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INTRODUÇÃO À HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA DO EGITO ANTIGO PROJETO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA/UFRN ARTHUR RODRIGUES FABRÍCIO RESUMO DA OBRA: PEACOCK, David. The Roman Period. In: SHAW, Ian (Org). The Oxford history of the ancient Egypt. United States: Oxford University Press: 2003. O Período Romano (c. 30 – 395 d.C.) O início desse período pode ser caracterizado pela disputa entre dois dos líderes do Segundo Triunvirato romano (forma de governo do período, onde uma associação política entre três homens “iguais”, no caso, Marco Antônio, Otaviano e Lépido, governavam Roma e suas possessões), Marco Antônio e Otaviano, sobrinho- neto de Júlio César. As relações entre Marco Antônio e Cleópatra VII, rainha do Egito, última governante da linhagem dos Ptolomeus que perdiam, de forma decisiva, sua influência política no mundo antigo, levaram, em última instância, ao conflito armado entre o mesmo e seu cunhado, Otaviano. A batalha de Actium foi realizada em setembro do ano de 31 a.C., e um ano depois, Otaviano, que em 27 a.C. muda seu nome para Augusto, entra no Egito pela primeira e última vez, concretizando a dominação do Egito pelo Império Romano. O Egito mostrou-se durante o período de dominação romana uma terra à parte do Império, no sentido em que a continuidade de aspectos importantes da cultura faraônica, como a construção de templos em estilo tradicional e a escrita hieroglífica (apesar de que a escrita demótica, mais cheia de sinais e mais complexa, predominava nesse período), garantiam o caráter exótico do país em relação ao padrão cultural do seu dominador. O egípcio continuava sendo falado entre as pessoas comuns, apesar de a língua franca (língua usada pelos setores administrativos, apesar de não ser a língua falada pela maioria da população) ser o grego, inclusive, até onde sabemos, Cleópatra foi a única governante greco-macedônica do Egito a aprender o egípcio, uma das muitas línguas faladas pela rainha. A “romanização”, que se caracteriza pela difusão da cultura romana, como seus costumes, sua língua, suas leis e seus traços religiosos, de maneira

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INTRODUÇÃO À HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA DO EGITO ANTIGO

PROJETO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA/UFRN

ARTHUR RODRIGUES FABRÍCIO

RESUMO DA OBRA:

PEACOCK, David. The Roman Period. In: SHAW, Ian (Org). The Oxford history of

the ancient Egypt. United States: Oxford University Press: 2003.

O Período Romano (c. 30 – 395 d.C.)

O início desse período pode ser caracterizado pela disputa entre dois dos

líderes do Segundo Triunvirato romano (forma de governo do período, onde uma

associação política entre três homens “iguais”, no caso, Marco Antônio, Otaviano e

Lépido, governavam Roma e suas possessões), Marco Antônio e Otaviano, sobrinho-

neto de Júlio César. As relações entre Marco Antônio e Cleópatra VII, rainha do Egito,

última governante da linhagem dos Ptolomeus que perdiam, de forma decisiva, sua

influência política no mundo antigo, levaram, em última instância, ao conflito armado

entre o mesmo e seu cunhado, Otaviano. A batalha de Actium foi realizada em setembro

do ano de 31 a.C., e um ano depois, Otaviano, que em 27 a.C. muda seu nome para

Augusto, entra no Egito pela primeira e última vez, concretizando a dominação do Egito

pelo Império Romano.

O Egito mostrou-se durante o período de dominação romana uma terra à parte

do Império, no sentido em que a continuidade de aspectos importantes da cultura

faraônica, como a construção de templos em estilo tradicional e a escrita hieroglífica

(apesar de que a escrita demótica, mais cheia de sinais e mais complexa, predominava

nesse período), garantiam o caráter exótico do país em relação ao padrão cultural do seu

dominador. O egípcio continuava sendo falado entre as pessoas comuns, apesar de a

língua franca (língua usada pelos setores administrativos, apesar de não ser a língua

falada pela maioria da população) ser o grego, inclusive, até onde sabemos, Cleópatra

foi a única governante greco-macedônica do Egito a aprender o egípcio, uma das muitas

línguas faladas pela rainha. A “romanização”, que se caracteriza pela difusão da cultura

romana, como seus costumes, sua língua, suas leis e seus traços religiosos, de maneira

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intrínseca pelas estruturas da localidade dominada, não foi observada de maneira

sistemática no Egito. Uma indicação da persistência da cultura egípcia, em oposição ao

avanço da cultura de “romanização” dos dominadores, é a manutenção da mumificação

como rito de enterramento e a continuidade da religião egípcia e do culto aos seus

deuses.

