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Concepção e cura do sofrimento e da doença no candomblé 2Simpósio Internacional de História das Religiões XV Simpósio Nacional de História das Religiões ABHR 2016 Daniela Calvo 1 Introdução Saúde, doença e cura são conceitos cujo significado muda no tempo e no espaço, dependendo de modelos culturais e normativos, e se referem a fenômenos impossíveis de serem delimitados a uma única ordem biológica. Os aspectos físicos, psicológicos e emocionais, e as relações econômicas, sociais e políticas fazem parte da definição de saúde e de doença, e precisam ser considerados no cuidado e na cura da pessoa, na sua complexidade de ser bio-psico-social. A doença deve ser entendida não somente como fenômeno natural, mas também como fenômeno social, que modifica as relações e as atividades das pessoas direta ou indiretamente envolvidas, as quais a investem de significados culturalmente plasmados segundo o contexto cultural de referência, como apontado por Good (1994). Em contextos culturais diferentes os serem humanos sofrem de doenças diferentes, agem de forma diferente na definição e na prática terapêutica, reagem de forma diferente e avaliam o resultado da ação terapêutica segundo critérios diferenciados. Isso leva à impossibilidade de definir universalmente também o significado de eficácia terapêutica, que pode ser avaliada segundo diversas dimensões: física, psicológica, emocional, social, política, simbólica e espiritual. A esse fim, é importante levar em conta os objetivos dos atores sociais envolvidos, que normalmente buscam a superação da dor e, quando possível, o restabelecimento de uma condição de normalidade, ou então ainda, a aceitação da 1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências sociais da UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Membro do Núcleo de Estudos de Religião NUER do PPCIS da UERJ. E-mail: [email protected].

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Concepção e cura do sofrimento e da doença no candomblé

2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões

XV Simpósio Nacional de História das Religiões

ABHR 2016

Daniela Calvo1

Introdução

Saúde, doença e cura são conceitos cujo significado muda no tempo e no

espaço, dependendo de modelos culturais e normativos, e se referem a fenômenos

impossíveis de serem delimitados a uma única ordem biológica. Os aspectos físicos,

psicológicos e emocionais, e as relações econômicas, sociais e políticas fazem parte

da definição de saúde e de doença, e precisam ser considerados no cuidado e na cura

da pessoa, na sua complexidade de ser bio-psico-social.

A doença deve ser entendida não somente como fenômeno natural, mas

também como fenômeno social, que modifica as relações e as atividades das pessoas

direta ou indiretamente envolvidas, as quais a investem de significados culturalmente

plasmados segundo o contexto cultural de referência, como apontado por Good

(1994). Em contextos culturais diferentes os serem humanos sofrem de doenças

diferentes, agem de forma diferente na definição e na prática terapêutica, reagem de

forma diferente e avaliam o resultado da ação terapêutica segundo critérios

diferenciados. Isso leva à impossibilidade de definir universalmente também o

significado de eficácia terapêutica, que pode ser avaliada segundo diversas

dimensões: física, psicológica, emocional, social, política, simbólica e espiritual.

A esse fim, é importante levar em conta os objetivos dos atores sociais

envolvidos, que normalmente buscam a superação da dor e, quando possível, o

restabelecimento de uma condição de normalidade, ou então ainda, a aceitação da

1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências sociais da UERJ – Universidade Estadual

do Rio de Janeiro. Membro do Núcleo de Estudos de Religião – NUER – do PPCIS da UERJ. E-mail:

[email protected].

nova situação inserindo-a em um esquema de explicação no meio simbólico e

cosmológico. Uma parte importante de cada terapia é tornar a doença pensável, dar-

lhe um nome e um sentido, em um determinado sistema de representações,

permitindo ressignificar a experiência da doença.

Kleinmann (1980) aponta a importância de considerar diferentes modelos

explicativos de doença, dependendo das noções relativas à etiologia do mal e à

natureza que lhe é atribuída.

As religiões participam da oferta de cura e cuidado, agindo como práticas

diagnósticas, terapêuticas e profiláticas. Proporcionam, assim, um sentido à doença

inserindo-a em um sistema mais amplo, que inclui o mundo sobrenatural e outros

seres, possibilitando uma negociação com estas forças.

