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INSTITUTO A VEZ DO MESTRE UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO E PROCESSO PENAL GIANCARLO SANT´ANA SANCHES A QUESTÃO PENITENCIÁRIA: PRISÃO E RESSOCIALIZAÇÃO Monografia apresentada ao Curso Pós-graduação em Direito e Processo Penal do Instituto A Vez do Mestre/ Universidade Cândido Mendes como parte das exigências do curso em voga. RIO DE JANEIRO 2010

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INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO E PROCESSO PENAL

GIANCARLO SANT´ANA SANCHES

A QUESTÃO PENITENCIÁRIA: PRISÃO E RESSOCIALIZAÇÃO

Monografia apresentada ao Curso Pós-graduação em

Direito e Processo Penal do Instituto A Vez do

Mestre/ Universidade Cândido Mendes como parte

das exigências do curso em voga.

RIO DE JANEIRO

2010

2

GIANCARLO SANT´ANA SANCHES

Matrícula n.º k215075

A QUESTÃO PENITENCIÁRIA: PRISÃO E RESSOCILIZAÇÃO.

RIO DE JANEIRO

2010

3

GIANCARLO SANT´ANA SANCHES

Matrícula n.º k215075

A QUESTÃO PENITENCIÁRIA: PRISÃO E RESSOCILIZAÇÃO

RIO DE JANEIRO

2010

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À Deus pela saúde, determinação e vontade de sempre fazer o melhor, me sustentando quando foi difícil caminhar. À minha mãe, que mesmo sem saber, encaminhou-me ao Direito, quando me ensinou que o maior ideal perseguido por um homem deve ser a justiça.

5

AGRADECIMENTOS

À minha esposa pela compreensão e suporte nos momentos difíceis, onde

sempre fui encorajado a seguir em frente.

À minha família pelo incessante apoio, carinho e vibração demonstrados com

minha pesquisa, em especial a minha avó Ivone, que desde pequeno me incentivou a estudar.

Aos professores que compreenderam todas as dificuldades enfrentadas e sem

titubear sempre acharam uma forma de ajudar.

À Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, instituição a qual faço parte, e

que despertou em mim o interesse em cuidar da sociedade e conseqüentemente estudar a

temática.

À Deus pela oportunidade de estudar em uma grande instituição de ensino,

concluir o curso com todos os desafios e principalmente pela esperança em um futuro melhor,

mais justo, mais igual.

6

Época triste a nossa, em que é mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo.

ALBERT EINSTEIN

7

RESUMO.

SANCHES, Giancarlo Sant´Ana. A questão penitenciária: prisão e ressocialização. 2010. 53

f. Monografia (pós-graduação em direito e processo penal) – Instituto a Vez do Mestre/

Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro, 2010.

Esta monografia visa demonstrar a importância da compreensão da problemática em torno do

sistema penal. Pessoas estão sendo estereotipadas para que levadas ao cárcere possam cumprir

uma das funções reais a que se destina a pena privativa de liberdade. Primeiramente buscamos

apresentar em uma breve introdução histórica do enclausuramento do condenado, nos valendo

da divisão tradicional da história, lembrando como surgiu o cárcere como pena e o trabalho

carcerário. Em segundo momento discorremos sobre as funções declaradas da pena, que se

dividiu entre punir o condenado, retribuindo o mal causado, prevenir o crime, focando o

criminoso ou a sociedade, ou os dois objetivos juntos. Ressaltaremos como o trabalho

prisional é realizado no Brasil, como se dá o processo de criminalização, enfatizando neste

sentido, a diferença entre as estatísticas criminais e a quantidade de delitos cometidos.

PALAVRAS - CHAVE

Pena – Prisão – Ressocialização – Criminalização – Papel criminoso – Adaptação – Trabalho

8

METODOLOGIA.

O trabalho se sustenta em uma pesquisa bibliográfica das principais obras a respeito da

temática. Os principais autores utilizados na realização do mesmo são Cezar Roberto

Bittencourt em sua obra intitulada FALÊNCIA DA PENA DE PRISÃO: causas e alternativas;

Maria Lúcia Karam em DOS CRIMES, PENAS E FANTASIAS; Augusto Thompson em

QUEM SÃO OS CRIMINOSOS. O crime e o criminoso-entes políticos e Lourival Almeida

Trindade em A RESSOCIALIZAÇÃO UMA (DIS)FUNÇÃO DA PENA DE PRISÃO.

9

SUMÁRIO

Introdução..........................................................................................................................11

1: Breve histórico de penas privativas de liberdade..........................................................13

1.1 A pena na Antiguidade................................................................................................15

1.2 A pena na Idade Média...............................................................................................16

1.3 A pena na Idade Moderna...........................................................................................19

2: As teorias da pena.........................................................................................................24

2.1 A teoria absoluta ou retributiva..................................................................................25

2.2 A teoria preventiva.....................................................................................................28

2.2.1 A teoria da prevenção geral....................................................................................29

2.2.2 A teoria da prevenção especial...............................................................................30

2.3 A teoria mista ou unificadora....................................................................................33

3: O trabalho do preso e o instituto da remição penal.....................................................35

3.1 O trabalho interno.....................................................................................................37

3.2 O trabalho externo.....................................................................................................37

3.3 O instituto da remição penal.....................................................................................38

4: O mito da ressocialização...........................................................................................41

4.1 O processo de criminalização primário e secundário...............................................43

4.2 A cifra negra.............................................................................................................45

4.2.1 Crimes não relatados á polícia...............................................................................47

4.2.2 Crimes relatados, mas não registrados...................................................................47

4.2.3 Crimes registrados, mas não investigados.............................................................47

10

4.2.4 Crimes cujos inquéritos são arquivados pelo MP...................................................48

4.2.5 Crimes que resultam em absolvição.......................................................................48

Conclusão........................................................................................................................52

Referências bibliográficas...............................................................................................54

11

INTRODUÇÃO

Atualmente discute-se sobre a falência da pena de prisão, pois os sistemas

penitenciários operam como verdadeiras fábricas de delinqüência, prejudicando o ideal

ressocializador e estigmatizando o recluso, cumprindo assim, com eficácia, sua função

criminógena.

As precárias condições que encontramos em nossas penitenciárias vão

completamente de encontro aos direitos dos presos, direitos estes que foram corroborados

com a promulgação de nossa carta magna, onde o direito á vida e a integridade física

constantes em seu seio também devem atingir aos apenados, tendo em vista que nossa

Constituição não faz qualquer distinção, no que tange aos mesmos, assim sendo a figura da

pessoa humana deve ser tratada com dignidade, ressalte-se ainda, que os direitos não atingidos

pela pena deverão ser mantidos. Estes institutos possuem o fito de além de garantir o efetivo

cumprimento da pena, proporcionar o bom retorno do homem à sociedade.

Paira na sociedade o sentimento de vingança, onde as péssimas condições as

quais os apenados são submetidos recebem aplausos das pessoas, como se fosse uma pena

acessória à privativa de liberdade, assim se os preceitos regulamentados por lei que dão conta

de formas dignas de tratamento do preso forem cumpridos não há pena, com o perdão do

paradoxo, o apenado está impune. Porém devemos analisar todos os fatores que envolvem a

problemática de maneira crítica, tendo em vista que existem funções declaradas e não-

declaradas da pena que são cumpridas pelo sistema penal. Será que levamos em consideração

o interesse elitista na construção do criminoso? Será que somos influenciados pelos meios

massivos de comunicação? Defendendo os preceitos estatuídos por lei estaríamos esquecendo

o crime cometido? O apenado não “pagaria” de forma correta seu débito com a sociedade?

Não se trata disto, o delinqüente deve ser responsabilizado pela indevida conduta que vitimou

12

a população seja de forma direta ou indireta. Posto isto, o presente estudo não é uma apologia

ao criminoso, somente vamos esclarecer que o sistema é falho, pois não podemos pleitear a

reeducação do preso, punindo-o.

É temeroso pensar na “coisificação” do nosso detento, o tratamento que lhe é

dispensado inviabiliza qualquer tentativa de torná-lo um ser humano melhor, o apenado não

deveria ser tratado como uma “coisa”.

Abordaremos as funções da pena e o aparecimento da mesma na sociedade.

Traremos à baila também, como se dá o processo de criminalização. Analisaremos de uma

maneira crítica o funcionamento do sistema penal, o instituto da ressocialização e a

construção do criminoso, desconsiderando é claro alguns fatores sociológicos.

Não podemos pensar que a solução do problema penitenciário está no próprio

sistema.

Pensamos que a temática proposta pela pesquisa é de grande valia para a

sociedade, visto que busca a reflexão das pessoas em torno da problemática do sistema penal,

mostrando que soluções ao cárcere devem ser encontradas, pois este é eminentemente

criminógeno, não operando a ressocialização que prega.

Urge a necessidade então, da efetiva transformação da sociedade, onde sem

preconceitos trataremos as pessoas dignamente, sem estereótipos e estigmas, em um mundo

livre e igual em oportunidade.

13

1. BREVE HISTÓRICO DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE

O senso comum acredita que o sistema penitenciário brasileiro não é dos mais

eficazes, pois deixa de focalizar o homem delinqüente para centrar seus esforços no “castigo”

imposto pelo cumprimento da pena, evidenciando, seu caráter puramente punitivo, quando

poderia ser também, ressocializador. Mesmo assim, a pena é vista como um mal necessário,

uma exigência desprazerosa, conforme podemos extrair do pensamento do mestre Cezar

Roberto Bitencourt1.

Importante contribuição exemplificativa nos traz o mencionado autor quando

se refere ao Projeto Alternativo Alemão de 19662 na medida em que se afirma ser a pena uma

necessidade amarga para uma comunidade composta de seres imperfeitos como os homens.

Ante ao fim expiatório ou terapêutico da pena que leva o agressor do bem da

vida tutelado pelo direito material ao cárcere, temos que ao longo da história da humanidade,

a sociedade, incluindo é claro pensadores de diversas épocas, diverge sobre o verdadeiro

caráter da pena.

Sêneca, citado na obra de Celso Bubeneck3, defende a idéia de que para um

delito devem-se aplicar sanções rígidas, como a prisão, pois se retira do ser humano a

liberdade, um dos bens mais preciosos dados ao homem, sendo, portanto o maior mal que

pode recair sobre ele. Aristóteles, como bem cita Francisco Bissoli Filho4, prega em Ética a

Nicómano, que o criminoso é um inimigo da sociedade, assim deveria ser castigado “tal qual

se bate num animal preso ao jugo”.

