o inconsciente jurídico
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Traumas do sex XXTRANSCRIPT
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O INCONSCIENTE JURIacuteDICO
Julgamentos e Traumas no seacuteculo XX
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O livro eacute a porta que se abre para a realizaccedilatildeo do homem
Jair Lot Vieira
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Shoshana Felman
O INCONSCIENTE JURIacuteDICO
Julgamentos e Traumas no seacuteculo XX
Traduccedilatildeo Ariani Bueno SudattiDoutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP
Poacutes-doutora em Letras pela Unicamp
Prefaacutecio Maacutercio Seligmann-Silva
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1ordf Ediccedilatildeo 2014
Copyright copy 2002 by the President and Fellows of Harvard CollegeAll rights reserved
ldquoPublished by arrangement with Harvard University Pressrdquo
copy desta traduccedilatildeo Edipro Ediccedilotildees Profissionais Ltda ndash CNPJ nordm 476409820001-40
Todos os direitos reservados Nenhuma parte deste livro poderaacute ser reproduzida ou transmi-tida de qualquer forma ou por quaisquer meios eletrocircnicos ou mecacircnicos incluindo fotocoacutepia
gravaccedilatildeo ou qualquer sistema de armazenamento e recuperaccedilatildeo de informaccedilotildees sem permissatildeopor escrito do Editor
Editores Jair Lot Vieira e Maiacutera Lot Vieira MicalesCoordenaccedilatildeo editorial Fernanda Godoy TarcinalliRevisatildeo teacutecnica Bruno Mendes dos SantosRevisatildeo Fernanda Godoy TarcinalliDiagramaccedilatildeo e Arte Karine Moreto Massoca e Heloise Gomes Basso
Dados Internacionais de Cata logaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)(Cacircmara Brasileira do Livro SP Brasil)
Felman ShoshanaO inconsciente juriacutedico julgamentos e traumas no seacuteculo XX Shoshana Felman traduccedilatildeo
Ariani Bueno Sudatti prefaacutecio Maacutercio Seligmann-Silva ndash Satildeo Paulo EDIPRO 2014
Tiacutetulo original The juridical unconscious trials and traumas in the twentieth century
Bibliografia
ISBN 978-85-7283-796-5
1 Direito - Aspectos psicoloacutegicos 2 Direito na literatura 3 Julgamento - Histoacuteria - Seacuteculo 20 -Aspectos psicoloacutegicos I Seligmann-Silva Maacutercio II Tiacutetulo
13-13748 CDU-34(04)
Iacutendices para c ataacutelogo sistemaacutetico1 Direito Ensaios 34(04)
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L 17
I 211 O
O dilema de justiccedila em Walter Benjamin 39
2 F Narrativas traumaacuteticas e repeticcedilotildees juriacutedicas no caso O J Simpson e em
A sonata a Kreutzer de Tolstoi 89
3 T Arendt em Jerusaleacutem o julgamento de Eichmann e a redefiniccedilatildeo do signi-ficado juriacutedico na esteira do holocausto 149
4 U A morte e a linguagem do direito 187
R 229
Iacute 249
S
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P Maacutercio Seligmann-Silva
Trauma lei e literaturao olhar criacutetico de Shoshana Felman sobre o Direito
Shoshana Felman eacute sem duacutevida uma das criacuteticas e teoacutericas da literatura mais
influentes no panorama atual Sua obra vem inspirando diversos autores e apontando
para novas abordagens da literatura e da cultura de um modo geral nas quais ela faz
convergir seu erudito saber literaacuterio e filoloacutegico com seu competente domiacutenio dapsicanaacutelise dialogando ainda como vemos aqui de modo muito competente com os
estudos juriacutedicos Assim desde o iniacutecio dos anos 1990 ela foi ao lado de Cathy Ca-
ruth uma das principais responsaacuteveis pelo estabelecimento dos ldquoestudos de traumardquo
que ateacute hoje tecircm multiplicado de modo muito criativo a leitura e a interpretaccedilatildeo de
fenocircmenos culturais sobretudo a partir do processo histoacuterico violento e catastroacutefico
que culminou nas grandes guerras do seacuteculo XX e se estende ateacute nossos dias
O presente ensaio eacute uma aposta muito bem sucedida em outros encontros inter-
disciplinares natildeo menos profiacutecuos e absolutamente atuais Estudos literaacuterios psica-
naliacuteticos e teoria do Direito encontram-se aqui para lanccedilar uma luz inusitada sobre
os verdadeiros noacutes buracos negros da histoacuteria da cultura moderna e notadamente
do seacuteculo XX Partindo de autores como Freud Walter Benjamin Levinas e Hannah
Arendt postos em diaacutelogo com Tolstoi Zola Kafka entre outros a autora vai apre-
Doutor em Teoria Literaacuteria pela Universidade Livre de Berlim poacutes-doutor pela Universidade de Yale eprofessor livre-docente de Teoria Literaacuteria na Unicamp Entre outros eacute o autor de O Local da Diferenccedila (Editora 34 2005) vencedor do Precircmio Jabuti na categoria Melhor Livro de TeoriaCriacutetica Literaacuteria 2006
e foi professor visitante em Universidades no Brasil na Alemanha na Argentina e no Meacutexico De Felman jaacute se encontra publicado no Brasil um importante ensaio que permite uma boa introduccedilatildeo
no seu universo temaacutetico e teoacuterico FELMAN Shoshana Educaccedilatildeo em crise ou as vicissitudes do en-sino In NESTROVSKI Arthur SELIGMANN-SILVA Maacutercio (Orgs) Cataacutestrofe e representaccedilatildeo SatildeoPaulo Escuta 2000
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sentar e analisar os traumas sociais coletivos que estruturam nossas sociedades Seu
locus privilegiado neste estudo eacute o da caixa de ressonacircncia dos tribunais Felman
adentra a cena do tribunal o ldquoteatro da justiccedilardquo para flagrar natildeo o triunfo da razatildeo
e da justiccedila mas sim o momento em que os traumas sociais satildeo aiacute reencenados
postos em accedilatildeo e via de regra reafirmados Ao inveacutes de encarar o tribunal e a cena
do julgamento como local de uma catarse social curativa ou seja de resoluccedilatildeo dos
conflitos Felman nos ensina a vecirc-los como oportunidades para maior explicitaccedilatildeo
dos traumas ndash individuais e coletivos ndash e de seus entrecruzamentos Todavia essa
explicitaccedilatildeo ou mise en action dos traumas natildeo estaacute voltada para a sua elaboraccedilatildeo
criacutetica mas antes presta- se a reproduzir e aprofundar os mesmos e ainda silenciar
as suas demandas de representaccedilatildeoO tiacutetulo deste livro natildeo deixa de remeter ao conceito freudiano de inconsciente
e agrave sua reelaboraccedilatildeo feita por Walter Benjamin Em seu ensaio sobre ldquoA obra de arte
na era de sua reprodutibilidade teacutecnicardquo Benjamin afirmara com relaccedilatildeo ao cinema
que com essa teacutecnica ldquoentra em accedilatildeo a cacircmera com seus meios auxiliares ndash seu
descer e subir seu interromper e isolar sua dilataccedilatildeo e compressatildeo do ocorrido seu
ampliar e reduzir Somente por meio da cacircmera chegamos a conhecer o inconsciente
oacuteptico assim como conhecemos o inconsciente pulsional por meio da psicanaacuteliserdquo
Felman por sua vez mostra de que maneira podemos perceber os tribunais e os jul-gamentos juriacutedicos como uma via privilegiada de acesso aos traumas sociais funcio-
nando tambeacutem como uma lupa ou seja uma lente que aproxima e dilata as fissuras
da sociedade Nessa cena os testemunhos desempenham um papel fundamental
Na teoria literaacuteria o conceito de testemunho desempenha um papel central para
se entender o processo histoacuterico com sua violecircncia estrutural sobretudo a partir do
seacuteculo XX era tanto de genociacutedios guerras e grandes perseguiccedilotildees em massa como
tambeacutem de afirmaccedilatildeo dos direitos humanos Mas esse testemunho no tribunal estaacute
bloqueado marcado pela sua proacutepria impossibilidade O teatro do direito (e natildeotanto o teatro da justiccedila) apenas aparentemente abre-se para a voz das testemunhas
Na verdade a violecircncia institucional que alicerccedila o direito silencia e oprime essas
vozes Mais do que isso simbolicamente a proacutepria sala de tribunal com sua pom-
posidade e com as hierarquias reforccediladas pelas roupas pelos coacutedigos discursivos e
de conduta pela presenccedila de ldquoautoridadesrdquo reproduz uma estrutura de poder so-
cialmente injusta e desigual e revela que o direito e a lei satildeo colunas fundamentais
que sustentam essa mesma estrutura Essa instacircncia que se quer imparcial e digna
de mediar os conflitos entre as partes eacute na verdade cega para as questotildees subjetivas
para os traumas e dramas sociais que estatildeo ali no meio da sala do tribunal mas satildeo
ao mesmo tempo obliterados e emudecidos
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Felman vai tomar o testemunho de um sobrevivente de Auschwitz que sucumbe
no momento de seu depoimento e entra em coma durante o julgamento de Eichmann
como o momento paradigmaacutetico para percebermos essa incomensurabilidade entre o
direito e o trauma Voltaremos a essa cenaPara Benjamin como lemos em seu ensaio de 1921 ldquoZur Kritik der Gewaltrdquo
(ldquoPara uma criacutetica do poderviolecircnciardquo) assim como para seu contemporacircneo Kafka
existe uma forccedila violenta miacutetica que dormita no direito Esfera juriacutedica e justiccedila
aleacutem de natildeo terem nada a ver uma com a outra seriam antes forccedilas antagocircnicas
Benjamin destaca o elemento sacrificial do direito que se manifesta de modo claro
na possibilidade de instituiccedilatildeo da pena de morte O final do romance O processo de
Kafka que encena a execuccedilatildeo fria e absurda do reacuteu K ndash que sequer teve apresentada
a sua culpa ou fora condenado por qualquer crime ndash eacute outra das cenas que Felman
retoma neste ensaio para nos falar dessa forccedila sacrificial Ela aproxima essa passagem
literaacuteria da traacutegica trajetoacuteria de Walter Benjamin que na fronteira entre a Espanha e
a Franccedila deu cabo de sua proacutepria vida impedido de seguir em sua fuga da Gestapo
por falta de um visto em seu passaporte Dramas pessoais e literaacuterios explicitam o
elemento traumaacutetico do inconsciente juriacutedico Literatura (Kafka) e histoacuterias de vida
(Benjamin) se unem para compor essa contraleitura do significado do direito Assim
como na famosa paraacutebola kafkiana ldquoDiante da leirdquo em que um camponecircs eacute barrado
diante da porta da lei e laacute permanece sem poder entrar ateacute a sua morte do mesmo
modo lembra Felman Benjamin sucumbiu na fronteira na porta que poderia levaacute-lo
agrave liberdade pela simples ausecircncia de um carimbo (para aleacutem dos vaacuterios outros vistos
que jaacute havia conseguido em seu passaporte)
De resto uma das questotildees fundamentais que a autora enfrenta eacute justamente o
bloqueio cultural agraves questotildees ldquopessoaisrdquo na cena do tribunal que poderiam servir de
ponte aos traumas sociais coletivos Para ela existiria um abismo entre o direito e a
representaccedilatildeo dessas questotildees No caso do famoso julgamento de O J Simpson
divulgado nos EUA como sendo ldquoo julgamento do seacuteculordquo ela lecirc o confronto de dois
dramas e traumas que se embatem no tribunal um apagando o outro trauma de
gecircnero (violecircncia contra a mulher) e trauma de raccedila (violecircncia contra os afrodescen-
dentes) A imagem do rosto da ex-esposa de O J Simpson com marcas de espanca-
mento as gritantes evidecircncias da violecircncia de gecircnero (na cena do crime e na histoacuteria
do casal) natildeo foram levadas em conta no julgamento Antes ele foi guiado pelo medo
social de se repetir a terriacutevel tradiccedilatildeo norte-americana de perpetraccedilatildeo de uma ldquojus-
Trata-se do julgamento do famoso jogador de futebol americano Orenthal James Simpson que foi acusadode assassinar em 1994 a ex-esposa Nicole Brown Simpson e seu amigo Ronald Goldman A fuga espetacu-lar de Simpson foi televisionada para todo o mundo e seu julgamento em 1995 foi considerado ldquoo julga-mento do seacuteculordquo tendo sido assistido por mais da metade da populaccedilatildeo norte-americana Nessa ocasiatildeoele foi absolvido pelos dois crimes por um tribunal de juacuteri
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ticcedila brancardquo que condena reacuteus afrodescendentes como meio de reforccedilar estereoacutetipos
escravocratas racistas e de violecircncias seculares
Por outro lado a autora recorre a Tolstoi e agrave sua magistral novela A sonata a
Kreutzer mostrando como nessa peccedila literaacuteria a violecircncia de gecircnero apresentada nofinal do seacuteculo XIX jaacute se mostrava tatildeo ominosa quanto no final do seacuteculo seguinte
O protagonista dessa novela confessa ter assassinado a esposa e apresenta esse crime
como algo que escapou inteiramente agrave justiccedila institucional ndash jaacute que o direito o absol-
