direito civil - introdução (2003) - francisco amaral

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Cap.2 – 39 Cap.3 -

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Introduo

Cap.2 39 Cap.3 - Introduo

Este livro traduz uma experincia de quase duas dcadas no campo do ensino e da investigao cientfica, nos cursos de graduao e de ps-graduao das Faculdades de Direito em que tenho tido a honra de lecionar.

Ao elabor-lo, sempre tive em mente produzir um instrumento de trabalho que fosse til ao estudo, pesquisa, ao raciocnio e reflexo jurdica dos estudantes, a quem o dedico e ofereo como reconhecimento ao incentivo que deles sempre recebi.

Justifica-se, assim, a minha preocupao em oferecer no s um texto claro e conciso, embora sem concesses superficialidade, como tambm atualizada informao jurisprudencial e bibliogrfica que permita conhecer os modos de realizao prtica do direito e o processo de renovao cientfica por que passa o direito civil contemporneo.

Sendo uma introduo ao estudo do direito civil, tem como objetivos bsicos: a) iniciar no estudo e na anlise das noes, categorias e princpios estruturais que formam a doutrina do direito civil; b) orientar no conhecimento da tcnica jurdica, isto , na arte de aplicar o direito civil aos problemas da vida real, procurando integrar o conhecimento cientfico com a prtica de nossos tribunais; c) contribuir para a formao jurdica do aluno, por meio de uma perspectiva interdisciplinar que possa facilitar a compreenso do fenmeno jurdico; d) suscitar uma reflexo terica sobre a necessidade de renovao do direito civil, acompanhando o processo de mudana por que passa atualmente o direito, por fora das transformaes econmicas e sociais que se processam na sociedade contempornea.

O direito civil o direito comum, o direito que se aplica generalidade das pessoas e das relaes jurdicas de natureza privada. Compreende uma parte de direitos pessoais, que protegem a pessoa humana e sua famlia, uma parte de direitos patrimoniais, pertinentes atividade econmica, propriedade dos bens e prestao de servios, e ainda uma terceira, de importncia crescente na teoria e na prtica, que da responsabilidade civil, cujas normas disciplinam a indenizao do dano alheio.

Configura-se, portanto, como a regulamentao jurdica da sociedade civil, assim entendido o universo social em que se desenvolvem as relaes de natureza familiar e econmica, com base na igualdade jurdica e no poder de autodeterminao das pessoas, com as limitaes decorrentes da atuao jurdica dos demais componentes sociais. O seu estudo cientfico, indispensvel atividade dos profissionais de direito, deve levar em conta, porm, as condies polticas, econmicas e sociais que determinaram ou influram no seu processo de formao histrica e cultural, assim como as funes que pode desempenhar na soluo dos problemas tpicos de uma sociedade em desenvolvimento, tendo presentes os valores e os princpios que lhe servem de fundamento e lhe conferem legitimidade.

E por isso conveniente, se no necessrio, articular a cincia do direito, e, particularmente, o direito civil, com as demais cincias sociais, de modo a compreender melhor o que realmente seja o direito civil. E, nesse processo interdisciplinar, ressalta a importncia da histria das instituies jurdicas, pois quem no tiver a percepo do sentido histrico do direito s pode ter dele uma viso esttica. O direito uma regulamentao da vida que arranca da realidade, inter-relacionando-se com outros sistemas de valores para a soluo dos conflitos de interesses.

O recurso s cincias sociais, por meio de um processo interdisciplinar, permite ainda inserir o direito civil, que um direito de formao histrica e jurisprudencial, em uma perspectiva global da cultura, superando-se, desse modo, o mito da neutralidade cientfica to caro ao positivismo e ao formalismo, tradicionalmente imperantes em nossos meios jurdicos. E tambm se aproxima o direito da realidade concreta, donde provm e qual se destina, como um dos mais credenciados instrumentos de transformao social de que o homem dispe.

Essa articulao do direito, enquanto cincia relativamente autnoma, com a histria e as demais cincias sociais (sociologia, economia, antropologia), leva tambm a urna percepo crtica do fenmeno jurdico, no sentido de o jurista considerar as condies polticas, econmicas e sociais que determinam ou condicionam as normas jurdicas, do que resulta poder verificar-se a sua adequao aos modelos da sociedade contempornea.

Coerentemente com tal concepo, conjugam-se neste livro: a) uma perspectiva cientfica, segundo a qual o direito civil se estuda por meio dos seus conceitos, categorias e estruturas fundamentais, assim como na realizao de suas normas; b) uma perspectiva sociolgica, que considera as funes do direito civil na sociedade contempornea e c) uma perspectiva filosfica, que identifica os valores e os princpios que o fundamentam e legitimam. Tais dimenses permitem ao estudioso aprender de modo abrangente e aprofundado a experincia jurdica no campo do direito civil, entendendo-se como tal o conjunto de manifestaes jurdicas com que se tm solucionado, no curso de sua existncia, os conflitos de interesses que a vida em sociedade faz nascer. No que, particularmente, diz respeito vertente cientfica, preocupa-se o autor em expor a matria que constitui a chamada teoria geral do direito civil, e que se concretiza nas normas e institutos da Parte Geral do Cdigo Civil, com a jurisprudncia que resulta de sua aplicao concreta aos casos da vida real.

No desenvolvimento dessa matria adotam-se orientaes metodolgicas consagradas, segundo as quais pode-se estudar o fenmeno jurdico sob a perspectiva da norma jurdica, da relao jurdica e da instituio jurdica, integrando-as, porm, na viso global e mais elevada, que a da experincia jurdica, expresso nacional do modus vivendi da nossa sociedade, no curso de sua existncia.

Para os que adotam a primeira perspectiva, o direito essencialmente norma, regra de comportamento criada pelo Estado para resolver conflitos de interesses. O direito vale porque imposto pelo Estado, considerado como sua fonte exclusiva. Teoria mais identificada com o direito pblico, tem conotao essencialmente poltica, devendo refutar-se no que tem de extremado quando considera o Estado como fonte exclusiva da criao jurdica, concepo monista h muito superada.

Para a teoria da relao jurdica, que preferencialmente se adota, embora consciente de suas limitaes crticas, o direito um sistema de relaes juridicamente disciplinadas e ordenadas pelas regras jurdicas. Seu conceito fundamental a relao intersubjetiva, que tc'in como idia-chave a autonomia privada, poder dos particulares dr criar relaes jurdicas e estabelecer-lhes o respectivo contedo (direitos e deveres).

A teoria da instituio outro endereo metodolgico de estudo do fenmeno jurdico, tambm afim ao direito pblico. Para seus defensores (Hauriou, Renard, Santi Romano, etc.), o direito , essencialmente, organizao, estrutura, enfim, instituio, que se define como grupo social, dotado de uma ordem jurdica e uma organizao especfica. A instituio nasce de uma idia que se realiza atravs de uma ordem e de uma organizao jurdica, tendo uma existncia objetiva e concreta, exterior e visvel1.

A concepo do direito como experincia jurdica, compreensiva das demais perspectivas, traduz a atividade humana em todos os sentidos e em todas as manifestaes que configuram o lado humano da histria, e representa o esforo mximo realizado pelo pensamento jurdico mais atual, para reunir e organizar o que se costuma chamar de vida do direito.2

Pode-se, assim dizer, que nenhuma dessas perspectivas anula as demais, sendo apropriado salientar que elas no se excluem, antes se completam, constituindo-se, porm, a norma de direito em condio necessria e suficiente para o relacionamento jurdico das pessoas e a organizao e disciplina da sociedade.

Tratando-se aqui de uma introduo ao direito civil, segue, entretanto, este livro, a perspectiva ainda dominante nessa matria, que a da relao jurdica, embora ciente das crticas atuais a tal conceito, que tem como referencial bsico a experincia privada, "na qual a vida jurdica se apresenta, principalmente, como um conjunto de relaes que a norma jurdica estabelece de modo tpico e comum, e das quais a autonomia dos particulares estabelece o contedo preceptivo".3

A ordem seguida na explanao da matria coerente com a perspectiva adotada. Tomando-se por base a relao jurdica, expem-se os respectivos aspectos doutrinrios e normativos que se

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1 Santi Romano. L'ordre Juridique (Paris, Dalloz, 1975) p. 26.

2 Ricardo Orestano. Inlroduzione alio studio dei diritto romano (Bologna, II Mulino, 1987) p. 360.

3 Sergio Costa. Prospective di Filosofia del direito. 2. ed. (Torino, Giappichclli, 1974 n. 50.

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sistematizam em torno dos seus elementos fundamentais, a saber: os sujeitos, o vnculo, o objeto e a sua causa determinante, os fatos jurdicos.

O primeiro captulo contm noes de sociologia e de filosofia do direito, dedicando-se ao conceito e s funes do direito em geral e, particularmente, s do direito civil, explicitando os seus valores fundamentais. O segundo captulo dedica-se teoria geral da norma jurdica de direito privado, expondo as diversas concepes tericas acerca de sua natureza, estrutura, aplicao e classificao. O terceiro captulo apresenta verdadeiramente o direito civil, estudando-o na sua gnese, caracterizao e processo evolutivo, indicando-se ainda o seu contedo, isto , as instituies fundamentais que sua disciplina contm. O captulo quarto dedica-se relao jurdica de direito privado, desenvolvendo-se como o estudo pormenorizado do seu conceito, fundamento doutrinrio, importncia atual, estrutura, contedo e espcies. Os captulos subseqentes dizem respeito aos elementos da relao, vale dizer, os sujeitos (as pessoas), o objeto (os bens), assim como os acontecimentos que os determinam (os fatos jurdicos), formulando com os princpios fundamentais que lhes so inerentes, uma teoria da personalidade, uma teoria do patrimnio e uma teoria do negcio jurdico. Com esse material doutrinrio, que deve alimentar-se permanentemente com a consulta ao cdigo e jurisprudncia, em um processo de enriquecimento recproco da teoria com a prtica jurdica pois o direito expresso inseparvel da vida social, a cuja organizao e disciplina se destina acredito poder colocar disposio dos meus alunos e dos estudiosos em geral um instrumento de trabalho para a pesquisa e a reflexo cientfica sobre o direito civil, que ainda se constitui na principal esfera de afirmao da personalidade humana e de realizao dos seus mais legtimos anseios de liberdade e de igualdade material.

CAPTULO IO Direito. Estrutura. Funes. Fundamento.

Sumrio: 1. O direito. Significados e perspectivas de estudo. 2. O direito. Gnese e estrutura. 3. As funes do direito. 4. O fundamento do direito. Os valores. 5. A justia. 6. A segurana. 7. O bem comum. 8. A liberdade. 9. A igualdade. 10. A teoria do direito civil. 11. O direito civil como norma jurdica. 12. O direito civil como relao jurdica. 13. O direito civil como instituio. 14. Apreciao crtica. 15. O direito como sistema. O sistema de direito civil. 16. O mtodo adotado. 17. O direito e a justia. Jusnaturalismo e positivismo jurdico. 18. A metodologia da realizao do direito. A deciso justa do caso concreto.

1. O direito. Significados e perspectivas de estudo.

A palavra direito pode ter vrios significados. um termo po-lissmico, donde a dificuldade de uma definio nica1.