1 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. P. 1 2 Ibidem 3 BUBENECK, Sérgio. Aspectos históricos das prisões in Prática Jurídica. Ano VI n° 65, ago/2007. Brasília: Consulex. P. 34 4 FILHO, Francisco Bissoli. Estigmas da Criminalização - dos antecedentes à reincidência criminal. Santa Catarina: Obra jurídica, 1998. P. 27

14

Evidente é na visão de Augusto Thompson5, que uma prisão conciliadora dos

interesses terapêuticos e punitivos seria inviável, pois nas palavras do autor: “Punir é castigar,

fazer sofrer. A intimidação, obtida pelo castigo, demanda que este seja apto a causar terror.

Ora tais condições são impeditivas de levar ao sucesso uma ação pedagógica”.

Cezar Roberto Bitencourt6 assevera que já houve tempo suficiente para se

constatar os malefícios do cárcere e a falência das penas privativas de liberdade, no tocante às

medidas retributivas e preventivas, enfatizando que hoje a prisão reforça os valores negativos

do condenado, embrutecendo e desmoralizando o mesmo, recomendando assim a limitação da

pena de prisão à situação de reconhecida necessidade, logo deveria ser substituída quando for

possível e recomendável.

A origem da pena é muito remota, sendo tão antiga quanto à humanidade

sendo complicado situá-la em suas origens, de certo que quem se propõe a fazer um estudo

detalhado pode se equivocar, pois as contradições são inevitáveis, o confronto entre as

tendências expiatórias e moralizadoras, as diversas considerações trazidas à baila como

fatores principais e determinantes legitimadores da prisão, enfim tudo isto dificulta muito uma

narrativa em ordem cronológica. 7

Sendo uma tarefa por demais tortuosa, não temos a intenção de esgotar o

assunto e utilizaremos a classificação utilizada por Cezar Roberto Bitencourt, que lança mão

das idades tradicionais da história universal.

5 THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. P. 5 6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 2 7 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 3

15

1.1 A PENA NA ANTIGUIDADE

Na antiguidade o cárcere como sanção penal inexistiu, embora seja,

perfeitamente aceitável que a privação de liberdade teve um propósito diferente do que o

citado acima, conforme nos ensina Cezar Roberto Bitencourt8:

Até os fins do século XVIII a prisão serviu somente aos objetivos de contenção e guarda de réus, para preservá-los fisicamente até o momento de serem julgados ou executados. Recorria-se, durante esse período histórico, fundamentalmente, à pena de morte, às penas corporais (mutilações e açoites) e às infamantes.

Corroborando com o acima descrito, e descrevendo as angústias sofridas pelos

detentos à época, Celso Bubeneck9 relata que as masmorras ou calabouços, excepcionalmente

utilizados para que se aguardasse a morte certa, eram quase sempre úmidos demasiadamente

quentes ou frios, escurecidos, capazes de incutir pavor, sem camas e com correntes, torturas,

fome, sede e como se não bastasse açoites e marcações a ferro em brasa.

Comum também a época era a confissão “arrancada” pela tortura, Beccaria10

nos fala que um criminoso robusto pode evitar uma pena mais rigorosa, pois agüenta o

momento de dor em silêncio, diferente do homem fraco que ante a confissão se vê livre do

momento de sofrimento atual, porém é duramente afetado por suas palavras.

A pena iniciada, assim por se dizer, pelas constantes torturas, como modo de se

chegar à verdade, serve em um primeiro momento como “depósito de pessoas condenadas” à

espera da verdadeira e real pena, e é passada nestes estabelecimentos, representando assim o

desprezo com que tratavam os detentos, que em condições subumanas eram tidos como

inúteis e incapazes de se recuperarem.

O caráter de custódia e tortura dado á prisão dos apenados, para o efetivo

8 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit. P. 4 9 BUBENECK, Sérgio. Aspectos históricos das prisões in Prática Jurídica. Ano VI n° 65, ago/2007. Brasília: Consulex. P. 35. 10 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2003. P. 35

16

cumprimento da pena e como forma de subsidiar uma futura condenação, apresentou, segundo

relatos algumas variações, como na Roma antiga, onde a pena de morte era comutada em

alguns casos pela prisão perpétua, ou podemos tomar o exemplo da Grécia onde existia a

prisão por dívida, penalidade civil que se fazia efetiva até que o devedor a saldasse. 11

É sabido, porém, que embora sendo países expoentes do mundo antigo, os

citados tinham a idéia de que a pena cumprida, principalmente nas masmorras e similares,

tendo em vista a não existência de uma arquitetura penitenciária própria, possuía a finalidade

de custodiar o culpado, com o escopo de não haver subtração a real pena. Assim sendo, temos

extraído do livro de Cezar Roberto Bitencourt12 que:

Pode-se dizer com Garrido Guzman, que de modo algum podemos admitir neste período da história sequer um germe da prisão como lugar de cumprimento da pena, já que o catálogo das sanções praticamente se esgotava com a morte, penas corporais e infamantes. A finalidade da prisão, portanto restringia-se à custódia dos réus até a execução das condenações referidas. A prisão dos devedores tinha a mesma finalidade: garantir que cumprissem suas obrigações.

No mesmo sentido Massimo e Melossi13 advertem que a sociedade feudal não

conhecia o cárcere como pena, não o ignorando como instituição, mas sim desconsiderando a

pena do internamento como uma privação de liberdade.

1-2 A PENA NA IDADE MÉDIA

Neste período a privação de liberdade sendo aplicada como forma de sanção ao

condenado, ainda não seria concebida. As penas estavam submetidas ao arbítrio dos

poderosos, que de maneira parcial as impunham aos cidadãos. Como bem assevera Beccaria14,

11 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit P. 5-6 12 Ibidem P. 12 13 MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006. P. 21 14 BECCARIA, Cesare. Op. Cit. P. 15

17

percebe-se a concentração de privilégios, poder e felicidade nas mãos da minoria, para deixar

a miséria aos demais.

Excelente observação é feita pelo autor supracitado, quando diz que se faria

justiça através de leis fixas e literais, confiados os atos das pessoas à análise dos magistrados

para que estes possam verificar se contrariam ou não a lei escrita. 15

Assistimos assim, a barbárie das condenações injustas, como que um

espetáculo, porque o povo mesmo sendo oprimido, gostava das distrações sangrentas, como

amputações, queima de corpos, enfim, este período é marcado pelo ”apoio” do cidadão a estas

práticas de morte.

A religião teve papel importante no contexto, tanto pelo surgimento da prisão

eclesiástica, que veremos a seguir, quanto pela influência de Deus no julgamento do autor dos

delitos, pois era comum uma “prova” onde o mesmo seria submetido a condições

completamente adversas, superando a prova estava claro que Deus não o abandonara, e

conseqüentemente não estaria em pecado, era assim absolvido, caso contrário era merecedor

do castigo, Deus o julgara culpado e resignadamente se convenceria do seu pecado.

Faz-se importante mencionar também, que nesta época surgem a prisão de

Estado e a prisão eclesiástica, que com mais detalhes abordaremos agora, ressaltando que

embora possam ter influenciado na humanização das penas, não podem ser equiparadas à

prisão moderna. 16

A prisão de Estado é aquela destinada aos transgressores que fossem

considerados inimigos do Rei, traidores do poder instituído, ou aos adversários políticos dos

governantes, podendo ter a finalidade de custodiar o réu até que a verdadeira pena fosse

15 Ibidem. P. 23 16 É de se notar que por iniciativa eclesiástica surgiram as prisões subterrâneas, lugares horríveis, onde não era sabido se o detento sairia de lá com vida, logo pari passo ao arrependimento pretendido havia o castigo e a expiação pelo ato cometido, demonstrando-se assim como objetivos da pena aplicada. Evidenciando que a correção diante de Deus, talvez fosse mais importante que a regeneração ética do condenado.

18

aplicada (prisão – custódia), ou de detê-lo perpetuamente até que recebesse o perdão real. 17

A prisão eclesiástica, de uma maneira geral, por sua vez tinha por destinatários

os rebeldes da Igreja, onde embora em seu bojo houvesse suplício e mutilações, possuíam a

idéia de redenção e fraternidade, pois o internato servia para penitência e meditação, enfim

uma reconciliação com Deus, através de orações, castigos e isolamento, que corrigiam os

infratores. Ressalte-se que desta forma acredita-se na recuperação do infrator, pois o mesmo

poderia ser “emendado” e após o período de internato prosseguir com sua vida.

Consideraremos a pena supramencionada como um lampejo inspirador da pena

privativa de liberdade, como um antecedente, pois nesta se percebe que o arrependimento, a

oração, o isolamento que protege do contágio moral, contribuem mais para a correção do que

a coação física, característica do período. 18

Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt19: “(...) a influência penitencial

canônica deixou como seqüela positiva o isolamento celular, o arrependimento e a correção

do delinqüente, assim como outras idéias voltadas à reabilitação do recluso”.

Logo, é de suma importância o reconhecimento da influência do direito

canônico e da religião no surgimento da prisão moderna, tendo em vista que junto com os

institutos surgem como objetivos da reclusão o arrependimento do pecador pelas suas faltas o

que o conserta, graças à compreensão da gravidade do ato que cometeu. Na obra de Santo

Agostinho20, A cidade de Deus, é nítida sua afirmação de que o castigo não deve orientar-se à

destruição do culpado, mas sim ao seu melhoramento.

17 VALDÉS, Carlos Garcia apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 9 18 HENTIG, Hans Von apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit. P. 12 19 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit. P. 12 20 AGOSTINHO, Santo apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit. P. 13

19

1-3 A PENA NA IDADE MODERNA

Tendo em vista a pobreza que assolou a Europa, durante os séculos XVI e

XVII, o aumento da criminalidade é latente, e devido ao panorama sócio-econômico da época,

com a maioria da população se concentrando nas cidades, crescem junto com as pequenas

práticas delituosas, a mendicância e a vagabundagem, aterrorizando assim uma pequena

minoria que detinha o poder.

E agora restaria a pena de morte para os desafortunados que cometeram faltas

pequenas? Segundo Cezar Roberto Bitencourt21, não seria uma solução adequada aplicar a

pena capital a uma grande quantidade de pessoas, visto a quantidade de apenados da época.

