inconsciente político por uma hermenêutica social
TRANSCRIPT
-
1
Revista gua Viva Revista de estudos literrios
Inconsciente poltico: por uma hermenutica social
Thomaz Abreu1
RESUMO: Es te artigo visa dar alguns contornos da noo de inconsciente poltico, de Fredric Jameson,
considerando-a uma hermenutica social, porquanto tal noo rene personagens conceituais tanto da
tradio marxista quanto da psicanlise, de modo a propor uma nova atividade interpretativa vinculada ao
coletivo e politicamente fundamentada. Nesse contexto, podemos, tambm, pensar uma categoria
adicional para os horizontes de anlise.
PALAVRAS-CHAVE: literatura; inconsciente; poltica; hermenutica; permanncia
ABSTRACT: This art icle aims at presenting some contours of the notion of political unconscious, by Fredric Jameson, considering this idea a social hermeneutics, provided that such notion reunites
conceptual characters of Marxis m and Psychoanalysis, posing a new act of interpreting, which is
politically grounded and connected to collectivity. According to this context, we can also reflect upon an
additional category for the hermeneutic analysis.
KEYW ORDS: literature; unconscious; politics; hermeneutics, persistence
Pode-se falar que Jameson advoga a favor de uma ontologia do social a qual se
mostra como uma hermenutica contra a opresso que reprime o contedo poltico do
texto. De acordo com o filsofo, h uma perspectiva poltica que oferece tanto o
horizonte absoluto de toda a leitura e toda a interpretao quanto uma filosofia da
histria capaz de respeitar a especificidade e diferena radical do passado sociocultural.
Trata-se do marxismo, na medida em que ele unifica os acontecimentos humanos, os
quais so vistos sob uma trama incompleta, qual seja, a histria da luta de classes. Dado
que essa histria, cujos traos so passveis de constatao, pode ser oculta e reprimida
na superfcie do texto, imperativo que uma doutrina de um inconsciente poltico
revele-se como uma hermenutica peculiar, na qual se resgate, para o texto, o contedo
poltico deste, o qual, reprimido na sua superfcie, jaz inconscientemente. Dessa forma,
podemos dizer que o campo social tem seu ser na histria, na luta ininterrupta do
1 Mestrando em literatura, com uma pesquisa intitulada de Sentidos e significados d a personagem
inominada no Avalovara de Osman Lins, [email protected], estudante da UnB.
-
2
opressor contra o oprimido, a qual no reduzida a interpretaes atuais extrapolativas
e que, no inconsciente do texto, acaba por revelar o motivo poltico de libert-la da
represso que, a, sofre, imperativo esse da nova hermenutica2.
Tal hermenutica no teraputica, porquanto o inconsciente do qual ela trata ,
necessariamente, politizado, o que oferece um veio crtico contra a psicanlise. Dado
que Freud, responsvel pela descoberta do inconsciente, evitava que se analisassem os
vnculos polticos dos contedos do inconsciente3, a hermenutica defendida por
Jameson no se confunde com a terapia, a qual ora tinha o foco na interpretao do
inconsciente, decifrando-o, ora nas resistncias do doente, ora na neurose de
transferncia4, porquanto tal hermenutica objetiva reafirmar o contedo poltico do
texto, contra as redues, as quais reprimem esse contedo, sem, contudo, partir do
texto para tornar inexeqvel o ato interpretativo. Dessa forma, afirmamos que a
hermenutica em questo pode ser entendida como uma interpretao poltica do
inconsciente do texto, na media em que resgata, no texto, o seu contedo poltico
inconsciente. Assim,
(...) de nosso atual ponto de vista, o ideal de uma anlise imanente do texto, de um desmantelamento ou desconstruo de suas partes e de uma descrio de seu funcionamento e mau funcionamento, implica menos uma total anulao de toda atividade interpretativa do que a exigncia de elaborao de um modelo hermenutico novo (...) (JAMESON, 1992, p. 20).
O argumento de Jameson a favor de tal hermenutica escrutina a posio de
Althusser acerca do problema epistemolgico da economia poltica proposto por Marx.
