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INTRODUÇÃO À TEORIA DAS FUNÇÕES COMPLEXAS Carlos A. A. Florentino Junho 2011

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INTRODUÇÃO À TEORIA DAS FUNÇÕES

COMPLEXAS

Carlos A. A. Florentino

Junho 2011

Conteúdo

Prefácio 5

7

Capítulo 1. Diferenciabilidade: Funções Holomorfas e Funções Analíticas 71.1. Funções Diferenciáveis e Funções Holomorfas 71.2. Séries de Potências 101.3. Funções Analíticas 121.4. Séries e o teorema de Taylor 131.5. Exercícios 16

Capítulo 2. Cálculo Integral no Plano Complexo 172.1. Séries de Laurent e Singularidades Isoladas 172.2. Integração no plano complexo 192.3. O teorema fundamental do cálculo 202.4. O Teorema de Cauchy-Goursat 222.5. O Teorema dos Resíduos 222.6. Exercícios 23

Capítulo 3. Funções Meromorfas e a Esfera de Riemann 253.1. Funções Meromorfas 253.2. Polinómios e o Teorema Fundamental da Álgebra 263.3. Funções Racionais 293.4. A esfera de Riemann 313.5. Transformações de Möbius 323.6. Exercícios 35

Capítulo 4. Teoria Local das Funções Holomorfas e Meromorfas 374.1. O Teorema da Função Inversa e Isomorfismos Locais 374.2. Princípio dos zeros isolados 404.3. Princípio do módulo máximo 404.4. O teorema de Casoratti-Weierstrass 414.5. Exercícios 41

Capítulo 5. Transformações conformes e o Teorema de Riemann 435.1. Definição e Exemplos de Transformações Conformes 435.2. Lema de Schwarz e Automorfismos do disco 455.3. Automorfismos do Plano 465.4. O espaço métrico H(Ω) 465.5. O teorema da aplicação de Riemann 485.6. Exercícios 49

Capítulo 6. Funções Harmónicas 516.1. Definição e primeiras propriedades 51

3

4 CONTEÚDO

6.2. Propriedades locais das funções harmónicas 526.3. Propriedades globais de funções harmónicas 526.4. O problema de Dirichlet no disco 536.5. Exercícios 54

Capítulo 7. Representação de Funções Inteiras 557.1. Convergência de produtos infinitos de números complexos e de funções 557.2. O teorema de Weierstrass para funções inteiras 567.3. O teorema de Hadamard 577.4. Exercícios 58

Capítulo 8. Funções Elípticas 598.1. Recticulados e Funções invariantes 598.2. Funções elípticas 608.3. A função ℘ de Weierstrass de um recticulado Λ. 628.4. Exercícios 65

Bibliografia 67

Prefácio

“O completo conhecimento da natureza de uma função analítica deve tam-bém incluir a indicação do seu comportamento para valores imagináriosdos argumentos. Muitas vezes, isto é indispensável inclusivé para a cor-recta apreciação do comportamento da função para argumentos reais.”(C. F. Gauss, Carta a F. W. Bessel, 1811).

A teoria das funções complexas de variável complexa, usualmente designada por Aná-lise Complexa, é uma área da Matemática cujos fundamentos remontam ao século XVIII,estando intimamente ligada a muitos matemáticos de renome, tais como Euler, Gauss,Riemann, Cauchy e Weierstrass. É igualmente um assunto de grande utilidade noutrasáreas tanto na Matemática Pura como na Matemática Aplicada, na Física e noutras ci-ências experimentais, sendo por isso, parte integrante de cursos de Engenharia, Física ouMatemática, um pouco por todo o mundo.

Sendo um assunto que sempre mereceu uma vasta literatura, ainda não tem, curiosa-mente, a desejada correspondência em publicações na língua portuguesa. Recentemente,esta lacuna tem vindo a ser gradualmente preenchida, com alguns livros em que se abordamfunções elementares, expansões em série de Taylor e Laurent, e os teoremas de Cauchy edos resíduos em algumas das suas versões. Esses livros destinam-se essencialmente a alunosdos primeiros dois anos de uma licenciatura de Matemática, Física ou Engenharia.

Prosseguindo esta tendência, este livro pretende abordar aspectos complementares,mas ainda clássicos e fundamentais, da teoria das funções de variável complexa, de granderelevo para inumeras aplicações a outras áreas da Matemática e afins. Assim, este podeser visto como texto de apoio a uma disciplina dedicada aos fundamentos matemáticos daAnálise Complexa, sendo por isso destinado a estudantes de final de Licenciatura ou iníciode Mestrado em Matemática Pura, Matemática Aplicada ou Física.

5

CAPíTULO 1

Diferenciabilidade: Funções Holomorfas e Funções Analíticas

Neste capítulo, vamos estudar o conceito de derivada de uma função complexa devariável complexa. Veremos que, apesar da definição de derivada ser inteiramente análogaà da derivada de uma função real de variável real, muitas das propriedades fundamentaisdas funções diferenciáveis de variável complexa não têm equivalente no caso real.

Como exemplo notável deste fenómeno, temos o teorema de Taylor, central na teoriadas funções diferenciáveis de variável complexa, segundo o qual uma função que admitederivada numa vizinhança de um ponto, tem nesse ponto derivadas de todas as ordens e acorrespondente série de Taylor tem raio de convergência positivo.

Deste modo, a teoria local das funções diferenciáveis é essencialmente a teoria dasfunções analíticas, que se resume, por sua vez, à teoria das séries de potências. Esta situaçãoestá em grande contraste com o que se passa na análise real e permite a demonstração deresultados fortes e elegantes, como o teorema de Liouville, o princípio dos zeros isolados,ou o princípio do módulo máximo, que veremos em capítulos posteriores.

Vamos aqui definir e relacionar três conceitos diferentes: diferenciabilidade, holomorfiae analiticidade. Todos eles estão ligados ao conceito de derivada de uma função f numponto do plano complexo ou num subconjunto do plano complexo.

Como sabemos, o conceito de derivada de uma função num ponto é um conceito “local”que envolve a consideração de uma vizinhança desse ponto, sendo insensível ao comporta-mento da função fora dessa vizinhança. É assim natural considerar funções definidas emconjuntos abertos e conexos.

Definição. Pela sua importância, e de acordo com a literatura usual, chamaremosregião a qualquer subconjunto aberto, conexo e não vazio de C.

Por exemplo, um disco aberto e o semiplano superior são regiões em C. Como vãoaparecer com grande frequência, usaremos as seguintes notações:

• Disco aberto de raio r > 0 e centrado em z0 ∈ C:

D(z0, r) := z ∈ C : |z − z0| < r• Semiplano superior:

H := z ∈ C : ℑz > 0Em todo este livro, Ω designará uma região arbitrária em C.

1.1. Funções Diferenciáveis e Funções Holomorfas

Definição de função diferenciável e de função holomorfa. Começamos por de-finir diferenciabilidade de forma inteiramente análoga ao caso de funções de variável real.

Definição. Uma função f : Ω ⊂ C → C diz-se diferenciável em z0 ∈ Ω se o limite

limh→0

f(z0 + h) − f(z0)

h

existe em C. Neste caso, o limite acima chama-se a derivada de f em z0 e denota-se porf ′(z0). A função f diz-se diferenciável em Ω se é diferenciável em todos os pontos z0 ∈ Ω.

7

8 1. DIFERENCIABILIDADE: FUNÇÕES HOLOMORFAS E FUNÇÕES ANALÍTICAS

Como exemplos de funções diferenciáveis numa região, temos:

• Polinómios: p(z) = a0 + a1z + · · · + anzn, para quaisquer a0, ..., an ∈ C é umafunção diferenciável em C;

• Funções racionais: f(z) := p(z)/q(z), onde p e q são polinómios sem raízes co-mums, é holomorfa em C \ Z, onde Z é o conjunto (finito) das raízes de q(z).

• Funções trigonométricas e exponencial: Por exemplo, sin(z), cos(z), ez são funçõesdiferenciáveis em C; f(z) := cot(z) é diferenciável em C \ kπ : k ∈ Z.

• Funções inversas das anteriores: Por exemplo, arcsin(z) é diferenciável em x+iy :x ∈] − π, π[; e log(z) é diferenciável em Ω = x + iy : y ∈] − π, π[.

• Séries de funções convergentes: qualquer série convergente num disco abertoD(z0, r), com r > 0, é holomorfa nesse mesmo disco.

Vamos desenvolver cada um dos exemplos acima com mais detalhe nos próximos capítulos.Por agora, estudaremos a relação entre diferenciabilidade e outras noções análogas.

Usando a identificação entre o plano complexo C e o plano real R2, a cada função devariável complexa f : Ω ⊂ C → C pode associar-se a função fR2 : Ω ⊂ R

2 → R2, definida

por:

fR2(x, y) := (u(x, y), v(x, y)), onde

u(x, y) = ℜ (f(x + iy))v(x, y) = ℑ (f(x + iy)) .

Aqui, u e v são funções reais, chamadas naturalmente, a parte real e imaginária (respecti-vamente) de f . Graficamente, podemos representar da seguinte forma a relação entre f efR2 :

Ωf→ C

‖ ‖Ω

fR2→ R2

É natural questionar-se sobre a relação entre a diferenciabilidade de f e a diferencia-bilidade de fR2 . Como sabemos, a derivada de fR2 em (x0, y0) ∈ Ω é representada pelamatriz:

(1.1.1) DfR2(x0, y0) =

[

∂u∂x

∂u∂y

∂v∂x

∂v∂y

]

(x0,y0)

que nos fornece uma aplicação linear do espaço vectorial R2 nele próprio. Esta aplicação

linear depende de 4 números reais, em contraste com os 2 números reais que compõem aderivada f ′(z0). A “resolução” deste diferendo está em que devemos considerar apenas asmatrizes 2 × 2 que correspondem a aplicações C-lineares de C ∼= R

2 em si mesmo.

Proposição. Usando a identificação natural entre vectores de R2 e números comple-xos, as matrizes 2 × 2 que representam transformações C-lineares de R

2 em R2 são da

forma:[

a −bb a

]

, a, b ∈ R.

Demonstração. Qualquer transformação C-linear entre C e C é da forma z 7→ λz,para um certo λ ∈ C. Sendo z = x + iy, λ = a + bi, temos λz = ax − by + i(bx + ay).Assim, uma aplicação entre R2 e R2 é C-linear se e só se transforma o vector (x, y) no vector(ax − by, bx + ay) para certos números reais a, b, transformação esta que é precisamenterepresentada pela matriz acima.

1.1. FUNÇÕES DIFERENCIÁVEIS E FUNÇÕES HOLOMORFAS 9

Definição. f : Ω → C diz-se holomorfa em z0 = x0 + iy0 ∈ Ω se fR2 é de classe C1

em (x0, y0) e DfR2(x0, y0) é uma transformação C-linear. f diz-se holomorfa em Ω, se f éholomorfa em todos os pontos z ∈ Ω.

Por outras palavras, escrevendo f(x + iy) = u(x, y) + iv(x, y), f é holomorfa em z0 sefR2 é de classe C1 em (x0, y0) e a transformação linear dada pela matrix (1.1.1) é C-linear,ou seja, as funções u, v verificam

(∗)

∂u∂x = ∂v

∂y∂u∂y = − ∂v

∂x

no ponto (x0,y0). Estas famosas equações chamam-se as equações de Cauchy-Riemann.Outra forma de definir holomorfia é através dos seguintes operadores diferenciais line-

ares. Considerando as combinações lineares de derivadas parciais definidas por:

∂z:=

1

2

(

∂x− i

∂y

)

, e∂

∂z=

1

2

(

∂x+ i

∂y

)

é fácil verificar que as equações de Cauchy-Riemann (no ponto (x0, y0)) podem escrever-secomo uma singela equação:

∂f

∂z(z0) = 0,

onde z0 = x0 + iy0. Além disso, temos que

∂f

∂z(z0) = f ′(z0),

se f é diferenciável em z0. Deixamos estas verificações para o leitor.

Equivalência entre diferenciabilidade e holomorfia. A noção de holomorfia coin-cide com a de diferenciabilidade. De facto, f é holomorfa num ponto se e só se é diferen-ciável nesse ponto.

Proposição. Seja Ω é uma região em C e f(x+ iy) = u(x, y) + iv(x, y) com u e v declasse C1 em Ω, e z0 ∈ Ω. Então, f é diferenciável em z0 se e só se f é holomorfa em z0.Uma fórmula para a derivada em z0 em termos de u e v é:

f ′(z0) =∂u

∂x+ i

∂v

∂x.

Demonstração. Se f é diferenciável em z0, então podemos calcular o limite f ′(z0) =

limh→0f(z0+h)−f(z0)

h nas direcções horizontal e vertical e comparar o resultado. Na direcçãohorizontal, fazemos h = s ∈ R e assim:

f ′(z0) = lims→0

f(x0 + iy0 + s) − f(x0 + iy0)

s=

= lims→0

u(x0 + s, y0) − u(x0, y0) + iv(x0 + s, y0) − iv(x0, y0)

s=

=

[

∂u

∂x+ i

∂v

∂x

]

(x0,y0)

.

Fazendo o mesmo limite na direcção vertical h = it, (t ∈ R) obtemos f ′(z0) =[

∂v∂y − i∂u

∂y

]

(x0,y0);

como, por hipótese, o limite é único obtemos as equações de Cauchy-Riemann.

10 1. DIFERENCIABILIDADE: FUNÇÕES HOLOMORFAS E FUNÇÕES ANALÍTICAS

Para provar o recíproco, usamos as fórmulas de Taylor usuais para funções de classeC1 de R

2 em R. Sendo f é holomorfa em z0 = x0 + iy0 e h = s + it, temos:

f(z0 + h) − f(z0) =u(z0 + h) − u(z0) + i [v(z0 + h) − v(z0)] =

= u(x0, y0) · (s, t) + o(‖(s, t)‖) + i[v(x0, y0) · (s, t)] + o(‖(s, t)‖) =

=∂u

∂xs − ∂v

∂xt + i

∂v

∂xs + i

∂u

∂xt + o(‖(s, t)‖) =

=

(

∂u

∂u+ i

∂v

∂x

)

(s + it) + o(‖(s, t)‖).

onde as derivadas parciais são calculadas em (x0, y0) e o(‖(s, t)‖) designa um termo quetende para zero quando ‖(s, t)‖ → 0. Asim, o limite:

limh→0

f(z0 + h) − f(z0)

h= lim

h→0

(

∂u∂x + i∂v

∂x

)

· h + o(|h|)h

=∂u

∂x+ i

∂v

∂xexiste, o que prova que f é diferenciável em z0, e nos dá a fórmula pretendida.

Primeiras propriedades das funções holomorfas. Sendo Ω uma região em C, éfácil ver que a soma e o produto de funções holomorfas são também holomorfas.

Vamos designar por H(Ω) o conjunto das funções holomorfas (ou diferenciáveis) numaregião Ω.

De acordo com o que foi dito, é fácil verificar o seguinte.

Proposição. H(Ω) é um anel comutativo com identidade.

Este anel contem estritamente o anel dos polinómios.

1.2. Séries de Potências

De modo a definir a noção de analiticidade, também de modo análogo ao caso real,vamos primeiro introduzir a teoria básica das séries de potências.

Série de potências formais e convergentes. Começamos por definir série de po-tências (não negativas), que podem considerar-se como “polinómios de grau infinito”.

D(z0, r) e C(z0, r) designam, respectivamente o disco aberto e a circunferência de centroem z0 e raio r; quando z0 é omitido assume-se que z0 é a origem, e o disco unitário D(1)designa-se simplesmente por D.

Definição. Uma série de potências (não negativas)1 centrada em z0 ∈ C é qualquerexpressão da forma

∞∑

n=0

an(z − z0)n = a0 + a1(z − z0) + a2(z − z0)

2 + ...

onde an são números complexos, chamados os coeficientes da série. Convém distinguir doiscasos fundamentalmente distintos de séries de potências: o das séries formais, em que asérie apenas converge no seu centro z0 (não podendo por isso definir uma função numaregião), e o das séries convergentes, em que a série converge para algum z ∈ C distinto docentro.

Vamos agora provar que qualquer série de potências convergente define uma funçãodiferenciável num certo disco.

1A palavra “não negativas”, lembrando que o índice n toma valores em N0, é normalmente omitida.Mais tarde consideraremos também séries de potências onde n ser pode ser qualquer inteiro, mas que serãochamadas séries de Laurent, como habitualmente.

1.2. SÉRIES DE POTÊNCIAS 11

Raio e disco de convergência.

Definição. O raio de convergência da série∑∞

n=0 an(z − z0)n é o número

R = supr ∈ R : anrn é uma sucessão limitada ∈ [0,∞]

e o disco de convergência é D(z0;R).

Note-se que R = 0 se e só se a série dada é formal (converge apenas em z0). A definiçãode raio e disco de convergência é motivada pelo seguinte resultado.

Teorema. (Abel) Seja∑∞

n=0 an(z − z0)n uma série convergente com disco de conver-

gência D(z0, R) e seja K ⊂ D(z0;R) um subconjunto compacto. Então, a série é unifor-memente convergente em K e diverge para |z − z0| > R.

Demonstração. Como a série é convergente, podemos assumir que R > 0. Seja0 < s < r < R tal que anrn é uma sucessão limitada, pelo que existe M > 0 que verifica|an|rn ≤ M . Temos então que max|an(z − z0)

n| : z ∈ D(z0, s) ≤ |an|sn ≤ M( sr )n, pelo

que∞∑

n=1

max|an(z − z0)n| : z ∈ D(z0, s) ≤ M

∞∑

n=0

(s

r

)n< ∞,

e portanto∑∞

n=0 an(z − z0)n é uma série uniformemente convergente no disco compacto

D(z0, s). Como qualquer compacto K ⊂ D(z0, R) está contido dentro de algum destesdiscos compactos, concluimos a primeira parte.

Determinação do raio de convergência.

Proposição. (Fórmula de Cauchy-Hadamard) O raio de convergência da série podeser calculado através de:

R =1

lim sup n√

|an|

lim inf|an|

|an+1|≤ R ≤ lim sup

|an||an+1|

Exemplos. A série∑

n!zn tem raio de convergência nulo, pelo que é uma série formale por isso, não representa nunhuma função: só está definida quando z = 0, onde vale 0.A série

∑ zn

n! tem raio de convergência +∞ pelo que define uma função em todo o planocomplexo. Esta função é, como sabemos, a função exponencial.

Diferenciabilidade das séries de potências. O último caso do exemplo acima éválido em geral no sentido em que as séries de potências convergentes representam semprefunções difereciáveis nalguma região.

Proposição. Uma série convergente∑∞

n=0 an(z−z0)n define uma função diferenciável

no seu disco de convergência e a sua derivada∞∑

n=0

nan(z − z0)n−1,

é uma série convergente com o mesmo disco de convergência.

Demonstração. O facto de que estas séries definem funções contínuas é uma con-sequência da convergência uniforme em compactos. Para provar que f(z) =

∑∞n=0 an(z −

z0)n é diferenciável em z0 podemos assumir que z0 = 0 ∈ Ω, pois podemos substituir f por

f(z) = f(z + z0). A ideia é simplesmente calcular o limite que define diferenciabilidade.

12 1. DIFERENCIABILIDADE: FUNÇÕES HOLOMORFAS E FUNÇÕES ANALÍTICAS

Consideremos então f(z) =∑∞

n=0 anzn para z contido num disco D(0, r), r > 0 contidopor sua vez em Ω (dado que Ω é aberto).

Sejam sn(z) =∑n

k=0 akzk , Rn(z) =

∑∞k=n+1 akz

k e g(z) =∑∞

n=1 annzn−1, que repre-sentam respectivamente a sucessão de somas parciais, os restos e a derivada formal da sérief(z). Temos, para z,w ∈ D (0, r)

f(z) − f(w)

z − w− g(w) =

[

sn(z) − sn(w)

z − w− s′n(w)

]

+[

s′n(w) − g(w)]

+

[

Rn(z) − Rn(w)

z − w

]

Seja ε > 0. ∃N1 ∈ N tal que |s′n(w) − g(w)| < ε3 para n ≥ N1 porque, dado que os sn

são polinómios, para w fixo: limn→∞ s′n(w) = g(w).

Existe δ > 0 tal que∣

sn(z)−sn(w)z−w − s′n(w)

∣< ε

3 para |z−w| < δ pois o polinómio sn(w)

tem derivada. Finalmente, existe N2 ∈ N tal que para n ≥ N2:

Rn(z)−Rn(w)z−w

∣=∣

∑∞k=n+1 ak

(zk−wk)z−w

∣≤∑∞

k=n+1 |ak|∣

zk−wk

z−w

∣=

=∑∞

k=n+1 |ak|∣

∣zk−1 + zk−2w + · · · + zwk−2 + wk−1∣

∣ ≤∑∞k=n+1 |ak|krk−1

1 < ε3

A última desigualdade resulta do facto que∑∞

k=0 |ak|krk1 é a série dos módulos de

∑∞k=0 |ak|kzk para |z| = r1, que converge para r1 < r por hipótese, logo a sua cauda tende

para zero. Assim para qualquer ε > 0, existe N ∈ N e δ > 0 tal que∣

f(z) − f(w)

z − w− g(w)

3+

ε

3+

ε

3= ε

o que prova que f é diferenciável em qualquer ponto w ∈ D(0, r), e que a derivada é dadapela fórmula usual. O cálculo do raio de convergência da derivada é elementar.