veu A diferenccedila fundamental com relaccedilatildeo ao julgamento de O J Simpson eacute que na
literatura toda a trama de encobrimento da violecircncia de gecircnero intriacutenseca agraves relaccedilotildees
matrimoniais eacute esmiuccedilada e posta agrave luz do dia A literatura tira o manto de hipocrisia
que cobre a realidade da violecircncia que dormita nas relaccedilotildees de gecircnero e de um modo
geral nas relaccedilotildees sociais fazendo justiccedila agrave elaboraccedilatildeo criacutetica do trauma No caso es-
peciacutefico dessa violecircncia de gecircnero intra-matrimocircnio a casa o lar a famiacutelia satildeo vistos
como o local de um mal-estar ndash como Freud jaacute havia revelado
Felman ao entrecruzar direito psicanaacutelise e literatura mostra-nos como a esfera
subjetiva eacute esmagada pelo direito na mesma medida em que recebe um local um
espaccedilo na literatura E eacute justamente a partir da esfera subjetiva que o direito e a estru-
tura de poder satildeo desconstruiacutedos criticamente Mas a autora natildeo desdobra um tipo
de pensamento maniqueiacutesta que simplesmente opotildee o inferno juriacutedico a um eventualparaiacuteso literaacuterio Pelo contraacuterio ela estaacute atenta agraves ambiguidades dessas instacircncias
Assim o tribunal de Nuremberg por exemplo eacute visto tanto como um tribunal que
reiterou a forccedila e a violecircncia dos vencedores como tambeacutem deve ser visto como um
momento fundamental na instituiccedilatildeo dos ldquocrimes contra a humanidaderdquo Mais do
que isso ainda e essa eacute a originalidade da leitura da autora nesse julgamento pela
primeira vez convocou-se um grande trauma social coletivo (a violecircncia extrema
contra os judeus) ao tribunal A histoacuteria adentrou a corte Jaacute K-Zetnik sobrevivente
do nazismo um escritor e literato conhecido por produzir uma densa literatura sobreAuschwitz foi a testemunha que sucumbiu no julgamento de Eichman Essa cena
mostra como a literatura colapsou diante do tribunal e como seu testemunho se daacute
em outro niacutevel A reflexatildeo de Felman traz agrave discussatildeo do tema o famoso Jrsquoaccuse [Eu
acuso] de Zola A literatura mostra Felman presta um testemunho avant la lettre
quanto agraves (in)justiccedilas dos tribunais seja Tostoi com relaccedilatildeo a O J Simpson seja Zola
e seu Eu acuso com relaccedilatildeo ao julgamento Eichmann seja Kafka e seu ldquoDiante da leirdquo
com relaccedilatildeo a Benjamin
Tambeacutem na antiga trageacutedia podemos ver a literatura servindo de testemunho doinconsciente juriacutedico Muitos estudiosos jaacute destacaram a continuidade entre a cena
dos tribunais e a da trageacutedia grega com suas duas partes confrontando-se e tendo
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a ldquojusticcedilardquo no seu horizonte Refiro-me aqui sobretudo agrave Oresteia de Eacutesquilo uma
trilogia na qual assistimos a Agamenon ser assassinado por sua esposa Clitemnestra
que em seguida eacute assassinada por seu filho Orestes que por sua vez na terceira
trageacutedia eacute absolvido desse seu crime no tribunal inaugural fundador do direito
positivado no Monte Ares julgamento este presidido por ningueacutem menos que Palas
Atena A deusa representa aiacute o direito instituiacutedo que se une agraves Fuacuterias prometendo
manter a ordem A ordem do direito lembrava Benjamin no anteriormente referi-
do ensaio necessita de um poder ameaccedilador (ldquoDie rechterhaltende Gewalt ist eine
drohenderdquo) Esta ideia faz-nos lembrar justamente da seguinte passagem da trageacutedia
Eumecircnides a terceira da trilogia quando Palas Atena define a nova ordem juriacutedica
que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes
Prestai atenccedilatildeo ao que instauro aqui atenienses convocados por mim mesma para julgar pela primeira vez um homem autor de um crime em que foi derramado sangueA partir deste dia e para todo o sempre o povo que jaacute teve como rei Egeu teraacute a incum-becircncia de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares [] Sobreesta elevaccedilatildeo digo que a Reverecircncia e o Temor seu irmatildeo seja durante o dia seja de noiteevitaratildeo que os cidadatildeos cometam crimes a natildeo ser que eles prefiram aniquilar as leisfeitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com efluacutevios turvos as fontes claras natildeoteraacute onde beber) Nem opressatildeo nem anarquia eis o lema que os cidadatildeos devem seguir
e respeitar Natildeo lhes conveacutem tampouco expulsar da cidade todo o Temor se nada tiver atemer que homem cumpriraacute aqui seus deveres
Esse perfil falocecircntrico e patriarcal que eacute dado agrave ordem juriacutedica como aquela que
empunha a espada para existir eacute tambeacutem desdobrado nas falas do tribunal quando
Orestes e seu advogado Apolo empilham prova sobre prova para convencer os jura-
dos quanto agrave inocecircncia do matricida Orestes apela todo o tempo para a figura de seu
pai Agamenon e Apolo por sua vez evoca tambeacutem seu pai Zeus como guardiatildeo da
verdade e da justiccedila Vale lembrar que Atena eacute apresentada nessa trageacutedia como uma
deusa sem matildee nascida diretamente de seu genitor Zeus Orestes acaba absolvido
pelo ldquovoto de Minervardquo ou seja de Palas Atena Por outro lado o parricida Eacutedipo
como sabemos da trilogia de Soacutefocles sobre esse personagem uma vez descobertos
seu crimes ldquoinvoluntaacuteriosrdquo eacute cegado e banido de sua cidade matar a matildee eacute perdoaacutevel
o pai jamais parecem-nos dizer esses protomodelos sociais do Ocidente
Esse convencer objetivo marcado pela comprovaccedilatildeo espetacular de preferecircncia
visual tiacutepico do tribunal deve ser oposto a um outro espaccedilo para recepccedilatildeo do teste-
munho oral muitas vezes fragmentado e carregado de subjetividade Eacute esse espaccedilo
testemunhal que Felman defende aqui destacando os quase insuperaacuteveis limites de
sua acolhida por parte da instituiccedilatildeo juriacutedica Sem organizaccedilatildeo poliacutetica a voz do
testemunho individual e coletivo daqueles que sofreram uma grave injusticcedila social
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ou privada natildeo consegue dobrar o poder do direito Poder esse que se concretiza
simbolicamente nas casas da Justiccedila esses palaacutecios com suas colunas gregas que
parecem ainda ornar templos em homenagem a Palas Atena a quem se sacrificam as
viacutetimas O modo como Felman abre nossos olhos para perceber o condicionamento
reciacuteproco entre trauma e direito e ao mesmo tempo para a forccedila da fala testemu-
nhal ndash apresentada na literatura e em filmes como o Shoah de Lanzmann e Que
bom te ver viva de Luacutecia Murat ndash deve nos inspirar a lutar no sentido de ampliar
na sociedade os espaccedilos de audiccedilatildeo aos traumas pessoais e sociais Essa mudanccedila na
sociedade soacute pode ser compreendida como parte de um longo e intenso processo de
lutas sociais nas quais justamente os testemunhos dos oprimidos se levantam con-
tra a opressatildeo numa tentativa de resistecircncia e de elaboraccedilatildeo do trauma Eacute evidentee este livro o mostra claramente com autores como Kafka Benjamin Dostoievski
Zola e Tolstoi que uma mudanccedila na esfera do direito soacute poderaacute se dar no contexto
de uma sociedade ela mesma transformada com outra estrutura de poder e uma
distribuiccedilatildeo econocircmica menos injusta Mas estabelecer uma criacutetica do direito eacute algo
efetivo que eacute parte dessa luta por uma transformaccedilatildeo mais global da sociedade Nos
templos do direito como nas trageacutedias a justiccedila estaraacute sempre em um longiacutenquo
horizonte O testemunho no seu sentido forte poliacutetico de engajamento criacutetico na
mudanccedila ndash e natildeo em seu sentido positivista que reafirma o poder da esfera juriacutedi-ca tal como se daacute nas salas de tribunal ndash eacute acolhido nas artes e em algumas esferas
puacuteblicas deixando suas marcas na sociedade como um todo e inclusive forccedilando
as barreiras erguidas pelo direito A criacutetica do direito em grande parte soacute eacute possiacutevel
justamente graccedilas agrave articulaccedilatildeo poliacutetica do testemunho na vida social e concreta
Mas se os sem voz e excluiacutedos se os traumas natildeo articulados pessoais comunitaacute-
rios eacutetnicos e sociais eventualmente adentram a corte isso ocorre natildeo por conta de
uma mudanccedila imanente ou de uma abertura democraacutetica da esfera juriacutedica em si
mesma mas antes como fruto de lutas que se desenrolam haacute deacutecadas ndash e mesmoseacuteculos ndash que tambeacutem visam a tirar a venda da Justiccedila
Felman nos lanccedila com esta obra uma seacuterie de questotildees que atingem o acircmago da
instituiccedilatildeo juriacutedica Assim como Freud abalou nossa identidade e visatildeo do que eacute o
ser humano ao revelar o inconsciente psicoloacutegico tambeacutem Felman ao apontar para
o inconsciente juriacutedico reconfigura o direito e seus limites Ambos psicanaacutelise e a
visada de Felman apostam na forccedila da palavra de um logos subjetivado que enfren-
ta as feridas geradas pelo logos totalitaacuterio e monoloacutegico Com essa abertura criacutetica
proposta por este livro percebemos tambeacutem em que medida sua autora conseguiu
de modo raro e exemplar se colocar muito aleacutem de sua disciplina e galgar um espaccedilo
soacutelido para a criacutetica cultural Soacute podemos desejar que esse gesto se multiplique
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Esse gesto tambeacutem aponta para a originalidade da autora dentro da aacuterea dos
estudos em ldquoLaw and Literaturerdquo ou seja das interfaces entre direito e literatura
Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que
a literatura aborda especificamente temas juriacutedicos ao inveacutes de se apoiar nos estudos
literaacuterios para melhor compreensatildeo da hermenecircutica juriacutedica ou ainda de tratar
das implicaccedilotildees juriacutedicas do campo literaacuterio e tradutoacuterio Felman vai muito aleacutem e
busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura
Como vimos para ela tanto o conceito de trauma eacute um importante vaso comunica-
dor entre essas aacutereas como tambeacutem as anaacutelises de Benjamin Levinas e Arendt sobre
os fenocircmenos do direito e da justiccedila servem de chave nessa empresa de estabelecer
um diaacutelogo entre o mundo do direito e o das letras Felman constroacutei uma plataforma
conceitual e filosoacutefica bastante robusta que permite repensar o campo direito e o da
literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa Tambeacutem nesse sentido
este estudo eacute fundamental
Por fim eacute importante destacar a qualidade do trabalho de traduccedilatildeo levado a cabo
por Ariani Sudatti doutora em direito pela FDUSP e tambeacutem formada em Letras pela
Unicamp Essa dupla formaccedilatildeo garantiu o rigor desta empreitada e nos abriu o acesso
a essas preciosas ideias de Felman que devido agrave sua formulaccedilatildeo conceitual exige uma
traduccedilatildeo atenta e cuidadosa capaz de transitar entre as duas aacutereas Soacute posso esperarque este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre noacutes e gere uma reflexatildeo
(auto)criacutetica por parte daqueles que atuam na esfera juriacutedica ou entatildeo que se interes-
sam pelos grandes debates que enfrentam a questatildeo da Justiccedila e do Direito
Berlim 7 de abril de 2013
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Traduccedilatildeo Ariani Bueno SudattiDoutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP
Poacutes-doutora em Letras pela Unicamp
Prefaacutecio Maacutercio Seligmann-Silva
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1ordf Ediccedilatildeo 2014
Copyright copy 2002 by the President and Fellows of Harvard CollegeAll rights reserved
ldquoPublished by arrangement with Harvard University Pressrdquo
copy desta traduccedilatildeo Edipro Ediccedilotildees Profissionais Ltda ndash CNPJ nordm 476409820001-40
Todos os direitos reservados Nenhuma parte deste livro poderaacute ser reproduzida ou transmi-tida de qualquer forma ou por quaisquer meios eletrocircnicos ou mecacircnicos incluindo fotocoacutepia
gravaccedilatildeo ou qualquer sistema de armazenamento e recuperaccedilatildeo de informaccedilotildees sem permissatildeopor escrito do Editor
Editores Jair Lot Vieira e Maiacutera Lot Vieira MicalesCoordenaccedilatildeo editorial Fernanda Godoy TarcinalliRevisatildeo teacutecnica Bruno Mendes dos SantosRevisatildeo Fernanda Godoy TarcinalliDiagramaccedilatildeo e Arte Karine Moreto Massoca e Heloise Gomes Basso
Dados Internacionais de Cata logaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)(Cacircmara Brasileira do Livro SP Brasil)