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l Definir o direito no tarefa do jurista, mas do filsofo. Do primeiro espera-se que declare o que direito (quid iuris), do segundo, o que o direito (quid ius). Cfr. Alain Seriaux, in Droits, n2 10, p. 85. E til, porm, ao civilista, fornecer algumas noes bsicas e introdutrias, como o conceito de direito, pressuposto de sua exposio. Cfr. Miguel Reale, Lies Preliminares de Direito, p. 16, Paulo Dourado de Gusmo. Introduo ao Estudo do Direito, p. 47. O problema da dc-l inio do direito surge na cultura jurdica moderna, como resultado do processo de posilivao, c ligiulo il idia de que o direito pode ser estudado e classificado por meio de instrumentos anlogos aos que estudam e classificam os fenmenos naturais. Cfr. Giorgio Rebuffa, Dirino, in Digesto delle Discipline Privatistiche, p. l e segs.

2 Manuel Atienza, Juridicit, in Dictionnaire encyclopdique de thorie et de sociologie du droit, p. 322; Luiz Dicz Picazo, Experincias Jurdicas y Teoria dei Derecho, 1993, p. 6. Andr Jcan Arnaud / Maria Jos Farinas Dulce, Sistemas Jurdicos: Elementos para uma anlise sociolgica, p. 250.

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Na acepo mais comum e freqente, usa-se para designar o conjunto de prescries com que se disciplina e organiza a vida em sociedade, prescries essas que encontramos formuladas e cristalizadas em regras dotadas de juridicidade, isto , de carter jurdico, o que as diferencia das demais regras de comportamento social e lhes confere eficcia garantida pelo Estado. A juridicidade, conceito novo na cincia do direito, significando o atributo que diferencia a regra do direito das demais regras de comportamento social, serve de fronteira entre o jurdico e o no jurdico, caracterizando as normas que pertencem aos sistemas de direito, conjuntos de princpios e regras dotadas de legitimidade e obrigatoriedade2.

Essas regras ou normas esto nas leis, nos costumes, na jurisprudncia, nos princpios gerais do direito, constituindo o chamado direito objetivo, de ob + jectum, exterior ao sujeito, e positivo, no sentido de que posto na sociedade por uma vontade superior. E o ius in civitate positum. E neste sentido que se utiliza para designar o direito vigente, por exemplo, o direito brasileiro, o direito civil, o direito penal etc. Toma-se aqui o direito corno conjunto de regras jurdicas.

Em outra acepo, ligada primeira e dela dependente, direito designa um poder que o sujeito tem de agir e de exigir de outrem determinado comportamento. o chamado direito subjetivo, de sub + jectum, reconhecido e garantido pelo direito objetivo, como por exemplo, o direito de propriedade, o direito do consumidor, o direito do inquilino, do credor, do possuidor, etc.

Em perspectiva mais idealista e menos freqente, traduz um sentimento de justia. Quem diz "no direito o que fazem comigo", ou "isso no est direito", refere-se a um comportamento injusto. Neste caso, direito expresso de justia.

Em outro sentido, ainda, designa a cincia jurdica, o conjunto de conhecimentos tericos e prticos que tm como objeto o prprio direito como ordem social, na sua estrutura e funo, nos seus mtodos de elaborao e realizao e nos seus fundamentos, enfim, na fenomenologia da sua existncia, validade e eficcia3.

Essa polissemia, que produz uma certa ambigidade, dificultando uma definio precisa do direito, revela a complexidade do mundo jurdico, que plural e diverso, como se pode verificar no curso de sua histria, sendo exemplo, no ordenamento medieval, o direito dos feudos e das corporaes, e hoje em dia, a multiplicidade de fontes, de sistemas e de meios de soluo de conflitos (direito comunitrio, direitos especiais etc.).

Notas incontroversas do direito so o seu carter humano e social4 porque ele existe em razo dos homens que se relacionam entre si. Onde houver sociedade, l estar o direito (ubi societas, ibi ius] que, reciprocamente, tambm a pressupe (ubi ius, ibi societas), sendo inconcebvel uma regra jurdica que no a tenha como referncia. Regulando os comportamentos humanos e sociais, tambm modelo de organizao social que se formaliza e estrutura segundo determinados critrios, os chamados valores, dos quais o mais importante , para ns, a justia. A par da humanidade e da socialidade, uma outra caracterstica a sua normatividade, isto , o direito como regra ou norma5 dotada de juridicidade, prpria da concepo normativista que domina a teoria jurdica, e orienta o raciocnio dos juristas que buscam solues para os conflitos de

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3 Reale, op. cit., p. 61/64, Simone Goyard Fabre, Ls grandes questions de Ia phlosophie du droit, p. 9. Maria Helena Diniz, A cincia jurdica, p. l e segs.

4 Digesto, 1.5.2. "... hominum causa omne ius constitutum sit, ..."

5 ngelo Falzea, Introduzione alie scienze giuridiche, p. 16. A opinio amplamente dominante na doutrina a da norma como sinnimo de regra. Cf. Reale, op. cit., p. 65/67; Mario Jori, Norme, e Jerzy Wroblewski, Rgle, in Dictionnaire encyclopdique de thorie et de sociologie du droit, p. 399 e 520; Ricardo Guastini, Norma giuridica, in Digesto delle Discipline Privatistiche, XII, p. 155. Norberto Bobbio, Norma giuridica, in Novssimo digesto italiano, XI, p. 330 e segs.; Franco Modugno, Norma giuridica. Teoria generale, in Enciclopdia dei diritto, XXVIII, p. 238; Jacques Guestin et Giles Goubeaux, Trait de Droit Civil. Introduction Generale, p. 5, nota 7, onde se reafirma que norma e regra usam-se como sinnimos, embora possa reconhecer-se na regra um carter mais geral e abstrato, e na norma uma dimenso mais individual e concreta. Cfr. ainda, Jean Franois Perrin, Rgle, in Archives de Philosophie du Droit, tome 35, p.245, e Karl Larenz, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 1991, p.297 e segs. (h traduo portuguesa de Jos Lamego, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1991), o lvaro D'Ors. Una inlroduccin ai estdio dei de.recho, p. 24.

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interesses, e constrem, com o seu trabalho, a chamada experincia jurdica de um povo.6 O direito apresenta-se, ento, como um ordenamento jurdico, um conjunto de normas que rege uma comunidade7 impondo ou oferecendo modelos de comportamento.

Se a polissemia do termo torna difcil uma definio nica do direito, pode-se, todavia, tentar compreend-lo no processo de sua formao histrica.

O direito, particularmente o direito civil, vem se formando ao longo dos sculos como inerente vida e cultura dos povos, tendo como sentido e razo de ser a soluo de conflitos, do que resulta o carter de sua problematicidade, vale dizer, a sua funo de pensamento chamado a resolver questes jurdicas concretas.8 um produto histrico, que se forma ao longo dos tempos, corno cultura e como processo de soluo de controvrsias, que vai da previso dos conflitos, pela tipicidade estabelecida nas regras, at chegar a uma institucionalizao dos rgos e dos critrios de deciso, critrios esses ditados pela tica da comunidade a que se destina. Como cultura, exprime valores espirituais da sociedade humana, sendo por isso, tambm, fenmeno cultural. Como processo de soluo de conflitos, uma tcnica a servio de uma tica.

Para a concepo normativista (o direito essencialmente como norma), surgem vrias perspectivas de estudo. Tem-se, em primeiro lugar, a perspectiva cientfica, a da cincia do direito, "conjunto de conhecimentos ordenados segundo princpios" e com mtodo prprio. Ocupa-se da estrutura do direito, vale dizer, de suas normas, institutos, conceitos e categorias, material com que trabalha a doutrina jurdica no processo de anlise, interpretao e aplicao das regras. Estuda o direito que , o direito positivo. Em segundo lugar,

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6 Reale. O Direito como Experincia, p. XXXII, e segs; Diez-Picazo, op. cit. p. 10; Ricardo Orestano, Introduzione alio studio dei diritto romano, p.357.

7 A crtica que se faz hoje a essa concepo, o direito como norma, no sentido de que nos revela algo j pr-estabelecido, as regras jurdicas, e posto como ponto de partida para a tcnica de aplicao do direito. A essa concepo contrape-se a idia de que o direito mais do que normas, uma prtica social, um processo permanente de construo, sob a influncia de consideraes tico-jurdicas. Cfr. Ronald Dworkin, Talking Rights Seriously London, 1977; Francisco Viola, // diritto come pratica sociale, 1990, p. 159.

8 Antnio Castanheira Neves, Metodologia Jurdica. Problemas fundamentais, p. 71.

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a perspectiva sociolgica, da sociologia do direito, que estuda a relao direito-sociedade, preocupando-se com a eficcia e as funes das normas jurdicas, mais propriamente, com a anlise sociolgica dos sistemas jurdicos, o que lhe permite apreciar o sistema em sua totalidade e em relao com o seu contexto.9 Interessa-se pelo que o direito deve ser. Em terceiro lugar, a perspectiva filosfica, que se ocupa dos fundamentos da ordem jurdica, vale dizer, dos valores que lhe do sustentao e legitimidade, e dos quais, os mais importantes so a justia, a segurana e o bem comum. Estuda o fundamento do direito, dando nfase justia como especial valor a realizar. E ainda a perspectiva histrica, que permite conhecer a gnese e evoluo das instituies jurdicas, matria objeto da histria do direito. Estuda como o direito se formou, ao longo dos sculos.

Temos ainda, diretamente relacionada com a cincia e a filosofia do direito, a perspectiva metodolgica, com importncia crescente no estudo dos processos de aplicao e de realizao do direito. A metodologia jurdica, no como disciplina autnoma,10 mas como proposta de reflexo filosfica sobre o processo de realizao do direito, no procura somente definir tcnicas ou estabelecer regras instrumentais para aplic-lo, mas tambm refletir sobre ele de modo crtico, vendo-o mais como prtica social e prudncia! do que como conjunto de regras vigentes em determinada sociedade. Para seus cultores, o direito um pensamento que se destina a resolver problemas prticos, configurando-se mais como "cincia de deciso" do que como "cincia do conhecimento". Estuda como o direito se realiza.

De tudo isso conclui-se que o direito, na ambigidade e na polissemia do seu termo, e na sua prpria natureza histrico-cultural revela, mais do que uma configurao tcnico-cientfica, uma natureza problemtica e uma funo prtica que exigem do jurista no s o conhecimento mas, principalmente, a compreenso do seu sentido e significado, e da sua importncia como instrumento de organizao e disciplina social e como expresso da cultura e da experincia jurdica de um povo. O direito no , assim, um dado, mas um processo que permite reunir as suas diversas perspectivas

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9 Andr Jean Arnaud / Maria Jos Farinas Dulce, op. cit., p. 26. Elias Diaz, Sociologia y Filosofia dei Der acho, p. 60.

10 Nelson Saldanha, Dt.i teologia metodologia, p. 104.

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em uma construo permanente, in fieri, das normas jurdicas, superando-se a distino entre o ser e o dever ser.

So essas as perspectivas que hoje mais interessam e que, neste livro, se pretende observar, como introduo ao estudo do direito civil, na sua formulao mais terica e geral, na compreenso de seus princpios e valores, no conhecimento das suas estruturas e de suas funes, e no processo de sua realizao prtica.