Corolário. Uma série de potências convergente define uma função de classe C∞ noseu disco de convergência.

Exemplo. Exemplos:

Série geométrica1

1 − z=

∞∑

n=0

zn = 1 + z + z2 + ..., converge para |z| < 1.

sin z =∞∑

n=0

z2n+1

(2n + 1)!= z − z3

3!+

z5

5!− ..., converge em C.

1.3. Funções Analíticas

Definição. Diz-se que f : Ω → C é analítica em z0 ∈ Ω, se f coincide com umasérie de potências convergente num disco centrado em z0. Por outras palavras, se exister > 0 e uma série de potências

∑∞n=0 an(z − z0)

n, com raio de convergência r > 0, talque f(z) =

∑∞n=0 an(z − z0)

n para todo z ∈ D(z0, r). Diz-se que f é analítica em Ω se éanalítica em todos os pontos de Ω.

O seguinte resultado é uma consequência imediata do Corolário anterior.

Proposição. Se f é analítica numa região Ω, então f é holomorfa em Ω. Além dissof é infinitamente diferenciável em todos os pontos de Ω.

Como exemplos de funções analíticas em C temos os polinómios e as funções trigono-métricas seno, cosseno e exponencial. Se q(z) não se anula num aberto U , é também fácilde provar que as funções racionais da forma p(z)

q(z) são analíticas em U .

1.4. SÉRIES E O TEOREMA DE TAYLOR 13

As séries de potências convergentes são analíticas. Vimos que as séries definemfunções diferenciáveis no disco de convergência (se este fôr não vazio). Uma série é trivi-almente analítica no seu centro se e só se tem raio de convergência positivo. Também semostra facilmente a sua analiticidade em toda a região de convergência.

Teorema. [Lema de Abel] Se f(z) =∑∞

n=0 an(z−z0)n tem D(z0, r), r > 0 como disco

de convergência, então f e analítica em D(z0, r).

Demonstração. A ideia é modificar a série dada (usando a série geométrica) paradeterminar o desenvolvimento em série em torno de qualquer outro ponto do disco.

Para resumir os resultados desta secção, utilizamos as seguintes notações. Seja z0 ∈ C,r > 0 e D = D(z0, r). Denotemos por S(D) o conjunto das séries de potências convergentesem D e por A(D) o conjunto das funções analíticas em D. Assim, nesta secção provámosque

S(D) ⊂ A(D) ⊂ H(D).

De seguida mostraremos que, de facto, estes 3 conjuntos coincidem. Iremos igualmenteprovar que, com o produto usual de séries, estas igualdades tornam-se isomorfismos deanéis.

1.4. Séries e o teorema de Taylor

Definição. Se f é infinitamente diferenciável em z0 a sua série de Taylor em z0 é asérie:

∞∑

n=0

f (n) (z0)

n!(z − z0)

n .

Proposição. Se f é analítica em D(z0, r), r > 0, então f coincide com a sua sériede Taylor, e o raio de convergência desta série é maior ou igual a r.

Demonstração. Observe-se que no decorrer da demonstração da Proposição 1.2provou-se que a derivada da série f(z) =

∑∞n=0 an(z − z0)

n se pode escrever como f ′(z) =∑∞

n=0 ann(z−z0)n−1, série que tem o mesmo raio de convergência que f(z). Note-se ainda

que f(z0) = a0, f ′(z0) = a1 e derivando mais uma vez f′′

(z) =∑∞

n=0 ann(n−1)(z−z0)n−2

logo f′′

(z0) = 2a2. Continuando desta forma obtemos a seguinte proposição cuja demons-tração é deixada ao leitor.

1.4.1. Analiticidade das funções holomorfas. A ideia da prova do próximo te-orema envolve cálculo integral, mas apenas ao longo de circunferências, que são fáceisde parametrizar, pelo que apenas teremos que usar resultados elementares da teoria dointegral de Riemann em intervalos compactos de R.

Teorema. Se f : Ω → C é holomorfa em Ω, então f é analítica em Ω.

Demonstração. Seja f diferenciável em z0 ∈ Ω. Para provar que f é analítica em z0

podemos supor novamente que z0 = 0. Seja R > 0 tal que o disco D(0, R) está contido emΩ e seja r ∈]0, R[. Vamos definir, para z ∈ D(0, r) fixo, a função g : [0, 1] → C através daexpressão seguinte.

g(s) =

ˆ 2π

0

f(

(1 − s)z + sreit)

− f(z)

reit − zreitdt.

A função integranda é diferenciável em s e t ∈ [0, 2π], por hipótese. Logo g é uma funçãodiferenciável em [0, 1] e, para s 6= 0:

14 1. DIFERENCIABILIDADE: FUNÇÕES HOLOMORFAS E FUNÇÕES ANALÍTICAS

g′(s) =

ˆ 2π

0f ′(

(1 − s)z + λreit)

reitdt =

ˆ 2π

0F ′

s(t)dt = Fs(2π) − Fs(0) = 0,

onde Fs(t) = 1sif(

(1 − s)z + sreit)

para s 6= 0. Como g(0) = 0, e g′(s) = 0 para s 6= 0,conclui-se que g(s) ≡ 0 no intervalo s ∈ [0, 1]. Assim g(1) = 0 o que implica:

(1.4.1)ˆ 2π

0f(reit)

reit

reit − zdt = f(z)

ˆ 2π

0

reit

reit − zdt.

O quociente em ambos os membros pode-se desenvolver em série geométrica

reit

reit − z=

1

1 − zreit

=

∞∑

n=0

zn

(reit)n,

válida porque |z| < r. Assim:∞∑

n=0

(ˆ 2π

0

f(reit)

(reit)ndt

)

zn =

ˆ 2π

0

∞∑

n=0

f(reit)zn

(reit)ndt =

ˆ 2π

0f(reit)

reit

reit − zdt =

= f(z)

ˆ 2π

0

reit

reit − zdt = f(z)

ˆ 2π

0

∞∑

n=0

zn

(reit)ndt =

= f(z)∞∑

n=0

zn

ˆ 2π

0

dt

(reit)n= 2πf(z).

Aqui, a troca do integral com o somatório é justificada pelo facto de f ser limitada em[0, 2π] e todas as funções f(reit)(reit)−n serem integráveis neste intervalo. Como o últmointegral é nulo para n > 0 e é igual a 2π se n = 0, a última série reduz-se ao primeirotermo: f(z)2π. Concluimos, portanto que f é analítica pois para z ∈ D(0, r):

f(z) =∞∑

n=0

anzn em que an =1

ˆ 2π

0

f(reit)

(reit)ndt.

1.4.2. O teorema de Taylor. Os resultados anteriores podem assim ser resumidosno seguinte enunciado, o célebre Teorema de Taylor. Note-se que sendo Ω um aberto emC, o seu complemento é um fechado C := C \ Ω. Assim, se C é não vazio, a distância deum ponto z0 ∈ Ω a C tem um mínimo global (sendo a distância uma função contínua numcompacto não vazio da forma D(z0, R) ∩ C). Essa distância define o maior disco abertoD(z0, R) contido em Ω.

Teorema. [Taylor] Seja f diferenciável numa região Ω, z0 ∈ Ω e seja D(z0, R) o maiordisco aberto contido em Ω. Então f é analítica em D(z0, R). Alem disso, f(z) coincidecom a sua série de Taylor, em D(z0, R),

f(z) =

∞∑

n=0

f (n) (z0)

n!(z − z0)

n .

Em particular, o raio de convergência desta série é R. Temos também a seguinte repre-sentação integral das derivadas de f :

f (n) (z0) =n!

ˆ 2π

0

f(reit)

(reit)ndt.

1.4. SÉRIES E O TEOREMA DE TAYLOR 15

Note-se que este resultado não tem análogo no caso de funções diferenciáveis de umavariável real. Estes 2 últimos teoremas completam as identificações prometidas, isto é,temos:

S(D) = A(D) = H(D),

para qualquer disco D = D(z0, r).

Exemplo. Seja f : R → R dada por:

f(x) =

e−1

x2 , x > 0

0, x ≤ 0.

É fácil de verificar que f é infinitamente diferenciável em R, e que no ponto x = 0, todasas derivadas de f se anulam. Assim, a sua série de Taylor é zero. Portanto, f não coincidecom a sua série de Taylor em nenhuma vizinhança da origem. Esta “patologia” podeentender-se, do ponto de vista da análise complexa, verificando simplesmente que a função

f(z) = e−1

z2 não é holomorfa em z = 0 (mais precisamente, não se pode extender de formaa ser holomorfa em z = 0).

1.4.3. Fórmulas de Cauchy.

Corolário. As derivadas de todas as ordens de uma função f ∈ H(D(z0, R)) podemser calculadas através de

f (n)(z0) =n!

ˆ 2π

0

f(reit + z0)

(reit)ndt ( com n ≥ 0 e r ∈]0, R[)

Em particular, para n = 0 obtemos:

f(z0) =1

ˆ 2π

0f(reit + z0)dt

o que mostra que o valor de uma função holomorfa depende somente dos seus valores numacircunferência z0 + reit contida na sua região de holomorfia.

1.4.4. Desigualdades de Cauchy.

Corolário. Se f ∈ H(Ω) e D(z0, R) ⊂ Ω, então

∣f (n)(z0)

∣≤ n!

RnMR

onde MR = maxt∈[0,2π]

∣f(z0 + Reit)∣

∣.

Demonstração. O resultado segue da estimativa:∣

∣f (n)(z0)

∣=

n!

ˆ 2π

0

f(Reit + z0)

(Reit)ndt

≤ n!

2πRn

ˆ 2π

0

∣f(Reit + z0)∣

∣ dt

≤ n!

2πRn2πMR =

n!

RnMR.

Exemplo. Finalizamos esta subsecção com duas consequências importantes do Teo-rema de Taylor, que manifestam claras diferenças em relação à análise real.

16 1. DIFERENCIABILIDADE: FUNÇÕES HOLOMORFAS E FUNÇÕES ANALÍTICAS

1.4.5. O teorema de Liouville. A primeira é o teorema de Liouville, sem dúvidaum resultado que contraria a intuição adquirida com funções de variável real.

Definição. Uma função f : C → C diz-se inteira se é holomorfa em todo C, isto é, sef ∈ H(C).

Teorema. (Liouville): Uma função inteira e limitada é constante.

Demonstração. Por hipótese f ∈ H(C) e |f | ≤ M . Pelas desigualdades de Cau-chy, temos

∣f (n)(0)∣

∣ ≤ n!Rn M , mas f ∈ H(D(0, R)) para todo R > 0. Logo pode-

mos fazer R tão grande quanto quisermos o que implica f (n)(0) = 0 ∀n ≥ 1. Como

f(z) =∑∞

n=0f(n)(0)

n! zn ,∀z ∈ C, concluimos que f(z) = f(0), ∀z ∈ C.

A segunda é o teorema das singularidades de Riemann, passo essencial para a classifi-cação de singularidades levada a cabo no próximo capítulo.

1.4.6. O teorema da remoção das singularidades de Riemann.

Teorema. Seja Ω uma região, z0 ∈ Ω uma singularidade isolada de f(z). Se f éholomorfa e limitada em Ω r z0 então f pode ser extendida a uma função holomorfa emtoda a região Ω.

Demonstração. Podemos assumir que z0 = 0 ∈ Ω e escrevemos f(z) =∑

anzn deacordo com o Teorema de Taylor, num certo disco D. Como f(z) é limitada em D afunção g(z) = zf(z) tem limite igual a zero quando z → 0. Pelo que g é contínua emΩ. Isto significa que a função h(z) = z2f(z) = zg(z) é holomorfa em Ω porque, sendonaturalmente holomorfa em Ω r z0 temos que h′(0) = limz→0

zg(z)−0z = g(0) = 0. Uma

vez que h(0) = h′(0) = 0, podemos escrever h(z) = a0z2 + a1z

3 + · · · , sendo uma umasérie convergente em D, ou seja, f(z) = a0 + a1z + a2z

2 + · · · em D, o que implica que fé holomorfa também em z = 0.

Em conclusão, neste capítulo definimos funções diferenciáveis, holomorfas e analíticas,e mostrámos que estas noções são equivalentes em qualquer região do plano complexo. Emparticular, podemos ver os elementos do anel H(Ω) como funções ou como séries, de acordocom as necessidades. Vimos também alguns exemplos de funções diferenciáveis (nalgumaregião) e relacionámos raio de convergência com domínio de diferenciabilidade.

1.5. Exercícios

1.1 Seja f : C → C uma função holomorfa tal que ℑf(z) = 4. Mostre que f éconstante. Se o domínio de f fôr C \ R, a mesma conclusão é válida? Justifique.

1.2 (a) Determine uma função f , analítica em C, tal que

ℜf(x + iy) = e2x cos 2y + x2 − y2 + 1

(b) Determine f ′(πi2 ).

CAPíTULO 2

Cálculo Integral no Plano Complexo

Neste capítulo, vamos introduzir o cálculo integral no plano complexo e desenvolveros seus métodos fundamentais. Em particular, abordamos os teoremas de Cauchy e oconhecido teorema dos resíduos, bem como algumas das suas aplicações. Começamos comas séries de Laurent e classificação de singularidades isoladas.

2.1. Séries de Laurent e Singularidades Isoladas

Tal como as funções polinomiais se generalizam para séries de potências, as funçõesracionais têm uma generalização: as séries de Laurent.

Definição de série de Laurent. Como vimos, uma série de potências convergenteestá naturalmente associada a um disco, o seu disco de convergência. Mais geralmente,a uma série de Laurent convergente podemos naturalmente associadar um anel, comoveremos.

Definição. Seja z0 ∈ C e r1 < r2 ∈ [0,∞]. Um anel centrado em z0 e de raios r1 e r2

é o conjuntoA(z0; r1, r2) = z ∈ C : r1 < |z − z0| < r2.

Como casos particulares temos A(z0; 0, r), que é um disco perfurado, também denotadopor D

∗(z0, r) = z ∈ C : 0 < |z − z0| < r e A(0, 0,∞) = C∗.

Definição. Uma série de Laurent centrada em z0 é uma série da forma:+∞∑

n=−∞

an(z − z0)n =

∞∑

n=0

an(z − z0)n +

∞∑

n=1

a−n

(z − z0)n.

Assim, uma série de Laurent é a soma da sua parte regular∑∞

n=0 an(z − z0)n com a sua

parte principal∑∞

n=1a−n

(z−z0)n . Como anteriormente, convém distinguir o caso das séries de

Laurent formais, em que a região de convergência é no máximo um ponto, do caso contrário,que serão chamadas séries de Laurent convergentes.

Convergência das séries de Laurent.

Teorema. Seja∑+∞

n=−∞ an(z − z0)n uma série de Laurent convergente. Então, exis-

tem r1 < r2 ∈ [0,+∞] tais que a série é uniformemente convergente em A(z0; r1, r2) e

diverge em C\A(z0; r1, r2). Além disso, esta série define uma função diferenciável no anelA(z0; r1, r2).

Demonstração. De acordo com o Teorema 1.2, a parte regular∑∞

n=0 an(z − z0)n

converge num certo disco D(z0, r2) com r2 ∈]0,+∞]. Por outro lado, a parte principal∑∞

n=1a−n

(z−z0)n é uma série de potências positivas na variável w = 1z−z0

. Logo, converge

quando w ∈ D(0, 1r1

) para certo r1 ∈]0,+∞], ou seja, para |w| < 1r1

que equivale a |z−z0| >r1, o complemento de um disco fechado no plano z. Uma vez que a soma das duas partesconverge para algum valor de z, temos que r2 > r1. Assim, a série dada converge na

17

18 2. CÁLCULO INTEGRAL NO PLANO COMPLEXO

intersecção das duas regiões, isto é, para r1 < |z − z0| < r2. A demonstração que a sériedefine uma função diferenciável é análoga ao caso analítico.

Tal como no caso das séries de potências não negativas, o recíproco também se verifica.

Teorema. Dada uma função f(z) diferenciável num anel A(z0; r1, r2), existe umasérie de Laurent centrada em z0,

∑+∞n=−∞ an(z − z0)

n, tal que

f(z) =

+∞∑

n=−∞

an(z − z0)n, em A(z0; r1, r2).

Alem disso, temos:

an =1

2πi

˛

|z−z0|=r

f(z)

(z − z0)n+1dz,

para qualquer r ∈ [r1, r2].

Singularidades isoladas.

Definição. Seja f uma função diferenciável num disco perfurado D∗(z0, r) centradoem z0. Então diz-se que f tem uma singularidade isolada em z0 ou que z0 é uma singularidadeisolada de f .

Classificação das singularidades isoladas. Se uma função f(z) é holomorfa numdisco perfurado D∗(z0, r), podemos escrever a sua série de Laurent na seguinte forma:

f(z) =

∞∑

n=0

an(z − z0)n +

∞∑

n=1

bn

(z − z0)n,

onde∑∞

n=1bn

(z−z0)n é a sua parte principal.

Definição. A singularidade z0 é chamada:

• Removível se a parte principal é 0,• Pólo de ordem m, se a parte principal é

∑mn=1

bn

(z−z0)n , com bm 6= 0,• Essencial, se a parte principal não é uma série finita, ou seja, se para qualquer

N > 0 existe m > N com bm 6= 0.

Note-se que a definição de singularidade removível é consistente com o teorema das singu-laridades removíveis de Riemann.

Os pólos e as singularidades essenciais têm comportamentos fundamentalmente distin-tos. Mais precisamente, consideremos f ∈ H(D∗(z0, r)) e a seguinte função auxiliar, paran ≥ 0 inteiro, ϕn(z) = (z − z0)

nf(z). Assim, temos o seguinte resultado de classificação:

Teorema. Seja f diferenciável num disco perfurado D∗(z0, r), e ϕn(z) a família defunções definidas acima, n = 0, 1, 2, ... . Então, temos:

(1) z0 é uma singularidade removível se e só se limz→z0 ϕ0 existe,(2) z0 é um pólo de ordem n se e só se limz→z0 ϕn(z) existe e é não nulo,(3) z0 é uma singularidade essencial se e só se limz→z0 ϕn(z) não existe para nenhum

n ∈ N.

Demonstração. ...

2.2. INTEGRAÇÃO NO PLANO COMPLEXO 19

2.2. Integração no plano complexo

Seja [a, b] um intervalo na recta real (a < b).

Definição. Um caminho (no plano complexo) é uma aplicação γ : [a, b] → C secci-onalmente regular, isto é, tal que γ′(t) existe excepto para um número finito de valoresde t ∈ [a, b], e rectificável, isto é, verificando

´ ba |γ′(t)| dt < +∞. Note-se que, sendo

γ(t) = x(t)+ iy(t), temos γ′(t) = x′(t)+ iy′(t) e |γ′(t)|2 = x′(t)2 +y′(t)2. Uma curva Γ ⊂ C

é a imagem de um caminho, isto é um conjunto tal que existe um caminho γ : [a, b] → C

com γ([a, b]) = Γ. Neste caso, diz-se que γ é uma parametrização de Γ.

Observação. Naturalmente, existem múltiplas parametrizações de uma única curva Γ.No entanto, para simplificar alguns enunciados, frequentemente abusaremos terminologiae identificaremos um caminho com a respectiva curva.

Definição. Os dois extremos de um caminho γ : [a, b] → C são o seu ponto inicialγ(a) e o seu ponto final γ(b). Um caminho (ou a respectiva curva) diz-se fechado se os seusextremos coincidem. O caminho inverso a um dado caminho γ : [a, b] → C, é o caminhoγ : [−b,−a] → C definido por γ(t) := γ(−t), pelo que ambos definem a mesma curva, maspercorrida em sentido contrário. Em particular, o ponto inicial de γ é o ponto final de γ evice-versa.

Observação. Muitas vezes, ao considerarmos uma dada curva Γ, indicamos os seusextremos de forma explícita, dizendo por exemplo: “Γ é uma curva com ponto inical z0

e ponto final z1”; neste caso, uma parametrização de Γ, para além de ser um caminhoγ : [a, b] → C tal que γ([a, b]) = Γ, deve verificar adicionalmente γ(a) = z0 e γ(b) = z1. Damesma forma, podemos falar da curva inversa a uma dada curva.

Exemplo. 2.2 Um caminho que parametriza a circunferência unitária Γ = z ∈C : |z| = 1, é, por exemplo γ(t) = eit com t ∈ [0, 2π]. Naturalmente, σ(t) = e2πit,t ∈ [0, 1]; η(t) = eit, t ∈ [−π, π], e ν(t) = e−2πit, t ∈ [0, 1] parametrizam a mesmacircunferência, o último caminho sendo o único percorrido no sentido horário.Estes exemplos ilustram a importância de indicar sempre o domínio de definiçãodo caminho.

2.2 Seja γ : [0, 1] definida por γ(t) = cos(

1t

)

, γ(0) = 0. Temos que γ é seccionalmenteregular, pois é contínua para t 6= 0, mas não é rectificável, como o leitor poderáverificar.

Definição. Dado um caminho γ : [a, b] → Ω e uma função contínua f : Ω → C (ouseccionalmente contínua e limitada), definimos o integral de f ao longo de γ (ou integral def em γ) como

ˆ

γf :=

ˆ b

af(γ(t)) γ′(t) dt.

Por vezes, e de modo a recordar os termos envolvidos nesta definição, escrevemos também´

γ f(z)dz em lugar de´

γ f .