Felman ShoshanaO inconsciente juriacutedico julgamentos e traumas no seacuteculo XX Shoshana Felman traduccedilatildeo
Ariani Bueno Sudatti prefaacutecio Maacutercio Seligmann-Silva ndash Satildeo Paulo EDIPRO 2014
Tiacutetulo original The juridical unconscious trials and traumas in the twentieth century
Bibliografia
ISBN 978-85-7283-796-5
1 Direito - Aspectos psicoloacutegicos 2 Direito na literatura 3 Julgamento - Histoacuteria - Seacuteculo 20 -Aspectos psicoloacutegicos I Seligmann-Silva Maacutercio II Tiacutetulo
13-13748 CDU-34(04)
Iacutendices para c ataacutelogo sistemaacutetico1 Direito Ensaios 34(04)
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I 211 O
O dilema de justiccedila em Walter Benjamin 39
2 F Narrativas traumaacuteticas e repeticcedilotildees juriacutedicas no caso O J Simpson e em
A sonata a Kreutzer de Tolstoi 89
3 T Arendt em Jerusaleacutem o julgamento de Eichmann e a redefiniccedilatildeo do signi-ficado juriacutedico na esteira do holocausto 149
4 U A morte e a linguagem do direito 187
R 229
Iacute 249
S
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P Maacutercio Seligmann-Silva
Trauma lei e literaturao olhar criacutetico de Shoshana Felman sobre o Direito
Shoshana Felman eacute sem duacutevida uma das criacuteticas e teoacutericas da literatura mais
influentes no panorama atual Sua obra vem inspirando diversos autores e apontando
para novas abordagens da literatura e da cultura de um modo geral nas quais ela faz
convergir seu erudito saber literaacuterio e filoloacutegico com seu competente domiacutenio dapsicanaacutelise dialogando ainda como vemos aqui de modo muito competente com os
estudos juriacutedicos Assim desde o iniacutecio dos anos 1990 ela foi ao lado de Cathy Ca-
ruth uma das principais responsaacuteveis pelo estabelecimento dos ldquoestudos de traumardquo
que ateacute hoje tecircm multiplicado de modo muito criativo a leitura e a interpretaccedilatildeo de
fenocircmenos culturais sobretudo a partir do processo histoacuterico violento e catastroacutefico
que culminou nas grandes guerras do seacuteculo XX e se estende ateacute nossos dias
O presente ensaio eacute uma aposta muito bem sucedida em outros encontros inter-
disciplinares natildeo menos profiacutecuos e absolutamente atuais Estudos literaacuterios psica-
naliacuteticos e teoria do Direito encontram-se aqui para lanccedilar uma luz inusitada sobre
os verdadeiros noacutes buracos negros da histoacuteria da cultura moderna e notadamente
do seacuteculo XX Partindo de autores como Freud Walter Benjamin Levinas e Hannah
Arendt postos em diaacutelogo com Tolstoi Zola Kafka entre outros a autora vai apre-
Doutor em Teoria Literaacuteria pela Universidade Livre de Berlim poacutes-doutor pela Universidade de Yale eprofessor livre-docente de Teoria Literaacuteria na Unicamp Entre outros eacute o autor de O Local da Diferenccedila (Editora 34 2005) vencedor do Precircmio Jabuti na categoria Melhor Livro de TeoriaCriacutetica Literaacuteria 2006
e foi professor visitante em Universidades no Brasil na Alemanha na Argentina e no Meacutexico De Felman jaacute se encontra publicado no Brasil um importante ensaio que permite uma boa introduccedilatildeo
no seu universo temaacutetico e teoacuterico FELMAN Shoshana Educaccedilatildeo em crise ou as vicissitudes do en-sino In NESTROVSKI Arthur SELIGMANN-SILVA Maacutercio (Orgs) Cataacutestrofe e representaccedilatildeo SatildeoPaulo Escuta 2000
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sentar e analisar os traumas sociais coletivos que estruturam nossas sociedades Seu
locus privilegiado neste estudo eacute o da caixa de ressonacircncia dos tribunais Felman
adentra a cena do tribunal o ldquoteatro da justiccedilardquo para flagrar natildeo o triunfo da razatildeo
e da justiccedila mas sim o momento em que os traumas sociais satildeo aiacute reencenados
postos em accedilatildeo e via de regra reafirmados Ao inveacutes de encarar o tribunal e a cena
do julgamento como local de uma catarse social curativa ou seja de resoluccedilatildeo dos
conflitos Felman nos ensina a vecirc-los como oportunidades para maior explicitaccedilatildeo
dos traumas ndash individuais e coletivos ndash e de seus entrecruzamentos Todavia essa
explicitaccedilatildeo ou mise en action dos traumas natildeo estaacute voltada para a sua elaboraccedilatildeo
criacutetica mas antes presta- se a reproduzir e aprofundar os mesmos e ainda silenciar
as suas demandas de representaccedilatildeoO tiacutetulo deste livro natildeo deixa de remeter ao conceito freudiano de inconsciente
e agrave sua reelaboraccedilatildeo feita por Walter Benjamin Em seu ensaio sobre ldquoA obra de arte
na era de sua reprodutibilidade teacutecnicardquo Benjamin afirmara com relaccedilatildeo ao cinema
que com essa teacutecnica ldquoentra em accedilatildeo a cacircmera com seus meios auxiliares ndash seu
descer e subir seu interromper e isolar sua dilataccedilatildeo e compressatildeo do ocorrido seu
ampliar e reduzir Somente por meio da cacircmera chegamos a conhecer o inconsciente
oacuteptico assim como conhecemos o inconsciente pulsional por meio da psicanaacuteliserdquo
Felman por sua vez mostra de que maneira podemos perceber os tribunais e os jul-gamentos juriacutedicos como uma via privilegiada de acesso aos traumas sociais funcio-
nando tambeacutem como uma lupa ou seja uma lente que aproxima e dilata as fissuras
da sociedade Nessa cena os testemunhos desempenham um papel fundamental
Na teoria literaacuteria o conceito de testemunho desempenha um papel central para
se entender o processo histoacuterico com sua violecircncia estrutural sobretudo a partir do
seacuteculo XX era tanto de genociacutedios guerras e grandes perseguiccedilotildees em massa como
tambeacutem de afirmaccedilatildeo dos direitos humanos Mas esse testemunho no tribunal estaacute
bloqueado marcado pela sua proacutepria impossibilidade O teatro do direito (e natildeotanto o teatro da justiccedila) apenas aparentemente abre-se para a voz das testemunhas
Na verdade a violecircncia institucional que alicerccedila o direito silencia e oprime essas
vozes Mais do que isso simbolicamente a proacutepria sala de tribunal com sua pom-
posidade e com as hierarquias reforccediladas pelas roupas pelos coacutedigos discursivos e
de conduta pela presenccedila de ldquoautoridadesrdquo reproduz uma estrutura de poder so-
cialmente injusta e desigual e revela que o direito e a lei satildeo colunas fundamentais
que sustentam essa mesma estrutura Essa instacircncia que se quer imparcial e digna
de mediar os conflitos entre as partes eacute na verdade cega para as questotildees subjetivas
para os traumas e dramas sociais que estatildeo ali no meio da sala do tribunal mas satildeo
ao mesmo tempo obliterados e emudecidos
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Felman vai tomar o testemunho de um sobrevivente de Auschwitz que sucumbe
no momento de seu depoimento e entra em coma durante o julgamento de Eichmann
como o momento paradigmaacutetico para percebermos essa incomensurabilidade entre o
direito e o trauma Voltaremos a essa cenaPara Benjamin como lemos em seu ensaio de 1921 ldquoZur Kritik der Gewaltrdquo
(ldquoPara uma criacutetica do poderviolecircnciardquo) assim como para seu contemporacircneo Kafka
existe uma forccedila violenta miacutetica que dormita no direito Esfera juriacutedica e justiccedila
aleacutem de natildeo terem nada a ver uma com a outra seriam antes forccedilas antagocircnicas
Benjamin destaca o elemento sacrificial do direito que se manifesta de modo claro
na possibilidade de instituiccedilatildeo da pena de morte O final do romance O processo de
Kafka que encena a execuccedilatildeo fria e absurda do reacuteu K ndash que sequer teve apresentada
a sua culpa ou fora condenado por qualquer crime ndash eacute outra das cenas que Felman
retoma neste ensaio para nos falar dessa forccedila sacrificial Ela aproxima essa passagem
literaacuteria da traacutegica trajetoacuteria de Walter Benjamin que na fronteira entre a Espanha e
a Franccedila deu cabo de sua proacutepria vida impedido de seguir em sua fuga da Gestapo
por falta de um visto em seu passaporte Dramas pessoais e literaacuterios explicitam o
elemento traumaacutetico do inconsciente juriacutedico Literatura (Kafka) e histoacuterias de vida
(Benjamin) se unem para compor essa contraleitura do significado do direito Assim
como na famosa paraacutebola kafkiana ldquoDiante da leirdquo em que um camponecircs eacute barrado
diante da porta da lei e laacute permanece sem poder entrar ateacute a sua morte do mesmo
modo lembra Felman Benjamin sucumbiu na fronteira na porta que poderia levaacute-lo
agrave liberdade pela simples ausecircncia de um carimbo (para aleacutem dos vaacuterios outros vistos
que jaacute havia conseguido em seu passaporte)
De resto uma das questotildees fundamentais que a autora enfrenta eacute justamente o
bloqueio cultural agraves questotildees ldquopessoaisrdquo na cena do tribunal que poderiam servir de
ponte aos traumas sociais coletivos Para ela existiria um abismo entre o direito e a
representaccedilatildeo dessas questotildees No caso do famoso julgamento de O J Simpson
divulgado nos EUA como sendo ldquoo julgamento do seacuteculordquo ela lecirc o confronto de dois
dramas e traumas que se embatem no tribunal um apagando o outro trauma de
gecircnero (violecircncia contra a mulher) e trauma de raccedila (violecircncia contra os afrodescen-
dentes) A imagem do rosto da ex-esposa de O J Simpson com marcas de espanca-
mento as gritantes evidecircncias da violecircncia de gecircnero (na cena do crime e na histoacuteria
do casal) natildeo foram levadas em conta no julgamento Antes ele foi guiado pelo medo
social de se repetir a terriacutevel tradiccedilatildeo norte-americana de perpetraccedilatildeo de uma ldquojus-
Trata-se do julgamento do famoso jogador de futebol americano Orenthal James Simpson que foi acusadode assassinar em 1994 a ex-esposa Nicole Brown Simpson e seu amigo Ronald Goldman A fuga espetacu-lar de Simpson foi televisionada para todo o mundo e seu julgamento em 1995 foi considerado ldquoo julga-mento do seacuteculordquo tendo sido assistido por mais da metade da populaccedilatildeo norte-americana Nessa ocasiatildeoele foi absolvido pelos dois crimes por um tribunal de juacuteri
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ticcedila brancardquo que condena reacuteus afrodescendentes como meio de reforccedilar estereoacutetipos
escravocratas racistas e de violecircncias seculares
Por outro lado a autora recorre a Tolstoi e agrave sua magistral novela A sonata a
Kreutzer mostrando como nessa peccedila literaacuteria a violecircncia de gecircnero apresentada nofinal do seacuteculo XIX jaacute se mostrava tatildeo ominosa quanto no final do seacuteculo seguinte
O protagonista dessa novela confessa ter assassinado a esposa e apresenta esse crime
como algo que escapou inteiramente agrave justiccedila institucional ndash jaacute que o direito o absol-
veu A diferenccedila fundamental com relaccedilatildeo ao julgamento de O J Simpson eacute que na
literatura toda a trama de encobrimento da violecircncia de gecircnero intriacutenseca agraves relaccedilotildees
matrimoniais eacute esmiuccedilada e posta agrave luz do dia A literatura tira o manto de hipocrisia
que cobre a realidade da violecircncia que dormita nas relaccedilotildees de gecircnero e de um modo
geral nas relaccedilotildees sociais fazendo justiccedila agrave elaboraccedilatildeo criacutetica do trauma No caso es-
peciacutefico dessa violecircncia de gecircnero intra-matrimocircnio a casa o lar a famiacutelia satildeo vistos
como o local de um mal-estar ndash como Freud jaacute havia revelado
Felman ao entrecruzar direito psicanaacutelise e literatura mostra-nos como a esfera
subjetiva eacute esmagada pelo direito na mesma medida em que recebe um local um
espaccedilo na literatura E eacute justamente a partir da esfera subjetiva que o direito e a estru-
tura de poder satildeo desconstruiacutedos criticamente Mas a autora natildeo desdobra um tipo
de pensamento maniqueiacutesta que simplesmente opotildee o inferno juriacutedico a um eventualparaiacuteso literaacuterio Pelo contraacuterio ela estaacute atenta agraves ambiguidades dessas instacircncias
Assim o tribunal de Nuremberg por exemplo eacute visto tanto como um tribunal que
reiterou a forccedila e a violecircncia dos vencedores como tambeacutem deve ser visto como um
momento fundamental na instituiccedilatildeo dos ldquocrimes contra a humanidaderdquo Mais do
que isso ainda e essa eacute a originalidade da leitura da autora nesse julgamento pela
primeira vez convocou-se um grande trauma social coletivo (a violecircncia extrema
