introdução ao estudo do processo civil

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Estepequeno volume recolhe a versão taquigráfica, comas devidas correções, de um pequeno curso ministrado

na Faculdade de Direito de Paris na primavera de 1949.A tradução em língua espanhola coincide com a original fran-

cesa editada por Libairie du Recueil Sirey. Tanto o título da obraquanto algumas expressões técnicas contidas nela correspondemmelhor às modalidades do léxico da casa de estudos na qual seministraram as lições.

Acrescentaram-se às versões taquigráficas algumas referên-cias bibliográficas, as estritamente indispensáveis para orientar oleitor quanto às principais correntes do pensamento processual an-tigo e moderno aludido no texto. Como se poderá observar, nãosão citações de opiniões individuais de determinados autores, mastão-somente a menção daquelas obras que significaram novas ori-entações ou opiniões nesse ramo do direito. Is o explica certasaparentes omissões.

Este livro assemelha-se a outros que o precederam, comoum arbusto a uma árvore. A diferença consiste em que aqui, inver-samente da ordem natural, as idéias do autor não se desenvolvem,mas se comprimem. Mas a semelhança consiste em que, da mesmaforma que na ordem natural, à medida que o tempo passa, as idéiasamadurecem. O leitor que conhecer os outros livros observará, jun-tamente às semelhanças de conceitos, abundantes diferenças. É amaduração que vai produzindo suas conseqüências.

Certa vez, em um laboratório de uma velha universidade, pudedialogar com um sábio que por um instante levantou sua vista domicroscópio. Pediu desculpas pela demora em fazê-lo com estaspalavras: "Você saberá me perdoar; quando se tem o olho sobre o

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microscópio, somente depois de duas ou três horas começa-se aver alguma coisa". Guardadas as devidas proporções, ocorreu-mealgo análogo. Somente após ter passado mais de vinte anos estu-dando e pensando sobre o processo, acredito ter começado a en-tender alguma coisa.

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~:,Desejo renovar aqui a expressão contida na edição francesa,

de minha profunda gratidão para a Universidade, que tão genero-samente me acolheu, e aos homens que nela ensinam e que, nãomenos generosamente, me brindaram com sua amizade.

Eduardo. J. CoutureMontevidéu, 1949.

Sumário

Primeira conferência - A AÇÃO NA JUSTIçA. 11

1 Introdução 132 Ação e direito 143 Ação e método 204 Ação e processo 205 Ação e petição 226 Conseqüências 24

Segunda conferência - A DEFESA EM JUÍZO .27

1Exceção e defesa 292 Exceção e direito 303 Exceção e método 344 Exceção e processo 35

Terceira conferência - O PROCESSO 37

1Estrutura e função do processo 392 Natureza do processo 393 Estrutura do processo 434 Função do processo 44

r: Quarta conferência - A SENTENÇA 47

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71,

..1Forma da sentença 492 Conteúdo da sentença 503 Declaração e criação 1111 sentença 514 Sentença e direito 535 O juiz 55

DEBATE* 59 -r

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PRIMEIRA CONFERÊNCIA

A AÇÃO NA JUSTIÇA

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II

1 Introdução2 Ação e direito3 Ação e método4 Ação e processo5 Ação e petição6 Conseqüências

Não venho a esta cátedra ensinar nem fazer propaganda.Proponho-me unicamente contar uma história. A história de umaexperiência prolongada durante muitos anos no estudo do proce-dimento civil; não somente as das cátedras universitárias, mas tam-bém a da própria experiência do direito.

Em todo caso, o resultado dessa experiência será o de su-perar um exame externo do procedimento civil. Todos nós estamoshabituados a manejar as formas do procedimento, seus prazos,suas condições, como se fossem fins em si mesmos. Este ramo dodireito se nos apresenta dessa forma, e sua aparência, como aforma solene, como cerimonial da justiça. Mas a experiência nosensina que isto é apenas o envoltório das coisas. Abaixo das for-mas existe um conteúdo profundo e angustiante, que é necessáriofazer aflorar à superfície.

O processualista nunca deveria esquecer-se do conselhoque Rodin dava a seus alunos em seu nobre testamento: "Quevosso espírito conceba uma superfície tão-somente como a ex-tremidade de um volume que empurra a partir de dentro; todavida surge de um centro no qual germina e logo vai do interiorpara o exterior; não há linhas; apenas existem volumes; quando semodela, não se deve pensar em superfície, mas em relevo; o rele-vo vem de dentro e é o que determina o contorno."

Este breve curso procurará, eliminando detalhes, mostrar oconteúdo do processo civil, colocando em relevo seus elementosprincipais, aqueles que vêm de dentro e sem os quais não se con-

1 INTRODUÇÃO.. (

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EDUARDO J. COUTUREINn~ODUCÃOAOESTUDO(,)OPROCESSOCIVIL

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I A doutrina espanhola do procedimento civil teve no século XIII um brilhanteexpoente no livro de Jacome Ruiz, conhecido como EI Maestro Jacobo de IasLeyes, talvez autor do texto da Partida III, cujo nome é Doctrinal que compusoMaestro Jacobo de las Leyes para Bonajunta sufijo. Esta obra foi publicada emnosso tempo em um volume, sob o título de Obras deLMaestro 10 .obo ri tos Leis,jurisconsulto deI siglo XIII (Madri, 1924), com uma introduç o de Rara 'I de UnI ·~uy Smenjaud y Alfredo Bonilla y San Martin. Uma abundante lit ratura, ocasional-mente excelente, existe até o século XIX, no qual se prornulg LI ti lei do procedimen-to espanhol moderno, Ley de Enjuiciamiento Civil. No caudal de doutrina dessaliteratura deve-se fazer uma menção especial ao livro ele onde ele Ia Caíiada,lnstituciones prácticas de Los juicios civil ts (Madri, 1794). O século XIX nosmostra uma obra excelente: o livro de aravantcs, Tratado histórico, critico.filosá-fico de Los procedimientos judiciales en matéria civil (Madri, 1856-1858). Emnosso século, a doutrina espanhola teve grande desenvolvimento em virtude dosesforços de alguns juristas, cujos nomes e obras principais mencionam-se a seguir:BECENA. Notas de derecho procesal civil. Madri, [s./d.]- talvez 1930; ALCALÁZAMORA Y CASTILLO. Estudios de derecho procesaL civil. Madri, 1934; Ensayosde derecho procesaL civil, penal y constitucional. Buenos Aires, 1944; e Proceso,autocomposición e autodefensa. México, 1947; PRIETO CASTRO, Exposición deLderecho procesal civil de Espana. Madri, 1941; DE LA PLAZA. Derecho procesalcivil espaiiol. Madri, 1942; GUASP. Comentarios a la Lei de Enjuiciamiento Civil.Madri, 1943, em curso de publicação. Sobre o tema da ação particular, PRIETOCASTRO. La acción en el derecho espafiol. Boletín de la Universidad de Zaragiza.p. 101 et seq., 1931; e ALCALÁ ZAMORA Y CASTILLO, Enseüanzas ysugerencias de algunos procesalista sudamericanos acerca de Ia acción. In: Estudiosde derecho procesal en honor de Hugo Alsina. Buenos Aires, 1946, p. 759.

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segue; a ação, a defesa, o processo e a sentença. Em outras pala-vras, a justiça do autor, a justiça do demandado, a justiça de ambosao mesmo tempo e a justiça do juiz.

Esta primeira conferência destina-se a examinar o tema inicial ,ou seja, a ação na justiça, como se denomina atualmente na termi-nologia francesa e em nossa linguagem a ação civil.

constituem, em todo cai) , uma exposição e, algumas vezes, umaprorrogação avançada da idéias das escolas alemã ou italiana.

Mas no iníci dos no sos estudos não tivemos da escola es-panhola uma re po ta particular sobre este conceito. Sua preocu-pação por esta idéia foi, virtualmente, paralela e ainda contemporâ-nea à nossa'.

Qual foi a resposta da escola francesa?Desta escola recebemos uma resposta que, como todas as

suas, era um modelo de elegância e clareza.A ação, dizia-nos, é o direito em movimento; algo assim como

a manifestação dinâmica do direito. Nenhuma diferença substancialexiste entre o direito e a ação. Demolombe nos ensinava que quan-do a lei fala em direito e ações incorre em um pleonasmo.

2 AÇÃO E DIREITO

o que é a ação civil?Quando este tema nos foi colocado pela primeira vez, já há

quase um quarto de século (peço perdão por falar no plural, poisnão desejo dar um acento excessivamente pessoal aos esforçosque são, de certa forma, os frutos de experiências coletivas perten-centes a muitos pensadores do campo do direito processual), co,..meçavam a difundir-se na América, que até então se encontravaligada neste campo às doutrinas espanholas e francesas, os novostrabalhos da então nascente escola italiana, derivada em boa parteda escola alemã. Nela nós nos formamos.

O que todas essas escolas respondiam à pergunta inicialacima?

A escola espanhola, especialmente em seus escritores dosséculos XVIII e XIX, não havia devotado a este tema uma atençãoparticular. Obras inteiras de excelente qualidade, algumas realmen-te magníficas, não continham desenvolvimentos especiais sobre otema e em todo caso, limitava-se a fazer a exegese do preceitoclássico actio nihil aliud est qua mius persequendi in iudicioquod sibi debetur (pr. Inst. De actionibus, 4, 6). Uma traduçãoquase literal deste adágio encontra-se ainda em alguns códigoshispano-americanos.

Somente os escritores espanhóis do século XX foram toma-dos de um interesse especial por este tema, e seus argumentos

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EDUARDO J. COUTURE

Qual foi a resp fita da escola alemã?Essa escola chc ou a nós por três caminhos diferentes. Por um

lado, o conhecimen t Iir to de alguns de seus escritores; por outro,ainfluênciaque Ia t v nad urrinaitaliana; e, por último, a influênciaque exerceu sobre s mais modernos escritores espanhóis.

As contri bu iç es dessa escola tinham sido verdadeiramentemagníficas, ainda que totalmente aproveitáveis. Keyserling, que ti-nha moti vos para conhecer os alemães, disse que se se pusesse umalemão diante de duas portas, uma com a legenda "Entrada para océu" e outra, "Entrada para um curso de conferência sobre o céu",o alemão entra no curso de conferências. Abundantes materiais destaescola, no campo do direito processual, pertencem ao "Curso deConferências", e não à realidade jurídica. Mas não se deve negar asalutar influência que ela exerceu no campo do procedimento civil.

A escola alemã, em meados dos século XIX, em uma disputafamosa sobre o alcance da actio romana chegou a estabelecer certasdistinções especiais entre ação e pretensão. Já era o início de fissuraentre o direito processual e o direito material ou substancial.

Quando Wach, em 1885, publica seu Manual, tomando parteda famosa série dirigida por Binding, a idéia de ação em justiçajá S

reveste de um caráter nitidamente definido. Então, fala-s da açãocomo direito autônomo, separado do direito que c stumarnos a cha-mar substancial ou material. "A pretensão da tutclajurídica" - excla-ma Wach- "não é uma função do direito subjetivo; a pretensão datutela jurídica é o meio que perm ite fazer valer o direito, mas não é opróprio direito". E, ao pé da página, com humildade científica, acres-centa: "Com isto abandono minha concepção anterior".

Para a ciência do processo, a dissociação do direito e da açãoé algo semelhante ao que representou para a física a dissociação doát.. Transformada a ação em um direito autônomo, não somente seconsagra sua separação, mas a autonomia de todo este ramo dodireito que costumamos chamar, com palavras não totalmente difun-didas ainda na escola francesa, direito processual.

Mas, no pensamento de Wach, a idéia da autonomia da açãonão percorreu ainda todo o seu caminho.

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSOCIVIL

Como as idéias dessa escola foram sempre muito afetas àsimagens de guerra, dizia-nos, com uma metáfora mais literária quecientífica, que a ação era le droit casqué et armé en guerre.

Foi-nos dito, ademais, por esta escola, que para que existis-se a ação eram necessários quatro elementos: direito, interesse,qualidade e capacidade. Sem eles não existia. Em outras palavras,sem direito não se concebe uma ação.

Mas nossa experiência, diante da resposta dessa escola, foigrave. A simetria da construção não conseguia afrontar a realidadejurídica. Nesta resposta ficavam sem explicação as obrigações na-turais, o grave problema da demanda infundada, na qual o autormove a ação até a sentença sem um direito efetivo a tutelar; o casonão menos grave da ação satisfeita por se ter esgotado o processo,mas ficando o direito insatisfeito por insolvência do obrigado; etantos outros casos.

Os escritores modernos dessa escola compreenderam a de-bilidade que se ocultava por trás da harmoniosa construção. Mas,infelizmente, a obra do professor Vizioz, que parecia destinada aestabelecer os laços de união entre a doutrina francesa do direitopúblico e as novas correntes do direito processual, ficou interrom-pida por motivos verdadeiramente penosos. Presto-lhe aqui minhaprofunda homenagem de colega e de amigo.'

2 A idéia da ação não se menciona em Pothier (Traité de Ia procédure civile, volumeX das Oeuvres, por Bugnet, 2. ed., Paris, 1861); mas esta ausência se deve ao fatode se considerar a ação civil como um tema de direito civil; sobre esse plano traba-lharam-se todos os civilistas da escola francesa; veja-se, por exemplo, Aubry et Rau(Cours, 5. ed., t. XII, p.746) e Demolombe (Cours, t. XIX, p. 388). O pensamentodos autores que trabalham no campo do procedimento civil pode, em particular,resumir-se nos conceitos de Garsonnet e César-Bru (Traité, t. I, p. 500 et seq.). Osescritores modernos, que mudaram o plano dos autores do século XIX, são repre-sentados especialmente por Vizioz (Les motions jondamentales de Ia procédure etIa doctrine française de droit publico Paris, 1931); Morei (Traité élémentaire. 2. ed.,Paris, 1949), com idéias muito claras sobre o assunto; e Solus (Cours de droitjudiciaire privé, 1948-1949, eLes cours de droit, Paris, 1949, p. 40), tambémexcelente no plano da doutrina francesa moderna.