Observação. Note-se que o integral do segundo membro é um integral de Riemannuma vez que a função integranda f(γ(t))γ′(t) é seccionalmente contínua e limitada e aregião de integração é o intervalo compacto [a, b].

Algumas operações em curvas são especialmente relevantes. Um caminho constante daforma γ(t) = z0 para todo t ∈ [a, b], representa uma curva que consiste num só ponto: z0.Sendo γ : [a, b] → C um caminho com ponto inicial γ(a) e ponto final γ(b), o caminho

20 2. CÁLCULO INTEGRAL NO PLANO COMPLEXO

Proposição. O integral verifica as seguintes propriedades:(1) Linearidade relativa à função integranda;(2) Aditividade relativa à concatenação de curvas;(3) Independência da parametrização;(4) Troca de sinal ao inverter o caminho.

Demonstração. ...

2.3. O teorema fundamental do cálculo

Teorema. Seja F ∈ H(Ω). Então, para qualquer curva γ ⊂ Ω, temos:

ˆ

γF ′(z) dz = F (γ(b)) − F (γ(a)).

Demonstração. Usamos essencialmente o teorema fundamental do cálculo para fun-ções de uma variável real.

Definição. Seja Ω uma região em C. Uma função contínua f : Ω → C diz-se primiti-vável em Ω se existe uma outra função F , diferenciável em Ω, tal que F ′ = f em Ω. Nestecaso, a função F chama-se uma primitiva de f em Ω.

É fácil de verificar que, sendo Ω um conjunto conexo, quaisquer duas primitivas F1 eF2, da mesma função f diferem por uma constante aditiva.

Como consequência do teorema de Taylor, vemos que se f é primitivável em Ω, entãoé diferenciável (e analítica) em Ω. Vejamos que o recíproco também é válido, mas apenaslocalmente.

Comecemos por verificar que qualquer função contínua cujos integrais em curvas fecha-das suficientemente pequenas se anulam, é uma função primitivável. Se R é um rectângulofechado, designamos por ∂R a curva que define a sua fronteira, percorrida no sentidodirecto.

Para abreviar, dizemos que γ é uma curva rectangular se é a composição de curvashorizontais ou verticais.

Teorema. [Morera] Seja f contínua numa região Ω. Se para todo rectângulo fechadoR ⊂ Ω, contido em Ω, temos

´

∂R f(z) dz = 0, então f é primitivável em Ω. Em particular,f ∈ H(Ω).

Demonstração. Basta considerar rectângulos suficientemente pequenos, pois dife-renciabilidade é uma propriedade local. Assim, podemos supor que Ω = D(z0, r) é umdisco em torno de z0 ∈ Ω, e definimos

F (z) :=

ˆ

γz

f(z) dz,

onde γz é qualquer curva rectangular com início em z0 e fim em z ∈ D(z0, r). Uma vezque´

∂R f(z) dz = 0 para qualquer rectângulo R ⊂ D(z0, r), esta função está bem definida.Assim, calculamos, para h ∈ C,

F (z + h) − F (z)

h=

1

h

ˆ z+h

zf(w) dw,

2.3. O TEOREMA FUNDAMENTAL DO CÁLCULO 21

em que o integral acima é calculado ao longo de uma curva rectangular entre z e z + h.Assim, temos a estimativa

F (z + h) − F (z)

h− f(z)

=

1

h

ˆ

[z,z+h][f(w) − f(z)] dw

≤ 1

|h| |h| maxw∈[z,z+h]

|f(w) − f(z)|,

pelo que o limite que define F ′(z) existe e iguala f(z), como pretendido. Assim, f éprimitivável em Ω, pelo que também é holomorfa em Ω.

Corolário. Se f(z) é contínua em Ω e´

γ f(z) dz = 0 para toda a curva fechada

γ ⊂ Ω, então f é holomorfa em Ω.

Demonstração. Se´

γ f(z) dz = 0 para toda a curva fechada γ ⊂ Ω, então´

∂R f(z) dz =

0 para qualquer rectângulo fechado R ⊂ Ω.

Podemos assim, resumir a relação entre primitivas e integrais.

Teorema. Seja f contínua em Ω. As seguintes afirmações são equivalentes:(1) f é primitivável em Ω.(2)´

γ f(z) dz só depende dos pontos inicial e final de γ em Ω.

(3)¸

γ f(z) dz = 0 para qualquer curva fechada γ em Ω.

Qualquer uma das condições implica f ∈ H(Ω).

Demonstração. Supondo que f é primitivável em Ω e que F (z) é uma sua primitiva,e que γ é uma qualquer curva de z0 a z1 temos, pelo teorema fundamental do cálculo:

ˆ

γf(z) dz = F (z1) − F (z0),

pelo que (1) implica (2) e (3). Supondo agora que z0 ∈ Ω e que os integrais de f se anulampara todas as curvas fechadas, defina-se para cada z ∈ Ω:

F (z) :=

ˆ

γz

f(z) dz,

onde γz é uma curva qualquer em Ω, com início em z0 e fim em z. Para provar que Festá bem definida, seja κz uma outra curva em Ω com início em z0 e fim em z. Assim, acomposição de uma com a inversa da outra, κ−1

z ∗ γz é uma curva com início e fim em z0

pelo que é uma curva fechada e temos:ˆ

κ−1z ∗γz

f(z) dz =

ˆ

γz

f(z) dz −ˆ

κz

f(z) dz = 0,

pelo que o valor de F (z) está bem definido. Finalmente, calculamos, para h ∈ C,

F (z + h) − F (z)

h=

1

h

ˆ z+h

zf(w) dw

em que o integral acima pode ser considerado como um integral ao longo de [z, z + h], osegmento de recta entre z e z + h (pois fazendo h suficientemente pequeno, este segmentoestá em Ω). Assim, a mesma estimativa do teorema de Morera, permite concluir que olimite que define F ′(z) existe e é igual a f(z), como pretendido. Assim, f é primitivávelem Ω, terminando a demonstração de que (3) implica (1). É também fácil provar que (2)implica (3), pois podemos decompor uma curva fechada em duas, obtendo o resultado.

22 2. CÁLCULO INTEGRAL NO PLANO COMPLEXO

Este teorema está em perfeita analogia com o que se passa em análise real.Por outro lado, podemos perguntar: sendo f ∈ H(Ω) é verdade que f(z) tem primitiva

em Ω?A resposta é não. Notavelmente, consideremos o caso f(z) = 1

z . Como sabemos,f ∈ H(C\0), mas esta função não é primitivável em C\0. Há pelo menos duas formasde ver isto: se existisse primitiva, ela seria dada localmente, pela função F (z) = log(z),no entanto, como sabemos, esta função não é contínua em Ω = C \ 0. Outra forma deverificar esta situação é através do cálculo:

ˆ

|z|=1

1

zdz = 2πi 6= 0,

o que, usando o Teorema 2.3, mostra que f(z) não admite primitiva.Na próxima secção, estudando o Teorema de Cauchy, estamos interessados em saber,

dada uma região Ω e uma função holomorfa f ∈ H(Ω) em que condições temos´

γ f(z) dz =

0 para curvas fechadas γ em Ω.

2.4. O Teorema de Cauchy-Goursat

Vamos aqui demonstrar uma versão fraca do teorema de Cauchy, válida apenas pararegiões convexas, mas que já é extremamente útil para múltiplas aplicações da análise com-plexa. Para aplicações do cálculo integral convém por vezes considerar funções holomorfasem conjuntos fechados.

Definição. Seja Q ⊂ C um conjunto fechado. Dizemos que f é holomorfa em Qse existe uma região Ω, que contém Q, onde podemos definir f (mais precisamente, umaextensão de f) de forma a que f ∈ H(Ω).

Começamos por um lema.

Lema. (Goursat) Seja f holomorfa num rectângulo R. Então´

∂R f(z) dz = 0.

Demonstração. Decompor o rectângulo em rectângulos cada vez mais pequenos.

Teorema. (De Cauchy) Seja Ω uma região convexa, de forma a que a sua fronteira éuma curva fechada γ (regular por troços). Se f é holomorfa em Ω, então

´

γ f(z)dz = 0.

Demonstração. Seguir o Lang. Primeiro mostra-se para curvas próximas e paracurvas rectangulares, usando o Teorema de Goursat.

2.5. O Teorema dos Resíduos

Quando uma função tem apenas um número finito de singularidades isoladas, podemosencontrar o valor dos integrais ao longo de curvas de Jordan (simples e fechadas). Para ocálculo destes integrais contam apenas as singularidades na componente interior.

Teorema. (dos resíduos) Seja γ uma curva de Jordan com componente interior D. Sef é uma função holomorfa em γ e em D, à excepção de um número finito de singularidadesisoladas z1, ..., zn em D, então:

γf(z)dz = 2πi

n∑

k=1

Res(f, zk)

2.6. EXERCÍCIOS 23

2.6. Exercícios

2.1 Determine todos os possíveis desenvolvimentos de 1z3+i

em série de potências dez (isto é, centrados em z0 = 0), indicando o anel em que cada um é válido.

2.2 Considere a função f(z) =1

z2 + 1+

−1 + cos z

z2.

(a) Determine e classifique todas as singularidades de f , calculando os respectivosresíduos.

(b) Determine o desenvolvimento de Laurent de f na região definida por |z| > 1.(c) Calcule os integrais

˛

|z|= 12

f(z) dz e˛

|z− i2|=2

f(z) dz,

onde as curvas são percorridas uma vez no sentido negativo.

2.3 Calcule˛

Γ

cos z

z + 3idz, onde Γ(t) = 1 + eit, t ∈ [0, 2π].

2.4 Seja Ω = C \ x + 0i : x ≤ 0. Calcule o integralˆ

γlog z dz

onde γ é um caminho em Ω com início em 1 e fim em i.2.5 Seja DR = z ∈ C : ℑz ≥ 0, |z| ≤ R, com R >

√2. Calcule os integrais

∂DR

eiz

z2 + 2dz, e

ˆ +∞

−∞

cos x

x2 + 2dx.

2.6 Aplique convenientemente o teorema dos resíduos para mostrar queˆ 2π

0

1

(3 + 2 sin(θ))2dθ =

53/2.

CAPíTULO 3

Funções Meromorfas e a Esfera de Riemann

Neste capítulo, vamos definir e estudar as funções meromorfas. Esta é uma classe defunções muito importante, e consiste nas funções numa dada região Ω que são holomorfasem todos os pontos de Ω à excepção de um conjunto discreto de singularidades, que sãotodas pólos.

Um exemplo fundamental de funções meromorfas consiste nas funções racionais, quesão quocientes de funções polinomiais. Assim, começaremos pelo estudo dos polinómios ede algumas das suas propriedades algébricas.

3.1. Funções Meromorfas

Seja Ω uma região de C, isto é, um subconjunto aberto, conexo e não vazio de C.

Definição. Uma função f diz-se meromorfa em Ω se f é holomorfa em Ω à excepçãode singularidades isoladas que são todas pólos ou singularidades removíveis de f . Maisprecisamente, f é meromorfa em Ω se f é holomorfa em Ω \ S onde S é um subconjuntodiscreto de Ω e z ∈ S se e só se z é um pólo ou uma singularidade removível de f . Usamosa notação M(Ω) para indicar o conjunto das funções meromorfas na região Ω.

Recorde que S é um subconjunto discreto de Ω se para cada ponto z0 ∈ S, existe umdisco centrado em z0, D = D(z0, r) suficientemente pequeno, de tal forma que S∩D = z0,ou seja S ∩ D∗(z0, r) é vazio. Assim, qualquer singularidade de uma função meromorfa éisolada.

Exemplo. (1) Qualquer função holomorfa em Ω é meromorfa em Ω (Aqui o conjuntoS é vazio).

(2) Para qualquer z0 ∈ C, a função dada por f(z) = 1(z−z0)n , para z = C \ z0 e

n ∈ N, é holomorfa em C \ z0. Uma vez que z0 é um pólo de ordem n, temos que f(z) émeromorfa em C, isto é f ∈ M(C).

(3) Se f(z) = 1p(z) onde p(z) é um polinómio não identicamente nulo é meromorfa em

C, e holomorfa se e só se p(z) é não constante.

3.1.1. O corpo das funções meromorfas. O conjunto das funções meromorfasnuma região Ω denota-se por M(Ω). Pelo exemplo (1) acima, temos H(Ω) ⊂ M(Ω).

Anteriormente, vimos que H(Ω) é um anel, com a operações usuais de soma e produtode funções. Também em M(Ω) podemos somar, subtrair e multiplicar funções. Alémdisso, dadas duas funções meromorfas f, g ∈ M(Ω), sendo g(z) não indenticamente nula,o quociente f(z)/g(z) é uma função meromorfa em Ω.

Proposição. Seja Ω ⊂ C uma região. M(Ω) é um corpo que contém o anel H(Ω).

Demonstração. Basta ver o caso do quociente f/g, com f, g ∈ M(Ω) e com g 6= 0.Neste caso, basta verificar que, quando f e g são representados por séries de Laurent,válida num certo disco perfurado, então podemos escrever f(z)/g(z) também como sériede Laurent, válida num certo disco perfurado, eventualmente menor que o inicial, mascertamente não vazio.

25

26 3. FUNÇÕES MEROMORFAS E A ESFERA DE RIEMANN

3.1.2. Definição de ordem de um ponto.

Definição. Seja f uma função meromorfa (não identicamente nula) em Ω e z0 ∈ Ω.A ordem de f em z0, que se denota por ordz0(f), é o índice do primeiro termo não nulo daexpansão em série de Laurent num disco perfurado em torno de z0. Mais precisamente sef(z) =

k≥m ak(z − z0)k é a expansão referida, onde am 6= 0, então ordz0(f) := m ∈ Z.

Proposição. Seja f ∈ M(Ω), z0 ∈ Ω e k = ordz0f . Temos:(1) k > 0 se e só se f é holomorfa em z0 e f(z0) = 0(2) k = 0 se e só se f é holomorfa em z0 e f(z0) 6= 0(3) k < 0 se e só se z0 é pólo de f de ordem −k.

Demonstração. Exercício.

Proposição. Sejam f, g ∈ M(Ω) e z0 ∈ Ω. Então:(1) ordz0(fg) = ordz0(f) + ordz0(f)

(2) ordz0(fg ) = ordz0(f) − ordz0(f)

(3) ordz0(f ± g) ≥ minordz0(f), ordz0(g)Demonstração. Exercício.

3.2. Polinómios e o Teorema Fundamental da Álgebra

Definição. Como sabemos, um polinómio de grau n é uma função p que se podeescrever na forma

p(z) = anzn + an−1zn−1 + ... + a1z + a0,

onde ai ∈ C e an 6= 0. Os polinómios podem-se somar e multiplicar, pelas regras usuais,formando assim um anel comutativo designado usualmente por C[z]. Uma raíz do polinómiop é um número complexo z0, tal que p(z0) = 0. Vamos denotar por deg p ∈ N0 o grau deum polinómio não nulo p(z) ∈ C[z].1

3.2.1. Teorema fundamental da Álgebra. O resultado mais importante sobre po-linómios de váriavel complexa é o chamado teorema fundamental da álgebra, que afirmaque qualquer polinómio não constante possui uma raíz em C.

Teorema. [Gauss] Qualquer polinómio complexo não constante tem uma raíz com-plexa. Por outras palavras, dado um polinómio de grau n ≥ 1, p(z) = a0 +a1z + ...+anzn,existe z0 ∈ C tal que p(z0) = 0.

Para provar este teorema vamos usar duas propriedades simples dos polinómios quetambém são válidas, como veremos mais tarde, para as funções analíticas.

3.2.2. Polinómios não constantes são ilimitados. Intuitivamente, os polinómiosnão constantes são ilimitados, facto que se verifica igualmente para os polinómios comcoeficientes reais. Mais precisamente temos:

Lema. Se p(z) = anzn + an−1zn−1 + · · · + a1z + a0 é um polinómio de grau n > 0,

então |p(z)| → ∞ quando |z| → ∞.

Demonstração. Basta usar a desigualdade triangular, e o facto de que a funçãoan−1

z + · · · + a1zn−1 + a0

zn tende para zero quando z → ∞. Em particular, existe um R > 0

tal que |an−1

z + · · · + a1zn−1 + a0

zn | < |an|2 , sempre que |z| > R (note-se que an 6= 0). Assim,

temos:

1Por consistência com certos resultados, ao polinómio nulo atribui-se grau −1.

3.2. POLINÓMIOS E O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ÁLGEBRA 27

|p(z)| = |zn|∣

∣an +

an−1

z+ · · · + a1

zn−1+

a0

zn

∣≥ |zn|

(

|an| −∣

an−1

z+ · · · + a1

zn−1+

a0

zn

)

≥ |zn|(

|an| −1

2|an|

)

=1

2|an||z|n para todo o z tal que |z| > R.

Isto é suficiente para concluir o pretendido.

Este lema pode ser reescrito numa forma análoga à do teorema de Liouvile (2.10).

Corolário. Se p(z) é um polinómio limitado então ele é constante.

3.2.3. Princípios do módulo máximo e mínimo para polinómios. Os poli-nómios verificam também os princípios do módulo máximo e do módulo mínimo, outrapropriedade que embora seja simples de demonstrar, já não é tão intuitiva, dado que nãoé válida para os polinómios reais.

Definição. Seja Ω uma região. Dizemos que uma função h : Ω → R, tem um máximo(resp. mínimo) local em z0 ∈ Ω, se existe uma vizinhança V ⊂ Ω de z0 tal que h(z0) ≥ h(z)(resp. h(z0) ≤ h(z)) para todo z ∈ V .

Proposição. Dado um polinómio não constante p, a função h(z) := |p(z)|, h : C → R

não tem máximos locais, e não tem mínimos locais em pontos z0 onde p(z0) 6= 0.

Demonstração. Podemos supor, sem perda de generalidade, que o máximo ou mí-nimo local é atingido em z0 = 0 (porque se |p(z)| tem máximo/mínimo em z0 então|p(z+z0)| tem máximo/mínimo em 0). Assim, seja p(z) = anzn+an−1z

n−1+· · ·+amzm+a0,ak = |ak|eiαk (onde am, 0 < m ≤ n, é o primeiro coeficiente não nulo a seguir ao a0) ez = reiθ. O caso m = n, sendo mais simples, é deixado ao leitor. Supondo m < n,dado que am+1z + · · · + anzn−m tende para zero quando z → 0, existe um certo ε > 0tal que |am+1z + · · · + anzn−m| < |am| para todo z com |z| < ε. Isto equivale a ter|am+1z

m+1 + · · · + anzn| < |amzm| sempre que 0 < |z| < ε.Esta desigualdade permite provar ambos os princípios, pelo que vamos somente deduzir

o princípio do mínimo. Assim, para 0 < |z| < ε, e assumindo a0 6= 0,

|a0 + amzm + am+1zm+1 + · · · + anzn| ≤ |a0 + amzm| + |am+1z

m+1 + · · · + anzn| <

< |a0 + amzm| + |amzm| =∣

∣|a0|eiα0 + |am|rmeiαmemiθ

∣+ |amzm| =

= |a0| − |am|rm + |am|rm = |a0| = |p(z0)|desde que agora tomemos θ de tal modo a que α0 = αm + mθ + π. Assim, em qualquervizinhança de 0, |p(z)| não atinge um mínimo, a menos que a0 = 0. Neste último casoo ponto z0 = 0 é uma raíz de p(z), a função |p(z)| não tem mínimos locais, excepto nasraízes de p(z).

Como consequência destes princípios, vemos que, para qualquer polinómio não cons-tante, a função h(z) = |p(z)| não apresenta nenhum máximo em nenhuma região Ω ⊂ C,e só apresenta mínimos quando essa região contém uma ou mais raízes de p(z). Por outrolado, como consequência do teorema de Weierstrass para funções contínuas em conjuntoscompactos, temos o seguinte enunciado, cuja demonstração se deixa ao leitor (note-se queum polinómio é uma função contínua).

Corolário. Se p(z) é um polinómio não constante, e K ⊂ C é um subconjuntocompacto, então os máximos da função h(z) = |p(z)| (restringida a K) encontram-se nafronteira ∂K de K; os mínimos de h encontram-se também em ∂K quando p(z) não temraízes no interior de K.

28 3. FUNÇÕES MEROMORFAS E A ESFERA DE RIEMANN

3.2.4. Demonstração do Teorema Fundamental da Álgebra. Podemos agoraprovar o teorema fundamental da álgebra, que foi demonstrado por primeira vez por Gauss:

Teorema. Qualquer polinómio não constante possui pelo menos uma raíz em C.

Demonstração. De acordo com o Lema 3.2.2, seja R tal que |p(z)| > |a0|, sempreque |z| ≥ R. Assim, se por exemplo considerarmos o disco fechado D(R), sabemos, peloteorema de Weierstrass que a função contínua h(z) = |p(z)| : C → R, tem um mínimoem D(R). Este mínimo não está na circunferência fronteira, porque |p(z)| > |a0| = p(0),sempre que z ∈ C(R). Assim, o mínimo estará no interior do disco, o que pelo princípiodo mínimo (Proposição 3.2.3), implica que existe um z0, tal que p(z0) = 0.

3.2.5. Factorização de polinómios. Outra propriedade bem conhecida dos polinó-mios é o chamado algoritmo de divisão de polinómios, ou algoritmo de Euclides. Dadosdois polinómios p(z) e q(z), verificando deg p > deg q, existem outros dois polinómios d(z)(o divisor) e r(z) (o resto), de forma a que se verifique

p(z) = d(z)q(z) + r(z).

