verdade e história - arqueologia de uma relação

Upload: giovani-m-bernini

Post on 13-Feb-2018

290 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    1/51

    cadernos

    ideias

    Jos D'Assuno Barros

    ano 12 n 212 vol. 12 2014 ISSN 1679-0316

    Verdade

    e Histriaarqueologia de

    uma relao

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    2/51

    Verdade e Histria arqueologia de uma relaoTruth and History archaeology of a relationship

    Jos DAssuno BarrosUFRRJ

    Resumo

    Resta muito pouco da antiga pretenso positivista de alcanar um dia averdade ltima, acabada e definitiva. A prpria redefinio da Histria comouma cincia interpretativa leva a se admitir que os resultados e produtos daHistria a serem alcanados no plano mais geral so apenas hiptesessobreo desenvolvimento do mundo humano, interpretaes sobre os processosvividos pela humanidade ou cada uma das diversas sociedades dela consti-tuintes, leituras em torno das razes e desdobramentos dos grandes acon-tecimentos que impactaram o mundo humano desde os incios dos tempos,

    sendo o seu principal resultado a elaborao de hipteses sobre o funcio-namento do mundo. Quando ocorre a uma hiptese ser erigida ao status deverdade absoluta, incontestvel e definitiva, pode-se dizer, alis, que ela sepetrifica em dogma e que, ato contnuo, abandonamos o campo da cincia. Aprincipal caracterstica da cincia a convivncia da eterna busca da verda-de com a noo concomitante de que a produo de conhecimento necessitada crtica eternamente atualizada e de uma reescrita constante. Quero sus-tentar que a Histria trabalha tanto com as intenes de verdades que serelacionam com aquele gesto pericial que busca obter preciso informativa,como com as formulaes que se referem ao gesto interpretativo de propor

    hipteses que apenas anseiam produzir um conhecimento verdadeiro e re-lativo, embora sem necessariamente alcanar a verdade propriamente dita.

    Palavras-chave: Histria, verdade, cincia, hipteses, conhecimentocientfico.

    Abstract

    Little remains from the old positivist claim to achieve one day the ul-timate and definitive true. The redefinition itself of history as an interpretivescience leads to admit that the results of the history and outputs to be achie-ved at the macro level are only hypotheses about the development of thehuman world, interpretations of the processes experienced by humanity oreach of several societies that constitutes it, regardings around the reasonsand consequences of major events that impacted the human world since thebeginning of time and targeting as main result the preparation of assumptionsabout how the world works. When occurs to a hypothesis to be erected to thestatus of absolute truth, indisputable and definitive can be said, moreover, itpetrifies into dogma and, immediately, it has left the field of Science. The maincharacteristic of Science is the coexistence of a eternal search for truth with aconcomitant notion that the production of knowledge requires eternally criticsand constant rewritings. I want to argue that history works with both intentionsof truth that are related to one expert gesture that seeks to obtain informationaccurately, as with formulations that refer to interpretive gesture of proposinghypotheses that just seek to produce a true and relative knowledge, althoughit not necessarily reach the truth itself.

    Keywords: History, truth, science, hypotheses, scientific knowledge.

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    3/51

    Verdade e Histriaarqueologia de uma relao

    Jos DAssuno BarrosUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ

    ano 12 n 212 vol. 12 2014 ISSN 1679-0316

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    4/51

    Cadernos IHU ideias uma publicao quinzenal impressa e digital do Instituto HumanitasUnisinos IHUque apresenta artigos produzidos por palestrantes e convidados(as) dos eventos

    promovidos pelo Instituto, alm de artigos inditos de pesquisadores em diversas universidades

    e instituies de pesquisa. A diversidade transdisciplinar dos temas, abrangendo as maisdiferentes reas do conhecimento, a caracterstica essencial desta publicao.

    UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS

    Reitor:Marcelo Fernandes de Aquino, SJVice-reitor: Jos Ivo Follmann, SJ

    Instituto Humanitas Unisinos

    Diretor:Incio Neutzling, SJGerente administrativo:Jacinto Schneider

    www.ihu.unisinos.br

    Cadernos IHU ideiasAno XII N 212 V. 12 2014

    ISSN1679-0316 (impresso)

    Editor: Prof. Dr. Incio Neutzling - Unisinos

    Conselho editorial:MSCaio Fernando Flores Coelho; Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta; Prof.MSGilberto Antnio Faggion; Prof. MSLucas Henrique da Luz; MSMarcia Rosane Junges; Profa.Dra. Marilene Maia; Profa. Dra. Susana Rocca; Dra. Susana Rocca.

    Conselho cientfico:Prof. Dr. Adriano Neves de Brito, Unisinos, doutor em Filosofia; Profa. Dra.Angelica Massuquetti, Unisinos, doutora em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade; Profa.Dra. Berenice Corsetti, Unisinos, doutora em Educao; Prof. Dr. Celso Cndido de Azambuja,Unisinos, doutor em Psicologia; Prof. Dr. Csar Sanson, UFRN, doutor em Sociologia; Prof. Dr.Gentil Corazza, UFRGS, doutor em Economia; Profa. Dra. Suzana Kilpp, Unisinos, doutora emComunicao.

    Responsvel tcnico:MSCaio Fernando Flores Coelho

    Reviso:Carla Bigliardi

    Editorao eletrnica:Rafael Tarcsio Forneck

    Impresso:Impressos Porto

    Cadernos IHU ideias / Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Instituto Humanitas Unisinos. Ano 1, n. 1 (2003)- . So Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2003- .

    v.

    Quinzenal (durante o ano letivo).

    Publicado tambm on-line: .

    Descrio baseada em: Ano 1, n. 1 (2003); ltima edio consultada: Ano 11, n. 204 (2013).

    ISSN 1679-0316

    1. Sociologia. 2. Filosofia. 3. Poltica. I. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Instituto Hu-manitas Unisinos.

    CDU 3161

    32

    Bibliotecria responsvel: Carla Maria Goulart de Moraes CRB10/1252

    ISSN1679-0316 (impresso)

    Solicita-se permuta/Exchange desired.

    As posies expressas nos textos assinados so de responsabilidade exclusiva dos autores.

    Toda a correspondncia deve ser dirigida Comisso Editorial dos Cadernos IHU ideias:

    Programa de Publicaes, Instituto Humanitas Unisinos IHUUniversidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos

    Av. Unisinos, 950, 93022-000, So Leopoldo RS BrasilTel.: 51.3590 8213 Fax: 51.3590 8467

    Email: [email protected]

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    5/51

    VERDADE E HISTRIAARQUEOLOGIA DE UMA RELAO

    Jos DAssuno Barros

    UFRRJ

    A Palavra e o Mundo

    Considerar a complexa relao entre Histria e Verdade, e,antes desta, a relao entre Conhecimento e Verdade, implicareconhecer que, h j algumas dcadas, completou-se um gran-de processo que apontou sistematicamente e de diversas ma-

    neiras, nos vrios campos de saber, para o reconhecimento deum incontornvel hiato entre a Palavra e o Mundo1. Para muitos,a palavra ou a linguagem deixou de ser vista como uma pon-te que liga o homem ao mundo para ser entrevista como umabarreira entre o homem e o mundo. Sem contar, ainda, que aPalavra tambm pode ser pensada como criadora de novosmundos, construdos a partir de um complexo enredamento deintersubjetividades mundos que no correspondem ao Mundoobjetivo, situado fora das mentes humanas.

    Ainda assim, mesmo nos dias de hoje tem se renovado, nombito dos vrios saberes cientficos, este empenho permanen-te de ajustar a palavra ao mundo ou de buscar uma adequaoentre o que se diz que aconteceu e aquilo que realmente acon-teceu, no caso da Histria. A Palavra, por outro lado, no temapenas a propriedade de se ajustar ao mundo: por vezes, ela

    tambm um poderoso instrumento capaz de propor um desven-damento do mundo. Essa dupla funo de enunciar fatos ajust-

    1 Kant, por exemplo, j comea a atentar para o papel da constituio do mundopelo sujeito transcendental isto , daquele que est em condies e possibili-dades de experincia e passa a eleger como principal objeto de investigaofilosfica as condies de possibilidade do conhecimento e os limites da razo.Nietzsche ir alm em sua crtica do conhecimento, e colocar em cheque mes-mo as duas formas apriorsticas de intuio indicadas por Kant (o espao e o

    tempo), afirmando que tambm as concepes e modos de sentir o espao e otempo esto sujeitas a mudanas histricas. Tambm atribudo a Nietzsche,embora haja controvrsias sobre isto, o aforismo de que no h fatos, s hinterpretaes. Enquanto isto, na historiografia do sculo XIX, alguns dos histo-ricistas j comeam a debater o papel do sujeito na produo do conhecimentohistoriogrfico. As discusses sobre os limites do conhecimento ou seja, so-bre a ruptura entre a Palavra e o Mundo seguem pelo sculo XXadentro, e voencontrar no chamado giro lingustico um dos seus principais debates. Antesdeste, entrementes, cabe ressaltar as reflexes de Wittgenstein sobre os limitesda linguagem nas Investigaes Filosficas.

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    6/51

    4 Jos Costa DAssuno Barros

    veis ao mundo, e de propor desvendamentos relacionveis aofuncionamento deste mesmo mundo, est tambm presente na

    operao historiogrfica, de modo que esta ser a base de mi-nhas consideraes sobre as formas de interao entre Verdadee Histria.

    Podemos comear por reconhecer que no mundo contem-porneo sob o contexto das suas inmeras incertezas, e ape-sar dos ltimos duzentos anos de consolidao de uma historio-grafia profissional e cientfica no velho e no novo mundo certa-mente pareceria um pouco ingnua, para a maioria dos historiado-

    res de formao, a pretenso de que a Histria seja capaz de pro-duzir verdades definitivas na sua eterna nsia de buscar explica-es para os grandes processos histricos ou de tentar entender asdinmicas de funcionamento das sociedades que nos precederamno passado e daquelas que nos so contemporneas.

    A reescrita constante da Histria, expressa atravs da acu-mulao sem fim de inmeras obras historiogrficas sobre ummesmo tema, , de certo modo, uma constatao incontornvele instantnea para qualquer historiador que, na era digital, temna prpria Internet a possibilidade de contemplar a imensa va-riedade de interpretaes e pontos de vista sobre cada um dosdiversos problemas historiogrficos. No h como negar quehistoriadores diferentes, ao visitarem os mesmos conjuntos his-tricos para examinar os mesmos acontecimentos, ainda assimproduziro necessariamente relatos e anlises bem distintos,

    por vezes antagnicos entre si.De igual maneira, resta muito pouco, nestes tempos con-temporneos, da antiga pretenso positivista de alcanar um diaa verdade ltima, acabada e definitiva, ponto final de um conhe-cimento que poderia esgotar cada tema de estudo historiogrfi-co maneira de uma cincia exata cujos resultados poderiamser aceitos consensualmente. A prpria redefinio da Histriacomo uma cincia interpretativa, levada a cabo nos ltimos dois

    sculos, leva a se admitir, na maior parte da comunidade histo-riogrfica, que os resultados e produtos da Histria a serem al-canados no plano mais geral so apenas hipteses sobre odesenvolvimento do mundo humano, interpretaes sobre osprocessos vividos pela humanidade ou cada uma das diversassociedades dela constituintes, leituras em torno das razes edesdobramentos dos grandes acontecimentos que impactaramo mundo humano desde os incios dos tempos histricos e mes-mo pr-histricos.