Diante da pluralidade religiosa presente no Brasil, diferentes religiões oferecem

alternativas variadas para a cura, proporcionando explicações da doença e da aflição,

e permitindo com isso restabelecer a saúde ao enfermo, uma vez que insere-se a

experiência de doença e (em casos extremos) da morte em um sistema simbólico e

se constrói uma rede de apoio social e psicológico. De fato, tentando restabelecer a

saúde, muitos doentes e seus familiares buscam contemporaneamente, ou em

sucessão, diferentes agentes de cura, que não se restringem à biomedicina, mas

englobam tradições populares de cura e religiões diferentes2.

O presente trabalho pretende contribuir para a discussão sobre a relação entre

religião e cura por meio do estudo da experiência religiosa, da visão de mundo e da

noção de pessoa no candomblé3. Analisando as motivações que levaram à iniciação,

a doença se destaca nas narrativas, enquanto o estudo das práticas religiosas e da

cosmologia apontam para uma centralidade do cuidado de si, junto ao cuidado dos

orixás.

2 O trânsito entre diferentes religiões, incluindo a igreja católica, as igrejas evangélicas e neo-

pentecostais, e as religiões afro-brasileiras (como o candomblé e a umbanda), é tratado, por exemplo,

em Rabelo (1993 e 2002) e Mota et al. (2012).

3 Explicações da doença e do sofrimento análogas são compartilhadas por outras religiões afro-

brasileiras, por quanto as formas de cuidado podem ser diferentes.

O candomblé é uma das religiões que se desenvolveram no Brasil a partir da

re-territorialização de homens, práticas, saberes e divindades conseguinte ao trafego

escravo. Suas características distintivas são a possessão por ancestrais divinizados4

(que detêm o domínio sobre os elementos da natureza e de dimensões sociais e

culturais), o procedimento iniciático, o sacrifício animal e a organização social em

espaços ditos terreiros. Devido à tradição oral, à importância do segredo na

transmissão dos conhecimentos sagrados e à história de sua formação, os terreiros

mantêm uma certa autonomia e se diferenciam por alguns aspectos rituais e

conhecimentos sagrados.

Diferentemente de como acontece na África (onde o culto a uma divindade se

concentra em uma cidade ou em um templo e o pertencimento a um orixá depende

principalmente da linhagem familiar), no Brasil, em um mesmo terreiro, se reúne o

culto a diferentes orixás, e o orixá dono da cabeça5 de uma pessoa é estabelecido

pelo oráculo de Ifá por meio do jogo de búzios.

O grupo religioso se organiza e se define (assim como a relação com o próprio

orixá) em termos de parentesco, e laços de apoio e solidariedade são estabelecidos

no seu interior.

Por quanto existam cargos específicos, o sacerdote (babalorixá ou pai de santo

e iyalorixá ou mãe de santo) reúne em si diferentes cargos no que tange aos rituais e

aos conhecimentos: cuida dos orixás e dos espíritos dos antepassados (eguns), efetua

as oferendas e conhece as folhas sagradas, consulta o oráculo de Ifá por meio do jogo

de búzios, cuida do bem-estar das pessoas.

Cuidando da saúde e do sofrimento nos terreiros de candomblé

A relação entre candomblé e saúde abrange um complexo de problemáticas,

ligadas aos aspectos rituais da cura e da concepção da saúde na sua cosmovisão,

aos conhecimentos medicinais das folhas, à colaboração com o SUS na cura e

4 Orixás na nação ketu, vouduns nas jeje e efon, inquices na angola. É utilizado também o termo genérico santo, sem estabelecer necessariamente uma ligação com a religião católica. 5 No candomblé acredita-se que os orixás escolhem a cabeça das pessoas antes dela nascer, então cada um tem seu orixá. Todavia, somente o destino de algumas prevê a iniciação.

prevenção da AIDS e de doenças que atingem particularmente a população negra

(que constitui a maior parte do povo de santo).

A concepção de ser humano e de seu bem-estar pode ser definida de forma

holística, abrangendo os níveis físico, psicológico, emocional, social e econômico,

conectando-os ao plano espiritual. A cura se apresenta, então, como “fato social total”

(cf. Mauss, 2003).