Os polinómios d(z) e r(z) são únicos se impusermos que deg r < deg q. Dizemos que umpolinómio q(z) divide p(z) se o resto da divisão de p(z) por q(z) é zero.

Usando o algoritmo de divisão de polinómios, existe uma forma alternativa de escrevero Teorema Fundamental da Álgebra. Seja p(z) um polinómio de grau n > 0, que admiteum zero em z0. Então, pelo algoritmo de divisão de polinómios, podemos escrever p(z) =(z − z0)q(z), onde q(z) é um polinómio de grau n − 1. Assim, podemos demonstrar porindução, o seguinte resultado:

Teorema. Qualquer polinómio de grau n > 0 pode se escrever na forma:

p(z) = a(z − z1) . . . (z − zn),

onde z1, · · · , zn são raízes de p(z), (não necessáriamente distintas) e a ∈ C∗. Em alterna-tiva podemos escrever

p(z) = a(z − w1)n1 · · · (z − wk)

nk

onde a ∈ C∗, w1, ..., wk são as k ≤ n raizes distintas de p e n1 + ... + nk = n.

Outra propriedade importante dos polinómios é o facto de que, dados quaisquer po-linómios p(z) e q(z), existe um polinómio (único, se insistirmos em que o coeficiente demaior grau seja igual a 1), chamado o maior divisor comum de p(z) e q(z), denotado porgcd(p, q) que verifica as seguintes propriedades.

Proposição. Seja d(z) = gcd(p(z), q(z)). Então, d(z) é o único polinómio mónico(coeficiente de maior grau igual a 1) que verifica: (i) d(z) divide p(z) e q(z); (2) Se h(z)divide p(z) e q(z) então h(z) divide d(z).

3.2.6. Teorema de Gauss-Lucas. Vamos agora provar o teorema de Gauss-Lucasque relaciona, de uma forma interessante, a localização dos zeros de p(z) com os zeros dasua derivada. Como sabemos os polinómios são funções inteiras e a derivada do produto deduas funções é dada pela regra usual: (f(z)g(z))′ = f ′(z)g(z)+ f(z)g′(z). Assim, prova-sepor indução que, para um polinómio de grau n escrito na forma p (z) = a(z−z1) . . . (z−zn),(com os pontos zi não necessariamente distintos) p′(z) é um polinómio de grau n− 1 e que

p′(z) = a

n∑

i=1

(z − z1) · · · (z − zi)′ · · · (z − zn) = a

n∑

i=1

j 6=i

(z − zj) = p(z)

(

n∑

i=1

1

z − zi

)

3.3. FUNÇÕES RACIONAIS 29

Recorde-se que e H = z : ℑ(z) > 0 designam o semiplano superior formado peloscomplexos com parte imaginária positiva.

Lema. Se os zeros de p(z) se encontram no fecho do semiplano superior H, então oszeros de p′(z) também estão em H.

Demonstração. Seja p(z) = a(z − z1) · · · (z − zn) com zk ∈ H(Imzk ≥ 0). Temos,

então:p′(z)

p(z)=

1

z − z1+ · · ·+ 1

z − zn. Se Imz < 0 temos Im(z−zk) = Imz− Imzk < 0, logo

Im(

1z−zk

)

> 0 e portanto Im(

p′(z)p(z)

)

> 0 o que implica p′(z) 6= 0 para todo o z ∈ C\H.

O resultado anterior tem uma interessante interpretação geométrica, que se deixa comoexercício ao leitor. (Exercício ??)

Teorema. (Teorema de Gauss-Lucas): Os zeros de p′(z) estão no menor polígonoconvexo e fechado que contém os zeros de p(z).

Exercício. Prove que um polinómio não constante define uma função aberta.

3.3. Funções Racionais

3.3.1. Definição de função racional. Vamos agora considerar as funções mais sim-ples a seguir aos polinómios.

Definição. Uma função racional é o quociente de dois polinómios em que o denomi-nador não é o polinómio identicamente nulo. Assim, uma função racional é da forma

f(z) =p(z)

q(z)

onde q tem grau ≥ 0 2. Note-se que f não define unicamente p e q, pois podemos multiplicarp e q pelo mesmo polinómio não nulo, obtendo a mesma função racional. Assim, sem perdade generalidade, e salvo expressa menção em contrário, assumiremos sempre que f é umafracção irredutível, ou seja, p e q não contém raizes em comum.

Uma vez que o conjunto dos zeros de q(z) é finito, este forma um subconjunto discretode C. Desta forma, temos.

Proposição. Uma função racional é uma função meromorfa em todo o plano com-plexo.

Demonstração. De facto, as singularidades de f(z) = p(z)/q(z) são as raizes de q,um conjunto finito, e qualquer uma delas é um pólo de f , como facilmente se verifica.

3.3.2. Polinómios e funções racionais. Naturalmente os polinómios, sendo funçõesinteiras, são casos muito particulares de funções racionais. Reciprocamente, é igualmentefácil de verificar que uma função racional f(z) = p(z)/q(z) escrita na forma irredutível, éholomorfa se e só se q(z) é constante, ou seja se e só se é um polinómio.

Lema. Uma função racional é holomorfa em C (ie, não tem singularidades) se e só seé um polinómio.

Demonstração. Exercício.

2Como mencionado antes, convenciona-se que o polinómio nulo tem grau −1.

30 3. FUNÇÕES MEROMORFAS E A ESFERA DE RIEMANN

3.3.3. Definição de Função racional própria e simples.

Definição. Uma função racional própria é uma função racional p(z)/q(z) em que δp <δq. Uma função racional simples é uma função racional própria da forma p(z)/(z − z0)

k,para certos z0 ∈ C e k ∈ N (δp < k), ou seja, uma função racional própria que é holomorfaem C excepto num único ponto. Por vezes, usam-se também as expressões fracção própriae fracção simples, respectivamente.

Lema. (1) Se f(z) é uma fracção própria, então |f(z)| → 0 quando |z| → +∞.(2) Se f1(z) e f2(z) são fracções próprias, então f1(z)f2(z) e f1(z)±f2(z) também são

fracções próprias.

Demonstração. Exercício.

3.3.4. Decomposição das funções racionais. As funções racionais podem decompor-se usando o algoritmo de divisão dos polinómios.

Proposição. Qualquer função racional se pode escrever como a soma de um polinómioe de uma função racional própria.

Demonstração. Algoritmo de divisão de polinómios.

3.3.5. Decomposição das funções racionais próprias. Um resultado muito im-portante, que permite a simplificação de muitos problemas que envolvem funções racionaisé o da decomposição em fracções simples.

Proposição. Seja f(z) = q(z)p(z) uma função racional própria e seja p(z) = (z −

z1)k1 · · · (z − zl)

kl a decomposição do denominador em factores (sem perda de generali-dade). Então podemos escrever f(z) como soma de funções racionais simples

f(z) =q1(z)

(z − z1)k1+ · · · + ql(z)

(z − zl)kl.

Assim, para cada j = 1, ..., l o grau de qj é estritamente inferior a kj . Em particular,qj(z)

(z−zj)kj

é a parte principal de f(z) num disco perfurado em torno de zj .

Demonstração. Há duas demonstrações que vale a pena apresentar: uma é pura-mente algébrica e outra usa a análise complexa. Primeiro, vejamos a demonstração algé-brica para o caso de p(z) com duas raízes distintas. O caso geral é análogo. Assim, sejap(z) = (z−z1)

k1(z−z2)k2 , deg p = k1 +k2, em que z1 e z2 são pontos distintos de C e q(z)

um polinómio de grau < deg p. Como z1 6= z2, os polinómios (z−z1)k1 e (z−z2)

k2 têm gcdigual a 1, pelo que, aplicando a identidade de Bézout (ver Apêndice) existem polinómiosq1(z) e q2(z) tais que

(3.3.1) q1(z)(z − z2)k2 + q2(z)(z − z1)

k1 = q(z).

Uma vez que q(z) não tem raízes em comum com p(z), zj não é raíz de qj(z), j = 1, 2.Dividindo por p(z) obtemos uma soma de fracções irredutíveis:

(3.3.2)q(z)

p(z)=

q1(z)

(z − z1)k1+

q2(z)

(z − z2)k2.

Note-se, no entanto, que os polinómios q1(z) e q2(z) que satisfazem a Equação (3.3.1) nãosão únicos, podendo-se efectuar as substituições seguintes, para qualquer polinómio r(z):

q1(z) 7→ q1(z) + r(z)(z − z1)k1

q2(z) 7→ q2(z) − r(z)(z − z2)k2

3.4. A ESFERA DE RIEMANN 31

Desta forma, tomando o resto da divisão de q1 por (z − z1)k1 , podemos assumir que temos

uma solução da Equação (3.3.1) com deg q1 < k1. Finalmente, como deg q < deg p, temosna Equação (3.3.2) duas fracções próprias, pelo que a terceira também o é (ver o Lemma3.3.3(2)).

Façamos agora a demonstração analítica, que identifica imediatamente cada termo coma parte principal correspondente. Uma vez que nenhum das raízes z1, ..., zl de p(z) é raízde q(z), vemos que ordzj

f = −kj, pelo que podemos escrever a parte principal de f(z) em

torno de zj como qj(z)

(z−zj)kj

. Seja

h(z) = f(z) − q1(z)

(z − z1)kj− · · · − ql(z)

(z − zl)kl.

É fácil de ver que h(z) é holomorfa em todos os pontos (nos pontos zj tem singularidadesremovíveis) pelo que é inteira. Por outro lado, h(z) é uma fracção própria, pois é somade fracções próprias. Mas uma fracção própria que é holomorfa tem que ser zero, como severifica facilmente.

Exemplo. Represente em frações simples

z2

(z2 + 4)(z − 3)

O seguinte enunciado resume o essencial dos resultados nesta secção.

Teorema. Qualquer função racional própria q(z)/p(z) se pode escrever como a somade fracções simples. Cada uma destas fracções simples é a parte principal do desenvolvi-mento em série de Laurent em torno de uma das raízes de p(z).

3.4. A esfera de Riemann

Há uma interpretação geométrica do conceito de função meromorfa que torna estadefinição mais natural. Para isso, introduzimos a esfera de Riemann.

3.4.1. A esfera de Riemann.

Definição. A esfera de Riemann é o conjunto C∞ = C∪∞ com a topologia em queuma base para as vizinhanças de ∞ são os complementos de D(0, R). Usando a notação

D(∞, r) = C \ D(0, 1r ), podemos então dizer, como habitualmente, que Ω ⊂ C∞ é aberto

se e só se para todo o ponto z0 ∈ Ω existe R > 0 tal que D(z0, R) ⊂ Ω.

Observação. Isto significa que f : Ω → C∞ é contínua em z0 se f é contínua noaberto Ω \ f−1(∞) e se limz→z0 |f(z0)| = ∞ sempre que f(z0) = ∞.

3.4.2. Equivalência entre funções meromorfas e funções com valores na es-fera de Riemann.

Proposição. Uma função meromorfa f em Ω define uma função contínua Ω → C∞.Reciprocamente, uma função contínua f : Ω → C∞ com f ∈ H(Ω \ f−1(∞)) e f−1(∞)discreto em Ω, define uma função meromorfa em Ω.

Demonstração. Exercício.

32 3. FUNÇÕES MEROMORFAS E A ESFERA DE RIEMANN

3.4.3. Funções meromorfas no infinito. Como vimos, as funções racionais sãomeromorfas em C. Uma vez que as fracções próprias tendem para 0 no infinito, é naturalextender o domínio deste tipo de funções para conter o ponto do infinito na esfera deRiemann.

Definição. Seja f holomorfa numa região do tipo z ∈ C : |z| > R. Diz-se que ftem uma singularidade removível, um pólo de ordem k ou uma singularidade essencial em∞ se a função g(z) := f(1

z ) tem uma singularidade removível, um pólo de ordem k ou umasingularidade essencial, respectivamente, em 0.

Desta forma, podemos extender a noção de função meromorfa a este tipo de funções.

Definição. Uma função f diz-se meromorfa no infinito se a função g(z) := f(1/z)é meromorfa no ponto z = 0. Analogamente, a ordem de f no infinito define-se comoord∞f = ord0g. Uma função f diz-se meromorfa na esfera de Riemann se é meromorfa emC e é meromorfa também no ponto ∞ ∈ C∞.

Podemos ver que as funções racionais, sendo funções meromorfas em C, podem considerar-se, de forma natural, como aplicações da esfera de Riemann em si mesma.

Lema. Uma função racional é meromorfa em C∞.

Demonstração. Exercício (use a Proposição 3.4.2).

3.4.4. Funções meromorfas na esfera de Riemann. Vamos agora classificar asfunções meromorfas em C∞. Para isso, o seguinte resultado topológico é fundamental.

Lema. A esfera de Riemann é um conjunto compacto.

Demonstração. Exercício.

A compacidade da esfera de Riemann permite mostrar o recíproco do Lema 3.4.3.

Proposição. Qualquer função meromorfa em C∞ é uma função racional.

Demonstração. Exercício.

3.4.5. Projecção estereográfica. A esfera de Riemann pode ser obtida de três for-mas distintas, todas elas relevantes. Anteriormente, definimos a esfera de Riemann comoC∞ = C ∪ ∞ dando uma topologia a este conjunto.

Podemos caracterizá-la como a esfera usual em R3, à qual demos uma noção de estru-

tura complexa.

Lema. A aplicação φ : S2 → C∞ é um homeomorfismo.

3.4.6. A recta projectiva. Podemos também caracterizar a esfera de Riemann comoo espaço dos subespaços vectoriais de dimensão 1 em C2, ou seja, como a “recta projectivacomplexa”.

Lema. A aplicação η : CP1 → C∞ é um homeomorfismo (biholomorfismo).

3.5. Transformações de Möbius

3.5.1. Definição de transformação de Möbius.

Definição. Uma transformação de Möbius é uma função racional da forma T (z) =az+bcz+d com ad − bc 6= 0.

3.5. TRANSFORMAÇÕES DE MÖBIUS 33

Note-se que a condição ad− bc 6= 0 é equivalente à condição de que pelo menos um dospolinómios az + b e cz +d é não constante, e que não têm nenhuma raíz em comum. Destaforma, uma transformação de Möbius é uma função holomorfa em todo o plano complexo,à excepção do ponto z0 = −d

c . No entanto, é fácil extender esta função a uma aplicaçãoT : C∞ → C∞, que denotamos com a mesma letra, não havendo perigo de confusão. Paraesta extensão, definimos T (−d

c ) = ∞ e T (∞) = ac , onde se pode convencionar, de forma

não ambígua, que quando c = 0, temos dc = a

c = ∞.As seguintes poropriedades são úteis na caracterização destas transformações.

Proposição. Uma transformação de Möbius é uma aplicação bijectiva e contínua daesfera de Riemann nela própria.

Demonstração. A fórmula para a transformação inversa é fácilmente obtida atravésde

w =az + b

cz + d⇐⇒ z =

1

ad − bc

dz − b

−cz + a.

Para a bijectividade, resta provar que isto é ainda uma função de C∞ para si próprio, o quese deixa ao leitor. A contínuidade em C \ −d

c é clara. Neste ponto e em ∞, o resultadosegue dada a topologia que colocámos em C∞.

Como vimos, a fórmula da transformação inversa é bastante simples no caso em quead − bc = 1. Assim, quando escrevemos T (z) = az+b

cz+d com ad − bc = 1, dizemos que Testá escrita na forma normalizada. Multiplicando numerador e denominador pelo mesmocoeficiente apropriado, vemos que qualquer transformação de Möbius se pode escrever naforma normalizada.

Proposição. Uma transformação de Möbius é uma aplicação conforme de C∞ emC∞.

Demonstração. Uma vez mais, para pontos de C\−dc o resultado segue da fórmula

da derivada:

T ′(z) =ad − bc

(cz + d)26= 0.

Nos restantes pontos é também fácil verificar, mediante definição apropriada de aplicaçãoconforme (ver exercício ).

Denotamos o conjunto das aplicações de Möbius por Mob e vamos caracterizá-lo.

3.5.2. A aplicação canónica GL(2, C) → Mob. Seja GL(2, C) o grupo das matrizes2×2 invertíveis de entradas complexas, e SL(2, C) o subgrupo das matrizes invertíveis quetêm determinante igual a 1. Seja

A =

(

a bc d

)

∈ GL(2, C),

e seja τA a transformação de Möbius dada por τA(z) = az+bcz+d .

3.5.3. O grupo das transformações de Möbius.

Teorema. O conjunto das transformações de Möbius forma um grupo, isomorfo aPSL(2, C) (ou PGL(2, C)) que é, por definição, o quociente de SL(2, C) pelo seu centro.

Demonstração. Consideremos a aplicação τ definida em SL(2, C), por τ(A) := τA,para A ∈ SL(2, C). Podemos provar que τ : SL(2, C) → Mob é sobrejectiva, que é umhomomorfismo de grupos e que o seu núcleo é

ker(τ) = ±I

34 3. FUNÇÕES MEROMORFAS E A ESFERA DE RIEMANN

onde I é a matriz identidade. Assim, pelo teorema do isomorfismo em grupos, temos queMob = SL(2, C)/ ± I grupo este que é, por definição PSL(2, C).

3.5.4. Acção de Mob na esfera de Riemann. Este grupo actua na esfera de Rie-mann, C∞ de forma natural. Podemos ver que esta acção preserva a união das rectas comas circunferências do plano.

Definição. Uma circunferência de C∞ é uma circunferência em C ou uma recta emC ∪ ∞.

Assim, uma circunferência de C∞ é um conjunto compacto, sendo um conjunto fechadoem C∞.

Proposição. A imagem de uma circunferência de C∞ por uma transformação deMöbius é novamente uma circunferência de C∞.

Demonstração. Basta provar que qq transformação de Möbius é a composição detransformações de 3 tipos: translacções, dilatações e inversão. Todas estas preservamcircunferências de C∞.

Supor c = 0. Então T (z) = az+bd . Supor c 6= 0. Então, T (z) = az+b

cz+d =acz+ b

c

z+ dc

= β

z+ dc

+α,

pela decomposição em fracções simples (de facto, α = ac e β = bc−ad

c2 6= 0).

3.5.5. Pontos fixos. Qualquer transformação de Möbius não trivial tem apenas 1 ou2 pontos fixos.

Teorema. Seja T (z) = az+bcz+d uma tranformação de Möbius distinta da identidade,

escrita na forma normalizada. Então T tem um ponto fixo, caso a + d = ±2, ou doispontos fixos, no caso contrário.

3.5.6. Tripla transitividade. Este resultado permite mostrar que a acção de Mobem C∞ é transitiva, e além disso, uma transformação de Möbius é completamente deter-minada pela acção em triplos de pontos distintos.

Proposição. A acção de Mob em C∞ é 3-transitiva; isto é, dados dois triplos (z1, z2, z3)e (w1, w2, w3) de pontos distintos (zi 6= zj e wi 6= wj , sempre que i 6= j ∈ 1, 2, 3) existeuma única transformação de Möbius M(z) tal que M(z1) = w1, M(z2) = w2 e M(z3) = w3.

Teorema. Dados três pontos distintos da esfera de Riemann, z1, z2, z3, existe umaúnica transformação de Möbius que envia z1 em ∞, z2 em 0 e z3 em 1.

Demonstração. Essa transformação de Möbius é dada por T (z) = z1−z3z2−z3

z2−zz1−z =

[z1, z2; z3, z] = [z3z1

z2z]. Para ver que só há uma transformação que fixa ∞, 0 e 1, usa-se

a proposição da tripla transitividade.

3.5.7. A razão cruzada.

Definição. A razão cruzada dos complexos z1, z2, z3, z4 é o número [z1, z2; z3, z4] =z1−z3z2−z3

z2−z4z1−z4

. É fácil de ver que a razão cruzada está bem definida sempre que z1, z2 e z3

são pontos distintos em C∞ (mas z4 pode ser igual a um desses três pontos).

Proposição. A razão cruzada é invariante pelas tranformações de Möbius.

Demonstração. Façamos a demonstração para T (z) = az + b ∈ Mob. Assim,

[T (z1), T (z2);T (z3), T (z4)] =T (z1) − T (z3)

T (z2) − T (z3)

T (z2) − T (z4)

T (z1) − T (z4)=

z1 − z3

z2 − z3

z2 − z4

z1 − z4= [z1, z2; z3, z4].

3.6. EXERCÍCIOS 35

Para J(z) = 1/z, temos

[J(z1), J(z2);J(z3), J(z4)] =1z1

− 1z3

1z2

− 1z3

1z2

− 1z4

1z1

− 1z4

=z3 − z1

z3 − z2

z4 − z2

z4 − z1= [z1, z2; z3, z4].

Como qualquer transformação de Möbius é composição destas, o resultado segue.

3.5.8. Famílias interesantes de transformações de Möbius.

Lema. As transformações de Möbius que preservam apenas o ∞ são da forma T (z) =az + b com a 6= 0. As transformações que preservam 0 e ∞ são da forma T (z) = λz comλ 6= 0.

Demonstração. Fácil.

Proposição. As transformações de Möbius que preservam o “equador da esfera deRiemann”, isto é R∞ := R ∪ ∞, são da forma f(z) = az+b

cz+d com a, b, c, d reais (e claro,

ad − bc 6= 0).