Inicia-se assim na Inglaterra, um movimento que acredita na pena privativa de

liberdade, cumprida em estabelecimentos organizados, como forma de correção dos apenados,

baseado na disciplina o sistema era orientado para a reforma através do trabalho. Então

através de um pedido da nobreza britânica ao Rei, o Castelo de Bridwell passa a ser utilizado

como um estabelecimento destinado ao recolhimento dos mendigos, vagabundos e autores de

delitos de menor relevância, para que pudessem ser reformados e alcançar alguma vantagem

financeira, fruto do que aprenderam nesta casa de correção.

Não é de se estranhar a proliferação de tais entidades, talvez pelo sucesso

alcançado, porém é evidente que o proveito advindo com a utilização de mão-de-obra do

recluso ajudou no fenômeno, tanto que se valendo de conceitos e técnicas parecidas, surgem,

após um lapso temporal, também na Inglaterra as workhouses. Cabe lembrar que a Holanda

através das rasphuis e das spinhis22 também foi pioneira no que tange a idéia de corrigir a

21 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit P. 15 22 Casas de correção holandesas, para homens e mulheres respectivamente, onde a atividade principal consistia em raspar madeiras e transformá-las em pó, com o intuito de tingir fios. Ressalto que a dura atividade exercida, lesionava bastante os trabalhadores, não são raros os relatos onde os internos literalmente quebraram a espinha dorsal.

20

pequena delinqüência. Ambas constituindo, desta forma verdadeiras exceções. Nas palavras

de Luis Garrido Gusman23: “Foi necessário esperar mais de dois séculos para que as prisões

fossem consideradas um lugar de correção e não de simples custódia do preso até o

julgamento”.

Ressalte-se que embora haja uma nítida melhora no trato com a classe de

criminosos conforme assevera Sellin,24 onde os fundadores dos estabelecimentos ingleses e

holandeses tinham a aspiração de que se pudesse reformar o apenado, não podemos esquecer

que os crimes mais graves continuavam a ser punidos com rigor, valendo-se da pena de morte

e castigos corporais para punir o violador da norma penal.

Só para citar como exemplo, temos durante o século XVI a criação das penas

de galés25, que eram umas das mais cruéis dentre as aplicadas, com o fulcro de transformar

presos em escravos.

Em 1703 é criada em Roma a Casa de Correção de São Miguel, fundada por

Clemente XI, que abrigava delinqüentes jovens, órfãos e anciãos, trazendo como forma de

correção um regime misto, trabalhavam durante o dia e à noite isolavam-se em celas, tudo

visando o caráter reabilitador e educativo da pena, com rigorosa disciplina, seu lema era: “não

é suficiente constranger os perversos com a pena se não os fizer honrados com a disciplina”,

algo que segundo Radbruch26, pode ao invés de corrigir os presos domá-los.

Na contramão da tese humanista de criação da pena privativa de liberdade,

onde em uma visão romântica, busca-se a recuperação do criminoso, temos a não menos

interessante razão que refuta ás condições econômicas da Europa no período que compreende

a idade moderna.

23 GUSMAN, Luis Garrido apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit. P. 18 24 SELLIN apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P..18 25 Uma das penas mais perversas, as galés, conhecidas como prisões flutuantes, eram destinadas aos prisioneiros de guerra e cometedores de delitos graves, que sob a ameaça de chicotes, remavam para mover estas espécies de barcos. 26 RADBRUCH apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 18

21

Dario Melossi e Massimo Pavarini mencionam o fato de que ante a necessidade

de imposição da ideologia dominante da burguesia capitalista, são criados alguns

estabelecimentos que “ensinam” aos apenados a disciplina capitalista de produção, pois os

trabalhadores expulsos do campo precisavam tornar-se operários.

Os autores sustentam que o embrião da prisão moderna surgiu para que pela

disciplina da fábrica, a massa fosse submissa ao regime dominante.

Tomando por exemplo a Inglaterra Elisabetana, onde para que o capital fosse

acumulado foi necessária a expropriação de diversos camponeses, não tendo estes outra opção

que não a de migrar para as cidades, lugares que representavam um pólo de atração, visto o

desenvolvimento que alcançaram. Como não houve estrutura para recebê-los, converteram-se

em mendigos, desempregados e por vezes até bandidos27.

O fenômeno é muito bem ilustrado por Thomas Morus28:

(...) E assim, de um modo ou de outro, têm que abandonar a terra aqueles pobres desgraçados, homens, mulheres, maridos, esposas, órfãos, viúvas, pais de família ricos em filhos, mas não em bens, porque a agricultura requer muitos braços(...) E quando, andando de lá pra cá, eles gastaram rapidamente tudo o que tinham que outra coisa lhes resta fazer senão roubar, e ser enforcados, entende-se, ou ir mendigando por esses mundos de Deus?

Notamos assim que o homem tirado com violência de sua terra e costumes, e

constituindo verdadeiros aglomerados de vagabundos, precisava ser ocupado de maneira útil,

ressaltando é claro que as condições destes trabalhos eram muito adversas. Mas e os que não

podiam trabalhar por conta de alguma incapacidade? Bom, para estes foi criado um sistema de

subsídio, relief, traduzido em um imposto que os habitantes de determinada localidade

pagariam para os pobres pudessem se sustentar29.

As pessoas não podiam ficar no ócio, era considerado crime a recusa ao

trabalho, pois o mesmo se constituía em instrumento eficaz de controle da força de trabalho,

27 MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Op.Cit. P. 54 28 MORUS, Thomas apud MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Op. Cit. P. 42 29 MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Op.Cit. P. 36

22

tabelava o salário livre, tendo em vista que o trabalhador era obrigado a aceitar qualquer

oferta que lhe fizessem, sob pena de ser considerado desocupado e ingressar na casa de

trabalho, casa esta que visando torná-lo dócil, educando e domestificando-o, para que a classe

dominante, não se sentisse ameaçada30.

Grande é a contribuição de Cezar Roberto Bitencourt31, em suas palavras:

(...) Agora já não se trata de encerrar os desempregados, mas de dar trabalho àqueles que estão encerrados e fazê-los úteis à prosperidade geral. A alternância é clara: mão-de-obra barata, quando há trabalho e salários altos e em períodos de desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra a agitação e motins.

Com o desenvolvimento econômico alcançado, na época de ouro do

capitalismo, e o conseqüente controle sobre o mercado de trabalho se fez desnecessário que as

prisões cumprissem seu papel principal: produzir bons proletários que adaptados à disciplina

da fábrica não oferecessem risco aos ideais burgueses.

Através das corretas palavras de Massimo e Melossi32 temos a descrição do

período, onde se acentuou o declínio das prisões:

A raiz da progressiva decadência deve ser buscada nas grandes transformações ocorridas na segunda metade do século XVIII. (...) uma repentina inclinação da curva de crescimento demográfico juntamente com a introdução das máquinas e a passagem do sistema manufatureiro para o sistema de fábrica propriamente dito (...) a incrível aceleração do capital no campo e, concomitantemente a expulsão da classe camponesa, contribui para levar ao mercado de trabalho uma oferta de mão-de-obra sem precedentes.

Cresce assim a pobreza e as críticas aos subsídios dados aos pobres que não

podiam trabalhar, o aumento da população representaria o sustento de pessoas inúteis,

trazendo danos ao desenvolvimento, e as idéias liberais da época. 33

Aumentada a oferta de trabalho, a prisão deve redirecionar seu foco, pois agora

busca-se evitar que as pessoas ingressem nas casas de trabalho, torna-se então, necessário a

30 Ibidem. P. 38 31 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit. P. 30 32 MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Op.Cit. P. 64 33 MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Op.Cit. P..65

23

função terrorista da pena, puramente intimidativa e punitiva.

Cria-se então, a idéia da deterrent workhouse (casa de trabalho terrorista), com

o objetivo de amedrontar as pessoas, as condições do local eram péssimas, tais quais ninguém

que não tivesse extrema necessidade, aceitaria seu ingresso, para tanto o padrão de vida

dedicado aos internos deveria ser pior do que o do trabalhador da classe mais baixa, e

considerando também que se tornou proibido qualquer tipo de assistência proporcionada fora

deste estabelecimento, o pobre foi praticamente forçado a aceitar qualquer oferta de trabalho

que lhe dispusessem.34

O pensamento iluminista do século XVIII, expresso nas idéias dos

reformadores, tenta promover a defesa das garantias individuais no cárcere, porém foi

rechaçado, pois o aumento da pobreza, das revoltas violentas das massas, da criminalidade,

fez a classe dominante temer pela sua hegemonia, assim sendo, precisava de um eficaz meio

de repressão: o cárcere puramente punitivo. O trabalho forçado já não era mais visto como

necessário, sendo assim logo cresceram os apelos, onde a voz da classe dominante clamava

para que se retornasse ao bom e velho tempo: o tempo de castigar e punir.

34 Ibidem

24

2. AS TEORIAS DAS PENAS

Buscando explicar os aspectos que a pena encerra e sua conseqüente

compreensão, foram criadas inúmeras teorias que descrevem determinadas reações punitivas

do Estado para as condutas tidas pelo ordenamento jurídico penal como criminosas.

Variando de acordo com o período histórico-político vivenciado pela Nação,

temos que a pena nunca deixou de constituir um recurso elementar do Estado quando foi

necessário, girando em torno, segundo Maria Lúcia Karam35, de duas idéias, a de retribuição e

a de prevenção, aplicadas em separado, ou embora aparentemente conflitantes, juntas.

Trazendo o exemplo de Hulsman ilustrado no livro de Maria Lúcia Karam36,

vemos como se pode reagir diferentemente a uma mesma situação:

Cinco estudantes moram juntos. Em um dado momento, um deles se arremessa, quebra a televisão e alguns pratos. Como irão reagir seus companheiros? Nenhum deles ficará contente é claro. Mas, cada um, analisando o fato à sua maneira, poderá adotar uma atitude diferente. O estudante n° 2, furioso, declara não poder mais viver com o primeiro e fala em expulsá-lo de casa. O n.º 3 declara: “Trata-se sim comprar um novo aparelho de televisão e outros pratos e que ele pague”. O n° 4 bastante traumatizado com o que acaba de acontecer, se exalta: “Ele está seriamente doente; é preciso procurar um médico fazer com que ele seja examinado por um psiquiatra”. O último enfim murmura: “Nós pensávamos que nos entendíamos bem, mas alguma coisa não funcionou em nossa comunicação, para que tal gesto tenha sido possível. Façamos um exame de consciência.