O cuidado da pessoa na sua integridade é essencial e não está separado do

cuidado dos orixás e dos antepassados. Doenças, distúrbios psicológicos, insucessos

na vida e conflitos sociais refletem uma fraqueza ligada ao desequilíbrio da força vital,

o axé; a omissão de obrigações com os orixás ou os antepassados; a infração a

regras, tabus alimentares ou proibições sexuais; a contaminação por contato com os

eguns (espíritos dos mortos), ou encosto; um destino difícil ou a escolha de uma

“cabeça ruim” antes de deixar o orún (o espaço sobrenatural) e nascer o ayé (o espaço

físico). É pela vulnerabilidade da pessoa em nível energético e por uma condição de

corpo aberto (em contraposição ao corpo fechado, saudável, protegido) que causas

naturais, como micróbios, viroses, acidentes e infortúnios atingem as pessoas. A

saúde e o sucesso correspondem ao equilíbrio com as forças cósmicas e à

acumulação de axé - a força vital que permeia todos os seres do universo.

Além desta concepção sagrada destaco, na minha pesquisa de campo,

diferentes dimensões que se sobressaíram em relação às práticas de cuidado e ao

bem-estar nos terreiros, além da cura de doenças físicas, psicológicas e de problemas

sócias (como conflitos, insucesso no trabalho ou no amor). São eles: estabelecimento

de laços de amizade e de solidariedade no interior da família religiosa, cuidado com a

dieta, contato com a natureza, resposta à uma busca de identidade e de origem (sendo

os terreiros um lugar de materialização da memória coletiva dos africanos e de seus

descendentes, inserindo-se em uma genealogia religiosa e mítica por meio da

iniciação e da relação com o próprio orixá), valorização social da pessoa por meio do

cargo ocupado no terreiro6.

6 Cf. Calvo (2012).

Neste contexto o corpo assume uma importância central, participando em todos

os seus sentidos na vivência do grupo religioso e nos rituais; é a morada dos orixás e

o meio de conexão com o sagrado na incorporação ritual.

O oráculo de Ifá, por meio do jogo de búzios, revela a causa do problema e

indica os rituais necessários, os cuidados, as prescrições e a conduta a ser observada.

O oráculo pode também revelar que o problema não tem uma causa sobrenatural e

endereçar o consultante ao médico ou prescrever uma ação combinada de religião e

medicina.

Objetivos

Considerada a complexidade do tema, nesta apresentação procuro me

concentrar na investigação do sofrimento e do bem-estar na cosmovisão do

candomblé, por meio da análise das histórias de vida dos iniciados. Dedico assim

minhas observações ao contato e ao ingresso na religião por problemas de saúde

física ou psicológica, às mudanças de vida ocorrida depois da iniciação, aos percursos

terapêuticos, à reelaboração da própria experiência de sofrimento por meio dos

símbolos, dos mitos e da visão de mundo do grupo estudado.

As narrativas proporcionam uma reelaboração do sofrimento em uma

cosmologia que liga o mundo natural ao mundo espiritual, conferindo um sentido ao

sofrimento, que pode ser um chamado dos orixás. Uma visão alternativa registrada no

campo liga mais estritamente o sofrimento ao enfraquecimento do sujeito devido a um

desequilíbrio ou falta de força vital, à noção de pessoa (se concentrando no orí7) e à

visão do destino pessoal.

Analiso então as formas de diagnóstico e de cura, as possibilidades de alterar

uma condição desfavorável, a avaliação dos resultados conseguidos e as mudanças

no cotidiano que o candomblé proporciona.

Com estas reflexões pretendo contribuir à discussão que aborda a relação entre

religião e saúde e abrir espaço para reflexões sobre a eficácia do tratamento da

doença e do sofrimento nos terreiros de candomblé.

7 A cabeça, que é a parte principal e mais sagrada do ser humano.

Metodologia

Os resultados deste trabalho fazem parte de uma pesquisa mais ampla iniciada

em 2011, visando estudar a experiência religiosa no candomblé, as motivações que

levaram à iniciação, e as formas em que o culto aos orixás influencia a sua visão de

mundo e o cotidiano. Uma vez que a relação entre religião, sofrimento, doença, saúde,

cura e cuidado foram tomando relevância nas entrevistas realizadas, aprofundei este

tema com meus interlocutores.