Para Althusser, dado que esse problema seja a possibilidade de definio do conceito de
causalidade estrutural, pode-se pensar com a filosofia clssica, que apresenta a
efetividade de tipo mecanicista e a efetividade de tipo expressivo, ou com Marx, a
efetividade como causalidade estrutural. Para Jameson, a causalidade mecnica, que no
2 Se o texto possui um inconsciente, podemos pensar que ele lacunar (FREUD, 2006, p. 19). Mas a
noo de Jameson politizada, o que acaba por afast-lo de uma referncia, apenas, freudiana. 3 Veja-se, por exemplo, em Materialismo dialtico e psicanlise, quando Reich afirma, em nota de
rodap, que (...) a teoria da compulso de repetio para alm do princpio do prazer era uma hiptese
que teria surgido especialmente com o objetivo de dessexualizar o prprio aparelho psquico (REICH, 1977, pp. 96-97), sendo que, por outro lado, a sublimao depende do processo social decisivamente,
(...) de tal modo que a libido sublimada, como fora de trabalho, se transforma em fora produtiva
(REICH, 1977, p. 107). Parece-nos que uma interpretao reichiana do inconsciente pode se adequar muito bem vinculao desse termo a uma perspectiva polt ica. 4 Tal o balano que Freud, em Alm do princpio de prazer, apresenta como as diferentes metas
imediatas da tcnica psicanaltica para se atingir o objet ivo teraputico (FREUD, 2006, pp. 144 -155).
-
3
conseguia pensar a efetividade de um todo a partir de seus elementos, no , apenas,
uma forma da falsa conscincia, mas um sintoma de contradies objetivas que ainda
permanecem nos dias atuais, sendo uma das leis que regem a vida social e cultural
reificada. Dessa forma, podemos dizer que a categoria da efetividade mecnica
heuristicamente importante, j que retm uma validade sincrnica.
Quanto efetividade de tipo expressivo, ela alegrica e, assim, resgata a teoria
da interpretao medieval. Se entendermos, com Althusser, que a causalidade
expressiva uma relao em que o todo seja reduzido a uma essncia interior, de modo
que o princpio dessa essncia se encontra presente em cada ponto do todo, essa
causalidade uma alegoria interpretativa, pois, explica Jameson, uma seqncia de
eventos lida em termos de uma narrativa-mestra oculta. Em se tratando de sistemas
alegricos, o autor de O inconsciente poltico coloca que o sistema medieval oferece
quatro sentidos para um texto, de maneira que esse sistema original, pois abre o texto
para mltiplos significados, preservando a literalidade do texto original e, ainda, o
mesmo sistema instrutivo para a nossa contemporaneidade, j que, equacionando essa
multiplicidade de sentidos, no ope liberdade de interpretao a interpretaes
fechadas, mas as equaciona. De qualquer forma, a causalidade expressiva, com seu veio
alegrico, no se refere simplesmente ao idealismo hegeliano, como quer Althusser,
mas, pondera Jameson, a quaisquer interpretaes que assimilem nveis de interpretao
uns aos outros. Dessa forma, podemos afirmar que a causalidade expressiva uma
forma de interpretao alegrica, alm de se encontrar, tal com a causalidade mecnica,
dentro da nossa realidade histrica5.
A seguir Jameson, Althusser pode ter sua formulao acerca da histria e sua
crtica causalidade expressiva revisadas de maneira positiva. Jameson explica que
Althusser no chega concluso segundo a qual a Histria um texto, ou que o
referente no existe, ao contrrio, dado que a histria seja casa ausente, pode-se
dizer que ela no um texto, nem narrativa, mas que nos acessvel, apenas, sob a
forma textual. Quanto causalidade, o alvo de Althusser no a noo de mediao,
mas, explica Jameson, a noo estrutural da homologia, isomorfismo ou
5 Jameson apresenta os quatro sentidos da exegese crist: o anaggico, relacionado a uma leitura poltica
(significado coletivo a Histria); o moral, uma leitura psicolgica relacionada ao sujeito individual; o alegrico, isto , uma chave alegrica ou cdigo interpretativo; e o literal, relacionado ao referente
histrico ou textual. A inda que os dois primeiros no nos sejam acessveis hoje, o esquema, tomado com
um todo, no deixa de ser instrutivo. Sistemas interpretativos alegricos tambm se encontram presentes
no marxis mo vulgar, com sua diviso entre superestruturas e infra-estrutura. (JAMESON, 1992, pp.28-
29).
