parte

dos investimentos simbólicos tratados anteriormente, detém, uma vez que é invocando-

52 COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRAZIL. “Decretos, Cartas e Alvarás de 1822 – Parte II”. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887. Decreto de 03 de Junho de 1822. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Legimp-F_9.pdf> 53 COSTA, Emília Viotti. Op. Cit. Páginas 49-50. 54 SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas. “Justiça e Direito: As Primeiras Normas Jurídicas do Brasil Independente (1822-1832)”. Revista AEDOS, Porto Alegre, vol. 2, num. 4, novembro 2009. Páginas 180-181. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/index.php/aedos/article/viewFile/11195/6900> 55 ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO: Assembléa Constituinte, 1823. Rio de Janeiro, Typographia do Imperial Instituto Artistico, 1874. Sessão de 03 de Maio de 1823, página 4. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/dc_20a.asp?selCodColecaoCsv=C&Datain=3/5/1823>

26

a que o Imperador toma para si a função de aprovar ou não o Projeto Constitucional

que a Assembléia tem por objetivo construir.

Assim, após iniciados os trabalhos, com o objetivo de estabelecer os parâmetros

que definiriam toda a arquitetura institucional do novo país, a Constituinte re se reuniu

de 03 de maio a 12 de novembro de 1823. Concorreram, durante esse tempo, duas

propostas principais de trabalho: parte dos deputados encontrava-se encarregada de

exercer as funções de legisladores ordinários, ou seja, elaboradores de projetos de leis

e propostas que tinham por objetivo regular o país. Outra parte, uma comissão

encarregada da tarefa, redigia o projeto de Constituição para o Império56.

Depois de quatro meses de trabalhos, em sessão de primeiro de setembro de

1823, o projeto de Carta Constitucional, que teve como elaboradores os deputados

Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva, Antônio Luiz Pereira da Silva, Antônio Luiz

Pereira da Cunha, Manoel Ferreira da Câmara de Bittencourt e Sá, Pedro de Araújo

Lima, José Ricardo da Costa Aguiar de Andrada e Francisco Muniz Tavares, foi enfim

concluído e apresentado.

Dos episódios que anunciavam o fechamento da Assembléia57 destaca-se, aqui,

a apresentação do Projeto Constitucional elaborado, que não levava em conta as

palavras de Dom Pedro I na abertura dos trabalhos, em maio de 1823, e dizia, como se

verá mais a fundo durante o próximo capítulo, que a Constituição ali presente já era

válida, mesmo sem a aprovação do monarca. Dessa forma, pode-se entender que, de

um início festivo iam restando apenas os combates entre os deputados e o Imperador e

o Projeto Constitucional colabora em grande parte para tal situação.

Segundo Martins58, a suspensão da Assembléia foi provocada pelas restrições

aos poderes do monarca contempladas no projeto elaborado. O fechamento se deu

pouco mais de dois meses após a apresentação do projeto, em 12 de novembro de

1823. Entretanto, o anúncio oficial da dissolução da Assembléia Constituinte, feito pelo

Imperador apresenta motivos diferentes. O fim da Assembléia Constituinte foi assim

justificado:

Hei por bem, como Imperador, e Defensor Perpetuo do Brazil, dissolver a mesma Assembléa, e convocar já uma outra na forma das Instrucções, feitas para a convocação desta, que agora acaba; a qual deverá trabalhar sobre o projecto de constituição, que eu lhe hei de em breve apresentar; que será duplicadamente mais liberal, do que este que a extinta Assembléa acabou de fazer. Os meus Ministros, e Secretarios de Estado de todas as differentes

56 SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas. Op. Cit. Página 181. 57 Idem. Ibidem. 58 MARTINS, Maria Fernanda Vieira. Op. Cit. Página 68.

27

repartições o tenham assim entendido, e façam executar a bem da salvação do Imperio.59 (ênfase nossa)

O encaminhamento dado pelo Imperador na elaboração da primeira Constituição

brasileira parecia estar inscrito desde já sua coroação. Ali, os limites da ação dos

constituintes pareciam estar já muito bem delimitados. Como indica Oliveira, desde a

coroação estava delimitado que a Assembléia não deveria colocar em questão a

autoridade e a atribuição de sagrado ao Imperador60.