A metodologia utilizada une uma revisão bibliográfica sobre o tema e uma

etnografia descritiva aliada à realização de entrevistas semiestruturadas; foram

incluídas na análise também conversas informais, anedotas e fofocas. A pesquisa se

desenvolveu por meio da participação nas festas religiosas e, em vários terreiros, por

meio do acompanhamento do cotidiano da família religiosa dentro e fora de espaços

e tempos sagrados.

As narrativas adquirem lugar central no meu estudo enquanto práticas

discursivas por meio das quais as pessoas atribuem sentido, organizam e contam a

própria experiência de doença e o seu percurso terapêutico. Levam em conta uma

dimensão subjetiva – ao mostrar como as pessoas enfrentam momentos de crise que

transformam suas vidas interpessoais; uma dimensão cultural – ao tratar da

reelaboração da experiência de sofrimento em uma visão particular de mundo –; além

de uma dimensão social – ao tratar da mobilização de familiares, amigos e de agentes

religiosos.

Visitei doze terreiros na área metropolitana do Rio de Janeiro: nove deles

pertencentes à nação ketu, um jeje, um efon e um angola. Optei por reagrupar os

resultados recolhidos nas diferentes nações, visto que não registrei diferenças

significativas em relação às experiências e às concepções relativas aos temas

estudados.

A maioria dos terreiros visitados está localizada na periferia (principalmente na

Baixada Fluminense), normalmente longe do local de moradia dos sacerdotes e dos

seus adeptos, que se reúnem no terreiro nos finais de semana, em ocasiões de rituais

e cumprimento de obrigações religiosas.

A terminologia específica que emprego é a iorubá, utilizada principalmente nos

terreiros de nação ketu.

Cuidar de si e cuidar do santo: itinerários diagnósticos e terapêuticos nos

terreiros de candomblé

O candomblé se insere entre os agentes religiosos que oferecem um modelo

explicativo e um tratamento de doenças e aflições, ligando-os a um sistema mais

amplo que conecta o ser humano à natureza e às forças cósmicas. Oferece um

sistema diagnóstico que visa estabelecer se as causas são de origem sobrenatural;

um percurso terapêutico que proporciona o equilíbrio e a harmonia do ser humano

com as forças cósmicas; um atendimento preventivo por meio do conhecimento da

conduta a ser respeitada e das proibições pessoais (quizilas, ewó, que estão ligados

ao próprio orixá e ao odú, o signo do destino pessoal). A ação ritual pode ser

combinada ou substituída com o encaminhamento ao médico no caso a causa seja

também ou exclusivamente natural.

Nem sempre as pessoas que se dirigem aos pais e mães de santo para

entender e solucionar seus problemas de saúde acabam por estabelecer vínculos

religiosos: muitos deles usufruem como clientes dos serviços de diagnose e dos rituais

de cura, em troca de remuneração financeira.

O sacerdote oferece, por meio da interpretação das configurações resultantes

dos dezesseis búzios, um diagnóstico do problema do consultante, inserindo-o em

uma narrativa que relaciona o estado presente a eventos míticos. De fato, na

concepção iorubá de tempo circular, tudo se repete e os mitos são usados como

paradigmas para entender e agir no presente.

A noção de pessoa e a concepção do destino humano são fundamentais para

entender os diagnósticos e as práticas de cuidado, cura e prevenção no candomblé.

Segundo Sàlámi e Ribeiro (2011, p.33), a pessoa é considerada como

resultante da articulação de vários elementos, alguns individuais, que se situam na

linhagem familiar, e outros simbólicos, que se relacionam ao ambiente cósmico, mítico

e social.

A parte essencial do corpo humano é a cabeça, que, segundo Monteiro (1995a,

p.11) é dividida em orí òde (a cabeça exterior, física) e orí inú (a cabeça interior,

espiritual). O orí inú é o grande responsável pelo destino individual, pelas

oportunidades e dificuldades na vida de um indivíduo, pela personalidade, e é a sede

da percepção. Constitui também a divindade principal e mais importante de cada ser

humano. Ela é influenciada pelos próprios antepassados.