contra os judeus) ao tribunal A histoacuteria adentrou a corte Jaacute K-Zetnik sobrevivente
do nazismo um escritor e literato conhecido por produzir uma densa literatura sobreAuschwitz foi a testemunha que sucumbiu no julgamento de Eichman Essa cena
mostra como a literatura colapsou diante do tribunal e como seu testemunho se daacute
em outro niacutevel A reflexatildeo de Felman traz agrave discussatildeo do tema o famoso Jrsquoaccuse [Eu
acuso] de Zola A literatura mostra Felman presta um testemunho avant la lettre
quanto agraves (in)justiccedilas dos tribunais seja Tostoi com relaccedilatildeo a O J Simpson seja Zola
e seu Eu acuso com relaccedilatildeo ao julgamento Eichmann seja Kafka e seu ldquoDiante da leirdquo
com relaccedilatildeo a Benjamin
Tambeacutem na antiga trageacutedia podemos ver a literatura servindo de testemunho doinconsciente juriacutedico Muitos estudiosos jaacute destacaram a continuidade entre a cena
dos tribunais e a da trageacutedia grega com suas duas partes confrontando-se e tendo
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a ldquojusticcedilardquo no seu horizonte Refiro-me aqui sobretudo agrave Oresteia de Eacutesquilo uma
trilogia na qual assistimos a Agamenon ser assassinado por sua esposa Clitemnestra
que em seguida eacute assassinada por seu filho Orestes que por sua vez na terceira
trageacutedia eacute absolvido desse seu crime no tribunal inaugural fundador do direito
positivado no Monte Ares julgamento este presidido por ningueacutem menos que Palas
Atena A deusa representa aiacute o direito instituiacutedo que se une agraves Fuacuterias prometendo
manter a ordem A ordem do direito lembrava Benjamin no anteriormente referi-
do ensaio necessita de um poder ameaccedilador (ldquoDie rechterhaltende Gewalt ist eine
drohenderdquo) Esta ideia faz-nos lembrar justamente da seguinte passagem da trageacutedia
Eumecircnides a terceira da trilogia quando Palas Atena define a nova ordem juriacutedica
que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes
Prestai atenccedilatildeo ao que instauro aqui atenienses convocados por mim mesma para julgar pela primeira vez um homem autor de um crime em que foi derramado sangueA partir deste dia e para todo o sempre o povo que jaacute teve como rei Egeu teraacute a incum-becircncia de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares [] Sobreesta elevaccedilatildeo digo que a Reverecircncia e o Temor seu irmatildeo seja durante o dia seja de noiteevitaratildeo que os cidadatildeos cometam crimes a natildeo ser que eles prefiram aniquilar as leisfeitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com efluacutevios turvos as fontes claras natildeoteraacute onde beber) Nem opressatildeo nem anarquia eis o lema que os cidadatildeos devem seguir
e respeitar Natildeo lhes conveacutem tampouco expulsar da cidade todo o Temor se nada tiver atemer que homem cumpriraacute aqui seus deveres
Esse perfil falocecircntrico e patriarcal que eacute dado agrave ordem juriacutedica como aquela que
empunha a espada para existir eacute tambeacutem desdobrado nas falas do tribunal quando
Orestes e seu advogado Apolo empilham prova sobre prova para convencer os jura-
dos quanto agrave inocecircncia do matricida Orestes apela todo o tempo para a figura de seu
pai Agamenon e Apolo por sua vez evoca tambeacutem seu pai Zeus como guardiatildeo da
verdade e da justiccedila Vale lembrar que Atena eacute apresentada nessa trageacutedia como uma
deusa sem matildee nascida diretamente de seu genitor Zeus Orestes acaba absolvido
pelo ldquovoto de Minervardquo ou seja de Palas Atena Por outro lado o parricida Eacutedipo
como sabemos da trilogia de Soacutefocles sobre esse personagem uma vez descobertos
seu crimes ldquoinvoluntaacuteriosrdquo eacute cegado e banido de sua cidade matar a matildee eacute perdoaacutevel
o pai jamais parecem-nos dizer esses protomodelos sociais do Ocidente
Esse convencer objetivo marcado pela comprovaccedilatildeo espetacular de preferecircncia
visual tiacutepico do tribunal deve ser oposto a um outro espaccedilo para recepccedilatildeo do teste-
munho oral muitas vezes fragmentado e carregado de subjetividade Eacute esse espaccedilo
testemunhal que Felman defende aqui destacando os quase insuperaacuteveis limites de
sua acolhida por parte da instituiccedilatildeo juriacutedica Sem organizaccedilatildeo poliacutetica a voz do
testemunho individual e coletivo daqueles que sofreram uma grave injusticcedila social
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ou privada natildeo consegue dobrar o poder do direito Poder esse que se concretiza
simbolicamente nas casas da Justiccedila esses palaacutecios com suas colunas gregas que
parecem ainda ornar templos em homenagem a Palas Atena a quem se sacrificam as
viacutetimas O modo como Felman abre nossos olhos para perceber o condicionamento
reciacuteproco entre trauma e direito e ao mesmo tempo para a forccedila da fala testemu-
nhal ndash apresentada na literatura e em filmes como o Shoah de Lanzmann e Que
bom te ver viva de Luacutecia Murat ndash deve nos inspirar a lutar no sentido de ampliar
na sociedade os espaccedilos de audiccedilatildeo aos traumas pessoais e sociais Essa mudanccedila na
sociedade soacute pode ser compreendida como parte de um longo e intenso processo de
lutas sociais nas quais justamente os testemunhos dos oprimidos se levantam con-
tra a opressatildeo numa tentativa de resistecircncia e de elaboraccedilatildeo do trauma Eacute evidentee este livro o mostra claramente com autores como Kafka Benjamin Dostoievski
Zola e Tolstoi que uma mudanccedila na esfera do direito soacute poderaacute se dar no contexto
de uma sociedade ela mesma transformada com outra estrutura de poder e uma
distribuiccedilatildeo econocircmica menos injusta Mas estabelecer uma criacutetica do direito eacute algo
efetivo que eacute parte dessa luta por uma transformaccedilatildeo mais global da sociedade Nos
templos do direito como nas trageacutedias a justiccedila estaraacute sempre em um longiacutenquo
horizonte O testemunho no seu sentido forte poliacutetico de engajamento criacutetico na
mudanccedila ndash e natildeo em seu sentido positivista que reafirma o poder da esfera juriacutedi-ca tal como se daacute nas salas de tribunal ndash eacute acolhido nas artes e em algumas esferas
puacuteblicas deixando suas marcas na sociedade como um todo e inclusive forccedilando
as barreiras erguidas pelo direito A criacutetica do direito em grande parte soacute eacute possiacutevel
justamente graccedilas agrave articulaccedilatildeo poliacutetica do testemunho na vida social e concreta
Mas se os sem voz e excluiacutedos se os traumas natildeo articulados pessoais comunitaacute-
rios eacutetnicos e sociais eventualmente adentram a corte isso ocorre natildeo por conta de
uma mudanccedila imanente ou de uma abertura democraacutetica da esfera juriacutedica em si
mesma mas antes como fruto de lutas que se desenrolam haacute deacutecadas ndash e mesmoseacuteculos ndash que tambeacutem visam a tirar a venda da Justiccedila
Felman nos lanccedila com esta obra uma seacuterie de questotildees que atingem o acircmago da
instituiccedilatildeo juriacutedica Assim como Freud abalou nossa identidade e visatildeo do que eacute o
ser humano ao revelar o inconsciente psicoloacutegico tambeacutem Felman ao apontar para
o inconsciente juriacutedico reconfigura o direito e seus limites Ambos psicanaacutelise e a
visada de Felman apostam na forccedila da palavra de um logos subjetivado que enfren-
ta as feridas geradas pelo logos totalitaacuterio e monoloacutegico Com essa abertura criacutetica
proposta por este livro percebemos tambeacutem em que medida sua autora conseguiu
de modo raro e exemplar se colocar muito aleacutem de sua disciplina e galgar um espaccedilo
soacutelido para a criacutetica cultural Soacute podemos desejar que esse gesto se multiplique
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Esse gesto tambeacutem aponta para a originalidade da autora dentro da aacuterea dos
estudos em ldquoLaw and Literaturerdquo ou seja das interfaces entre direito e literatura
Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que
a literatura aborda especificamente temas juriacutedicos ao inveacutes de se apoiar nos estudos
literaacuterios para melhor compreensatildeo da hermenecircutica juriacutedica ou ainda de tratar
das implicaccedilotildees juriacutedicas do campo literaacuterio e tradutoacuterio Felman vai muito aleacutem e
busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura
Como vimos para ela tanto o conceito de trauma eacute um importante vaso comunica-
dor entre essas aacutereas como tambeacutem as anaacutelises de Benjamin Levinas e Arendt sobre
os fenocircmenos do direito e da justiccedila servem de chave nessa empresa de estabelecer
um diaacutelogo entre o mundo do direito e o das letras Felman constroacutei uma plataforma
conceitual e filosoacutefica bastante robusta que permite repensar o campo direito e o da
literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa Tambeacutem nesse sentido
este estudo eacute fundamental
Por fim eacute importante destacar a qualidade do trabalho de traduccedilatildeo levado a cabo
por Ariani Sudatti doutora em direito pela FDUSP e tambeacutem formada em Letras pela
Unicamp Essa dupla formaccedilatildeo garantiu o rigor desta empreitada e nos abriu o acesso
a essas preciosas ideias de Felman que devido agrave sua formulaccedilatildeo conceitual exige uma
traduccedilatildeo atenta e cuidadosa capaz de transitar entre as duas aacutereas Soacute posso esperarque este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre noacutes e gere uma reflexatildeo
(auto)criacutetica por parte daqueles que atuam na esfera juriacutedica ou entatildeo que se interes-
sam pelos grandes debates que enfrentam a questatildeo da Justiccedila e do Direito
Berlim 7 de abril de 2013
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Shoshana Felman
O INCONSCIENTE JURIacuteDICO
Julgamentos e Traumas no seacuteculo XX
Traduccedilatildeo Ariani Bueno SudattiDoutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP
Poacutes-doutora em Letras pela Unicamp
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1ordf Ediccedilatildeo 2014
Copyright copy 2002 by the President and Fellows of Harvard CollegeAll rights reserved
ldquoPublished by arrangement with Harvard University Pressrdquo
copy desta traduccedilatildeo Edipro Ediccedilotildees Profissionais Ltda ndash CNPJ nordm 476409820001-40
Todos os direitos reservados Nenhuma parte deste livro poderaacute ser reproduzida ou transmi-tida de qualquer forma ou por quaisquer meios eletrocircnicos ou mecacircnicos incluindo fotocoacutepia
gravaccedilatildeo ou qualquer sistema de armazenamento e recuperaccedilatildeo de informaccedilotildees sem permissatildeopor escrito do Editor
Editores Jair Lot Vieira e Maiacutera Lot Vieira MicalesCoordenaccedilatildeo editorial Fernanda Godoy TarcinalliRevisatildeo teacutecnica Bruno Mendes dos SantosRevisatildeo Fernanda Godoy TarcinalliDiagramaccedilatildeo e Arte Karine Moreto Massoca e Heloise Gomes Basso
Dados Internacionais de Cata logaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)(Cacircmara Brasileira do Livro SP Brasil)
Felman ShoshanaO inconsciente juriacutedico julgamentos e traumas no seacuteculo XX Shoshana Felman traduccedilatildeo
Ariani Bueno Sudatti prefaacutecio Maacutercio Seligmann-Silva ndash Satildeo Paulo EDIPRO 2014
Tiacutetulo original The juridical unconscious trials and traumas in the twentieth century
Bibliografia
ISBN 978-85-7283-796-5
1 Direito - Aspectos psicoloacutegicos 2 Direito na literatura 3 Julgamento - Histoacuteria - Seacuteculo 20 -Aspectos psicoloacutegicos I Seligmann-Silva Maacutercio II Tiacutetulo
13-13748 CDU-34(04)
Iacutendices para c ataacutelogo sistemaacutetico1 Direito Ensaios 34(04)
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A 15
L 17
I 211 O
O dilema de justiccedila em Walter Benjamin 39
2 F Narrativas traumaacuteticas e repeticcedilotildees juriacutedicas no caso O J Simpson e em
A sonata a Kreutzer de Tolstoi 89
3 T Arendt em Jerusaleacutem o julgamento de Eichmann e a redefiniccedilatildeo do signi-ficado juriacutedico na esteira do holocausto 149
4 U A morte e a linguagem do direito 187
R 229
Iacute 249
S
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P Maacutercio Seligmann-Silva
Trauma lei e literaturao olhar criacutetico de Shoshana Felman sobre o Direito
Shoshana Felman eacute sem duacutevida uma das criacuteticas e teoacutericas da literatura mais
influentes no panorama atual Sua obra vem inspirando diversos autores e apontando
para novas abordagens da literatura e da cultura de um modo geral nas quais ela faz
convergir seu erudito saber literaacuterio e filoloacutegico com seu competente domiacutenio dapsicanaacutelise dialogando ainda como vemos aqui de modo muito competente com os