    De resto, em boa medida, pode ser tambm estendida aqualquer campo de saber a ideia de que a cincia essencialmen-te no produz verdades, sendo o seu principal resultado a elabo-rao de hipteses sobre o funcionamento do mundo2. Quando

    2 Ver comentrios sobre isto em TODOROV, Tzvetan, As cincias morais e polti-cas In: As Morais da Histria. Lisboa: Europa-Amrica, 1991, p.14.

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    7/51

    Cadernos IHU ideias 5

    ocorre a uma hiptese ser erigida ao status de verdade absolu-ta, incontestvel e definitiva, pode-se dizer, alis, que ela se

    petrifica em dogma e que, ato contnuo, abandonamos o campoda cincia. A histria da historiografia e a histria da cincia es-to repletas de exemplos sobre formulaes cientficas que setransformaram em dogmas, com direito a manipulaes polti-cas, precisamente porque aqueles que as elaboraram ou delasse apropriaram abandonaram a conscincia de que a principalcaracterstica da cincia a convivncia da eterna busca da ver-dade com a noo concomitante de que a produo de conheci-

    mento necessita da crtica eternamente atualizada e de umareescrita constante.

    Se a Cincia uma forma de saber que se justifica sob osigno da eterna busca da verdade, sem necessariamente alcan--la no plano mais geral, por outro lado existem inmeras ou-tras formas de saber que podemos agrupar sob o signo da per-cia. Nos dias de hoje, se no existirem interesses em ocultar oudistorcer os fatos, e tampouco erros produzidos pela m-f ouincompetncia, e considerando ainda que existam evidnciassuficientes, um laudo de percia criminal pode pronunciar enun-ciados capazes de elucidar certas questes relacionadas ocor-rncia de um ato criminoso com quase 100% de acerto. Da mes-ma forma, a meticulosa pesquisa sobre o DNA humano temlevado os cientistas possibilidade de adquirir informaes pre-cisas sobre a longnqua origem da humanidade e suas sucessi-

    vas migraes no perodo pr-histrico. Na Histria, a crticadocumental alcanou um patamar de eficincia considervelentre os sculos XVIe XIX, sculo este no qual se incorpora metodologia da histria cientfica, e desde ento no cessou deagregar recursos que tm habilitado os historiadores a determi-nar com preciso aspectos como a datao ou a falsidade deum documento. Esses exemplos, que nos aproximam de umtipo de saber pericial que nos habilita a enunciar cada vez mais

    afirmaes adequadas com relao a determinados aspectospontuais, convivem na cincia com elaboraes mais amplasque se referem a um outro tipo de saber que mais da ordemdas interpretaes do que dos enunciados precisos.

    Considerando todos os aspectos, podemos dizer que acincia lida tanto com pequenas verdades relacionadas ao gestode obter tanto quanto possvel preciso informativa, como comgrandes afirmaes relacionadas ao gesto de propor hiptesesque apenas anseiam encaminhar um contnuo e sempre trans-formvel desvendamento acerca do funcionamento do universo.Nesta palestra, quero sustentar que a Histria, como campo desaber que pode ser classificado entre as cincias humanas, tra-balha tanto com as intenes de verdades que se relacionamcom aquele gesto pericial que busca, tanto quanto possvel, ob-ter preciso informativa, como com as formulaes que se refe-

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    8/51

    6 Jos Costa DAssuno Barros

    rem ao gesto interpretativo de propor hipteses que apenas an-seiam produzir um conhecimento verdadeiro e relativo, embora

    sem necessariamente alcanar a verdade propriamente dita.Para tal, precisaremos assumir uma distino preliminar entreverdade e conhecimento verdadeiro. Alm disso, a reflexosobre as formas de interao entre Histria e Verdade deve pas-sar, como sustentarei, por uma compreenso de que a Histrialida com dois tipos de compromissos para com a obteno deum conhecimento verdadeiro, os quais chamarei mais adiantede veracidade e veridicidade.

    O dilema fundamental da Histria

    Comearei por algumas consideraes acerca do vocabu-lrio necessrio para avanar nesta reflexo. j bem conheci-da a aparente contradio ou dilema em que se funda o prpriotrabalho do historiador: ao mesmo tempo que este busca obsti-

    nadamente construir um conhecimento que possa ser conside-rado verdadeiro, dificilmente o sujeito que produz o relato histo-riogrfico pode deixar de considerar, em algum nvel, que oconhecimento assim produzido refere-se sempre a um ponto devista, a uma perspectiva, a escolhas relacionadas a aspectosvrios que vo desde as visadas possveis em relao a umobjeto at as decises ligadas ao ato de enunciar em forma detexto as concluses da pesquisa.

    Na produo do conhecimento histrico, enfim, um certocompromisso de falar sobre algo verdadeiro confronta-se com oreconhecimento de que, talvez mais do que em qualquer outrarea do saber, o conhecimento produzido pelos historiadores relativo. A forte presena do sujeito ao abordar o objeto histricoe as marcas que ali so deixadas pela sua prpria poca e lugarde produo sem considerar ainda que o historiador trabalhasempre com a mediao produzida pelas suas prprias fontes fazem da Histria uma modalidade de conhecimento que noparece ser associvel integralmente a uma verdade histrica in-dependente do historiador que a produz, ainda que todo instanteo historiador precise se empenhar em oferecer sua comunida-de de leitores alguns ndices de veracidade em relao ao objetoao qual se refere.

    Entre muitos dos historiadores e filsofos que apreende-

    ram esta incontornvel tenso que se d no prprio seio daproduo historiogrfica, e que procuraram sintetiz-la em umaforma mais simples, podemos citar a clebre aporia propostapor Koselleck ao se referir ao conhecimento histrico e ao tra-balho do historiador. Busca-se, aqui, simultaneamente produzirenunciados verdadeiros e reconhecer a relatividade de todoponto de vista.

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    9/51

    Cadernos IHU ideias 7

    A aporia da Histria, segundo Koselleck3

    Sempre se abriram a vrias possibilidades, e se oferece-ram a mltiplas apropriaes, as relaes entre estes dois ter-mos que se ocultam ou se revelam na produo historiadora.Reconhecer intimamente que a operao historiogrfica com-

    porta a relatividade de diversos pontos de vista, incluindo aspossibilidades de distores, mas difundir oficialmente a ideia deque existe um nico enunciado verdadeiro sobre determinadotema ou processo histrico, essa foi uma agenda nada estranhaa diversos projetos polticos, sistemas repressivos, poderes ins-titudos e estratgias encaminhadas por grupos em disputa pelopoder de enunciar a Histria, ou de definir a Histria que mereceser considerada verdadeira. Tambm no so raras as formas

    de compreenso histrica que buscam anular uma das duas ins-tncias a nsia de verdade e a conscincia da relatividade em favor do imprio absoluto da outra. A histria da historio-grafia oferece fartos exemplos acerca de correntes ou realiza-es historiogrficas que desconsideram a relatividade de pon-tos de vista e advogam uma pura objetividade que permitiriachegar a um nico enunciado verdadeiro para qualquer proces-so histrico examinado. Em contrapartida, nos tempos mais re-

    centes afloram tambm as posies que desconsideram o idealhistoriogrfico de enunciar algo verdadeiro e que, um tanto afoi-tamente, abandonam a pretenso a quaisquer referncias reaispara se entregarem a navegaes sem rumo atravs de um oce-ano de pura relatividade que parece aproximar a Histria perigo-samente da fico literria.

    Por ora, quero considerar que o dilema fundamental da His-tria tem sido apresentado atravs de inmeras formas e varia-es. De certa maneira, no mais do que uma reformulao do

    3 Uma aporia expresso que no grego antigo remete s ideias de caminhoinexpugnvel, sem sada, ou a uma dificuldade a ser enfrentada pelo ra-ciocnio deve ser aqui entendida como um impasse (efetivo ou aparente), umparadoxo ou incerteza que cria um desafio ou uma dificuldade. A aporia que,na Histria, estabelece-se a partir da coexistncia da nsia pela verdade e daconscincia da relatividade de todo ponto de vista foi discutida por ReinhartKoselleck em um dos ensaios inseridos em Futuro Passado(1979).

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    10/51

    8 Jos Costa DAssuno Barros

    problema em outros termos a aporia abaixo, relativa conscin-cia sobre a permanente reescrita da Histria.

    A aporia da Histria em outros termos: eterna reescrita da Histria

    Em termos simples, podemos dizer que cada historiador, aoconcluir um trabalho honesto e sistemtico sobre determinado

    tema ou problema histrico, dificilmente deixar de sentir a vivacerteza de que acaba de alcanar algo verdadeiro. No entanto,particularmente nos dias de hoje, dificilmente este mesmo histo-riador ter qualquer iluso acerca do fato de que as histriassobre o seu mesmo objeto sero continuamente reescritas nofuturo, chegando a novos resultados. Seu prprio trabalho pode-r aspirar a se tornar, talvez, um clssico? Converter-se- ape-

    nas em fonte de restrito interesse para os estudos futuros dehistria da historiografia? Desaparecer sob a poeira deixadapelo incessante surgimento de novas obras? A implacvel conti-nuidade da reescrita permanente da Histria a sombra insepa-rvel da impresso, por mais vvida que esta seja, de que produ-zimos algo de verdadeiro.

    Sim, afirma-se cada vez mais o crescimento inevitvel daconscincia, entre os historiadores, de que os diversos trabalhos

    historiogrficos sero continuamente substitudos uns por outros e de que, efetivamente, isto sempre foi assim, desde os pri-mrdios da Histria, mesmo quando esta ainda no se apresen-tava a si mesma como um conhecimento de tipo cientfico. Vive-mos tempos interessantes para a profisso de historiador. Se aconscincia de permanente reescrita da Histria abalou todas asantigas certezas de que a Histria pode aspirar construo deuma verdade radicalmente objetiva e um dia vir a se tornar uma

    cincia acabada, de resultados concludentes e cumulativos, poroutro lado ela no deixa de reatualizar permanentemente a utili-dade da Histria como campo profissional. A conscincia acercada incontornvel e constante reescrita da Histria, enfim, , nostempos atuais, inseparvel da prpria operao historiogrfica,e refora a cada instante a importncia do papel dos historiado-res nas sociedades contemporneas.

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    11/51

    Cadernos IHU ideias 9

    Por fim, para lembrar uma ltima aporia relativa produodo conhecimento histrico e de sua relao com a inteno de

    verdade, podemos citar o caminho sem sada indicado por Ro-land Barthes no clebre texto O Discurso da Histria (1967).Para este filsofo francs, o discurso historiogrfico seria o ni-co no qual o referente visado como exterior ao discurso, semque, no entanto, jamais seja efetivamente possvel atingi-lo forado prprio discurso4.