Segundo a mitologia iorubá, antes de nascer cada pessoa escolhe a sua

cabeça na casa do oleiro divino, Àjàlà, junto ao seu odu, signo que determina o seu

destino, com as sortes e os infortúnios. A cabeça de cada pessoa que nasce é também

escolhida por um orixá. Ao passar a fronteira entre orún e ayé, o destino é esquecido

e pode ser revelado somente através do oráculo, enquanto Orunmila, orixá do destino

e dono do sistema de Ifá, foi o único a presenciar a escolha da cabeça.

A cabeça é o ponto de interseção onde se concentram as forças sagradas e a

possibilidade de realização pessoal. Todos os rituais, desde a iniciação até a morte,

se concentram nela; a cabeça é reforçada periodicamente, ou em caso de perda de

força vital, por meio do ritual de borí.

A saúde e o sucesso pessoal dependem, conjuntamente, da escolha da cabeça

e do destino, e da condição de equilíbrio com as forças cósmicas. Uma cabeça ruim

requer um cuidado contínuo no plano ritual e no respeito de uma conduta de vida

apropriada.

Em caso de doença, a ação ritual de manipulação do axé e de restabelecimento

do equilíbrio do ser humano com as forças cósmicas pode ser combinada com o

encaminhamento a um médico, inclui um apoio psicológico e a participação ativa do

cliente no seu percurso terapêutico, por meio de rituais que envolvem seu corpo, suas

emoções e sua mente, períodos de resguardo, proibições temporárias ou

permanentes e uma conduta de vida.

A iniciação se configura como extremo de uma série de rituais que visam

restabelecer o equilíbrio do ser humano com as forças cósmicas e com a natureza.

Os mais utilizados, após serem determinados nos seus detalhes através do jogo de

búzios, são as rezas e as cantigas, o ebó (oferenda) e o borí (oferenda à cabeça).

Estes têm também parte importante na iniciação.

As rezas e as cantigas se baseiam no grande poder atribuído à palavra e podem

ser endereçadas à cabeça ou a partes específicas do corpo; acompanham também

muitas ações rituais e potencializam a força dos elementos utilizados.

Os ebós são oferendas direcionadas aos orixás o aos eguns, que podem ser

secas (utilizando somente elementos do reino mineral e vegetal) ou conter o sangue

de animais sacrificados; ambas são imbuídas da força da palavra do sacerdote

(afose). São depositadas ao pé dos assentamentos dos orixás, ou em outros lugares

como ao pé de uma árvore, numa cachoeira, ou numa encruzilhada, seguindo as

instruções do oráculo.

O borí é a oferenda ao orí da pessoa (colocando-a no alto da cabeça) ou ao orí

de seus pais, sejam eles vivos ou mortos. Sucessivamente, o animal é cozido e

oferecido à pessoa que fez o ritual e aos presentes, enquanto a “cabeça só come o

que a boca comer” (Monteiro, 1995a, p. 29).

Todos os elementos utilizados apresentam uma dupla essência: além de suas

qualidades físicas, carregam uma certa quantidade e qualidade de força vital,

constituindo um mapa codificado que permite a comunicação com os orixás e os

antepassados.

Por meio da iniciação, o indivíduo reforça os laços com o seu orixá pessoal e

assume um cargo no grupo religioso. A iniciação, que normalmente dura vinte e um

dias, é claramente dividida nas fases de separação, liminaridade e reintegração dos

ritos de passagem descritos por Van Gennep (1978), representando morte e

renascimento: o noviço é ritualmente separado do mundo e do seu passado, é

purificado e enfrenta uma morte simbólica; passa um período de reclusão (que

representa a gestação no ventre materno) no roncô, um quarto sem janelas, isolado

do mundo exterior, durante o qual se encontra em um estado de fragilidade e é objeto

de cuidados especiais. A aprendizagem se realiza por meio de experiências que

envolvem diretamente o corpo, como as danças e os ritmos. Esta fase liminar é

acompanhada por rituais, como de ebó e borí e por um diagnóstico com o oráculo. O

corpo do iniciado é fechado através incisões (mberi) nas quais se colocam medicinas

que irão protege-lo das influências negativas e dos ataques externos, e colocar no

corpo as forças vitais de que precisa.