A parábola do ilustre autor retrata muito bem o caráter mutável da pena, onde

os estudantes representam cada um, uma forma de solução de conflitos e uma certa finalidade

atribuída para a pena. Conforme a douta posição de Maria Lúcia Karam37, quando diz que as

citadas reações somente são experimentadas se as pessoas envolvidas no conflito puderem de

maneira racional se envolver, propondo assim, uma solução para a lide, tem-se que caso o

Estado resolva intervir, criminalizando as condutas, todos os outros estilos são excluídos

35 KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. 3º ed. Rio de Janeiro: Luam, 1993. P. 173 36 HULSMAN apud Karam, Maria Lúcia. Op. Cit. P. 171 37 KARAM, Maria Lúcia. Op.Cit. P. 172

25

(grifo nosso), tendo seu foco voltado somente para a reação punitiva-retributiva.

Destacamos também o entendimento de Cezar Roberto Bitencourt38, onde o

mesmo diz que pena e Estado são conceitos relacionados, intimamente entre si,

correspondendo a cada concepção de Estado uma pena, e a esta uma culpabilidade. Nas

palavras do autor: “É evidente a relação entre uma teoria determinada de Estado com uma

teoria da pena, e entre a função e finalidade desta com o conceito dogmático de culpabilidade

adotado. Assim como evolui a forma de Estado, o Direito Penal evolui também”. Segue

asseverando com base em afirmações de Von Liszt39 que pelo aperfeiçoamento da teoria da

culpabilidade se mede o progresso do Direito Penal.

Logo, os Estados de uma forma geral, adotaram concepções diferentes da

pena de acordo com suas evoluções, reconhecendo é claro que a pena é um castigo, porém

não admitindo que a função essencial dela seja retribuir o mal causado. Passemos assim, ao

exame das teorias da pena.

2.1- TEORIA ABSOLUTA OU RETRIBUTIVA

Comparando o surgimento desta teoria com o tipo de Estado vigente à

época, o Absoluto, que buscava respaldo para suas ações na religião, afinal de contas o poder

era concedido diretamente por Deus. Tomando por base as palavras de Cezar Roberto

Bitencourt40, temos que:

A idéia que então se tinha da pena era a de ser um castigo com o qual se expiava o mal (pecado) cometido. De certa forma, no regime de Estado absolutista, impunha-se uma pena a quem, agindo contra o soberano, rebelava-se também, em sentido mais que figurado contra o próprio Deus.

Nota-se como o aspecto religioso visa referendar a citada teoria. Porém,

38 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit. P. 103 39 VON LISZT apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 103 40 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 105

26

temendo ser repetitivo, não vou me ater aos aspectos sócio-políticos que a cercam, irei defini-

lo utilizando na íntegra do conceito de Maria Lúcia Karam41:

As teorias absolutas surgiram sustentando que a pena encontra sua justificação em si mesma, baseando-se na idéia da retribuição, do castigo da compensação do mal, representado pela infração, com o mal, representado sofrimento da pena.

Há somente a realização de justiça, nada mais, não existe espaço para fins

estranhos a este. Busca-se a reafirmação do Direito.42 Castiga-se porque delinqüiu, sendo a

pena conseqüência do delito praticado.43

Encontram-se entre os principais defensores desta teoria Kant e Hegel44.

Existe uma distinção entre as teses dos nobres filósofos: a origem da

fundamentação de Kant é ética enquanto a de Hegel é de ordem jurídica45.

Assim sendo, na teoria de Kant o rei deveria castigar severamente quem

transgrediu a lei, pois este não era digno de cidadania. O homem era um fim em si mesmo ao

qual se dirigia à pena e não um meio onde através dele far-se-ia válida a condenação.

Nas palavras de Francisco Bissoli Filho46:

É sobre tais pressupostos que, segundo Kant, se funda a pena como retribuição, no sentido de que não pode esta nunca se aplicar como simples modo de procurar outro bem, nem ainda em benefício da sociedade ou do culpado, senão que deve ser sempre contra o culpado pela só razão de que tenha delinqüido, porque jamais um homem pode ser tomado por instrumento dos desígnios dos outros (...) sua personalidade se garante contra tal ultraje.

Segundo Bitencourt, Kant entrelaça direito e moral de tal forma que vê como

uma exigência moral a aquiescência do primeiro, de forma que os deveres jurídicos se

convertem em morais.47

41 KARAM, Maria Lúcia. Op. Cit. P.173 42 FILHO, Francisco Bissoli. Op. Cit. P. 142 43 Ibidem P. 107 44 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit P. 107 45 Ibidem P.108 46 FILHO, Francisco Bissoli. Op. Cit. P. 143 47 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit. P. 109

27

Cezar Roberto Bitencourt48, nos traz a noção de que Kant considera que o réu

deve ser punido porque delinqüiu, inclinando-se severamente ao princípio do ius talionis,

argumentando que: “o mal não merecido que fazes a teu semelhante o fazes a ti mesmo; se o

desonras, desonras a ti mesmo; se o maltratas ou o matas, maltratas-te ou te matas a ti

mesmo”.

A célebre frase: “a pena é a negação da negação do direito” caracteriza a teoria

de Hegel. Cezar Roberto Bitencourt49 citando Santiago Mir Puig nos remete ao fato de que

para esta teoria a pena encontra respaldo na retomada da ordem jurídica, para ele a vontade

geral, que foi afetada pela vontade particular do delinqüente. Nas palavras de Mir Puig50: “se

a vontade geral é negada pela vontade do delinqüente, ter-se-á que negar esta negação através

do castigo penal para que surja de novo a afirmação da vontade geral”.

Segundo Cezar Roberto Bitencourt51: “Como Kant, Hegel atribui também um

conteúdo talional à pena. Para ele a pena é a maneira de compensar o delito a recuperar o

equilíbrio perdido”.

Diversas críticas surgiram em relação à teoria apontada, algumas diretas como

a que aduz Cezar Roberto Bitencourt52, realizadas por Ulrich Klug, para ele o sentido

retributivo apontado por ambas às teses não foi provado, perfazendo-se em uma simples

crença e não um conhecimento questiona porque seria injusta a pena que se dirige a

ressocilização do apenado? Porque a violência não pode ser abolida pela não violência?

Considera a tese da negação da negação de Hegel confusa, e diz que as teorias devem sem

banidas definitivamente, pois o Direito nada tem a ganhar com seus excessos irracionais.

48 Ibidem P. 111 49 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit. P. 112 50 MIR PUIG apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 112 51 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 113 52 Ibidem P. 114-115

28

De uma forma geral Cezar Roberto Bitencourt53, dá especial destaque às

proposições de Claus Roxin que criticou duramente as teses absolutas, afirmando ser o

fundamento da pena nesta teoria, a compensação da culpa humana, legitimando o Estado a

aplicar uma sanção a toda culpa, não estabelecendo assim um limite ao poder estatal.

Assevera também que o procedimento é conseqüência do impulso humano de vingança, onde

só por um ato de fé é possível compreender como se elimina um mal com outro mal.

Afirmação interessantíssima é a de Cezar Roberto Bitencourt54, onde tendo por

base as idéias de Santiago Mir Puig, ilustra bem o fato declarado por Roxin, no que tange a

limitação do poder de punir do Estado, passo a transcrevê-la na íntegra:

Ao Direito Penal compete a proteção de bens jurídicos e não a realização de justiça. Tal encargo -afirma-se- reclamaria a sanção de todo comportamento imoral ou, ao menos, antijurídico aspiração que foge das pretensões do direito penal. A realização de justiça é praticamente incompatível com a atribuição deste ramo do direito, que consiste em castigar parcialmente os ataques que tenham por objetos os bens jurídicos protegidos pela ordem legal. O direito penal e por conseguinte a pena buscam fins bem mais racionais: tornar possível a convivência social. A metafísica necessidade de realizar justiça excede os fins deste direito.

2-2 TEORIA PREVENTIVA

Abordada com propriedade por Maria Lúcia Karam55, que a vê como o oposto

da teoria absoluta, nela se concebe a pena como um meio para fins posteriores. Partindo de

um critério utilitarista, guarda afinidade com o objetivo de controle social.

Francisco Bissoli Filho56 citando José M. Rico diz que a teoria relativa ou

preventiva atribui a pena um fim independente, assinalando-lhe um objetivo utilitário.

Castiga-se para que não se delinqua. O fim da pena assim seria a prevenção de futuros crimes,

53 Ibidem P. 119 54 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 120-121 55 KARAM, Maria Lúcia. Op. Cit. P.173 56 FILHO, Francisco Bissoli. Op. Cit. P. 144

29

sendo, portanto, um meio para a realização de fins socialmente úteis.

De acordo com Beccaria57 a pena não deve visar a tortura de um ser, nem

desfazer um crime que já está praticado. Assevera o autor:

Como pode um organismo político que, em lugar de se dar às paixões, deve ocupar-se exclusivamente em colocar um freio nos particulares, exercer crueldades inócuas e utilizar o instrumento do furor, do fanatismo e da covardia dos tiranos? (...) Os castigos têm por finalidade única obstar o culpado de tornar-se futuramente prejudicial à sociedade e afastar os seus concidadãos do caminho do crime.

Partindo da divisão, exposta por Cezar Roberto Bitencourt58 a partir de

Feuerbach, temos duas direções bem definidas: a prevenção geral e a prevenção especial.

2.2.1 A prevenção geral

Sustenta esta teoria que a resolução para o problema da criminalidade se

consegue pela ameaça da pena, a cominação penal, juntamente com a aplicação da mesma,

deixando assim, claro que a ameaça feita será cumprida caso haja desequilíbrio nas relações

sociais de direito.

Na concepção de Feuerbach59 a pena é uma “coação psicológica” que visa

evitar o fenômeno delitivo.

Pode no entender de Francisco Bissoli Filho60, a presente teoria se subdividir

entre as teorias da prevenção especial negativa e positiva.

Nas suas palavras:

Na teoria da prevenção geral negativa, os destinatários da pena são os infratores potenciais. A utilidade da pena é a intimidação neles provocada pela mensagem (ameaça) contida na lei penal, em especial pela cominação da pena em abstrato, que estaria então dirigida a criar uma contramotivação

57 BECCARIA, Cesare. Op. Cit. P. 49 58 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 122 59 FEUERBACH apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 123 60 FILHO, Francisco Bissoli. Op. Cit. P. 145

30

ao comportamento contrário à lei.

Logo, o fim da pena é futuro, tentando incutir nas pessoas que a ofensa à

comunidade trará para ela danosas conseqüências, não por vingança, e sim para que a ordem

seja estabelecida.