2. O direito. Gnese e estrutura.

Ao longo do seu processo de evoluo histrica, o direito vem se apresentando como um conjunto de normas que tm por objetivo a disciplina e a organizao da vida em sociedade, resolvendo os conflitos de interesses e promovendo a justia. Justifica-se, assim, o predomnio da concepo normativa do direito.

A compreenso do que realmente seja o fenmeno jurdico no deve partir da viso do direito como simples conjunto de normas ou como determinado procedimento de soluo de conflitos de interesses, mas da certeza de ser ele produto de uma realidade complexa e dinmica, que a vida em sociedade, com seus problemas e controvrsias. Disso lhe advm a j referida natureza problemtica e o reconhecimento de sua funo prtica.

Como produto histrico e, conseqentemente, cultural, o direito resulta de um processo de institucionalizao de prticas e de comportamentos tpicos, de rgos e de critrios de deciso, que a sociedade e o Estado estabelecem, para o fim de dirimirem conflitos de interesses, previsveis e tipificados. Como diz Reale11, "o direito surge quando os jurisconsultos romanos, com sabedoria emprica, quase intuitiva, vislumbraram na sociedade "tipos de conduta" e criaram, como viso antecipada dos comportamentos provveis, os estupendos modelos jurdicos do direito romano".

Esses modelos jurdicos, que funcionam como "diretivas para a ao", fins ou valores a realizar, formalizam-se em estruturas jurdicas, compreendendo as normas, os institutos, as instituies, os conceitos, a.s categorias, enfim, todos os elementos que, de natureza essencialmente tcnica e formal, ajudam a construir o sistema de direito.

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11 Reale, Lifis Preliminares de. Diniito, p. 185.

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As normas jurdicas so pblicas (quando contidas nas leis, sentenas, atos administrativos) e privadas (quando nos contratos). Os institutos so conjuntos de normas que disciplinam uma determinada relao jurdica (exemplo, o casamento, a propriedade, a filiao, o contrato etc.). As instituies, termo de natureza sociolgica, so grupos sociais dotados de uma determinada ordem e uma organizao interna, que se criam e se justificam por um fim comum, como a famlia, a empresa, o Estado. Instituto uma construo tcnico-jurdica, enquanto instituio um grupo social, dotado de ordem e organizao.

Conceitos e categorias so instrumentos que o jurista utiliza no seu trabalho de elaborao jurdica, isto , na sua atividade de criao de normas e de elaborao dos sistemas e da prpria terminologia da cincia do direito. Os conceitos so representaes mentais de objetos, indivduos ou fenmenos. Sua funo a de descrever, classificar ou organizar os dados da experincia concreta, no caso, a jurdica, permitindo estabelecer conexes de natureza lgica, e facilitando o raciocnio jurdico. Produto de uma atividade de abstrao, o que, por vezes, os leva a desligarem-se demasiadamente da realidade, so elementos fundamentais do sistema e da cincia do direito. Sua utilidade est, no fato de permitir, no s o conhecimento terico, indispensvel reflexo crtica, como tambm a subsuno de todos "os objetos que apresentam as mesmas notas compreendidas no conceito", com a formulao de regras para tudo o que se compreender no seu mbito de aplicao. o que se verifica, por exemplo, com os conceitos fundamentais de domiclio (C.C. art. 70), de empresrio (C.C. art. 966), de pessoa, bem, relao jurdica, capacidade, contrato, direito real, direito de crdito etc., que, inseridos no sistema jurdico (na teoria ou na parte geral do Cdigo Civil), permitem estabelecer a disciplina bsica que ir reger todos os casos que venham a subsumir-se nas hipteses conceitualmente estabelecidas, evitando repeties suprfluas12.

Distinguem-se, nos conceitos, a compreenso e a extenso. Compreenso o conjunto de notas ou caractersticas que o conceito encerra. Por exemplo, o conceito de cidado brasileiro, compreende as caractersticas de homem, de nacionalidade brasileira, e titular de direitos de cidadania. Extenso o conjunto de objetos ou

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12 Laurenz, op. dl. p. 536.

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indivduos que o conceito abarca. Por exemplo, no Cdigo Civil, art. l2, o conceito de pessoa abrange todos os indivduos da espcie

humana.

Entre os conceitos estabelecem-se relaes de coordenao e de subordinao. Nestas, submetem-se os conceitos que se pem sob outros mais amplos (os subordinantes). Na subordinao h que distinguir o gnero, da espcie e do indivduo. Gnero conceito subordinante que compreende conceitos subordinados. Indica um conjunto de espcies de caractersticas comuns. Espcie conceito subordinado de menor extenso que o gnero. Significa um conjunto de indivduos, da mesma natureza. Indivduo o ente singular que pertence, como unidade, a uma espcie. Estas noes tm utilidade nas classificaes jurdicas. Nos bens jurdicos, por exemplo, bem gnero, mvel espcie, e livro indivduo. Nos contratos, a compra e venda um ato que se subordina s regras da espcie contrato (C.C. art. 488) que, por sua vez, se subordina s do gnero negcio

jurdico.

Os gneros supremos, isto , os conceitos mais universais, chamam-se categorias, "quadros em que se agrupam, por afinidade, os elementos da vida jurdica"13 e fora dos quais no se reconhece eficcia jurdica. So conceitos universais, por exemplo, os de direito subjetivo, de direito pessoal, de direito real, de dever, de relao jurdica, de sano, de pessoa etc. Aplicao prtica disso est por exemplo no fato de que, tendo os direitos do consumidor uma disciplina especfica, basta qualificar um direito como tal, para que lhe seja aplicado o respectivo regime.

Sistematizando-se tais modelos ou estruturas, chega-se na matria civil, construo do Cdigo Civil, conjunto unitrio e logicamente ordenado das relaes jurdicas de direito privado. O Cdigo Civil Brasileiro uma lei que disciplina as relaes entre os particulares, contendo 2.046 preceitos que se aglutinam em cinco institutos fundamentais: a pessoa ou sujeito de direito, a famlia, a propriedade, o contrato e a sucesso. Por influncia de Teixeira de Freitas, primeiro, e depois do direito alemo, o Cdigo divide-se em uma Parte Geral, que rene os princpios e regras aplicveis generalidade das pessoas, bens e fatos jurdicos, e uma Parte Especial, que compreende o direito de obrigaes, o direito de empresa, o direito das coisas, o direito de famlia e o direito das sucesses.

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13 Orlando Cioiws, Introdutlo no tlin-ito civil, p.9.

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, assim o Cdigo Civil, um conjunto formado de subconjuntos, ou se quisermos, um sistema composto de sub-sistemas, cada qual dedicado a uma das matrias ou institutos tradicionais do direito civil. As regras tm lugar prprio nesse sistema. Encontr-las determinar-lhe a natureza jurdica, tarefa preliminar da tcnica de realizao do direito.

3. As funes do direito.

Uma outra perspectiva de estudo do fenmeno jurdico, de particular interesse para o civilista atento s transformaes da ordem jurdica privada, o das funes que o direito pode ter na sociedade contempornea, problema terico da sociologia do direito. Nesta perspectiva enfatiza-se a dimenso social do direito, que focaliza a relao entre ele e a sociedade, suas recprocas influncias e modificaes.

Considera-se, aqui, funo, a tarefa, ou conjunto de tarefas que o direito desempenha, ou pode desempenhar, na sociedade humana14.

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14 Andr-Jean Arnaud/Maria Jos Farinas Dulce, Sistemas Jurdicos: Elementos para un anlisis sociolgico, p. 133 e segs. A idia de funo exprime o conjunto de tarefas que se espera realizar com o direito, de acordo com os objetivos e propsitos de ao dos sujeitos jurdicos, que formulam, aplicam ou se utilizam do direito na sua experincia de vida em sociedade. Nesse sentido, as principais funes do direito seriam as de resolver conflitos, as de regulamentar e orientar a vida em sociedade e as de legitimar o poder poltico e jurdico. Quanto primeira, o direito atua para solucionar o conflito de interesses ou restaurar o estado anterior. O direito seria, ento, um instrumento de integrao e de equilbrio, oferecendo ou impondo regras de comportamento para a deciso que o caso sugere. O exerccio dessa funo no levaria, porm, ao desaparecimento dos conflitos, que so inerentes sociedade. O direito no uma ordem de paz, mas de conflitos. Desaparecidos estes, desnecessrio seria o direito (cf. no direito brasileiro a lei 9.307, de 23.9.96, lei da arbitragem). O direito serve tambm para orientar o comportamento social, visando evitar os conflitos. O carter persuasivo das normas jurdicas leva-nos a agir no sentido dos esquemas ou modelos normativos do sistema jurdico. O direito visto desse modo surge como organizador da vida social e como instrumento de preveno de conflitos. O direito tem ainda a funo de organizar o poder da autoridade que decide os conflitos, legitimando os rgos e as pessoas i. um poder de deciso o estabelecendo normas de competncia e de procedimento. Por exemplo, o juiz, o rbitro, os pais, os diretores de pessoas jurdicas so legitimados a agir na forma de ordem jurdica. Outras FunOes que se atribuem ao direito como a distributiva e a promocional, so tipos que surgiram com o advento do Estado social. Funo distributiva aquela por meio da qual se atribuem os recursos econmicos e no econmicos aos membros do grupo social. Funo promocional aquela que visa encorajar determinados comportamentos socialmente desejados. Realiza-se por meio de tcnicas de incentivo, e prpria do Estado ps-liberal, assistencial. Cfr. Bobbio. Dalla strutura alia funzione. P. 103 e p. 26. Superado o Estado Social, reduziu-se a importncia da funo promocional.

15 Miguel Reale, O Direito como Experincia, p. 25 e segs., Antonio-Enrique Prez Luno, Teoria dei Derecho. Una concepcin de Ia experincia jurdica, p. 42; Trcio Sampaio Ferraz Jr, Introduo ao Estudo do Direito, p. 88; Castanheira Neves, Fontes do direito, in Polis-Enciclopdia Verbo da Sociedade e do Estado, II, p. 1.546; Luiz Diez Picazo, Experincias Jurdicas y Teoria dei Derecho, Barcelona, p. 6 e segs. Eurico Opocher, Esperienza giuridica, in Enciclopdia dei diritto, XV, p. 735 e segs.; Giusepe Capograssi, II problema delia scienza dei diritto, p. 25 c segs. Simone Goyard-l-abrc i-t Reno Sve, Ls grandes questions de Ia philosophie du droit, p. 23 i% sc^s.; Micliel Miaillc, Urna Introduo Crtica exteriorize.

A manifestao da vontade todo comportamento, ativo oi passivo, que permite concluir pela existncia dessa vontade.3 Usa-S' em doutrina, para exprimir tal manifestao, o termo declarao d vontade, e sua importncia tanta que, sem ela, o ato ou negci' simplesmente inexiste. A declarao de vontade , assim, o instru mento da manifestao de vontade.4 Consiste na expresso, O' comunicao, dirigida a publicar a vontade preexistente. Para Hn neccerus, "uma exteriorizao da vontade privada (no as declam es de vontade das autoridades pblicas, como a sentena) dirigid a produzir uma conseqncia jurdica".3

O princpio da segurana jurdica torna conveniente que, nest matria, se adote um critrio objetivo, vale dizer, o significado qu a declarao pode ter para terceiros, especialmente aqueles a quer se destine.