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EDUARDO J. COUTURE _____________ .r!:IN!!TR~OQDU~Ç~Ã~02.:A~02.!ES~TU~D02.'~DO~PR~~~;oCIVll.

A parte do caminho que ficava por percorrer por Wach foifeita, a nosso ver, por Degenkolb. Esse escritor nos mostrou deque modo a ação civil, autônoma em relação ao direito, pode care-cer de fundamento. Quando o demandado promover sua demandaperante o Tribunal, poderá ou não ter razão, e contudo ninguémterá de discutir seu direito para se dirigir ao Tribunal pedindo-lheuma sentença favorável. O que o demandado poderá lhe negar é oseu direito de obter uma sentença favorável, mas nunca seu direitoem comparecer perante o Tribunal. Esse é um direito que pertenceainda aos que não têm razão.

Seria verdadeiramente milagroso, se não fosse um fato com-pletamente familiar na vida do tribunal, que durante o processo nin-guém tenha razão. Apenas a sentença terá de decidi -10. O estado deincerteza é inerente a este fenômeno que denominamos processo.

Muitos anos depois de publicado o seu primeiro livro, Degenkolbmodificou seu critério exigido do demandado para que tivesse ação,que se acreditasse sinceramente assistido pelo direito. Mas estas hesi-tações não eram necessárias e seu pensamento perdeu clareza logocom elas. Também o autor malicioso, o improbuslitigator,aquele quesabe bem que não tem razão, poderia recorrer ao tribunal por suaprópria conta e risco, submetendo-se às responsabilidades que lheimpoem seu abuso do direito. 3

4 Os estudos da escola italiana sobre o tema da ação são muitos numerosos. Emrelação às idéias expostas no texto é necessário levar particularmente em considera-ção Chio venda (L' azione nel sistema dei diritto, publicado ultimamente em Saggi didiritto proeessuale civile. Roma, 1930, t. I, p. 3 et seq. - esta obra acaba de sertraduzida para o espanhol na Coleeción Ciencia dei Proeeso, Buenos Aires, 1949;Carnelutti (Saggio di una teoria integrale dess' azione, publicado. Rivista di Diritt~Proeessuale, 1946, I, p. 5); Calamandrei (La relatività dei concetto di azione, publi-cado na mesma Rivista, 1929, I,p. 22); Redenti (Diritto proeessuale civile, I,Milão,1947).

Qual foi a resposta da escola italiana?O documento fundamental dessa escola está constituído p Ia

diferença de Chiovenda ditada no início deste século, intituladaL'ozione nel sistema dei diritti. Esse estudo, que no dizer deseus mais importantes adeptos foi o manifesto de uma nova esco-la, concilia as aquisições dogmáticas da escola alemã com as maisantigas tradições do direito romano.

Mas o pensamento de Chiovenda é, substancialmente, opensamento de Wach. Para ele a ação é autônoma, concreta (istoé, pertencendo somente aos que têm razão), e configura, além domais, o que ele denomina diritto potestativo.

Diante desse pensamento, Carnelutti sustentou a tese cha-mada com muita escassa sorte idiomática, abstrata. Seu pensa-,mento encontra-se mais próximo ao de Degenkolb do que do deWach.

O incessante trabalho desse mestre lhe permitiu, em múlti-plas ocasiões, voltar sobre este tema com a imaginação semprerenovada. Mas, substancialmente, suas idéias podem se situarnessa matéria no plano oposto ao de Chiovenda.

Uma grande quantidade de estudiosos do direito processualitaliano, dentre os quais é necessário assinalar como excepcional-mente valiosos Calamandrei e Redenti, continua trabalhando so-bre as idéias de Chiovenda, quer seja para lhes prestar adesão,quer seja para se separar delas, mas sempre com novas aborda-gens ao pensamento original,"

3 Um índice recente, de pós-guerra, da doutrina alemã, pode se encontrar em SchõnketZivilprozessrecht, Eine Systematisehe Darstellung, 3. e 4. ed. Karslruhe, 1947), e,mais recentemente ainda, em Stein-Jonas (Kommentar zur Zivilprozessordnung, 17.ed. atualizada por Schõnke, Tübingen, 1949). Sobre o tema da ação no particular,seguindo o movimento de idéias expostas no texto, Muther (Zur Lehre von deirõmischen aetio, 1857; Windsched (Die aetio des rõmischen Zivilreeht, 1856, Dieaetio, Abwehr gegen Muther, 1857, Lassungszwang und Urteilsnorm, 1877), e comuma mudança de idéias desnecessária, a nosso ver, e em ocasiões, contraditória, coma primeira tese, Beitrãge zum Aivilprozess, 1905).Desejando-se ter uma idéia geral dadoutrina alemã do direito processual, exposta com profundidade crítica, deve-se seescolher, em nosso conceito, Goldschmidt (Der prozess ais Reehtslage, Berlim,1925). Esse autorpublico,já há alguns anos, uma síntese de sua teoria em um pequenovolume em espanhol, sob o título Teoría general dei proeeso (Barcelona, 1936), maseste pequeno volume carece das notas críticas que constituem a mais rica contribuiçãodo Prozess ais Reehtslage.

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EDUARDO J. COUTURE INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSOCIVIL

- ;3 AÇAO E METODOnão apenas primitivo na idade histórica, mas também na formaçãode seus sentimento e impulsos morais, a reação contra a injustiçaaparece sob a forma da vingança. O primeiro impulso da alma rudi-mentar é a da ju tiça pelas próprias mãos. Somente à custa degrandes esforço hi tóricos foi possível substituir na alma humana aidéia da justiça p Ias próprias mãos pela idéia da justiça a cargo daautoridad .

A ação civil vem a ser assim, em última análise, o substitutocivilizado da vingança.

Em sua configuração atual, esse substituto civilizado da vin-gança consiste em um poder jurídico de recorrer ao tribunal pedin-do algo contra um demandado. Se essa pretensão for fundada ouinfundada, é outro fato diferente. Durante o litígio, dizíamos, reina aincerteza. Somente a sentença porá fim a ela.

Se essa sentença declarar que o autor não tem razão, que ademanda é infundada, as coisas voltam a seu estado primitivo; maso drama já estará consumado.

O processo carrega consigo uma carga de sacrifícios (eu ou-saria dizer de dor) que nenhuma sentença pode reparar.

Os sistemas jurídicos derivados do direito romano não con-têm uma qualificação preliminar do fundamento da demanda ao estiloda qual conhece o direito anglo-saxão.

Existem, é certo, no direito francês osfins de non-recevoireno direito hispano-americano as excepciones mistas ou questõesprévias. Mas esses procedimentos prévios obtêm, quando muito, aredução da extensão do drama, mas não o próprio drama; e isto éassim porque a discussão destas questões prévias já constitui, perse, um processo".

E foi assim que nos encontramos, como na história de Hansele Gretel, perdidos em um bosque sem encontrar um caminho desaída e sem ver no horizonte a luz que nos pudesse mostrar paraonde devíamos dirigir nossos passos.

O que fazer?A única solução possível para encontrar um caminho com nos-

sos próprios meios foi recorrer ao velho método cartesiano: abrir ogrande livro da vida, colocá-lo em cima dos livros da ciência e, so-bretudo, dividir a dificuldade em tantas partes quanto seja possível.

Quanto tenho de decidir a partir deste momento é, de certomodo, a destilação de meu pensamento; o único caminho que en-contrei por mim mesmo no bosque escuro, e o qual tratei, na limita-da medida de minhas forças, de percorrer com passo firme.

Para ser fiel ao método cartesiano, primeiro devem ser osfatos. A vida do direito é, antes de tudo, a vida dos fatos.

5 Ball (Law Quarterly Review, 1935, p. 13) fixou em 1% a proporção de litígios queultrapassaram a qualificação preliminar diante da King's Bench Divission. Trata-se de umprocedimento de eliminação desconhecido nos sistemas de origem latina. O autor nos falasimplesmente em 99%, dizendo: They undergo a process of elimination. Outro processode eliminação, também de caráter preliminar, de parte do demandado, é conhecido com onome de demurrer. É muito difícil, para um jurista latino, inserir no conjunto do direito quelhe é familiar, uma instituição semelhante. Cf., sobre este tema, MILLAR (The fortunessofthe demurrer. Illinois Law Review, t. 51, p. 429 e 462 e 596 a 630).

4 AÇÃO E PROCESSO

O que nos dizem os fatos?Os fatos nos dizem que quando o demandante quer promo-

ver uma demanda perante o tribunal, pode fazê-lo ainda que o de-mandado não queira e ainda que o juiz não o queira.

É esse um fato que costumamos chamar experiência jurídi-ca; isto é, a própria vida do direito.

Àqueles que tenham observado esse fato na perspectivahistórica e tendo podido observar sua lenta mas segura formação,lhes terá sido possível compreender que o direito procedeu assimpor necessidade, e não por comodidade. No homem primitivo,

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1••••INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSOCIVILEDUARDO J. COUTURF.

Mas quando a posição do indivíduo diante do poder foi con-solidando-se,por intermédio das grandes fases da evolução política,essa faculdade perante o Estado começa a se perceber com maiorclareza.

Assim acontece, por exemplo, no direito inglês, no qual sepassa, mediante sucessivas etapas, por um private bill à configu-ração de um right ofpetition. Os distintos textos do direito cons-titucional inglês, a partir da Magna Carta, vão consagrando cadavez mais acentuadamente esse processo, dando mais e mais con-sistência a um direito que, originariamente privado, adquire sentidopolítico com o passar do tempo.

Uma linha paralela pode se observar no direito forense espa-nhol. Como aconteceu com muitas manifestações do direito políti-co, os antigos textos espanhóis, alguns deles anteriores aos fenô-menos semelhantes ao direito inglês, anteciparam admiravelmentegrandes manifestações jurídicas que apenas teriam de se consolidarmais tarde em outros sistemas.

Por seu lado, o direito francês nos oferece um exemplo aná-logo. Ao se discutir a Constituição de 1791, Le Chapellier distin-gue entre plainte e pétition, e tem contra si a oposição deRobespierre que, mais por razões políticas do que jurídicas, prefe-re adotar este último conceito como direito próprio do indivíduoem sua faculdade de dirigir à autoridade.

Esta autoridade pode ser, na rudimentar estrutura dos pode-res do Estado até o século XVIII, tanto o Poder Executivo quantoo Legislativo ou o Judiciário, posto que o rei concentrava em suapessoa, em última análise, todos os poderes do Estado, e era nor-malmente a ele a quem se dirigia a petição. A partir do século xvrn,e especialmente quando a divisão de poderes abre caminho nasdiferentes constituições do século XIX, o direito de petição podiaser exercido diante de todos os poderes do Estado. A Constituiçãouruguaia assim o diz por meio de um texto expresso. Algumas ou-tras constituições americanas, como a do México, a de Cuba e ado Panamá, consagram a obrigação correlativa, de parte dos po-deres do Estado, de se pronunciar sobre a petição.

5 AÇÃO E PETICÃÜ

Ainda que a palavra ução tenha lido ao longo do tempo signifi-cados variados e mesmo no dirciro contemporâneo tenha vários signi-ficados", hoje, parece necessário adrn itir que existe certa concordânciaem chamar de ação este poderjurfdico do autor de provocar aativi-dade do tribunal. A ação, em última anál ise, em seu sentido mais estritoe depurado, é somente isto: um direi to àjurisdição 7•

Se isto for assim, qual é natureza desse direito?Logo, à medida que levo tanto tempo pensando nesse argu-

mento, que foi minha preocupação inicial nos estudos que empre-endi há tantos anos, e que não me abandonaram ainda, acredito,hoje, poder afirmar que um direito de recorrer ao tribunal pedindoalgo contra um demandado é um direito depetição no sentido quese dá a esse direito nos textos constitucionais.

Os romanos construíram um magnífico sistema jurídico combase nas ações. Era direito um direito de ações. Mas não se obser-va nele claramente a dupla estrutura do direito de um particulardiante de outro particular por um lado, e o direito do particularperante o Estado, por outro.

6 A palavra "ação" tem quinze (!) acepções diferentes no estudo, realmente excelente,de Pekelis, no Nuovo digesto italiano (t. I, p. 92). No campo do procedimento civiltem, quando menos, três significados diversos; a) como sinônimo de direito; b)como sinônimo de demanda, no sentido formal do vocábulo; c) como sinônimo defaculdade de atuar emjuízo. Assim, Prieto Castro (La acción en el derecho espaiiol,cit). É nesta terceira acepção que nós utilizamos a palavra em toda a extensão desteestudo.

7 As idéias desenvolvidas no texto representam o resumo de uma exposição muitomais extensa, que fizemos no volume titulado Fundamentos dei derecho procesalcivil (2. ed., Buenos Aires, 1951). Desta obra, publicou-se uma segunda edição,inteiramente revisada, em língua portuguesa sob o título Fundamentos do direitoprocessual civil (São Paulo, 1946). Uma nova edição em língua espanhola aparecerádentro de alguns meses em Buenos Aires. Sobre este novo texto se prepara atual-mente, no Instituto de Direito Comparado da Faculdade de Direito de Paris, umaedição francesa.

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EDUARDO J. COUTUI\E

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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

Esta petiçã s I ma efetiva por meio de distintos recursostécnicos. Perante P 1'(" lxeclltivo, por meio de solicitações dire-tas e mesmo por m i d)1I lir r ntes recursos do contencioso admi-nistrativo contra os at s da administração; perante o Poder Legislativo,por meio das petiç - s ao I arlarn nto (Duguit nos mostrou como estedireito de petição p rant Parlamento perdeu importância comoconseqüência do govern r'l r 'i; ntativo); e quando a petição se tor-na efetiva perante o Poder Judi 'iári adquire o nome de ação civil.Nada impede, por outro lado, qu t nha ste mesmo caráter, em seucampo respectivo, a ação penal; mas ne ta a iniciativa dos órgãos dopoder público lhe dá alguns aspectos diferente .