O Conselho de Estado e a Elaboração do Novo Projeto Constitucional

A extinção da Assembléia Constituinte foi imediatamente seguida da criação do

Conselho de Estado, que seria o responsável pela elaboração e aprovação de um novo

projeto constitucional. Em decreto de 13 de novembro de 1823, o Imperador cria o

Conselho de Estado:

Havendo eu, por decreto de 12 do corrente, dissolvido a Assembléa Geral Constitutinte e Legislativa, e igualmente promettido um projecto de Constituição (...) E como para fazer semelhante projecto com sabedoria, e apropriação às luzes, civilisação, e localidade do Imperio, se faz indispensavel, que eu convoque homens probos, e amantes da dignidade imperial, e da liberdade dos povos: Hei por bem crear um Conselho de Estado, em que tambem se tratarão os negocios de maior monta, e que será composto de dez membros; os meus seis actuaes Ministros, que já são Conselheiros de Estado natos, pela Lei de 20 de Outubro próximo passado, o Desembargador do Paço Antonio Luiz Pereira da Cunha, e os Conselheiros da Fazenda Barão de Santo Amaro, José Joaquim Carneiro de Campos, e Manoel Jacinto Nogueira da Gama61.

Dessa forma, o que antes era atribuição de uma Assembléia composta por noventa

deputados agora passava a ser responsabilidade de dez conselheiros escolhidos pelo

próprio Imperador62.

A primeira missão do Conselho de Estado foi decidir o destino dos deputados

presos durante o encerramento da Assembléia Constituinte. Destino este que foi a

expatriação dos presos políticos63. Em seguida deu-se início aos trabalhos de

elaboração do novo Projeto Constitucional. Segundo José Honório Rodrigues, os

59 COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRAZIL. “Collecção das Decisões do Governo de 1823”. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887. Decreto de 12 de Novembro de 1823. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Legimp-F_148.pdf> 60 OLIVEIRA, Eduardo Romeiro. Op. Cit. Página 57. 61 COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRAZIL. Op. Cit. Decreto de 13 de Novembro de 1823. 62 SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas. Op. Cit. Página 181. 63 RODRIGUES, José Honório (org). “Atas do Conselho de Estado: Segundo Conselho de Estado, 1823–1834”. Disponível em: <http://201.54.48.105/publicacoes/anais/pdf/ACE/ATAS2-Segundo_Conselho_de_Estado_1822-1834.pdf>

28

escolhidos de Dom Pedro I tomaram por base o projeto que vinha sendo discutido até o

fechamento da Assembléia para confeccionar o texto legal que viria a ser a

Constituição do país em março de 182464.

Menos de um mês após a constituição do Conselho de Estado, o projeto

elaborado estava concluído em 11 de dezembro de 1823. Em portaria, Dom Pedro I

enviou às Câmaras o novo projeto constitucional em 17 de dezembro do mesmo ano:

S. M. o Imperador, fiel á promessa, que fez, de offerecer ás Camaras deste Imperio um projecto de Constituição: Manda, pela Secretaria de Estado dos Negocios do Imperio, remetter ao Illm. Senado da Camara desta Cidade os inclusos exemplares65.

A resposta veio três dias depois, através de um edital publicado pelas Câmaras que

tinha por objetivo acatar o projeto constitucional o mais breve possível:

O mesmo Illm. Senado communica a todas as classes de cidadãos, que havendo lido e examinado o dito Projecto (...) que nestes termos o Senado, por julgar ser conveniente á felicidade publica, e por evitar o grande intervallo de tempo que estariamos sem uma lei que nos regulasse, vendo ao mesmo tempo que não poderá haver Constituição mais liberal, que esta apresentada por S. M. Imperial do projecto, porque então seria a destruição do systema Monarchico Constitucional que abraçamos e de bom grado juramos; vendo tambem que não podia ser menos liberal, porque então, encontrando a vontade geral dos Povos, estes a não queriam abraçar, mui principalmente estando, como estão, tão inteirados do liberalismo de S. M. Constitucional; e vendo ultimamente que uma nova Assembléa Geral, Constituinte, e Legislativa nada mais poderia fazer do que aceitar este projecto, ou discutindo-o fazer outro no mesmo sentido, mas por outras palavras, o que levaria pelo menos dous annos, e neste tempo correria risco a nossa segurança publica, pois que poderia apparecer a anarchia, o maior dos flagellos do mundo; além de que as outras Nações, não nos achando constituidos, estariam em observação, e não reconheceriam (como muito convém) a nossa Independencia, mui necessario este reconhecimento para consolidar este rico, fertil e vasto Imperio: tem resolvido que (...) fique approvado como Constituição do Imperio (...) para que o Senado, conhecendo assim a opinião geral, esta guia dos Governos Constitucionaes, e grande mestra do mundo, possa solemnemente pedir a S. M. o Imperador, em nome do povo, que este quer que o mesmo A. S. mande executar aquelle Projecto como Constituição do Imperio66. (ênfase nossa)

Apontada no documento está pressa na aprovação da Constituição, uma vez que o

país entrava em seu segundo ano de existência ainda sem uma lei máxima,

aumentando pressões internas e também desconfianças externas.