estudos juriacutedicos Assim desde o iniacutecio dos anos 1990 ela foi ao lado de Cathy Ca-
ruth uma das principais responsaacuteveis pelo estabelecimento dos ldquoestudos de traumardquo
que ateacute hoje tecircm multiplicado de modo muito criativo a leitura e a interpretaccedilatildeo de
fenocircmenos culturais sobretudo a partir do processo histoacuterico violento e catastroacutefico
que culminou nas grandes guerras do seacuteculo XX e se estende ateacute nossos dias
O presente ensaio eacute uma aposta muito bem sucedida em outros encontros inter-
disciplinares natildeo menos profiacutecuos e absolutamente atuais Estudos literaacuterios psica-
naliacuteticos e teoria do Direito encontram-se aqui para lanccedilar uma luz inusitada sobre
os verdadeiros noacutes buracos negros da histoacuteria da cultura moderna e notadamente
do seacuteculo XX Partindo de autores como Freud Walter Benjamin Levinas e Hannah
Arendt postos em diaacutelogo com Tolstoi Zola Kafka entre outros a autora vai apre-
Doutor em Teoria Literaacuteria pela Universidade Livre de Berlim poacutes-doutor pela Universidade de Yale eprofessor livre-docente de Teoria Literaacuteria na Unicamp Entre outros eacute o autor de O Local da Diferenccedila (Editora 34 2005) vencedor do Precircmio Jabuti na categoria Melhor Livro de TeoriaCriacutetica Literaacuteria 2006
e foi professor visitante em Universidades no Brasil na Alemanha na Argentina e no Meacutexico De Felman jaacute se encontra publicado no Brasil um importante ensaio que permite uma boa introduccedilatildeo
no seu universo temaacutetico e teoacuterico FELMAN Shoshana Educaccedilatildeo em crise ou as vicissitudes do en-sino In NESTROVSKI Arthur SELIGMANN-SILVA Maacutercio (Orgs) Cataacutestrofe e representaccedilatildeo SatildeoPaulo Escuta 2000
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sentar e analisar os traumas sociais coletivos que estruturam nossas sociedades Seu
locus privilegiado neste estudo eacute o da caixa de ressonacircncia dos tribunais Felman
adentra a cena do tribunal o ldquoteatro da justiccedilardquo para flagrar natildeo o triunfo da razatildeo
e da justiccedila mas sim o momento em que os traumas sociais satildeo aiacute reencenados
postos em accedilatildeo e via de regra reafirmados Ao inveacutes de encarar o tribunal e a cena
do julgamento como local de uma catarse social curativa ou seja de resoluccedilatildeo dos
conflitos Felman nos ensina a vecirc-los como oportunidades para maior explicitaccedilatildeo
dos traumas ndash individuais e coletivos ndash e de seus entrecruzamentos Todavia essa
explicitaccedilatildeo ou mise en action dos traumas natildeo estaacute voltada para a sua elaboraccedilatildeo
criacutetica mas antes presta- se a reproduzir e aprofundar os mesmos e ainda silenciar
as suas demandas de representaccedilatildeoO tiacutetulo deste livro natildeo deixa de remeter ao conceito freudiano de inconsciente
e agrave sua reelaboraccedilatildeo feita por Walter Benjamin Em seu ensaio sobre ldquoA obra de arte
na era de sua reprodutibilidade teacutecnicardquo Benjamin afirmara com relaccedilatildeo ao cinema
que com essa teacutecnica ldquoentra em accedilatildeo a cacircmera com seus meios auxiliares ndash seu
descer e subir seu interromper e isolar sua dilataccedilatildeo e compressatildeo do ocorrido seu
ampliar e reduzir Somente por meio da cacircmera chegamos a conhecer o inconsciente
oacuteptico assim como conhecemos o inconsciente pulsional por meio da psicanaacuteliserdquo
Felman por sua vez mostra de que maneira podemos perceber os tribunais e os jul-gamentos juriacutedicos como uma via privilegiada de acesso aos traumas sociais funcio-
nando tambeacutem como uma lupa ou seja uma lente que aproxima e dilata as fissuras
da sociedade Nessa cena os testemunhos desempenham um papel fundamental
Na teoria literaacuteria o conceito de testemunho desempenha um papel central para
se entender o processo histoacuterico com sua violecircncia estrutural sobretudo a partir do
seacuteculo XX era tanto de genociacutedios guerras e grandes perseguiccedilotildees em massa como
tambeacutem de afirmaccedilatildeo dos direitos humanos Mas esse testemunho no tribunal estaacute
bloqueado marcado pela sua proacutepria impossibilidade O teatro do direito (e natildeotanto o teatro da justiccedila) apenas aparentemente abre-se para a voz das testemunhas
Na verdade a violecircncia institucional que alicerccedila o direito silencia e oprime essas
vozes Mais do que isso simbolicamente a proacutepria sala de tribunal com sua pom-
posidade e com as hierarquias reforccediladas pelas roupas pelos coacutedigos discursivos e
de conduta pela presenccedila de ldquoautoridadesrdquo reproduz uma estrutura de poder so-
cialmente injusta e desigual e revela que o direito e a lei satildeo colunas fundamentais
que sustentam essa mesma estrutura Essa instacircncia que se quer imparcial e digna
de mediar os conflitos entre as partes eacute na verdade cega para as questotildees subjetivas
para os traumas e dramas sociais que estatildeo ali no meio da sala do tribunal mas satildeo
ao mesmo tempo obliterados e emudecidos
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Felman vai tomar o testemunho de um sobrevivente de Auschwitz que sucumbe
no momento de seu depoimento e entra em coma durante o julgamento de Eichmann
como o momento paradigmaacutetico para percebermos essa incomensurabilidade entre o
direito e o trauma Voltaremos a essa cenaPara Benjamin como lemos em seu ensaio de 1921 ldquoZur Kritik der Gewaltrdquo
(ldquoPara uma criacutetica do poderviolecircnciardquo) assim como para seu contemporacircneo Kafka
existe uma forccedila violenta miacutetica que dormita no direito Esfera juriacutedica e justiccedila
aleacutem de natildeo terem nada a ver uma com a outra seriam antes forccedilas antagocircnicas
Benjamin destaca o elemento sacrificial do direito que se manifesta de modo claro
na possibilidade de instituiccedilatildeo da pena de morte O final do romance O processo de
Kafka que encena a execuccedilatildeo fria e absurda do reacuteu K ndash que sequer teve apresentada
a sua culpa ou fora condenado por qualquer crime ndash eacute outra das cenas que Felman
retoma neste ensaio para nos falar dessa forccedila sacrificial Ela aproxima essa passagem
literaacuteria da traacutegica trajetoacuteria de Walter Benjamin que na fronteira entre a Espanha e
a Franccedila deu cabo de sua proacutepria vida impedido de seguir em sua fuga da Gestapo
por falta de um visto em seu passaporte Dramas pessoais e literaacuterios explicitam o
elemento traumaacutetico do inconsciente juriacutedico Literatura (Kafka) e histoacuterias de vida
(Benjamin) se unem para compor essa contraleitura do significado do direito Assim
como na famosa paraacutebola kafkiana ldquoDiante da leirdquo em que um camponecircs eacute barrado
diante da porta da lei e laacute permanece sem poder entrar ateacute a sua morte do mesmo
modo lembra Felman Benjamin sucumbiu na fronteira na porta que poderia levaacute-lo
agrave liberdade pela simples ausecircncia de um carimbo (para aleacutem dos vaacuterios outros vistos
que jaacute havia conseguido em seu passaporte)
De resto uma das questotildees fundamentais que a autora enfrenta eacute justamente o
bloqueio cultural agraves questotildees ldquopessoaisrdquo na cena do tribunal que poderiam servir de
ponte aos traumas sociais coletivos Para ela existiria um abismo entre o direito e a
representaccedilatildeo dessas questotildees No caso do famoso julgamento de O J Simpson
divulgado nos EUA como sendo ldquoo julgamento do seacuteculordquo ela lecirc o confronto de dois
dramas e traumas que se embatem no tribunal um apagando o outro trauma de
gecircnero (violecircncia contra a mulher) e trauma de raccedila (violecircncia contra os afrodescen-
dentes) A imagem do rosto da ex-esposa de O J Simpson com marcas de espanca-
mento as gritantes evidecircncias da violecircncia de gecircnero (na cena do crime e na histoacuteria
do casal) natildeo foram levadas em conta no julgamento Antes ele foi guiado pelo medo
social de se repetir a terriacutevel tradiccedilatildeo norte-americana de perpetraccedilatildeo de uma ldquojus-
Trata-se do julgamento do famoso jogador de futebol americano Orenthal James Simpson que foi acusadode assassinar em 1994 a ex-esposa Nicole Brown Simpson e seu amigo Ronald Goldman A fuga espetacu-lar de Simpson foi televisionada para todo o mundo e seu julgamento em 1995 foi considerado ldquoo julga-mento do seacuteculordquo tendo sido assistido por mais da metade da populaccedilatildeo norte-americana Nessa ocasiatildeoele foi absolvido pelos dois crimes por um tribunal de juacuteri
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ticcedila brancardquo que condena reacuteus afrodescendentes como meio de reforccedilar estereoacutetipos
escravocratas racistas e de violecircncias seculares
Por outro lado a autora recorre a Tolstoi e agrave sua magistral novela A sonata a
Kreutzer mostrando como nessa peccedila literaacuteria a violecircncia de gecircnero apresentada nofinal do seacuteculo XIX jaacute se mostrava tatildeo ominosa quanto no final do seacuteculo seguinte
O protagonista dessa novela confessa ter assassinado a esposa e apresenta esse crime
como algo que escapou inteiramente agrave justiccedila institucional ndash jaacute que o direito o absol-
veu A diferenccedila fundamental com relaccedilatildeo ao julgamento de O J Simpson eacute que na
literatura toda a trama de encobrimento da violecircncia de gecircnero intriacutenseca agraves relaccedilotildees
matrimoniais eacute esmiuccedilada e posta agrave luz do dia A literatura tira o manto de hipocrisia
que cobre a realidade da violecircncia que dormita nas relaccedilotildees de gecircnero e de um modo
geral nas relaccedilotildees sociais fazendo justiccedila agrave elaboraccedilatildeo criacutetica do trauma No caso es-
peciacutefico dessa violecircncia de gecircnero intra-matrimocircnio a casa o lar a famiacutelia satildeo vistos
como o local de um mal-estar ndash como Freud jaacute havia revelado
Felman ao entrecruzar direito psicanaacutelise e literatura mostra-nos como a esfera
subjetiva eacute esmagada pelo direito na mesma medida em que recebe um local um
espaccedilo na literatura E eacute justamente a partir da esfera subjetiva que o direito e a estru-
tura de poder satildeo desconstruiacutedos criticamente Mas a autora natildeo desdobra um tipo
de pensamento maniqueiacutesta que simplesmente opotildee o inferno juriacutedico a um eventualparaiacuteso literaacuterio Pelo contraacuterio ela estaacute atenta agraves ambiguidades dessas instacircncias
Assim o tribunal de Nuremberg por exemplo eacute visto tanto como um tribunal que
reiterou a forccedila e a violecircncia dos vencedores como tambeacutem deve ser visto como um
momento fundamental na instituiccedilatildeo dos ldquocrimes contra a humanidaderdquo Mais do
que isso ainda e essa eacute a originalidade da leitura da autora nesse julgamento pela
primeira vez convocou-se um grande trauma social coletivo (a violecircncia extrema
contra os judeus) ao tribunal A histoacuteria adentrou a corte Jaacute K-Zetnik sobrevivente
do nazismo um escritor e literato conhecido por produzir uma densa literatura sobreAuschwitz foi a testemunha que sucumbiu no julgamento de Eichman Essa cena
mostra como a literatura colapsou diante do tribunal e como seu testemunho se daacute
em outro niacutevel A reflexatildeo de Felman traz agrave discussatildeo do tema o famoso Jrsquoaccuse [Eu
acuso] de Zola A literatura mostra Felman presta um testemunho avant la lettre
quanto agraves (in)justiccedilas dos tribunais seja Tostoi com relaccedilatildeo a O J Simpson seja Zola
e seu Eu acuso com relaccedilatildeo ao julgamento Eichmann seja Kafka e seu ldquoDiante da leirdquo
com relaccedilatildeo a Benjamin
Tambeacutem na antiga trageacutedia podemos ver a literatura servindo de testemunho doinconsciente juriacutedico Muitos estudiosos jaacute destacaram a continuidade entre a cena
dos tribunais e a da trageacutedia grega com suas duas partes confrontando-se e tendo
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a ldquojusticcedilardquo no seu horizonte Refiro-me aqui sobretudo agrave Oresteia de Eacutesquilo uma
trilogia na qual assistimos a Agamenon ser assassinado por sua esposa Clitemnestra
que em seguida eacute assassinada por seu filho Orestes que por sua vez na terceira
trageacutedia eacute absolvido desse seu crime no tribunal inaugural fundador do direito
positivado no Monte Ares julgamento este presidido por ningueacutem menos que Palas
Atena A deusa representa aiacute o direito instituiacutedo que se une agraves Fuacuterias prometendo
manter a ordem A ordem do direito lembrava Benjamin no anteriormente referi-