Ao final deste longo percurso, chegamos, pois, à idéia funda-mental de que o direito de ação ou ação e justiça é uma espécie nogênero do direito de petição; um direito de petição particularmenteconfigurado,"

Vejamos agora, para concluir, algumas conseqüências dessa tese.

A conseqüência natural dessa tese, admitida mais de umavez pela jurisprudência americana, tanto do norte quanto do suldo continente, é a de que uma lei que prive o indivíduo de seudireito de recorrer àjustiça é uma lei inconstitucional.

Outra con eqüência é a desviar o tema da responsabilidadederivada das açõe judiciais do campo do direito civil para o campodo direito processual propriamente dito. O litigante de má-fé seserve ilicitamente do processo e incorre em um abuso de seu di-reito constitucional da petição, desviando-o de suas finalidadespróprias. Este foi instituído para garantir a justiça e não para cau-sar dano a um terceiro. Aquele que causa um dano por meio dolitígio tem obrigação de repará-lo, não mais porque assim dispõeo Código civil, mas porque assim surge também da própria natu-reza do direito de atuar em justiça.

A jurisprudência francesa, que contém um verdadeiro te-souro de soluções em matéria de responsabilidade, priva-nos nestesentido com um exemplo eloqüente; mas suas soluções podemser ainda fortalecidas com uma fundação rigorosamente proces-sual e não civil nos planos das idéias que ficam expostas.

Concluindo, atuar em justiça constitui uma solução de liber-dade e de responsabilidade. O direito atua sempre buscando equi-líbrio da conduta humana. Junto a uma possibilidade, coloca umalimitação; junto à liberdade, que é um poder, aparece responsabi-lidade, que é uma forma de dever. Poder e dever buscam, dessaforma, seu equilíbrio necessário.

Como tantas outras coisas, isso foi melhor expresso pelospoetas do que pelos juristas. Ariel, em La tempestad, deShak:espeare, trabalha incessantemente para seu mestre Próspero;e quando, ao final da comédia, este o convida para que peça arecompensa por todas as suas fadigas, Ariellhe responde: "Apenasquero liberdade". Assim é também o direito. Como prêmio de nos-sas fadigas o melhor que se pode nos dar é a liberdade. Mas, aolongo do poema dramático, o poeta havia escrito estas palavras:

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6 CONSEQUENCIAS

A conseqüência mais direta das idéias que acabam de se ex-por é aquela que permite afirmar que a lei de procedimento, toma-da em seu conjunto, é uma lei regulamentar dos preceitos constitu-cionais que asseguram a justiça.

O procedimento não se nos mostra mais como humilde servidordo direito civil ou do direito comercial, mas como um ramo autônomodo direito, colocado sobre a fronteira da Constituição, para garantir aeficácia dos direitos do homem no que diz respeito àjustiça.

8 Desenvolvemos expressamente essa idéia no estudo sobre Las garantíasconstitucionaIes dei proceso civil, publicado no volume Estudios de derecho procesalcivil, t. I: La constitución y el proceso civil (Buenos Aires, 1948). A exposiçãosumamente reduzida da tese priva-a da contribuição histórica dogmática que afundamenta; porém o caráter de introdução destas páginas, porém, não autorizaoutra forma de exposição. Remetemo-nos, pois, ao mencionado estudo.

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1"EDUARDO 1. COUTURE

"Para vos preservar da ciladas do destino são necessárias a pu-reza de coração e a vida imaculada",

Em nossa próxima c nversação, examinaremos esses mes-mos problemas do pont d vista do demandado.

SEGUNDA CONFERÊNCIA,

A DEFESA EM JUIZO

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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

1 EXCEÇÃO E DEFESA

A ação, como direito de atacar, tem uma espécie de réplicano direito do demandado para se defender. Toda a demanda é umaforma de ataque; a exceção é a defesa contra esse ataque, porparte do demandado.

Se a ação é, como dizíamos, o substitutivo civilizado davingança, a exceção é o substitutivo civilizado da defesa. O autorataca mediante sua ação e o demandado se defende mediante suaexceção.

Tenho a impressão de que se pudesse mostrar o paralelismoprofundo que existe entre a ação e a exceção, teria conseguidoevidenciar um ritmo singular do direito. O preceito antigo, mil ve-zes repetidos em textos não somente jurídicos, como também li-terários, aconselhava audiatur altera pars. Bem pensado, comoveremos com amplitude mais adiante, o direito procede aqui apli-cando o princípio dialético da tese, da antítese e da síntese.

O litígio aparece assim denominado por uma idéia que cha-mamos de bilateralidade. As duas parte se encontram no litígio empé de igualdade e esta igualdade no processo não é outra coisasenão uma manifestação do princípio de igualdade dos indivíduosperante a lei. I

1 Exceção e defesa2 Exceção e direito3 Exceção e método4 Exceção e processo5 Conseqüências

IA idéia da bilateralidade do direito foi recentemente exposta com cuidadosa atençãopor Recaséns Siches em Vida humana, sociedade e direito. Fundamentação dafilosofia do direito (México, 1945, p. 153). Também por Dei Vecchio, em A justiça(Tradução espanhola, Madri, 1925, p. 72; tradução da 3. ed. italiana, 1946, porFrancisco Laplaza, Buenos Aires: Depalma, 1951, p.103).

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EDUARDO J. COUTURE

Na realidade, nessa escola encontramos em certos escrito-res do século XVIII, em leves, mas vivazes, toques, um pensamen-to profundo do ponto de vi ta humano, enfrentando o problema daliberdade do indivídu diante do poder; mas ao longo do séculoXIX se nos apre nta pref rencialmente sua forma externa.

O dir ito d . d fender em justiça, nos diz esta escola, setoma efeti v p r meio de três classes de exceções: dilatórias, que selimitam a apre entar questões prévias de procedimento com o objetode po tergar a contestação da ação; peremptórias, que se referemao próprio mérito do assunto; e mistas, que têm a forma das dilatóriase a eficácia das peremptórias (por exemplo, exceções de coisa julgadae de transação). Cada uma dessas exceções tem um conteúdo e umafunção. Mas a escola não foi mais além da descrição desse conteúdoe destafunção.'

O que respondeu à nossa pergunta a escola francesa?A escola francesa tinha de superar certas dificuldades no que

se refere ao estudo da exceção. O direito romano havia feito distin-ção entre exceções temporais e exceções permanentes. Essa dis-tinção foi acolhida por Pothier. Mas o Code de Procédure não

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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

A diferença fundamental entre ação e exceção, entre ata-que e defesa, é que o autor vai ao processo porque o deseja, aopasso que o demandado tem de ir ao litígio se bem que não odeseje. Esta observação trivial está carregada de conseqüênciasque não são triviais; ela e projeta sobre muitos aspectos queregulam o debate. Durante o debate, não se pode perder de vistaque, embora o autor tenha a iniciativa do litígio, o demandado nãoa tem e deve uportar, apesar de tudo, as conseqüências da inicia-tiva do demandante. Existe para ele uma verdadeira necessitasdefensionis.

O direito de defesa emjuízo se nos afigura, portanto, comoum direito paralelo à ação e justiça. Querendo, como a ação dodemandado. O autor pede justiça reclamando algo contra o de-mandado e este pede justiça solicitando a rejeição da demanda.'

Mas, não obstante o paralelismo aparente, a situação do de-mandado se nos afigura de certo modo tingida por uma coloraçãoespecial.

Énecessário, pois, aprofundar e examinar as razões que dãoesta coloração particular ao direito do demandado.

3A doutrina espanhola do século XVII foi, quanto às exceções, de extrema penetra-ção; algumas idéias, que algum tempo depois seriam observadas pela doutrina ale-mã, podem se encontrar expostas nitidamente no pensamento de um curioso escri-tor, oficial de justiça do tribunal de Lima (Peru), que escreveu um belo livro, cujointeresse no plano técnico se mantém sempre vivo. Trata-se de Heiva Bolafíos,Curia philipica, Madri, 1753. Esta obra, tendo obtido em seu tempo um êxitoimenso,tem sido continuada por diversos autores, especialmente por VicenteDomínguez -llustración y continuación a Ia curia philipica y corrección de Ias citasque en ellas se hallan erradas, dividido nas mesmas cinco partes; segunda impres-são. Valência, 1770. O tema das exceções foi desenvolvido nesta obra no t. I, p. 66et seq. A doutrina do século XIX pode se encontrar excelentemente exposta no livrojá mencionado de Caravantes, Tratado (t. Il, p. 95, 357). O estágio atual da doutrinaespanhola fixou-se por Miguel y Romero, Antiguo y moderno concepto delaexcepción, publicado na Revista General de Legislación y Jurisprudencia (Madri, t.154, p. 258), e especialmente no recente trabalho de De La Plaza, Hacia una nuevaorientación dei régimen de Ias excepciones en nuestro derecho positivo, publicadona Revista de Derecho Procesal (Madri, t. I, 1945, p. 29 et seq.).

2 EXCEÇÃO E DIREITO

Como esta conversação é, conforme dizia no início, um rela-to de uma história, acredito poder expressar de forma análoga odesenvolvimento do pensamento jurídico no que se refere à defesado demandado.

O que nos disse a escola espanhola sobre esse tema?

2 Permitimo-nos remeter ao leitor, para mais extensa exposição de idéias, aos doisestudos que destinamos ao tema da exceção e a defesa em juízo, nos volumes jámencionados: Fundamentos dei derecho procesal civil, p. 37, e Las garantiasconstitucionales dei proceso civil. ln: Estudios, t. I, p. 45.

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EDUARDO J. COUTURE

,INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

aceitou essa distinção e, pelo contrário, distinguiu entre exceções edefesa, o que deu motivo a um amplo desenvolvimento da literatu-ra, que vocês conhecem certamente melhor do que eu. (Peço per-dão pela referência que LI põe falar em direito francês na faculdadede Paris; não pretendi vir a esta casa a explicar direito francês, oque seria algo assim como levar vasos a Samos; mas é necessário,para estabelecer o ritm de id ia de que falava no início, mostrar acoordenação nece ária entre a escola francesa e as outras do con-tinente.)

Em todo o caso, a escola francesa sempre manteve uma idéiaparalela entre o conceito de ação e o conceito de exceção. Osbrocardos jurídicos "o juiz da ação e o juiz da exceção" ou "tantodura a ação, tanto dura a exceção" mostram-nos este paralelismo.Aquela idéia exposta na conversação anterior, de que a ação era ledroit casqué et armé en guerre, teve sua réplica no preceito deum escritor belga: L' exception est un droit qui a perdu l' epéemais le bouclier lui reste. O paralelismo se observa apenas nasimagens guerreiras 4.

Que resposta nos deu a escola alemã?O paralelo entre a ação e exceção encontra-se claramente

delimitado no pensamento de Wach. Este falava em continuação deseu conceito de tutela jurídica do autor, de um "interesse do de-mandado à tutela jurídica que rejeite a ação infundada".

Esta escola ofereceu, ademais, em matéria de exceção, umacontribuição de grande valor anterior a Wach. Em 1868, von Bülowescreveu um volume famoso, que foi considerado por muitos comoinício efetivo da escola processual alemã e inclusive do direito pro-cessual com conteúdo científico. Nesse volume se fazia uma distin-ção que logo percorreu um longo caminho: a distinção entre exce-ções propriamente ditas e o que se chamou pressupostos proces-

suais. As exceções são, estritamente, meios de defesa a cargo daspartes. Os pressupo to processuais são circunstâncias de fato oude direito sem a quai o Iitígio não pode terresistência jurídica nemvalidez formal.

Feita esta distinção, que logo foi pacificamente admitida peladoutrina rn d rna, o Código Civil alemão colocou o problema daexceção s bre um plano diferente. O parágrafo 202 distingue entreum direito genérico de oposição (Einwendung), que se pode fazervaler mesmo fora do processo, e a exceção propriamente dita(Einrede), cujo alcance é restritamente processual 5.

O que nos respondeu a doutrina italiana?Também aqui se nota claramente o paralelismo. À exceção

denominada Concreta da ação segue-se uma concepção tambémconcreta da exceção. Chiovenda manteve com rigor suas afirma-ções em ambos os pontos. Camelutti, por um lado, a quem se deveatribuir a concepção que denominamos abstrata da ação, mantémo paralelo na denominada concepção abstrata da exceção. ParaChiovenda, a exceção é um contradireito; o direito do demanda-do contrário ao direito do autor. Para Carnelutti, pelo contrário, odemandado não tem nenhum direito contra o autor. O demandadopede ao juiz somente sua liberdade, ou seja, a liberdade que tinhaantes da demanda. 6

Ao encerrar esta simples exposição de doutrina comparada,devo pedir desculpas pelo seu caráter rudimentar e elementar. Exis-tem bibliotecas inteiras destinadas a estes temas e, contudo, é ne-cessário desenvolver seu conteúdo no prazo de uns poucos minu-

5 Cf., VON BÜLOW. Die Lehre von Prozesseinreden und Prozessvoraussetzungen;1868; LANGEINEKEN.Ausprush und Einrede, 1903; KOLOSSER. Dic Verjãhrungder Einreden. Erlangen, 1913.

6 Cf., CHIO VENDA. Sulla eccezione. Rivista di Diritto Processuale Civile, I, p. 32,1933; BOLAFFI. Le eccezioni nel diritto sostanziale. Milão, 1927; CARNELUITI.Sistema dei diritto processuale, cit., t. I, p. 414, e Appunti sulla prescrizione.Rivista di Diritto Processuale Civile, t. I, p. 149; ESCOBERO. L'eccezione ionsenso sostanziale, Milão, 1936.