Na declarao de vontade pode-se distinguir a forma, ou decl; rao propriamente dita, que o aspecto exterior do comportament do agente, e o contedo ou a vontade, que o elemento intern que a declarao revela. A declarao propriamente dita um con portamento exterior do agente que revela, de acordo com o coi vencionado pelas partes, o estabelecido pela lei, ou pelos usos costumes, a vontade do negcio jurdico. Tal comportamento extern faz-se, geralmente, por palavras, escritas ou faladas, mas tambi por outros sinais como movimentos de cabea ou de mos etc., o at o prprio silncio.6 O contedo dessa declarao, a vontade propriamente dita, como elemento interno, compreende uma vontade de agir, uma vontade de declarar, e uma inteno de obter resultado econmico, juridicamente protegido. essa inteno de resultado que caracteriza a chamada vontade negociai, vontade que se dirige produo de determinado efeito que o direito reconhece e protege. E ela, em ltima anlise, que distingue o negcio jurdico do ato e do fato jurdico,7 caracterizando-se como verdadeiro preceito normativo, expresso da automomia privada. Mas a declarao de vontade pode ter por objetivo apenas a comunicao da vontade interna do agente, com um valor apenas expositivo, como ocorre quando o agente se manifesta para dar cincia de sua vontade (proposta e aceitao de um contrato, resciso), como tambm pode apenas avisar a realizao imediata da vontade, sem fins de comunicao, somente de atuao (apropriao, renncia, revogao do testamento etc.)8

A declarao de vontade tem assim uma dupla funo. Por um lado, a "realizao de vontade do agente para a produo de efeitos jurdicos", por outro, "manifestao de vontade dirigida ao conhecimento dos outros, como ato de comunicao social",9 dando origem s chamadas declaraes de vontade e declaraes de cincia que correspondem aos chamados negcios declarativos e negcios de atuao}0

O comportamento do agente que traduz a declarao de vontade ativo, se da parte do declarante, e passivo, se da parte do destinatrio, surgindo, neste particular, a questo do silncio como declarao de vontade.

No que diz respeito ao comportamento ativo, a manifestao de vontade pode ser expressa, tcita e presumida. Expressa a que se faz por meio da linguagem, da escrita, de sinais ou gestos, permitindo o conhecimento imediato da vontade declarada, como ocorre, por exemplo, na realizao de contratos verbais ou escritos, na emisso de ttulos de crdito, no envio de cartas, telegramas, telex, e-mail, etc. Alm da linguagem escrita a mais conveniente pela segurana que oferece ou falada, outros meios podem utilizar-se, como a gesticulao dos surdos-mudos, ou os gestos consagrados pelo uso, c onio ocorre nas Bolsas de Valores ou nos leiles, ou ainda, a simples compra de um bilhete para o transporte rodovirio, ou o ato tlr pagar, em silncio, uma publicao na banca de jornais etc. l V acordo com Savigny, desde a Idade Mdia que a declarao por escrito se faz assinando-se o nome ao p da folha redigida pelas partes ou por terceiros, significando a assinatura que o ato expressa o pensamento e a vontade do signatrio.11 Os sinais ou gestos devem fazer referncia a determinados objetos, no sendo ambguos.1"

Casos h, todavia, em que a lei exige que a declarao srja expressa, como nas obrigaes solidrias (CC. art. 265), na stib-ro-gao convencional (art. 347) etc.

Tcita a que se deduz do comportamento do agente (fada concludentia) ainda que a vontade no seja revelada pelo meio adequado. Verifica-se, por exemplo, nos casos da aceitao da herana, que se deduz da prtica de atos compatveis somente com a condio de herdeiro (CC. art. 1.805), nas hipteses de aquisio de propriedade mvel pela ocupao (CC. art. 1.263) ou ainda, a exposio dos objetos nas vitrines ou nas prateleiras dos estabelecimentos comerciais, o estacionamento de txis nos respectivos pontos, a instalao de aparelhos automticos em locais pblicos, tudo isso a caracterizar uma declarao tcita de oferta.

Presumida a declarao de vontade que, no sendo expressa, a lei deduz do comportamento do agente, como acontece, por exemplo, com as presunes de pagamento contidas no CC. arts. 322, 323 e 324, ou com a presuno de remisso do art. 387, ou de aceitao de herana do art. 1.807, ou de prorrogao da locao nos prdios urbanos quando o contrato se extingue e o locador nada faz para reaver o imvel (Lei 8.245, de 18.10.91, art. 46, par. l"). Enquanto na declarao tcita o destinatrio que a deduz do comportamento do declarante, na declarao presumida a lei que a estabelece, a deduz ou a presume, tendo em vista que a conduta do sujeito corresponde vontade presumida.14 Disso resulta que, provado no ter tido o agente a vontade que a lei presume, no se produziro os efeitos previstos, vale dizer, a declarao presumida admite prova em contrrio. Todavia, se a declarao presumida produzir os efeitos previstos, sua eficcia e% lege, no e% voluntate, donde no ser negcio jurdico, mas simples ato jurdico.15

As declaraes de vontade dizem-se receptcias quando se dirigem a destinatrios especiais, que dela devem ter cincia sob pena de ineficcia do ato. As declaraes receptcias precisam, portanto, de uma determinada direo e de uma recepo para terem eficcia.16 So exemplos a proposta de contrato, a sua aceitao, a revogao do mandato, a despedida do empregado etc, que precisam ser recebidas pelos respectivos destinatrios. As declaraes no-recep-tcias so as que no se dirigem a ningum, especificamente, produzindo efeitos independentemente da recepo, como ocorre com a promessa de recompensa, o testamento e sua revogao, a ocupao de coisa mvel, a aceitao da herana etc. Poder-se-ia dizer, sinte-ticamente, que as declaraes receptcias so endereadas, emitidas para que cheguem ao destinatrio, enquanto as no-receptcias so no-endereadas, no se dirigem a ningum especificamente.17

A declarao de vontade direta, quando feita sem a intermediao de qualquer pessoa ou instrumento, e indireta quando o declarante se utiliza de outras pessoas (como o nncio) ou meios, como cartas, telegramas, telex etc., para que a declarao chegue ao respectivo destinatrio. Essa distino importante no caso de a declarao indireta ser transmitida de modo incorreto, sendo at possvel um engano proposital. O Cdigo Civil alemo ( 120), o Cdigo Civil italiano (art. 1.433) e o Cdigo Civil portugus (art. 247-] estabelecem que transmisso inexata se aplicam as regras do erro. No mesmo sentido, dispe o Cdigo Civil brasileiro que a transmisso errnea da vontade por meios interpostos anulvel nos mesmos casos em que o a declarao direta (art. 141). Por outro lado, se o responsvel pela divergncia for o declarante, responder por perdas e danos.

Pode o comportamento do destinatrio ser passivo. Nesse caso, teremos o problema do silncio como manifestao de vontade (CC, art.lll).

3. Reserva Mental

A vontade elemento to importante no comportamento tio sujeito jurdico que o direito impe, em casos determinados, a forma para a sua exteriorizao. Assim, as declaraes classificam-se em solenes e no solenes, conforme devam, ou no, observar determinada forma.Temos tambm as declaraes receptcias e as no receptt ias conforme se destinem a produzir, ou no, efeitos jurdicos na eslrra de terceiro. O que o sistema jurdico exige que haja perfeita coincidncia entre a vontade e sua declarao, sob pena de invalidade do ato. Essa natural relao pode, eventualmente, alterar-se, por fora de fatores externos que viciem a vontade ou a declarao, instaurando a divergncia onde deveria existir perfeita coincidncia. Por exemplo, no lanamento de um livro, o seu autor, para garantir uma venda maior, declara que a renda editorial se destina a determinada campanha filantrpica, ou ainda, no seu testamento, o tes-tador, para prejudicar herdeiro, dispe em favor de falso devedor18. Neste dois exemplos se verifica que o declarante manifesta algo diverso que realmente deseja, com o fim de enganar o destinatrio de sua declarao. A esta atitude psicolgica chama-se, no direito, reserva mental.

Do problema da relevncia da vontade, no caso de divergncia com a sua correspondente declarao, ocupou-se a doutrina do sculo XIX, primeiro a alem, depois a italiana19. Os casos de divergncia mais freqentes dividiam-se em voluntrios e involuntrios. Seriam voluntrios, os casos de declaraes no srias, feitas por brincadeira (causa ludendi), por exemplo, a promessa de pagamento em dia inexistente no calendrio (30 de fevereiro),ou feitas com fins didticos (o professor que, para dar exemplo de negcio jurdico, Ia/, uma declarao sem pretender vincular-se a algum) ou de representao teatral (o ator que, fiel ao seu personagem, emite declarao de vontade que, fora de cena, seria juridicamente vincu-lante), e ainda os casos de simulao e os de reserva mental. Casos

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1 Tais elementos essenciais so gerais no sentido de que integram qualquer espcie de ato ou negcio. Mas h elementos essenciais particulares no sentido de que so prprios de determinadas espcies, por exemplo, o preo no contrato de compra e venda, o instrumento de prprio punho no testamento particular etc.

2 Luigi Cariota-Ferrara. // negozio giuridico nel diritto privato italiano, p. 116.

3 Jacques Ghestin e Gilles Goubeaux. Trait de droit civil. La fonnalion i, contra, p. 349. V. tambm Alfred Rieg, L contra dans ls doctrines allemand. du X/X sicle, in Archives de philosophie du droit, XIII, p.31.

4 Joo Castro Mendes. Direito Civil, Teoria Geral, vol. III, p. 143.

5 Ludwig Enneccerus e Hans Carl Nipperdey. Tratado de Derecho Civil, II, 65. Cf. Werner Flume, op. cit. par. 4.

6 V. adiante item n- 3.

7 Domenico Barbero. Sistema dei diritto privato italiano, I, p. 250.

8 Heinrich Lehmann. Tratado de Derecho Civil, p. 219.

9 Karl Larenz. Allgemeiner Teil ds Brgrllichen Rechts, p. 291.

10 Francesco Santoro-Passarelli. Dottrine generali dei diritto civile, p. 136.

11 Santos Cifuentes. Negocio Jurdico, p. 65.

12 Andreas Von Thur. Teoria General dei Derecho Civil Alemn. vol. 2, p. 61, vol. l, p. 75.

13 Ghestin, op. cit.; p. 351.

14 Manuel Albaladejo. El Negocio Jurdico, p. 94.

15 Idem, ibidem.

16 Lehmann, op. cit, p. 224.

17 Santoro-Passarelli, op. cit., p. 139; Albaladejo, op. cit., p. 85.

18 Moacyr de Oliveira. Reserva Mental, in Enciclopdia Saraiva do Direito, vol.65, So Paulo,1977, p. 266.

19 Cfr. por todos Michele Giorgianni. Volont (dir.pri.), in Enciclopdia dei diritto, XLVI, Milano,Giuffr Editore, 1993, p. 1059.

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de divergncia involuntria seriam os decorrentes de violncia fsica (vis absoluta) e de certas formas de erro (erro obstculo)20.