    A aporia de Roland Barthes a respeito do Discurso da Histria.

    Conforme as consideraes de Roland Barthes, os historia-dores comportam-se discursivamente como se o seu objeto se

    situasse em uma realidade extratextual. No entanto, rigorosa-mente falando, este objeto certo passado que no mais existe s pode ser atingido atravs de outros textos. Os fatos comos quais lidam os historiadores, prossegue Barthes, no apre-sentam seno uma existncia lingustica, como termos de umdiscurso. Reaparece aqui a aporia tambm enunciada por ou-tros autores: embora pretenda escrever sobre um passado real,o historiador s pode, no mximo, escrever sobre algo que um

    dia se escreveu acerca de um passado pretensamente real. Co-mo reconhecer na Histria um conhecimento capaz de tocar averdade, se entre o historiador e o seu objeto se interpem di-versas camadas discursivas?

    Todas as aporias sobre a Histria que vimos at aqui des-guam, se observarmos bem, em um leito comum. Ao mesmo tem-po que visa a uma realidade que efetivamente no mais existe, eque portanto um real que no mais real, a Palavra, na Histria, separada do Mundopor duas camadas de discursos. Entre ohistoriador que produz a palavra historiogrficae o catico mundohistricoque j desapareceu, mas que a persistncia historiadorainsiste em tomar por objeto, interpem-se os discursos das fontese os discursos produzidos pelos prprios sujeitos que escrevem

    4 BARTHES, Roland. O Discurso da Histria In: O Rumor da Lngua. So Paulo:Martins Fontes, 2004. p.177.

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    12/51

    10 Jos Costa DAssuno Barros

    histrias. O giro lingustico, algum poderia perfeitamente grace-jar, d duas voltas completas sobre si mesmo. O anseio dos his-

    toriadores compreender o passado-passado atravs do passa-do-presente (as fontes), ao qual acrescentam uma nova camadade mediao que o seu prprio discurso.

    lugar comum dizer que todos os arquelogos so histo-riadores. Nunca foi to evidente que os historiadores de todos ostipos lidem eles com textos, imagens ou memrias que sosempre e necessariamente arquelogosde um outro tipo. No possvel se formar historiador sem aprender a lidar com as v-rias camadas que recobrem uma realidade que, possivelmente,nunca ser encontrada. Ainda assim, enquanto esta meticulosa

    arqueologia de discursos revira pacientemente tudo aquilo quepudemos herdar do mundo histrico atravs de vestgios de to-dos os tipos o que, alis, inclui as nossas prprias palavras ediscursos pulsa essa nsia inabalvel de, em algum momento,ser encontrado algo de verdadeiro.

    Retomemos a tarefa de hoje. Conforme veremos adiante, pa-ra escaparmos por dentro das diversas aporias entrelaadas queenvolvem a Histria, faz-se necessria uma distino entre Verda-

    de e Conhecimento Verdadeiro. para l que devemos apontaros nossos instrumentos e a nossa pacincia arqueolgica. Ao mes-mo tempo, ser preciso identificar os elementos que compem oconhecimento verdadeiro, para o caso especfico do discurso histo-riogrfico. Ser esta a tarefa encaminhada a seguir.

    Veracidade e Veridicidade

    Por ora, retornemos discusso sobre os termos bsicosque podem se referir questo da qual presentemente trata-mos. Talvez a maneira mais eficiente de retomar a questo emtorno das relaes entre Verdade e Histria seja a de construirdistines entre os diversos conceitos afins com a ideia de ver-dade. Se verdade um conceito filosoficamente escorregadio,sujeito a muitos torneios de sentidos e becos sem sada, uma

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    13/51

    Cadernos IHU ideias 11

    primeira distino pode mais facilmente ser feita entre os concei-tos de veracidadee veridicidade.

    Entenderemos veracidade como a qualidade daquilo queexpressa ou toca, de alguma maneira, a verdade; ou, ainda, co-mo o potencial para a comprovao daquilo que verdadeiro.Veracidade uma expresso que guarda relaes mais diretascom a ideia de verdade propriamente dita. Na historiografia, aideia de veracidade tambm sintoniza, em uma de suas possibi-lidades de sentidos, com a exatido de conhecimento e suabusca. Estamos no mbito da busca de veracidade quando pro-

    curamos adequar uma afirmao ou enunciado realidade efe-tivamente ocorrida em um passado que j desapareceu ao dei-xar vestgios sob a forma de fontes. Esse passado-presente,como o denominou Koselleck, um passado que apenas conser-va a potencialidade de ser chamado de real porque deixou suasmarcas no presente, , rigorosamente falando, o nico trao deverdade ao qual o historiador pode ter acesso. A veracidadeseconstitui, essencialmente, deste gesto de afinar aquilo que ditocom um dado ou aspecto do mundo exterior, fora de ns. Nocaso dos historiadores, a busca de uma verdade de adequa-o para aqui utilizar um conceito proposto por Todorov5 so-mente pode ser realizada quando existe fora do sujeito que pro-duz a histria uma fonte ou um conjunto de fontes. Para oshistoriadores, as fontes histricas constituem precisamenteaquilo que permite uma ligao, por imperfeita que seja, entre a

    Palavra e o Mundo.Nem sempre possvel conseguir uma informao precisa,obviamente; mas, de todo modo, do mbito da veracidademostrar que o que se afirma com relao aos fatos apresenta-dos, ou realidade em referncia, baseia-se em um estudo dasevidncias e em uma anlise crtica das fontes. Enquanto isso, averidicidade pode ser entendida como a qualidade daquilo que verdico; ou como aquilo que passvel de ser considerado

    verdadeiro6. Com a veridicidade temos aquilo que constitudo

    5 TODOROV, Tzvetan, Fices e Verdades In: As Morais da Histria. Lisboa:Europa-Amrica, 1991, p.128.

    6 De alguma maneira, sintoniza com esta perspectiva a diviso que Todorov pro-cede para refletir sobre a Verdade, separando-a em dois tipos. H de um ladouma verdade-adequao (aquela que s admite como medida o tudo ou onada, e que se encaminha para respostas polarizadas: isso aconteceu ou

    isso no aconteceu). Existe, de outro lado, uma verdade-desvendamento,que aquela que admite o mais ou menos: Que X tenha cometido umcrime verdadeiro ou falso, quaisquer que sejam de resto as circunstnciasatenuantes; o mesmo no que diz respeito a saber se os judeus se desvanece-ram ou no atravs das chamins de Auschwitz. No entanto, se a questo dizrespeito s causas do nazismo ou identidade do francs mdio em 1991, no sequer possvel conceber uma resposta deste tipo: as respostas s podemconter mais ou menos verdade, uma vez que aspiram a desvendar a naturezade um fenmeno, no a estabelecer fatos (TODOROV, Tzvetan. As Morais daHistria. Lisboa: Europa-Amrica, 1991, p.128).

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    14/51

    12 Jos Costa DAssuno Barros

    pela verdade (mas no a verdade, propriamente, em si mes-ma). Um conhecimento verdico (ou um relato verdico) aque-

    le que se torna perfeitamente passvel de ser admitido comoverdadeiro, considerando que satisfaz certas exigncias noseu modelo discursivo e nas relaes deste com o objeto aoqual se refere.

    O conhecimento que apresenta veridicidade no necessa-riamente coincidir com a verdade; mas ser sempre algo quepode satisfazer ao interlocutor como um conjunto de enunciadose interpretaes que pode ser pensado como verdadeiro. Entre

    outros aspectos, o conhecimento dotado de veridicidade precisaapresentar tambm verossimilhana, a qual uma expressoque se relaciona impresso de verdade que uma afirmao,narrativa ou interpretao pode desencadear no interlocutor.Mas este , decerto, apenas um dos aspectos da veridicidade. E importante destacar, desde j, que cada gnero de texto pos-sui as suas prprias exigncias para que seja reconhecida a suaveridicidade. A veridicidade de uma anlise jurdica, por exem-plo, precisa ser amparada em determinadas normas e na pre-sena de certas caractersticas; a veridicidade de um documen-trio cientfico, por outro lado, tem outros parmetros. De nossaparte, logo veremos que, para o caso da Histria produzida porhistoriadores, no so poucas as demais exigncias, para almda verossimilhana, que devem ser cumpridas para o convenci-mento do interlocutor historiogrfico e para seu reconhecimento

    da presena de veridicidade em um texto qualquer produzidoconforme o modelo da historiografia profissional.Desde j, ressaltamos que as exigncias que se colocam

    para que um texto seja reconhecido como dotado de veridici-dade so bem diferentes na Histria e na Literatura. Nesta l-tima, pede-se apenas que o autor assegure verossimilhanaao seu texto isto , que faa seu leitor viver o mundo por elecriado com uma forte impresso de verdade, mesmo que se

    trate de uma histria fantstica que apresenta surpreendente-mente um universo com novas regras e que disponibiliza aoleitor personagens francamente fictcios. No momento em quepassa a se deixar conduzir pela leitura de uma narrativa liter-ria, por mais estranha ou incomum que esta possa parecer emcomparao com o mundo familiar ao leitor, o sujeito que inte-rage com o mundo do texto logo tem ou deveria ter a vvidasensao de que est diante de algo verdadeiro. Os livros oufilmes de fico cientfica, por exemplo, produzem nos seusapreciadores uma impresso de verdade, mesmo que esta stenha a durao da prpria leitura. Quando um leitor no en-contra esta verossimilhana momentnea em um livro de fic-o cientfica ou em um conto de terror, deixa de ler a obra epassa a ler contra a obra, que adquire para ele um sentidomeramente cmico ou burlesco.

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    15/51

    Cadernos IHU ideias 13

    Para a discusso que nos interessa, pode-se dizer que averidicidade de um texto de literatura criativa praticamente se

    confunde com a sua verossimilhana com a habilidade do au-tor em fazer o leitor viver com impresso de verdade as novasregras propostas pelo mundo do texto. Quanto aos gneros deliteratura que se baseiam em uma realidade j vivida um ro-mance histrico, por exemplo neste caso j aparecem exign-cias adicionais, sobretudo a de que a impresso de verossimi-lhana perdure para alm do prprio perodo de leitura. Nestamodalidade de literatura no se trata apenas de fazer o leitor

    sentir que est vivendo algo verdadeiro apenas no mundo doprprio texto, mas tambm de transferir a ele a impresso, paraalm do perodo da leitura, de que a obra estabelece relaesefetivas com o mundo vivido, com uma outra poca. O RomanceHistrico, por assim dizer, transborda o mundo do texto. Tal co-mo ocorre com o texto historiogrfico, pretende estabelecer rela-es efetivas com um mundo extratextual situado em um tempoque j passou7.

    Com os textos de Histria, entrementes, a busca de veridi-cidade impe exigncias que tm na verossimilhana apenasum dos seus aspectos. Obviamente que o modelo de veridicida-de para os chamados textos historiogrficos tem sofrido modifi-caes ao longo da prpria histria. Todavia, considerando onosso atual regime de historicidade, podemos dizer que so per-ceptveis algumas exigncias para os textos historiogrficos.