Demonstração. Seja f(z) = az+bcz+d uma transformação de Möbius com coeficientes

a, b, c, d reais. Então f(x) ∈ R∞ para qualquer x ∈ R, e f(∞) = ac ∈ R∞, donde f preserva

R∞. Reciprocamente, se f preserva R∞, também f−1 preserva R∞ (pela bijectividade),pelo que existem x1, x2, x3 ∈ R∞ distintos tais que f(x1) = ∞, f(x2) = 0, f(x3) = 1.Assim, usando a razão cruzada, f tem coeficientes reais.

3.6. Exercícios

3.1 Sejam p(z) e q(z) polinómios.(a) Assumindo deg p < deg q, prove que o limite p(z)

q(z) , quando z tende para ∞,existe e é 0.

(b) Mostre que deg(pq) = deg(p) + deg(q) e que deg(p± q) ≤ maxdeg p,deg q.3.2 Determine os pontos de máximo e de mínimo de |p(z)| em D = z ∈ C : |z| ≤ 1

nos casos: (a) p(z) = z − 12 ; (b) p(z) = z3 − z.

3.3 Seja p(z) um polinómio de grau n ≥ 2 e z0 ∈ C.(a) Mostre que p(z) tem n raízes distintas se e só se p(z) e p′(z) não têm uma

raíz em comum.(b) Defina Iz0 = q(z) ∈ C[z] : q(z) tem uma raíz em z0. Prove que Iz0 é um

ideal maximal do anel C[z].3.4 [Teorema de Lucas] Dado um polinómio p(z), demonstre que os zeros de p′(z)

estão contidos no menor polígono convexo e fechado que contém os zeros de p(z).3.5 Mostre que, se p(z) é um polinómio cujos zeros são todos reais, então o mesmo se

passa com a sua derivada p′(z). Prove que se os zeros de p(z) têm módulo menorque 1, o mesmo se passa com p′(z).

3.6 Sejam p(z) e q(z) dois polinómios de grau ≥ 1, cujos conjuntos de raízes Rp

e Rq não se intersectam. Mostre que existem polinómios r(z) e s(z) tais quer(z)p(z) + s(z)q(z) = 1.

3.7 Sejam z1, ..., zn pontos da esfera de Riemann e m1, ...,mn números inteiros cujasoma é zero. Mostre que existe uma função racional f(z) cujos zeros ou polosestão no conjunto z1, ..., zn e tal que a ordem de f(z) em zj é precisamente mj.É possível existir uma tal função se a soma dos mj não for nula?

3.8 Mostre que a esfera de Riemann é um espaço topológico compacto. Prove quequalquer função meromorfa em C∞ é uma função racional.

3.9 Se T (z) = az+bcz+d é uma transformação de Möbius diferente da identidade, mostre

que T T (z) = z, para todo z, se e só se a + d = 0.

36 3. FUNÇÕES MEROMORFAS E A ESFERA DE RIEMANN

3.10 Uma função meromorfa f ∈ M(C∞) diz-se holomorfa no ponto ∞ ∈ C∞ seord∞f = ord0h ≥ 0 onde h(w) := f( 1

w ); neste caso, a sua derivada em ∞ édefinida por f ′(∞) = h′(0). Mostre que uma transformação de Möbius T (z) éholomorfa no ∞ se e só se T (∞) 6= ∞, e neste caso, verifique que T ′(∞) 6= 0.

3.11 Seja T uma transformação de Möbius com um único ponto fixo α ∈ C. Mostreque existe β ∈ C, tal que 1

T (z)−α = 1z−α + β. Prove que T é conjugada3 a uma

translação da forma S(z) = z + 1.3.12 Prove que se T é uma transformação de Möbius com dois pontos fixos α, β ∈ C,

então existe λ ∈ C\0, tal que T (z)−αT (z)−β = λ z−α

z−β . Prove também que T é conjugadaa uma função da forma S(z) = az. (a ∈ C

∗).3.13 Considere a transformação de Möbius T , tal que T (0) = 2, T (1) = 1, T (−1) = 5

3 .Quantos pontos fixos tem T em C∞? Determine T (C) onde C é a circunferênciaunitária C = z ∈ C : |z| = 1.

3.14 Mostre que [z1, z2; z3, z4] é um número real se e só se os pontos z1, z2, z3 e z4 seencontram numa circunferência de C∞.

3.15 Mostre que as transformações que preservam o semi-plano superior H são da formaT (z) = az+b

cz+d com a, b, c, d ∈ R e ad − bc > 0.

3.16 Seja T (z) =α − z

1 − αzuma transformação de Möbius, com α ∈ C. Quais os valores

que α não pode tomar? Mostre que T preserva a circunferência unitária C = z ∈C : |z| = 1 e que, para |α| < 1, T (D) = D = z ∈ C : |z| < 1.

3Recorde que duas transformações de Möbius S e T dizem-se conjugadas se existir uma transformaçãode Möbius F tal que S = F

−1 T F .

CAPíTULO 4

Teoria Local das Funções Holomorfas e Meromorfas

Vamos agora demonstrar vários resultados importantes, que constituem as propriedadeslocais fundamentais das funções holomorfas ou diferenciáveis.

4.1. O Teorema da Função Inversa e Isomorfismos Locais

Em primeiro lugar, devemos recordar as noções de função diferenciável, holomorfa eanalítica (Ver Capítulo 1).

4.1.1. Isomorfismos locais. Vamos também introduzir a noção de invertibilidadelocal de funções.

Definição. Diz-se que f ∈ H(Ω) é um isomorfismo (analítico) local em z0 ∈ Ω seexistem vizinhanças U ⊂ Ω de z0 e V de w0 := f(z0) tal que f |U : U → V é bijectiva e afunção inversa g : V → U é também holomorfa.

Observação. (1) Note-se que a noção de isomorfismo local coincide com a noçãousual de isomorfismo na categoria em que os objectos são regiões em C e os morfismos sãoaplicações holomorfas entre regiões.

(2) Veremos abaixo que não é necessário exigir que a função inversa seja holormorfa!

4.1.2. Teorema da função inversa. Podemos enunciar o teorema da função inversaque é inteiramente análogo ao correspondente teorema no caso real.

Teorema. (Teorema da função inversa). Se f ∈ H(Ω) é conforme em z0 ∈ Ω, então fé um isomorfismo local em z0. Além disso, sendo w0 = f(z0), temos (f−1)′(w0) = 1/f ′(z0).

Demonstração. Usar o teorema da função inversa para funções de R2 em R2.

Vamos agora ver que o recíproco do teorema da função inversa também é verdade. Ouseja, se f é um isomorfismo local em z0, então f ′(z0) 6= 0.

4.1.3. A série binomial. Vamos necessitar da expansão em série da função binomial.Seja α ∈ R.

Lema. A função binomial (1 + z)α admite a expansão

(1 + z)α =

∞∑

n=0

(

α

n

)

zn,

em que(

α

n

)

:=α(α − 1) · · · (α − n + 1)

n!,

e esta série converge para z ∈ D = D(0, 1).

Demonstração. Para ver a convergência, basta fazer o teste da razão |an|/|an+1| =|(n + 1)/(α − n)| que converge para 1 quando n → ∞. Para verificar o desenvolvimentoem série, basta fazer as derivadas em z = 0.

37

38 4. TEORIA LOCAL DAS FUNÇÕES HOLOMORFAS E MEROMORFAS

Proposição. Sejam f(w) =∑

n≥0 anwn e g(z) =∑

n≥1 bnzn (note que b0 = 0) séries

convergentes (raio de convergência positivo). Então a série obtida por composição

h(z) := a0 +∑

n≥1

an

(

bkzk)n

converge absolutamente para z ∈ D(0, s), para certo s > 0, e verifica-se nesse disco, h(z) =f(g(z)).

Demonstração. Ver Lang. Fazemos aqui apenas a demonstração que a função com-posição é analítica em z = 0. Note-se que a composição de funções holomorfas é ho-lomorfa; para provar analiticidade, precisamos apenas de verificar diferenciabilidade emabertos. Como g ∈ H(D(0, r)) para algum r > 0 e f ∈ H(D(0, r′)) para certo r′ > 0(pois g(0) = 0), temos que h := f g é holomorfa em D(0, r) ∩ g−1(D(0, r′)). Como istoé um aberto em D(0, r), temos que existe s > 0 tal que D(0, s) ⊂ D(0, r) ∩ g−1(D(0, r′)) eportanto, pelo Teorema de Taylor, h = f g é analítica em D(0, s).

Exemplo. Seja m inteiro positivo. Sabemos que f(z) = (1+z)1m =

∑( 1

mn

)

zn, convergeem D. Seja g(z) qualquer série convergente com g(0) = 0. Então H(z) = f g(z) =

(1 + g(z))1m =

∑( 1

mn

)

g(z)n é representada por uma série convergente com H(0) = 1; etemos H(z) = 1 + h(z) com (1 + h(z))m = 1 + g(z).

4.1.4. Forma local e multiplicidade. Para isso, vejamos como escrever uma funçãoholomorfa em torno de um ponto, em termos de isomorfismos locais.

Proposição. (Forma local). Seja f ∈ H(Ω), não constante em qualquer disco cen-trado em z0 ∈ Ω. Então existe uma vizinhança U ⊂ Ω contendo z0, um inteiro m ≥ 1 euma aplicação holomorfa ϕ(z) ∈ H(U), com ϕ(z0) = 0 e ϕ′(z0) 6= 0 tal que, para z em U :

f(z) = f(z0) + ϕ(z)m.

Demonstração. Podemos assumir z0 = 0. Como f(z) é holomorfa em 0 = z0 ∈ Ω,pelo teorema de Taylor, existe uma expansão em série

f(z) =

∞∑

n=0

anzn = f(z0) +∑

n≥1

anzn

válida para certo disco D(0, r). Como f(z) é não constante neste disco, existe o menornatural m ≥ 1 tal que am 6= 0. Então, podemos escrever

f(z) = f(z0) + amzm(1 + g(z))

onde g(z) é holomorfa em D(0, r) com g(0) = 0. Pelo exemplo anterior, podemos escrever,com αm = am

f(z) = f(z0) + (αz)m(1 + h(z))m

para certa função holomorfa h(z). Pondo ϕ(z) = αz(1 + h(z)) temos o pretendido, poisϕ(0) = 0 e

ϕ′(0) = α 6= 0.

Observação. Note-se que a função ϕ(z) da Proposição anterior, é um isomorfismolocal, pelo TFI.

Definição. O número natural m que aparece nesta Proposição chama-se a multipli-cidade da função f(z) em z0, e escreve-se m = multz0f .

4.1. O TEOREMA DA FUNÇÃO INVERSA E ISOMORFISMOS LOCAIS 39

4.1.5. Equivalência entre isomorfismo local e invertibilidade local. A formalocal permite mostrar o seguinte recíproco do teorema da função inversa.

Teorema. Se f ∈ H(Ω) verifica f ′(z0) = 0, z0 ∈ Ω, então f não é localmenteinvertível em z0, isto é, não existem vizinhanças U ⊂ Ω contendo z0 e V contendo f(z0)tais que f : U → V seja bijectiva.

Demonstração. Usemos a forma local. Se f é isomorfismo local, temos que m = 1(pois se m > 1 a função f não tem inversa local em z0). Logo f ′(z0) = ϕ′(z0) 6= 0 comoqueriamos provar.

Corolário. Se f é um isomorfismo local em z0, então f ′(z0) 6= 0.

Desta forma, o teorema da função inversa diz que uma função holomorfa é isomorfismolocal em z0 sse multz0f = 1.

4.1.6. O teorema da aplicação aberta. A forma local tem também uma consequên-cia topológica importante. Uma função f : A → B entre dois espaços topológicos diz-seaberta se f(U) é um conjunto aberto para todo conjunto U aberto em A. O seguinte Lemaé útil.

Lema. Seja m inteiro positivo. A função h(z) = zm é aberta, e é localmente invertívelno ponto 0 se e só se m = 1.

Demonstração. Se m = 1 é obviamente aberta e localmente invertível. Se m > 1,então não é invertível (pois há sempre m raízes distintas), mas é ainda aberta, pois aimagem de um disco D(0, r) é o disco D(0, rm).

Teorema. (Aplicação aberta). Se f ∈ H(Ω) é não constante em todos os discosD ⊂ Ω, então é aberta.

Demonstração. Uma função é aberta sse para todo z0 em Ω existe vizinhança abertaU ⊂ Ω, tal que f(U) é aberto em f(Ω). Seja z0 ∈ Ω e U a vizinhança do teorema da formalocal. Então f(z) = (p ϕ)(z) onde p(z) = f(z0) + zm é um simples polinómio e ϕ é oisomorfismo local em z0. Como tanto p como ϕ são abertas, f(U) é um aberto.

4.1.7. Isomorfismos locais e globais. Usando o teorema da função inversa, pode-mos finalmente concluir o seguinte.

Corolário. Se f ∈ H(Ω) e f é bijectiva então define um isomorfismo entre Ω e f(Ω).

Demonstração. Se f é holomorfa em Ω e f ′(z0) 6= 0 para certo z0, então f não ébijectiva em torno de z0. Logo, temos que f ′(z0) 6= 0 para todo z0 ∈ Ω. Assim, f é umisomorfismo local em todos os pontos de Ω, pelo que é um isomorfismo global!

4.1.8. Funções conformes. Fazemos a seguinte definição.

Definição. Diz-se que f ∈ H(Ω) é conforme em z0 ∈ Ω se preserva angulos.

Como conclusão do nosso estudo, obtemos o seguinte.

Corolário. As seguintes condições são equivalentes para f ∈ H(Ω): (1) f é conformeem z0; (2) f ′(z0) 6= 0 (3) f é um isomorfismo local em z0. (4) f é localmente invertível.

Note-se que este resultado não se verifica para funções reais de variável real. Porexemplo, a função diferenciável f(x) = x3, não tem inversa diferenciável na origem, mas élocalmente invertível.

40 4. TEORIA LOCAL DAS FUNÇÕES HOLOMORFAS E MEROMORFAS

4.2. Princípio dos zeros isolados

Outra propriedade que advém do comportamento local das funções holomorfas é queo conjunto dos seus zeros é discreto.

Teorema. (Princípio dos zeros isolados): Se f ∈ H(Ω) é não constante e f(z0) =0 , z0 ∈ Ω, então existe uma vizinhança de z0 , V ⊂ Ω, onde o único zero de f é z0.

Demonstração. Se f(z0) = 0 e f(z) =∑∞

n=0 an(z − z0)n num disco D(z0, r) ⊂ Ω,

então a0 = 0 e, dado que f é não constante seja m = multz0f ≥ 1. Então

f(z) =∑∞

n=m an(z − z0)n = am(z − z0)

m + am+1(z − z0)m+1 + · · · =

= (z − z0)m (am + am+1(z − z0) + · · · ) = (z − z0)

mg(z)

onde g(z) =∑∞

n=0 am+n(z−z0)n , g(z0) = am 6= 0. Como g ∈ H(D(z0, r)), g(z) é contínua

e existe uma vizinhança V de z0 tal que g(z) 6= 0 ,∀z ∈ V . Como o único zero de (z−z0)m

é em z0, obtemos o pretendido.

Teorema. : Para f ∈ H(Ω) as seguintes afirmações são equivalentes:(1) f ≡ 0 em Ω

(2) ∃a ∈ Ω tal que f (n)(a) = 0 ∀n ∈ N

(3) Zf = f−1(0) = z ∈ Ω : f(z) = 0 tem um ponto de acumulação em Ω.

Demonstração. É imediato que (1) implica (2) e (3). Para provar que (3) ⇒ (2)vamos supor que z0 é um ponto de acumulação de Zf = f−1(0) e que zk → z0 é umasucessão de zeros de f em Ω \ z0: Seja m ∈ N o primeiro natural tal que f (m)(z0) 6= 0.

Então f(z) =

∞∑

n=m

an(z − z0)n = (z − z0)

mg(z) com g(z0) 6= 0. Como (zk − z0)m 6= 0 e

f(zk) = 0 obtemos g(zk) = 0 o que contradiz o facto de g ser contínua; logo podemos pora = z0.

Para provar que (2) ⇒ (1) seja A =

z ∈ Ω : f (n)(z) = 0 ∀n ∈ N0

. Por hipóteseA 6= ∅. A é fechado porque se zk → z (zk ∈ A) então f (n)(zk) = 0 ∀n ≥ 0 o que implicaf (n)(z) = 0 pela continuidade da n−ésima derivada de f ; logo z ∈ A. A é também

aberto porque se z0 ∈ A então f(z) =

∞∑

n=0

an(z − z0)n num certo disco D(z0, r), e como

an =1

n!f (n)(z0) = 0, temos que f(z) = 0 para todo o z ∈ D(z0, r); assim D(z0, r) ⊂ A.

Como A é aberto, fechado e não vazio e Ω é conexo, A = Ω.

Considerando a função h(z) = f(z)−g(z) e aplicando este teorema obtemos o chamadoprincípio da igualdade:

Teorema. (Princípio da igualdade): Sejam f, g ∈ H(Ω). f(z) = g(z) ∀z ∈ Ω, see só se o conjunto z ∈ Ω : f(z) = g(z) tem um ponto de acumulação.

4.3. Princípio do módulo máximo

Podemos agora provar o princípio do módulo máximo e o dos zeros isolados que são,no fundo, resultados válidos para as séries de potências convergentes.

Teorema. (Princípio do módulo máximo): Se f ∈ H(Ω) e |f(z)| tem um máximolocal em z0 ∈ Ω, então f é constante em Ω.

4.5. EXERCÍCIOS 41

Demonstração. Se D := D(z0, R) ⊂ Ω então podemos escrever a expansão

f(z) =∑

n≥0

an(z − z0)n = f(z0) +

n≥0

an(z − z0)n,

válida para z ∈ D ⊂ Ω. Supondo que f não é constante em D (f(z) 6= a0 = f(z0)),como vimos atrás, f é aberta, pelo que f(D), a imagem de D contém um disco abertoD′ := D(a0, s) ⊂ f(D) centrado em a0 = f(z0). Assim, a função h(z) := |f(z)| verificah(z1) > h(z0) = |a0| para certo z1 ∈ D′. Assim, z0 não é máximo local de h(z) em D.

Provámos que se |f | tem máximo local em z0 então é constante igual a f(z0) num certodisco D ⊂ Ω. Finalmente, pelo princípio da igualdade (Teorema 4.2), temos que f(z) éconstante em todo Ω, pois D tem pontos de acumulação.

Este teorema tem a seguinte formulação que é muitas vezes útil. Se Ω é uma regiãolimitada, o seu fecho é compacto e portanto, pelo teorema de Weiesstrass |f(z)| tem ummáximo absoluto em Ω. Se o máximo estiver em Ω então é um máximo local, e peloteorema anterior f é constante. Assim, obtemos:

Corolário. Se f é holomorfa e não constante numa região limitada Ω, o máximo de|f(z)| em Ω é atingido na fronteira de Ω.

4.4. O teorema de Casoratti-Weierstrass

Recordemos que z0 ∈ C é uma singularidade essencial de uma função f(z) se existeum disco D(z0, r) onde f(z) é representada por uma série de Laurent (convergente nessedisco) cuja parte principal é infinita.

Teorema. Seja Ω uma região e z0 ∈ Ω. Se z0 é uma singularidade essencial def ∈ H(Ω \ z0) então a imagem de f é densa em C. Isto é, C = f(Ω \ z0).

Demonstração. Supor por contradição que existe w ∈ C que não é ponto de acu-mulação de f(Ω \ z0). Assim, existe disco centrado em w que não contém números daforma f(z) com z ∈ Ω \ z0. Ou seja, existe δ > 0 tal que

|f(z) − w| > δ, ∀z ∈ Ω \ z0.Seja g(z) = 1

f(z)−w que é holomorfa em Ω \ z0. Por hipótese |g(z)| = 1|f(z)−w| < 1

δ peloque g é limitada em qualquer vizinhança de z0. Assim, pelo teorema das singularidadesremovíveis de Riemann, g pode ser extendida a uma função g ∈ H(Ω). Podemos entãoescrever, num disco D(z0, r)

g(z) = (z − z0)mh(z)

com h(z0) 6= 0 e h ∈ H(Ω). Assim, limz→z0

(z0−z)m

g(z) = 1h(z) existe, o que implica que 1

g(z)

tem um pólo de ordem m em z0. Por outro lado, 1g(z) = f(z) − w tem por hipótese uma

singularidade essencial em z0.

Mais tarde veremos o teorema de Picard que afirma que muito mais é verdade: f(Ω \z0) é de facto todo C ou C \ w, se z0 é singularidade essencial.

4.5. Exercícios

4.1 Seja f holomorfa em Ω, e z0 ∈ Ω. Suponha que f(z) =∑

n≥0 an(z − z0)n é uma

expansão válida num certo disco D ⊂ Ω. Mostre que f (n) é um isomorfismo localem z0 se e só se an+1 6= 0.

42 4. TEORIA LOCAL DAS FUNÇÕES HOLOMORFAS E MEROMORFAS

4.2 Seja f ∈ H(Ω) e z0 ∈ Ω. Define-se a multiplicidade de f em z0, multz0f ,pela igualdade multz0f = ordz0 (f(z) − f(z0)). Mostre que multz0f ≥ 1 e quemultz0(g f) = multz0f · multf(z0)g , sempre que g é holomorfa numa regiãocontendo f(z0).