4 Cf., em suas últimas exposições, MOREL. Traité, cit., p. 49, e SOLUS. Cours,cit., p. 92. Uma antiga tese de doutorado conserva ainda certo interesse:DUCHESNAU. Des exceptions, Dijon, 1849. Também CARRÉ. Histoire deI'exception. Paris, 1888.

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EDUARDO 1- COUTURE

tos. Como na parábola do rei, de Anatole France.ié 'necessárior~sumir mais e mais a história das idéias, para se obter sua reduçãofm.al e seu conteúdo nos prazos mais limitados possíveis. Resta,pOIS,ao nosso encargo, uma enorme quantidade de esclarecimen-tos por fazer; mas entrar neles me levaria muito longe docaminhoque me propús percorrer.

3 EXCEÇÃO E MÉTODO

o que decidir?

Uma vez mais, corno no caso anterior, devemos dividircartesianamente as dificuldades e partir dos fatos.. , . O fa.to.é este: o demandado é perturbado em sua paz pelo

h~gI~. O direito de petição não é inofensivo, sob sua forma de açãoe Justiça, mas profundamente perturbador para a tranqüilidade doadversário.

. Todo segredo desse problema consiste, então, em que o di-reito não tem mais remédio a não ser considerar esse adversáriocorno um inocente até o dia da sentença.

Se o demandado fosse culpado, toda violência do processose justificaria. Mas se for inocente, que justificação teria, então, aviolência do processo?

É necessário, pois, tal como tratamos de encontrar um fun-damento comum à ação vitoriosa e à ação fracassada, encontrarum fundamento comum à exceção triunfante e à exceção rejeitadana ~entença.

Essa fundamentação não deve se buscar no campo do direi-to privado, mas no campo do direito público ou, mais estritamente,no plano dos direitos do homem.

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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

4 EXCEÇÃO E PROCESSO

Muitas constituições americanas consagram ainda hoje, pormeio de um t xto expresso, no capítulo dos direitos individuais,a máxima de que ninguém pode ser condenado sem ser ouvido.Uma longa experiência histórica, conduzida através dos sécu-los, nos ensina a profunda sabedoria desse preceito.

Esses textos têm um claro antecedente na garantia contidanas Emendas V e XIV da Constituição dos Estados Unidos daAmérica do Norte e reconhecida com o nome de due processof law.7 Todos vocês sabem por que a doutrina francesa se ocu-pou longamente deste assunto," o enorme desenvolvimento queteve nos Estados Unidos da América do Norte a garantia dodue processo É sobre ela que os norte-americanos construíramsua famosa teoria da inconstitucionalidade das leis. O dueprocess oflaw em sentido adjetivo ou formal refere-se à garan-tia da defesa emjuízo.

Quando a Suprema Corte dos Estados Unidos da Améri-ca do Norte teve de determinar qual é o conteúdo dessa garan-tia do due process of law, disse que ela se referia à idéia dejustiça que tiveram seus antepassados; a garantia do due processé, em seu pensamento tradicional, a garantia conhecida na MagnaCarta sobre o nome de the law oftje land. Ser julgado medi-ante um processo adequado significa ser julgado de acordo com

7 Deve-se esclarecer que a Emenda V, que contém a cláusula due process oflaw, fezparte das dez primeiras emendas que, conjuntamente com outras duas que nãotiveram ratificação pelo Congresso, foram aprovadas em 1789. Foram rapidamentereferendadas pelos Estados entre 1789 (20 de novembro, New Jersei) e 1791 (15 dedezembro, Virgínia).

8 Veja-se, particularmente, LAMBERT. Quatre années d'exercise du contróle de Iaconstitutionnalité des lois, par Ia Cour Suprême des États-Unis. In: MélangesMaurice Hauriou.

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EDUARDO 1. COUTURE

a lei da terra, expressa no texto de uma das mais famosas Cons-tituições políticas da história."

Quando a mesma Suprema Corte teve de determinar o que éa garantia do due process oflaw no que diz respeito à justiça, disseque essa garantia se limitava a garantir ao demandado his day inCourt; nada mais do qu um dia perante o tribunal, com uma razo-ável oportunidade d s r e curado.'?

Corr sp nde à I i processual nos países do sistema decodificação det rrninar c m rigor e exatidão em que consiste estedia perante o tribunal ou, em outro termos, a medida da necessáriadefesa perante aju tiça. O Código de procedimentos vem a ser,assim, a lei regulamentadora dessa garantia individual contida nasconstituições. O indivíduo encontra no processo civil ou penal acidadela de sua inocência; o direito processual supõe inocente todoindivíduo até que se demonstre o contrário. E tampouco isso acon-tece por comodidade, mas por necessidade. TERCEIRA CONFERÊNCIA

o PROCESSO

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9 Veja-se CORWIN. The doctrine of due process oflaw before the civil war. ln: Selectedessays on constitutionallaw (compiled and edited by Committee ofthe Associationof American Schools). Chicago, t. I, p. 203; do mesmo volume, ILWAIN, M. C. Dueprocess of law in Magna Carta, t. I, p. 174; e HAYNES. The history of due processof law after the civil war, p. 268. Também HOUGH. Due process of law to-day, p.302.

10 Esta jurisprudência da Suprema Corte foi resumida por WILLOGHBY. Theconstitutionallaw ofthe Unidet States, t. 3, p. 1.709.

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Page 18: Introdução ao estudo do processo civil

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

Comecemos pela pergunta: O que é o processo?Pothier nos ensinava que o processo é um contrato.

'I

1 ESTRUTURA E FUNÇÃO DO PROCESSO

1 Estrutura e função do processo2 Natureza do processo3 Estrutura do processo4 Função do processo

O processo nasce com a iniciativa do autor, delimita-se coma contestação do demandado e culmina com a sentença do juiz. Aexecução pode fazer parte do processo eventualmente, mas nãonecessariamente, já que são muitos os processos que não têm exe-cução coativa nem precisem dela. Autor, demandado e juiz são osprotagonistas deste drama que chamamos de processo, que possuiuma estrutura e uma função. O problema da estrutura consiste emsaber o que é oprocesso; o problema da função consiste em saberpara que serve o processo.

Ponócrates, o mestre de Gargantúa, começava a lição decada dia ensinando a seu aluno a posição dos astros. Não é malconselho para um jurista. Sem necessidade de tomar tanta distân-cia, a de procurar sempre uma referência entre a pequena partículade direito que tem entre as mãos e a imensidão do sistema jurídicodo qual essa pequena faz parte.

Trataremos de fazê-lo, com as necessárias limitações de tem-po e de espaço.

2 NATUREZA DO PROCESSO

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·'EDUARDO r. COUTURE

Era essa uma idéia que cavalgava sobre duas grandes dis-posições de espírito do século XVIII. A primeira delas, conse-qüência do neoclassicismo, consistia em comparar os fenôme-nos modernos aos da Antigüidade. A idéia do processo comocontrato, que Pothier não desenvolvia em seu primoroso Traitéde la procédure, mas no Traité des obligations, ao examinar acoisa julgada, era uma idéia rigorosamente romana. Como sesabe, o processo romano primitivo foi uma espécie de arbitra-gem privado, condição que foi logo perdendo fôlego com o pas-sar do tempo.

A outra propensão do século XVIII foi a de examinar osfenômenos jurídicos e sociais à espécie do contrato. Foram conce-bidos, assim, como contratos, o matrimônio, a letra de câmbio, aassociação ... , e até a convivência social. Entre o pensamento dePortier, quando fundamenta a coisa julgada e o contrato privado, eo pensamento de Rousseau, quando busca a explicação da convi-vência humana no contrato social, existe uma diferença de escala,mas não de essência. O pensamento de Pothier é microscópico; ode Rosseau, macroscópico.'

Como a debilidade desta tese era manifesta, a doutrina tevede recorrer a um subsídio: o quase-contrato. ,

Apoiando-se em fragmento do Digesto, que por outro ladonão dizia o que lhe atribuiu alguns de seus comentaristas, pensava-se que dado que o processo, fonte de obrigações (!), não era nem

ISobre toda esta tendência, Pothier (Obligations, part IV, cap, 3, sec. 3; Demolombe(t. XXX, p. 383); Aubry y Rau (t. VIII, p. 372), Para sua crítica, Diana (Alcuneconsiderazioni sul cosidetto contratto giudiziale. milão, 1901, Separata de Monitoridei tribunali, 1901, n. 6); em sentido diferente, pouco conexo, Maupoin (Le contratjudiciaire, Paris, 1911), Para as fontes romanas, sobre as quais existe copiosaliteratura, confira, exaustivamente, a mais recente, Pugliese (Processo privato eprocesso pubblico. Contributo alia individuazione dei loro caracteri nella storia deIromano. Rivista di Diritto Processuale, 1948, I, p. 63),

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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCES!)t)( ;IVII

contrato, nem delito, nem quase delito; deveria ser, por eliminação,quase contrato.'

Mas o subterfúgio era verdadeiramente débil, já que mes-mo na suposição de que o processo gerasse obrigações, a fontedestas deve ser buscada na lei, justamente a outra fonte tradicio-nal das obrigações que a doutrina se havia esquecido de levar emconsideração.

Essas idéias, que partiam de urna concepção puramente privadado processo, pois somente consideravam a oposição que nele têm aspartes, mas não levavam em consideração a obrigação de protagonistaque corresponde ao juiz, foram superadas pelas doutrinas conhecidascomo da relação processual e da situação processual.

Para a primeira delas, respectivamente, o processo é uma, relação jurídica, na qual as partes entre si e elas, com respeito aojuiz, encontram-se ligadas por uma série de vínculos, não somentepor caráter material, como também por caráter pessoal.' Negan-do-se à existência de tal relação, a doutrina denominada da relaçãoprocessual concebe o processo tão-somente como um conjunto deobrigações, de expectativas e de decadências 4.

.

2 A idéia era encontrada em alguns escritores espanhóis antigos: assim o Conde de IaCanãda (Instituciones prâcticas. Madri, 1794, t I, p, 46), o qual, por sua vez, seremete a Salgado (Labyrintus creditorum, cap. 17 e n. 17,28). Uma ampla funda-mentação desta tese se encontra Arnault de Guenyveau (Du quasi-contrat judiciaire,Poitiers, 1859); mas a fundamentação deste escritor no fragmento De peculio, doDigesto, é errônea. A passagem não diz In judicio quese contrahimus mas Sicut instipulatione contrahitur [., .l itajudicio contrahi (ULPIANO, Digesto L. 3,11, 1),

) A doutrina da declaração processual foi desenvolvida, principalmente, por algunsescritores alemães, Assim, por exemplo, Von Bülow (Die Lehre von denProzesseinreden und die Proressvoraussetzungen, 1868) ou Kouler (Der prozessais Rechtsverhaltniss, 1888), Daí foi tomada pela doutrina italiana, em contribui-ções muito abundantes que podem se ver resumidas em Segni (Procedimento civile.In: Nuovo Digesto Italiano, t. X, p. 554); ou espanhóis como Silva Melero(Contribución aI estudio de Ia relación procesal. (Rivista General de Legislacián eJurisprudencia, t. 2, p. 501); ou americanos, como Machado Guimarães (A instanciae a relação processual, Rio de Janeiro, 1939),

4 Nesse sentido, Goldschmidt (Der prozess ais Rechtslage, Berlim, 1925, e Teoríageneral dei proceso. Barcelona, 1936).

I

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EDUARDO J. COUTDRE INTRODUÇÃO AO ESTUoo 00 PRGCESSGCli\lIL

I -A,,: Posteriormente, duas correntes de idéias trataram de abran-ger, em uma concepção unitária, a idéia do processo. Por um lado,sustenta-se que este é uma entidade jurídica complexa 5; por outro,que é uma instituição. 6

O grave deste enxame de idéias não é tanto sua dispersão,mas a intransigência com que os partidários de uma e outra tese seempenham em uma luta encarniçada para sustentar sua verdade e oerro da tese combatida. Esta é uma modalidade muito comum denossa cultura. "No ocidente" - escreve um pensador oriental- "umhomem se enamora por uma teoria e outro por outra; e ambosprocedem para demonstrar sua teoria e o erro da adversa, comgrande cultura e estupidez."

As teorias do contrato e do quase-contrato aparecem emseus autores com certa simultaneidade; a da relação processual nãoexclui que o processo seja um conjunto de situações; a idéia de queo processo seja um fenômeno jurídico complexo, ponto que nãoparece que possa se negar, não impede que, colocando-se de acor-do com as palavras, conceba-se este como uma instituição.

Não nos encontramos, pois, na presença da descoberta deuma verdade, mas estamos procurando uma interpretação sistemáti-ca de um fenômeno. A ciência não se propõe determinar aqui como

é uma coisas, mas corno se relaciona com o conjuntodo-direito,tema este que cada um pode conceber ao seu próprio modo.

Não façamos, pois, do pensamento sistemático, no qual émuito difícil ter o convencimento de se ter alcançado a verdade, umcapítulo de intransigência; a humildade da ciência encontra-se emuma linha sutilmente paralela à humildade do coração.

3 ESTRUTURA DO PROCESSO

Voltemos, agora, à pergunta inicial- O que é o processo?-para respondê-Ia com nossos próprios meios.

O processo é, em si mesmo, um método de debate. Neleparticipam elementos humanos: juízes, auxiliares, partes, testemu-nhas, peritos, etc., os quais atuam segundo certas formaspreestabelecidas na lei. Essas formas regulam a produção de atosjurídicos processuais, vale dizer, atos humanos dirigidos pela von-tade jurídica.

Por sua vez, esses atos se registram em documentos emana-dos das partes, dos juízes e de seus auxiliares. Daí surgem as cir-cunstâncias de que o processo é, indistintamente, o conjunto deatos e o expediente (dossier) no qual esses atos ficam registrados.Os documentos do processo representam, vale dizer, apresentamde novo, a vontade jurídica processual.