64 Idem. 65 COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRAZIL. Op. Cit. Portaria n. 179, de 17 de Dezembro de 1823. 66 Idem. Edital do Illm. Senado da Camara da Cidade do Rio de Janeiro sobre o projecto de Constituição que trata a portaria acima. 20 de Dezembro de 1823.

29

A Carta que foi aprovada e outorgada pelo Imperador em março de 1824 não

sofreu nenhuma alteração do projeto que deixou o Conselho de Estado e foi a lei

máxima do Brasil durante todo o período Imperial.

Como procurou-se apontar o período que se seguiu à independência foi

marcado pela necessidade de legitimação da monarquia. A constituição, figurou, então,

como um importante elemento nessa legitimação – uma vez que almejava-se a

monarquia constitucional. Ao mesmo tempo que favorecia a legitimação monárquica, a

constituição impunha limites aos poderes do monarca. Nesse sentido, o capítulo

seguinte procura investigar o alcance dessas limitações e o papel que tiveram na

substituição do projeto original construído pela Constituinte e no que foi elaborado pelo

Conselho de Estado, enfim tornado o texto constitucional outorgado.

30

CAPÍTULO III

ESTUDO COMPARADO ENTRE O PROJETO CONSTITUCIONAL DE 1823 E A

CONSTITUIÇÃO DE 1824

Neste último capítulo, procura-se observar, através da comparação entre o

Projeto Constitucional elaborado pela Assembléia Constituinte em 1823 e a

Constituição outorgada em 1824, fruto da formação do Conselho de Estado, o

investimento institucional no poder do monarca. Para isso, destacam-se os artigos de

ambos os textos que revelem limites, principalmente por parte do projeto, e concessões

ao poder imperial. Não é objetivo deste capítulo fazer uma mera descrição de cada

projeto, por isso tal análise é realizada de maneira a objetivar a compreensão e a

comprovação desses investimentos, dando ênfase a artigos dos textos que tragam tais

percepções e não se detém em uma apresentação sequencial.

Projeto Constitucional de 1823

Dividindo seus 272 artigos em quinze títulos, o Projeto de Constituição da

Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil teve como

elaboradores os deputados Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva, Antônio Luiz

Pereira da Silva, Antônio Luiz Pereira da Cunha, Manoel Ferreira da Câmara de

Bittencourt e Sá, Pedro de Araújo Lima, José Ricardo da Costa Aguiar de Andrada e

Francisco Muniz Tavares. Na sessão de 1º de setembro de 1823, o relator Antônio

Carlos efetuou a leitura do texto e as discussões sobre a possível primeira Constituição

brasileira iniciaram-se aos 15 dias daquele mesmo mês, sem, porém, terem sido

concluídas, tendo em vista a dissolução da Assembléia poucos meses depois67.

Para iniciar a comparação, apresentam-se os primeiros títulos do Projeto, que

tratam do território, do Império, da constituição e da representação do Estado brasileiro.

Em seu título primeiro, o Projeto define o território do Império, sem, porém,

qualquer menção específica ao Imperador68. O Título Segundo, dividido em quatro

capítulos, trata do Império em si. Define, em um primeiro momento, quem são os 67 LYRA, A. Tavares de. “Organisação Politica e Administrativa do Brasil (Colonia, Imperio e Republica)”. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941. Páginas 50 e 51. 68 ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO: Assembléa Constituinte, 1823. “Projecto de Constituição Para o Imperio do Brazil”. Rio de Janeiro, Typographia do Imperial Instituto Artistico, 1874. Artigos 1º ao 4º Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/dc_20a.asp?selCodColecaoCsv=C&Datain=1/9/1823>

31

membros da sociedade, brasileiros ou aqueles que podem obter carta de

naturalização69. O segundo capítulo trata de direitos individuais, como por exemplo, a

liberdade. Deste tópico específico, destacamos alguns apontamentos que revelam uma

direção mais humanitária do que a seguida pelas Ordenações Filipinas, a legislação

tecnicamente válida no Brasil durante o período: não existirá prisão sem culpa formada,

exceto em casos especificamente legislados70; todos os brasileiros são livres para

entrar e sair do Império71. Ao tratar da liberdade religiosa, porém, o Projeto restringe-a

apenas às comunhões cristãs, outras religiões são apenas toleradas e aqueles que as

professarem perdem seus direitos políticos72.