Apesar do que os estudiosos chamam de “romanização”, diferenças culturais

certamente existiram, como a posição hostil de exclusão que Roma adotou em relação

ao Egito, que com sua antiguidade respeitável e seu passado glorioso, representava, de

certa forma, uma ameaça: senadores romanos eram proibidos de entrar no país e nativos

egípcios não podiam fazer parte da administração do Império, assumindo cargos

importantes. A única cidade fundada no Egito, em decorrência desse afastamento do

Império, foi Antinoópolis, próxima ao Nilo, no Médio Egito, fundada pelo Imperador

Adriano, um dos poucos a visitar o país, em honra ao seu jovem amado, deificado,

Antinoo.

O clima seco do Egito favoreceu, de maneira singular, a preservação de

evidências materiais sobre a própria constituição, negócios e vida diária do Egito

Romano, como papiros e os famosos óstracos do período, evidências escritas em

pedaços de cerâmicas ou fragmentos de rochas. Materiais inusitados, de difícil

preservação em outros climas, foram encontrados, como tecidos, couros, restos de

comida. Evidências materiais que costumam ser eclipsadas em detrimento das

evidências escritas.

O Egito Romano era dividido em trinta unidades administrativas chamadas

“nomos”, um sistema herdado da administração Ptolomaica. Cada nomo era dirigido por

um governador chamado estratego, que era apontado e respondia diretamente ao

Prefeito, cuja ponte era feita através de um dos epistrategoi, um dos quatro

administradores regionais. Cada nomo possuía uma capital, as mais estudadas, por sua

vez, são a de Oxyrhynchus e Arsinoe, cujas evidências derivam de papiros que

descrevem as duas cidades. As cidades parecem ser bastante sofisticadas e ricas, por

exemplo, em Oxyrhynchus, havia ginásios, banhos públicos, um teatro e por volta de

vinte templos, enquanto em Arsinoe, existia água corrente que derivava de dois

reservatórios cujo suprimento vinha do Nilo, através de sistemas de bombeamento.

Sob domínio romano, todos os homens em idade entre 14 e 60 anos deviam

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pagar impostos anualmente. Desses pagamentos, cidadãos romanos eram isentos, o que,

no entanto, formavam uma parcela ínfima da população total, e as classes mais

abastadas, os “metropolitanos”, aqueles que habitavam as metrópoles, cidades capitais

dos nomos, pagavam essas taxas de forma reduzidas (garotos de classes altas que

chegavam a idade de 14 anos deviam apresentar suas credenciais sociais, para provar

seu status).

Como em outras províncias controladas por Roma, o principal agente de

controle era o exército, que possuía diversos deveres, sendo o principal deles a defesa de

todo o Império, bem como garantir a segurança dos limites do estado e do deserto. O

exército aparece em alguns papiros como o responsável pela supervisão de grãos que

viajavam Nilo abaixo, até Alexandria; e como seguranças de coletores de impostos, que

não eram bastante populares, bem como para supervisionar também as minas e as

expedições do deserto. Ainda, o exército parece tomar parte no controle do banditismo

nas estradas do deserto, que costumavam ser severamente controladas, com necessidade

de permissões escritas em óstracos ou em papiros.

Em relação a aspectos da economia do Egito Romano, três se destacam de

forma relacionada. O primeiro e considerado o mais importante deles remonta à

produção agrícola no Vale do Nilo e no Delta. Como em outros períodos da história do

Egito Antigo, a fecundidade do Nilo proporciona um excelente suprimento de grãos

para o Egito, fator esse que os romanos souberam muito bem aproveitar, passando a

usar Alexandria e suas rotas marítimas para suprir a necessidade alimentícia de Roma.