A evoluo doutrinria levou, porm, a um redimensionamento do tema, para considerar que os nicos casos relevantes de divergncia para o direito seriam o erro obstculo (v. captulo XV) e a reserva mental.

H reserva mental quando o declarante manifesta uma vontade que no corresponde sua vontade real, com o fim de enganar o declaratrio21. A reserva mental , assim, um estado psicolgico no qual o declarante se prope a no querer aquilo que todavia declara. Quer a declarao, mas no quer o seu contedo jurdico22. Declara-se intencionalmente coisa diversa daquilo que efetivamente se quer, sem qualquer combinao ou entendimento com a outra parte, e sem que esta perceba a divergncia. Por isso mesmo, como a pessoa destinatria da declarao no se apercebe da divergncia, o negcio vlido, isto , a reserva no prejudica a validade da declarao. Assim dispe o Cdigo Civil, no seu art. 110, que a manifestao de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de no querer o que manifestou, salvo se dela o destinatrio tinha conhecimento.

Em face disso, pode afirmar-se que a reserva mental desconhecida do declaratrio, no afeta a validade da declarao, que produz seus normais efeitos, como se no tivesse havido a reserva mental23. Na hiptese contrria, de tratar-se de reserva mental conhecida do destinatrio, dispe a lei que a manifestao de vontade no subsiste, configurando-se a hiptese de ausncia de vontade e consequentemente, de inexistncia do negcio jurdico24. o entendimento25 dominante.

Depreende-se ento que a lei contempla duas espcies de resc-rv;i mental, a desconhecida e a conhecida pelo destinatrio da declarao. Se desconhecida no afeta a validade da declarao, que produz seus efeitos normais, como se inexistente a reserva26. Se for conhecida a reserva, pelo destinatrio,o negcio jurdico no subsiste, inexistente. No deve ser, contudo, considerado simulao, j que-esta pressupe um acordo simulatrio,o que, em princpio, no se verifica na declarao com reserva mental.

4. O silncio como declarao de vontade.

No se aplica ao direito o conhecido provrbio "quem caiu consente" (qui tacet, consentire videtur). Na verdade, quem cala no diz nada (qui tacet neque negat, non utique facetur). Excepcionalmente, porm, o silncio pode corresponder a uma declarao de vontade, quando se verifiquem as condies que a lei estabelea e quando se trate de comportamento prprio do destinatrio. E o chamado silncio circunstanciado que assim se qualifica quando as circunstncias ou os usos o autorizarem, e no for necessria a declarao de vontade expressa (CC, art. 111). No mesmo sentido, o art. 1.807, pelo qual o silncio do herdeiro, nas circunstncias ali prefixadas, faz presumir a aceitao da herana. Ou ainda nas hipteses de natureza processual em que o silncio do ru firma a presuno de veracidade dos atos afirmados pelo autor (CPC, art. 319), ou de usos e costumes observveis na atividade diria e na prtica societria, como ocorre, por exemplo, nas assemblias de associados em que se estabelece valer o silncio como manifestao de voto.27

Renan Lotufo, Cdigo Civil Comentado, volume I, So Paulo, Editora Saraiva, 2003, p.299.

5. Capacidade e legitimidade.

Enquanto a vontade elemento necessrio existncia do ato ou do negcio, a capacidade requisito necessrio sua validade e eficcia, assim como tambm o poder de disposio do agente.

Trata-se aqui da capacidade de fato ou de exerccio, aptido para a prtica dos atos jurdicos, que se presume existir em todas as pessoas no-includas nas espcies dos arts. 3 e 4 do Cdigo Civil. A capacidade de fato , assim, regra geral e a incapacidade, exceo, pois a lei no diz quem tem capacidade para a prtica dos atos ou negcios jurdicos, mas sim quem a no tem. Disso resulta que o nus da declarao de ineficcia de um ato jurdico, por incapacidade do agente, compete a quem tiver interesse nessa ineficcia.

Agente capaz o que tem capacidade de fato, aptido para exercer direitos e contrair obrigaes (capacidade de fato ou de exerccio). Nas pessoas jurdicas, a capacidade de fato manifesta-se nos rgos de direo e de execuo.

A capacidade de fato plena com a maioridade ou com a emancipao (CC, art. 5, par. nico). Antes disso, o agente absoluta ou relativamente incapaz (CC, arts. 3 e 4) e o negcio por ele praticado nulo ou anulvel (CC, arts. 166 e 171). Trata-se aqui de incapacidade decorrente da idade. No caso de incapacidade por motivos de sade (enfermidade, deficincia mental, prodigali-dade), o maior pode ser declarado interdito e, assim, incapaz para os atos da vida civil (CC, art. 1.767).

Supre-se a incapacidade, quando absoluta, pela representao, e, quando relativa, pela assistncia.

Representao o instituto pelo qual uma pessoa, o representante, pode substituir algum, o representado, na prtica de ato ou negcio jurdico, agindo em nome e no interesse do re-presentado. manifestao de vontade em nome de outrem, com efeitos jurdicos na esfera desse. A representao legal quando prevista em lei, e nesse caso o representante est designado na lei, e convencional, quando resulta de acordo entre partes. A representao de que aqui se trata a legal.

So representantes legais os pais, o tutor, o curador. Os pais representam os menores (CC, art. 1.634, V); o tutor, os rfos e os filhos de pais declarados ausentes, ou destitudos do poder familiar (CC, art. 1.728 e 1.747); o curador, os doentes mentais, os que, por outra causa duradoura, no puderem exprimir sua vontade-, os prdigos (CC, art. 1.767 e os ausentes (CC, art. 22). Os podorrs de representantes no so absolutos. Para a prtica de alguns atos necessria prvia autorizao judicial (CC, art. 1.691).

Assistncia instituto pelo qual algum, autorizado em UM, comparece ao ato para validar a manifestao de vontade do relativamente incapaz. Representao e assistncia competem aos pais, aos tutores e aos curadores (CC, arts. 1.690, 1.747 e 1.774).

Alm da capacidade de fato, exige a lei, para certos atos, legitimao, que o poder de agir da pessoa em face de certos bens ou interesses,28 traduzindo-se na inexistncia de impedimentos ou de restries para o negcio jurdico pretendido.29 conceito prprio e originrio do direito processual, significando aptido para o estabelecimento de certas relaes jurdicas, por exemplo (CC, arts. 496 e 497). Nos negcios dispositivos, com que se modificam relaes ou direitos subjetivos, preciso tambm poder de disposio. Autorizao a concordncia necessria para certos atos (CC, art. 1.647).

A manifestao de vontade toma nos negcios bilaterais o nome de consentimento.30 Sendo resultante de duas manifestaes de vontade, o consentimento ou consenso prprio dos contratos, inexistindo nos negcios jurdicos unilaterais.

O negcio jurdico praticado por agente absoluto incapaz nulo; pelo relativamente capaz anulvel. A diferena entre ambas as sanes apenas de grau.

A incapacidade de uma das partes no pode ser invocada pela outra em proveito prprio, nem aproveita aos co-interessados capazes, salvo se, neste caso, for indivisvel o objeto de direito ou da obrigao comum (CC, art. 105). Significa isso que, na hiptese cie as partes do negcio serem, de um lado, pessoa capaz, e de outro simultaneamente, um capaz e um relativamente incapaz, s este poder anular parcialmente o ato, s a ele aproveitando a anulao, salvo se indivisvel o objeto. A resciso por incapacidade no aproveita ao co-interessado capaz, salvo se indivisvel o objeto.31 O art. 105 do CCB s se aplica aos casos de incapacidade relativa, pois jamais o ato pode ser vlido em caso de nulidade absoluta.

6. Objeto e contedo do negcio jurdico.

Na teoria geral do negcio jurdico, o termo objeto compreende o objeto jurdico e o objeto material.

Objeto jurdico, ou contedo do negcio, o que sujeitos estabelecem, as prestaes ou o comportamento a que se obrigam. Compreende as determinaes que se colocam para a auto-regula-mentao dos respectivos interesses. Num contrato, por exemplo, o conjunto de direitos e deveres fixados. esse contedo o objeto da interpretao jurdica, constituindo-se tambm no ponto de referncia para a classificao do negcio. E ao contedo que a lei se refere ao estabelecer a licitude do objeto como requisito de validade do negcio jurdico (CC, art. 104).

O contedo, ou objeto jurdico, distingue-se dos efeitos do negcio. Aquele representa a vontade das partes na sua expresso esttica, estes significam as mudanas jurdicas que se processam como decorrncia dessa vontade.

Do objeto jurdico, ou contedo do negcio, distingue-se o objeto material, os bens (coisas ou prestaes) sobre os quais incidem os poderes contidos na relao jurdica nascida. Se por exemplo, A vende uma casa a B, contedo ou objeto jurdico do negcio a obrigao de transferir o domnio da casa ao comprador e a obrigao deste de pagar o preo (CC, art. 481). Objeto material a casa e o preo em dinheiro.32

O objeto jurdico deve ser idneo, isto , deve apresentar os requisitos ou qualidades que a lei exige para que o negcio produza os efeitos desejados a saber, a licitude, a possibilidade e a determi-nabilidade.

Objeto lcito aquele no-contrrio lei, ordem pblica e aos bons costumes. um requisito negativo, pois, a licitude precisamente, a ausncia de violao desse ordenamento.

A possibilidade do objeto desdobra-se em possibilidade fsica ou material, e possibilidade jurdica. Objeto fisicamente impossvel que no existe, tornando-se invivel o cumprimento da obriga;' Note-se, todavia, que a existncia da coisa verifica-se no momento da eficcia do negcio, no no da sua formao, mesmo porque r legalmente prevista a venda de coisas ainda no existentes, coisas futuras.33 A possibilidade jurdica consiste na sua viabilidade legal. Constitui objeto juridicamente impossvel a venda de coisa pblica ou fora do comrcio, exemplo, a gravada com a clusula de inalir-nabilidade.

A impossibilidade jurdica distingue-se da ilicitude. A primeira refere-se a um ato no-permitido pelo direito, como a venda de bens legalmente inalienveis, ou o contrato sobre herana de pessoa viva (CC, art. 426). A segunda refere-se ao negcio que, embora possa ser materialmente praticado, reprovado em lei, como a venda de txicos. Viola um dever legal.

A impossibilidade diz-se absoluta quando o objeto completamente irrealizvel, e relativa se, impossvel para o devedor, terceiro puder realizar a prestao. A impossibilidade manifesta-se apenas em relao ao sujeito devedor da prestao, mas nada impede que a prestao seja realizada por terceiros. Nesse caso, a impossibilidade relativa determina mudana qualitativa no contedo da obrigao.34

A impossibilidade relativa s se pode encontrar, e isso excepcionalmente, nas obrigaes de fazer, como, por exemplo, na hiptese de um transportador, cujo caminho se acidentou, realizar o transporte por intermdio de outro.35 Se a prestao tiver por objeto uma coisa, h que distinguir se ela se trata de uma coisa genrica ou de corpo certo. No primeiro caso, a impossibilidade absoluta desaparece em face da possibilidade de o devedor adquirir as coisas

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20 Francesco Messineo. Manuale de diritto civile e commerciale, volume primo, nona edizione, Milano, Giuffr Editore,1957, p.487.