Deve-se destacar o artigo 27, último do segundo capítulo deste título. O texto

aponta que, em estado de rebelião declarada ou invasão inimiga, caso a segurança do

Estado venha a exigir, alguns direitos individuais dos cidadãos podem ser suspensos

por tempo determinado, mediante decisão que poderá ser tomada pelo Poder

Legislativo. O Imperador, como se observará no decorrer, faz parte do Poder

Legislativo, o que a princípio seria permissão para que apenas sua palavra

suspendesse tais direitos, porém, o artigo conclui apontando que tal situação só pode

ser colocada em voga com dois terços de todos os votantes. Aparece aqui a força da

coletividade contra uma decisão de voz única. O artigo seguinte reitera que o prazo de

suspensão de tais direitos é determinado e, uma vez findo, serão consideradas

responsáveis quaisquer autoridades que tenham cometido abusos. O texto é claro ao

não isentar ninguém da punição:

Art. 27. Nos casos de rebellião declarada, ou invasão de inimigos, pedindo a segurança do estado que se dispensem por tempo determinado algumas das formalidades que garantem a liberdade individual, poder-se-ha fazer por acto especial do poder legislativo, para cuja existencia são mister dous terços dos votos concordes. Art. 28. Findo o tempo da suspensão, o governo remetterá relação motivada das prizões; e quaisquer autoridades que tiverem mandado proceder a ellas serão responsáveis pelos abusos que tiverem praticado a este respeito.73 (ênfase nossa)

O terceiro capítulo trata dos direitos políticos, reconhecendo três graus de

habilidade para tais e apontando suas possibilidades de perda ou suspensão. Nesse

caso, encontramos a presença imperial como decisiva: o cidadão que aceita emprego,

pensão ou condecoração de qualquer governo estrangeiro sem a licença do Imperador

69 Idem. Artigos 5º e 6º. 70 Idem. Artigo 11. 71 Idem. Artigo 12. 72 Idem. Artigos 14 e 15. 73 Idem. Artigos 27 e 28.

32

perde seus direitos políticos74. Os casos de suspensão se dão por incapacidade física

ou moral e também por sentença que condene à prisão ou ao degredo, enquanto

durarem tais efeitos75.

O último capítulo trata dos deveres dos brasileiros: obedecer a lei, aceitar as

punições para seus atos ilícitos, contribuir com a receita pública, responder por sua

conduta como funcionário público e defender sua pátria. O cidadão só pode

desobedecer a lei nos casos em que ela possa depravá-lo ou torná-lo vil76.

O Terceiro Título dá a constituição do Império como monarquia hereditária,

representada pelo Imperador e pela Assembléia Geral77. Além, reconhece três poderes

políticos:

Art. 39. Os Poderes Politicos reconhecidos pela Constituição do Imperio são trez: o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário78. (ênfase nossa)

O projeto de Constituição não cede ao Imperador um poder exclusivo e isento de

responsabilidade e capaz de interferências em outros ramos da administração do

Estado como seria elaborado o discurso do futuro Poder Moderador, como se

apresentará a seguir.

A Instituição do Poder Moderador na Constituição de 1824

A outorga da primeira constituição do Brasil, elaborada pelo recém-constituído

Conselho de Estado, acontece em março de 1824. Com disposição bastante diferente

da do projeto, foi composta por apenas 179 artigos organizados em 8 títulos. Mais

objetiva, atrelou diversas normatizações que antes apareciam dispersas no projeto ao

título que tratava dos poderes e das atribuições Imperiais. Uma das maiores novidades

da Carta em relação ao projeto da Constituinte foi a inserção do chamado poder

moderador. Nesse sentido, o texto constitucional definia:

Art. 10 – Os poderes políticos reconhecidos pela Constituição do Império do Brasil são quatro: o poder legislativo, o poder moderador, o poder executivo e o poder judicial.79 (ênfase nossa) (...)