O segundo aspecto se relaciona com a extração mineral, focada no lado oriental

do deserto. Ali, sabemos que desde épocas mais recuadas, o ouro tem sido explorado

amplamente, no entanto, durante o Período Romano a região também foi fonte de

pedras exóticas como o granito del foro e a porfíria. Da mesma forma, o granito

vermelho da região de Assuã foi largamente explorado e constituiu-se como uma das

pedras mais usadas para decoração pelos romanos. Ainda, em relação ao terceiro

aspecto da economia desse período, destaca-se o papel das rotas comerciais: Alexandria,

como uma das cidades comerciais mais importantes do mundo antigo, posicionada de

forma a fazer contato tanto com o Mar Mediterrâneo como com o Mar Vermelho, a

cidade foi usada como ponto estratégico pelos romanos, pela qual se realizou contatos

com a Índia, em particular, com a Malásia e provavelmente com a China.

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Vale ressaltar, de toda forma, que a importância do Egito para Roma ia além

das necessidades de produção e transporte, passando por questões sócio-culturais como

o próprio gosto da nobreza romana pelos produtos de luxo orientais, mandando importar

do país pérolas, pimentas, sedas, incensos, mirra, bem como vários outros temperos e

remédios exóticos.

Quando se trata de religião no Egito do Período Romano deve-se ter em mente

que Roma herdou as estruturas faraônicas que foram continuadas até aquele momento,

com adições do repertório cultural greco-macedônio imposto durante o Período

Ptolomaico. Vale ressaltar, que muitos dos templos considerados como verdadeiras

obras de arte da era Dinástica, como em Dendera, Edfu, Kom Ombo, Esna e Philae, são

na verdade, estruturas em grande parte construídas durante a época dos Ptolomeus e dos

romanos.

Após a conquista de Alexandre e o estabelecimento da cultura helênica no

Egito e em comunidades próximas, os gregos passaram a identificar seus próprios

deuses com o panteão egípcio, em uma espécie de tradução cultural. Hórus era o

equivalente a Apolo, Thoth a Hermes, Hathor comparada a Afrodite e mesmo o deus

Pan era comparado a Amun-Min, deus da reprodução sexual do Antigo Egito. Nesse

caso, durante o Período Romano, Pan tornou-se o deus do deserto oriental, guardião

caprichoso das rotas, porém, é representado não como o Pan grecizado, mas sim como o

deus Min, com o falo ereto, símbolo relacionado à fertilidade, claramente herdada de

suas significações prévias.

De todos os deuses egípcios, Serápis é o mais próximo de uma figura divina

similar às greco-romanas, representado como um homem barbudo, claramente

associado a Zeus. “Inventado” durante o Período Ptolomaico, esse novo deus derivou

da tradicional divindade do período faraônico, Osirápis, uma fusão entre Osíris e o touro

Ápis, e foi resultado de uma tentativa de aproximação política e religiosa capaz de gerar

a união entre as duas culturas. Algo semelhante acontece quando representações de

imperadores romanos, como Trajano, são encontradas com o mesmo realizando

oferendas a Ísis, Osíris e Hórus, em uma evidente aproximação do mundo romano, e sua

cultura, com as obrigações religiosas egípcias que antes cabiam ao faraó. Serápis era

muito popular em Mênfis e Alexandria, quando a sede do governo mudou-se para lá,

bem como, posteriormente, em Lepcis, Sabratha e na própria Roma.

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Durante o Período Romano outra deusa ainda teve uma importância

exacerbada, a deusa Ísis, às vezes identificada de forma equivocada como Hathor.

Esposa e irmã de Osíris, ela representa o papel da esposa dedicada e fiel e mãe

cuidadosa; adorada pelas mulheres de forma especial, que davam a ela, em seus cultos,

funções expandidas, mostrando a deusa como sendo responsável pelos céus, pela terra,

pela vida e mesmo pela morte. Culto a Ísis foram encontrados espalhados por toda a

extensão do Império Romano e, particularmente na Espanha.