4.3 Seja F (z,w) uma função holomorfa de duas variáveis em Ω, isto é F (z,w) éholomorfa, como função de z ∈ Ω quando w ∈ Ω está fixo, e o mesmo se passacom z e w trocados. Seja A ⊂ Ω um conjunto com um ponto de acumulação esuponha que F (z,w) = 0 para todo z,w ∈ A. Mostre que F (z,w) = 0 para todoz,w ∈ Ω.

4.4 Seja Ω uma região em C e f ∈ H(Ω). Prove que se ℜf ou ℑf (partes reais eimaginárias de f) têm um máximo local num ponto z0 ∈ Ω, então f(z) é constanteem Ω.

4.5 (Lema de Schwarz) Seja f uma função holomorfa no disco unitário D, com f(0) =0 e |f(z)| < 1, para todo o z ∈ D. Mostre que g(z) = f(z)/z é uma funçãoholomorfa em D e prove que |f(z)| ≤ |z| para todo o z ∈ D.

4.6 Sejam f e g duas funções inteiras tais que |f(z)| ≤ |g(z)|. Prove que existe umaconstante c ∈ C, com |c| ≤ 1, tal que f(z) = cg(z). (Sugestão: use o teorema dassingularidades removíveis de Riemann).

4.7 Seja f uma função inteira e sejam A e a números reais positivos tais que |f(z)| ≤A|z|a, para todo o z com módulo suficientemente grande. Prove que f é umpolinómio de grau n < a + 1.

CAPíTULO 5

Transformações conformes e o Teorema de Riemann

Neste capítulo mudamos um pouco a nossa perspectiva. O objecto central são agoraas regiões do plano, e aqui as funções holomorfas serão consideradas como aplicações deuma região para outra (ou seja, o respectivo contradomínio é igualmente importante).

5.1. Definição e Exemplos de Transformações Conformes

Neste capítulo, Ω1, Ω2, etc, designam regiões no plano complexo.

5.1.1. Definição de tranformação conforme.

Definição. Um isomorfismo entre Ω1 e Ω2, também designado por transformaçãoconforme entre Ω1 e Ω2, é uma aplicação f : Ω1 → Ω2 holomorfa e bijectiva. Dito de outraforma, f ∈ H(Ω1) é injectiva e f(Ω1) = Ω2.

Recorde-se que estas condições implicam que a função inversa f−1 : Ω2 → Ω1 é tambémholomorfa, o que justifica que este tipo de aplicações se chame isomorfismo, dado que con-sistem em morfismos invertíveis na categoria cujos objectos são regiões e cujos morfismosentre Ω1 e Ω2 são funções f ∈ H(Ω1) com f(Ω1) = Ω2.

Note-se que, devido ao teorema da aplicação aberta, todas as transformações conformessão não-constantes.

O nome transformação conforme justifica-se também porque uma aplicação f : Ω1 →Ω2 holomorfa e bijectiva verifica necessáriamente f ′(z) 6= 0 para qualquer ponto z ∈ Ω1.Sendo assim, localmente, f preserva ângulos, de acordo com o capítulo 1. O seguinteexemplo mostra que o recíproco não é verdade.

Exemplo. A seguinte aplicação f : D∗ → D∗, z 7→ f(z) = z2 é holomorfa e verficaf ′(z) 6= 0 para todo z ∈ D

∗, mas não é transformação conforme entre D∗ e D

∗ porquenão é bijectiva neste conjunto. No entanto, a mesma expressão f(z) = z2 representauma transformação conforme entre o primeiro quadrante de C e o semiplano superior H.Ilustrámos assim, a importância de considerar os conjuntos, para além da expressão def(z).

Se considerarmos a categoria C cujos objectos são regiões em C e cujos morfismos sãotransformações conformes entre duas dessas regiões, obtemos o seguinte enunciado.

Proposição. A categoria C é um grupóide.

Demonstração. Qualquer morfismo de C, f : Ω1 → Ω2, sendo transformação con-forme, tem inverso (que é outro morfismo em C), pelo que f é um isomorfismo.

5.1.2. Exemplos de transformações conformes.

Exemplo. As seguintes aplicações são transformações conformes: z 7→ z2, z 7→ √z,

z 7→ ez, z 7→ log z. Naturalmente, para cada caso, temos que escolher regiões apropriadaspara que estas aplicações sejam bijectivas.

43

44 5. TRANSFORMAÇÕES CONFORMES E O TEOREMA DE RIEMANN

Por exemplo, a aplicação f(z) =√

z (que é inversa de z 7→ z2) representa uma trans-formação conforme entre o semiplano superior H e o primeiro quadrante de C.

Deixamos ao leitor a tarefa de encontrar regiões para as quais as funções acima sãotransformações conformes. Pelo que vimos, para uma dada aplicação f , a resposta estábem longe de ser única.

Exemplo. Uma transformação de Möbius é também uma transformação conforme, sóque neste caso as regiões domínio e contradomínio coincidem com toda a esfera de RiemannC∞.

Note-se que, como T ′(z) 6= 0 para qualquer transformação de Möbius T e ponto z ∈ C,se fizermos a restrição de T a qualquer região Ω1 ⊂ C (com T (Ω1) ⊂ C) temos tambémtransformações conformes. Por exemplo T (z) = z−i

z+i é uma transformação conforme entreH e D.

5.1.3. Isomorfismos e homeomorfismos. Uma pergunta natural é a seguinte. Da-das duas regiões Ω1 e Ω2, existirá alguma transformação conforme entre Ω1 e Ω2, isto éf ∈ H(Ω1), injectiva com f(Ω1) = Ω2?

Outra forma de apresentar esta pergunta é usando uma relação de equivalência: dize-mos que Ω1 e Ω2 são conformemente equivalentes ou isomorfas se existe uma transformaçãoconforme f : Ω1 → Ω2. É imediato verificar que esta noção de isomorfismo é, de facto,uma relação de equivalência.

Usando esta noção podemos reformular a nossa pergunta da seguinte forma: Dada umaregião Ω1, quais as regiões Ω2 que são isomorfas a Ω1? É possível caracterizar todas asregiões isomorfas a uma região dada?

Neste capítulo veremos como dar uma resposta a esta pergunta no caso em que Ω1 = D.Esta resposta é dada pelo célebre teorema da aplicação de Riemann. Para isso, comecemospor determinar os automorfismos do disco D.

Para começar, podemos rapidamente concluir que nem todas as regiões do plano sãoisomorfas. Recorde-se que um homeomorfismo entre Ω1 e Ω2 é uma função contínua ebijectiva, com inversa também contínua.

Proposição. Se Ω1 e Ω2 não são homeomorfas, não existe nenhuma tranformaçãoconforme entre Ω1 e Ω2.

Demonstração. Vamos supor, por absurdo, que f : Ω1 → Ω2 é uma transformaçãoconforme. Então, f é um homeomorfismo, uma vez que f é contínua, bijectiva e quef−1 : Ω2 → Ω1 é também contínua.

Exemplo. As regiões C e C∗ não são isomorfas. De facto, como existem caminhos

não homotopicamente triviais em C∗, mas C é simplesmente conexo, estas duas regiões nãopodem ser homeomorfas, nem conformemente equivalentes.

Apesar de tudo, as funções holomorfas são mais rígidas que as contínuas, pelo que orecíproco da proposição acima não é válido: há regiões que são homeomorfas, mas que nãosão isomorfas.

Proposição. As regiões C e D, embora sejam homeomorfas, não são isomorfas.

Demonstração. Suponha-se que existe f : C → D conforme. Então f é inteira, mastambém é limitada, pois |f(z)| < 1 para todo o z ∈ C. Assim, pelo Teorema de Liouville,temos que f é constante, o que contraria a hipótese de f ser conforme. Por outro lado,temos um homeomorfismo explícito entre D e C que pode ser dado por

z 7→ tan

( |z|2

π

)

.

5.2. LEMA DE SCHWARZ E AUTOMORFISMOS DO DISCO 45

Naturalmente, esta função não é holomorfa.

5.2. Lema de Schwarz e Automorfismos do disco

Definição. Dada uma região Ω ⊂ C, uma transformação conforme f : Ω → Ω (ouisomorfismo) é também designada um automorfismo de Ω.

Seja D o disco unitário. A caracterização dos automorfismos do disco pode ser feitausando este importante Lema.

Teorema. (Lema de Schwarz) Seja f : D → D uma função holomorfa com f(0) = 0.Então, |f(z)| ≤ |z| para todo o z ∈ D; além disso, se |f(z0)| = |z0| para certo z0 ∈ D \ 0então f é uma rotação, isto é, existe θ ∈ R tal que f(z) = eiθz.

Demonstração. Sendo

f(z) = a0 + a1z + a2z2 + · · ·

a expansão em série de potências de f , temos a0 = 0, porque f(0) = 0. Assim, g(z) =f(z)/z = a1 + a2z + · · · é uma função holomorfa em D, e verifica, para |z| ≤ r < 1,

|g(z)| =

f(z)

z

≤ max|z|=r

|f(z)|r

≤ 1

r,

pelo princípio do módulo máximo. Como isto é válido para qualquer r < 1 e g(z) écontínua, segue que |g(z)| ≤ 1 para todo z ∈ D.

No caso em que

|g(z0)| = |f(z0)

z0| = 1

para algum ponto z0 ∈ D no disco unitário, então a função holomorfa g(z) atinge o máximodo seu módulo no interior do disco, pelo que g(z) é igual a uma constante α de módulo 1,α = eiθ, θ ∈ R, como queriamos provar.

Teorema. Seja f : D → D uma função holomorfa com f(0) = 0 e f(z) = a1z+a2z2 +

· · · a sua expansão em série. Então, |f ′(0)| = |a1| ≤ 1, e se |a1| = 1 então f(z) = a1z.

Demonstração. A primeira parte decorre de f ′(0) = limz→0f(z)

z . Para a segundaparte consultar Lang.

Podemos agora determinar os automorfismos do disco.

Teorema. Seja f : D → D uma função holomorfa e bijectiva. Por outras palavras, fé um automorfismo do disco. Então, escrevendo α := f−1(0) ∈ D, existe um real θ tal que

f(z) = eiθ α − z

1 − αz.

Demonstração. Seja gα(z) = α−z1−αz . Como gα e f são automorfismos, a composição

F = f g−1α é também um automorfismo de D, e verifica F (0) = 0. Pelo lemma de Schwarz

|F (z)| ≤ |z|, para todo z ∈ D. Da mesma forma, para o automorfismo inverso F−1 = gα ftemos a desigualdade |F−1(z)| ≤ |z| ou seja |w| ≤ |F (w)|, para todo w ∈ D. Assim, temos|F (z)| = |z| para todo z ∈ D o que implica, pelo lemma de Scwharz, que F (z) = eiθz.

46 5. TRANSFORMAÇÕES CONFORMES E O TEOREMA DE RIEMANN

5.3. Automorfismos do Plano

As aplicações da forma z 7→ az + b, com a, b ∈ C são automorfismos do plano, quandoa 6= 0. De facto, para a 6= 0 as funções da forma f(z) = az + b são holomorfas e bijectivasentre C e C. É interessante verificar que estas são as únicas transformações do plano emsi mesmo com esta propriedade.

Proposição. Os únicos automorfismos do plano são da forma z 7→ az+b, com a 6= 0.

Demonstração. Usa o teorema de Casoratti-Weierstrass.

5.4. O espaço métrico H(Ω)

De modo a caracterizar todas as regiões conformemente equivalentes a Ω, vamos ne-cessitar de estudar a convergência de funções em H(Ω), dotando este espaço vectorial deuma métrica.

Seja Ω uma região e seja C(K) o espaço vectorial das funções contínuas f : K → C,onde K é um compacto em C. Para ver H(Ω) como espaço métrico, recordemos primeiroque C(K) é um espaço métrico com a distância dada pela norma do máximo:

||f ||K := maxz∈K

|f(z)|.

Uma métrica ou distância num conjunto X, verifica d(x, y) = d(y, x) ≥ 0, d(x, y) = 0 ssex = y e a desigualdade triângular d(x, y) + d(y, z) ≥ d(x, z), para todo x, y, z ∈ X. Umamétrica num conjunto X induz nele uma topologia, pelo que podemos considerar X comoespaço topológico e falar de subconjuntos abertos, fechados e compactos de X.

Comecemos pelo seguinte:

Lema. Dada uma região Ω ⊂ C, existe uma sequência de subconjuntos compactos Kntal que:

(1) Kn ⊂ int(Kn+1)(2) Ω = ∪nKn

(3) Se K ⊂ Ω é compacto, então K ⊂ Kn para algum n.

A uma sucessão de compactos Kn ⊂ Ω verificando as propriedades acima chamaremosuma exaustão de Ω por conjuntos compactos.

Proposição. Seja Ω uma região e Kn uma exaustão de Ω por conjuntos compactos.O espaço das funções contínuas C(Ω) é um espaço métrico com a distância definida por:

(5.4.1) d(f, g) :=∑

n

1

2n

||f − g||n1 + ||f − g||n

,

onde ||h||n := ||h||Kn = maxz∈Kn |h(z)|. Além disso, a topologia em C(Ω) (definida poresta métrica) não depende da escolha da exaustão Kn.

Teorema. O espaço métrico C(Ω) é completo.

Demonstração. Ver Conway.

Agora vejamos os teoremas de convergência de funções holomorfas. Nesta secção assu-mimos familiaridade com a noção de convergência uniforme em compactos, que é revistano Apêndice. A noção de convergência mais natural para regiões (conjuntos abertos econexos) é a seguinte.

Definição. Seja Ω uma região em C e fn, n ∈ N, uma sucessão de funções contínuasem Ω. Dizemos que fn converge uniformemente em compactos de Ω, se para todosubconjunto compacto K ⊂ Ω, a convergência de fn em K é uniforme, isto é, existe uma

5.4. O ESPAÇO MÉTRICO H(Ω) 47

função f : Ω → C que verifica: para todo ε > 0 existe N tal que ||fn − f ||K < ε para todon > N . Neste caso dizemos que o limite uniforme de fn é f .

Sabemos, pelo teorema da convergência uniforme, que o limite uniforme de uma suces-são de funções contínuas num compacto K é uma função contínua em K, o que implica omesmo resultado para regiões em C.

Exemplo. Seja fn(x) = x1n uma sucessão de funções definidas no intervalo [0, 1]. O

limite desta sucessão não é contínuo, e de facto a convergência não é uniforme em [0, 1].No entanto, a restrição de fn a qualquer subconjunto compacto de ]0, 1[ tem um limiteuniforme (a função nula nesse compacto).

Teorema. Se fn(z) é uma sucessão em H(Ω) e f(z) := limn fn(z) é contínua, então

f é holomorfa em Ω. Além disso, para cada k ≥ 1, f(k)n converge uniformemente para f (k).

Demonstração. Usar o Teorema de Morera.

Corolário. Se fn ∈ H(Ω) é uma sucessão de funções holomorfas tal que a série∑∞

n=1 fn(z) tem um limite uniforme f , então, para todo o z ∈ Ω,

f (k)(z) =

∞∑

n=1

f (k)n (z).

Uma vez que uma função holomorfa é contínua, H(Ω) ⊂ C(Ω), podemos considerar (eé o que faremos, sem mais comentários) uma métrica em H(Ω) dada pela mesma fórmulaque a métrica em C(Ω) (ou seja, a equação (5.4.1) para uma dada exaustão de Ω).

Corolário. O espaço métrico H(Ω) é fechado em C(Ω) e portanto, também completo.

Demonstração. O Teorema diz-nos que quando uma sucessão de funções fn ∈ H(Ω)tem limite em C(Ω), esse limite está em H(Ω). Isto significa que H(Ω) é fechado emC(Ω).

Definição. Uma família (subconjunto) A ⊂ H(Ω) chama-se normal ou relativamentecompacta se qualquer sequência em A tem uma subsucessão que converge uniformementeem qualquer compacto K ⊂ Ω para um elemento não necessariamente em A (mas neces-sariamente holomorfo de acordo com o teorema acima).

Mostra-se que esta noção corresponde ao fecho de A ser compacto no espaço métricoH(Ω) ⊂ C(Ω), justificando a nomenclatura “relativamente compacto”.

Definição. Uma família A ⊂ H(Ω) diz-se uniformemente limitada em compactos (oulocalmente limitada) se para todo subconjunto compacto K ⊂ Ω existe uma constante CK

tal que

|f(z)| ≤ CK

para todo f ∈ A e todo z ∈ K.

A próxima definição é também útil.

Definição. Seja K ⊂ C um compacto. Uma família A ⊂ H(K) diz-se equicontínuaem K se dado ε > 0 existe δ > 0 tal que |z1 − z2| < δ, z1, z2 ∈ K implica que |f(z1) −f(z2)| < ε para todo f ∈ A.

48 5. TRANSFORMAÇÕES CONFORMES E O TEOREMA DE RIEMANN

5.5. O teorema da aplicação de Riemann

O teorema da aplicação de Riemann diz-nos que qualquer região simplesmente conexade C, com excepção do próprio plano complexo, é isomorfa a D. Esta excepção é necessária,como vimos na Proposição 5.1.3.

Teorema. (Teorema da Aplicação de Riemann) Seja Ω uma região simplesmente co-nexa do plano complexo distinta de C. Então Ω é isomorfa ao disco unitário D. Maisprecisamente, dado z0 ∈ Ω, existe uma única transformação conforme

f : Ω → D

que verifica f(z0) = 0 e f ′(z0) > 0.

Para a demonstração, recordemos o Teorema de Arzelà-Ascoli:

Teorema. (Arzelà-Ascoli). Seja A ⊂ C(K) uma família de funções contínuas. Se asequência for uniformemente limitada e equicontínua, então A é relativamente compacta.

Demonstração. Ver Conway.

No caso de famílias de funções holomorfas, temos um resultado um pouco melhor.

Teorema. Seja A ⊂ H(Ω) uma família uniformemente limitada em compactos. En-tão:(1) A é equicontínua em cada subconjunto compacto de Ω.(2) A é relativamente compacta.

Demonstração. (1) Seja K ⊂ Ω e seja 3r a distância entre K e o complemento deΩ. Sendo z1, z2 ∈ K com |z1 − z2| < r, temos

f(z1) − f (z2) =1

2πi

C

f(w)

w − z1dw −

ˆ

C

f(w)

w − z2dw

)

=z1 − z2

2πi

ˆ

C

f(w)

(w − z1)(w − z2)dw,

onde C = ∂D(z1, 2r). Para w ∈ C temos |w − z1||w − z2| > 2r2, pelo que

|f(z1) − f (z2) | <|z1 − z2|

‖f‖K+2r

2r24πr =

1

r|z1 − z2| ‖f‖K+2r ,

onde K+2r ⊂ Ω é o compacto

z + 2reiθ : z ∈ Ω, θ ∈ R

. Esta desigualdade implica aequicontinuidade em K.

(2) Pelo teorema de Arzelà-Ascoli, dada uma família uniformemente limitada e equicon-tínua A, qualquer sucessão em A tem uma subsucessão convergente em qualquer compacto.

Seja fn uma sucessão em A, K ⊂ Ω um compacto, e zj uma sucessão de pontosdensa em K. Como fn(z1)n é limitada, tem uma subsucessão

f1n(z1)

nconvergente.

Como

f1n(z2)

é também limitada, existe uma subsucessão

f2n(z2)

convergente. Con-tinuando desta forma, obtemos a subsucessão fn

n tal que fnn (zj) converge para todo

j ∈ N.

Demonstração da unicidade no Teorema de Riemann: Seja f1, f2 : Ω → D com f1(z0) =f2(z0) = 0. Então, f1 f−1

2 é um automorfismo do disco que fixa a origem z = 0, logof1(f

−12 (w)) = eiθw, para certo θ ∈ R e para todo o w ∈ D, pelo Lema de Schwarz.

Escrevendo w = f2(z) temos

f1(z) = eiθf2(z), ∀z ∈ D.

Assim, temos também f ′2(z0) = eiθf ′

1(z0). Sendo ambos f ′1(z0) e f ′

2(z0) reais e positivospor hipótese, temos que eiθ = 1, pelo que f1(z) = f2(z), ∀z ∈ D como pretendido.

A demonstração da existência é mais complicada...

5.6. EXERCÍCIOS 49

5.6. Exercícios

5.1 Mostre que a função theta de Riemann, definida por

θ(z, τ) =∑

n∈Z

eπiτn2+2πinz

é holomorfa para z ∈ C e para τ ∈ H = z : ℑ(z) > 0.5.2 Seja fn uma sucessão de funções holomorfas numa região Ω que converge, uni-

formemente em subconjuntos compactos K ⊂ Ω para uma função não constantef . Mostre que, se cada fn é injectiva, então f também é injectiva.

5.3 Seja f holomorfa no disco unitário D = D(0, 1) verificando |f(z)| < 1. Supondoque f tem dois pontos fixos distintos a e b em D, f(a) = a e f(b) = b, prove quef(z) = z para todo z ∈ D.

5.4 Mostre que qualquer função injectiva e holomorfa f : C∗ → C∗ é da forma f(z) =az ou f(z) = a

z para certo a ∈ C∗.

5.5 Determine explicitamente uma transformação conforme entre o conjunto A =z ∈ C : Rez > 0,−π < Imz < π e o disco unitário D.