74 Idem. Artigo 31, inciso II. 75 Idem. Artigo 32. 76 Idem. Artigos 33 e 34. 77 Idem. Artigos 36 ao 38. 78 Idem. Artigo 39. 79 ALMEIDA, Fernando H. Mendes de (org.). “Constituição Política do Império do Brasil: 25 de Março de 1824”. In:____. “Constituições do Brasil”. São Paulo: Edição Saraiva, 1963. 4ª Edição. Página 04.

33

Art. 98 – O poder moderador é a chave de tôda a organização política, e édelegado privativamente ao Imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos80.

O artigo 99 aponta a isenção da responsabilidade do Imperador:

Art. 99 – A pessoa do Imperador é inviolável e sagrada: a ele não está sujeito a responsabilidade alguma.81 (ênfase nossa)

A regra trazida pela Constituição reafirma o aumento do poder imperial. Uma vez

isento da responsabilidade, em uma breve comparação, o Imperador não poderia ser

responsabilizado por abusar de seu poder ao infringir os termos do artigo 179, inciso

35, derradeiro dispositivo da Carta, que corresponde aos artigos 27 e 28 do Projeto,

anteriormente apresentados:

Art. 179 – A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: (...) 35) Nos casos de rebelião ou invasão de inimigos, pedindo a segurança do Estado que se dispensem, por tempo determinado, algumas formalidades que garantem a liberdade individual, poder-se-á fazê-lo por ato especial do Poder Legislativo. Não se achando, porém, a êsse tempo reunida a assembléia, e correndo a Pátria iminente perigo, poderá o govêrno exercer esta mesma providência, como medida provisória e indispensável, suspendendo-a imediatamente, quando cesse a necessidade urgente que a motivou; devendo, em um e outro caso, remeter à assembléia, logo que reunida fôr, uma relação motivada das prisões e de outras medidas de prevenção tomadas; e quaisquer autoridades que tiverem mandado proceder a elas serão responsáveis pelos abusos que tiverem praticado a êsse respeito.82 (ênfase nossa)

Adiante, o documento constitucional institui, com caráter de exclusividade, ao

Imperador através do exercício do poder moderador: a dissolução da Câmara de

deputados, o afastamento de juízes suspeitos, a intervenção nos atos das Assembléias

das Províncias, a nomeação de ministros, a comutação de penas e concessão de

anistia. A amplitude do poder do monarca, portanto, era muito maior do que o dos três

outros poderes que compunham o Estado: legislativo, executivo e judiciário:

Art. 101 – O Imperador exerce o poder moderador: 1.º) Nomeando senadores, na forma do art. 43. 2.º) Convocando a assembléia geral extraordinária nos intervalos das sessões quando assim pede o bem do Império. 3.º) Sancionado os decretos e resoluções da assembléia geral, ara que tenham fôrça de lei. 4.º) Aprovando e suspendendo interinamente as resoluções dos conselhos provinciais.

80 Idem. Páginas 05 e 22. 81 Idem. Página 23. 82 Idem. Páginas 43-44.

34

5.º) Prorrogando os adiando a assembléia geral, e dissolvendo a Câmara dos Deputados, nos casos em que o exigir a salvação do Estado; convocando imediatamente outra que a substitua. 6.º) Nomeando e demitindo livremente os ministros de Estado. 7.º) Suspendendo os magistrados nos casos do art. 154. 8.º) Perdoando ou moderando as penas impostas aos réus condenados por sentença. 9.º) Concedendo anistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade e bem do Estado.83

Dessa forma, o poder moderador funcionaria como mecanismo de pressão e

também intervenção nos demais poderes e outras formas de administração do Brasil,

como uma forma de resguardo do Estado.

Pode-se retomar, aqui, a função descrita na coroação de Dom Pedro, onde se

observa a obediência como limítrofe dentro da ordem constitucional, partindo do uso do

Poder Moderador. “Trata-se de restringir o poder que cabe a cada um, pelo respeito a

condições normativas (deveres e lei estabelecidos conforme o “direito natural e das

gentes”), cabendo ao Imperador o papel de velar pela observância da lei”84.