-
4
paralelismo estrutural, a qual, alm de esttica e anti-histrica, postula uma mesma
estrutura para realidades bastante diferentes (como a situao social, a posio filosfica
e a prtica verbal, quando relacionadas a uma suposta mesma estrutura). Dessa forma,
a histria no recebe a apreciao que pode ser vista em variantes de ps-modernismos
os quais afirmam que ela s texto, e a causalidade expressiva pode ser reconsiderada,
sem se posicionar em oposio mediao 6.
Uma causalidade estrutural ope-se causalidade expressiva. De acordo com
Jameson, a totalidade, tal como Lukcs a entende, um mtodo crtico e negativo,
que pode servir de instrumento para desmascarar as estratgias de conteno,
confrontando-as com o ideal de totalidade que elas mesmas reprimem. Essa noo de
totalidade recai, explica Jameson, na noo althusseriana da Histria como causa
ausente, uma vez que a totalidade no suscetvel de representao, nem acessvel
sob a forma de uma verdade essencial. A totalidade, no mbito do expresso, valoriza,
contudo, a forma orgnica, uma vez que projeta uma obra de arte como um todo
ordenado. Dado que a causalidade expressiva deve, tal como afirma Jameson, buscar
falhas e descontinuidades dentro da obra, essa causalidade estrutural ter como objetivo
a exploso do texto, de modo que ele, de aparentemente unificado, revele-se em
elementos conflitantes e contraditrios, j que tal causalidade busca encontrar falhas e
descontinuidades dentro da obra. Dessa forma, podemos entender que a causalidade
estrutural focaliza o que h de rarefeito, descontnuo, esquizofrnico na obra.
Essas trs causalidades no so, contudo, estanques, unificando-se numa crtica
totalizadora cuja condio transcendental a imanncia dialtica. Jameson explica
que pelo conceito de cultura, seja com Marx ou Althusser, a exegese de um texto no
se limitar ao que lhe descontnuo e heterogneo, pois a constatao desses elementos
to-somente um momento exegtico, cuja interpretao deve avanar para interligar as
heterogeneidades e incomensurabilidades do texto, estabelecendo-se, assim, uma crtica
totalizadora. Embora essa crtica totalizadora recorra a esferas e/ou nveis exteriores ao
texto, ela , explica Jameson, apenas, provisoriamente, transcendente, porquanto,
dialeticamente, o contedo aparentemente externo re- inserido no processo de leitura.
Dessa forma, a crtica totalizadora tem como condio de possibilidade reunir,
6 De fato, a mediao , para Jameson, uma forma de causalidade expressiva (JAMESON, 1992, p.37).
-
5
dialeticamente, fatores internos e externos ao texto, no sendo possvel que ela v alm,
nem aqum, dessa re- insero dialtica de elementos exteriores ao texto7.
A nova hermenutica que Jameson erige no se confunde com o sistema
interpretativo mais influente dos tempos recentes. De acordo com o filsofo, esse
sistema a psicanlise, cujo estmulo, de to forte, possibilitou a colocao do modelo
freudiano a servio de sistemas totalmente distintos. Deve-se notar, ressalta Jameson,
que o desejo, ou seja, a satisfao do anseio, o eixo central em torno do qual gira
esse sistema interpretativo. Tal sistema, contudo, , apenas, indiretamente til ao
inconsciente poltico, pois, explica Jameson, o desejo permanece enclausurado numa
problemtica do sujeito individual, o que muda com Lacan, que leva essa problemtica
ao questionamento, mas, ressalta Jameson, a represso e a revolta, eventos narrativos da
teoria do desejo, devero ser compatveis com uma perspectiva marxista. Dessa forma,
podemos dizer que o inconsciente poltico no se confunde com a teoria do desejo,
em Freud, j que ela isola o indivduo em sua biografia, nem com a reescritura lacaniana
de Freud, j que o desejo deve ser compatvel com a liberao e a transfigurao
libidinal, proporcionadas pelo marxismo8.