    Alm de causar impresso de verdade no seu leitor, o historia-dor que produz uma narrativa histrica, ou que elabora uma an-lise historiogrfica, precisa agregar complexidade e coernciaao seu produto8, alm de atender a aspectos que se referem crtica documental e que passam a ser percebidos pelo leitorcomo os sinais de uma metodologia legtima. Este, alis, oponto preciso onde a veracidade e a veridicidade se tocam naproduo de um texto historiogrfico.

    7 Diz-nos Roland Barthes: O prestgio do que aconteceu tem uma importnciae uma amplitude verdadeiramente histricas. H um gosto de toda a nossacivilizao pelo efeito do real, atestado pelo desenvolvimento de gneros espe-

    cficos como o romance realista, o dirio ntimo, a literatura de documento, o faitdivers, o museu histrico, a exposio de objetos antigos, e principalmente odesenvolvimento macio da fotografia, cujo nico trao pertinente (comparadoao desenho) precisamente significar que o evento representado realmentesedeu (BARTHES, Roland. O Discurso da Histria In: O Rumor da Lngua. SoPaulo: Martins Fontes, 2004, p.178-179).

    8 Tzvetan Todorov, expressando-se em termos de riqueza e coerncia, desen-volve consideraes sobre este aspecto, embora os dirigindo s impressesliterrias, no post scriptum inserido em As Morais da Histria(Lisboa: Europa-Amrica, 1991, p.166).

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    16/51

    14 Jos Costa DAssuno Barros

    A complementaridade entre veracidade e veridicidade, em-bora com outros nomes, j foi abordada por autores diversosrelativamente a variados campos de saber. Todorov, em um tex-to includo no ensaio Morais da Histria, falava-nos respectiva-mente de uma verdade de adequao e de uma verdade dedesvendamento9. Ele mesmo cita um par de conceitos sugeridopor Mikhail Bakhtin para os mesmos propsitos: a exatido deconhecimento e a profundidade de penetrao. Uma e outradestas propostas conceituais, e outras mais, referem-se precisa-mente aos polos que estamos aqui tratando como veracidadee veridicidade. Quando se pensa em veracidade, vem mente

    a exigncia de correo e exatido do que se fala em relaoquilo de que se fala. Quando se pensa em veridicidade, exi-ge-se daquele que elabora interpretaes, acima de tudo, umaprofundidade de penetrao em vrias direes. Se na literatu-ra criativa, como vimos, basta assegurar ao leitor um mergulhovvido no mundo do texto, j a veridicidade de uma interpretaohistoriogrfica impe certas exigncias no mbito da coerncialgica e da demonstrao emprica, alm de demandar critrios

    que assegurem a legitimidade da operao historiogrfica oudaquele que a conduz. Alm de se exigir do historiador habilida-des literrias que lhe permitam inspirar no seu leitor uma forteimpresso de verdade, pede-se dele uma anlise to rica ecomplexa quanto possvel. O quadro acima objetiva decompor averidicidade historiogrfica em alguns dos seus fatores funda-mentais. Procuraremos discorrer sobre alguns destes fatoresmais adiante.

    A construo do fato histrico

    A partir deste momento vou me ater apenas ao saber eaos textos historiogrficos. A distino entre veracidade e veri-

    9 TODOROV, Tzvetan. Post Scriptum a verdade das interpretaes In: As Mo-rais da Histria. Lisboa: Europa-Amrica, 1991, p.162-a69).

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    17/51

    Cadernos IHU ideias 15

    dicidade, neste caso, coloca-nos diretamente diante da possi-bilidade de refletir sobre as diferentes formas de lidar com a

    verdade que aparecem no ofcio do historiador. O primeiro pon-to a considerar refere-se precisamente discusso sobre anoo de fato histrico.

    Como sabemos, o historiador lida com fatos fatos cujocarter construtivo precisa ser reconhecido, mas que, de todomodo, so fatos que mantm alguma relao com uma realida-de que faz ou j fez parte do campo de experincias humanas.Em que pese o incontornvel reconhecimento dos aspectos in-

    tersubjetivos que entram na construo, na composio e nainterconexo dos fatos histricos, podemos admitir que, em umainstncia minimal, os fatos trazem uma dimenso de objetivida-de, pelo menos no sentido de que no so construes livresdos historiadores. Uma proposta de definio torna-se aqui ne-cessria. Como fatos, de um ponto de vista historiogrfico, deve-mos considerar tudo aquilo que ou foi resultado da ao huma-na, seja esta a ao de um nico indivduo ou uma ao coletiva.Esta definio autoriza-nos a dizer que so fatosdesde os even-tos propriamente ditos, no seu sentido pontual, at os processosde duraes diversas que se desdobram no tempo, e, finalmen-te, todos os tipos de produtos concretos decorrentes das aeshumanas, tal como os objetos produzidos ou os textos elabora-dos por homens de todas as pocas10. Qualquer que seja ele,um texto o culminar de uma ao de escrever11, e nesse

    sentido que um dirio, um documento legislativo, um romance,uma certido de batismo, ou qualquer outro tipo de fonte textualpode ser considerado um fato para o historiador. A mesma no-o pode ser estendida para qualquer objeto j produzido pelaao humana. As fontes histricas, portanto textos ou objetosexistentes no presente que trazem as marcas de um passadoque efetivamente ocorreu , podem ser assimiladas categoriados fatos.

    Ao lado desta definio ampliada de fato, h ampla con-cordncia, entre os historiadores de hoje, a respeito da concep-o de que as enunciaes de fatos histricos trazem sempre asmarcas do sujeito que produz o conhecimento particularmenteatravs da perspectiva terica que embasa o seu modo de per-ceber os fatos, de selecion-los da realidade e de constru-los,

    10 Neste sentido, podemos acompanhar este comentrio de Adam Schaff em seulivro Histria e Verdade: Elementos e aspectos os mais diversos da histria,no sentido de res gestae, podem, portanto, constituir fatos histricos: aconte-cimentos na sua breve fulgurao, processos estendidos no tempo, processoscclicos, assim como os diversos produtos, tanto materiais como espirituais,destes acontecimentos e processos (SHAFF, Adam. Histria e Verdade. SoPaulo: Martins Fontes, 1995, p.208).

    11 Diz-nos Todorov: Um texto o culminar de uma ao: h um percurso que aconduz que , seno mais, to significativo como o prprio texto (TODOROV,Tzvetan. As Morais da Histria. Lisboa: Europa-Amrica, 1991. p.163).

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    18/51

    16 Jos Costa DAssuno Barros

    bem como da linguagem e estratgias discursivas utilizadas pa-ra enunci-los12. Isto posto, nem por isso os fatos com os quais

    lidam os historiadores deixam de trazer referncias a uma reali-dade efetivamente ocorrida ou de remeter a evidncias que osinvestem de realidade. Os fatos histricos estabelecem neces-sariamente uma relao com o mundo um mundo que no foicriado pelo prprio texto, como j vimos ser o caso da Literaturaimaginativa. Deste modo, uma cadeia de fatos enunciados porum historiador no pode ser entendida, pelo leitor de livros deHistria, como se a sua natureza fosse a mesma de uma cadeia

    de fatos inventada por um literato que cria um romance imagin-rio. Para retomar uma antiga frase de Lucien Febvre, decertobastante correto dizer que o historiador fabrica os seus fatos13.Mas tambm importante lembrar que ele fabrica os seus fatosa partir de certos materiais que ele encontra nos vestgios darealidade estudada; e que h normas de ofcio muito especficasque regem este tipo de fabricao que a Histria. Guardemoseste ponto, e sigamos adiante.

    Se importante admitir que o historiador lida com fatos,deve igualmente ficar claro que ele tambm lida e principal-mente com interpretaes sobre os fatos. O ltimo sculo,muito adequadamente, j fez a crtica de uma historiografia queinsistia em proclamar que lidava com os fatos tal como elesaconteceram, sem considerar que o principal papel do historia-dor no apenas o de narrar ou constituir os fatos, mas sim o de

    oferecer interpretaes sobre os fatos e problematiz-los, cons-tituindo-se o sujeito-historiador em parte ativa na produo doconhecimento. O sculo historiogrfico atual talvez demande,entre suas principais misses para as prximas dcadas, a decriticar a equivocada confuso entre a ideia de uma ficcionalida-de da Histria e a aceitao da subjetividade implicada no papelativo do historiador. Esta luta contra a deteriorao da ideia deHistria uma deteriorao que desfigura e compromete o im-

    portante papel da Histria como uma forma de conhecimentoque estabelece uma mediao efetiva entre os homens e as re-alidades vividas parece-me ser um dos novos combates pelaHistria que ainda precisam ser travados nas prximas dca-das. To importante quanto o antigo combate contra a histriameramente factual dever ser, nos prximos anos, o combatecontra a histria meramente especulativa e ficcional, que se or-gulha de abrir mo de qualquer inteno de estabelecer uma

    12 A. Marwick, por exemplo, ao se referir aos relatos historiogrficos, expressa-senos termos de uma dimenso subjetiva inerentes aos mesmos (MARWICK. A.The Nature of History. London: Macmillan, 1970, p.187).

    13 Ou ento, retomais a frase de Berthelot, exaltando a qumica no dia imediatoao dos seus primeiros triunfos a qumica, a sua qumica, a nica cincia entretodas, dizia ele orgulhosamente, que fabrica o seu objeto. No que Berthelot seenganava, porque todas as cincias fabricam o seu objeto (FEBVRE, Lucien.Combats pour lhistoire. p.116).

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    19/51

    Cadernos IHU ideias 17

    relao subjetiva-objetiva entre o historiador e seu objeto emfavor da viagem atravs de um oceano discursivo no interior do

    qual tudo e nada pode ser dito.

    A dupla responsabilidade do historiador de falar por umlado sobre fatos histricos (e constru-los), mas, sobretudo, deelaborar ativamente interpretaes sobre estes mesmos fatos,trazem-nos um importante vislumbre sobre a possibilidade decontraste entre as expresses veracidade e veridicidade. Osfatos precisam ser enunciados pelo historiador com veracidade.Ele precisa comprov-los nas fontes. Supe-se que certos fatosaconteceram, e em relao a eles que o historiador pretendeafinar os seus enunciados. Em relao a estes fatos que se re-ferem a um catico mundo exterior de experincias humanasque apenas deixaram suas marcas no tempo presente, o histo-riador inevitavelmente deixar algo de si na operao de sele-cion-los, limp-los de sua catica complexidade, orden-los,conect-los, constru-los no sentido historiogrfico, e at mesmo

    agregar a eles alguma instncia imaginativa. Mas, de algumamaneira, podemos dizer que os fatos considerados pelo historia-dor aconteceram em alguma instncia. No so fictcios ma-neira da literatura; no foram inventados na sua dimenso mni-ma. Podem at trazer uma carga de fico associada maneirade serem enunciados, conforme o caso, e certamente a enun-ciao de boa parte dos fatos traz consigo uma perspectiva te-rica e uma instncia de relatividade imprimida por um ponto de

    vista. Mas, em ltima instncia, h um compromisso do historia-dor em trabalhar com fatos verdadeiros: que ele acredita seremverdadeiros no limite mnimo aceitvel, e que apresentam alts-sima dose de veracidade no limite mximo.