Já a teoria da prevenção geral positiva, preconiza que a pena não constitui uma

retribuição nem mesmo, uma dissuasão. Seu mister é de prevenir e integrar, no sentido de

exercitar o reconhecimento da norma, e a fidelidade dos membros da sociedade frente ao

direito por ela abrangido. Por isso quando a confiança institucional é abalada pelo

cometimento do delito, precisa de uma resposta: a pena, que a seu turno visa restabelecer esta

confiança e consolidar a dita fidelidade ao ordenamento. Visto isto, ela é destinada aos

cidadãos fiéis e não aos infratores.61

Surgem algumas críticas a teoria da prevenção geral, uma baseada na própria

idéia para eficácia da mesma: a ponderação da racionalidade dos homens, o que segundo

Cezar Roberto Bitencourt62 é uma ficção, tendo em vista ser indemonstrável o atuar racional

do homem. Não obstante que o homem médio em situações normais é influenciado pela pena,

porém isto não acontece em todos os casos.

Traz ainda o referido autor uma importante observação63: “Em todo caso não se

duvida que a pena possa intimidar, e por isso deve preocupar-nos a proporcionalidade das

cominações penais duras e seu efeito intimidatório, isto é não se pode castigar amedrontando

desmedidamente”.

2.2.2 A prevenção especial

61 Ibidem P. 146-147 62 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 125 63 Ibidem P. 128

31

Esta teoria é partidária de que a pena deve concentrar seus esforços no

delinqüente a fim de evitar a prática de novos crimes64.

As condições de exploração e miséria vividas, por homens e mulheres na crise

da era industrial se traduziram em um potencial perigo para a classe dominante, que via nas

aspirações sociais dos mais pobres uma possibilidade de se romper a ordem estabelecida,

visto os conflitos causados pelas graves diferenças entre os possuidores e não possuidores.

Sendo assim o interesse jurídico-penal já não é o de intimidar os membros do corpo social,

mas o de defender a sociedade e a nova ordem.65

Tomando por base os ideais positivistas, onde a ciência fundamentava a ordem,

e sendo difícil explicar de forma convincente o porquê da exploração do trabalhador, controle

social passou a ser exercido com base em argumentos científicos de que há homens bons e

normais, e perigosos, maus e anormais aos últimos se dirige a pena66.

Santiago Mir Puig67 explicitando o pensamento de Von Liszt ressalta que a

função da pena e do direito penal é a proteção do bem tutelado, por meio da incidência da

primeira à pessoa do criminoso, podendo a tese ser sintetizada em três palavras: intimidação,

correção e inocuização. Portanto o castigo deve-se a ressocializar o apenado, neutralizar os

incorrigíveis e intimidar os que não precisam se reeducar.

Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt68:

Sob o ponto de vista político-criminal, por exemplo, a prevenção especial justifica-se uma vez que se afirma ser também é uma forma de evitar que quem delinqüiu volte a fazê-lo, e nisto consiste a função preventivo-especial e de certa forma, a do Direito Penal em seu conjunto. Ao mesmo tempo em que com a execução da pena se cumprem os objetivos de prevenção geral, isto é, de intimidação, com a pena restritiva de liberdade busca-se a chamada ressocialização do delinqüente.

64 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 129 65 Ibidem. Op Cit P. 130 66 Ibidem. Op. Cit. P. 131 67 MIR PUIG, Santiago apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 129 68 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 134

32

Francisco Bissoli Filho69 citando Ferri destaca ser um erro considerar a

prevenção geral a força do castigo. Diz ainda que a influência inibitória da pena, não só para

condenado, mas também para a opinião pública, está na sua concreta aplicação, isto é, na

prevenção especial. Complementa ainda que o castigo individualmente aplicado não possui

outra finalidade senão tornar inócuo o delinqüente incorrigível ou reeducar para a vida social

aquele que for emendável, trazendo à baila os conceitos de prevenção especial negativa e

prevenção especial positiva. Dá-se a primeira quando a pena é utilizada com o escopo de

tornar inofensivo o criminoso que não pode se recuperar e a segunda quando de uma forma

positiva busca-se curar o apenado possibilitando seu retorno à sociedade.

Ressalte-se que os partidários da tese da prevenção especial preferem falar em

medidas e não em penas, pois dizem que esta última implica na liberdade do indivíduo ao

passo que as medidas pressupõem um sujeito doente que merece ser tratado de acordo com

sua periculosidade.70

Esta finalidade dada à pena trouxe benefícios, pois está focada no delinqüente e

sua personalidade, onde sendo possível considerar as circunstâncias que o levaram a praticar o

fato delitivo, poderemos utilizar os substitutivos penais.71

Algumas críticas se fizeram presentes também, contra este pensamento, como

o fato de que um especial fim de agir levou o criminoso a delinqüir, porém em razão de não

haver a menor possibilidade de reincidência, necessitaria ele de intimidação, inocuização, ou

reeducação? A finalidade da prevenção especial, neste caso, seria anulada.72 Teria limites o

puder punitivo estatal, tendo em vista que a busca pela correção definitiva do delinqüente,

poderia levar a uma aplicação perpétua ou indeterminada, da pena privativa de liberdade?73

69 FILHO, Francisco Bissoli. Op. Cit. P. 147 70 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 133 71 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 134 72 Ibidem. 73 Ibidem. Op. Cit. P. 135

33

O ideal ressocializador aprovado por uns e questionado por outros, também foi

atacado por seus opositores entre eles Muñoz Conde74 que citando Durkheim afirma que a

criminalidade é mais um dos componentes da complexa sociedade em que vivemos, onde é a

própria que a define. Logo seria prudente exigir a ressocialização do apenado, fruto da

sociedade que o define? Sendo assim é a sociedade que deveria submeter-se à reeducação.

Outra tese abordada é que como ressocializar significaria recuperar para a

sociedade, impondo ao preso valores pré-concebidos, estaríamos assim causando uma grave

lesão ao ideal democrático e a liberdade individual do delinqüente, que obrigado estaria a agir

conforme a norma.75

Com aceitação controversa, surge uma outra teoria cujo escopo era conciliar os

interesses conflitantes das teorias absolutas e preventivas.

2.2.3 Teoria mista ou unificadora

Nas palavras de Francisco Bissoli Filho76: “(...) esta teoria trata de irmanar os

pontos de vistas das teorias absolutas e relativas, associando justiça absoluta com o fim

socialmente útil, o conceito de retribuição com o fim utilitário”.

É elaborada como crítica às teorias tidas como monistas, por considerar

somente um aspecto importante na aplicação da pena. No dizer de Mir Puig77: “entende-se

que a retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial são distintos aspectos de um

mesmo e complexo fenômeno que é a pena”.

Essa teoria estabelece uma diferença entre o fundamento e a função da pena,

74 CONDE, Muñoz apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 136 75 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 138 76 FILHO, Francisco Bissoli. Op. Cit. P. 151 77 MIR PUIG, Santiago apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 143

34

de acordo com Cezar Roberto Bitencourt78:

Em relação ao fundamento da pena sustenta-se que a sanção punitiva não deve fundamentar-se em nada que não seja o fato praticado, qual seja, o delito. Com esta afirmação, afastamos um dos princípios básicos da prevenção geral: a intimidação da pena, inibindo o resto da comunidade de praticar delitos. E, com o mesmo argumento, evita-se uma possível fundamentação preventivo-especial da pena, na qual esta, como já vimos tem como base aquilo que o delinqüente ‘pode’ vir a realizar se não receber o tratamento a tempo, e não o que já foi realizado, sendo um critério ofensivo à dignidade do homem reduzi-lo à categoria de doente biológico ou social.

Mir Puig79 distingue duas direções da mesma teoria: uma conservadora, que

acredita que os fins preventivos exercem uma posição exclusivamente complementar dentro

da linha da retribuição justa, e outra progressista cujo fundamento da pena é a defesa da

sociedade e não a retribuição, que estabelecerá somente a limite máximo das exigências da

prevenção.

Porém na opinião de Roxin80, visando dar à pena uma finalidade que concilie

interesses distintos, a presente teoria fracassa, pois a simples adição de pensamentos

diferentes destrói a concepção e faz com que a pena seja um meio de reação rápido a qualquer

emprego.

78 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 142 79 MIR PUIG, Santiago apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 143 80 ROXIN, Clauss apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op Cit P. 143-144

35

3. O TRABALHO DO PRESO E O INSTITUTO DA REMIÇÃO PENAL

Ante as perspectivas sociais, econômicas e políticas que envolveram o

estabelecimento do trabalho nas prisões, com a criação das casas de trabalho, não iremos nos

ater a este mister, tendo em vista que já fora dito anteriormente. Sendo assim, traremos à baila

o aspecto ressocializador do tema, que envolve o trabalho remunerado. Sua primeira forma

surgiu nos presídios da Espanha no ano de 1934, no denominado sistema de Montesinos, dado

o nome de seu idealizador.81

Encarado pelo mestre Rogério Greco como uma das formas mais visíveis de se

levar a efeito a ressocialização82 o trabalho diminui no entender de Cezar Roberto

Bitencourt83 os efeitos criminógenos da prisão, além de ocupar o tempo ocioso do condenado.

Como exemplo, temos o exposto por Greco84, demonstrando que nas penitenciárias onde os

presos não exercem atividade laborativa de qualquer caráter o índice de tentativas de fuga é

muito superior às daquelas onde os detentos atuam de forma produtiva.

O trabalho do apenado está regulamentado pela Lei de Execuções Penais (Lei

n° 7210/84) onde em seu Art. 28 é ressalvado que o mesmo é condição da dignidade humana

do condenado, valor que certamente corrobora com o ideal de retorno do homem à

comunidade, nas palavras de Alexandre Moraes85:

A dignidade representa um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida (...) constituindo-se um mínimo invulnerável a que todo estatuto jurídico deve assegurar.

Logo, trabalhando se tem dignidade, adquirindo assim valores, que ajudam o detento a

81 PORTO, Roberto. Crime Organizado e Sistema Prisional. São Paulo: Atlas, 2007. P. 35 82 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 5º ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005. P. 579 83 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral, volume 1. 6º ed. São Paulo: Saraiva, 2000. P. 435 84 GRECO, Rogério. Op. Cit. P. 579 85 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23º ed. São Paulo: Atlas, 2008. P. 22

36

detento a cuidar da própria vida quando se tornar um egresso.