Outra característica da Constituição de 1824 é a objetividade perante o projeto

antecessor ao atrelar diversas normatizações, que antes apareciam dispersas no

projeto, ao título que tratava dos poderes e das atribuições Imperiais. Exemplo claro

podemos encontrar na descrição das Forças Militares, que anteriormente mereceram

um título próprio e na Carta Outorgada foram totalmente ligadas ao Imperador, sem a

autonomia prevista no Projeto, que versava:

Art. 227. Haverá huma Força armada, terrestre, que estará á disposição do Poder Executivo, o qual porém he obrigado a conformar-se ás regras seguintes. (...) Art. 230. Não pode ser empregado no interior se não no caso de revolta declarada. Art. 231. Neste caso ficão obrigados o Poder Executivo e seos Agentes a sujeitar a exame da Assembléa todas as circunstancias que motivarão a sua resolução.85

Enquanto a Constituição resumia em um capítulo, o oitavo relacionado às

atribuições do Imperador, a lealdade das forças armadas ao monarca e a competência

privativa do poder executivo em empregá-la:

Art. 147 – A fôrça militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima. Art. 148 – Ao poder executivo compete privativamente empregar a fôrça armada de mar e terra, como bem lhe parecer conveniente à segurança e defesa do Império.86

83 Idem. Página 23. 84 OLIVEIRA, Eduardo Romeiro. Op. Cit. Página 57. 85 ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Op. Cit. Artigos 227, 230 e 231. 86 ALMEIDA, Fernando H. Mendes de (org.). Op. Cit. Página 33.

35

Pode-se identificar aqui outra marca da maior centralização do poder nas mãos

do monarca, e também a possibilidade do uso de força dentro dos limites territoriais

sem a necessidade de autorização da Assembléia, como propunha o projeto.

São exemplos do papel de instrumentação do poder imperial, ou seja, a

possibilidade de ação do Imperador, onde ele figura como garantidor do regime,

controlando as diversas funções do país, do aparato militar às eleições, passando pela

ação soberana do poder moderador, o poder superior e vigilante. Para Romero, essa é

a afirmação da monarquia brasileira da década de 1820 como um império da lei.87

Fundamentos do Poder Político

Destaca-se que tanto o projeto quanto à constituição estão fundamentados no

que Eduardo Romero aponta como elemento de excepcionalidade88: uma possível

situação de ameaça que seja capaz de abalar o Estado de tal maneira que possa,

inclusive, destruí-lo, um grau extremo de perigo. Assim, pautados nesse aspecto de

exceção, apontam que é necessária a existência de um poder que possa ser capaz de

conter uma ameaça de tais proporções, ainda que ela não esteja descrita na lei

constitucional – uma vez que é imprevisível.

Nesse ponto, projeto e constituição divergem, definindo personalidades jurídicas

diferentes capazes de exercer tal poder. Para o primeiro, a legitimidade de ação é do

poder legislativo e da própria proposta de constituição, como pode-se notar nos artigos

presentes no projeto:

Art. 114. O Imperador he obrigado a dar, ou negar, a Sancção em cada Decreto expressamente dentro de hum mes, depois que lhe for apresentado. Art. 115. Se não o fizer dentro do mencionado prazo, nem por isso deixarão os Decretos da Assembléa Geral de ser obrigatorios, apesar de lhes faltar a Sancção que exige a Constituição. (...) Art. 121. Não precisarão de Sancção para obrigarem, os Actos seguintes da Assembléa Geral, e suas Sallas: I. A presente Constituição, e todas as alterações Constitucionaes que para o uturo n’ella se possão fazer. II. Todos os Decretos d’esta Assembléa, ainda em meterias regulamentares.89

Assim, pode-se notar que o predomínio do poder do legislador e da própria

Constituição se faz notar na possibilidade de um decreto sem sanção imperial ter

87 OLIVEIRA, Eduardo Romeiro. Op. Cit. Páginas 57-58 88 Idem. Páginas 60-63. 89 ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Op. Cit. Artigos 114, 115 e 121.

36

validade, ainda que a proposta constitucional exija tal sanção. E, principalmente, na

idéia de que a Constituição e suas possíveis alterações também não precisariam da

autorização do Imperador. Dessa maneira, a assembléia estaria valendo-se de sua

condição de exceção, que é a própria ausência de determinações constitucionais, para

colocar-se na posição de decidir sobre qualquer matéria sem o aval do Imperador.

Nesse sentido, vale retomar que o discurso de Dom Pedro I na abertura da Assembléia

Legislativa, em 03 de maio de 1823, apontando que somente se submeteria a uma

Constituição elaborada por aquela Assembléia caso a julgasse digna90, é

sumariamente ignorado neste momento, uma vez que dispensa a aprovação Imperial.