do ensaio necessita de um poder ameaccedilador (ldquoDie rechterhaltende Gewalt ist eine
drohenderdquo) Esta ideia faz-nos lembrar justamente da seguinte passagem da trageacutedia
Eumecircnides a terceira da trilogia quando Palas Atena define a nova ordem juriacutedica
que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes
Prestai atenccedilatildeo ao que instauro aqui atenienses convocados por mim mesma para julgar pela primeira vez um homem autor de um crime em que foi derramado sangueA partir deste dia e para todo o sempre o povo que jaacute teve como rei Egeu teraacute a incum-becircncia de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares [] Sobreesta elevaccedilatildeo digo que a Reverecircncia e o Temor seu irmatildeo seja durante o dia seja de noiteevitaratildeo que os cidadatildeos cometam crimes a natildeo ser que eles prefiram aniquilar as leisfeitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com efluacutevios turvos as fontes claras natildeoteraacute onde beber) Nem opressatildeo nem anarquia eis o lema que os cidadatildeos devem seguir
e respeitar Natildeo lhes conveacutem tampouco expulsar da cidade todo o Temor se nada tiver atemer que homem cumpriraacute aqui seus deveres
Esse perfil falocecircntrico e patriarcal que eacute dado agrave ordem juriacutedica como aquela que
empunha a espada para existir eacute tambeacutem desdobrado nas falas do tribunal quando
Orestes e seu advogado Apolo empilham prova sobre prova para convencer os jura-
dos quanto agrave inocecircncia do matricida Orestes apela todo o tempo para a figura de seu
pai Agamenon e Apolo por sua vez evoca tambeacutem seu pai Zeus como guardiatildeo da
verdade e da justiccedila Vale lembrar que Atena eacute apresentada nessa trageacutedia como uma
deusa sem matildee nascida diretamente de seu genitor Zeus Orestes acaba absolvido
pelo ldquovoto de Minervardquo ou seja de Palas Atena Por outro lado o parricida Eacutedipo
como sabemos da trilogia de Soacutefocles sobre esse personagem uma vez descobertos
seu crimes ldquoinvoluntaacuteriosrdquo eacute cegado e banido de sua cidade matar a matildee eacute perdoaacutevel
o pai jamais parecem-nos dizer esses protomodelos sociais do Ocidente
Esse convencer objetivo marcado pela comprovaccedilatildeo espetacular de preferecircncia
visual tiacutepico do tribunal deve ser oposto a um outro espaccedilo para recepccedilatildeo do teste-
munho oral muitas vezes fragmentado e carregado de subjetividade Eacute esse espaccedilo
testemunhal que Felman defende aqui destacando os quase insuperaacuteveis limites de
sua acolhida por parte da instituiccedilatildeo juriacutedica Sem organizaccedilatildeo poliacutetica a voz do
testemunho individual e coletivo daqueles que sofreram uma grave injusticcedila social
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ou privada natildeo consegue dobrar o poder do direito Poder esse que se concretiza
simbolicamente nas casas da Justiccedila esses palaacutecios com suas colunas gregas que
parecem ainda ornar templos em homenagem a Palas Atena a quem se sacrificam as
viacutetimas O modo como Felman abre nossos olhos para perceber o condicionamento
reciacuteproco entre trauma e direito e ao mesmo tempo para a forccedila da fala testemu-
nhal ndash apresentada na literatura e em filmes como o Shoah de Lanzmann e Que
bom te ver viva de Luacutecia Murat ndash deve nos inspirar a lutar no sentido de ampliar
na sociedade os espaccedilos de audiccedilatildeo aos traumas pessoais e sociais Essa mudanccedila na
sociedade soacute pode ser compreendida como parte de um longo e intenso processo de
lutas sociais nas quais justamente os testemunhos dos oprimidos se levantam con-
tra a opressatildeo numa tentativa de resistecircncia e de elaboraccedilatildeo do trauma Eacute evidentee este livro o mostra claramente com autores como Kafka Benjamin Dostoievski
Zola e Tolstoi que uma mudanccedila na esfera do direito soacute poderaacute se dar no contexto
de uma sociedade ela mesma transformada com outra estrutura de poder e uma
distribuiccedilatildeo econocircmica menos injusta Mas estabelecer uma criacutetica do direito eacute algo
efetivo que eacute parte dessa luta por uma transformaccedilatildeo mais global da sociedade Nos
templos do direito como nas trageacutedias a justiccedila estaraacute sempre em um longiacutenquo
horizonte O testemunho no seu sentido forte poliacutetico de engajamento criacutetico na
mudanccedila ndash e natildeo em seu sentido positivista que reafirma o poder da esfera juriacutedi-ca tal como se daacute nas salas de tribunal ndash eacute acolhido nas artes e em algumas esferas
puacuteblicas deixando suas marcas na sociedade como um todo e inclusive forccedilando
as barreiras erguidas pelo direito A criacutetica do direito em grande parte soacute eacute possiacutevel
justamente graccedilas agrave articulaccedilatildeo poliacutetica do testemunho na vida social e concreta
Mas se os sem voz e excluiacutedos se os traumas natildeo articulados pessoais comunitaacute-
rios eacutetnicos e sociais eventualmente adentram a corte isso ocorre natildeo por conta de
uma mudanccedila imanente ou de uma abertura democraacutetica da esfera juriacutedica em si
mesma mas antes como fruto de lutas que se desenrolam haacute deacutecadas ndash e mesmoseacuteculos ndash que tambeacutem visam a tirar a venda da Justiccedila
Felman nos lanccedila com esta obra uma seacuterie de questotildees que atingem o acircmago da
instituiccedilatildeo juriacutedica Assim como Freud abalou nossa identidade e visatildeo do que eacute o
ser humano ao revelar o inconsciente psicoloacutegico tambeacutem Felman ao apontar para
o inconsciente juriacutedico reconfigura o direito e seus limites Ambos psicanaacutelise e a
visada de Felman apostam na forccedila da palavra de um logos subjetivado que enfren-
ta as feridas geradas pelo logos totalitaacuterio e monoloacutegico Com essa abertura criacutetica
proposta por este livro percebemos tambeacutem em que medida sua autora conseguiu
de modo raro e exemplar se colocar muito aleacutem de sua disciplina e galgar um espaccedilo
soacutelido para a criacutetica cultural Soacute podemos desejar que esse gesto se multiplique
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Esse gesto tambeacutem aponta para a originalidade da autora dentro da aacuterea dos
estudos em ldquoLaw and Literaturerdquo ou seja das interfaces entre direito e literatura
Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que
a literatura aborda especificamente temas juriacutedicos ao inveacutes de se apoiar nos estudos
literaacuterios para melhor compreensatildeo da hermenecircutica juriacutedica ou ainda de tratar
das implicaccedilotildees juriacutedicas do campo literaacuterio e tradutoacuterio Felman vai muito aleacutem e
busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura
Como vimos para ela tanto o conceito de trauma eacute um importante vaso comunica-
dor entre essas aacutereas como tambeacutem as anaacutelises de Benjamin Levinas e Arendt sobre
os fenocircmenos do direito e da justiccedila servem de chave nessa empresa de estabelecer
um diaacutelogo entre o mundo do direito e o das letras Felman constroacutei uma plataforma
conceitual e filosoacutefica bastante robusta que permite repensar o campo direito e o da
literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa Tambeacutem nesse sentido
este estudo eacute fundamental
Por fim eacute importante destacar a qualidade do trabalho de traduccedilatildeo levado a cabo
por Ariani Sudatti doutora em direito pela FDUSP e tambeacutem formada em Letras pela
Unicamp Essa dupla formaccedilatildeo garantiu o rigor desta empreitada e nos abriu o acesso
a essas preciosas ideias de Felman que devido agrave sua formulaccedilatildeo conceitual exige uma
traduccedilatildeo atenta e cuidadosa capaz de transitar entre as duas aacutereas Soacute posso esperarque este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre noacutes e gere uma reflexatildeo
(auto)criacutetica por parte daqueles que atuam na esfera juriacutedica ou entatildeo que se interes-
sam pelos grandes debates que enfrentam a questatildeo da Justiccedila e do Direito
Berlim 7 de abril de 2013
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1ordf Ediccedilatildeo 2014
Copyright copy 2002 by the President and Fellows of Harvard CollegeAll rights reserved
ldquoPublished by arrangement with Harvard University Pressrdquo
copy desta traduccedilatildeo Edipro Ediccedilotildees Profissionais Ltda ndash CNPJ nordm 476409820001-40
Todos os direitos reservados Nenhuma parte deste livro poderaacute ser reproduzida ou transmi-tida de qualquer forma ou por quaisquer meios eletrocircnicos ou mecacircnicos incluindo fotocoacutepia
gravaccedilatildeo ou qualquer sistema de armazenamento e recuperaccedilatildeo de informaccedilotildees sem permissatildeopor escrito do Editor
Editores Jair Lot Vieira e Maiacutera Lot Vieira MicalesCoordenaccedilatildeo editorial Fernanda Godoy TarcinalliRevisatildeo teacutecnica Bruno Mendes dos SantosRevisatildeo Fernanda Godoy TarcinalliDiagramaccedilatildeo e Arte Karine Moreto Massoca e Heloise Gomes Basso
Dados Internacionais de Cata logaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)(Cacircmara Brasileira do Livro SP Brasil)
Felman ShoshanaO inconsciente juriacutedico julgamentos e traumas no seacuteculo XX Shoshana Felman traduccedilatildeo
Ariani Bueno Sudatti prefaacutecio Maacutercio Seligmann-Silva ndash Satildeo Paulo EDIPRO 2014
Tiacutetulo original The juridical unconscious trials and traumas in the twentieth century
Bibliografia
ISBN 978-85-7283-796-5
1 Direito - Aspectos psicoloacutegicos 2 Direito na literatura 3 Julgamento - Histoacuteria - Seacuteculo 20 -Aspectos psicoloacutegicos I Seligmann-Silva Maacutercio II Tiacutetulo
13-13748 CDU-34(04)
Iacutendices para c ataacutelogo sistemaacutetico1 Direito Ensaios 34(04)
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O dilema de justiccedila em Walter Benjamin 39
2 F Narrativas traumaacuteticas e repeticcedilotildees juriacutedicas no caso O J Simpson e em
A sonata a Kreutzer de Tolstoi 89
3 T Arendt em Jerusaleacutem o julgamento de Eichmann e a redefiniccedilatildeo do signi-ficado juriacutedico na esteira do holocausto 149
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P Maacutercio Seligmann-Silva
Trauma lei e literaturao olhar criacutetico de Shoshana Felman sobre o Direito
Shoshana Felman eacute sem duacutevida uma das criacuteticas e teoacutericas da literatura mais
influentes no panorama atual Sua obra vem inspirando diversos autores e apontando
para novas abordagens da literatura e da cultura de um modo geral nas quais ela faz
convergir seu erudito saber literaacuterio e filoloacutegico com seu competente domiacutenio dapsicanaacutelise dialogando ainda como vemos aqui de modo muito competente com os
estudos juriacutedicos Assim desde o iniacutecio dos anos 1990 ela foi ao lado de Cathy Ca-
ruth uma das principais responsaacuteveis pelo estabelecimento dos ldquoestudos de traumardquo
que ateacute hoje tecircm multiplicado de modo muito criativo a leitura e a interpretaccedilatildeo de
fenocircmenos culturais sobretudo a partir do processo histoacuterico violento e catastroacutefico
que culminou nas grandes guerras do seacuteculo XX e se estende ateacute nossos dias
O presente ensaio eacute uma aposta muito bem sucedida em outros encontros inter-
disciplinares natildeo menos profiacutecuos e absolutamente atuais Estudos literaacuterios psica-
naliacuteticos e teoria do Direito encontram-se aqui para lanccedilar uma luz inusitada sobre
os verdadeiros noacutes buracos negros da histoacuteria da cultura moderna e notadamente
do seacuteculo XX Partindo de autores como Freud Walter Benjamin Levinas e Hannah
Arendt postos em diaacutelogo com Tolstoi Zola Kafka entre outros a autora vai apre-
Doutor em Teoria Literaacuteria pela Universidade Livre de Berlim poacutes-doutor pela Universidade de Yale eprofessor livre-docente de Teoria Literaacuteria na Unicamp Entre outros eacute o autor de O Local da Diferenccedila (Editora 34 2005) vencedor do Precircmio Jabuti na categoria Melhor Livro de TeoriaCriacutetica Literaacuteria 2006
e foi professor visitante em Universidades no Brasil na Alemanha na Argentina e no Meacutexico De Felman jaacute se encontra publicado no Brasil um importante ensaio que permite uma boa introduccedilatildeo
no seu universo temaacutetico e teoacuterico FELMAN Shoshana Educaccedilatildeo em crise ou as vicissitudes do en-sino In NESTROVSKI Arthur SELIGMANN-SILVA Maacutercio (Orgs) Cataacutestrofe e representaccedilatildeo SatildeoPaulo Escuta 2000
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sentar e analisar os traumas sociais coletivos que estruturam nossas sociedades Seu