7 Falamos, neste pargrafo, de condio transcendental, entendo esse termo tal como Kant exp lica o
modo de conhecimento de objetos, o qual deve ser possvel a priori (KANT, 2000, p. 65), ou seja, como
condio de possibilidade. Ademais, parece-nos oportuno lembrar que a operao de totalizao dos
elementos heterogneos assemelha-se apreenso verdadeira descrita por Hegel na Fenomenologia do esprito, pois, em comparao interligao entre as coisas, de tal modo que Se a co isa determinada
mais exatamente como este pedao de papel, ento todo e cada papel um este pedao de papel (...) (HEGEL, 1974, p. 68), podemos entender que os elementos heterogneos de um texto, que so singulares,
tambm no so isolados, mas, imanentemente, so interligados entre si, alm de o serem com outros que
lhes so exteriores, com os quais passam a travar relaes dialticas. A propsito, digno de nota que o
pensamento de Hegel colocado, por Jameson, em termos totalmente distintos dos que ele costuma ser
apresentado, como fica claro no atinente teoria da identidade, contra a qual, a seguir Jameson, Hegel
investe (JAMESON, 1992, p. 47). 8 Jameson, no incio do captulo A interpretao, do qual temos nos ocupado, afirma que o esprito do
seu trabalho contm a fora do argumento de Deleuze e Guattari, mostrado no livro Anti-dipo, j que
esses autores pretendem atacar a interpretao freudiana, que reduz a totalidade rica e aleatria da
realidade a termos pr-limitados da narrativa familiar (JAMESON, 1992, p. 19). Mas, diferentemente
desses autores, Jameson interessa-se pela elaborao de um modelo hermenutico novo (JAMESON,
1992, p. 20). H, portanto, um dilogo crtico com a filosofia de Deleuze -Guattari, que tambm pode ser
visto no atinente crtica contra a teoria do desejo em Freud. Nesse sentido, sabemos, pelo mesmo liv ro
citado de Deleuze e Guattari, como esses pensadores discordam da descrio freudiana do inconsciente,
pois, explicam eles, As noes fundamentais de economia do desejo, trabalho e investimento conservam toda a sua importncia na psicanlise , mas subordinadas agora s formas de um inconsciente expressivo e j no s formaes do inconsciente produtivo (DELEUZE e GUATTARI, 1966, p. 57).
Embora Jameson possa concordar com a crt ica desses autores contra a subordinao do desejo esfera
familiar, diferentemente deles, para os quais Lacan, assim como Freud e Jung, permanece no dogma da
psicanlise, qual seja, a figura do papai-mame-eu, permit indo a apropriao, pelo dipo, de toda
produo desejante e de todas as foras produtivas do desejo (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 58), Jameson, contudo, reconhece, numa leitura sutil, a postura lacaniana como um desvio subversivo da
hermenutica freudiana, j que, com Lacan, l-se o questionamento da problemtica do sujeito individual
e da psicobiografia indiv idual, (...) trazendo para o primeiro p lano a categoria do sujeito e estudando o
-
6
imperativo que o inconsciente poltico reflita sobre o desejo, tendo como
propedutica o trabalho de Northrop Frye. Se, como diz Jameson, danoso que o desejo
fique encerrado no sujeito individual, faz-se necessrio buscar alternativas s categorias
individuais e aos modelos de interpretao, pois transcender essas categorias e modelos
(...) de muitas formas, a questo fundamental para qualquer doutrina do inconsciente
poltico, da interpretao em termos do coletivo ou associativo (JAMESON, 1992, p.
62). A seguir Jameson, o sistema de arqutipos de Frye interessante e radical, pois
concebe a formao da cultura em termos sociais e estabelece conseqncias
interpretativas sociais tomando a religio como representao coletiva.
O trabalho propedutico de Frye , contudo, falacioso, tendo em vista a
hermenutica social do inconsciente poltico. Dado que, para Frye, as figuras
religiosas tornam-se espao simblico de auto-celebrao da coletividade, a literatura
deveria ser lida como meditao simblica sobre o destino da comunidade, mas Frye,
explica Jameson, permite que o vnculo poltico se rompa, na medida em que, nas
quatro fases, inscritas na sua teoria dos smbolos, existe uma figurao contida no
arranjo dos nveis alegricos a qual no implica nada alm do corpo csmico, deixando,
assim, o contedo coletivo da imagem limitado a termos apenas individuais. Dessa
forma, o inconsciente poltico vai de encontro a essa teoria, j que ele elabora uma
hermenutica social, na qual imagens de revoluo libidinal e da transfigurao do
corpo tornam-se figuras coletivas9.