Enquanto é feita a cabeça da pessoa, é fabricado também o assentamento do

orixá pessoal, estabelecendo uma ligação entre a cabeça, o assentamento e o orixá8.

A cerimônia de Orunkô, em que é revelado o nome com que o iniciado (yawô,

lett. a esposa mais jovem) renasceu, marca a sua reintegração na comunidade.

Segue, todavia, um período de resguardo9.

A pesquisa realizada se baseia nas histórias de vida de pais, mães de santo e

de filhos de santo, que escolheram se afiliar a um terreiro, muitas das vezes, após um

evento de crise ou ruptura.

Os itinerários de algumas pessoas entrevistadas mostram um trânsito entre

diversas religiões até chegar e permanecer no candomblé. Todas elas procuraram

agentes espirituais e religiosos quando não conseguiram explicação e cura na

biomedicina.

Uma senhora era da igreja evangélica e começou a sofrer de desmaios e

estados de ausência. Inicialmente buscou ajuda na igreja, mas os rituais de exorcismo

praticados pelo pastor não levaram a uma melhora. Depois de muita hesitação (devida

aos preconceitos sobre o candomblé, que as igrejas evangélicas associam ao diabo)

e em consequência do agravamento do seu estado, procurou a ajuda de uma mãe de

santo. Por meio do jogo de búzios, ela ressignificou as perdas de consciência como

passar mal com o santo e como um pedido do orixá para que fizesse cabeça (se

iniciasse). Os sintomas desapareceram depois da iniciação e a senhora, junto com

seu marido que a seguiu na sua escolha religiosa, continuam sendo do candomblé há

muitos anos, satisfeitos com sua experiência.

Os mesmos sintomas são registrados na experiência de um outro iniciado há

muitos anos em um terreiro tradicional do Rio de Janeiro. Ele me contou que começou

a passar mal com o santo: desmaiava, tinha comportamentos descontrolados e

8 A relação do iniciado com seu orixá se dá em um processo contínuo, que abrange o ritual e o cotidiano,

no candomblé (Augras, 1983) assim como em outras religiões afro-brasileiras (cf., por exemplo,

Contins, 2009).

9 Para uma descrição mais detalhada da iniciação, cf. Vogel et al. (2007).

estados frequentes de sonolência. Após ter recebido o diagnóstico da necessidade de

se iniciar por uma mãe de santo, esperou muito tempo por causa do preconceito da

família católica, que considerava o candomblé uma religião onde se fazem rituais

(“viram uma folha”) para as pessoas se tornarem homossexuais. Quando a situação

se tornou muito grave e não encontrando solução na medicina, a iniciação se tornou

inevitável.

Também neste caso os desmaios desapareceram com a iniciação e o senhor

continua a se aprofundar na religião.

Ele justifica a sua instabilidade de caráter e as dificuldades em manter uma vida

equilibrada (evitando beber e usar drogas) às características do seu orixá, uma

qualidade de Ogum que vai pelos caminhos de Exú; aponta também para a

necessidade de um contínuo cuidado do seu orí e do seu orixá.

Os problemas de saúde e as dificuldades na vida estão assim controladas por

meio da iniciação e dos cuidados no candomblé. Encontram uma explicação nos

mitos, permitindo conectar a própria experiência a um passado primordial e a

comportamentos arquetípicos, protegendo o indivíduo de uma rotulação e de estigmas

relacionados ao seu comportamento.

Estas duas testemunhas evidenciam também a reticência de muitas pessoas

em procurar ajuda no candomblé por causa dos preconceitos que ainda hoje marcam

esta religião na sociedade em geral. Mas outras vezes são os mesmos médicos10 que

encaminham seus pacientes para um terreiro.

Uma senhora iniciada há muitos anos no candomblé, quando jovem, foi

aconselhada por seu médico a procurar ajuda em uma casa de umbanda, por ter

muitas manchas em seu corpo. Submeteu-se a rituais de cura com frutas cítricas e

folhas, mas registrou somente uma melhora temporária. Então o mesmo médico lhe

aconselhou a se dirigir a um terreiro de candomblé, onde sua doença foi relacionada

10 A imagem do médico tem valor simbólico, oferecendo uma justificativa científica à busca de cura no

candomblé. Cabe ressaltar, todavia, que os médicos que encaminham seus pacientes a curas

espirituais são normalmente criticados por seus colegas; e continua a condenação do curandeirismo

como crime, estabelecida pelo Código Penal em 1940 (Art. 284).

a uma ligação com o orixá Oxumaré e encontrou solução por meio de rituais de ebó e

de borí.