21 Carvalho Fernandes Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 2a. Edio, Lisboa, LEX, 1966, p. 266.

22 Messineo, op. cit.p.487.

23 Heinrich Ewald Hrster. A Parte Geral do Cdigo Civil Portugus, Coimbra, Almedina,1992, p. 548.

24 Jos Carlos Moreira Alves A Parte Geral do Projeto de Cdigo Civil Brasileiro, So Paulo, Editora Saraiva, 1986, p. 102.

25 Nelson Nery Jnior, Vcios do ato jurdico e reserva mental, p.80 e 81, apud

26 Heinrich Ewald Hrster. op. cit. p. 548

27 O Cdigo Civil portugus dispe, no art. 2182, que o silncio vale como declarao negociai, quando esse valor lhe seja atribudo por lei, uso ou conveno. Quanto a mercadorias recebidas, juntamente com a proposta de aquisio, o silncio do destinatrio no significa aceitao, no sendo ele obrigado a restitu-las de modo prprio, devendo, entretanto, conserv-las. Cf. Carlos Alberto da Mota Pinto. Teoria Geral do Direito Civil, p. 428.

28 Orlando Gomes. Introduo ao Direito Civil, p. 326.

29 Caio Mrio da Silva Pereira. Instituies de Direito Civil, I, p. 310.

30 Consentimento, de cum e sentire, j traduz a concordncia recproca de ambas as partes.

31 Carvalho Santos, Joo Manuel. Cdigo Brasileiro Interpretado, I, p. 279.

32 Tanto o contedo diverso do objeto material que este pode ser objeto de diversos direitos, com diversos contedos: o mesmo apartamento pode ser objeto do direito de propriedade de A, do direito de usufruto de B e do direito locatrio de C. Cf. Orlando Gomes, op. cit., p. 326.

33 Enquanto os elementos e requisitos de ordem subjetiva devem existir n momento da concluso do negcio, os de ordem objetiva devem estar presentes no momento da eficcia, Santoro-Passarelli, op. cit., p. 133. Com opinio diversa, Jacques Ghestin, op. cit., p. 325.

34 Orlando Gomes, op. cit., p. 325.

35 Gabriel Marty et Pierre Raynaud. Droit Civil. Obligations, p. 167.

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de que no dispe, salvo em casos especiais, como, por exemplo, se se tratar de produto fabricado em pas estrangeiro, de importao proibida. Quando se trata de corpo certo, a impossibilidade absoluta confunde-se com a inexistncia da coisa.36

A impossibilidade inicial do objeto no invalida porm, o negcio jurdico se for relativa (CC, art. 106). S a impossibilidade absoluta (CC, art. 166, II). O objeto deve ser determinado ou determinvel, vale dizer, deve permitir uma perfeita identificao pelas partes. A indeterminabilidade pode afetar tanto o contedo, ou objeto jurdico, como no caso de o declarante no explicitar os direitos a que se refere (atribuo a Carlos direitos sobre a minha casa da Rua Direita) quanto ao objeto material (atribuo a Carlos direito de propriedade sobre tudo o que existe na casa da Rua Direita).37 A necessidade de determinao do objeto do negcio jurdico decorre da existncia de "proteo das partes quanto ao arbtrio das outras". Determinam-se os bens por sua designao ou identificao. No caso de obrigao de dar coisa incerta, ser esta indicada pelo gnero ou pela quantidade (CC, art. 243).

7. Forma e formalidades. Consensualismo e formalismo. Forma livre e vinculada. Instrumento pblico e instrumento particular.

O Cdigo Civil exige ainda, como requisito de validade do negcio jurdico, a forma prescrita ou no-defesa em lei (CC, art. 104, III). Tal requisito refere-se forma que a declarao deve ter, ao "modo concreto" da manifestao de vontade. Forma , ento, o meio de expresso da vontade, o aspecto externo que a declarao assume,38 sendo, assim, elemento estrutural do negcio jurdico.

Distingue-se a forma, modo de exteriorizao da vontade, das formalidades ou solenidades, conjunto de atos que compreendem a forma e as medidas preparatrias ou conseqentes do ato, necessrias respectiva eficcia, como, por exemplo, o conjunto de atos jurdicos necessrios realizao do casamento e o registro da escritura de aquisio de um imvel no Registro de Imveis.

Quanto forma como requisito do negcio jurdico existem dois princpios ou posies doutrinrias opostas, o consensualismo ou liberdade de forma, e o formalismo ou da forma obrigatria, imposta por lei ou pela prpria vontade das partes. Para o primeiro, a manifestao de vontade obriga ou vincula o declarante, independentemente da forma adotada. O nosso Cdigo Civil adota-o no art. 107. Esse princpio surgiu na Idade Mdia por influncia da moral crist e dos telogos que pregavam o respeito palavra dada, o que tambm vinha ao encontro das necessidades do trfico mercantil e da prtica comercial desenvolvida em torno das grandes feiras.39 Por influncia do dogma da autonomia da vontade, aci-n-tua-se a sua aceitao, consagrando-se no Cdigo Civil francs, se bem que de modo indireto (arts. 1.107 e 1.138).

Para o princpio do formalismo "so as formas, independen-tc-mente da vontade real das partes, que realizam o negcio jurdico".'10 So vantagens do formalismo: a) assegurar uma mais elevada dose de reflexo das partes. Nos negcios formais, o tempo que medeia entre a deciso de concluir o negcio e sua celebrao permite repensar o negcio e defender as partes contra a sua ligeireza ou precipitao. No mesmo sentido concorre a prpria solenidade do formalismo; b) separa os termos definitivos do negcio da fase pr-contratual (negociao); c) permite formulao precisa e completa das partes; d) proporciona um mais elevado grau de certeza sobre a celebrao do negcio e dos seus termos, evitando-se os perigos ligados falvel prova das testemunhas.

O direito romano era inicialmente formalista, dando mais importncia forma do que propriamente vontade. S mais tarde, na poca clssica, que surgem os primeiros contratos consensuais, formados s pelo acordo das partes. O direito germnico era tambm formalista, modificando-se, porm, por influncia do cristianismo, que defendia o respeito palavra dada, e sob as necessidades do intenso movimento comercial da Idade Mdia. Passava-se, assim, do formalismo conservador ao princpio da liberdade da forma, por influncia da religio dominante no mundo europeu, o cristianismo, e das convenincias do processo econmico.

Atualmente existe certo movimento de regresso ao formalismo, no por apego solenidade, mas por simplificao, celeridade e segurana nos negcios jurdicos (ttulos de crdito, contratos padronizados) .

O formalismo e a publicidade so garantias do direito. Com o desenvolvimento das funes do Estado, acentuaram-se alguns aspectos do formalismo, que se apresenta hoje, no com a importncia do direito romano, mas como "exigncia suplementar" necessria eficcia dos atos e negcios jurdicos. A forma no seria requisito de existncia, mas de eficcia. O consensualismo , no entanto, a regra, o formalismo exceo.

As formas que a lei prev so o instrumento pblico e o particular. O primeiro feito por oficial pblico, tabelio, escrivo, ou qualquer funcionrio (CPC, art. 364), compreendendo as escrituras, procuraes e testamentos lavrados em Ofcios de Notas, os atos judiciais e suas certides dos livros dos Registros Pblicos, as notas dos corretores tiradas de livros regularmente escriturados, os protestos de ttulos etc.

Quando lavrado nos livros dos tabelies, tem f pblica, isto , presuno legal de autenticidade.

A lei exige escritura pblica para diversos casos (CC, arts. 62, 1.711, 108, 1.653, 1.609, II.). O contedo formal da escritura est tambm previsto em lei (CC, art. 215 1).

Traslados so as cpias do que est escrito nos livros de notas dos tabelies (CC, art. 217). O primeiro traslado o que vulgarmente se denomina escritura pblica e tem o mesmo valor original lavrado no livro do tabelio. Certido tambm cpia, mas com declarao do oficial pblico de que o que nela contm consta de seus livros, ou de autos. Traslados e certides so instrumentos pblicos se os originais se houverem produzido em juzo como prova de algum ato (CC, art. 218). O contedo do traslado o que foi copiado, e o da certido o fato que se certifica,41 contido em qualquer documento (CC, art. 216).

Pblica-forma, hoje em desuso, o instrumento pblico que reproduz instrumento particular apresentado ao tabelio (CPC, art. 385). a cpia que no tem a eficcia da certido nem do traslado, por ser feita por pessoa diversa da que elaborou o documento, enquanto a certido, ou o traslado, fornecida pelo cartrio que o fez.

Instrumento particular o documento assinado pela prpria parte interessada, sem interveno da autoridade pblica e referente- a fatos privados. As delaraes nele constantes presumem-se verdadeiras quanto aos signatrios (CC, art. 219). A anuncia ou a autorizao de outrem, necessrias validade de um ato, provar-se- do mesmo modo que este, e constar, sempre que se possa, do prprio instrumento (CC, art. 220). Tambm se considera como tal o documento impresso ou datilografado, desde que assinado pelo dc-clarante, como o telegrama (CPC, art. 374). O telegrama, quando contestada a sua autenticidade, faz prova mediante conferncia com o original assinado (CC, art. 222). A cpia fotogrfica de documento, conferida por tabelio de notas, valer como prova de declarao de vontade mas, impugnada sua autenticidade, dever exibir-se o original (CC, art. 223) Quem no pode assinar no pode ser figurante em instrumento particular.42 Quando esse for capaz prova as obrigaes convencionais de qualquer valor (CC, art. 221) entre as mesmas partes. Para ser eficaz perante terceiros, somente depois de registrado no Registro Pblico competente.

O documento considerado autntico quando o tabelio reconhecer a firma do signatrio, declarando que foi aposta em sua presena (CPC, art. 369). O reconhecimento atesta que a assinatura da pessoa a quem se atribui. Nada impede, por isso, que se reconhea firma de documento em branco, desde que o oficial ressalve essa circunstncia.43 A utilizao de meios informticos na transmisso de dados fez surgir uma nova espcie de documento, o documento eletrnico ou digital, que uma mensagem eletrnica passvel de materializar-se em papel escrito. Pode ser pblico ou privado, e tem eficcia probatria quando autntico, ntegro c- de autoria certa (CPC, Art. 332). No tem, no Brasil, disciplina normativa especfica, embora seja reconhecido pela Medida Provisria n 2.200, de 20.6.01, art. 12, havendo, no Congresso Nacional, vrios projetos para sua regulamentao legal. A subscrio do documento eletrnico a chamada firma digital, que no a assinatura do autor mas um conjunto de smbolos a ser decifrado mediante procedimento eletrnico preestabelecido.44

As reprodues fotogrficas, cinematogrficas, os registros fono-grficos e, em geral, quaisquer outras reprodues mecnicas ou eletrnicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte contra quem forem exibidos, nos lhes impugnar a exatido (CC, art.225). Mas essa prova no supre a ausncia do ttulo original nos casos em que a lei ou as circunstncias exijam sua exibio.

No contrato celebrado com a clusula de no valer sem instrumento pblico, este da substncia do ato (CC, art. 109), da sua essncia, sem ele no pode existir.