Jameson ocupa-se com as perspectivas do marxismo no sentido de serem
precondies necessrias compreenso literria. Nesse sentido, o filsofo apresenta
trs horizontes para a inteligibilidade dos textos literrios. Em primeiro lugar, o objeto
de estudo tomado como expresso literria individual, mas apreendido como ato
simblico. Dado o modelo interpretativo do mito de Claude Lvi-Strauss, a eficcia
simblica de um texto, explica Jameson, deve ser orientada de maneira a apreend- lo
como uma estrutura determinada de contradies, j que a narrativa individual deve ser
apreendida como a resoluo imaginria de uma contradio real. Assim, a forma
processo por meio do qual essa realidade psquica o consciente (...) tornou-se rigorosa e imps limites noo freudiana de satisfao individual (JAMESON, 1992, p. 60). 9 Jameson explica que Frye reestrutura os quatro nveis medievais de interpretao em termos de quatro
fases, chamadas por Frye de: literal e descritiva; formal; mt ica ou arquetpica; e anaggica. Frye,
contudo, no segue o sistema cristo, que, explica Jameson, , essencialmente, histrico e poltico
(JAMESON, 1992, p. 67).
-
7
esttica ou narrativa deve ser vista como um ato ideolgico, cuja funo dar solues
inventadas ou formais para contradies insolveis 10.
Ainda nesse primeiro horizonte, o texto literrio possui camadas sociais as quais
coordenam, metodologicamente, um mtodo dialtico e uma semitica. A seguir
Jameson, a interpretao, nesse primeiro momento, uma reescritura do texto literrio,
na medida em que ele possa ser visto como reescritura de um subtexto histrico ou
ideolgico anterior, o qual tem sempre de ser construdo, ou reconstrudo. Mas, explica
o filsofo, esse subtexto, local da ideologia, secundrio em relao a outro subtexto,
que local da contradio social. Nesse agremiado de subtextos, pode-se reformular o
retngulo semitico greimasiano com um mtodo dialtico, na medida em que a
articulao das oposies binrias vista como projeo de uma contradio social.
Assim, podemos dizer que a interpretao de um texto literrio dialtico-semitica, o
que faz a anlise semitica prestar servios dialtica11.
A anlise semntica necessria, mas no suficiente, o que implica a noo de
classe social vinculada anlise literria. Passando ao segundo horizonte proposto por
Jameson, o filsofo explica que se deve demonstrar o ideologema, ou seja, (...) a
menor unidade inteligvel dos discursos coletivos essencialmente antagnicos das
classes sociais (JAMESON, 1992, p. 69), j que o horizonte semntico do texto
literrio ampliou-se, de maneira a incluir a ordem social. As classes sociais, contudo,
devem ser definidas como antagnicas, de modo que sua forma constitutiva seja sempre
a oposio entre uma classe dominante e outra trabalhadora, porquanto, dessa forma, o
modelo marxista de classes diferencia-se da anlise sociolgica convencional, que
permite que um subgrupo possa ser estudado isoladamente. Dessa forma, podemos dizer
que esse segundo horizonte estabelece o ponto de vista relacional do antagonismo entre
10
O texto bsico de Claude Lvi-Strauss ao qual Jameson se refere O estudo Estrutural do Mito, no
qual o antroplogo analisa a decorao facial nica dos ndios Cadivu (JAMESON, 1992, p. 70). 11
interessantssima essa reunio de dialtica e semitica, uma vez que, assim, a dialtica, que tanto
um conceito ontolgico quanto epistemolgico, estende-se aos signos semiotizados, evitando que eles se
tornem, meramente, auto-referentes. Essa uma postura que tambm revela o dilogo crtico entre
Jameson e Deleuze-Guattari, j que, como fica claro no livro O que a filosofia?, esses autores apostam
tanto na auto-referncia do conceito filosfico (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 26) quanto na obra de
arte como no mais do que um exis tente em si (DELEUZE e GUATTARI, 1992, pp. 144-145). Aqui,
poderamos, ento, a essa auto-referncia e a essa existncia em si, opor as relaes dialticas nos trs
horizontes propostos por Jameson, os quais so criaes conceituais deste filsofo as quais se definem
numa relao necessariamente social da obra de arte.
-
8
as classes como meio heurstico privilegiado que retira a interpretao de uma anlise
meramente textual12.