As formas processuais variam no tempo e no espaço, querseja sob o aspecto de método escrito ou de método oral; quer sejasob a forma de princípio requisitório ou dispositivo; quer seja sob aforma de processo público privado, etc. Mas nessas formas, vari-ando no tempo e espaço, o que constitui a estrutura do processo éa ordem dialética. O processo judicial e o processo dialético apa-recem, dessa forma, diante de nós, unidos por um vínculo profun-do. À verdade se chega por oposições e por refutações; por tese,por antítese e por síntese.

5 Assim, Foschini (Natura giuridica deI processo. Rivista di Diritto Processuale,1948, I, p. 110). O mesmo autor desenvolve novamente as suas idéias em Lacomplessione deI processo, na mesma Rivista, 1949, I, p. 15.

6A idéia de que o processo é uma instituição já se encontrava delicadamente apontadano pensamento de Wach (der Rechtschurzanspruch. ln: Zeistschift für deutschenZivilprores, t. 32, p. 5). Entre os escritores franceses que, em outro plano, desen-volveram a idéia da instituição, a sua idéia se encontra muito empiricamente insinu-ada. Assim, Hauriou (Principes de droir publico 2. ed., Paris, 1916, p. 109) e Renard(La théorie de l'institution. Essai d'ontologiejuridique, Paris, 1930, p. 239, 273,446, nota 2). Ultimamente foi retomada, com novo alento, por Guasp (Comenta riosa Ia ley de enjuiciamiento civil. Madri, 1943, t. I, p. 17); por Fenechi (Cursoelemental de derecho procesal penal. Barcelona, 1945, t. I, p. 12); por De Pena yCastillo Larrafiaga (lnstituciones de derecho procesal civil. México, 1946, p. 162).Por nosso lado, temos dedicado a este tema o estudo EI proceso como institución,publicado na Rivista Jurídica r!.!: Câ.aoba, p. 405,1949, e no volume de Estudiosen honor de Enrico Redenti.

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EDUARDO]. COUTURE INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

A justiça se serve da dialética porque o princípio da con-tradição é o que permite, por confrontação dos opostos chegar àverdade. O fluir eterno, dizia Hegel, obedece à dialética; se põe, seopõe e se compõe em um ciclo que pressupõe um início que apenaso alcança no fim. "O todo e suas partes" - diz o filósofo - "integram-se reciprocamente no imenso torvelino; fora dele tudo perde impulsoe vida. Nada é instável. Permanente é somente o torvelino".

Mas o debate por si mesmo não tem sentido. O processo, setem uma estrutura dialética, é porque graças a ela procura-se aobtenção de um fim. Toda a idéia de processo é essencialmenteteleológica, enquanto aponta para um fim.

Procuramos, pois, complementar a idéia simplesmente for-mar do debate forense e de seu principio contraditório, com a idéiada finalidade. Uma vez dada a resposta que nos diz o que é o pro-cesso, deve-se partir para a pergunta que consiste em saber qual éo seu fim: para que serve.

Contemplados do ponto de vista de sua estrutura, existe umaunidade entre o processo parlamentar, o processo administrativo eo processo judicial. Todos eles se apóiam, do seu ponto de vista,na necessidade do debate e na conveniência que deriva da exposi-ção das idéias propostas para chegar à verdade. Mas em sua fina-lidade diferem, quanto a que o processo parlamentar, com seu de-bate dos representantes do povo, aponta para a sanção da lei; oprocesso administrativo, com sua grande quantidade de antece-dentes técnicos, aponta para o governo e para a administração e oprocesso judicial, com seu debate das partes interessadas e reco-lhimento de provas, aponta para a coisa julgada, isto é, para a so-lução (eventualmente coativa) do conflito de interesses.

Esse fim é privado e público ao mesmo tempo.É privado enquanto interessa às próprias partes fazer cessar

seu conflito. Ao autor é garantida a efetividade de seu direito quan-do sua pretensão for justa; ao demandado se assegura a rejeiçãoda demanda, quando a defesa for justa.

Mas, juntamente com esse interesse privado, o processo temuma finalidade que interessa à comunidade. Essa finalidade de cará-ter público consiste em garantir a efetividade do direito em sua inte-gridade. O processo é um instrumento de produção jurídica e umaincessante forma de realização do direito; este se realiza positiva-mente nas sentenças judiciais; a estas somente se chega por meio doprocesso. Este, já se disse, garante a lex continuitatis do direito.

Não se desconhece que para a doutrina francesa, habituadatradicionalmente a uma concepção simplesmente declaratória doprocesso, a idéia de que este constitui um instrumento de produçãojurídica, isto é, criador de novas formas de direito não existentesantes da sentença, é uma proposição revolucionária.

Certo pregador, ouvindo um dia outro pregados, diz: "A teo-logia desse pregador corresponde à minha demoniologia; sua idéiade Deus corresponde à minha idéia de Demônio."

Na próxima conferência, veremos, pois, a demoniologia doprocesso e da sentença em que ele culmina.

4 FUNÇÃO DO PROCESSO

O processo serve para resolver um conflito de interesses.O processo pressupõe um ou mais conflitos e é um meio

idôneo para dirimi-los por ato da autoridade. A doutrina distingueentre autodefesa (vias de fato para fazer cessar a injustiça); aautocomposição (entendimento para colocar um fim ao conflito poratos das partes); e processo (via de direito para pôr fim ao conflitopor ato da autoridade). O processo tem como finalidade fazer ces-sar o conflito, por meio de um debate preordenado, por ato daautoridade?

45

7 Nesse sentido, ultimamente, culminando anteriores esforços da doutrina, AlcaláZamora y Castillo (Proceso, auiocomposicion, autodefensa, México. 1947).

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J' '(

QUARTA CONFERÊNCIA .

A SENTENÇA

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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

J

1 FORMA DA SENTENÇAl

II111

1 Forma da sentença2 Conteúdo da sentença3 Declaração e criação na sentença4 Sentença e Direito5 O juiz

Para saber qual é o conteúdo da jurisdição, continuando sem-pre o nosso método de partir dos fatos, comecemos realizando aexperiência de tomar entre as mãos uma dessas peças as quaisdenominamos habitualmente decisões ou sentenças.

Certamente que ao fazê-lo assim não teremos na mão a pró-pria sentença. Esta foi, originariamente, algo que foi sentido; daí seunome de sentença. Mas esse sentimento, pela razão dada antes,tinha de ser registrado ou documentado. O que temos entre as mãosnão é, pois, mais do que o documento representativo, que se apre-senta de novo, dizíamos, aquilo que o juiz sentiu como direito.

Esclarecido isso, examinemos o que se encontra em nossasmãos, começando por sua forma.

No processo hispano-americano moderno, uma sentença secompõe de um preâmbulo, que contém a denominação da causa naqual se dita; de uma primeira parte, que contém um relatório dosfatos debatidos; de uma segunda parte, que determina o direito queé aplicável; e de uma conclusão, que contém a decisão final.

O curioso nessa estrutura é que ela reproduz com umaplasticidade quase perfeita a forma da demanda. Quando as leisprocessuais hispano-americanas descrevem a forma da demanda,reclamam um preâmbulo, um relato dos fatos, uma exposição dodireito e uma petição final. Os espanhóis chamaram de requisito de

I Sobre todo este tema, nos remetemos aos amplos desenvolvimentos que já indica-mos em Fundamentos deZdireito procesaZ civil (2. ed., 1951).

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EDUARDO J. COUTUREINTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

congruência esta espécie de coerência necessária que tem de seter entre o pedido e o decidido.

Um autor mostrou com perspicácia que toda a demanda é oprojeto da sentença que o demandante queria quanto à sua estrutu-ra e quanto ao seu conteúdo.

Contemplando este mesmo fato do ângulo da sentença, po-demos dizer que toda sentença é, de certo modo, a reproduçãoformal de uma demanda inteiramente fundada.

estado jurídico não existente antes de ser prolatada. Se me permi-tissem acentuar seu caráter constitutivo, realçando sua importância,acrescentaria que é uma sentença constitutiva necessária. Um con-trato pode se dissolver por outro contrato; mas o matrimônio nãopode se dissolver a não ser por uma sentença.

As sentenças cautelares, que a doutrina chamou mais de umavez "preventivas", são aquelas que não supõem um pronunciamen-to sobre o mérito do direito, mas que se limitam a decretar, em viasumária, uma medida de segurança. Tais medidas partem da basede que o processo demanda tempo e que, quando chegar a senten-ça definitiva, o estado de coisas existentes no início pode desapa-recer. Já se disse que as decisões cautelares ou preventivas tratamde conjurar o periculum in mora, evitando que as sentenças judi-ciais, I r sua excessiva demora, sejam prolatadas quando as cir-cunstâncias tornaram virtualmente irreparáveis.

Até aqui as idéias comumente admitidas pela doutrina. Mas éjustamente a partir deste ponto que começa a dificuldade.

I

2 CONTEUDO DA SENTENÇA

Imediatamente observada a forma, nem ao menos tratamosde perfurar a casca da decisão, e já encontramos dificuldade emdeterminar o seu conteúdo. Não existe acordo, na doutrina, comoacontece sempre em todas as questões de ordem metódica, acercade quantas são as classes ou tipos de sentenças; mas após tantaspáginas terem sido escritas para obter essa classificação, podemos,hoje, admitir como pacificamente reconhecidos, pelo menos, quatrotipos de sentença: declaratórias, condenatórias, constitutivas ecautelares.

As sentenças declaratórias são aquelas que se limitam a umasimples declaração do direito. Se a mim se me exigisse a determina-ção de uma sentença tão puramente declaratória que contenha o mí-nimo imaginável de qualquer outra substância, escolheria a sentençadesestimatória. Quando ojuiz rejeitar a demanda, não fará outra coi-sa senão declarar sua improcedência; uma pura declaração.

Sentenças condenatórias são as que impõem uma presta-ção, sem que seja necessário, em homenagem à cultura desse audi-tório, dar mais detalhes a respeito.

Sentenças constitutivas são aquelas que criam um estadojurídico novo, não existente antes de seu pronunciamento. A sen-tença de divórcio, por exemplo, é uma sentença constitutiva em siprópria, por quanto opera a dissolução do matrimônio e cria um

3 DECLARAÇÃOE CRIAçÃO NA SENTENÇA

Éverdade que existem sentenças puramente declaratórias oupuramente constitutivas? Por seu turno, as sentenças condenatóriase cautelares não são em certo sentido declaratórias e em certo sen-tido constitutivas?

O caso é grave, porque neste ponto há que se enfrentar comcerto heroísmo uma longa e muito prestigiosa tradição. Vejamo-Ia.

Qualquer dos alunos que me escutar guarda em sua memóriaas palavras de Montesquieu: Les juges de la Nation ne sont,comme nous avons dit, que la bouche qui prononce les parolesde la loi, des êtres inanimés?

2 De l'esprit des lois, livro XI, capítulo 6.

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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVILEDUARDO J. COUTURE

A história das idéiasjurídicas não teve um intérprete mais elo-qüente na concepção declaratória do processo do que Montesquieu.Como certas figuras na arte e na ciência, Montesquieu foi um marcoentre duas épocas. Como Dante, como Cervantes, como Beethoven,como Pauster,Montesquieu é, em sua ciência, o último dos antigos eo primeiro dos modernos. Utilizemos, pois, suas palavras comoparadigma da concepção declaratória da sentença.

No Outroextremo da linha jurídica, devemos colocar o pen-samento que chamaremos, por comodidade, de entendimento, con-cepção processual do direito.

Diferentemente daqueles que nos apresentam a sentença ju-dicial como simples revelação da lei, essa tendência nos apresentaa sentença judicial como um fenômeno criativo ou produtivo dodireito. A denominada "teoria da experiência jurídica", por exem-plo, concebe o direito como um processo de gradual desenvolvi-mento dinâmico de preceitos. O material dos preceitos jurídicos,naturalmente caótico, deve se tornar cósmico. O único esquematranscendental pelo o qual se alcança a unidade sistemática consis-te em conceber o direito a cada um dos seus estados, como aexteriorização escalonada da vontade pura, sem que entre um eoutro grau exista solução de continuidade. A única coisa que podegarantir essa unidade é o processo. Para a ciência jurídica pura, opronunciamento deriva do processo não por meio de atos psíqui-cos do juiz, mas por meio do processo; e este constitui uma sériede formas jurídicas preceituais que desembocam na sentença.

Conclui esta concepção com um pensamento que vem a seralgo assim como o paraíso dos processualistas: "Por acaso o pro-cedimento chegue a ser a rainha das ciências jurídicas" 3.

Para Montesquieu, o centro do direito é a lei; o processoé um simples prolongamento, um braço da lei alargado para ocaso concreto. Para a teoria oposta, o processo é um direito;sem ele, não existe a lex continuitatis, órgão de articulaçãonecessário para toda concepção pura do direito. O direito serevela no processo necessariamente. Sua essência é forçosa-mente constitutiva, uma vez que cria a articulação e continuida-de necessária do direito.

4 SENTENÇA E DIREITO

Tratemos de meditar, agora, com nossas próprias forças,sobr estas duas vozes que desde o século XVIII até o século XXlançam sua mensagem para o pensamento jurídico.

Poderemos dizer que ojuiz é somente "a voz que pronunciaas palavras da lei"? Poderemos dizer que é um "ser inanimado"?

Parece-me que não. Em todo caso, essa concepção repre-senta um excesso de lógica formal, à custa da lógica viva. O juiznão pode ser um signo matemático, porque é um homem; ojuiz nãopode ser a boca que pronuncia as palavras da lei, porque a lei nãotem a possibilidade material de pronunciar todas as palavras dodireito; a lei procede com base em certas simplificaçõesesquemáticas, e a vida apresenta, diariamente, problemas que nãopuderam entrar na imaginação do legislador.