    J com relao construo de interpretaes histricas que tem sido indicada desde o ltimo sculo como aquelegrande trabalho dos historiadores, sem o qual estes seriammeros coletores de fatos , esta no se relaciona com a ins-tncia da veracidade, mas da veridicidade. No se diz, enfim,que as interpretaes precisam coincidir com a verdade pelomenos nestes tempos atuais em que a noo de verdade ab-soluta encontra-se sob suspeita , mas sim que elas precisamter veridicidade.

    De fato, ao ouvir ou ler uma interpretao histrica, o con-sumidor do trabalho historiogrfico s precisa ser convencido

    FATOS INTERPRETAES SOBRE

    OS FATOS

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    20/51

    18 Jos Costa DAssuno Barros

    de que aquela interpretao tem veridicidade; em outras pala-vras, ele precisa aceitar que ela pode ser pronunciada como

    algo verdadeiro. Para tal, o historiador precisa contar tantocom uma argumentao bem conduzida logicamente, comoprecisa ampar-la em comprovaes empricas, em uma baseque inclui fatos e fontes histricos abordados com metodolo-gias e aproximaes tericas coerentes. Para um mesmo ob-jeto histrico, os historiadores podem apresentar inmeras in-terpretaes que esto carregadas de anloga veridicidade,mesmo que sejam antagnicas umas em relaes a outras

    naquilo que afirmam. Em contrapartida, estas diversas inter-pretaes carregadas de veridicidade e distintas entre si po-dem lidar basicamente com os mesmos fatos e com a mesmabase de veracidade.

    Admitido este ponto, podemos considerar que, conforme oque se espera nos dias de hoje de um historiador (seja do seupblico e dos beneficirios de seu trabalho, seja da maior partedos seus pares), a operao historiogrfica procura entremearestes dois gestos fundamentais. De um lado, espera-se que ohistoriador enuncie fatos (incluindo as suas fontes) que pos-sam ser tomados como uma base efetiva para o seu simult-neo trabalho interpretativo. Pede-se ao historiador, necessaria-mente, que estabelea uma base concreta de operaes aonvel das evidncias e documentaes, a qual deve se ligar auma realidade em estudo, mesmo que essa realidade jamais

    possa ser apreendida ela mesma. Vamos chamar a este gesto,sinteticamente, de enunciao dos fatos, mas compreenden-do que, do ponto de vista do historiador, enunciar fatos j fa-z-los acompanhar de uma demonstrao emprica nas fon-tes, de um esclarecimento sistemtico de que os fatos noesto sendo enunciados no vazio como faria um autor defico , mas sim respaldados em documentao apresentadapor ele, historiador, ou pela comunidade de historiadores em

    outros momentos.

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    21/51

    Cadernos IHU ideias 19

    O outro gesto fundamental, gmeo deste na configuraoda operao historiogrfica, mas de natureza bem distinta, o

    que podemos chamar de interpretao dos fatos. No se espe-ra do historiador que ele apenas enuncie fatos, mas, sobretudo,que ele interprete os fatos. Houve momentos, na histria dahistoriografia, em que no faltaram historiadores que costuma-vam declarar que apenas pretendiam contar os fatos tal comoestes aconteceram, como se estes s pudessem ser expostose conectados historiograficamente de uma nica maneira. Diga-mos que essa leitura do ofcio historiogrfico correspondia a

    uma viso mais estreita da historiografia que no parecia estarinteressada em dar a perceber que to ou mais importante doque enunciar os fatos seria a funo do historiador de produzirinterpretaes sobre os fatos. A grande querela que, no sculoXIXe alm, ope positivistas e historicistas gira em torno do re-conhecimento ou no desta outra instncia do trabalho historio-grfico que a interpretao dos fatos. Naquele sculo pararetomar a aporia inicial de Koselleck a quase totalidade doshistoriadores j reconhecia que os historiadores sempre pre-tendem produzir enunciados verdadeiros (com inteno de ver-dade); mas apenas uma certa metade dos historiadores acres-centava a isto o reconhecimento de que estes enunciados spodem ser produzidos a partir da relatividade de todo ponto devista. Em uma palavra, apenas uma certa metade de historia-dores j comeava a reconhecer que o que cada um deles po-

    dia fazer era produzir interpretaes sobre os processos hist-ricos (no momento mesmo em que enunciavam os fatospertinentes a estes processos histricos). No sculo XX, asdiscusses historiogrficas sobre a necessidade de construiruma histria-problema, por oposio a uma histria factual,apontaram na mesma direo.

    A Histria, de acordo com o modelo que se instituiu com achamada historiografia cientfica, e que se prolonga na sua ver-

    tente moderna e problematizadora, encontra-se precisamenteneste cruzamento entre os gestos de enunciar fatos e interpretarestes mesmos fatos. Fora deste ponto nodal onde os dois ges-tos se cruzam, o que temos a mera enunciao factual despro-vida de problematizao, ou a mera formulao de interpreta-es histricas especulativas e desencarnadas de uma basereferencial objetiva. Pode-se dizer que algumas das tendnciasdo atual ps-modernismo historiogrfico sacrificaram precisa-mente este ponto nodal entre os dois gestos historiogrficos pri-mordiais: ou, qual antiqurios modernos, perderam-se na meraenunciao de fatos desligada de qualquer problematizao mas frequentemente orientando suas escolhas para a pesquisafactual de temas exticos ou editorialmente atraentes ou entre-garam-se ideia de que a Histria constitui-se de mera especu-lao que, no limite, confunde-se com a Literatura por pretensa-

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    22/51

    20 Jos Costa DAssuno Barros

    mente no poder assegurar nenhuma base objetiva em relaocom uma realidade histrica efetivamente ocorrida.

    Estes so, segundo penso, dois dos maiores perigos dops-modernismo historiogrfico: de um lado, o gesto factual des-ligado de problematizao como um corpo sem alma quevagueia pelas vielas de um consumismo sem finalidade; de ou-tro lado, o gesto historiogrfico interpretativo-especulativo quese acha francamente desligado de uma base objetiva comouma alma que nunca possuiu um corpo e que flutua no estranholimbo onde qualquer ideia pode ser aleatoriamente enunciada

    sem a responsabilidade da cincia e sem a graa da literatura. AHistria que resiste a estes dois gestos segregados, contudo, como uma alma que encontra o seu corpo, ou como um corpoque conserva a sua alma, se pudermos utilizar esta imagem quesempre ser potica porque a imagem da prpria vida.

    O Ps-Modernismo factual pode ser evocado atravs da jclssica metfora do homem que vagueia na floresta14. Ele tocacada uma das rvores, apreende a concretude de seus troncos,capta o cheiro de cada madeira, analisa as ramificaes das fo-lhagens. capaz mesmo de quantificar o nmero de rvores dedeterminada espcie que existem neste grande territrio que ele

    investiga. No entanto, incapaz de formular qualquer leitura inter-pretativa do conjunto e de enxerg-lo como uma floresta. As rela-es estabelecidas entre as rvores, e destas com o ecossistema,so-lhe estranhas. Na verdade, ele sequer percebe que h umconjunto, ou que ele pode enxergar todo aquele territrio sob aperspectiva de um ou mais conjuntos reveladores de determina-dos padres. Seu interesse reduz-se a cada rvore tomada isola-

    14 Entre inmeros autores que j evocaram esta metfora podemos citar AdamSchaff em seu clebre ensaio Verdade e Histria [1971] (1978, p.273). Elemesmo cita Michael Bobrzynski: O historiador que aspirasse ao impossvel,quer dizer, que desejasse ser absolutamente imparcial e no tomar nenhumaposio, parecer-se-ia com o homem que vagueia numa floresta, esbarra con-tra as rvores, toca-as, cheira-as, v seus troncos e razes, mas no conseguese aperceber de uma coisa: da prpria floresta (BOBRZYNSK, Michael. Emnome da verdade histrica apud SCHAFF, A. Verdade e Histria. So Paulo:Martins Fontes, 1978, p.283).

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    23/51

    Cadernos IHU ideias 21

    damente. A Floresta esta lhe estranha. De igual maneira, suacaminhada por entre as rvores aleatria, pois ele carece de um

    problema bem definido que o guie. Como o seu interesse porcada rvore em particular, e no visa estudar a floresta ou a rela-o entre as rvores, pouco lhe importa a trilha.

    O que eu chamo de ps-modernismo factual pode serexemplificado com uma obra intitulada O mundo reencontradode Louis-Franois Pinagot: no rastro de um desconhecido(1998), escrita por Alain Corbin. No estou dizendo que estehistoriador francs seja necessariamente e sempre um ps-

    modernista factual. Apenas proponho a leitura de que estaobra especfica, da qual citarei um pequeno comentrio do pr-prio Alain Corbin sobre a sua composio, enquadra-se perfei-tamente na ideia de uma histria que no parte de um proble-ma, mas meramente de materiais factuais, no seu primeiromomento apreendidos praticamente ao acaso. Nela Corbindeclara o desejo de investigar a atonia de uma existncia co-mum, o que o levou a procurar obsessivamente, durante trsanos, um indivduo que no tivesse deixado praticamente ne-nhum vestgio no curso de sua existncia. Diz-nos Corbin arespeito da escolha de seu objeto de estudo e da metodologiautilizada em sua pesquisa.

    Quis, ento, tomar um daqueles [indivduos] e tir-lo dasombra. Uma ressurreio, em suma [...] O que fazer, en-to? O melhor, pensei, talvez ir aos arquivos e proceder

    ao acaso. Tinha achado isso divertido. fcil deixar agiro acaso: nos arquivos da Orne, em Alenon, esto con-servados os registros de estado civil, por municpio. Vo-c no olha. Coloca o dedo sobre um nome: zs! Pronto.Caio sobre o pequeno municpio de Origny-le-Butin. Eraperfeito. Quatrocentos habitantes na poca, 250 hoje. [...]O mais engraado que os arquivistas haviam pedido queeu preenchesse uma ficha de inscrio: sobre o que o se-

    nhor trabalha? No sei, mas vou lhe dizer daqui a quinzeminutos. Ento pedi as tabelas decenais casamentos,bitos etc. e escolhi trs nomes. Um morreu com vinte epoucos anos, portanto no me interessava. E havia aque-le Louis-Franois Pinagot, que viveu 76 anos e que tinhaatravessado o sculo, praticamente. Pensei: ele. No setoma uma tal deciso sem emoo: Agora vou trabalhar quanto tempo, no sei, sem dvida vrios meses , sobre

    esse senhor que estava ali, completamente adormecido.E no conseguia me impedir de pensar: se h uma outravida e eu a encontrar, ser surpreendente. Procurei, por-tanto, tudo que eu poderia saber.