O terceiro horizonte implica a reformulao dos conceitos de modo de
produo e revoluo cultural. Nesse horizonte, a leitura de textos deve considerar o
mbito da ideologia da forma, isto , (...) as mensagens simblicas a ns transmitidas
pela coexistncia de vrios sistemas simblicos que so tambm traos ou antecipaes
dos modos de produo (JAMESON, 1992, p. 69). Isso posto, faz-se necessrio rever o
conceito de modo de produo, j que se pode considerar que toda sociedade
historicamente existente constituda pela sobreposio e coexistncia de vrios modos
de produo, ao mesmo tempo, incluindo vestgios de outros. Dessa forma, explica
Jameson, pode-se falar de uma revoluo cultural, quando essa coexistncia torna-se,
visivelmente, antagnica13.
A revoluo cultural o objeto especfico do terceiro horizonte. Dado que, no
texto, seja revelada a dinmica dos sistemas e signos de vrios modos de produo, o
texto reestruturado, na medida em que seja possvel registr- los e apreend-los. Dado
que, em um processo artstico e na formao social, a ideologia da forma se refere
contradio de mensagens especficas dos vrios sistemas de signos coexistentes, a
anlise dessa ideologia no se confunde com a denncia da centralizao analtica na
forma, em detrimento de questes sociais e histricas, pois a anlise da ideologia da
forma deve revelar formas de estruturas arcaicas e recentes de alienao. Assim,
podemos dizer que dar visibilidade a formas de alienao pode ser uma maneira de
resistir reificao, o que vincula a reestruturao do texto Histria como (...)
inexorvel forma dos acontecimentos (JAMESON, 1992, p. 93) 14.
Esses trs horizontes podem guardar semelhanas com a hermenutica do
Dasein, as quais no se confundem com a hermenutica do inconsciente poltico 15. A
12
A noo de ideologema, assim como a de ideologia da forma, que estar presente no terceiro horizonte, criao conceitual jamesoniana que recusa, justamente, uma teoria de auto -referncia para a
anlise de textos literrios. 13
O conceito de ideologia da forma no esttico, pois recebe outras verses que aprofundam essa primeira, como acontece quando, por exemplo, tal conceito aprofundado por meio da questo dos
modos de produo em relao aos signos coexistentes num processo artstico (JAMESON, 1992, pp. 90-91). 14
A Histria, assim concebida, , para Jameson, o reino da Necessidade, impondo limites ao indivduo,
prtica colet iva, mas apreendida, apenas, indiretamente, ou seja, por seus efeitos. 15
Heidegger, talvez, prefira o termo analt ica do Dasein para se referir aos caracteres especficos de ser do Dasein enquanto Da-sein em comparao com os caracteres de ser do que no tem o carter do Dasein,
tal como ele tentou mostrar em Ser e tempo (HEIDEGGER, 2001, p. 148).
-
9
palavra hermenutica possui vrios sentidos16, sendo, assim, um conceito filosfico
de longa histria. fulcral, contudo, o sentido que Heidegger atribui ao termo, pois,
entende o autor de Ser e tempo, ela no se refere a regras de interpretao textual, nem
cincia ou metodologia, mas prpria realidade humana, de modo que a compreenso ,
junto com a disposio, um dos existenciais fundamentais (...) que constituem o ser do
pr, ou seja, a abertura do ser-no-mundo. Toda compreenso guarda em si a
possibilidade de interpretao... (HEIDEGGER, 2001, pp. 218-219). Dado que a
hermenutica social do inconsciente poltico no se refere, apenas, a uma leitura de
texto, ou tcnica de interpretao, porquanto se vincula com o nosso modo de ser no
mundo, a mundividncia que, deste, temos, ela , assim, caudatria da virada
hermenutica heideggeriana. Esse parentesco com Heidegger pode, contudo, no ir
mais longe. Se a hermenutica social do inconsciente poltico no se restringe a uma
tcnica de leitura de textos, ela se mostra engajada, porquanto seu alvo social
claramente estabelecido. Esse engajamento, por sua vez, politicamente orientado, j
que (...) quando trazemos para a superfcie do texto a realidade reprimida e oculta
dessa histria fundamental a da luta de classes que a doutrina de um inconsciente
poltico encontra sua funo e sua necessidade (JAMESON, 1992, p. 18).