A forma pode ser ento livre e vinculada. Livre, quando permite qualquer meio de manifestao de vontade. O direito brasileiro adota o princpio de liberdade da forma ao dispor que a validade das declaraes de vontade no depender de forma especial, seno quando a lei expressamente a exigir (CC, art. 107). Vinculada ou necessria quando exigida em lei (forma legal) ou pela prpria vontade das partes (forma convencional), para a validade do negcio jurdico. Nesse caso, preciso observ-la para que a declarao de vontade seja vlida e eficaz. No vale o ato que deixar de revestir a forma especial determinada em lei (CC, art. 104, III e 166, IV). Nesse caso, diz-se que a forma d ao ato a prpria existncia (forma dat esse rei). Ao exigir a forma vinculada, a lei tem por objetivo: a) garantir a autenticidade do ato; b) chamar a ateno das partes para a seriedade do que esto praticado; c) facilitar a prova do negcio jurdico; e d) facilitar a publicidade do negcio jurdico.

Se a forma vinculada indispensvel validade do ato, diz-se que ela da substncia desse (ad substantiam); por vezes necessria apenas para sua prova (ad probationem).

Com base nessa distino, classificam-se os atos jurdicos em formais ou solenes, e no-formais ou consensuais.

8. Prova do negcio jurdico.

Prova a demonstrao de um fato jurdico. No se provam direitos, mas sim os fatos que lhes do origem.

Os fatos so provados pela parte interessada, permitindo ao jui/. concluir quem tem o direito pretendido. C) nus da prova incumbe, portanto, a quem alega o fato do qual se induz a existncia do direito (CPC, art. 333).

Ao direito civil cabe indicar os meios de prova admissveis e seus requisitos; ao direito processual compete a tcnica de sua apresentao e apreciao pelo juiz. O Cdigo Civil brasileiro indica, no art. 212, os meios de prova para os atos que no dependem de forma especial. Tais meios so a confisso, os documentos pblicos ou particulares, testemunha, presuno e percia que compreenda exame, vistoria ou avaliao (CPC, art. 420).

Confisso a admisso, pela parte, da verdade de um fato, contrrio ao seu interesse e favorvel ao adversrio (CPC, art. 348). E judicial quando feita em juzo, e extrajudicial quando fora dele, oralmente ou por escrito. Os seus requisitos de processamento e eficcia esto disciplinados no Cdigo de Processo Civil (arts. 349 a 354). ineficaz a confisso pertinente a direitos indisponveis. E irrevogvel, salvo se viciada por erro de fato ou coao (CC, art. 214). No tem eficcia a confisso se provm de quem no capaz de dispor do direito a que se referem os fatos confessados. Se feita a confisso por um representante eficaz somente nos limites do poder de representao (CC, art. 213).

Documentos so papis escritos. Chamam-se instrumentos quando se destinam a produzir efeitos jurdicos, podendo ser pblicos ou particulares. Os pblicos so formados por oficial pblico no exerccio de suas funes45. Entre eles devem figurar os atos processados em juzo, aqueles que j foram objeto de processo ou cuja existncia ou validade foi reconhecida por sentena, como, por exemplo, alvars judiciais, cartas de adjudicao, formais de partilha

etc.

Utilizando-se o computador, surge o documento digital ou eletrnico, como j assinalado.

Os documentos redigidos em lngua estrangeira tero de ser vertidos em portugus para terem efeito no Brasil (CC, art. 224).

A escritura pblica, lavrada em notas de tabelio, documento dotado de f pblica, fazendo prova plena. Seus requisitos esto nos art. 215 e pargrafos.

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36 Castro Mendes, op. cit., p. 111.

37 Castro Mendes, op. cit., p. 93; Rui Alarco, Forma dos negcios jurdicos, p. 177 e segs.

38 Ghestin, op. cit., p. 349 e segs.

39 Idem, p. 203.

40 Ghestin, op. cit., p. 330. Mota Pinto, op. cit., p.. 430.

41 Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, tomo III, p. 430. As cartas tm a eficcia de instrumento particular do art. 221 do Cdigo Civil, idem, p. 353.

42 Carvalho Santos, op. cit., III, p. 154.

43 Pontes de Miranda, op. cit., III, p. 370. Sobre os servios notariais r dr registro, cfr. Lei 8.935, de 18.11.94, arts. 6 e 7.

44 Newton de Lucca, Ttulos e Contratos Eletrnicos, p. 54.

45 Moacyr Amaral Santos, Comentrios ao Cdigo de Processo Civil, p. 168.

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Testemunhas so as pessoas que presenciam fatos e que, por isso, podem ser chamadas a confirmar-lhes a existncia. So judicirias quando se destinam prova em juzo, e instrumentrias quando atestam a existncia de um documento. Neste caso, conferem publicidade ao ato e servem de garantia da sua celebrao.

A prova exclusivamente testemunhai s se admite nos contratos de valor no excedente a dez vezes o maior salrio mnimo vigente no momento da celebrao (CC, art. 227). No entanto, qualquer que seja o valor do contrato, a prova testemunhai admissvel como subsidiria ou complementar da prova documental (CC, art. 227, par. nico).

No podem servir de testemunhas os menores de dezesseis anos; os privados de discernimento por enfermidade ou doena mental; os cegos e surdos, quando a cincia do fato que se prova depende dos sentidos que lhes faltam; o interessado no objeto do litgio, o amigo ntimo ou o inimigo capital das partes; os cnjuges, o ascendente, descendente ou colateral at o terceiro grau de alguma das partes, por consanginidade ou afinidade (CC, art. 228).

Ningum obrigado a depor sobre fato que lhe seja prejudicial ou sobre o qual deva guardar sigilo ou sobre fato a que no possa responder sem desonra prpria, de seu cnjuge, parente sucessvel, ou amigo ntimo, ou ainda, que o exponha, ou s referidas pessoas, a perigo de vida, de demanda, ou de dano patrimonial imediato (CC, art. 229).

Presunes so as conseqncias que a lei ou o magistrado tiram de um fato conhecido para provar um desconhecido. A presuno um processo da tcnica jurdica com o qual o direito diz que o que provvel que seja, como, por exemplo, quando se afirma que o marido o pai dos filhos de sua mulher (f ater is est quem nuptiae demonstrant], que a coisa julgada tida como verdadeira (rs judicata pr veritate habetur). Distingue-se da fico, tambm processo da tcnica jurdica, com o que o direito estabelece que o que, na verdade, no , como, por exemplo, a retroatividade nos atos jurdicos, ou a considerao do feto como j nascido (infans conceptus pr iam nato habetur, quotiens de eius commodo agitur).

As presunes no so, na verdade, meios de prova, mas processos lgicos que se baseiam nas regras da experincia da vida (CPC, art. 335), segundo o que "um fato conseqncia tpica de outro". Nascem da dificuldade ou at impossibilidade da prova de certos fatos, o que obriga o legislador a contentar-se com indcios para que O juiz possa extinguir os conflitos de interesse.'10 Dividem-se IMM presunes legais e presunes de fato, ou do homem, ou judiciais. A deduo que se opera em ambos o mesmo processo, s que, nas presunes legais, a ilao feita de uma vez por todas pelo legislador, impondo-se ao juiz, enquanto nas de fato esse que, pessoalmente, estabelece a deduo.47 As presunes no legais, isto , as de fato ou judiciais, no se admitem nos casos em que a lei exclui a prova testemunhai (CC, art. 230).

As presunes legais subdividem-se em presunes simples (iurs tantum) e presunes absolutas [iure et iure). As primeiras admitem prova em contrrio, como, por exemplo, a presuno de pagamento ou remisso se o devedor estiver na posse do ttulo, (CC, arts. 324 e 386) a presuno de que o direito real pertence pessoa em nome de quem est registrada48, a presuno filho nascido na constncia do casamento (CC, art. 1.597). A presuno simples estabelece o nus da prova. O que se beneficia da presuno est dispensado de provar o fato a que ela conduz.49 O interessado que tem de contrariar a deduo legal, demonstrando no ser verdadeira.

A presuno simples serve ainda para substituir a prova dos fatos de difcil ou impossvel realizao, como, por exemplo, uma filiao paterna, e serve ainda de princpio de interpretao no sentido de assegurar coerncia nas regras do sistema jurdico: presumem-se os dispositivos legais conforme a Constituio, as leis nacionais conforme os tratados, as normas especiais conforme o direito comum.50

As presunes absolutas, indiscutveis, no admitem prova em contrrio, corno, por exemplo, a de que todos conhecem a lei (nerno ius ignorare censetur), ou a de que a coisa julgada verdadeira (rs iudicata pr veritate habetur]. Justificam-nas razes de segurana e de paz social.

A prova pericial consiste em exame, vistoria ou avaliao (CPC, art. 420).

Exame a inspeo de pessoas ou bens mveis e semoventes para verificao de fatos ou circunstncias que interessam causa, como o exame de sangue, nas aes de investigaes de paternidade, o exame mdico, nas interdies, o exame de livros contbeis, o exame grafotcnico. Aquele que se nega a submeter-se a exame mdico necessrio no poder aproveitar-se de sua recusa (CC, art. 231).

Vistoria a inspeco ocular, normalmente de imveis.51 freqente nas aes possessrias, demarcatrias e de responsabilidade civil.

A recusa percia mdica ordenada pelo juiz poder suprir a prova que se pretendia obter com o exame (CC, art. 232).

Arbitramento a estimao do valor, em moeda corrente, de coisas e direitos; ocorre nos casos de indenizao por ato ilcito, nas desapropriaes e nas aes de alimentos.52 Quando feito em processo de execuo ou inventrio, chama-se avaliao.

9. Publicidade.

Para maior garantia das relaes jurdicas, conveniente que determinados fatos, situaes ou negcios jurdicos possam ser conhecidos por outras pessoas que no as respectivas partes. Esse objetivo se realiza pela publicidade, que permite a terceiros conheceram o contedo dos atos jurdicos realizados, dando-lhes maior autenticidade, segurana e eficcia.

A publicidade pode ser declaratria e constitutiva. No primeiro caso, destina-se apenas a levar ao conhecimento de terceiros interessados a criao ou modificao da relao jurdica. Sua omisso no invalida o ato, mas pode sujeitar o infrator a determinada pena. A publicidade constitutiva a necessria perfeio do ato jurdico. Sem ela, o ato no vlido, no oponvel a terceiros, como ocorre com os negcios constitutivos de direitos gerais (CC, art. 1.245 e 1.227).

A publicidade se realiza por meio dos registros pblicos (Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973), que disciplinam o registro civil de pessoas naturais (nascimentos, casamentos, bitos, emancipaes, interdies, ausncia, opes de nacionalidade, sentenas de adoo, nulidade ou anulao de casamento, reconhecimento de filhos r escrituras de adoo, LRP, art. 29), o registro civil de pessoas jurdicas (atos constitutivos e estatutos de associaes, sociedades simples, fundaes, partidos polticos), o registro de ttulos (instrumentos particulares, penhor de mveis, cauo de ttulos, contratos agrrios) e documentos e o registro de imveis (atos constitutivos, extintivos e translativos da propriedade e de outros direitos sobre bens imveis). O termo registro tem dois sentidos. O primeiro, de ofcio pblico destinado publicidade dos negcios e situaes jurdicas; o segundo, do ato ou assento praticados nos livros desse ofcio.53

O assento principal e original de um fato ou ato jurdico chama-se inscrio. No caso de propriedade imvel, a matrcula. O assento posterior, referente ao mesmo ato, destinado a modific-lo, chama-se averbao. O registro integral de documento, isto , a reproduo integral do ttulo, chama-se transcrio. A inscrio, a transcrio e a averbao compreendem-se na designao genrica de registro.