Já na Constituição outorgada em 1824, observa-se a necessidade da sanção

imperial para que os decretos possuam força de lei e possam deter validade, como

dispõem os seguintes artigos:

Art. 66 – O Imperador dará ou negará a sanção em cada decreto dentro de um mês depois que lhe fôr apresentado. Art. 67 – Se não o fizer dentro do mencionado prazo, terá o mesmo efeito como se expressamente negasse a sanção, para serem contadas as legislaturas em que poderá ainda recusar o seu consentimento, ou reputar-se o decreto obrigatório por haver já negado a sanção nas duas antecedentes legislaturas. (...) Art. 101 – O Imperador exerce o poder moderador: (...) 3.º) Sancionado os decretos e resoluções da assembléia geral, para que tenham fôrça de lei.91 (ênfase nossa)

Nesse sentido, o fundamento do poder político centrado nas mãos do Imperador

se observa na existência do poder moderador, pois dá ao monarca a possibilidade de

intervenção em outros poderes e em administrações provinciais. Como se observou no

artigo que aponta as diversas funções do poder moderador, é desse novo poder que

emana, também, a força de lei dos decretos elaborados pela assembléia. Novamente

estabelecendo a comparação entre os artigos de projeto e Constituição, observa-se,

também, a mudança da própria forma de redação do texto: enquanto o projeto obriga o

Imperador a dar sanção, a Constituição não usa do imperativo, uma vez que existe a

prerrogativa do monarca abster-se da decisão e, dessa forma, dar a ela efeito de

negação.

90 Retomar Capítulo II desta monografia. 91 ALMEIDA, Fernando H. Mendes de (org.). Op. Cit. Páginas 16 e 23.

37

Dos Poderes Legislativo e Judicial

Dentro do Projeto Constitucional de 1823, em seu artigo 41, o poder Legislativo

é delegado, conjuntamente, à Assembléia Geral e ao Imperador, sem colocar o

monarca como supervisor da atuação dos deputados e senadores, participantes da

Assembléia. Já na Constituição está presente mais um mecanismo de prevalência do

poder Imperial: no Artigo 13, o texto estabelece que “o poder legislativo é delegado à

assembléia geral com a sanção do Imperador”92. As atribuições da Assembléia Geral,

composta de duas câmaras, a dos deputados e a do Senado, são, em ambos os textos,

as mesmas. Assim como são iguais as atribuições exclusivas da Câmara dos

Deputados. Porém, em se tratando das atribuições exclusivas do Senado, observa-se

uma diferença: enquanto no projeto uma destas atribuições é conhecer dos crimes

cometidos por deputados durante apenas a reunião da Assembléia93, na Constituição

esse período se estende por toda a legislatura94.

As atribuições do Imperador como ramo da legislatura estão dispostas no

terceiro capítulo do título IV do projeto95 e foram apresentadas no tópico anterior, ao

tratar-se dos fundamentos do Poder Político tanto no projeto quanto na Constituição.

Com o Estado recém independente, nota-se, tanto no projeto quanto na

Constituição, no que tange o poder Judicial, a existência de dispositivos que remetem-

se a leis ainda não criadas. Também concordam ao garantir aos cidadãos penas que

não ultrapassem a pessoa do condenado, proibir torturas e outras penas cruéis, ainda

que tais institutos fossem válidos, uma vez que o Brasil ainda regrava-se pelas

chamadas Ordenações Filipinas para aplicação de penas até a promulgação dos

Códigos Criminal (1830) e Processo Criminal (1832)96.

O título nono do Projeto, ao tratar do Poder Judiciário (artigos 187 a 908), em

ocasião alguma menciona a figura do Imperador fazendo possíveis intervenções97. Já

no texto constitucional essa autorização de uma possível intervenção está presente:

Art. 101 – O Imperador exerce o poder moderador: (...) 7.º) Suspendendo os magistrados nos casos do artigo 154.

92 Idem. Página 6. 93 ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Op. Cit. Artigo 107, inciso I. 94 ALMEIDA, Fernando H. Mendes de (org.). Op. Cit. Página 12. 95 ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Op. Cit. Artigos 110 a 121. 96 JUSTO, António dos Santos. “O Direito Brasileiro: Raízes Históricas”. Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio de Janeiro, número 20, 2002. Disponível em: <http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/dir_bras_raiz_hist.pdf> 97 Idem. Artigos 187 a 208.