    A Histria, aqui, no parte de um problema. Trata-se s deum estranho desejo de recuperar uma vida que no deixou mar-cas, de examin-la em todos os detalhes, de registrar os fatos

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    24/51

    22 Jos Costa DAssuno Barros

    de uma vida humana especfica. Para qu no pergunta quese aplique a esta pesquisa de Alain Corbin. Diz-nos o autor que

    se trata apenas de tir-lo da sombra. Uma ressurreio, emsuma. Acho que a obra bem se presta a exemplificar a atitudeque estou denominando ps-modernismo factual. O fato, e noum problema, volta a ser to importante como entre alguns dosantigos colecionadores de fatos que foram to admoestados porLucien Febvre nos seus Combates pela Histria(1953).

    J o que denomino ps-modernismo especulativo refere-seao gesto diametralmente oposto. Se no possvel falar com cer-

    teza sobre os fatos histricos, por que no especular livremente?Conta a anedota que, recentemente, pesquisadores das Comis-ses da Verdade uma das muitas que surgiram no seio dasjustias de transio que tm mediado a transio de regimesautoritrios para regimes democrticos procuraram um historia-dor ps-moderno para lhe fazer perguntas relacionadas a eventosrelativos Ditadura Militar em certo pas, rea de estudos de suaespecialidade. Ao lhe perguntarem sobre a sua opinio em rela-o a determinado aspecto, e lhe indagarem sobre a verdadeacerca de alguns fatos, o historiador respondeu: Mas, o que averdade?. Tal resposta, podemos nos perguntar, no seria quaseto estranha como a de um mdico que, ao ser procurado por umhomem baleado que lhe pedisse para ajudar a salvar a sua vida,respondesse filosoficamente: Mas, o que a Vida?

    Como foi antes comentado, a funo do historiador de produ-

    zir interpretaes dotadas de veridicidade, e que contribuam para oesclarecimento da multiplicidade de pontos de vista, no de modoalgum incompatvel com o seu compromisso de atestar a veracida-de dos fatos que constituem a base material do trabalho em suarea de estudos. A mesma base que fundamental para a produ-o de interpretaes dotadas de veridicidade tambm pode aten-der a outras demandas sociais. No deveria ter a comunidade dehistoriadores um papel importante no seio destas grandes deman-

    das pela justia social e pela responsabilizao poltica? Deixemosesta indagao apenas para reflexo geral, uma vez que no esteo tema da presente conferncia, e passemos discusso de outrosaspectos relacionados relao entre Veridicidade e Veracidadena constituio de um saber historiogrfico.

    Enunciao e interpretao dos fatos

    Por ora, voltemos reflexo sobre a Histria Problema eseu duplo trabalho de adequao factual e desvendamento te-rico. importante atentarmos mais uma vez para o fato de quea enunciao de fatos e a interpretao de fatos no consti-tuem, rigorosamente, momentos separados na operao histo-riogrfica. So instncias entremeadas, que entram por dentrouma da outra e que mutuamente se constituem. Apenas de um

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    25/51

    Cadernos IHU ideias 23

    ponto de vista meramente lgico podemos discerni-las. Se asinterpretaes derivam dos fatos, ao mesmo tempo as interpre-

    taes constituem os fatos. Um fato, decerto, s se torna rele-vante no interior diante de um problema a ser trabalhado e nointerior de uma cadeia de outros fatos que faro sentido para aproduo ou encaminhamento de uma determinada interpreta-o. Ao mesmo tempo, enunciar um fato j implica um gesto in-terpretativo at mesmo no que se refere simples escolha daspalavras que iro enunci-lo. Posto isto, podemos considerar asduas instncias, a enunciao de fatos e as interpretaes

    dos fatos como duas instncias em separado, apenas para faci-litar a compreenso de que o primeiro termo impe a presenada veracidade e o segundo termo relaciona-se busca de veri-dicidade. Quando um fato enunciado por um historiador, en-tende-se que ele no o inventou: enunciou-o, ainda que apoiadoem algum ponto de vista, com base em algo que encontrou nasfontes e vestgios, ou em um conjunto de enunciados j consa-grado por consenso pela comunidade dos historiadores. Pressu-pe-se, em outras palavras, que o historiador tenha compromissocom a veracidade. Por outro lado, quando uma interpretao defatos enunciada pelo mesmo historiador, compreende-se queesta interpretao uma criao ou formulao sua, qual eleprocura tratar com veridicidade. Tratar seu tema com rigor lgicoe com demonstrao emprica, e, ainda que possa fazer uso deuma certa parcela de imaginao histrica, empenhar-se- na

    construo de uma interpretao que se acha em um ponto deencontro entre a veracidade e a veridicidade, mesmo que todossaibam que aquela interpretao no a verdade no sentidoltimo, mas apenas uma perspectiva verdadeira sobre os fatos.

    A ideia de que o fato histrico uma construo do historia-dor no deve servir, obviamente, para sustentar a noo de quea Histria quase se confunde com a fico, ou de que o trabalhodos historiadores no constitui uma forma de conhecimento que

    se apoia em algum tipo de objetividade. Sobre isso, Koselleckofereceu um exemplo interessante em uma entrevista datada demaro de 1995, concedida a uma revista sua. Considerandoque Luis XVImorreu sob a guilhotina em 1793, podemos nosperguntar se ele foi assassinado ou punido. Se por um lado possvel classificar e avaliar de inmeras maneiras o processoque levou o monarca francs sua execuo pblica, produzin-do interpretaes sobre o mesmo e construindo-o como fatohistrico, por outro lado no h como questionar o fato de que aguilhotina separou a cabea de seu corpo. Este ltimo enuncia-do refere-se a um aspecto bastante objetivo. Neg-lo seria faltarcom a veracidade.

    Houve tortura durante a vigncia da Ditadura militar instaura-da no Brasil na dcada de 1960, assim como em outros paseslatino-americanos do mesmo perodo. Podemos apresentar dis-

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    26/51

    24 Jos Costa DAssuno Barros

    tintas hipteses acerca da base de apoio que possibilitou a insta-lao e consolidao da Ditadura Militar no Brasil e redimensionar

    o papel da sociedade civil, dos empresrios e dos militares nesteprocesso. Podemos renomear este acontecimento-processo co-mo ditadura militar, ditadura civil-militar, ditadura empresarial-militar, ou com tantas outras expresses que se mostrem maisadequadas para o encaminhamento de novas perspectivas sobreo regime autoritrio no Brasil a partir de meados dos anos 1960,mas o fato de que este regime valeu-se do expediente da torturacontra prisioneiros polticos incontornvel. J existem evidn-

    cias demais para permitir enunciar com veracidade estes fatos.Podemos enfatizar mais ou ento secundarizar o papel da torturano regime militar; mas no podemos neg-la. As evidncias hist-ricas no permitem negar a utilizao da tortura pela repressosob pena de abalarmos a instncia da veracidade.

    preciso ainda considerar, para a presente reflexo, queos fatos imaginrios que impactaram os contemporneos de de-terminada poca so tambm aspectos objetivos. No importase foram inventados na sua poca, mas sim que os seres huma-nos contemporneos a estas criaes factuais nelas acredita-ram. A imaginao coletiva a respeito do poder de cura dos reisatravs do toque das escrfulas, estudada por Marc Bloch, umfato to constituinte do universo de acontecimentos medievaisquanto os eventos militares da Guerra dos Cem Anos. O poderde cura rgio podia no ser real, de um ponto de vista mdico,

    mas a crena coletiva nesse poder, nas sociedades francesa einglesa da Idade Mdia e do princpio da Idade Moderna, umaspecto objetivo como qualquer outro: por um lado est referidonas fontes de poca hoje disponveis aos historiadores, e poroutro lado moveu efetivamente multides de indivduos que que-riam ser tocados pelo rei. De igual maneira, o poder de cura doPapa Joo Paulo II pode no ter bases propriamente reais, masa sua santificao pela Igreja Catlica com base na construo

    deste argumento e a crena de muitos indivduos neste poderso ambos aspectos factuais significativos que devem ser consi-derados pelos historiadores. Em duas palavras: os fatos imagi-nrios e imaginados por uma sociedade tambm devem seranalisados e historiados15. So to importantes como materialhistoriogrfico como quaisquer outros tipos de fatos.

    15 Carlo Ginzburg, em Controlando a evidncia: o juiz e o historiador, assimse refere aos Reis Taumaturgos, de Marc Bloch, e tambm ao Grande Medo,de Lefebvre: Os dois livros lidam com entidades no existentes: o poder decurar a escrfula, atribudo aos reis franceses e ingleses, e os ataques a la-dres fantasmagricos, dando fora a uma alegada conspirao aristocrtica.A relevncia histrica de tais eventos, que nunca aconteceram, baseada emsua eficcia simblica: ou seja, pelo modo com que eram percebidos por umamultido de annimos (GINZBURG, Carlo Controlando a evidncia: o juiz eo historiador In: NOVAIS, F. e SILVA, F. Nova Histria em perspectiva. Rio deJaneiro: CosacNaify, 2013, p. 341-358).

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    27/51

    Cadernos IHU ideias 25

    Um esquema sobre Veracidade e Veridicidade

    Neste ponto, gostaria de trazer para a discusso sobre aVerdade Histrica um ltimo recurso. Trata-se de um quadra-do semitico que procura relacionar mais diretamente os con-ceitos de veracidade e de veridicidade, atrs discutidos,repensando-os em funo do tipo de conhecimento que a His-tria produz:

    A produo de conhecimento histrico verdadeiro, confor-me atrs foi dito, implica trabalhar com informaes que tenhamveracidade (eixo da enunciao dos fatos) e produzir a partirdelas interpretaes que tenham veridicidade. No plano oposto,a Literatura Imaginativa est livre destas duas necessidades: nolimite, pode produzir narrativas que no tenham veridicidade eque se baseiem na inveno dos fatos. Dependendo do gneroliterrio e do estilo, talvez o autor literrio busque menos ou maisdaquilo que a teoria da histria considera um ideal de verossimi-lhana palavra cujo sentido indica a capacidade de produzirimpresso de verdade. Talvez se entregue a um estilo de litera-tura fantstica que cria as prprias regras do mundo em que semovimentam os seus personagens. Em um caso ou outro, detodo modo, o autor literrio no trabalha certamente com os

    mesmos parmetros de veracidade e de veridicidade com osquais lida o historiador. Outras so as exigncias do seu ofcio.Os dois pontos crticos que nos interessam, em um primeiro

    momento, so as laterais do retngulo proposto. O trabalho his-toriogrfico questionvel aquele que distorce deliberadamentea Histria no plano interpretativo, ainda que trabalhando comuma base adequada de veracidade (flanco esquerdo), ou aqueleque produz interpretaes perfeitamente lgicas, mas sem

    quaisquer bases de veracidade (flanco direito). H exemplos no-trios de um e outro caso na histria da historiografia. Desconsi-derar premeditadamente documentos ou fontes cruciais que seinterpem ao encaminhamento de uma certa interpretao, oudar status de veracidade a informaes insuficientes ou a dadosapreendidos acriticamente da documentao, estas e outras es-to entre as operaes que produzem o tipo de falseamento daHistria onde se busca trabalhar com a no veracidade com vis-

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    28/51

    26 Jos Costa DAssuno Barros

    tas a produzir um efeito de veridicidade. Os revisionismos doholocausto, ao que parece, poderiam ser enquadrados nesta

    modalidade: o intento produzir argumentaes impecveis emesmo sofisticadas a partir de fatos distorcidos, ocultados ouinventados. O mesmo se deu com as reconstrues factuais edescritivas das histrias institucionais das grandes indstriasalemes que haviam trabalhado em estreita colaborao com oregime nazista e que contrataram historiadores para limparemas suas histrias de assimilao do trabalho escravo das popu-laes dos campos de concentrao. A veridicidade aliada

    no veracidade j produziu grandes mentiras historiogrficasbaseadas na distoro e manipulao de dados. Inversamente, possvel ferir a veridicidade apenas no plano lgico e na formade lidar com uma base de fatos que, de resto, pode ser tratadacom veracidade.