Quando a lei cair no silêncio podemos dizer, seguindo ametáfora do poeta, que esse silêncio está povoado de vozes ...Mas quando o juiz prol atar sua sentença, não somente será umintérprete das palavras da lei, como também de suas vozes miste-riosas e ocultas.

Além do mais, toda sentença, mesmo aquela que seja pura-mente declaratória, cria um estado jurídico novo.

J As idéias que concebem a sentença como uma forma de produção jurídica sãoabundantes na doutrina alemã. Basta referir aqui, por sua projeção no pensamentolatino americano, a concepção de Kelsen (La teoria pura dei derecho. Traduçãoespanhola. Buenos aires 1941, p. 114). Ultimamente, no sentido indicado no texto,Sandres (Di e traszendentale Methode der Rechtsphilosophie ind der Begriff desRechtsverfahrens.ln: Zeiischrifffür õffentliches Recht, 1920, I, p. 483). Tomamosesta referência, na falta da edição original, do estudo de Soler (Los valores jurídicos.Revista Jurídica de Córdoba, t. I, p. 233,1947).

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rEDUARDO J. COUTURE INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

Quando a sentença declaratória Oua de condenação tive-rem transitado emjulgado, surgirá algo novo no sistema do di-reito. Esse quid novum é a certeza. O direito era incerto antesda coisa julgada e se fez certo depois dela.

A certeza supõe a modificação no estado de coisas ante-ri.ores e representa, em boa medida, um instrumento de paz jurí-dica. A sentença traz a paz jurídica, juntamente com a tutela dodireito do ganhador. Neste sentido, podemos falar que qualquersentença, seja ela declaratória, condenatória ou preventiva, temuma partícula de elemento constitutivo.

~dmitamos, pois, desse ponto de vista, que a sentença é,em maior ou menor grau, constitutiva ou criativa de um estadojurídico não existente antes do seu pronunciamento.

Mas, pelo contrário, considerar que a sentença é um ins-trume~to necessário do direito e que apenas o processo possagarantir a lex continuitatis da ordem jurídica significa omitirum dos maiores e mais comovedores fenômenos do direito.

A doutrina denomina "realização espontânea do direito"este imenso caudal de fenômenos jurídicos que se realiza semintervenção da autoridade. O governo estabelece um imposto eos contribuintes protestam, mas pagam; os pais alimentam seusfilhos não mais porque o Código Civil ordena, mas porque háum profundo imperativo humano que os leva a isso; os devedo-res pagam o que devem a seus credores porque assim dita suaconsciência; o trabalhador presta o trabalho que comprometeua dar porque há muitos motivos não estritamente jurídicos que olevam a isto. Se um dia essa realização espontânea do direitoc~ssar e todos contribuintes tivessem de ser demandados judi-cIal~ente, se todos os pais tivessem de ser condenados a pres-tar alimentos a seus filhos, se todos os devedores ou todos ostrabal~adores tivessem de ser levados até o tribunal para quecumpnssem com suas obrigações, a máquina do Estado saltariafeita em pedaços.

o direito realiza sem imposições porque na consciência dohomem existeuma experiênciasecularque lheensinaque é bom cum-prir o direito espontaneamente, antes que seja obrigado pela força.

A concepção de Monstesquieu era uma concepção politica-mente necessária para as idéias jurídicas do século XVII, porquesupunha uma reação contra certas idéias anteriores; mas a concep-ção processual do direito e o endeusamento do juiz como instru-mento necessário para a experiência jurídica representa o excessode uma concepção estatista, autoritária, da vida, que não coincidecom os dados da experiência jurídica.

5 O JUIZ

Ao chegar a este ponto, devemos reconstruir o resultado denossa observação sobre a sentença que temos em mãos.

A concepção tradicional que divide as sentenças emdeclaratórias, constitutivas, condenatórias e cautelares é apenasaproximadamente exata. As sentenças apenas sãoprimordialmentedeclaratórias,constitutivas,condenatóriasou cautelares.Toda senten-ça é, de certo modo, constitutiva, como toda sentença é, de certomodo, declaratória. E há sentenças, como a que dissolve o matri-mônio, que podem ser, ao mesmo tempo, declaratórias,constitutivas, condenatórias e cautelares.

Também a mitologia jurídica tem seus faunos, suas sereias eseus centauros. Juntamente com as classificações, com seu valorde escola, devemos admitir a realidade de formas híbridas, unida-des compostas com pluralidades e que não podem ser abrangidasem classificações herméticas.

Mas, ao chegarmos aqui, tratemos ainda de ir mais adiante.A sentença não é um pedaço de lógica, tampouco uma nor-

ma pura. A sentença é uma obra humana, uma criação da inteligên-cia e da vontade, ou seja, uma criatura do espírito do homem.

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EDUARDO J. COUTURE

Os teóricos da concepção declaratória do processo nosmostram o juiz como um lógico, que fabrica silogismos. A lei, afir-ma-se, é a premissa maior; o caso concreto é a premissa menor; asentença é a conclusão. Mas a sentença tem, ao mesmo tempo,numerosas deduções particulares; e os círculos destas diversas de-duções particulares são, por sua vez, outros tantos silogismos. Adecisão é, assim, uma espécie de pequena constelação de induções,de deduções e de conclusões."

Em outro extremo, a doutrina criativa do direito acentuou ocaráter voluntarista da decisão e reduziu ao mínimo a lógica. Nãofaço, por acaso, alusão à chamada "teoria do direito livre", porqueessa teoria nasceu para ser refutada. Refiro-me, pelo contrário, àconcepção anglo-norte-americana do direito. Holmes disse que odireito não é lógica, mas experiência; e um dos mestre da escola deYale disse que o jurista não é um lógico, mas um engenheiro social. 5

Em cada uma dessas posições vão compreendidos os ex-cessos que trazem consigo toda a lógica sem experiência e todaexperiência sem lógica.

O juiz é um homem que se move no direito como prisioneirona sua prisão. Tem liberdade para se mover e nisso age sua vonta-de; mas o direito lhe fixa limites muito estreitos, que não lhe sãopermitidos ultrapassar. Mas o importante, o grave, o verdadeira-mente transcendental do direito, não está no cárcere, isto é, noslimites, mas no homem.

A Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Nor-te, em uma de suas máximas, disse que "a Constituição é o que os

4 Os melhores desenvolvimento desta atitude correspondem aos estudos deCalamandrei (La genesi logica della sentenza civile. In: Studi di diritto processualecivile, t. I, p. 1) e Calogero. La logica del giudice e il suo controllo in cassazione.Pádova, 1937).

5 Nesse sentido Yntema (Yale Law Review, t. 37, 1928, p. 238). Cohen (The place oflogic in the law. In: Law and the social arder) conclui que o lugar da lógica no direitoé nulo; o direito "é o conjunto dos pré-juízos dominantes em uma determinadasociedade em um dado momento". Assim mesmo Cardozo (The nature o/judicialprocess, 12. ed., New Haven, Yale, 1945).

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INTRODUÇÃO A

juízes dizem que é". Essa máxima contém o exc SS( I l( IIIS 11.'

teorias voluntaristas do direito; mas não se lhe pod n 'UI' li li pmfundo conteúdo de realidade vital. E se isso é assim, S 'o lir 'ito ."o s juízes dizem que é", como podemos prescindir d juiz '(lIl)O

elemento necessário na criação e produção do direito? mo puderemos desprender a decisão do juiz de seus impulsos, de SUtiS

ambições, de suas paixões, de suas debilidades como homem? Odireito pode criar um sistema perfeito quanto à sua justiça; mas li

esse sistema tiver se ser aplicado em última instância por homens,direito valerá o que valem esses homens.

O juiz é uma partícula de substância humana que vive smove no direito; e se essa partícula de substância humana tem di -nidade e hierarquia espiritual, o direito terá dignidade e hierarquiaespiritual. Mas se o juiz, como homem, cede diante de suas fraque-zas, o direito cederá em sua última e definitiva revelação.

Um dos grandes dramas do nacional-socialismo foi o de tercriado toda uma doutrina autoritária do direito e ter feito do juizFührer do processo. E por menos que tenha tido experiência jurí-dica, essa concepção foi trágica. Não mais porque o sistema pu-desse ser manejado pelos homens, mas porque os homens erammanipulados pelo sistema.

Da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O di-reito valerá, em um país e em um momento histórico determinados,o que valem os juízes como homens. O dia em que os juízes tiveremmedo, nenhum cidadão poderá dormir tranqüilo.

Tratando de ordenar em um sistema de idéias os princípiosbásicos, radicais, aqueles em tomo dos quais se agrupa toda a ex-periência sobre a função e a obrigação do juiz, eu me permitir redu-zi-los a três ordens necessárias: o da independência, o da autorida-de e o da responsabilidade.

O da independência, para que suas decisões não sejam umaconseqüência do fome ou do medo; o da autoridade, para que suasdecisões não sejam simples conselhos, divagações acadêmicas, queo Poder Executivo possa desatender por sua vontade; e o da res-

5

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---IEDUARDO 1. COUTURE

,...

ponsabilidade, para que a sentença não seja um ímpeto da ambi-ção, do orgulho ou da soberba, mas da consciência vigilante dohomem diante de seu próprio destino," A sentença poderá justa ouinjusta, porque os homens necessariamente se equivocam. Não seinventou ainda uma máquina de fazer sentenças. O dia em que forpossível decidir os casos judiciais como se decidem as corridas decavalos, por meio de um instrumento ótico que registra fisicamentea vitória ou a derrota, a concepção constitutiva do processo care-cerá de sentido e a sentença será uma pura declaração, como que-ria Montesquieu. Mas enquanto não se possa obter essa máquinade fazer sentenças, o conteúdo humano, profundo e entranhável dodireito não poderá ser desatendido nem desobedecido e as senten-ças valerão o que valem os homens que as tenham ditado.

DEBATE *

6Nesse sentido, remetemo-nos ao que expusemos, com amplo desenvolvimento, emLas garantías constitucionales dei proceso civil. ln: Estúdios, cit., p. 76 et seq.

* Por ocasião da última conferência, realizada em 6 de abril de 1949, sob a presidênciado professor Henri Solus. Tradução das versões taquigráficas de René Bluet.

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-

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O Presidente, Sr. Solus - Meu queridocolega, escutamos com legítima curiosidade e,

devo dizer, até com a maior emoção, esta magistral confe-rência. O tema nos havia preocupado um pouco, já que seanunciava sobre o título de O processo como instituição. Apartir dessa noção de instituição, tão desmesuradamenteampliada por alguns, o conferencista conseguiu elevar o debateda mesma forma que nas conferências anteriores, e levá-lorealmente até o cume.

Ouvimos todos com verdadeiro reconhecimento estaapoteose final do que constitui a missão do juiz. Estou se-guro de que os magistrados que estão conosco lhe terãoescutado com muita particular satisfação. Todos nós estamosimbuídos do mesmo ideal e nossa mais absoluta confiançase encontra depositada na independência, na autoridade e naresponsabilidade de nossos juízes.

Senhores, penso que esta exposição poderia suscitar,como é costume na Faculdade e sempre que houver incon-veniência, um intercâmbio de pontos de vista.

Ademais, encontra-se entre nós um embaixador doUruguai, a quem devo agradecer muito especialmente suapresença e a honra que com ela fez à Faculdade.

Encontrando-se presentes muitos altos magistrados,professores, advogados e alguns processualistas, desejariavivamente dar a palavras a quem, entre vocês, senhores esenhoras, houvesse por bem pedi-Ia ... Talvez o senhor Pri-meiro-Presidente da Corte de Cassação, M. Frémicourt, ti-vesse algumas observações afazer ...

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

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EDUARDO J. COUTURE INTI<.ODUÇÃO AO ESTU

Sr. Frémicourt - Se bem que não tenha pedido a pala-vra, acredito que devo realçar algumas manifestações do pro-fessor Solus.

Foi especialmente agradável, para um antigo magistra-do, ouvir as declarações que acaba de pronunciar nosso con-ferencista. Disse-nos ele que é necessário que o juiz tenhaliberdade, autoridade e responsabilidade. Devo confessar queeste tríptico me pareceu singularmente feliz e que ele coin-cide com a idéia que nós temos do juiz. Sua palavras finais esua belíssima parábola encontraram no meu espírito um ecoverdadeiramente eternecedor. Permita-me confessá-lo.

Escutei com imenso interesse esta conferência quedemonstra um domínio muito singular do idioma francêspor parte de quem a pronunciou. Para alcançar certas sutile-zas às quais o conferencista chegou, é necessário ter de nossoidioma o conhecimento muito profundo. Estou seguro detodos que aqui se encontram ouviram a dissertação com ointeresse tão vivo com que eu a escutei.

Entrando no fundo do tema e repetindo a perguntaque consiste em saber o que é o processo em si mesmo,devo admitir que se trata de uma questão delicada. Devoconfessar, com verdadeira confusão, que nunca tinha per-guntado a mim mesmo nem tinha tratado de resolver, nãoobstante minha qualidade de juiz, o que é um processo. Éevidente, quando se medita mais, que se o processo e suasentença são, na maioria dos casos, puramente indicado-res do direito, contêm, contudo, muitos elementosconstitutivos. Como o conferencista sublinhou, há umaparte de temperamento, de espírito, de inteligência e deconcepções particulares de quem dita a sentença que en-tra inequivocamente na decisão.

O juiz não pode ser o homem "que diz a lei", pois a lei,em certos casos, pode ser insuficiente, inadaptável à questão

que se colocou ao magistrado; pode apresentar obscuridad R

que é preciso esclarecer. Conseqüentemente, sempre será n '.cessário que o espírito humano tome uma determinaçãouma decisão, independentemente do que seja aplicação rig -rosa e matemática dos textos.