Sucessivamente ela decidiu ingressar no candomblé e se iniciou a Oxumaré.

Ela me conta também dos benefícios que a religião proporcionou na sua vida pessoal,

através das responsabilidades assumidas no interior do grupo religioso e na relação

com o seu orixá: encontrou um foco na sua vida e formou uma família, enquanto

anteriormente era muito livre e desregulada.

Esta última testemunha mostra um outro aspecto, recorrente em minhas

entrevistas e na literatura11: a ligação entre sintomas e um orixá especifico, a quem se

pede auxílio na solução do problema, ou que manifesta seu desejo de que a pessoa

se inicie a ele através de marcas específicas no corpo. Por exemplo, as doenças da

pele estão relacionadas a Obaluaiê (orixá da varíola e da doença em geral, que é

também evocado em muitos rituais de cura) e Oxumaré (a serpente arco-íris), a febre

a Xangô (orixá do fogo e do trovão), os problemas de ventre e as perturbações mentais

a Iemanjá (a grande mãe, que detém o domínio sobre as águas do mar e é dona da

cabeça).

Das narrativas apresentadas sobressai uma concepção do candomblé como

religião que não se escolhe, mas faz parte do destino pessoal e se realiza como

resposta a um chamado pelos orixás, a qual pode ser de várias formas, até dolorosa

(como doença física ou psicológica, dificuldades na vida familiar e insucessos) ou

revelada por meio de eventos excepcionais (como o encontro de uma pedra de forma

particular, um sonho, um desmaio durante um temporal). De fato, uma fala recorrente

que ouvi de muitos dos meus interlocutores é: “No candomblé se entra pela dor, mas

se fica por amor”.

A história de vida de um pai de santo exemplifica esta concepção. De família

católica que frequentava também a umbanda, desde os seis anos de idade

apresentava muitas alergias e problemas respiratórios. Na busca de cura, a mãe se

dirigiu à biomedicina e à umbanda para ele ser rezado pelos espíritos de pretos velhos

e caboclos, sem obter melhoras. Mas estes pediam que ele fizesse santo, enquanto a

11 Cf., por exemplo, Gomberg (2011).

mãe hesitava, por ele ser criança e por preconceito com o candomblé, até que a

doença se agravou. Assim, decidiu leva-lo a um terreiro para jogar búzios, onde ele

bolou no santo12 e recebeu o diagnóstico da relação da doença a motivos espirituais,

manifestando a necessidade da iniciação. A mãe decidiu que seu filho se iniciasse;

depois os sintomas não se manifestaram mais.

Recolhi também uma narrativa em que a recusa à iniciação resultou em uma

piora das condições de saúde e levou à morte. Um pai de santo me conta ter ido a um

terreiro para acompanhar um amigo, numa consulta com os búzios, e quando se

aproximou a pessoa desmaiou. O jogo de búzios revelou a necessidade de feitura no

santo, por conta de um irmão falecido que não tinha respondido a este chamado, e,

de fato, ele havia perdido um irmão. A mãe, católica, tinha levado o filho doente a um

templo de umbanda em busca de cura, mas não aceitou os aconselhamentos dos

espíritos que pediam que ele se iniciasse ao seu orixá. Espantada pela ligação com a

morte do outro filho e surpreendida pelas revelações do oráculo, ela superou as suas

resistências e permitiu que o filho, ainda adolescente, se iniciasse.

Este relato revela como o espírito de um familiar morto pode influenciar a vida

de parentes para que cumpram os compromissos que ele, em vida, assumiu junto a

seu destino com os orixás e não realizou.

Uma outra série de narrativas acerca da concepção da saúde e do cuidado no

candomblé se centra nos conceitos de destino pessoal e de estado de força ou

vulnerabilidade. Se focalizam mais no cuidado do ser humano que no cuidado dos

orixás, cujas influências são mobilizadas para garantir uma vida plena e saudável.