guisa de concluso, diremos que essa hermenutica social complica-se na
situao que a literatura ocupa em pases perifricos, onde adquire peculiar
permanncia17. A literatura histrica de duas maneiras, pois, explica Bastos, diz aos
leitores a histria de que parte e um elemento de reproduo da matriz ideolgica da
subjetividade. Assim, a literatura contribui para preservar as condies ideolgicas da
hegemonia burguesa, pois sua permanncia (e sua mundializao) a permanncia da
matriz ideolgica em que ela foi gerada (e aqui ela produto) e que ela ajuda a
preservar (como produtora de histria) (BASTOS, 1998, p. 127). Por outro lado, h
fatores de emancipao, formulados na modernidade, que ensejam a auto-crtica da
literatura enquanto instituio. Assim, a literatura tanto reproduz sua matriz ideolgica
quanto se faz como crtica da cultura.
16
Palmer, por exemplo, arrola trs orientaes para o termo em questo, enquanto dizer, explicar e
traduzir, alm de especificar a hermenutica enquanto teoria da exegese bblica, metodologia filolgica, cincia da compreenso lingstica, metodologia para as geisteswissenschaften, fenomenologia do Dasein e fenomenologia da compreenso existencial (PALMER, 1996, pp. 23-54).
17
Usaremos a noo de permanncia que desenvolvida pelo crtico literrio e filsofo Hermenegildo Bastos em artigo intitulado de A permanncia da literatura (d irees da prtica literria na era do
multiculturalismo e da indstria cultural), publicado na revista Cerrados, n8, ano 7, 1998.
-
10
A seguir Bastos, h vrias dicotomias surgidas na modernidade, mas duas so
fundamentais, quais sejam, verdade/falsidade e objetividade/subjetividade, pois os
elementos iniciais desse pares caracterizam a cincia, ao passo que a literatura
caracterizada pelos outros elementos, falsidade e subjetividade, os quais foram aceitos
pela institucionalizao da literatura. Por outro lado, a literatura pode questionar essas
dicotomias, na medida em que problematiza a sua ficcionalidade e a subjetividade. Isso
posto, a literatura que empreende tal questionamento configura um desejo de auto-
extermnio, mas essa literatura, tambm, acata as determinaes que pretende destruir.
Dessa forma, a literatura ambivalente18.
Bastos entende que o texto literrio um discurso de reutilizao cuja auto-
representao aponta para a estrutura social que a tornou possve l e necessria, j que o
fato de esse discurso apontar para as suas marcas textuais decorre da utilizao que os
participantes da comunidade literria fazem desse discurso. Isso implica relaes
interculturais ligadas literatura, pois ela no universal, dada a diferena no repertrio
do que se afirma, hoje em dia, ser a literatura, em comparao com ao que se dizia em
outras pocas, alm do fato de a literatura ser dependente de um dado tipo de prtica
discursiva. Dessa forma, a literatura carece de se legitimar19.
O que permitiu a literalizao de outras prticas expressivas foi, ressalta Bastos,
a europeizao do mundo. Essa europeizao implica o problema do colonialismo, j
que ela o processo de imposio da modernidade. A modernidade, contudo, tambm
enseja uma dupla crtica, da modernidade e da modernizao imposta, j que, com a
modernidade, a colonizao torna-se um problema e caracterizada com violncia.
Assim, h uma contradio fundamental: se a preservao da literatura se insere no
movimento geral de reproduo das condies de poder, ela tambm um espao de
crtica e de resistncia instrumentalizao (BASTOS, 1998, p. 133).
A periferia no , adverte Bastos, passiva, na histria da europeizao, pois todo
centro, para firmar-se como tal, precisa criar sua periferia, de modo que os colonizados
acabamos por dar Europa a condio de centro. Essa constitutividade perifrica do
centro est representada na prpria polifonia do romance, a qual, explica Bastos,
permite que se ouam vozes que nele, e fora dele, contradizendo-se e antagonizando-se.
Desse modo, a literatura pode estabelecer um antagonismo frente histria dominante.
18
Bastos exemplifica que Dom Quixote , ao mesmo tempo, uma obra que marca o autoquestionamento
da literatura e uma das grandes obras da literatura (BASTOS, 1998, p. 130). 19
Bastos infere da literatura, enquanto prtica discursiva, sem legit imao, uma dimenso metaliterria da
literatura (BASTOS, 1998, p. 133).