Não constituiu apenas um direito, mas também um dever, pois: “Art. 31 da

LEP: O condenado a pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas

aptidões e capacidade”, é importante salientar a observância deste direito-dever do preso, não

traduzindo o mesmo como um favor do Estado, e sim o cumprimento da norma, onde também

é dito que os direitos não atingidos pela pena serão resguardados, não devendo haver qualquer

distinção (Art. 3º da LEP).

Foucault86 ressaltando a importância do trabalho como instrumento

ressocializador diz que:

O trabalho pelo qual o condenado atende a suas próprias necessidades requalifica o ladrão em operário dócil. E é neste ponto que intervém a utilidade de uma retribuição pelo trabalho penal; ela impõe ao detento a forma ‘moral’ do salário como condição de existência. O salário faz com que se adquira ‘amor e hábito’ ao trabalho; dá a esses malfeitores que ignoram a diferença entre o meu e teu sentido de propriedade –‘daquela que se ganhou com o suor do rosto’; ensina-lhes também, a eles que viveram na dissipação, o que é a previdência, a poupança, o cálculo do futuro, enfim propondo uma medida do trabalho feito permite avaliar quantitativamente o zelo do detento e os progressos de sua regeneração.

Roberto Porto87 afirma que o princípio da não–ociosidade exposto por

Foucault, é fator essencial no processo de ressocialização do detento, onde através de técnicas

de ocupação máxima do tempo, permite-se exercitar atividades múltiplas de modo a desviar o

caráter do criminoso impondo-lhe regras de bom comportamento.

O trabalho do preso condenado por pena privativa de liberdade em regime

fechado pode ser dividido em interno e externo.

86 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 35 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. P. 144 87 PORTO, Roberto. Op. Cit. P. 35

37

3.1 O TRABALHO INTERNO

Tendo em vista o texto da lei, temos que o trabalho interno é aquele cumprido

dentro do estabelecimento penitenciário, conforme as aptidões do condenado e gerenciado por

empresa ou fundação pública, com autonomia administrativa, visando a formação profissional

do condenado, dirigindo sua produção aos particulares ou quando isto não for possível ou

recomendável destinar-se-ão os produtos aos órgãos da administração direta ou indireta.

A importância arrecadada com a venda se reverterá em favor da fundação ou

empresa pública supracitada, ocorrendo na sua falta o repasse da verba ao estabelecimento

penal.88

É lícita também a celebração de convênios com a iniciativa privada para o

estabelecimento de oficinas de trabalho referentes a setores de apoio dos presos, ressaltando

que serão levados em consideração fatores que influenciam na vertente ressocializadora do

trabalho, como: as necessidades futuras do preso e as oportunidades oferecidas pelo

mercado.89

3.2 O TRABALHO EXTERNO

Os presos em regime fechado são admitidos para trabalhar em obras ou

serviços realizados por órgãos da administração direta e indireta, ou instituições privadas,

anuindo o preso, desde que tomados os devidos cuidados com a possibilidade de fuga.90

Dependerá do cumprimento de no mínimo um sexto da pena, e o limite máximo de presos

88 PINTO, Antônio Luiz; CÉSPEDES, Lívia; WINDT, Márcia Cristina Vaz. VADE MECUM. 6º ed. São Paulo: Saraiva, 2008. P. 1330 89 Ibidem P. 1329 90 Ibidem. P. 1330

38

empregados na obra é de dez por cento do total de funcionários.91

Ambos segundo o Art. 29 caput da LEP não devem instituir remuneração

inferior a ¾ do salário mínimo, para uma jornada normal de trabalho de seis a oito horas

diárias (Art. 33 da LEP), sendo assegurado aos detentos os benefícios da previdência social,

na forma do Art. 41 III da LEP92, lembrando que este trabalho não está sujeito ao regime da

CLT (Art. 28 §2º da LEP).

A remuneração do apenado possui destinação específica, previamente

determinada por lei, assim reza o Art. 29 §1º e §2º:93

§1º O produto da remuneração pelo trabalho deverá atender: a) à indenização dos danos causados pelo crime, desde que determinados judicialmente e não reparados por outros meios; b) à assistência à família; c) a pequenas despesas pessoais d) ao ressarcimento ao Estado das despesas realizadas com a manutenção do condenado, em proporção a ser fixada e sem prejuízo da destinação prevista nas letras anteriores. §2º Ressalvadas outras aplicações legais, será depositada a parte restante para constituição do pecúlio, em cadernetas de poupança, que será entregue ao condenado quando posto em liberdade.

Os presos provisórios e os condenados por crimes políticos não estão obrigados

a trabalhar, de acordo com a leitura dos Arts. 31 parágrafo único e 200 ambos da LEP94.

3.4 O INSTITUTO DA REMIÇÃO PENAL

Para incentivar o trabalho na prisão, sob o ponto de vista dos presos, muito

embora por força de lei isto não fosse necessário, temos o instituto da remição, prevendo a

redução, para os presos do regime fechado ou semi-aberto, de um dia da pena a cada três dias

91 PINTO, Antônio Luiz; CÉSPEDES, Lívia; WINDT, Márcia Cristina Vaz. VADE MECUM. 6º ed. São Paulo: Saraiva, 2008. P. 1330 92 Ibidem 93 Ibidem 94 Ibidem

39

trabalhados95. O presente instituto surgiu no Direito Penal Militar da guerra civil espanhola,

na década de trinta.96

Remir significa resgatar, abater, descontar, parte do tempo de pena a cumprir.

Ressaltando que o preso provisório, que não está obrigado ao trabalho, se trabalhar poderá

também remir parte de sua futura condenação97.

Extraída da doutrina de Mirabete98, temos que aos presos do regime aberto não

deve ser aplicada a remição, nas suas palavras:

A remição é um direito dos condenados que estejam cumprindo pena em regime fechado ou semi-aberto, não se aplicando, assim, ao que se encontra em prisão albergue, já que a este incumbe submeter-se aos papéis sociais e às expectativas derivadas do regime, que lhe concede, a nível objetivo a liberdade do trabalho contratual. Pela mesma razão, alias, não se concede a remição ao liberado condicional Também não tem direito à remição o submetido à pena de prestação de serviço à comunidade, pois o trabalho nesta espécie de sanção, constitui, essencialmente, o cumprimento da pena.

O tempo remido não só será computado para a concessão de livramento

condicional e indulto, mas também pode ser aproveitado para a progressão de regime.99

Discussão interessante é trazida pelas doutrinas acerca do trabalho, que se

traduz nas palavras de Rogério Grego100 em um poder-dever do preso, logo se o Estado que é

obrigado a trazer a oferta de trabalho ao mesmo, não o faz, o apenado assim deve ou não ter

direito à remição?

Entende Rogério Greco101 que diante da inércia ou incapacidade do Estado em

gerir a coisa pública e fazer cumprir as determinações emanadas pela lei, o mesmo deve

conceder a remição aos apenados que não puderam trabalhar por motivos alheios às suas

vontades. Ressalta que a remição da pena diz respeito à liberdade do cidadão e nada é

95 PORTO, Roberto. Op. Cit. P. 36 96 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral, volume 1. 6º ed. São Paulo: Saraiva, 2000. P. 436 97 MIRABETE, Júlio Fabbrini apud GRECO, Rogério. Op. Cit. P. 580 98 Ibidem. P. 580 99 GRECO, Rogério. Op. Cit. P. 580 100 Ibidem. P. 580 101 GRECO, Rogério. Op. Cit. P. 568; 580

40

semelhante em relação ao pagamento sem trabalho, sendo inaceitável que pela má

administração do Estado este possa interferir sobre o direito de liberdade do cidadão sob o

argumento de um enriquecimento ilícito.

Já Cezar Roberto Bitencourt102, nos termos do Art. 130 da LEP, afirma que a

comprovação exigida para se provar o tempo trabalhado, não pode ser falsa, pois o presente

artigo define como crime de falsidade ideológica o fato de declarar ou atestar falsamente a

prestação de serviço para fins de remição, em segundo lugar exige declaração do Juiz, com

audiência no Ministério Público. Por último, explica que:

Quando a lei fala que o trabalho é direito do condenado está apenas estabelecendo princípios programáticos, como faz a Constituição quando declara que todos têm direito ao trabalho, educação, saúde. No entanto o país tem milhões de desempregados, analfabetos, enfermos. Por outro lado, os que sustentam o direito à remição, independentemente de o condenado ter trabalhado, não defendem também o pagamento da remuneração igualmente prevista em lei. Concluindo, somente terão direito à remição os que efetivamente realizarem o trabalho prisional.

102 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral, volume 1. 6º ed. São Paulo: Saraiva, 2000. P. 436

41

4- O MITO DA RESSOCIALIZAÇÃO

Declaradamente temos no Art. 59 do CP as funções da pena para o Direito

Penal Brasileiro, in verbis:

Art. 59: O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. (grifo nosso): I - As penas aplicáveis. Omissis (...)

Note que temos objetivos conflitantes para uma mesma pena. De um lado a

prevenção especial e geral (prevenção do crime) do outro a retribuição pelo mal causado

(reprovação da conduta lesiva).

Augusto Thompson nos remete a idéia de que oficialmente o objetivo de

recuperar o homem possui prevalência sobre os demais, porém não se autoriza que os

objetivos de punição pelo mal causado e intimidação sejam sacrificados103.

Thompson104 citando Bernard Shaw afirma que: “Para punir um homem

retributivamente é preciso injuriá-lo. Para reformá-lo é preciso melhorá-lo. E os homens não

são melhoráveis através de injúrias”. Logo, não haveria como compatibilizar objetivos tão

distintos, pois uma prisão não-punitiva é inviável.