38

Art. 154 – O Imperador poderá suspendê-los por queixas contra êles feitas, precedendo audiência dos mesmos juízes, informação necessária e ouvido o Conselho de Estado.98

Outra novidade da Constituição a respeito do Poder Judicial e a possibilidade do

Imperador realizar a nomeação de magistrados99, não prevista anteriormente.

Foram apresentadas aqui algumas modificações entre o primeiro Projeto

Constitucional, elaborado em 1823, e a primeira Constituição do Brasil, datada de

1824. Pode-se notar que as diferenças entre um texto e outro não são muitas, mas são,

sem dúvida, significativas.

Desse modo, o terceiro capítulo buscou apresentar pontos para a demonstração

de um investimento institucional maciço no fortalecimento do poder Imperial. Ao lado do

investimento simbólico na legitimação da monarquia e do governo de D. Pedro I, o

fortalecimento da amplitude do poder do Imperador visava construir um contexto de

facilitação do governo, que nem sempre se mostrou eficaz. Mas essas são questões

que ultrapassam os limites deste trabalho.

98 ALMEIDA, Fernando H. Mendes de (org.). Op. Cit. Páginas 23 e 34. 99 Idem. Página 24.

39

CONCLUSÃO

A pesquisa monográfica aqui apresentada investigou os investimentos,

simbólicos e institucionais, destinados a legitimar o governo monárquico de Dom Pedro

I e da Monarquia no Brasil independente. Usando do estudo dos investimentos

simbólicos inicialmente com o intuito de preenchimento de um espaço no sentido de

encontrar razões para a necessidade extrema de uma legitimação da monarquia, me

surpreendeu o resultado obtido, uma vez que pude observar no decorrer da pesquisa

que esse investimento simbólico foi muito mais do que apenas um passo inicial para se

atingir o objetivo residente no investimento institucional. Pelo contrário, foi, em certa

medida, o que originou certas necessidades institucionais, uma vez que, dentro de uma

monarquia a representação também faz parte da maneira de governar. Nesse sentido,

o que mais chama atenção durante a realização da pesquisa é a constante retomada

de simbolismos para legitimar novos atos e decisões que alteram as estruturas

institucionais. Exemplo disso é a recorrente retomada, por parte de Dom Pedro I, do

compromisso simbólico firmado com o povo de defender a pátria e a Constituição, se

ela digna dele e do país fosse, para evitar que a Assembléia Constituinte tomasse dele

a decisão final sobre qual texto deveria, enfim, se tornar a Carta Magna do Brasil.

Ao estudar-se, em seguida, as relações entre os principais atores da

independência, pode-se entender a formação de algumas instituições e algumas

escolhas que antes pareciam ter sido feitas ao acaso, como por exemplo a adoção da

Monarquia Constitucional, ficaram mais claras. Tendo em vista o importante papel da

elite na formação do Brasil, compreendeu-se que, mesmo dentro do sistema

monarquista essa parcela do corpo político do Império queria uma representação

maior. Assim, a partir disso, entende-se também as medidas tomadas pelos

elaboradores do Projeto Constitucional da Assembléia Constituinte: uma vez

incumbidos da tarefa e dar ao país a primeira Constituição, só o fariam, como se

provou no texto, se fosse ela aprovada independentemente da sanção do Imperador,

que certamente, como ocorreu, encararia certos dispositivos como na contra mão do

que pleiteava.

Ao realizar esta pesquisa monográfica entramos em contato com duas visões de

governo através das fontes, que nos permitiu ter clareza ao entender a opção de Dom

Pedro I por formar uma nova Instituição, o Conselho de Estado, de ministros de sua

40

confiança, a fim de outorgar uma Constituição que lhe garantiria todo o poder que

emanava dele através dos mecanismos de representação da figura imperial.

Nesse sentido, para concluir, retomamos a idéia de que as mudanças entre o

projeto Constitucional da Assembléia e a Constituição foram poucas, mas muito

significativas. Assim, serviram de pontos de comprovação de um investimento

institucional maciço no fortalecimento do poder Imperial. Ao lado do investimento

simbólico na legitimação da monarquia e do governo de D. Pedro I, o fortalecimento da

amplitude do poder do Imperador visava construir um contexto de facilitação do

governo.

41

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ANEXOS

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