Nestes casos, pode considerar-se que a decisão ju-dicial é, em parte, criativa e constitutiva de direito. É porisso que a jurisprudência tem a influência e o alcance quetodo mundo lhe reconhece. Se o magistrado não fizesse

utra coisa que aplicar rigorosamente os textos, sempreos mesmos e sempre do mesmo modo, seriam inconcebí-veis as interpretações diversas, muitas vezes convergen-tes, que os magistrados dão aos textos; e restariam tam-bém sem explicação as decisões que os juízes ditam naausência de textos precisos que possam aplicar à situaçãoque lhes é submetida.

Aprendi muito nesta tarde. Tenho de felicitá-Io porisso. E muito mais ainda se levo em consideração que a li-ção que acabo de escutar foi ditada em termos especial-mente interessantes, que se fez escutar com vivo agrado.

Sr. Xirau - Acabo de perceber, senhor Presidente, queé muito o que perdi por não ter escutado o professor Coutureem suas duas primeiras conferências. Sua lição de hoje seencontra, sem dúvida, estreitamente ligada ao que explicouantes em suas precedentes sobre a ação e a defesa em juízo.Ao expor estes três temas - a ação, a defesa e o processo -fez um desenvolvimento dos três elementos que estão naprópria base do direito judicial e do procedimento, comodizemos na França.

Agrada-me especialmente, tomar a palavra depois destaconferência tão clara e precisa, porque não me esqueço deque, no início de minha carreira, também me inclinei sobre

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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

o mais europeizado da América Latina e que, se bem quenão tenha renunciado à sua personalidade, soube assimilarno domínio do direito as diferentes correntes da doutrinaeuropéia. O direito do procedimento é sempre uma ciên-

ia [ rática e tem um fim prático. Tal como dizia recente-rn nte o professor Solus, é um ramo que tem fama de serárido. Eu diria, melhor, que é uma parte do direito na qualnão se opera diretamente com a realidade, mas com os

_I m ntos do próprio direito. Por isso é que gostaria dep 'dir ao professor Couture que nos indique quais são as. rrentes atuais da prática do procedimento civil em Seupaís. Ele acaba de terminar seu Projeto de Código de Pro-cedimento Civil e pode nos informar quais são as tendên-cias que predominam no sistema do projeto.

Esses são os meus dois questionamentos.

s problemas do direito processual e do processo. O que oprofessor Couture nos disse me fez voltar ao que eu chama-ria de meus primeiros amores; e é sempre agradável lem-brar o que foi um grande amor na juventude.

Desejaria somente fazer ao professor Couture duasperguntas. Em primeiro lugar, ele percorreu todas as doutri-nas relativas ao fim do processo e da sentença. Se me recor-do bem de suas palavras, ele disse que as classificações sãopuramente pedagógicas e que as distinções entre sentençasdeclaratórias, constitutivas e de condenação não são mais doque distinções de caráter pedagógico.

Mas eu me lembro de que o professor Couture escre-veu um trabalho sobre sentenças puramente declaratórias.Desejaria que nos dissesse exatamente qual é o alcance desua atitude de hoje, mostrando até que limite ele acreditaque as sentenças puramente declaratórias possam ser incor-poradas em um conjunto que não tem mais do que variedadese matizes. Tratar-se-ia de saber se um dos critérios mais só-lidos paraa classificação das sentenças não seria justamenteeste: quando a sentença não modificar a situação de fato arespeito do direito, ou melhor, quando a sentença aparecercom uma modificação mais ou menos maior, mas em todocaso uma modificação da situação anterior. Esse critérioé muito ilustrativo ao nos mostrar sentenças que não mo-dificam a situação real, a situação existente entre o fato. eo direito, e que são sentenças puramente dec1aratórias. Taldistinção nos abre perspectivas, mas não tem o tempo ne-cessário para penetrar mais a fundo na questão. Limito-me a sugerir a idéia de que o professor Couture nos expli-ca este ponto.

Minha pergunta seguinte não é, na verdade uma per-gunta mas um pedido amigável que gostaria de fazer aoprofessor Couture, que habita um país que é, sem dúvida,

Sr. Cuevas - Como especialista em direito público,desejaria, por minha parte, sublinhar um ponto especial.

Quando nos foi dito que o procedimento se encontrana encruzilhada do direito público e do direito privado, osespecialista nos dão um verdadeiro regozijo, já que elescomeçam a afastar o procedimento do direito privado e aaproximá-Ia do direito público. Será suficiente um passomais adiante para que se situe sistematicamente o procedi-mento no campo do direito público. É sobre este primeiroponto que desejaria conhecer a opinião do professor

Couture.Existe também outra questão que me interessa. Quan-

do eu dava aulas na Universidade de Madri, tive de exami-nar profundamente a doutrina da instituição utilizando oslivres dos grandes mestres da ciência jurídica francesa. FoiHauriou um dos maiores mestres dessa escola que guiouem minha juventude minha formação de jurista.

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o professor Couture nos mostrou o erro que aindaexiste a respeito dos conceitos de relação e de situação ju-rídica, já que, ao final de contas, um conjunto de situaçõespode constituir uma relação. Existem múltiplas modalida-des de relações. Entre elas, há relações objetivas, como asituação, das quais o exemplo característico é o status. Exis-tem também relações subjetivas cujo exemplo característi-co é o contractus; mas um e outro são relações jurídicas:uma de caráter objetivo e outra de caráter subjetivo.

Não acredito que seja necessário dar minha opiniãosobre este tema, mas gostaria de saber qual é a opinião doprofessor Couture sobre esta distinção.

tancial e tão profunda do professor Couture me convenceum boa medida.

Acredito que seria necessário, contudo, fazer distin-ões a esse respeito.

Por um lado, o que é uma instituição?Sobre este ponto não é muito que se sabe, mas me

parece claro que, pelo menos na concepção dos juristas fran-es a idéia de instituição supõe algo de permanente, algo, . "" .. .

nssirn como um estatuto. O matrimômo e uma mstinnção ~constitui o exemplo que se nos dá com mais freqüência. E[ucstão de se perguntar, então: existe um estatuto que faça

do processo algo permanente?Nesse quadro que constitui o litígio há uma parte que

se reserva aos litigantes. Nós admitimos, na França, de modomuito firme, que o objeto do proce~so, a própria matéria doprocesso, pertence aos litigantes. E prov~vel que lhes pe~-tença demasiado, no sentido de que.P?r maIsAu~a vez se faci-Iitam simulações e se evita dar ao JUIZ referências que escla-receriam muitíssimo o processo. Mas na França nos encon-tramos muito vinculados à idéia de que a matéria do processopertence às partes. Mas o quadro no qual se desenv~lve oprocesso e as regras às quais os litigantes obedecem sao, emamplas medidas, estatutários. Pode-se falar em um estatutodos litigantes. O estatuto é efetivamente algo perm~n~nt~.Neste ponto estaria de acordo em vincular o processo a msn-tuição.

Mas o professor Couture se colocou em outro pontode vista. Examinou o tema do ponto de vista do juiz. Nelenos encontramos diante de outro problema que é função dajurisprudência. Este tema é inteiramente distinto; mas mes-mo assim eu estaria de acordo com o professor Couture.

O processo coloca em movimento o magistrado, quedeve dizer o direito. Sua função não é somente interpretar a

o Presidente, Sr. Solus - O professor MoreI não gos-taria de nos dizer qual é a concepção que na cátedra e em seuslivros defendeu sobre a natureza do vínculo jurídico a instân-cia, que é um ponto tratado na primeira parte da conferênciaque escutamos?

Sr. MoreI - Devo iniciar expressando o mesmo quedisse o Presidente da Corte de Cassação, Frémicourt. Fi-quei realmente fascinado pelo domínio com que o profes-sor Couture expôs esta matéria especialmente delicada. Con-fesso que quando conheci o cartaz que nos anunciava o temadesta conferência, despertou em mim um vivo conhecimentode curiosidade. Sustentei, por minha parte, que o processonão é um contrato nem um quase contrato, mas que ele criauma relação jurídica vínculo de direito entre as partes liti-gantes e vínculo de direito também entre elas e o juiz en-carregado do serviço público. Mas devo confessar diantede vocês que nunca havia pensado que se pudesse incluir oprocesso entre as instituições e concebê-Ia como uma ins-tituição. Devo reconhecer agora que a exposição tão subs-

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lei, mas também adaptar à lei e às regras de direito as ques-tões não previstas pelo legislador. Sobre este ponto, aceito afunção criadora da jurisprudência. Mas nos perguntamos: podeser uma instituição o processo na medida em que ele permiteao juiz exercer uma função criadora?

Nossa geração teve o grande privilégio, depois de tervisto nascer o automóvel e a aviação, de ver nascer e se for-mar uma jurisprudência. Faz trinta anos que se formou naFrança, graças à Corte de Cassação, uma jurisprudência so-bre a responsabilidade pelo fato das coisas. Essa jurispru-dência não está estabelecida ainda definitivamente. É certoque o processo foi, em certa medida, uma instituição queaté tem permitido ao juiz dizer o direito. Somente acreditoser necessário destacar que esta instituição está muito lon-ge de ser prefeita.

Quando procuramos na jurisprudência a responsabili-dade pelo fato das coisas à qual o professor Couture fezalusão, comprovamos numerosas divergências entre juízes.As decisões nos mostram as divagações com as quais a Cortede Cassação elaborou a jurisprudência. Então, dizemos quese o processo pode ser uma instituição, é uma máquina quefunciona moendo o grão, mas deixando de lado muito des-perdício.

Eis aqui, senhor Presidente, algumas reflexões que mesugeriu a exposição, realmente notável, do professor Couture.Não estou ainda totalmente convencido, mas me encontro nocaminho da fé.

o professor Morel, que expunha recentemente quaiseram as idéias que ele havia defendido em sua cátedra sobrea natureza do processo, dizia-nos que o vínculo que emanado litígio é legal. O litígio não é nem um contrat~ nem umquase-contrato; a lei obriga o demandante,. se quiser ob.terjustiça, dirigir-se ao juiz, que é quem ~ealI~a esse serviçopúblico; o demandado, por seu lado, esta obngado a r~spon-der a este chamdo, se é que não quer ser condenado a reve-lia. A noção de vínculo legal, parece-me, a mim também,inteiramente satisfatória.

E então nos perguntamos: é necessário falar em ins-tituição para se referir a este vínculo legal ou rela~ão jurí-dica? Quando se fala em instituição não se quer dIz~r ?quese estar na presença de um conjunto de r~gras le.g~I~. Seassim for tudo resulta ser instituição. A inamovibilidadcdos juízes é uma instituição; a execução p~o:isória é ,~ma .instituição. Sendo assim, tudo se pode definir como I.ns-tituições processuais", e é assim como é chamada habitu-

almente.Eis aqui, meu caro colega, um advogado do diabo que

surge ao seu lado e que hesita em esten.der até o processo anoção de instituição, contentand?-se sln:pl~s.mente com oconceito legal para explicar os vínculos jUndIcos. que ~ fa-zem nascer. A ação, como você disse tão bem o disse, e umverdadeiro substitutivo da vingança privada. O demandadoestá obrigado a se defender sob pena de se~ declarado à r~-velia; o juiz está compelido sob pena de delIto ~e denegaçaode justiça, ao pronunciar sua decisão. Tudo ISSOsurge deprescrições legais. É necessário, conseqüentemente, acres-centar o conceito de instituição?

Se você tivesse a bem, meu caro professor Couture,de responder a todos esses interrogantes, mais do queinterpelantes, a grande satisfação que tivemos de lhe escu-

o Presidente, Sr. Solus - Não existe entre vocês,senhores, algum antiinstitucionalista que nos faça entrar empolêmica diante da concepção institucional? Se não existir,o Presidente, que não tem o direito de tomar a palavra nodebate, pediria autorização para fazê-lo, com a promessa demanter uma neutralidade total.

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EDUARDO 1. COUTURE

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

tar teria ficado manifesta. Todas estas perguntas que se lheformularam provam até que ponto sua conferência interes-sou ao público.

Freqüentemente, o Presidente está obrigado a pergun-tar a um e outro dos concorrentes, com gestos ou com pala-vras, at~ ~~m o mais gracioso sorriso que possa agradar aos~u auditório, com o objetivo de conseguir algum comentá-no. Neste caso, minha situação foi de certo modo contrá-ria; senti-me na situação de ter de canalizar e conter os dis-tintos pedidos feitos.

Mas, agora, passo a comentar as observações do pro-fessor MoreI, a quem, anteriormente, devo prestar minhahomenagem de aluno. Em seus livros, tanto nos que escre-vera com Glasson e Tissier, como no Tratado que leva seunome, aprendi a doutrina francesa no campo do procedi-mento civil. A última edição de seu livro me foi obsequiadaontem por seu editor com raro privilégio. "Presenteio-lheeste livro" - disse-me M. Peyralade, da Editorial Sirey -"que ainda não conhece seu autor". Bem se compreende emque medida é uma honra para mim dialogar com um dosmestres da nossa geração.

É exata a observação do professor Morel de que existeum estatuto do litigante. Ao longo das conferências pronun-ciadas, me propus mostrar o processo do ponto de vista doautor, do demandado e do juiz. O Código de Procedimento é,em certa medida, o estatuto de todos eles. E se me permitir,diria que é ainda o estatuto dos terceiros diante do processo,por quanto naquele Código fixam-se os limites da coisa julgadamesmo diante do que não litigaram.

Mas não encontro uma relação necessária entre o esta-tuto dos litigantes e a idéia de instituição. Ao responder aoprofessor Solus, destacarei que o vocábulo "instituição" temduas acepções diferentes. O conceito de permanência a quealude o professor Morel não aparece nos autores que disse-ram que o processo é uma instituição. Sobre isso, remeto-me, pois, ao que terei de expor mais adiante.