Clara é a impossibilidade de uma teoria asfixiante que impõe o cerceamento da

autonomia do recluso com uma terapia ressocializadora, pois a última exige o encorajamento

do auto-respeito, do senso de responsabilidade, da autoconfiança, do espírito de

independência que a primeira restringe.105

103 THOMPSON, Augusto. A Questão Penitenciária. 5º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. P. 4 104 Ibidem. P. 5 105 Ibidem. P. 9

42

Para termos um exemplo da problemática podemos ler um documento oficial,

publicado pela Annual report, trazido por David Dressler106, que explica exatamente o que

falamos:

Ainda o nosso moderno sistema prisional procede numa direção muito incerta, porque sua administração tem necessariamente, uma série de compromissos. De um lado, espera-se que as prisões punam; de outro, supõe-se que reformem. Espera-se que disciplinem rigorosamente ao mesmo tempo em que ensinem autoconfiança. São construídas para operar como grandes máquinas impessoais, mas se espera que ajustem os homens a viver vidas comunitárias normais. Operam de acordo com uma rígida rotina autocrática, mas se espera que desenvolvam a iniciativa individual. Todas as regras restritivas por demais freqüentes obrigam o preso à ociosidade, a despeito do fato de que um dos seus objetivos primários é ensinar aos homens como ganhar uma vida honesta. (...) Para alguns as prisões não são mais do que clubes campestres, a prover a fantasia e o capricho dos internos. Para outros, a atmosfera prisional parece carregada somente de amargura, de rancor e de sentimento pervertido de frustração. E assim o esquema paradoxal prossegue, porque nossas idéias a respeito da função das instituições correcionais, na nossa sociedade são confusas, vagas e nebulosas.

Mas diante das funções declaradas a pena de prisão fracassa? No entender de

Lourival Almeida Trindade107 sim, porém:

É certo que a prisão como método de controle social108 fracassou em referência a seus objetivos. Porém, ao contrário dos fins declarados a pena prisional tem cumprido antes de tudo, funções simbólicas e ideológicas do sistema diferentes de seus objetivos instrumentais.

Explicando temos a referência que Vera Regina Pereira de Andrade109 faz a

Foucault:

O fracasso das funções declaradas da pena abriga, portanto, a história de um sucesso correlato: o das funções reais da prisão que opostas às declaradas, explicam sua sobrevivência e permitem compreender o insucesso que acompanha todas as tentativas reformistas de fazer do sistema carcerário um sistema de reinserção social.

106 DRESSLER, David apud THOMPSON, Augusto. A Questão Penitenciária. 5º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. P. 9-10 107 TRINDADE, Lourival Almeida. A Ressocialização uma (dis)função da pena de prisão. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003. P.18 108 Na função de reduzir a criminalidade, ressocializando o condenado e consequentemente defendendo a sociedade. 109 ANDRADE, Vera Regina Pereira de apud TRINDADE, Lourival Almeida. Op.Cit. P.18.

43

Pode-se dizer então que o “fracasso” da prisão é só aparente, pois este é a

medida do seu sucesso, pois ao invés do declarado objetivo de diminuir a criminalidade, e

evitar reincidência, através da ressocialização do condenado, reproduz a delinqüência e a

própria reincidência110.

Importante para a elucidação do tema é a definição de Juarez Cirino dos

Santos111 sobre os objetivos reais do sistema carcerário:

Os objetivos reais do sistema carcerário aparecem em uma dupla reprodução: reprodução da criminalidade (recortando formas da criminalidade das classes dominadas e excluindo a criminalidade das classes dominantes) e reprodução das relações sociais (a repressão da criminalidade das classes dominadas funciona como tática de submissão ao poder das classes dominantes).

Ocorre assim a ocultação da seleção da criminalidade, na medida em que os

sistemas punitivos, falaciosos quanto ao seu ideal ressocializador, cumprem sua função

simbólica, “maquiando” a criminalidade e selecionando as pessoas que ingressarão neste

sistema112.

4.1 O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO PRIMÁRIO E SECUNDÁRIO

As sociedades contemporâneas que formalizam o poder (Estado) selecionam

um reduzido número de pessoas que submetem à sua coação com o fito de impor-lhes uma

pena. Esta seleção é chamada de criminalização e seu processo seletivo desenvolve-se em

duas etapas: primária e secundária.113

110 TRINDADE, Lourival Almeida. Op. Cit. P. 18-19. 111 SANTOS, Juarez Cirino dos apud TRINDADE, Lourival Almeida. Op.Cit. P.20 112 TRINDADE, Lourival Almeida. Op. Cit. P. 20 113 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Primeiro Volume. 3º ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. P. 43

44

A criminalização primária é o ato ou efeito de sancionar uma lei penal material

que incrimina ou permite a punição de certas pessoas. Nas doutas palavras dos mestres Nilo

Batista e Eugênio Raúl Zaffaroni114:

Trata-se de um ato formal, fundamentalmente programático: o dever ser apenado é um programa que deve ser cumprido por agências diferentes daquelas que o formulam. Em geral são as agências políticas (parlamentos e executivo) que exercem a criminalização primária. É uma declaração, que em geral, se refere a condutas e atos que serão reprimidos pelas agências de criminalização secundária.

Por sua vez a criminalização secundária é definida como a ação exercida

concretamente sobre as pessoas. Acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa

que se supõe tenha praticado certo ato criminalizado primariamente, cumprindo assim o que

as agências políticas determinaram através das leis115.

Embora não se possa afirmar que todas as relações sociais se subordinem a um

programa de criminalização faraônico, que convertesse a sociedade em um caos na busca pela

realização deste programa, a limitada capacidade operativa das agências de criminalização

secundária não tem outro motivo que não o de proceder de modo seletivo116.

Zaffaroni117 menciona que o sistema penal pode ser visto como um embuste,

pois pretende se utilizar de um poder que não possui, ocultando o verdadeiro poder que

exerce. Mesmo porque se o sistema penal efetivamente realizasse a criminalização

programada provocaria uma catástrofe social. Nas palavras do autor:

se todos os roubos, todos os adultérios, todos os furtos, todas as defraudações, todas as falsidades, todas as lesões, todos os subornos, todas as ameaças, etc. fossem concretamente criminalizados, praticamente não haveria habitante que não fosse, por diversas vezes criminalizado.

A própria Bíblia Sagrada118, nos traz um exemplo do aludido:

114 Ibidem. P.43 115 Ibidem 116 Ibidem 117 ZAFFARONI, Eugênio Raúl apud TRINDADE, Lourival Almeida. Op.Cit. P.24 118 Evangelho de João, Novo Testamento. A Bíblia Sagrada. 2º ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. P.84

45

Então lhe trouxeram os escribas e os fariseus uma mulher que fora apanhada em adultério e a puseram no meio. E lhe disseram: Mestre esta mulher foi agora mesmo apanhada em adultério. E Moisés na lei mandou-nos apedrejar a estas tais. Que dizes tu logo? Diziam pois isto os judeus tentando-o, para poderem acusar. Porém Jesus abaixando-se, pôs-se a escrever com o dedo na terra. E como eles perseveraram em fazer-lhe perguntas, ergueu-se Jesus e disse-lhes: O que de vós outros está sem pecado seja o primeiro que a apedreje. E tornando a abaixar-se, escrevia na terra. Mas eles ouvindo foram saindo um a um sendo os mais velhos os primeiros. E ficou só Jesus e a mulher que estava no meio em pé.

Logo, conclui-se que não é possível ao sistema penal prender, processar e

julgar todas as pessoas que realizam as condutas descritas na lei como crime, assim as

agências possuem dois caminhos a seguir: ou optam pelo caminho da inatividade ou da

seleção.

Adverte Orlando Zaconne119 que com a seletividade ocorre uma inversão da

estrutura formal do aparelho repressor, pois a magistratura passa a ter sua ação delimitada

pela polícia. Nas palavras de Augusto Thompson120:

Exatamente ao reverso do que apregoa a ideologia é a polícia quem controla a atividade do judiciário, pois este só trabalha com o material concedido por aquela. Graças a isto pode o judiciário manter uma aparência de isenção e pureza, uma vez que a parte operacionalmente suja da operação discriminatória se realiza antecedentemente à sua atuação.

Sobre as pessoas selecionadas assevera Nilo e Zaffaroni121: “que o poder das

agências policiais atinge um número reduzido de pessoas quase todas vulneráveis e

protagonistas de obras toscas, próprias de seu baixo nível de educação social”.

4.2 A CIFRA NEGRA

A cifra oculta da criminalidade pode ser explicada pela criminóloga

venezuelana Lola Anyar de Castro122, que distinguindo a criminalidade legal, aquela mostrada

119 ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. 2º ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. P. 16 120 THOMPSON, Augusto apud ZACCONE, Orlando. Op. Cit. P. 16 121 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Op. Cit. P. 51

46

pelas estatísticas oficiais, da criminalidade aparente, aquela conhecida por órgãos de controle

penal (polícia, MP, juízes), ainda que não apareçam nas estatísticas por diversos motivos, e

por fim da criminalidade real, como sendo a quantidade de delitos verdadeiramente cometidos

em um determinado momento. Em suas palavras:

Entre a criminalidade real e aparente, há uma enorme quantidade de casos que jamais serão conhecidos pela polícia. Esta diferença é o que se denomina como cifra obscura, cifra negra, ou delinqüência oculta. A diferença entre a criminalidade real e a aparente seria, pois, dada pela cifra negra.

Augusto Thompson123 nos remete ao fato de que a cifra negra foi considerada a

partir de pesquisas que lograram evidenciar a existência de uma discrepância entre os

números oficiais de crimes e a realidade escondida por trás deles. Assim uma reduzida

minoria das violações à lei criminal chega á luz do conhecimento público.

Enumera o autor fases obrigatórias que perfazem o caminho da prática do

delito à condenação criminal: 1- ser o fato relatado à polícia; 2- se relatado, ser registrado; 3-

se registrado, gerar um inquérito; 4- se gerado um inquérito, ser investigado; 5- se investigado

no curso do inquérito, dar origem a uma denúncia por parte do promotor; 6- se denunciado,

redundar em condenação do juiz; 7- se, havendo condenação e expedido o conseqüente

mandado de prisão a polícia o executa124.

Entre cada uma destas referidas fases ocorre uma perda entre o universo dos

delitos e o número dos que aparecem na luz projetada pela ordem oficial. Ocorrendo assim

um descompasso entre as infrações que ficam no escuro (cifra negra) e as que emergem no

claro.125

122 CASTRO, Lola Anyar apud ZACCONE, Orlando. Op. Cit. P. 17-18 123 THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. O crime e o criminoso – Entes Políticos. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 1998. P. 3. 124 Ibidem. 125 THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. O crime e o criminoso – Entes Políticos. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 1998. P. 4

47

4.2.1 CRIMES NÃO RELATADOS À POLÍCIA

Alguém fazendo um honesto exame de sua vida pode assegurar que jamais

cometeu um crime? Quem em sã consciência é capaz de se julgar inocente de todo delito?

Entretanto a maioria das pessoas nunca teve sequer nenhum fato delituoso relatado à polícia.

Protege-nos assim o conforto da cifra negra126.