    Legitimidade

    Gostaria de retornar, neste momento, discusso sobre osdiversos fatores que compem aquilo que podemos considerarcomo a dimenso de veridicidade do conhecimento histrico.Dizamos que as exigncias que devem ser cumpridas para al-canar a veracidade e veridicidade so diferentes em relaoaos diversos tipos de textos. A produo do conhecimento hist-rico do ponto de vista de sua recepo por uma comunidade

    especfica de leitores difere da criao literria precisamentenaquilo que a comunidade de historiadores e o seu pblico con-sideram como garantia de veracidadena enunciao de fatoshistricos e de veridicidadena formulao de interpretaes his-tricas. Mais ainda, podemos dizer que a definio sobre o quedeve compor a veridicidade historiogrfica tem variado de acor-do com os diversos regimes de historicidade. Postulamos atrsque, entre os diversos fatores que hoje entram na composioda veridicidade historiogrfica, devem ser indicados tanto as-pectos relacionados forma de enunciao, como o caso daconduo lgica da argumentao, como aspectos relacionados base de apoio da argumentao, o que inclui os aspectos rela-cionados demonstrao emprica e adequao metodolgica.Para alm disso, entre estes diversos fatores que esto implica-dos na produo de veridicidade em uma obra historiogrfica,

    gostaria de discutir um fator especfico, que o das formas delegitimidade do texto historiogrfico.

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    29/51

    Cadernos IHU ideias 27

    Tendo em vista os dois termos veracidade e veridicida-de , podemos sintetizar a pergunta fundamental nos seguin-tes termos: o que traz legitimidade ao trabalho do historia-dor?. Esta questo teve, naturalmente, diferentes respostascom os diferentes tipos de historiografia e de regimes de his-

    toricidade, e sobre isto que gostaria de discorrer no momen-to. possvel identificar quatro critrios que, em algum mo-mento da histria da historiografia, j foram evocados nosentido de que constituem precisamente o principal aspectoque confere legitimidade operao historiogrfica. O primei-ro se relaciona virtude do historiador, o segundo a um domdeste mesmo historiador, o terceiro finalidade do produtohistoriogrfico e o ltimo ao mtodo ou modo como enca-minhada a operao historiogrfica.

    Vejamos por partes, a comear pelo mais antigo critrio le-gitimador da Histria: a virtude do historiador. Para os antigoshistoriadores gregos, a partir de Herdoto, a garantia da Verda-de era, de fato, o prprio historiador: sua assinatura, em um dis-curso proferido na primeira pessoa, o torna diretamente respon-svel pelo que escreveu. A idoneidade do historiador era a

    principal garantia de que o trabalho historiogrfico atendia osseus requisitos bsicos, e, em particular, estabelecia uma ade-quada relao com a possibilidade de se aproximar de uma ver-dade histrica. Por isso, como ressalta Hartog em seu verbetesobre os Historiadores Gregos(1986), a verdade histrica prati-camente se confundia e se sobrepunha, nesse caso, assinatu-ra do historiador. A preocupao com a verdade deveria se ex-pressar no momento mesmo da coleta de informaes para a

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    30/51

    28 Jos Costa DAssuno Barros

    reconstituio dos fatos, uma vez que, em sua investigao, ohistoriador deveria ir em busca de testemunhas oculares,

    quando no pudesse registrar o que ele mesmo viu. Essa en-quete, como destaca Momigliano em seu estudo sobre os Pro-blemas da Historiografia Antiga e Moderna (1983), constituauma investigao que devia ser conduzida criteriosamente pelohistoriador, consolidando a base de seu mtodo um mtodo noqual ter visto diretamente os acontecimentos vividos traziamaior legitimidade ao que dito pelo historiador, e ter ouvidode pessoas idneas que viram os fatos que o historiador no

    pde presenciar mostra-se como o contraponto necessrio einevitvel para o historiador que, obviamente, no onipresente.Percebe-se, deste modo, que neste antigo modelo de historio-grafia a legitimidade historiogrfica relacionava-se diretamentecom a idoneidade do historiador e daqueles que lhe ofereceraminformaes16. O que conferia veracidade aos fatos evocadosem uma operao historiogrfica estava muito mais ligado, des-te modo, a estas duas figuras de autoridade bem representadas

    pelos sujeitos que participavam da operao historiogrfica doque ao modo como esta operao historiogrfica era conduzida.Em ltima instncia, a garantia de veracidade e a legitimidadedo conhecimento histrico ligavam-se, mais do que a qualqueroutra coisa, a uma virtudedo historiador.

    Havia outra forma de atribuir legitimidade a uma operaohistoriogrfica tambm nos tempos antigos. Nesta outra, o queconferia legitimidade ao pronunciamento historiogrfico no eratanto a idoneidade do historiador a sua correo, retido ehonestidade , mas sim o reconhecimento de uma espcie dedom por aquele que o lia ou escutava suas prelees. O histo-riador, segundo alguns pensadores antigos, tinha uma certaqualidade mstica, um talento intuitivo que o permitia contatar-seou religar-se a uma realidade j passada com vistas a relat-lacom veracidade e a senti-la por dentro veridicidade. O historia-dor, possuidor de certo talento ou capacidade inexplicvel emtermos lgicos, era capaz de sintonizar-se com uma outra po-ca. Para alguns historiadores da Roma Antiga, por exemplo, aoperao historiogrfica no podia ser realizada sem uma cer-ta inspirao transcendente do historiador, que permitia queele se religasse aos tempos anteriores. Essa capacidade dereligar-se trazia legitimidade aos historiadores diante de seupblico, que neles reconhecia esse dom. Tito Lvio (59 a.C-17

    d.C), em sua monumental obra intitulada Desde a Fundao daCidade, assim se refere a este aspecto:

    16 Em seu pequeno ensaio sobre O Discurso da Histria, Roland Barthes tam-bm examina este tipo de historiografia cuja legitimidade centra-se no gesto demencionar os informantes: A escuta explcita uma escolha, pois possvelno se referir a ela: ela aproxima o historiador do etnlogo quando mencionao seu informante; encontra-se, pois, abundantemente este shifter nos historia-dores-etnlogos, como Herdoto (BARTHES, Roland. O Discurso da HistriaIn: O Rumor da Lngua. So Paulo: Martins Fontes, 2004, p.165).

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    31/51

    Cadernos IHU ideias 29

    Enquanto escrevo esses eventos antigos, atravs de nosei que conexo, minha mente envelhece e alguma religio

    se apodera de mim (Anais, livro 43, captulo 13).Essa defesa de legitimidade historiogrfica baseada em

    uma capacidade transcendente possuda pelo historiador tam-bm aparece em experincias posteriores, como, por exemplo,entre os historiadores romnticos, que advogavam um lugar sig-nificativo para a intuio entre os procedimentos do historiador.Herder, em sua obra intitulada Mais uma Filosofia da Histria(1774), recomenda que os historiadores cultivem essa capacida-de de sentir a natureza integral da alma que reina em cada umadas coisas de uma certa poca e lhes pede o exerccio destegesto que tornar a sua historiografia legtima:

    penetrai profundamente neste sculo, nesta regio, nes-ta histria inteira, mergulhai em tudo isto e senti tudo istodentro de vs prprios (HERDER, Mais uma Filosofia daHistria, p. 182).

    Podemos pensar ainda um terceiro campo de legitimidades:a legitimidade historiogrfica baseada na finalidade ou utilidadeda Histria para a vida. Esta forma de legitimar a histria no , detodo modo, incompatvel com os dois primeiros critrios de legiti-midade, e tampouco ser incompatvel com o quarto critrio (ocritrio do mtodo, que o que corresponde nossa prpria erahistoriogrfica). A ideia de que a Histria deve servir vida, almde configurar um tipo de conhecimento adequadamente produzi-do, encontrou respaldo em diversos momentos e propostas histo-riogrficas, mas o texto mais notrio sobre este assunto o libelode Nietzsche contra o excesso de histrias inteis ou prejudiciais Vida. Publicado no ltimo quarto do sculo XIX, Nietzsche sus-tenta a ideia de que o conhecimento histrico deveria atendertambm a critrios voltados para a utilidade da Histria para aVida. A histria dos antiqurios, por exemplo, por mais eficienteque seja no seu acmulo de informaes e detalhes, seria intil vida. Igualmente inteis seriam as teleologias que imaginam umponto de chegada para a Histria, e a partir da torcem ou mani-pulam tudo para produzir a ideia de que a histria caminha paraeste fim. A filosofia da histria proposta por Hegel, entre outras,estaria nesse grupo. Mesmo a histria cientfica, a novidade dosculo XIX, de nada valeria, e at poderia ser prejudicial, se nocontribusse para a valorizao e o aperfeioamento da Vida.

    Deste modo, a finalidade introduz-se, aqui, como um critrio legi-timador, embora nem sempre seja um critrio suficiente e nico.Podemos, adicionalmente, citar o caso das Teses sobre o Concei-to de Histria, de Walter Benjamin (1940), que, ao insistir na ne-cessidade de que os historiadores se libertassem do cotejo monu-mental e linear formado pelas histrias dos vencedores, fossemteis a uma vida revolucionria atravs da busca de centelhasperdidas e verdades esquecidas.