locus privilegiado neste estudo eacute o da caixa de ressonacircncia dos tribunais Felman
adentra a cena do tribunal o ldquoteatro da justiccedilardquo para flagrar natildeo o triunfo da razatildeo
e da justiccedila mas sim o momento em que os traumas sociais satildeo aiacute reencenados
postos em accedilatildeo e via de regra reafirmados Ao inveacutes de encarar o tribunal e a cena
do julgamento como local de uma catarse social curativa ou seja de resoluccedilatildeo dos
conflitos Felman nos ensina a vecirc-los como oportunidades para maior explicitaccedilatildeo
dos traumas ndash individuais e coletivos ndash e de seus entrecruzamentos Todavia essa
explicitaccedilatildeo ou mise en action dos traumas natildeo estaacute voltada para a sua elaboraccedilatildeo
criacutetica mas antes presta- se a reproduzir e aprofundar os mesmos e ainda silenciar
as suas demandas de representaccedilatildeoO tiacutetulo deste livro natildeo deixa de remeter ao conceito freudiano de inconsciente
e agrave sua reelaboraccedilatildeo feita por Walter Benjamin Em seu ensaio sobre ldquoA obra de arte
na era de sua reprodutibilidade teacutecnicardquo Benjamin afirmara com relaccedilatildeo ao cinema
que com essa teacutecnica ldquoentra em accedilatildeo a cacircmera com seus meios auxiliares ndash seu
descer e subir seu interromper e isolar sua dilataccedilatildeo e compressatildeo do ocorrido seu
ampliar e reduzir Somente por meio da cacircmera chegamos a conhecer o inconsciente
oacuteptico assim como conhecemos o inconsciente pulsional por meio da psicanaacuteliserdquo
Felman por sua vez mostra de que maneira podemos perceber os tribunais e os jul-gamentos juriacutedicos como uma via privilegiada de acesso aos traumas sociais funcio-
nando tambeacutem como uma lupa ou seja uma lente que aproxima e dilata as fissuras
da sociedade Nessa cena os testemunhos desempenham um papel fundamental
Na teoria literaacuteria o conceito de testemunho desempenha um papel central para
se entender o processo histoacuterico com sua violecircncia estrutural sobretudo a partir do
seacuteculo XX era tanto de genociacutedios guerras e grandes perseguiccedilotildees em massa como
tambeacutem de afirmaccedilatildeo dos direitos humanos Mas esse testemunho no tribunal estaacute
bloqueado marcado pela sua proacutepria impossibilidade O teatro do direito (e natildeotanto o teatro da justiccedila) apenas aparentemente abre-se para a voz das testemunhas
Na verdade a violecircncia institucional que alicerccedila o direito silencia e oprime essas
vozes Mais do que isso simbolicamente a proacutepria sala de tribunal com sua pom-
posidade e com as hierarquias reforccediladas pelas roupas pelos coacutedigos discursivos e
de conduta pela presenccedila de ldquoautoridadesrdquo reproduz uma estrutura de poder so-
cialmente injusta e desigual e revela que o direito e a lei satildeo colunas fundamentais
que sustentam essa mesma estrutura Essa instacircncia que se quer imparcial e digna
de mediar os conflitos entre as partes eacute na verdade cega para as questotildees subjetivas
para os traumas e dramas sociais que estatildeo ali no meio da sala do tribunal mas satildeo
ao mesmo tempo obliterados e emudecidos
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Felman vai tomar o testemunho de um sobrevivente de Auschwitz que sucumbe
no momento de seu depoimento e entra em coma durante o julgamento de Eichmann
como o momento paradigmaacutetico para percebermos essa incomensurabilidade entre o
direito e o trauma Voltaremos a essa cenaPara Benjamin como lemos em seu ensaio de 1921 ldquoZur Kritik der Gewaltrdquo
(ldquoPara uma criacutetica do poderviolecircnciardquo) assim como para seu contemporacircneo Kafka
existe uma forccedila violenta miacutetica que dormita no direito Esfera juriacutedica e justiccedila
aleacutem de natildeo terem nada a ver uma com a outra seriam antes forccedilas antagocircnicas
Benjamin destaca o elemento sacrificial do direito que se manifesta de modo claro
na possibilidade de instituiccedilatildeo da pena de morte O final do romance O processo de
Kafka que encena a execuccedilatildeo fria e absurda do reacuteu K ndash que sequer teve apresentada
a sua culpa ou fora condenado por qualquer crime ndash eacute outra das cenas que Felman
retoma neste ensaio para nos falar dessa forccedila sacrificial Ela aproxima essa passagem
literaacuteria da traacutegica trajetoacuteria de Walter Benjamin que na fronteira entre a Espanha e
a Franccedila deu cabo de sua proacutepria vida impedido de seguir em sua fuga da Gestapo
por falta de um visto em seu passaporte Dramas pessoais e literaacuterios explicitam o
elemento traumaacutetico do inconsciente juriacutedico Literatura (Kafka) e histoacuterias de vida
(Benjamin) se unem para compor essa contraleitura do significado do direito Assim
como na famosa paraacutebola kafkiana ldquoDiante da leirdquo em que um camponecircs eacute barrado
diante da porta da lei e laacute permanece sem poder entrar ateacute a sua morte do mesmo
modo lembra Felman Benjamin sucumbiu na fronteira na porta que poderia levaacute-lo
agrave liberdade pela simples ausecircncia de um carimbo (para aleacutem dos vaacuterios outros vistos
que jaacute havia conseguido em seu passaporte)
De resto uma das questotildees fundamentais que a autora enfrenta eacute justamente o
bloqueio cultural agraves questotildees ldquopessoaisrdquo na cena do tribunal que poderiam servir de
ponte aos traumas sociais coletivos Para ela existiria um abismo entre o direito e a
representaccedilatildeo dessas questotildees No caso do famoso julgamento de O J Simpson
divulgado nos EUA como sendo ldquoo julgamento do seacuteculordquo ela lecirc o confronto de dois
dramas e traumas que se embatem no tribunal um apagando o outro trauma de
gecircnero (violecircncia contra a mulher) e trauma de raccedila (violecircncia contra os afrodescen-
dentes) A imagem do rosto da ex-esposa de O J Simpson com marcas de espanca-
mento as gritantes evidecircncias da violecircncia de gecircnero (na cena do crime e na histoacuteria
do casal) natildeo foram levadas em conta no julgamento Antes ele foi guiado pelo medo
social de se repetir a terriacutevel tradiccedilatildeo norte-americana de perpetraccedilatildeo de uma ldquojus-
Trata-se do julgamento do famoso jogador de futebol americano Orenthal James Simpson que foi acusadode assassinar em 1994 a ex-esposa Nicole Brown Simpson e seu amigo Ronald Goldman A fuga espetacu-lar de Simpson foi televisionada para todo o mundo e seu julgamento em 1995 foi considerado ldquoo julga-mento do seacuteculordquo tendo sido assistido por mais da metade da populaccedilatildeo norte-americana Nessa ocasiatildeoele foi absolvido pelos dois crimes por um tribunal de juacuteri
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ticcedila brancardquo que condena reacuteus afrodescendentes como meio de reforccedilar estereoacutetipos
escravocratas racistas e de violecircncias seculares
Por outro lado a autora recorre a Tolstoi e agrave sua magistral novela A sonata a
Kreutzer mostrando como nessa peccedila literaacuteria a violecircncia de gecircnero apresentada nofinal do seacuteculo XIX jaacute se mostrava tatildeo ominosa quanto no final do seacuteculo seguinte
O protagonista dessa novela confessa ter assassinado a esposa e apresenta esse crime
como algo que escapou inteiramente agrave justiccedila institucional ndash jaacute que o direito o absol-
veu A diferenccedila fundamental com relaccedilatildeo ao julgamento de O J Simpson eacute que na
literatura toda a trama de encobrimento da violecircncia de gecircnero intriacutenseca agraves relaccedilotildees
matrimoniais eacute esmiuccedilada e posta agrave luz do dia A literatura tira o manto de hipocrisia
que cobre a realidade da violecircncia que dormita nas relaccedilotildees de gecircnero e de um modo
geral nas relaccedilotildees sociais fazendo justiccedila agrave elaboraccedilatildeo criacutetica do trauma No caso es-
peciacutefico dessa violecircncia de gecircnero intra-matrimocircnio a casa o lar a famiacutelia satildeo vistos
como o local de um mal-estar ndash como Freud jaacute havia revelado
Felman ao entrecruzar direito psicanaacutelise e literatura mostra-nos como a esfera
subjetiva eacute esmagada pelo direito na mesma medida em que recebe um local um
espaccedilo na literatura E eacute justamente a partir da esfera subjetiva que o direito e a estru-
tura de poder satildeo desconstruiacutedos criticamente Mas a autora natildeo desdobra um tipo
de pensamento maniqueiacutesta que simplesmente opotildee o inferno juriacutedico a um eventualparaiacuteso literaacuterio Pelo contraacuterio ela estaacute atenta agraves ambiguidades dessas instacircncias
Assim o tribunal de Nuremberg por exemplo eacute visto tanto como um tribunal que
reiterou a forccedila e a violecircncia dos vencedores como tambeacutem deve ser visto como um
momento fundamental na instituiccedilatildeo dos ldquocrimes contra a humanidaderdquo Mais do
que isso ainda e essa eacute a originalidade da leitura da autora nesse julgamento pela
primeira vez convocou-se um grande trauma social coletivo (a violecircncia extrema
contra os judeus) ao tribunal A histoacuteria adentrou a corte Jaacute K-Zetnik sobrevivente
do nazismo um escritor e literato conhecido por produzir uma densa literatura sobreAuschwitz foi a testemunha que sucumbiu no julgamento de Eichman Essa cena
mostra como a literatura colapsou diante do tribunal e como seu testemunho se daacute
em outro niacutevel A reflexatildeo de Felman traz agrave discussatildeo do tema o famoso Jrsquoaccuse [Eu
acuso] de Zola A literatura mostra Felman presta um testemunho avant la lettre
quanto agraves (in)justiccedilas dos tribunais seja Tostoi com relaccedilatildeo a O J Simpson seja Zola
e seu Eu acuso com relaccedilatildeo ao julgamento Eichmann seja Kafka e seu ldquoDiante da leirdquo
com relaccedilatildeo a Benjamin
Tambeacutem na antiga trageacutedia podemos ver a literatura servindo de testemunho doinconsciente juriacutedico Muitos estudiosos jaacute destacaram a continuidade entre a cena
dos tribunais e a da trageacutedia grega com suas duas partes confrontando-se e tendo
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a ldquojusticcedilardquo no seu horizonte Refiro-me aqui sobretudo agrave Oresteia de Eacutesquilo uma
trilogia na qual assistimos a Agamenon ser assassinado por sua esposa Clitemnestra
que em seguida eacute assassinada por seu filho Orestes que por sua vez na terceira
trageacutedia eacute absolvido desse seu crime no tribunal inaugural fundador do direito
positivado no Monte Ares julgamento este presidido por ningueacutem menos que Palas
Atena A deusa representa aiacute o direito instituiacutedo que se une agraves Fuacuterias prometendo
manter a ordem A ordem do direito lembrava Benjamin no anteriormente referi-
do ensaio necessita de um poder ameaccedilador (ldquoDie rechterhaltende Gewalt ist eine
drohenderdquo) Esta ideia faz-nos lembrar justamente da seguinte passagem da trageacutedia
Eumecircnides a terceira da trilogia quando Palas Atena define a nova ordem juriacutedica
que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes
Prestai atenccedilatildeo ao que instauro aqui atenienses convocados por mim mesma para julgar pela primeira vez um homem autor de um crime em que foi derramado sangueA partir deste dia e para todo o sempre o povo que jaacute teve como rei Egeu teraacute a incum-becircncia de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares [] Sobreesta elevaccedilatildeo digo que a Reverecircncia e o Temor seu irmatildeo seja durante o dia seja de noiteevitaratildeo que os cidadatildeos cometam crimes a natildeo ser que eles prefiram aniquilar as leisfeitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com efluacutevios turvos as fontes claras natildeoteraacute onde beber) Nem opressatildeo nem anarquia eis o lema que os cidadatildeos devem seguir
e respeitar Natildeo lhes conveacutem tampouco expulsar da cidade todo o Temor se nada tiver atemer que homem cumpriraacute aqui seus deveres
Esse perfil falocecircntrico e patriarcal que eacute dado agrave ordem juriacutedica como aquela que
empunha a espada para existir eacute tambeacutem desdobrado nas falas do tribunal quando
Orestes e seu advogado Apolo empilham prova sobre prova para convencer os jura-
dos quanto agrave inocecircncia do matricida Orestes apela todo o tempo para a figura de seu
pai Agamenon e Apolo por sua vez evoca tambeacutem seu pai Zeus como guardiatildeo da
verdade e da justiccedila Vale lembrar que Atena eacute apresentada nessa trageacutedia como uma
deusa sem matildee nascida diretamente de seu genitor Zeus Orestes acaba absolvido
pelo ldquovoto de Minervardquo ou seja de Palas Atena Por outro lado o parricida Eacutedipo
como sabemos da trilogia de Soacutefocles sobre esse personagem uma vez descobertos