5.6 Seja f uma transformação conforme do conjunto A = z ∈ C : Rez > 0, Imz > 0no disco unitário D = z ∈ C : |z| < 1, com a propriedade f(i + 1) = 0.Determine uma expressão para f . Existirá outra função com tais propriedades?Justifique.

5.7 Seja fn uma sucessão de funções holomorfas numa região Ω, uniformementelimitada em compactos de Ω. Mostre que, se limn→∞ fn(z) existe para todoz ∈ Ω, então fn converge uniformemente em subconjuntos compactos de Ω.(Sugestão, use o facto de que fn é equicontínua em compactos).

5.8 Seja B = z ∈ C : |Im z| < 1, |Re z| < 1. Mostre que existe uma transformaçãoconforme entre o conjunto C\D e o conjunto C\B.

CAPíTULO 6

Funções Harmónicas

Neste capítulo, estudaremos as funções harmónicas, que podem ser vistas, em muitosaspectos, como o análogo de valores reais, das funções holomorfas.

6.1. Definição e primeiras propriedades

Definição. Seja Ω uma região em C. Uma função u : Ω → R diz-se harmónica em Ω

se é de classe C2 em Ω e verifica a equação de Laplace ∆u = ∂2u∂x2 + ∂2u

∂y2 = 0, em todos ospontos de Ω.

Como o operador de Laplace é linear, o conjunto das funções harmónicas numa dadaregião Ω é um espaço vectorial que vamos denotar por H(Ω). Note-se que o produto defunções harmónicas não é necessariamente uma função função harmónica, pelo que nãoconsideramos H(Ω) como anel, em contraste com o anel das funções holomorfas H(Ω).

Usando os operadores diferenciais ∂∂z = 1

2 ( ∂∂x − i ∂

∂y ) e ∂∂z = 1

2( ∂∂x − i ∂

∂y ), vemos que

∂2u

∂z∂z=

1

4∆u.

Assim, uma outra forma de escrever a equação de Laplace ∆u = 0 é:

∂2u

∂z ∂z= 0.

6.1.1. Funções harmónicas e funções holomorfas. A relação mais simples entrefunções harmónicas e funções holomorfas é a seguinte.

Proposição. As partes real e imaginária de uma função holomorfa são ambas har-mónicas.

Demonstração. Usar as equções de Cauchy-Riemann, ou alternativamente, sendof ∈ H(Ω) e u = ℜf temos

∂2u

∂z∂z=

∂2ℜf

∂z∂z= ℜ

(

∂2f

∂z∂z

)

= ℜ(

∂z(∂f

∂z)

)

= 0,

uma vez que ∂∂z f = 0. O mesmo se aplica a v = ℑf .

O recíproco deste resultado é apenas válido localmente, e em regiões simplesmenteconexas. Para verificar isto, usamos a seguinte construção.

Lema. Seja Ω uma região arbitrária. Se u ∈ H(Ω), então g := ∂u∂z é uma função

holomorfa em Ω.

Demonstração. Basta ver que

∂g

∂z=

∂z(∂u

∂z) =

∂2u

∂z∂z= 0.

51

52 6. FUNÇÕES HARMÓNICAS

Teorema. Se Ω é simplesmente conexa, e u é harmónica em Ω, então existe umafunção holomorfa f ∈ H(Ω) cuja parte real é u. A diferença de duas tais funções é umaconstante imaginária pura.

Demonstração. Usar g = ∂u∂z e o facto de que g tem uma primitiva holomorfa em

Ω.

6.2. Propriedades locais das funções harmónicas

Uma função harmónica verifica a propriedade do valor médio:

Teorema. (Teorema do valor médio) Seja u harmónica em Ω e D ⊂ Ω um discofechado centrado em z0. Então:

u(z0) =1

ˆ 2π

0u(z0 + reiθ)dθ,

onde r é o raio do disco D.

Demonstração. Usar a fórmula integral de Cauchy para f tal que f = ℜu.

Temos também:

Teorema. (Princípios do módulo máximo e mínimo). Seja u uma função harmónicaem Ω.

(1) Se u atinge um máximo local em z0 ∈ Ω, então u é constante em Ω.(2) Se u atinge um mínimo local em z0 ∈ Ω, então u é constante em Ω.(3) Se Ω é compacto e u é contínua em Ω, então o máximo e o mínimo global de u

estão em ∂Ω = Ω \ Ω, a fronteira de Ω.

Demonstração. ...

O princípio da identidade para funções holomorfas permite mostrar o seguinte “princípioda extensão”.

Proposição. Se u é harmónica em Ω e f ∈ H(Ω) tal que u = ℜf num pequeno disco,então u = ℜf em Ω.

Demonstração. Exercício.

6.3. Propriedades globais de funções harmónicas

Para estudarmos algumas propriedades globais das funções harmónicas, começamospor uma representação local de uma função harmónica numa região anelar. Este resultadopode considerar-se o análogo da representação em série de Laurent das funções holomorfas.

Teorema. Seja A = A(0, r1, r2) um anel e u ∈ H(A). Então existem α ∈ R eg ∈ H(A) tal que

u(z) = ℜ(g(z)) + α log |z|Demonstração. A ideia é usar duas regiões simplesmente connexas cuja união é

A.

Temos também a seguinte generalização ao caso de vários pontos isolados.

Teorema. Seja Ω uma região simplesmente conexa e Ω∗ = Ω \ z1, · · · , zn. Se u éharmónica em Ω∗ então existem constantes reais α1, · · · , αn e uma função f ∈ H(Ω) taisque

u(z) = ℜ(f(z)) +

n∑

j=1

αj log |z − zj|

6.4. O PROBLEMA DE DIRICHLET NO DISCO 53

Este estudo permite mostrar o análogo do teorema das singularidades removíveis deRiemann para funções harmónicas.

Teorema. Seja u(z) harmónica e limitada no disco perfurado D∗(z0, r) = D(z0, r) \z0. Então u pode estender-se a uma função harmónica em D(z0, r).

Demonstração. Seja D∗ = D∗(z0, r). Sabemos que u(z) = ℜ(g(z)) + α log |z − z0|para certa função g ∈ H(D∗). Assim, podemos escrever a série de Laurent de g(z):

g(z) =∑

n∈Z

an(z − z0)n.

Para mostrar o teorema, basta ver que u limitada implica que g se estende a g ∈ H(D(z0, r)),pois isto implicaria que α = 0. Suponhamos que 0 é singularidade essencial de g(z),e que α > 0. Então, existe M > 0 tal que para |z − z0| suficientemente pequeno,ℜg(z) = u(z) − α log |z − z0| < −M , pelo que g(z) evita um conjunto aberto de C.O caso α < 0 é análogo, donde g não pode ter uma singularidade essencial, pelo teoremade Casoratti-Weierstrass. Os pólos também podem ser excluídos, usando estimativas para|u| perto de z0, pelo que a série de g só tem parte regular.

6.4. O problema de Dirichlet no disco

Como vimos, as funções harmónicas verificam a propriedade do valor médio. Na reali-dade, veremos agora que esta propriedade caracteriza as funções harmónicas. Para chegara este resultado, vamos primeiro considerar um problema em equações diferenciais parci-ais de valor fronteira. Este problema muito relevante é o problema de Dirichlet no disco.Trata-se de considerar uma função contínua ϕ : ∂D → R e de resolver o seguinte problemade valor fronteira (também chamado EDP com condições de Dirichlet):

∆u(z) = 0, z ∈ D

u(z) = ϕ(z), z ∈ ∂D.

Consideremos em primeiro lugar a seguinte função, chamada o núcleo de Poisson. Parar ∈ [0, 1[ e θ ∈] − π, π[, definimos:

Pr(θ) :=1

1 − r2

1 − 2r cos θ + r2=

1

2πℜ(

eiθ + r

eiθ − r

)

.

Teorema. Seja ϕ : [−π, π] → R uma função contínua (e ϕ(π) = (−π)). Então existeu ∈ C(D) e harmónica em D tal que u(eiθ) = ϕ(θ). Precisamente, esta função é dada poru(z) := Pr ∗ ϕ, ou explicitamente

u(reiθ) =

ˆ π

−πPr(θ − τ)ϕ(τ) dτ.

Demonstração. Esta demonstração é longa e usa técnicas de teoria das distribuições.Consulte-se o Lang.

Teorema. Se uma função contínua satisfaz a propriedade do valor médio em Ω entãoé harmónica em Ω.

Demonstração. Basta mostrar que u é harmónica num qualquer disco D = D(z0, R) ⊂Ω. Suponha-se que u(z0) ≥ u(z0 + reiθ) para todo r ≤ R, então u é constante numa vizi-nhança de z0. Isto porque, se u(z1) < u(z0) então existe uma vizinhança de z1 e ε > 0 talque u(z) ≤ u(z0) − ε, contrariando a propriedade do valor médio, pois

ˆ π

−πu(z0) − u(z0 + reiθ) dθ > 0.

54 6. FUNÇÕES HARMÓNICAS

Assim, temos a propriedade do máximo, e analogamente, a propriedade do mínimo. Paraprovar que u é harmónica, seja v a solução (função harmónica) do problema de Diricheletno disco D(z0, r) cujo fecho está em Ω, e cujos valores na fronteira coincidem com os de u.Assim, u − v = 0 nesta fronteira, e também satisfaz a propriedade de mínimo e máximoem D(z0, r), pelo que u − v tem o máximo e o mínimo na fronteira, pelo que u = v, nestedisco.

6.5. Exercícios

6.1 Seja Pr(θ) o núcleo de Poisson, defiido para 0 ≤ r < 1 e θ ∈ [0, 2π], através de

Pr(θ) =1

1 − r2

1 − 2r cos θ + r2.

Seja u ≥ 0 uma função harmónica em D(0, 1) e contínua em D. Mostre as desi-gualdades

1 − r

1 + r≤ 2πPr(θ) ≤ 1 + r

1 − r1 − r

1 + ru(0) ≤ u(reiθ) ≤ 1 + r

1 − ru(0).

6.2 Considere uma região Ω ⊂ C, uma função u harmónica em Ω e f ∈ H(Ω).Supondo que u = ℜf num certo disco aberto (não vazio) D ⊂ Ω, mostre queu = ℜf em todo Ω.

6.3 (Teorema de Harnak) Seja un uma sucessão de funções harmónicas no disco uni-tário D que converge uniformemente em subconjuntos compactos de D. Prove queo limite é uma função harmónica.

6.4 Prove que uma função u é harmónica na região Ω se e só se satisfaz a propriedadedo valor médio em discos de Ω, isto é se, para qualquer z ∈ Ω e disco D(z, r)centrado em z e totalmente contido em Ω, se verifica:

u(z) =1

πr2

ˆ

D(z,r)u dx dy.

CAPíTULO 7

Representação de Funções Inteiras

Neste capítulo, vamos considerar mais uma generalização dos polinómios, e descreveruma classe de funções inteiras que admite um número infinito de zeros mas com crescimentocontrolado no infinito.

Por exemplo, a função f(z) = sin z, que é inteira, tem zeros apenas nos pontos kπ, k ∈Z, e gostariamos de saber se admite uma factorização por “primos” da forma (z−z0). Pararesponder a esta questão, temos primeiro que definir e estudar convergência de produtosinfinitos e veremos que, por exemplo, podemos escrever,

sin πz = πz∏

n∈N

(1 − z2

n2).

Esta fórmula, escrita pela primeira vez por Euler, para além da sua elegância, permitiu-lheresolver um problema importante na época, o cálculo da série

∑ 1n2 = π2

6 .

7.1. Convergência de produtos infinitos de números complexos e de funções

Definição. Seja zn uma sucessão de números complexos não nulos. Dizemos que∏

n∈Nzn converge absolutamente se lim zn = 1 e se a série

n∈Nlog zn converge absoluta-

mente. Neste caso definimos∏

n∈Z

zn = eP

n∈Nlog zn .

Observação. (1) Note-se que pela condição lim zn = 1, sabemos que existe N ∈ N talque n > N implica |zn−1| < 1. Assim, o logarítmo principal log zn = log |zn|+i arg zn estábem definido, para n > N e podemos atribuir-lhe uma parte imaginária arg zn ∈] − π

2 , π2 [.

(2) Se um produto de números complexos∏

n∈Nzn converge absolutamente, então

qualquer reordenação de termos levará ao mesmo resultado. Isto segue do resultado análogopara séries absolutamente convergentes.

Lema. Se zn é uma sucessão de números complexos não nulos e∑

n∈N(1 − zn)

converge absolutamente, então∏

n∈Nzn converge absolutamente.

Demonstração. Para n suficientemente grande |1 − zn| < 12 , pelo que | log zn| ≤

C|1 − zn| para uma certa constante C.

Proposição. Seja fn uma sucessão de funções holomorfas numa região Ω tal que∑

n∈Nfn(z) converge uniformemente e absolutamente em compactos K ⊂ Ω. Então o

produto∏

n∈N(1 − fn) converge uniformemente e absolutamente em compactos de Ω e

define uma função holomorfa F (z) em Ω.

Demonstração. ...

O seguinte resultado é uma consequência.

55

56 7. REPRESENTAÇÃO DE FUNÇÕES INTEIRAS

Corolário. Sempre que hn não tenha zeros num compacto K ⊂ Ω, para todo o n,e F (z) =

n∈Nhn(z) podemos escrever, para z ∈ K

F ′(z)

F (z)=∑

n∈N

h′n(z)

hn(z).

7.2. O teorema de Weierstrass para funções inteiras

Consideremos uma função inteira f ∈ H(C). Para encontrar uma representação paraf(z) como produto, notemos em primeiro lugar que o princípio dos zeros isolados impóeque os zeros de f(z) são no máximo numeráveis. Mais precisamente temos.

Proposição. Seja f ∈ H(C) e seja Zf = f−1(0) o seu conjunto de zeros. Então, ouZf é um conjunto finito, ou #Zf = #Z. Além disso podemos ordenar os elementos de Zf

de modo a escrever

Zf = z1, z2, · · · ,com |z1| ≤ |z2| ≤ · · · . Em particular, se Zf não é finito, temos limn→∞ |zn| = ∞.

Demonstração. Relativamente simples, considerando que cada compacto D(0, R)tem um número finito de zeros.

Seja f(z) uma função inteira com zeros nos pontos z1, z2.... De acordo com a Pro-posição. vamos sem mais comentários, ordenar os seus zeros não nulos de modo a ter|z1| ≤ |z2| ≤ .... Tentemos então uma representação da forma:

f(z) =

∞∏

n=1

(

1 − z

zn

)

.

Este produto não converge necessariamente, por isso necessitamos de um factor de conver-gência.

Definição. Um factor elementar é En(z) = (1 − z)ez+ z2+...+ zn−1

n−1 (E1(z) = 1 − z).Uma vez que

log(1 − z) = −∞∑

k=1

zk

k,

temos log En(z) = −∑∞k=n

zk

k , o que permite demonstrar:

Lema. Se |z| ≤ 12 então | log En(z)| ≤ 2|z|n.

Demonstração. Fácil.

Proposição. Se pn é uma sucessão de inteiros tais que∑

n∈N

(

r|zn|

)pn

converge

para todo r > 0, então o produto infinito

∞∏

n=1

Epn

(

z

zn

)

converge uniformemente em qualquer disco |z| ≤ R e define uma função inteira com zerosnos pontos zn e sem outros zeros.

Demonstração. Fixamos R. Seja N tal que 2R < |zN+1|. Então, para |z| ≤ R en > N temos |z/zn| < 1/2.

7.3. O TEOREMA DE HADAMARD 57

Esta proposição permite-nos garantir a existência de uma função inteira com zerosem pontos predeterminados, e com ordens prefixadas nesses pontos. Se Z = zn é umsubconjunto de C para que ele seja o conjunto de zeros de uma função inteira é necessárioque seja um subconjunto discreto de C. Assim, sabemos que é numerável. Vamos tentarencontrar uma função inteira f ∈ H(Ω) apenas com zeros em Z e de tal forma que, paracada zk ∈ Z a ordem de f em zk seja um natural m(k). Por exemplo, se quisermos umafunção f(z) com zeros duplos em todos os pontos inteiros, podemos definir estes dadosatravés do conjunto Z = Z e da função m : Z → N dada por m(z) = 2 para todo o z ∈ Z.

Teorema. (Weierstrass). Seja Z = zn um conjunto discreto e seja m : Z → N

uma função com valores inteiros. Então existe uma função inteira f ∈ H(Ω) tal queordzk

f = m(k), para todo o k ∈ N e com ordzf = 0 sempre que z /∈ Z.

Demonstração. Usar os produtos canónicos, cada qual levantado à potência m(k).

Corolário. Qualquer função meromorfa é o quociente de funções inteiras.

Demonstração. ...

7.3. O teorema de Hadamard

O teorema de Weierstrass permite mostrar a convergência de certos produtos canónicos,mas não nos dá informação sobre qual é o produto canónico que representa uma dadafunção. Nesta secção veremos um resultado muito mais pormenorizada, que establece umarepresentação em termos de produto infinito para uma grande classe de funções: as funçõesque não crescem no infinito mais que a exponencial de um polinómio.

Definição. A ordem (de crescimento polinomial) de uma função f ∈ H(C) é o número

ρ(f) = limR→∞

log log ||f ||Rlog R

∈ [0,+∞]

onde ||f ||R := ||f ||D(0,R)

= max|z|=R |f(z)|. Quando ρ(f) < +∞ diz-se que f tem ordemfinita.

Teorema. (Teorema da factorização de Hadamard). Seja f uma função inteira deordem finita ρ, e seja f−1(0)\0 = z1, z2, · · · o conjunto dos seus zeros (com a excepçãode z = 0) repetidos de acordo com as suas multiplicidades e ordenados de acordo com

0 < |z1| ≤ |z2| ≤ · · · .

Então podemos escrever

f(z) = zord0f eh(z)∞∏

n=1

Ek(z

zn),

onde k é o menor inteiro > ρ e h(z) é um polinómio de grau ≤ ρ.

Note-se que, uma vez assegurado que o produto converge absolutamente, podemosescrever, de forma algo mais intrínseca:

f(z) = zord0f eh(z)∏

w∈Z∗

f

(

Ek(z

w))ordwf

,

onde Z∗f = Zf \ 0, onde h(z) e k são como no enunciado acima.

Demonstração. ...

58 7. REPRESENTAÇÃO DE FUNÇÕES INTEIRAS

7.4. Exercícios

7.1 Considere a função f(z) = e2z + e−2z + 2. Verifique que f tem zeros nos pontoszn = iπ

2 (2n + 1), e calcule a sua ordem. Determine a factorização de Hadamardde f .

7.2 Seja f uma função inteira de ordem 1 cujos zeros são simples e estão localizadosnos inteiros impares. Supondo que f é par, e que limz→0 f(z) = 1, determinea factorização de Hadamard de f . Relacionando f com uma função conhecidamostre que

∞∏

n=2

(

1 − 4

(2n − 1)2

)

=1

3.

7.3 Seja f uma função inteira e n um inteiro positivo. Prove que existe uma funçãointeira g tal que gn = f se e só se as ordens dos zeros de f são divisíveis por n.

7.4 Seja g uma função meromorfa em C com pólos de ordem ≤ 1 e resíduos inteiros.Mostre que existe f ∈ M(C) tal que g = f ′/f .

CAPíTULO 8

Funções Elípticas

Neste capítulo vamos estudar uma classe de funções que generaliza as funções trigo-nométricas e que tem imensas aplicações tanto em outras áreas da matemática, nome-adamente em teoria dos números, geometria, etc, bem como em matemática aplicada asistemas dinâmicos e mecânica analítica. Estas funções, chamadas funções elípticas, sãoduplamente periódicas, isto é periódicas em relação a dois períodos não colineares no planocomplexo.

8.1. Recticulados e Funções invariantes

Definição. Um recticulado Λ em C é um subgrupo discreto do grupo abeliano (C,+).

Exemplo. (0) 0 é o recticulado trivial(1) Z é um recticulado em R ⊂ C

(2) Z⊕ i Z = m + ni : m,n ∈ Z é o recticulado dos chamados inteiros de Gauss.

Como subgrupo abeliano, qualquer recticulado é um módulo sobre Z. Isto significaque qualquer elemento λ ∈ Λ se pode escrever como λ =

civi com ci ∈ Z, vi ∈ C.Os elementos vi são chamados geradores de Λ. Do facto de que Λ é discreto resulta quequalquer recticulado em C pode ser gerado por um número finito n de geradores. De facto,pode-se mesmo provar que basta ter n ≤ 2. Se Λ é gerado por v1, ..., vn ∈ C∗ escrevemosfrequentemente, Λ = Zv1 ⊕ Zv2 ⊕ ... ⊕ Zvn ou, abreviadamente, Λ = 〈v1, v2, ..., vn〉.

Proposição. Sejam v1, v2 ∈ C não nulos e τ = v1/v2. Então, τ é um númerocomplexo não real se e só se v1 e v2 são linearmente independentes como elementos de R

2.Se τ ∈ C \ R então

〈v1, v2〉 = m1v1 + m2v2 : m1,m2 ∈ Zé um recticulado em C. Por outro lado, se τ é real, então o conjunto definido acima é umrecticulado se e só se τ é racional. Finalmente, qualquer recticulado em C pode ser geradopor n geradores, com n ≤ 2.

A primeira frase é imediata. A demonstração destes factos sobre recticulados pode serencontrada no livro do Ahlfors, capítulo 7. Isto motiva a seguinte definição.