Estima-se em nosso País, numa previsão exageradamente cautelosa, que no

mínimo dois terços da globalidade das condutas delituosas de fato adotadas não chegam à

ciência da polícia127.

4.2.2 CRIMES RELATADOS, MAS NÃO REGISTRADOS

Mostra-se viável em diversos casos compor os interesses do criminoso e da

vítima por meio de um trabalho de persuasão, de apelo à mútua compreensão, sem levar a

efeito formalizar um procedimento criminal contra o autor de um delito, assim a polícia

suaviza a interpretação do fato, empregando o bom senso, tudo visando seu papel de

promover o bem social128.

Lesões corporais entre parentes, furtos em supermercados, crimes contra o

patrimônio que foram ressarcidos, embora constituam delitos praticados resvalam para a cifra

negra por falta de registro129.

4.2.3 CRIMES REGISTRADOS, MAS NÃO INVESTIGADOS

126 THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. O crime e o criminoso – Entes Políticos. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 1998. P.5 127 Ibidem. 128 THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. O crime e o criminoso – Entes Políticos. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 1998. P. 8 129 Ibidem.

48

O mero registro do evento representa tão somente um passo incipiente no rumo

de sua exposição ao claro, com enorme incidência, verifica-se a ausência de qualquer

investigação com respeito a delitos que foram objetos de registro. Assim o fato que mereceu

um lampejo de luz volta à escuridão.130

4.2.4 CRIMES CUJOS INQUÉRITOS SÃO ARQUIVADOS PELO MP

Quando os inquéritos instaurados terminam sem que a polícia logre elucidar a

autoria dos crimes, sendo remetidos ao Juízo sem a indicação de um culpado, não há

alternativa para o Promotor, senão a de pedir o arquivamento do feito. Houve o delito, porém

o criminoso fica oculto à sombra das cifra negra131.

4.2.5 CRIMES QUE RESULTAM EM ABSOLVIÇÃO

Instaurada a ação penal o processo terá que prosseguir até uma decisão

terminativa do Juiz. No entanto as estatísticas demonstram que as absolvições predominam

em relação às condenações.132

Ressalta Sir Leon Radznowicz133 que com decorrência da cifra negra surgem

algumas conseqüências como:

a) Ela representa a substância do crime, enquanto as estatísticas oficiais são

somente sua sombra.

b) Torna difícil descobrir os caminhos e composição da criminalidade

130 THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. O crime e o criminoso – Entes Políticos. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 1998. P. 10 131 Ibidem. P. 15 132 Ibidem. P. 18 133RADZNOWICZ,Leon apud THOMPSON, Augusto. Op. Cit. P. 19

49

c) Restringe nosso conhecimento a respeito dos criminosos.

d) As atitudes da sociedade com relação ao crime e a punição são irrealistas.

e) Impõe-se como maior fator no enfraquecimento de qualquer efeito

intimidativo que a punição dos criminosos pudesse ter.

f) Provavelmente o sistema penal não tem o menor interesse em tentar

diminuir a cifra negra, pois a polícia, os promotores, o judiciário e os

estabelecimentos prisionais sucumbiriam se tivessem que lidar com todos

os que realmente praticam infrações penais.

Devemos fazer menção ao observado por Lourival Almeida Trindade quando

diz que a cifra negra subestima e ignora condutas típicas dos segmentos superiores, talvez

iguais ou piores dos que os fatos cometidos por pessoas de categorias inferiores, pois a

criminalização opera de modo desigual e seletivo, e o processo criminalizante por sua vez

direciona toda sua tirania, principalmente, para as formas de desvio, típicas das classes

subalternas.134

Exemplificamos com o citado por Orlando Zaccone:135

Para se ter uma idéia, no ano de 2005, entre os flagrantes lavrados para apurar a conduta de tráfico de drogas ilícitas na Capital e na Baixada Fluminense, todas as delegacias da Zona Sul reunidas, incluindo Botafogo, Leblon, Gávea, Ipanema, Copacabana e Barra da Tijuca, atingem aproximadamente um terço dos registros realizados somente na 34º DP. É mais do que evidente que os registros realizados pela polícia não correspondem à realidade da circulação e comércio de drogas ilícitas no Grande Rio, caso contrário, deveríamos acreditar que em Bangu existe um movimento de drogas três vezes maior do que em toda a Zona Sul carioca.

Veja como a cifra negra se entrelaça com a seletividade do sistema penal:

134 TRINDADE, Lourival Almeida. Op. Cit. P. 55 135 ZACCONE, Orlando. Op. Cit. P. 14

50

Com muita propriedade, continua Zaccone:136

O espaço em que se opera a venda de drogas ilícitas na Zona Sul e Barra da Tijuca é completamente diferente de outras regiões como Bangu, Santa Cruz e Imbariê. Os grandes pontos de venda de drogas na Barra, por exemplo, se localizam em áreas residenciais de acesso privado como condôminos e apartamentos, espaços onde a polícia não tem a entrada franqueada. Imagine a proposta de se policiar ostensivamente as entradas e saídas dos grandes condomínios da Avenida das Américas para o combate ao tráfico de drogas.

Distintamente encontra-se o espaço onde circula a mercadoria ilícita nas

favelas e comunidades carentes, onde a polícia ainda que de forma limitada tem acesso às

vielas e becos onde ocorre o comércio ilegal.137

Elucidativas são as palavras de Augusto Thompson: 138

O crime será mais visível na medida em que ocorra em lugar onde a polícia dispõe de maior facilidade de acesso, logradouros públicos, botequins, favelas. O oposto se dá quanto a outros tipos de recinto, aos quais só têm ingresso pessoas com atributos especiais. Mostram aparelhamento adequado para fazer respeitar a seleção desejada. A eles a polícia carece de livre acesso, pois uma barreira institucional defende a indevassidade de seus interiores. O acontecimento de alguma ilicitude lá encontra dificuldade quase que invencível, quanto a ser visto pela polícia. (...) Típicos das espécies são os apartamentos e escritórios da zona urbanizada, os consultórios, as lojas comerciais que trabalham só com a freguesia selecionada da banda rica da população. Entretanto por considerar o crime como algo típico do pessoal da arraia miúda, os componentes das camadas

136 ZACCONE, Orlando. Op. Cit. P. 14 137 ZACCONE, Orlando. Op. Cit. P. 18 138 THOMPSON, Augusto. Reforma da Polícia: Missão Impossível in Discursos Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade nº9/10. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. P. 244

DELEGACIA FLAGRANTES

34º DP

(Bangu)

186

36º DP (Santa

Cruz)

89

32º DP

(Imbariê)

67

Total 342

DELEGACIA FLAGRANTES

15º DP (Gávea) 17

12º DP

(Copacabana)

14

16ºDP (Barra da

Tijuca)

3

Total 34

51

bem aquinhoadas não conseguem visualizar seus pares, façam o que fizerem, como delinqüentes. Assim para enfrentar a prática de atos perturbadores por parte dos elementos do próprio meio, mantêm todo um mecanismo de defesa que se realiza e se esgota dentro de suas estritas fronteiras o que lhes permite dispensar o apelo à intervenção da autoridade pública. As classes média e alta tendem a passar a maior parte do tempo em locais fechados, os indivíduos marginalizados vivem a céu aberto. Compreende-se, por isso mesmo, haver muito mais probabilidade de serem os delitos dos miseráveis vistos pela polícia do que os perpetrados pela gente de posição social mais elevada.

52

CONCLUSÃO

O estudo da questão penitenciária é complexo, pois envolve problemas sócio-

econômicos da comunidade que nos abriga. O desafio de tornar aquele que cometeu um delito

apto para novamente viver em sociedade, se é que ele realmente é inapto, se constitui em uma

tarefa das mais árduas e devemos pensar se o sistema realmente deseja ressocializar.

A condução do condenado à prisão nem sempre foi aplicada na sociedade

como forma de sanção ao apenado, mas quando o foi varia de posturas extremamente

punitivas, para outras com expirações terapêuticas.

Embora achem base teórica para atuarem juntos, estes objetivos são bem

antagônicos, pois além de destruir a finalidade a que se propõe, não devemos esperar que um

homem não volte a delinqüir punindo-o em um lugar que aflora a criminalidade.

Acerca das diversas explicações para o surgimento do trabalho nas prisões,

quando por uma visão romancista viu-se o intuito de reformar o apenado e não só de puni-lo,

ou por outro lado foi encarado como uma forma de controle social que atendia os interesses

do capitalismo, temos hodiernamente o instituto da remição penal que além de fazer justiça

aos apenados serve como forma de incentivo ao trabalho carcerário.

Através dos processos de criminalização primário e secundário temos de

acordo com interesses elitistas, focados no bem e no mal, a construção da figura do criminoso,

que irá manutenir seu poder na sociedade, canalizando a raiva das pessoas para seus

semelhantes, através do medo.

Seria esta então a principal função do cárcere: reproduzir a delinqüência? Ele é

“vendido” como solução da violência para as pessoas amedrontadas, porém não levamos em

consideração a cifra negra do crime e a seleção operada pelo sistema visto que nem todas as

pessoas podem ingressar no mesmo, logo só as selecionadas entram. Pergunto então, quem

são as pessoas selecionadas? Quais são as pessoas que ingressam no sistema carcerário?

53

O sistema penal opera com bastante rigor e dirige suas forças aos mais pobres,

a classe menos favorecida, para manipulá-la, para que estereotipada cumpra sua função de

criminosa, pobreza passa a ser sinônimo de delinqüência. E quando vai ao cárcere, na maioria

dos casos não tem outro caminho que não seja a volta ao crime, pois estigmatizada lhe são

negados empregos e outras formas de se ter uma vida digna.

Mesmo que esteja adaptado ao cárcere, constituindo-se um bom preso, não é

prova irrefutável que se torne um cidadão cumpridor das leis, pois a forte influência da

subcultura carcerária, em um universo completamente distinto da vida em comunidade, já o

marcou com os estigmas da prisão.

Faz-se fundamental o trabalho sério e constante de acompanhamento ao

egresso, a compreensão de que a iniciativa privada é importante no processo de retorno do

apenado à sociedade, onde poderiam ser oferecidos alguns cargos, na medida da capacidade

pessoal do detento, em troca de incentivos fiscais.

Somente a sociedade pode mudar o quadro atual, devemos esquecer a

vingança, e através da compreensão do funcionamento das peças da engrenagem do sistema

penal operar verdadeiras formas de ajudar a construir um mundo mais igual.

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