Como aponta um pai de santo, seu ofício principal é o de ser “pai de gente”,

uma vez que é como um médico, cuidando principalmente de seres humanos, para

que tenham um bom caminho, saúde, prosperidade e vida longa. Ele cuida também

dos orixás, visto que é necessário mante-los vivos no orún para que cuidem de nós

no ayé e estabeleçam a comunicação com Olodumare (o deus supremo). De fato, o

candomblé busca estabelecer e manter uma continuidade entre o ayé e o orún, a

12 Bolar no santo indica um estado de perda de consciência, que pode vir junto a tremores, e que é associado a uma incorporação violenta, não sendo a pessoa preparada para receber o orixá por meio dos rituais e do aprendizado da iniciação.

harmonia e o equilíbrio do ser humano com a natureza e as forças cósmicas por meio

da manutenção e acumulação do axé, a força vital que permeia todo o universo.

O oráculo de Ifá permite estabelecer as sortes e os infortúnios13 que vêm juntos

ao destino pessoal, de que uma parte é escolha e outra é imposta, compreendendo

os compromissos assumidos e não cumpridos pelos nossos antepassados. As sortes

são: vida longa, saúde, família, filhos, vitória. Os infortúnios são: morte, doença, luta,

carência financeira, derrota.

As pessoas que escolheram no orún uma “cabeça ruim” e um destino difícil

precisam de cuidados especiais da saúde e força vital. Um caso extremo é o abiku,

pessoa que nasce para ter um transito muito breve no ayé e voltar logo ao orún.

Como me explicou um sacerdote, a iniciação pode se tornar necessária para

solucionar uma vida com muitos problemas de saúde, infortúnios e insucessos,

quando confirmado pelo oráculo de Ifá. É uma morte e um renascimento, em que o

período de reclusão no roncô representa a gestação no ventre materno. Neste

processo, o sacerdote busca um caminho melhor para o iniciado, fecha seu corpo por

meio das mberis (incisões em que são colocadas ervas medicinais) para protege-lo

das influências negativas e de ataques de feitiçaria e dos eguns, e para colocar nele

aqueles elementos que lhe faltam e que lhe possam proporcionar as energias de que

precisa.

Considerações finais

Na situação de pluralidade religiosa e de multiplicidade de agentes sociais que

oferecem serviços de cura e cuidado, as pessoas percorrem itinerários múltiplos na

busca de alivio às suas aflições O candomblé se insere neste cenário, oferecendo um

diagnóstico, uma interpretação e possibilidades de cura do sofrimento, ligando o ser

humano a um universo social e cosmológico mais amplo, que compreende

antepassados, ancestrais míticos e forças da natureza.

Como mostrado por Lévi Strauss (1949), na sua análise da “eficácia simbólica”,

a interpretação proposta para o sofrimento pode ser acolhida pela pessoa aflita, e a

13 Cf. Monteiro (1995b).

cura ter continuação e êxito, somente se faz sentido para ela. Esta pode assim

reelaborar a sua experiência, por meio de uma narrativa que lhe confere sentido, e

participar de forma ativa da cura por meio de rituais e de uma conduta de vida

apropriada.

Caso o problema não seja totalmente resolvido, a inserção da própria

experiência em um contexto mítico que o liga ao orixá pessoal permite tornar o

sofrimento suportável e lhe confere um sentido, como mostrado também por Augras

(1983). Sàlámi e Ribeiro (2015, p. 39) observam que “os rituais cumprem a função

essencial de articular o presente ao passado, perpétuo e mítico”.

Analisando os motivos que levam as pessoas a se iniciarem ao candomblé, a

doença e o sofrimento se configuram como linguagem privilegiada. Os percursos

articulados e com rumos imprevistos que levam ao candomblé reforçam o

convencimento que são os orixás que trazem as pessoas ao candomblé, assim a

experiência de sofrimento pode ser reelaborada como parte de um plano mais amplo

e de seu destino, como meio para um bem maior.

Não somente as doenças físicas e psicológicas, mas também os desvios

sociais e as dificuldades econômicas encontram uma resposta e uma estratégia de

cuidado no candomblé. Entre os meus entrevistados, os sintomas desapareceram

após a iniciação14.

Referências

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