Definição. A dimensão de um recticulado é o número geradores que são linearmenteindependente sobre R. Um recticulado maximal em C é um recticulado de dimensão 2.

Assim, qualquer recticulado maximal em C se pode escrever na forma:

Λ = 〈v1, v2〉 = m1v1 + m2v2 : m1,m2 ∈ Z ,

com v1, v2 ∈ C∗ linearmente independentes sobre R, isto é, τ = v1/v2 /∈ R.

Definição. Seja Λ um recticulado em C. Dois números complexos z1, z2 ∈ C dizem-secongruentes módulo Λ se z1−z2 ∈ Λ. Um polígono fundamental P do recticulado maximalΛ = 〈v1, v2〉 é um conjunto da forma

Pz0 = z0 + t1v1 + t2v2 : t1,t2 ∈ [0, 1[ ,

para certo z0 ∈ C.

59

60 8. FUNÇÕES ELÍPTICAS

É imediato verificar que a relação de congruência (módulo Λ) é uma relação de equi-valência. É igualmente claro que, fixando um polígono findamental Pz0 para Λ, para todow ∈ C, existe um único z em Pz0 que é congruente a w módulo Λ. Desta forma, podemosdizer que Pz0 parametriza as classes de congruência módulo Λ.

Definição. Uma função f : C → C é dita invariante em relação ao recticulado Λ, sef (z1) = f (z2), sempre que z1 − z2 ∈ Λ, isto é se z1 e z2 são congruentes módulo Λ.

Exemplo. (1) Como exemplos de funções invariantes em relação a recticulados unidi-mensionais temos as funções trigonométricas. Por exemplo, senz e cosz são invariantes emrelação a Λ = 2πZ. Outro exemplo é a função exponencial, que é invariante em relação a2πiZ.

(2) As funções anteriores são inteiras. Também temos exemplos conhecidos de funçõesmeroformas em C e invariantes em relação a recticulados. Por exemplo a função tangentetan z = sin z

cos z é meromorfa e invariante relativamente a πZ.

A seguinte proposição é imediata e deixada ao leitor:

Proposição. Se Λ é um recticulado maximal gerado por v1, v2, uma função f : C → C

é invariante em relação a Λ se e só se f(z) = f(z + v1) = f(z + v2), para todo o z ∈ C.

8.2. Funções elípticas

Definição. Uma função elíptica é uma função f : C → C meromorfa invariante emrelação a um recticulado maximal (de dimensão 2).

Como vimos acima, um polígono fundamental para Λ parametriza as classes de con-gruência módulo Λ, e portanto uma função elíptica é determinada pelos valores que assumenum único polígono fundamental. Podemos então provar o seguinte.

8.2.1. Os teoremas de Liouville.

Teorema. (1º teorema de Liouville) Qualquer função elíptica holomorfa é constante.

Demonstração. Se f : C → C é elíptica relativamente a Λ e holomorfa, então écontínua em C e portanto limitada num polígono fundamental Pz0 e no seu fecho. Defacto, tanto ℜf como ℑf são funções contínuas que atingem máximos e mínimos em Pz0 .Isto implica que f é limitada em todo o C, uma vez que a sua invariância relativamente aΛ impõe f(C) = f(Pz0). Logo, pelo teorema de Liouville, f é constante.

Este resultado mostra que, para obtermos funções analíticas (em alguma região) quesejam duplamente periódicas e minimamente interessantes, não nos podemos restringir àsfunções holomorfas. Por outro lado, não é nada óbvio, à partida, que existam funçõeselípticas não constantes. Na próxima secção vamos construir explicitamente um exemplo,a chamada função ℘ de Weierstrass, de uma função elíptica não trivial, para qualquerrecticulado maximal.

Por agora, vamos assumir que as funções elípticas não constantes (e portanto mero-morfas em C) existem, e vejamos que propriedades podem ter. Em primeiro lugar, não édifícil provar que o conjunto das funções elípticas invariantes em relação a um recticuladomaximal fixo Λ, formam um corpo. Vamos designar este corpo por E(Λ) e chamar aosseus elementos funções elípticas relativas a Λ.

Teorema. Para toda a função elíptica f ∈ E(Λ) existe um polígono fundamental Ppara Λ, tal que f não tem zeros nem polos na sua fronteira ∂P.

8.2. FUNÇÕES ELÍPTICAS 61

Naturalmente, o mesmo resultado é válido se substituirmos a expressão “zeros nempólos” por apenas “pólos”.

Fixemos, de agora em diante, um recticulado maximal Λ.

Teorema. (2º teorema de Liouville) Seja f uma função elíptica relativa a Λ, e sejaP = Pz0 um polígono fundamental tal que f não tem pólos na sua fronteira ∂P . Então asoma dos resíduos de f no interior de P é zero.

Demonstração. Como P é compacto, só existe um número finito de polos zk nointerior de P . Assim, pelo teorema dos resíduos, temos

n∑

k=1

Res(f, zk) =1

2πi

ˆ

∂Pf (z) dz = 0,

onde se usou o facto de que os valores de f na fronteira de P , são os mesmos em ladosopostos de ∂P .

Como primeira consequência, temos.

Corolário. Uma função elíptica não constante tem pelo menos 2 pólos (contados deacordo com as suas multiplicidades) num polígono fundamental.

Demonstração. Se f ∈ E(Λ) tem apenas um pólo simples z0 num polígono funda-mental, então Resz0f 6= 0, contrariando o teorema.

Teorema. Seja novamente f ∈ E(Λ), e P = Pz0 um polígono fundamental tal que fnão tem zeros nem pólos na sua fronteira ∂P . Então, o número de zeros de f no interior deP é igual ao número de polos de f no interior de P , contados de acordo com as respectivasmultiplicidades.

Demonstração. Começamos por notar que, se f é elíptica relativamente a Λ, f ′

e f ′/f também o são. Assim, 12πi

´

∂Pf ′(z)f(z) dz = 0 pelo teorema anterior, onde P é um

polígono fundamental cuja fronteira não tem zeros nem pólos de f (pelo que não tem pólosde f ′/f). O resultado é então uma consequência directa do principio do argumento.

A seguinte propriedade é agora fácil de concluir.

Corolário. Uma função elíptica não constante f toma qualquer valor complexo, istoé a imagem de f é C.

Demonstração. Sejam dados f ∈ E(Λ) não constante e w ∈ C. Definimos g(z) =f(z) − w que é meromorfa e tem os mesmos polos (com mesmas multiplicidades) que f .Como g tem pelo menos dois pólos em P , g tem pelo menos dois zeros (contados commultiplicidades). Logo, existe um zero de g, que é um ponto z ∈ C tal que f(z) = w.

Teorema. (3º teorema de Liouville) Se zk, wk são os zeros e polos de f e as multipli-cidades são mk = ordzk

f e nk = −ordwkf , respectivamente, então:

mkzk =∑

nkwk (modΛ)

Demonstração. Temos´

∂P z f ′(z)f(z) dz = 2πi [

∑nk=1 nkwk +

∑nk=1 mkzk], pelo prínci-

pio do argumento generalizado aplicado à função g(z) = z. Integrando ao longo de ∂P ,obtemos 4 integrais, dois dos quais dão o valor:ˆ x+v1

xzf ′ (z)

f (z)dz −

ˆ x+v1+v2

x+v2

zf ′ (z)

f (z)dz =

ˆ x+v1

xzf ′ (z)

f (z)dz −

ˆ x+v1

x(z + v2)

f ′ (z)

f (z)dz =

62 8. FUNÇÕES ELÍPTICAS

−v2

ˆ x+v1

x

f ′ (z)

f (z)dz = −v1I(f γ, 0) = k1v1,

onde γ é o caminho recto entre x e x + v1. f γ é então uma curva fechada, logo k1 ∈ Z.Da mesma forma, os restantes dois integrais dão o valor k2v2 onde k2 ∈ Z.

8.2.2. Os geradores de um recticulado. Vamos agora, só a título de curiosidade,abordar a seguinte questão. Dado um recticulado maximal, como encontrar os seus doisgeradores. Mais concretamente, se Λ = 〈v1, v2〉 = 〈w1, w2〉, qual a relação entre os paresde geradores v1, v2 e w1, w2. Recordemos então a seguinte definição. Uma matriz outransformação linear é chamada unimodular se as entradas da matriz forem inteiras e tiverdeterminante igual a ±1.

Teorema. Quaisquer dois pares de geradores de um recticulado maximal Λ estão re-lacionadas por uma transformação unimodular.

Demonstração. Se Λ = 〈v1, v2〉 = 〈v′1, v′2〉 então, exprimindo v′1, v′2 em relação a

v1, v2 temos

[

w′2

w′1

]

=

[

a bc d

] [

w2

w1

]

com

[

a bc d

]

∈ Mat2x2 (Z). Da mesma forma,[

w′1

w′2

]

=

[

a′ b′

c′ d′

] [

w′1

w′2

]

; logo

[

a′ b′

c′ d′

] [

a bc d

]

=

[

1 00 1

]

e portanto det

[

a bc d

]

=

±1.

Teorema. Qualquer recticulado Λ é gerado por vectores w1, w2, tais que τ = w2/w1

pertence ao seguinte conjunto A =

τ ∈ H : −12 < ℜτ ≤ 1

2 ; |τ | ≤ 1; e ℜτ ≤ 0, se |τ | = 1

.

Demonstração. Como w1 e w2 são linearmente independentes sobre R, temos Imτ 6=0. Se Im τ = Im

(

w2w1

)

< 0 podemos trocar w1 com w2 e obter Im τ > 0 . Podemos também

assumir |w1| ≤ |w2| pois em caso contrário substituimos w1 por w2 e w2 por −w1 (istopreserva o sinal de Im τ). Finalmente, podemos substituir w2 por w2 + nw1 para certo

n ∈ Z de tal modo que∣

∣Re(

w2w1

)∣

∣≤ 1

2 . Se Re(

w2w1

)

= −12 substuitui-se w2 por w2 + w1,

e se |τ | = 1 faz-se novamente a troca w1 → w2, w2 → −w1. Após estas substituiçõesτ ∈ A.

Observação. Também se pode verificar que a escolha de τ em A é única, o que éequivalente a provar que o grupo PSL (2, Z) é gerado por τ 7→ τ + 1 e τ 7→= − 1

τ , isto é,

pelas matrizes S =

(

1 10 1

)

e T =

(

0 −11 0

)

.

8.3. A função ℘ de Weierstrass de um recticulado Λ.

Vamos agora construir uma função elíptica com um único pólo duplo em pontos con-gruentes relativamente a Λ = 〈w1, w2〉. Por simplicidade, tomemos este pólo na origem.Como um factor multiplicativo não interessa, a parte singular será 1

z2 + az . Seja então

℘ (z) =1

z2+

a−1

z+ a0 + a1z + ...

Assim, a parte singular da função f (z) = ℘ (z)−℘(−z) é igual a 1z2 + a

z −(

1z2 − a

z

)

= 2az .

Como f(z) é claramente uma função elíptica em relação a Λ, e tem um pólo simples naorigem, pelo corolário do teorema 1, f é constante; além disso, como f

(

w12

)

= ℘(

w12

)

−℘(

−w12

)

= ℘(

w12

)

−℘(

w12

)

= 0, vemos que necessáriamente f ≡ 0, isto é, ℘ é uma funçãopar, logo a sua expansão em torno da origem só tem potências pares e a sua parte singularé 1

z2 . Em torno de qualquer ponto do recticulado w ∈ Λ, a parte singular será então

8.3. A FUNÇÃO ℘ DE WEIERSTRASS DE UM RECTICULADO Λ. 63

1(z−w)2

o que nos leva a considerar a expressão∑

w∈Λ1

(z−w)2. Infelizmente, esta série não

converge na região C \ Λ (ver exercícios). Para resolver este problema, Weierstrass notouque, mediante a inclusão de um certo termo neste somatório a convergência fica assegurada.Defina-se então, a função ℘ de Weierstrass pela fórmula:

℘ (z) =1

z2+∑

w∈Λ∗

[

1

(z − w)2− 1

w2

]

,

onde Λ∗ = Λ \ 0 é o conjunto dos pontos não nulos do recticulado Λ ⊂ C. Esta sérieconverge em C \ Λ porque:

1

(z − w)2− 1

w2

=

z (2w − z)

w2 (z − w)2

≤ 10|z||w|3

para |z| ≤∣

w

2

∣.

Portanto, para verificar que ℘ está bem definida, basta ver que∑

w∈Λ∗ =∑ 1

|w|3< ∞.

Isto decorre do facto de que existe k > 0 tal que |w1w1 + n2w2| ≥ k (|n1| + |n2|) ∀n1,n2 ∈ Z.Logo

w∈Λ∗

1

|w|3≤

∞∑

n=1

|n1|+|n2|=n

1

k3 (|n1| + |n2|)3∞∑

n=1

4n

k3n3< ∞.

Proposição. (Propriedades das funções ℘ e ℘′ de Weierstrass)(1) ℘ é duplamente periódica ℘ (z) = ℘ (z + w1) = ℘ (z + w2)(2) ℘ é par,(3) ℘′é também uma função eliptíca e ℘′ (z) = −2

w∈Λ∗

1(z−w)3

,

(4) ℘′(z) é ímpar e tem zeros apenas nos pontos que verificam 2z ≡ 0 mod Λ.

(5) ℘′ (z)2 = 4℘ (z)3 − gz℘ (z) − g3, onde g2 = 60∑

w∈Λ∗

1w4 e g3 = 140

w∈Λ∗

1w6 .

Demonstração. A propriedade 2 é simples e a 3 decorre do facto que se pode derivaruma série uniformemente convergente termo a termo. Para provar 1, partimos da fórmulade 3; como ℘′ (z) é impar e claramente períodica, temos que existe uma constante c tal que℘ (w1 + z) = ℘ (z) + c mas com z = −w1

2 vem ℘(

w12

)

= ℘(

−w12

)

+ c o que implica c = 0pois ℘ é par. A derivada de uma função par é ímpar, e o cáclulo dos zeros segue de

℘′(w1

2) = −℘′(−w1

2) = −℘′(

w1

2),

por imparidade e invariância. Daqui decorre a propriedade (4) (detalhes deixados ao leitor).Para provar 5, considera-se a função zeta de Weierstrass (não confundir com a função zetade Riemann):

ζ (z) =1

z+∑

w∈Λ∗

[

1

z − w+

1

w+

z

w2

]

verifica-se que ζ (z) é meromorfa em C e −ζ ′ (z) = ℘ (z). Escrevendo:

1

z − w+

1

w+

z

w2=

−1/w

1 − z/w+

1

w+

z

w2= − 1

w

(

1 +z

w+

z2

w2+ ...

)

+1

w+

z

w2= − z2

w3− z3

w4−· · ·

e notando que∑

w∈Λ∗

1wk = 0 para k impar, por simetria em relação à origem, obtemos:

ζ (z) =1

z+∑

w∈Λ∗

(

− z2

w3− z3

w4− · · ·

)

=1

z−∑

w∈Λ∗

(

z3

w4+

z5

w6+ · · ·

)

=1

z−

∞∑

k=2

gkz2k−1

onde gk =∑

w∈Λ∗

1w2k .

Assim ℘ (z) = 1z2 +

∑∞k=2 (2k − 1) gkz

2k−2 = 1z2 + 3g2z

2 + 5g3z4 + · · ·

64 8. FUNÇÕES ELÍPTICAS

℘′ (z) = − 2z3 + 6g2z + 20g3 z3 + · · ·

℘′ (z)2 = 4z6 − 24g2

z2 − 80g3 + · · ·℘ (z)3 = 1

z6 + 9g2

z2 + 15g3 + · · ·onde as reticências indicam termos regulares não constantes (holomorfos). Concluimos

que h(z) = ℘′ (z)2 − 4℘ (z)3 + 60g2℘ (z) + 140g3 é uma função holomorfa elíptica logoela é necessáriamente constante. Como o desenvolvimento em série de h(z) tem o termoconstante nulo, h(0) = 0 pelo que h(z) ≡ 0, que é a relação pretendida.

A relação entre ℘ e a sua derivada é muito importante na resolução de certas equaçõesdiferenciais não lineares. Por exemplo, uma aplicação da função ℘ é a resolução explicitada equação de Korteweg-de Vries (KdV), que descreve ondas em água pouco profunda:

4∂u

∂t= 6u

∂u

∂x+

∂3u

∂x3

em que a incógnita é a função u = u(x, t), onde x e t são a coordenada espacial e temporal,respectivamente. Para encontrar uma solução desta equação consideremos somente funçõesu(x, t) que só dependem da quantidade x−ct, em que c é constante, e faç amos a mudanç ade variável: u(x, t) = v(X) = v(x− ct). Nesta nova variável v, obtemos a equação −4cv′ =6vv′ +v′′′ (onde ′ designa derivação em relação a X) e fazendo uma primitivação elementarobtemos −4cv = 3v2 + v′′ + c1. Multiplicando por v′, vem −4cvv′ = 3v2v′ + v′′v′ + c1v

′ e

fazendo outra primitiva vem: −2cv2 = v3 +1

2(v′)2 + c1v + c2, o que é equivalente a

(

dv

dX

)2

= −2v3 − 4cv2 − 2c1v − c2

Comparando esta equação com a propriedade 4 da função ℘ de Weierstrass, obtemos umasolução explícita !!!

u(x, t) = −2℘(x − ct) + c3

onde ℘ é a função ℘ de Weierstrass associada a um recticulado que depende das constantesde integração c1 e c2.

Este tipo de soluções que dependem de x − ct são soluções que possuem uma formafixa e se movem com velocidade c. Assim, são chamadas solitões. Note-se que, fazendo

c1 = c2 = 0, obtemos:

(

dv

dX

)2

= −2v3 − 4cv2. Esta equação mais simples pode ser

resolvida por uma função do tipo:

u(x, t) =1

2c sech2

(

1

2

√c (x − ct − x0)

)

o que indica, mais uma vez que as funções elípticas são uma generalização das funçõestrigonométricas.

Voltando ao caso geral, note-se que temos uma relação implícita:

X = x − ct =

ˆ v

−∞=

ds√−2s3 − 4cs2 − 2c1s − c2

+ c4.

Este integral, tal como outros integrais da formaˆ

p(x)√

q(x)dx, onde p(x) e q(x) são

polinómios, e q(x) tem grau 3 ou 4, é chamado um integral elíptico, pois podem ser descritosem termos de funções elípticas, através de relações semelhantes à propriedade 4 da função℘.

Foram precisamente os integrais deste tipo que motivaram inicialmente o estudo dasfunções elípticas; de facto, o comprimento de arco de uma elí pse no plano é dado por

8.4. EXERCÍCIOS 65

um integral deste tipo e é precisamente por esta razão que se resolveu dar às funçõesduplamente periódicas (que como vimos estão relacionadas com os integrais elí pticos) onome de funções elípticas.

Finalmente, podemos acrescentar que, no caso em que q(x) é um polinómio de grau

superior a 4 os integraisˆ

p(x)√

q(x)dx são chamados integrais hiperelípticos e a mesma equa-

ção KdV tem muitas outras soluçõs solitónicas, obtidas a partir de funções hiperelípticas,associadas a estes integrais.

8.4. Exercícios

8.1 Recorde que a função ℘ de Weierstrass, relativa ao recticulado Λ gerado por doisperíodos ω1 e ω2 é dada por:

℘(z) =1

z2+

w∈Λ\0

[

1

(z − w)2− 1

w2

]

.

Prove que ℘′(z) tem três zeros no polígono fundamental P = t1ω1 + t2ω2 : 0 ≤t1, t2 < 1, e que são todos simples.

8.2 Seja Λ um recticulado e σ(z) = z∏

ω∈Λ∗ E3(zω ), onde E3(w) = (1 − w)ew+ w2

2 .Mostre que σ é inteira, ímpar e que

℘Λ(z) = − d

dz

(

σ′(z)

σ(z)

)

.

8.3 Seja Λ um recticulado maximal em C, e seja Λ2 := z ∈ C : 2z ∈ Λ. Mostre quese f(z) tem zeros simples em Λ2\Λ e polos triplos em Λ então f(z) = c℘′(z), parauma certa constante c ∈ C.

8.4 Seja τ um número complexo com parte imagnária positiva. Considere a funçãode Jacobi ϑ(z) =

n∈Z(−1)ne2πinzeπin(n+1)τ e assuma a convergência uniforme

desta série em C. (a) Mostre as relações:

ϑ(z + 1) = ϑ(z)

ϑ(z + τ) = −e−2πi(z+τ)ϑ(z)ϑ(−z) = −e2πizϑ(z).

(b) Use as relações acima para demonstrar que ϑ(z) tem zeros simples nos pontosdo recticulado gerado por 1 e τ e que estes são os únicos zeros de ϑ(z) em C.

8.5 Seja τ ∈ H, Λ o recticulado gerado por 1 e τ , e θ(z) uma função inteira ímpar queverifica

θ(z + 1) = θ(z)θ(z + τ) = −e−2πiz−πiτ θ(z), ∀z ∈ C.

(a) Mostre que ddz

(

θ′(z)θ(z)

)

é uma função elíptica em relação a Λ. (b) Mostre que

θ(z) tem zeros simples nos pontos de Λ, que estes são os únicos zeros de θ(z) e

que existe uma constante c ∈ C tal que ℘(z) = − ddz

(

θ′(z)θ(z)

)

+ c, onde ℘(z) é a

função ℘ de Weierstrass relativa ao recticulado Λ.

Bibliografia

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