-
11
A literatura est em condies dilemticas de acriticidade, mas ela permanece,
em seu autoquestionamento. A seguir Bastos, a discusso acerca da autonomia da arte
pode apresentar uma estrutura dilemtica, pois, havendo duas alternativas, quais sejam,
a literatura manter-se como autnoma, ou dissolver-se na vida cotidiana, a criticidade e
o combate da literatura so refreados em ambos os casos. Ainda assim, essa aporia ,
tambm, a sada, pois, explica Bastos, se, por um lado, a literatura permanece,
reafirmando valores sacralizados, por outro, ela se deseja como diferena, a qual pode
ser encontrada na elaborao da escritura para a produo de um estranhamento do
mundo, questionador da prpria literatura. Assim, a permanncia da literatura se d na
medida em que ela possa morrer (BASTOS, 1998, p. 140).
Dizamos que a hermenutica social de Jameson complica-se com a situao
da literatura em regio perifrica, luz da noo de permanncia de Bastos. Tal
complicar-se no se deve ao que pode ou no refutar o inconsciente poltico, deve-
se ao fato de que Bastos revela a instabilidade existencial da literatura que imane da sua
condio ambivalente, antagnica e aportica20. Se a literatura, na iminncia de se
diluir, tem a sua forma de presena encaminhada para o seu auto-extermnio, ento os
trs horizontes que perfazem a hermenutica social no lidam, apenas, com o ato
simblico, o ideologema e a ideologia da forma, mas com a iminncia de auto-
diluio e auto-extermnio da literatura21.
Se for assim, a interpretao de um texto literrio poderia considerar esse
tnatos da literatura como mais um horizonte interpretativo, uma vez que no se
deseje que a hermenutica transcenda a condio instvel da literatura, ou, falando
kantianamente, o seu horizonte transcendental, que negativo, o que nos sugere um
horizonte hermenutico negativo, incluindo, como categoria de interpretao, o
potencial suicida literrio, ou a literatura em direo ao seu auto-extermnio, e o
potencial heterocida contra o literrio, ou a iminncia de a literatura diluir-se, no
contexto da sua permanncia autoquestionadora.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
20
No dizemos existencial no sentido de existencialismo ou filosofia da existncia, mas, to-somente, no sentido de ser relativo ou pertencente existncia (HOUAISS, 2001, p. 1285). 21
A concluso de Bastos radical: A literatura permanece mas sempre na iminncia de se diluir. Esta negatividade a nica forma de sua lucidez, sempre agnica. Ela pode se diluir, ou na indstria cultural,
ou na literatura institucionalizada. Permanece enquanto se encaminhar na direo do auto -extermn io
(BASTOS, 1998, p. 140).
-
12
BASTOS, Hermenegildo. A permanncia da literatura (direes da prtica literria na
era do multiculturalismo e da indstria cultural). In: Cerrados, revista do curso
de ps-graduao em literatura. Braslia: Editora Universidade de Braslia, n 8,
ano 7, 1998.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. O que a filosofia? Lisboa: Editorial
Presena, 1992.
___________________________________. O anti-dipo: capitalismo e esquizofrenia.
Lisboa: Editora Assrio & Alvim, 1995.
FREUD, Sigmund. O inconsciente. In: Escritos sobre a psicologia do inconsciente.
Rio de Janeiro: Editora Imago, 2006, volume II.
_______________. Alm do princpio do prazer. In: Escritos sobre a psicologia do
inconsciente. Rio de Janeiro: Editora Imago, 2006, volume II.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A fenomenologia do esprito. In: Os pensadores.
So Paulo: Abril Cultural, 1974.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrpolis: Editora Vozes: 2001, parte I.
__________________. Seminrios de Zollikon. Petrpolis: Editora Vozes, 2001.
HORNBY, A. S. Oxford advanced learners dictionary of current english. London:
Oxford University Presss, 1974.
HOUAISS, Antnio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionrio houaiss da lngua
portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
JAMESON, Fredric. A interpretao: a literatura como ato socialmente simblico. In:
O inconsciente poltico: a narrativa como ato socialmente simblico. So Paulo:
Editora tica, 1992.
KANT, Immanuel. Crtica da razo pura. In: Os pensadores. So Paulo: Editora Nova
Cultural, 2000.
PALMER, Richard. Hermenutica. Lisboa: Edies 70, 1996.
REICH, Wilhelm. Materialismo dialtico e psicanlise. Lisboa: Editorial Presena,
1977.