No entanto, apesar das continuidades das práticas religiosas, do meio do

primeiro século a.C. em diante, o cristianismo entra em cena, fincando fortes raízes em

Alexandria, cidade mais diversificada culturalmente do Egito, tornando-se mais um dos

cultos presentes. No entanto, o cristianismo não se vê em pé de igualdade com as outras

religiões e destaca-se a partir de seu monoteísmo, convertendo os outros em cultos

“pagãos”. A ordem que prevalecia, sentindo-se ameaçada, começa a reagir, gerando

desgostos e iniciando conflitos que perdurariam até o fim do Império Romano,

resultando em acontecimentos como a morte da filósofa e matemática Hipátia, em

Alexandria, pelas mãos de cristãos enfurecidos.

As práticas mortuárias, extremamente conectadas com a situação religiosa do

período, são diversas, no entanto, no Egito, persiste o costume da mumificação, bem

elaborada para o rico, mais simples para o pobre. Durante o Período Romano destacam-

se ainda a pintura de retratos colocados sobre a cabeça da múmia, que mostram de

forma realística e vívida, os indivíduos, que provavelmente ainda estariam vivos para a

realização da pintura, demonstrando assim um costume de preparação prévia para a

morte. Esses retratos atestam ainda para o alto nível de habilidade dos artistas da época,

que deviam ser muito bem pagos para realizar obras com esse nível de detalhe.

Em Alexandria, outra forma de enterramento existia para aqueles ricos

habitantes de origem grega. Em Kom el-Shugafa, um complexo de catacumbas datando

do segundo século a.C., abriga câmaras mortuárias que através de escadas levavam a

uma salão de banquetes, onde visitantes poderiam jantar em proximidade aos mortos.

Apesar de inicialmente destinados aos ricos, parece ter se estendido para as classes mais

pobres, por meio de pequenos nichos que acomodavam enterros simples. A decoração

das tumbas possui elementos gregos e egípcios, como falsos sarcófagos decorados com

máscaras, ossos de touro e relevos representando divindades como Anúbis e Thoth.

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A demografia do Egito Romano é bem documentada durante os três primeiros

séculos d.C., havendo cerca de 300 papiros que registram resultados de censos

regulares, detalhando membros de famílias vivendo no Vale do Nilo, bem como suas

posses e seus escravos.

Estimativas da população romana foram feitas com certas dificuldades, devido

principalmente as duas fontes principais de informação que se contradizem: Diodoro

Sículo estima no primeiro século a.C. uma população de 3 milhões de habitantes,

enquanto Flávio Josefo, no primeiro século d.C. estima 7,5 milhões apenas em

Alexandria. Estudiosos parecem tender mais para os números encontrados por Diodoro,

a quem dão mais credibilidade.

Alexandria, segundo Diodoro, possui uma população de 300 mil habitantes, com

sua população distribuída entre 2 mil e 3 mil vilarejos, com uma população, em média,

entre 1 mil e 1,5 mil habitantes. Ainda, de acordo com cálculos de estudiosos modernos,

a população teria por volta de 4,75 milhões de habitantes, dos quais, 1,75 milhões

viveriam em cidades. Sabemos também, que escravos constituíam apenas 11% da

população total e que casamentos e divórcios constituíam assuntos privados, onde o

estado não intervia; temos ciência, ainda, de que um sexto de todos os casamentos era

entre irmãos e irmãs.

Por fim, é possível perceber uma diferenciação do Egito em relação a outras

extensões do Império Romano: há certa resistência à cultura do Mediterrâneo; uma

resistência a se tornar mais um no todo. A criação de uma paisagem dominada por

grandes construções feitas em pedra, resistentes ao tempo e, em grande medida, a ação

do estrangeiro, serviu de lembrança para as gerações posteriores da grandeza da

civilização faraônica e de seus valores. Devemos afastar a idéia de estagnação que ronda

o Período Romano da história do Antigo Egito, percebendo que grandes mudanças

culturais tomaram forma nesse período, como o crescimento do cristianismo e a

solidificação de uma variedade cultural característica à época que marcaria para sempre

etnicamente e culturalmente a população do Egito.