Agora, quero destacar o valor das apreciações do pro-fessor Morel no que diz respeito ao valor criativo da juris-prudência. Escutei suas palavras com grande interesse, porquanto nele se proclama testemunha do advento de uma ju-risprudência criadora. O exemplo que ele cita, da responsa-bilidade pelo fato das coisas, foi uma das criaçõesjurisprudenciais que mais ressonância teve no mundo. O que

Sr. Couture - Proponho-me a responder, senhor Pre-sidente, alte~ando levemente a ordem das interpelações, nemsem antes dizer quão profunda emoção me invade neste in-tercâmbio de idéias em uma casa de estudos tão ilustre comoa Faculdade de Direito de Paris. Não devo esconder que osgenerosos aplausos desta tarde e que todos esses dias escu-taram e se sentiram satisfeitos em premiar meu trabalhorepresentam o maior agrado ao qual poderia aspirar em mi-nha carreira de professor.

Quero, em primeiro lugar, agradecer ao senhorFrémicourt, Presidente da Corte de Cassação, sua presen-ça neste ato e suas generosas palavras. Não quis ele mefazer interpelações. Não há de ser, sem dúvida, porque nãoas tenha, mas porque quis antepor sua cortesia às suas re-servas.

Mas devo responder dizendo que não sou insensí-vel a honra que me dispensou. Seu elogio acerca de meuidioma francês serve, além do mais, para atenuar meuremorso pelas reprovações que, sem dúvida, nestesmomentos, desde seu repouso eterno nesta terra daFrança, me estão fazendo meus antepassados.

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mas claro, reduzir a princípio seus incontáveis casos. Masnos países de codificação observa-se um movimento dedireção oposta. Nossos códigos de princípios vivificam-se cada dia mais com a riqueza inesgotável dos casos, dosprecedentes e da jurisprudência. Não há mais nos paísesde codificação um único advogado ou um único magistra-do que defende uma tese prescindindo de sua aplicaçãoanterior pela jurisprudência. Algumas vezes trata-se derebater a jurisprudência, outras vezes de se apoiar nela.Mas nosso direito de princípios se toma cada dia mais cla-ramente direito de casos. "-

Chegou, pois, o momento em que eu devolvo ao pro-fessor Morel sua valiosa adesão, com esta nova inquieta-ção, provocando-o para que, em suas fecundas meditações,reflita sobre este fenômeno e nos diga logo se o direito nãoestá procurando um termo médio entre os princípios e oscasos e buscar enriquecer o rigor lógico de alguns com ainesgotável riqueza dos outros.

Agora, devo responder ao professor Solus. Não foi ele,sem dúvida, o advogado do diabo, mas o crítico necessáriode todo pensamento humano. Este debate não é um torneiofloral, mas um diálogo de homens movidos por idênticosanseios de progresso das idéias. Vamos discutir, pois, emnome do progresso das idéias, com um dos mestres maisilustres desta casa.

Por instituição pode-se falar em dois sentidos. Emum sentido, que chamaremos comum, e em outro, que cha-maremos técnico. Em um sentido comum, instituição é si-nônimo de instituto, de coisa que foi instituída ou criada.Todas as coisas que foram, um dia, criadas, foram instituí-das e são, neste aspecto, instituições. Em um sentido técni-co, instituição é um fenômeno algo complexo, eu diria qua-se fotoplasmática. Renard dizia que ele via esse conceito na

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

nessa matéria fez a Corte de Cassação francesa somentepode se comparar com o que, em matéria deinconstitucionalidade das leis, a partir do caso "Madisonversus Marbury", fizera a Suprema Corte dos Estados Uni-dos. Por espírito de justiça teria de acrescentar também ajurisprudência do Conselho do Estado francês. O reconhe-cimento do professor MoreI é singularmente valioso, por-que não podemos nos esquecer de que foi a partir desta Fa-culdade que se ditou com mais persistência a doutrina docaráter declaratório da jurisprudência. O reconhecimentome compraz vivamente.

Levando adiante essa idéia, agora, quero destacar umpensamento que, por mais de uma vez, preocupou-me nestaordem de coisas e que aparece reiteradamente em algunstrabalhos dos últimos tempos. Até onde nos leva esta juris-prudência criativa de direito?

O mundo jurídico poderá presenciar, sem se preocu-par em fitar calmamente o panorama, como se está produ-zindo um movimento de direções opostas nos países decommon law e nos países do sistema de codificação. OsEstados Unidos da América do Norte intensificaram, nosúltimos tempos, a magna empresa denominadaRestatement of American Cammon Law. Está é uma ambi-ciosa iniciativa, já combinada em seu aspecto material depublicação, de reduzir a um número limitado de princípi-os os milhões de casos de sua jurisprudência. Uma ativi-dade análoga já havia sido realizada pelos órgãos oficiaisdo Governo, com a jurisprudência interpretativa da Cons-tituição, no volume intitulado The Constitution of theUnited States of America, edited by Government printingoffice, em 1938. Esses esforços nos revelam que o direitoanglo-saxão, isto é, os direitos dos casos, dos preceden-tes e da jurisprudência, busca de modo ainda rudimentar,

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bruma e que por momentos lhe dava vertigem. E foi jus-~am~n~e Renard que mais longamente escreveu sobre a:nSt1~U~çãona. escola francesa. Mas a escola francesa nãoe a urnca. A Idéia de instituição já se encontrava clara-ment,e delineada no pensamento dos escritores alemãesdo seculo XIX, dentre as quais desejo destacar Gíerke:entre os italia~os, no início deste século, dentre os quai~deve-se mencionar Santi Romano; e entre muitos escri-t~res anglo-americanos, dentre os quais não devo, paranao fazer preferências injustificadas, mencionar nenhum.T?dos eles trabalham em planos diferentes, dizem coisasdiferentes e dão às suas idéias múltiplas projeções. Al-guns fundamentam a instituição no direito natural e ou-tros prescindem dele; uns são apoiados pela sociologia eoutros. pela técnica. A linguagem da instituição é, agora,uma lmguagem Ad~Bab~l e, por acaso, nisso se apóiamalguns de seus exitos. E necessário, pois, procurar umaco~do sobre o que se entende por instituição no planoestntamente jurídico.

Acredito que sou fiel ao pensamento da escola fran-cesa, ~m cujo seio me encontro física e espiritualmentenestes .mst~ntes, se utilizo a acepção que se dá ao vocábulono mais dIfundido. dos vocabulários franceses: "Conjunto~e regras estabel~cIdas, quer pelo legislador, quer pelos par-tI~ulares, com VIsta à satisfação de interesses coletivos oupnvados".

_ As duas ~aracterísticas mais acentuadas da instituiçãosao, neste sentido, o caráter de permanência e continuida-de, de que. falava o professor Morel e sua inserção no cam-po .do. S?CIa~, da coordenação dos interesses comuns como~ mdIvIduaIs. O que um escritor denominava "a substitui-çao do eu pelo nós".

Quando os escritores que mencionaram o processocomo instituição trataram de fixar-lhe a esta um conteúdo,o fizeram neste sentido estrito e rigoroso.

A partir de Wach, no final do século passado, até Guaspu até Schõnke, em nossos dias, parte-se desta circunstân-

cia de que o processo se encontra situado em um ponto muitodistinto em que os interesses públicos e os privados inter-ferem constantemente. Pensa-se também no caráter unitá-rio e orgânico deste fenômeno que é o litígio e seu próprio.aráter permanente, e, em certa medida, necessário para aconvivência humana.

Se eu tivesse de escolher uma instituição prototípica,escolheria a família. É ela a instituição mais intimamenteprivada; mas é, ao mesmo tempo, a que penetra mais pro-fundamente no terreno do social.

Não acredito que a definição do processo como insti-tuição venha revolucionar a ciência do direito, nem que te-nha de substituir outras concepções hoje dominantes, emparticular pela que concebe o processo como um relaçãojurídica, à qual dei e continuo dando minha adesão. Esta idéianão constitui propriamente um doutrina, nem sequer umanova concepção. É apenas uma forma mais simples de seentender. Em um momento do direito em que se concebemcomo instituições, o trabalho, a empresa, o nome e, de acor-do com o que demonstrou Levellyin, um escritor norte-ame-ricano, até a Constituição, melhor podemos incorporar oprocesso a esta abundante e nem sempre bem-vinda famíliainstitucional, para nos servir de um vocábulo que acentueessas duas ou três características que anotamos.

Assim, deixo respondida a particularização do profes-sor Solus, nem sem antes reconhecer que a idéia de insti-tuição foi, como ele disse, tão desmesuradamente estendi-da que sua utilização nem sempre constitui uma garantia deprecisão e rigor científicos.

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EDUARDO J. COUTURE iNTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PROCESSO CIVIL

. Respondo agora ao professor Xirau, hoje ligado ao Ins-tituto de Di:eito Comparado da Faculdade de Paris, que on-te~ estava Junto a Lambert, ligado ao instituto de Lyon e hámais tempo esteve ligado à Universidade de Barcelona, deonde escreveu aquelas notas à tradução da La condena encostas de Chiovenda que deram a volta ao mundo.

Devo confessar, porque sempre é saudável confessaras culpas, que em 1933 escrevi um trabalho, denominadoLa acción declarativa de prescripción, que logo teve tan-~as alterações que, como acontece com estas antigas capasmcessantemente renovadas, já não se pode observar em suasúltimas aparições o tecido original. Pergunta-me Xirau selogo a~ós ter :scrito ~m livro sobre a ação de simples de~claraçao, eu nao considere que este mesmo livro tira auto-ridade de meu conceito sobre o caráter necessariamenteconstitutivo das sentenças judiciais.

. Respondo-lhe que não, pelas seguintes razões, para asqUaIS me SIrvo do próprio tema daquele livro.

Até os. ~ins do século passado, o possuidor que hou-vesse :dqU~Id? o domínio por prescrição, isto é, poru~ucapIa.o: nao tmha em nosso país amparo judicial. Ele ha-VIa adquirido o domínio com base no Código Civil. Mas seutítulo de propriedade, no melhor dos casos, consistia emu~ procedime~to de jurisdição voluntária sem efeito algum?I~~te de terceI:os. Foi um jurista o primeiro que lançou aidéia de realizar um processo controvertido, comemprazamento a todos os que se considerassem com direi-to e :o~ a nomeação de defensor de ofício. Mas foi a juris-prudência, que lentamente aperfeiçoou cada vez mais e maissuas soluções, que chegou a configurar este instituto dadec!aração judicial da prescrição aquisitiva. A sentença qued~cIde esses casos é, com efeito, como disse o professorXirau, meramente declaratória. Mas ninguém poderá negar

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que, logo após a sentença, tenha nascido para o possuidorum estado jurídico novo, que não tinha antes da decisão. Aincerteza foi substituída pela certeza. A propriedade, queestava desvalorizada por ausência de título, tornou-se valio-sa. A simples declaração carrega consigo uma nova eficáciado direito, não existente antes de decisão. O direito poderáser ele mesmo, mas sua extensão e eficácia são diferentes.

E se, por acaso, alguma dúvida restar sobre valorcriativo da jurisprudência, bastaria tomar em seu conjunteste próprio processo de declaração judicial do domíni .Ele foi integralmente elaborado pelos juízes. A doutrina c -ordenou as soluções judiciais e proporcionou-lhes uma fun-damentação mais moderna e penetrante. Mas a teoria foicriada, sustentada e consolidada pelos juízes. Meio séculdepois, em uma lei recente, o legislador reconheceu estarealidade e fixou o valor dessas decisões dispondo sua ins-crição no Registro de Imóveis. Até então, a declaração ddireito dos possuidores havia sido uma pura criaçã dosjuízes. Poderíamos, diante desta evidência, negar o valor cri-ativo da jurisprudência? Poderíamos, sem recorrer a umjogode palavras, negar o valor criativo das sentenças de simplesdeclaração?

Desde aquele trabalho de 1933 até hoje transcorre-ram-se dezesseis anos. "Esta idade é a velhice de um moço",diria Maurois. Permitam-me, senhores, que nas idéias ex-postas ao longo destas lições tenha prestado um testemu-nho de certas variações inevitáveis em meu pensamento, quedesde aqueles dias não conheceu o repouso para o seu tra-balho.

Quanto ao pedido que me formulou o professor Xiraude que exponha as linhas gerais do projeto de Código deProcedimento civil que redigi, devo pedir-lhe desculpas. Otempo passa incremente; resta-me ainda uma resposta, e este

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EDUARDO J. COUTURE

tema, que tanto amo, me reclamaria quase uma nova confe-rência. Por misericórdia aos meus ouvintes, devo abster-me de fazê-Io. E peço ao professor Xirau mil perdões.

Concluo respondendo ao professor Cuevas. Nós nosformamos na concepção que se denomina privatista do pro-cesso. Quando já estávamos em marcha, recebemos a con-cepção denominada publicista. Mas hoje, quando transcor-reu tempo suficiente para examinarmos estas duas tendên-cias com nosso próprios meios, sentimos a necessidade demedir o alcance de ambas.

É impossível esquecer-se, não obstante o canto dassereias publicistas, de que o processo é um instrumento dapaz individual. Em primeiro lugar, antes de mais nada, o pro-cesso foi feito para o indivíduo. Foi feito para afiançar seudireito e garantir sua paz. Sua projeção no direito público éuma conseqüência, porque o Estado foi feito para o homem,e não o homem para o Estado.

Esta idéia não constitui, em minha trajetória espiritu-al, uma reação contra as idéias publicistas, que eu mesmoem boa medida contribuí para aumentar.Trata-se tão-somentede uma espécie de lei e vasos comunicantes que, logo pordiversos desníveis, procura seu equilíbrio natural.

Quando disse que o processo se encontra na encruzi-lhada dos caminhos do direito público e do direito privado,o fiz consciente de tudo o que a jurisprudência supõe para odireito público e para a sociedade; mas também profunda-mente consciente do que significa para o indivíduo esteimenso tesouro de usa paz e de sua liberdade.

O Presidente, Sr. Solus - Somente o adiantado dahora pode fazer com que tenhamos de encerrar esta palestraque gostaríamos de ver prolongada. Novamente, mil agra-decimentos.

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