Os servios de registro, destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurana e eficcia dos atos jurdicos, disciplinam-se pela Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994.

10. Interpretao.

Interpretar o negcio jurdico procurar o sentido e o significado da norma jurdica que nasce da declarao de vontade. A interpretao um processo que se destina, portanto, a precisar o sentido juridicamente relevante do contedo da declarao de vontade,5'1 isto , os direitos, faculdades, deveres, pretenses dela decorrentes. E assim como se interpretam as leis e as normas jurdicas nelas contidas, tambm se interpretam os negcios jurdicos, buscando-se a vontade concreta das partes, no a vontade interna, psicolgica, mas a vontade objetiva, o contedo, as normas que nascem da sua declarao.

Embora a interpretao das leis seja regida por normas diversas da interpretao dos atos jurdicos, o intrprete tem a mesma funo. Procura investigar a vontade das partes em conjunto, atribuindo-lhes um sentido jurdico. Tanto procura conhecer a inteno do declarante quanto o sentido da declarao.55 E, sendo o negcio jurdico instrumento e expresso da autonomia privada, seus efeitos devem corresponder ao consenso das partes. o princpio da correspondncia entre o contedo e os efeitos do ato, princpio geral de direito privado.36 A primeira operao a fazer-se, portanto, a interpretao desse consenso, para se estabelecer quais os efeitos que se quiserem produzir.

Os princpios que orientam o intrprete constituem uma teoria da interpretao, na qual se destacam duas principais tendncias, a subjetiva ou da vontade, e a objetiva ou da declarao, que tm orientado as regras sobre a matria nos principais sistemas legislativos.

O ponto de vista subjetivo ou voluntarista, que o da escola tradicional, defende a tese de que o sentido da declarao negociai corresponde vontade do declarante. Busca-se, principalmente, a inteno do agente em detrimento do sentido literal das palavras.

O ponto de vista objetivo ou declarativista relega a segundo plano a inteno do agente. Interessa-lhe no essa inteno mas a vontade concreta, objetivada, como foi declarada, ou como se deduz das circunstncias objetivas do caso.

Essas teorias no se podem aplicar unilateralmente, mas combinadas de modo que o intrprete estabelea, em face da declarao e de suas circunstncias, qual seja, objetivamente, a vontade real do declarante.

A interpretao que adotar o critrio subjetivo, procurando a inteno pura dos declarantes, desenvolver uma pesquisa histrica, visando reconstruir o pensamento e os objetivos dos declarantes. J a interpretao que adote o critrio objetivo buscar um sentido, um significado preciso, concreto, contido na declarao negociai, independente da vontade psicolgica dos agentes.

Essas duas tendncias opostas so temperadas por duas posies intermedirias, respectivamente, a teoria da responsabilidade segundo a qual o declarante responsvel, se agir com culpa, pelos prejuzos causados ao destinatrio e a teoria da confiana, que afirma ser vlida a declarao conforme a confiana que tenha despertado no destinatrio. A esses critrios deve-se acrescentar o princpio da boa-f que traduz a "correo, a lisura, retido ou lealdade recproca com que as pessoas devem agir no exerccio dos seus direitos ou no cumprimento de suas obrigaes" (CC, art. l 13). Tais critrios, o respeito boa-f e confiana dos destinatrios, assim como a responsabilidade de declarante, devem combinar-se no sentido de se precisar a inteno do agente consubstanciada na declarao, no a simples inteno ou vontade interna, psicolgica. A interpretao jurdica no deve procurar a vontade interna das partes, mas sim a vontade expressa objetivamente na declarao, com o sentido que for objetivo para as partes.57

O Cdigo Civil brasileiro, muito sucinto na matria, estabelece poucos dispositivos sobre a matria de interpretao dos negcios jurdicos: os arts. 112, 113 e 114, como normas gerais, e os arts. 842, 819 e 1.899, como normas especiais. O Cdigo Civil francs (arts. 1.156 a 1.164), o italiano (arts. 1.362 a 1.371) e o portugus (arts. 2362 a 2392) so mais prdigos na disciplina dessa matria.58 A primeira leitura que se faz do art. 112 induz convico de que o Cdigo Civil brasileiro adotou na ntegra o dogma da vontade, seguindo a concepo subjetiva, o que alis era a tradio do direito comum.59

Clvis Bevilqua dizia textualmente: "..... a parte essencial ou

nuclear do ato jurdico a vontade. a ela, quando manifestada de acordo com a lei, que o direito d eficcia." O sistema do Cdigo, porm, que no dispe de muitas normas de interpretao, afasta essa idia, como se pode deduzir do prprio art. 112 e de outros dispositivos. Sabido que a teoria subjetiva protege os interesses do declarante, dando grande importncia aos motivos, razo psicolgica

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46 Claude du Pasquier. Introduction Ia theorie gnrale et Ia philosophie du droit, p. 181.

47 Jacques Ghestin. Trait de droit civil. Introduction gnrale, 4e dition, p. 699.

48 Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 252.

49 CPC, art.334. IV Cdigo Civil portugus, art. 350S, e Cdigo Civil francs, art. 1.352.

50 Pierre Pescatore. Introduction Ia science du droit, p. 219.

51 Moacyr Amaral Santos. Comentrios do Cdigo de Processo Civil, p. 336.

52 Washington Barros Monteiro. Curso de Direito Civil, p. 256.

53 Afrnio de Carvalho. Registro de Imveis, p. 107.

54 Bianca, op. cit., p. 378.

55 Lus Diez Picazo y Antnio Gullon. Sistema de Derecho Civil, I, p. 509. Para os adeptos de uma teoria unitria da interpretao, so idnticas as questes. Cf. Cesare Grassetti, Interpretazione dei negozio giuridico, in Novssimo digesto italiano, VIII, p. 903 e segs.; Manuel de Andrade. Teoria Geral da 'Relao Jurdica, vol. H, p. 306.

56 Giuseppe Branca. Istituzioni di diritto privato, p. 450; Natalino Irti. Intro-duzione alio studio dei diritto privato, p. 174.

57 Ferrer Correia. Erro e Interpretao na Teoria do Negcio Jurdico, p. 200.

58 O Cdigo Civil francs, com o art. 1.156 e o Cdigo Civil alemo, com o 133, so os mais prximos pontos de referncia da norma geral contida no a ri. 85 do Cdigo Civil brasileiro.

59 Ordenaes Filipinas, I, 62, 53; Cdigo Comercial brasileiro, art. 131, I.

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do ato, facilmente se demonstra que o Cdigo Civil brasileiro no adota o dogma da vontade. Quanto aos motivos, o art. 140, ao dispor que "o falso motivo s vicia a declarao de vontade quando expresso como razo determinante", afasta-os do domnio do direito, pois que, sendo objeto da psicologia, "o direito no os investiga, nem lhes sofre a influncia".60 Tambm se afirma que a norma legal "no pode ser interpretada no sentido de fazer tbua rasa da receptividade das pessoas que confiaram na manifestao de vontade. Assim, nas declaraes e manifestaes de vontade no receptcias, que se dirigem a largo crculo de pessoas, como se d na promessa de recompensa, nos ttulos ao portador, a interpretao tem de atender s circunstncias que as pessoas componentes do largo crculo poderiam conhecer".61 Nas declaraes receptcias, tem de se levar em conta o que o destinatrio conhea, podia ou devia conhecer, atendidas as circunstncias. O Cdigo Civil de 2002 introduz o princpio da boa-f: "Os negcios jurdicos devem ser interpretados conforme a boa-f e os usos do lugar de sua celebrao." Temos ento que na interpretao do negcio jurdico a orientao no puramente subjetiva. Se certo que se tem de partir da declarao, que a forma de exteriorizao da vontade, certo tambm que no se busca somente a inteno, os motivos psicolgicos do agente, mas sim, o sentido mais adequado a uma interpretao que leve em conta a boa-f, e o contexto e o fim econmico do negcio jurdico.

Como diz Espnola, "so precisamente o respeito boa-f e confiana dos interessados e a conseqente responsabilidade do autor que, no caso de interpretao judicial do ato jurdico, mandam atender, em regra, inteno consubstanciada na declarao, ao invs de procurar o pensamento ntimo do declarante".62 No se visa a vontade psicolgica do agente, mas sim a vontade jurdica, criada pelo declarante para servir de lei entre ele e seus co-interes-sados. Ao dispor o art. 112 que nas declaraes de vontade se atender mais inteno nelas consubstanciaddas do que ao sentido literal da linguagem, o Cdigo reconhece a vontade como elemento da interpretao, mas de modo objetivo e no o nico, pois o processo intrrpretativo deve levar em conta outros elementos, como as cir-t unslncias, o ambiente, os interesses das demais pessoas a que .se dirige a declarao.63

Assim que, nos atos jurdicos no-patrimoniais, como os de personalidade, de estado, de capacidade, de famlia, deve-se dar mais nfase ao elemento subjetivo do que ao objetivo, tendo-se em vista o carter personalssimo desses direitos, a sua ntima ligao i om os respectivos titulares.

Nos negcios jurdicos mortis causa, mais especificamente o testamento, consagra-se o critrio subjetivo (CC, art. 1.899). Tambm nos negcios jurdicos a ttulo gratuito predomina o critrio subjetivo sobre o objetivo, considerando-se a circunstncia de que o declarante pratica uma liberalidade, aumentando o patrimnio do destinatrio, sem contraprestao equivalente, critrio tambm aplicvel no caso de atos de renncia de direitos, pelas mesmas razes. Com esse sentido, dispe o art. 114 do Cdigo que os negcios jurdicos benficos e a renncia interpretam-se estritamente. Nos atos pr-contratuais, como a proposta pessoa ausente (CC, art. 428, IV), prevalece o critrio objetivo, tendo-se em vista que, no rhegando a retratao ao conhecimento da outra parte em tempo hbil, fica o proponente sujeito ao respeito da declarao de vontade contida em sua proposta, ainda que sua vontade real a esta declarao no mais corresponda.

Nos negcios jurdicos bilaterais deve-se buscar a vontade real na declarao, mediante os tradicionais processos interpretativos, levando-se em conta o conjunto das clusulas da declarao, o objeto das partes e as circunstncias em que se praticou o ato, considerando-se ainda a necessria estabilidade e segurana de que se devem revestir as relaes jurdicas obrigacionais.

Finalmente, nos ttulos de crdito, por fora de sua prpria natureza e literalidade, segundo a qual "o direito decorrente do ttulo literal no sentido de que, quanto ao contedo, extenso e s modalidades desse direito, decisivo, exclusivamente, o teor do ttulo",64 a declarao predomina sobre a vontade, com mais intensidade nos abstratos, menos intensamente nos ttulos causais.

No campo doutrinrio, entre as diversas regras de interpretao adotadas, normalmente remontando-se a Pothier, destacam-se duas, principalmente: a) as clusulas no devem ser consideradas isoladamente, mas sim no seu contexto; b) devem-se considerar tambm as disposies legais, de cart