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    32/51

    30 Jos Costa DAssuno Barros

    O deslocamento do polo da legitimidade, quando esta pas-sa da figura do historiador para a finalidade da histria, implica

    em certos desdobramentos. Na sua busca de verdade, a Hist-ria no deve ser apenas confivel, mas tambm relevante e til.Em um certo limite extremo, pode-se mesmo pensar o trabalhohistoriogrfico que se compraz em se esgotar na utilidade e quesacrifica a veracidade sem maior pudor. Mas aqui j nos confun-dimos irreparavelmente com a literatura. Em 1984, de GeorgeOrwell (1948), temos ainda o exemplo ficcional de uma socieda-de distpica que manipula a memria coletiva e que reinventa a

    histria a cada instante com vistas a atender a interesses polti-cos, militares e de controle da populao. O romance de GeorgeOrwell desenvolve mesmo a ideia de uma sociedade que possuium Ministrio da Verdade a reescrever os registros histricos. Ametodologia, neste caso, volta-se para a alterao de dados, eno para o seu esclarecimento, como ocorre na historiografiahabitual. Mas no precisamos ir to longe, nem apelar para aLiteratura. Regimes totalitrios vrios, por exemplo, j nos de-ram muitas mostras sobre o uso sistemtico de falsificao ealterao de fotografias. No limite, a ideia de que a Histria legi-tima-se pela sua finalidade pode conduzir velha noo de queos fins justificam os meios. A verdade, ou inteno de verdade,parece se tornar irrelevante em casos como estes.

    interessante notar que o exagero na legitimao da Hist-ria atravs da sua finalidade, com o risco de autorizar distores

    da Histria ou da Memria como a atrs aventada sob o peso doargumento de que os fins justificam os meios, ou, ao contrrio, oabandono de qualquer finalidade para a Histria que no a demeramente entreter, vieram ambos a constituir vertentes do ps-modernismo historiogrfico que, por caminhos distintos, parecemse entregar ao abandono de qualquer relao da Histria com aproduo de um conhecimento verdadeiro. Por ora, todavia, volte-mos discusso sobre as formas de legitimidade que at hoje se

    tornaram conhecidas na histria da historiografia.Os trs modos anteriormente discutidos de obter legitimida-

    de historiogrfica a confiabilidade baseada na idoneidade evirtude do historiador que vemos em Herdoto, o reconheci-mento de uma capacidade ou dom transcendente que vemosnos historiadores romanos e romnticos e a legitimao atravsda utilidade ou finalidade da Histria contrastam com a nooprincipal de legitimidade historiogrfica que passa a se depreen-der da chamada historiografia cientfica, instituda a partir datransio do sculo XVIIIao sculo XIX. Se considerarmos todosos pontos, no ser difcil entender que aqui na moderna his-toriografia cientfica o que traz legitimidade Histria no mais a virtude ou talento do historiador, ou tampouco a idoneida-de daqueles que esto envolvidos na enunciao de informa-es e discursos ao nvel das fontes. O que traz legitimidade

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    33/51

    Cadernos IHU ideias 31

    operao historiogrfica, neste novo modelo, o modo como serealiza a operao historiogrfica: a correta aplicao de um m-

    todo, a observncia de normas reconhecidas pela comunidadede historiadores como cientficas, a utilizao de recursos eabordagens que permitam trabalhar adequadamente com asfontes, a adequao terica e argumentativa. Estas, por suavez, no so mais encaradas como depsitos de informaesnas quais devemos confiar, mas como evidncias que corporifi-cam tanto testemunhos como discursos, os quais precisam seranalisados criticamente, contextualizados, confrontados com

    outras fontes de mesmo nvel, testados, decifrados em relaoaos interesses que os produzem. Em uma palavra, o que trazlegitimidade operao historiogrfica neste novo modelo noso os sujeitos que a conduzem, mas o mtodo e as abordagensque a constituem. Embora existam certamente inmeros mto-dos mais especficos para trabalhar com os diversos tipos defontes e demandas problematizadoras e interpretativas, o queimporta, essencialmente, algo que podemos definir como umaatitude metodolgica do historiador. Este no pretende mais, nahistoriografia cientfica, sustentar a legitimidade do seu trabalhoem termos de um dom, de uma idoneidade, ou da finalidadequal o seu trabalho se destina, mas sim na garantia ao leitor deque trabalha sistematicamente, com uma atitude crtica e anco-rada em procedimentos bem definidos. Alguns destes procedi-mentos so j consensuais preciso desconfiar das fontes,

    contextualiz-las, interrog-las em diversos nveis de profundi-dade, trat-las no apenas como fontes de informaes ou tes-temunhos, mas tambm como discursos , outros sero proce-dimentos especficos: objetos das escolhas de cada historiadordiante da sua interao com as fontes e com o problema exami-nado. De todo modo, em que pese a variedade de mtodos nosplanos em que eles se tornam mais variveis e especficos, po-demos dizer que o que a maior parte dos historiadores parece

    ter em comum nos dias de hoje o que aqui estamos chamandode uma atitude metodolgica: a conscincia de que o mtodoocupa uma centralidade no encaminhamento do seu ofcio17.

    17 Em A Histria Repensada, Keith Jenkins questiona a ideia de que a legitimi-dade do trabalho historiogrfico est nos mtodos com base no argumentode que existe uma grande multiplicidade de mtodos escolha de cada his-toriador (JENKINS, Keith. A Histria Repensada. So Paulo: Contexto, 2001,

    p.36-37). Entrementes, como assinalamos, mais importante do que a escolhadeste ou daquele mtodo a atitude metodolgica qual nos referimos. Ade-mais, para alm dos mtodos e abordagens que so objetos de escolha, amatriz disciplina da Histria pressupe as regras minimais de um ofcio. Con-siderar uma informao nica, presente em apenas uma fonte, como garantiada informao, por exemplo, visto consensualmente como uma ingenuidadehistoriogrfica. Deixar de analisar o contexto, a historicidade do vocabulrioempregado em um texto, a complexa posio de quem emite o discurso, asua finalidade ou recepo entre inmeros outros aspectos so infraes aestas normas amplamente aceitas no que se refere operao historiogrfica.

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    34/51

    32 Jos Costa DAssuno Barros

    H inclusive uma certa tendncia da historiografia contem-pornea, bem explcita em algumas das mais significativas cor-

    rentes historiogrficas do nosso tempo, em esclarecer cada vezmais para o leitor o modo como se faz a histria18. Os micro-historiadores italianos, como Giovanni Levi e Carlo Ginzburg,tm salientado a tendncia dos historiadores contemporneosem superar as antigas prticas voltadas para o encobrimentodas marcas de oficina em um antigo modelo de expresso his-toriogrfica que costumava se refugiar na retrica da autorida-de e mostrar apenas o produto pronto e acabado19. Ao contr-

    rio, tem se mostrado importante para os historiadores recenteseste gesto de revelar os processos de produo do trabalhohistoriogrfico.

    Perguntamo-nos se aqui no temos mais um dos sinais dodeslocamento de uma forma de legitimidade a outra: da autori-dade centrada na figura do historiador para o mtodo historio-grfico bem exposto para o leitor, seja qual for este mtodo ouconjunto de procedimentos metodolgicos empregados por ca-da historiador visando cada objeto mais especfico. De todo mo-do, ainda com relao aos aspectos mais tradicionais da opera-o historiogrfica, podemos lembrar os itens mais habituaisque comprometem a veracidade envolvida em uma operaohistoriogrfica, j que este um dos temas que presentementetratamos nesta palestra.

    Os aspectos que comprometem a Veracidade, por exem-

    plo, relacionam-se, via de regra, a falhas metodolgicas (sejamestas intencionais ou no). A ttulo de exemplo, reunimos no es-quema abaixo alguns fatores que seriam condenveis em rela-o a uma enunciao de fatos dotada de veracidade ou for-mulao de uma interpretao historiogrfica na qual se possareconhecer veridicidade. A prpria escolha de fontes, por exem-plo, requer decises metodolgicas com vistas a convencer oleitor e a comunidade de historiadores de que o material do qual

    partir o historiador satisfaz do ponto de vista da veracidade.Entre os problemas que podem comprometer a veracidade es-to, por exemplo, as escolhas de fontes no representativas, adesconsiderao ou ocultamento de fontes e fatos com vistasaos posteriores falseamentos da base de dados a serem consi-derados, o aproveitamento descontextualizado de fontes e deinformaes nelas contidas, o tratamento isolado de fontes e deinformaes, sem considerar a rede de outras fontes ou a suaexcepcionalidade. Questes como estas, de cunho metodolgi-

    18 Sobre isto, ver COSTA, Arrisete Cleide de Lemos. Historiografia e Hermenuti-ca: uma interpretao da narrativa microanaltica de O Queijo e os Vermes, de

    Carlo Ginzburg. Macei: Edufal, 2014, p.18.19 Os comentrios, citados no texto acima referido de Arrisete Lemos, so do mi-

    cro-historiador Giovanni Levi em uma entrevista concedida a Juan Jos Marin(2000).

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    35/51

    Cadernos IHU ideias 33

    co, devem ser enfrentadas neste novo modelo de historiografiacom vistas a assegurar a veracidade.

    De igual maneira, seria comprometedor para a veracidadeuma ausncia de crtica dirigida verossimilhana de informa-es presentes nas fontes, o que ocorre quando ignoramos as-pectos como as circunstncias de produo das fontes, os inte-resses que produzem os discursos por ela encaminhados, ou aparcialidade dos pontos de vista envolvidos na sua elaborao.Estes, entre outros fatores, que se referem essencialmente aproblemas de mtodo, so problemas tpicos que podem ser

    questionados quando se procura reconhecer a veracidade emuma operao historiogrfica. As inadequaes do mtodo po-dem se dar involuntariamente, por falhas na competncia histo-riogrfica, ou premeditadamente, por m-f historiogrfica. Nahistria da historiografia, no faltam exemplos de um e de outrodestes tipos. Tornou-se clebre, por exemplo, a chamada ven-da de historiadores, na histria da historiografia alem sobre onazismo episdio no qual alguns historiadores aceitaram abem paga tarefa de reescrever a histria da Alemanha Nazistacom vistas a inocentar grandes empresas alems que tinhamcooperado com aquele regime e, na verdade, enriquecido com omesmo, entre as quais a Volkswagen e a Farben (que depois sedesdobraria em outras empresas como a Bayer)20.

    20 Sobre isto, ver os comentrios de Josep Fontana (A Histria dos Homens.So Paulo: Edusc, 2001, p. 275). H poucos anos estas empresas, quetemiam ter que enfrentar demandas de reparao pelo trabalho forado epelos maus tratos infringidos aos operrios-escravos, decidiram adiantar-seao problema encarregando histrias empresariais legitimadoras a especialistasacadmicos de prestgio internacional, conduta que o Deutsche Bank tambmimitou, afetado muito especialmente pelo problema do ouro dos judeus. Tudoparecia desenvolver-se regularmente, at que em outubro de 1988 Michael

    Pinto-Duschinsky publicou um artigo no Times Literary Supplement, com ottulo de Vender o Passado, onde denunciava os historiadores que aceitavamfazer histrias das empresas alems, muito bem pagos, a fim de limpar opassado nazista destas e eliminar quaisquer referncias aos trabalhadores-escravos. O artigo provocou rplicas defensivas imediatas dos implicados(FONTANA, 2001, p. 375-376). Ver o artigo original de Pinto-Duschinsky sobreo engajamento de historiadores em uma reconstruo histrica favorvels grandes empresas alems que foram simpatizantes ou beneficirias doNazismo: Pinto-Duschinsky, Michael. Selling the Past the dangers of outsidefinance for historical research. Times Literary Supplement, 23 oct 1998, p.16-17.

  • 7/23/2019 Verdade e Histria - arqueologia de uma relao

    36/51

    34 Jos Costa DAssuno Barros

    Naturalmente que os aspectos relacionados aos abalos nalegitimidade de um conhecimento histrico que se pretenda ver-dadeiro tambm podem se ligar ao outro gesto da operao his-toriogrfica, que a formulao de interpretaes dotadas deveridicidade. Admitida a pluralidade de pontos de vista e deperspectivas da qual falvamos no incio dessa conferncia, oquestionamento recai agora naquilo que pode conferir veridici-

    dade a uma determinada interpret