seu crimes ldquoinvoluntaacuteriosrdquo eacute cegado e banido de sua cidade matar a matildee eacute perdoaacutevel
o pai jamais parecem-nos dizer esses protomodelos sociais do Ocidente
Esse convencer objetivo marcado pela comprovaccedilatildeo espetacular de preferecircncia
visual tiacutepico do tribunal deve ser oposto a um outro espaccedilo para recepccedilatildeo do teste-
munho oral muitas vezes fragmentado e carregado de subjetividade Eacute esse espaccedilo
testemunhal que Felman defende aqui destacando os quase insuperaacuteveis limites de
sua acolhida por parte da instituiccedilatildeo juriacutedica Sem organizaccedilatildeo poliacutetica a voz do
testemunho individual e coletivo daqueles que sofreram uma grave injusticcedila social
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ou privada natildeo consegue dobrar o poder do direito Poder esse que se concretiza
simbolicamente nas casas da Justiccedila esses palaacutecios com suas colunas gregas que
parecem ainda ornar templos em homenagem a Palas Atena a quem se sacrificam as
viacutetimas O modo como Felman abre nossos olhos para perceber o condicionamento
reciacuteproco entre trauma e direito e ao mesmo tempo para a forccedila da fala testemu-
nhal ndash apresentada na literatura e em filmes como o Shoah de Lanzmann e Que
bom te ver viva de Luacutecia Murat ndash deve nos inspirar a lutar no sentido de ampliar
na sociedade os espaccedilos de audiccedilatildeo aos traumas pessoais e sociais Essa mudanccedila na
sociedade soacute pode ser compreendida como parte de um longo e intenso processo de
lutas sociais nas quais justamente os testemunhos dos oprimidos se levantam con-
tra a opressatildeo numa tentativa de resistecircncia e de elaboraccedilatildeo do trauma Eacute evidentee este livro o mostra claramente com autores como Kafka Benjamin Dostoievski
Zola e Tolstoi que uma mudanccedila na esfera do direito soacute poderaacute se dar no contexto
de uma sociedade ela mesma transformada com outra estrutura de poder e uma
distribuiccedilatildeo econocircmica menos injusta Mas estabelecer uma criacutetica do direito eacute algo
efetivo que eacute parte dessa luta por uma transformaccedilatildeo mais global da sociedade Nos
templos do direito como nas trageacutedias a justiccedila estaraacute sempre em um longiacutenquo
horizonte O testemunho no seu sentido forte poliacutetico de engajamento criacutetico na
mudanccedila ndash e natildeo em seu sentido positivista que reafirma o poder da esfera juriacutedi-ca tal como se daacute nas salas de tribunal ndash eacute acolhido nas artes e em algumas esferas
puacuteblicas deixando suas marcas na sociedade como um todo e inclusive forccedilando
as barreiras erguidas pelo direito A criacutetica do direito em grande parte soacute eacute possiacutevel
justamente graccedilas agrave articulaccedilatildeo poliacutetica do testemunho na vida social e concreta
Mas se os sem voz e excluiacutedos se os traumas natildeo articulados pessoais comunitaacute-
rios eacutetnicos e sociais eventualmente adentram a corte isso ocorre natildeo por conta de
uma mudanccedila imanente ou de uma abertura democraacutetica da esfera juriacutedica em si
mesma mas antes como fruto de lutas que se desenrolam haacute deacutecadas ndash e mesmoseacuteculos ndash que tambeacutem visam a tirar a venda da Justiccedila
Felman nos lanccedila com esta obra uma seacuterie de questotildees que atingem o acircmago da
instituiccedilatildeo juriacutedica Assim como Freud abalou nossa identidade e visatildeo do que eacute o
ser humano ao revelar o inconsciente psicoloacutegico tambeacutem Felman ao apontar para
o inconsciente juriacutedico reconfigura o direito e seus limites Ambos psicanaacutelise e a
visada de Felman apostam na forccedila da palavra de um logos subjetivado que enfren-
ta as feridas geradas pelo logos totalitaacuterio e monoloacutegico Com essa abertura criacutetica
proposta por este livro percebemos tambeacutem em que medida sua autora conseguiu
de modo raro e exemplar se colocar muito aleacutem de sua disciplina e galgar um espaccedilo
soacutelido para a criacutetica cultural Soacute podemos desejar que esse gesto se multiplique
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Esse gesto tambeacutem aponta para a originalidade da autora dentro da aacuterea dos
estudos em ldquoLaw and Literaturerdquo ou seja das interfaces entre direito e literatura
Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que
a literatura aborda especificamente temas juriacutedicos ao inveacutes de se apoiar nos estudos
literaacuterios para melhor compreensatildeo da hermenecircutica juriacutedica ou ainda de tratar
das implicaccedilotildees juriacutedicas do campo literaacuterio e tradutoacuterio Felman vai muito aleacutem e
busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura
Como vimos para ela tanto o conceito de trauma eacute um importante vaso comunica-
dor entre essas aacutereas como tambeacutem as anaacutelises de Benjamin Levinas e Arendt sobre
os fenocircmenos do direito e da justiccedila servem de chave nessa empresa de estabelecer
um diaacutelogo entre o mundo do direito e o das letras Felman constroacutei uma plataforma
conceitual e filosoacutefica bastante robusta que permite repensar o campo direito e o da
literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa Tambeacutem nesse sentido
este estudo eacute fundamental
Por fim eacute importante destacar a qualidade do trabalho de traduccedilatildeo levado a cabo
por Ariani Sudatti doutora em direito pela FDUSP e tambeacutem formada em Letras pela
Unicamp Essa dupla formaccedilatildeo garantiu o rigor desta empreitada e nos abriu o acesso
a essas preciosas ideias de Felman que devido agrave sua formulaccedilatildeo conceitual exige uma
traduccedilatildeo atenta e cuidadosa capaz de transitar entre as duas aacutereas Soacute posso esperarque este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre noacutes e gere uma reflexatildeo
(auto)criacutetica por parte daqueles que atuam na esfera juriacutedica ou entatildeo que se interes-
sam pelos grandes debates que enfrentam a questatildeo da Justiccedila e do Direito
Berlim 7 de abril de 2013
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Trauma lei e literaturao olhar criacutetico de Shoshana Felman sobre o Direito
Shoshana Felman eacute sem duacutevida uma das criacuteticas e teoacutericas da literatura mais
influentes no panorama atual Sua obra vem inspirando diversos autores e apontando
para novas abordagens da literatura e da cultura de um modo geral nas quais ela faz
convergir seu erudito saber literaacuterio e filoloacutegico com seu competente domiacutenio dapsicanaacutelise dialogando ainda como vemos aqui de modo muito competente com os
estudos juriacutedicos Assim desde o iniacutecio dos anos 1990 ela foi ao lado de Cathy Ca-
ruth uma das principais responsaacuteveis pelo estabelecimento dos ldquoestudos de traumardquo
que ateacute hoje tecircm multiplicado de modo muito criativo a leitura e a interpretaccedilatildeo de
fenocircmenos culturais sobretudo a partir do processo histoacuterico violento e catastroacutefico
que culminou nas grandes guerras do seacuteculo XX e se estende ateacute nossos dias
O presente ensaio eacute uma aposta muito bem sucedida em outros encontros inter-
disciplinares natildeo menos profiacutecuos e absolutamente atuais Estudos literaacuterios psica-
naliacuteticos e teoria do Direito encontram-se aqui para lanccedilar uma luz inusitada sobre
os verdadeiros noacutes buracos negros da histoacuteria da cultura moderna e notadamente
do seacuteculo XX Partindo de autores como Freud Walter Benjamin Levinas e Hannah
Arendt postos em diaacutelogo com Tolstoi Zola Kafka entre outros a autora vai apre-
Doutor em Teoria Literaacuteria pela Universidade Livre de Berlim poacutes-doutor pela Universidade de Yale eprofessor livre-docente de Teoria Literaacuteria na Unicamp Entre outros eacute o autor de O Local da Diferenccedila (Editora 34 2005) vencedor do Precircmio Jabuti na categoria Melhor Livro de TeoriaCriacutetica Literaacuteria 2006
e foi professor visitante em Universidades no Brasil na Alemanha na Argentina e no Meacutexico De Felman jaacute se encontra publicado no Brasil um importante ensaio que permite uma boa introduccedilatildeo
no seu universo temaacutetico e teoacuterico FELMAN Shoshana Educaccedilatildeo em crise ou as vicissitudes do en-sino In NESTROVSKI Arthur SELIGMANN-SILVA Maacutercio (Orgs) Cataacutestrofe e representaccedilatildeo SatildeoPaulo Escuta 2000
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sentar e analisar os traumas sociais coletivos que estruturam nossas sociedades Seu
locus privilegiado neste estudo eacute o da caixa de ressonacircncia dos tribunais Felman
adentra a cena do tribunal o ldquoteatro da justiccedilardquo para flagrar natildeo o triunfo da razatildeo
e da justiccedila mas sim o momento em que os traumas sociais satildeo aiacute reencenados
postos em accedilatildeo e via de regra reafirmados Ao inveacutes de encarar o tribunal e a cena
do julgamento como local de uma catarse social curativa ou seja de resoluccedilatildeo dos
conflitos Felman nos ensina a vecirc-los como oportunidades para maior explicitaccedilatildeo
dos traumas ndash individuais e coletivos ndash e de seus entrecruzamentos Todavia essa
explicitaccedilatildeo ou mise en action dos traumas natildeo estaacute voltada para a sua elaboraccedilatildeo
criacutetica mas antes presta- se a reproduzir e aprofundar os mesmos e ainda silenciar
as suas demandas de representaccedilatildeoO tiacutetulo deste livro natildeo deixa de remeter ao conceito freudiano de inconsciente
e agrave sua reelaboraccedilatildeo feita por Walter Benjamin Em seu ensaio sobre ldquoA obra de arte
na era de sua reprodutibilidade teacutecnicardquo Benjamin afirmara com relaccedilatildeo ao cinema
que com essa teacutecnica ldquoentra em accedilatildeo a cacircmera com seus meios auxiliares ndash seu
descer e subir seu interromper e isolar sua dilataccedilatildeo e compressatildeo do ocorrido seu
ampliar e reduzir Somente por meio da cacircmera chegamos a conhecer o inconsciente
oacuteptico assim como conhecemos o inconsciente pulsional por meio da psicanaacuteliserdquo
Felman por sua vez mostra de que maneira podemos perceber os tribunais e os jul-gamentos juriacutedicos como uma via privilegiada de acesso aos traumas sociais funcio-
nando tambeacutem como uma lupa ou seja uma lente que aproxima e dilata as fissuras
da sociedade Nessa cena os testemunhos desempenham um papel fundamental
Na teoria literaacuteria o conceito de testemunho desempenha um papel central para
se entender o processo histoacuterico com sua violecircncia estrutural sobretudo a partir do
seacuteculo XX era tanto de genociacutedios guerras e grandes perseguiccedilotildees em massa como
tambeacutem de afirmaccedilatildeo dos direitos humanos Mas esse testemunho no tribunal estaacute
bloqueado marcado pela sua proacutepria impossibilidade O teatro do direito (e natildeotanto o teatro da justiccedila) apenas aparentemente abre-se para a voz das testemunhas
Na verdade a violecircncia institucional que alicerccedila o direito silencia e oprime essas
vozes Mais do que isso simbolicamente a proacutepria sala de tribunal com sua pom-
posidade e com as hierarquias reforccediladas pelas roupas pelos coacutedigos discursivos e
de conduta pela presenccedila de ldquoautoridadesrdquo reproduz uma estrutura de poder so-
cialmente injusta e desigual e revela que o direito e a lei satildeo colunas fundamentais
que sustentam essa mesma estrutura Essa instacircncia que se quer imparcial e digna
de mediar os conflitos entre as partes eacute na verdade cega para as questotildees subjetivas
para os traumas e dramas sociais que estatildeo ali no meio da sala do tribunal mas satildeo
ao mesmo tempo obliterados e emudecidos
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Felman vai tomar o testemunho de um sobrevivente de Auschwitz que sucumbe
no momento de seu depoimento e entra em coma durante o julgamento de Eichmann
como o momento paradigmaacutetico para percebermos essa incomensurabilidade entre o
direito e o trauma Voltaremos a essa cenaPara Benjamin como lemos em seu ensaio de 1921 ldquoZur Kritik der Gewaltrdquo
(ldquoPara uma criacutetica do poderviolecircnciardquo) assim como para seu contemporacircneo Kafka
existe uma forccedila violenta miacutetica que dormita no direito Esfera juriacutedica e justiccedila
aleacutem de natildeo terem nada a ver uma com a outra seriam antes forccedilas antagocircnicas
Benjamin destaca o elemento sacrificial do direito que se manifesta de modo claro
na possibilidade de instituiccedilatildeo da pena de morte O final do romance O processo de
Kafka que encena a execuccedilatildeo fria e absurda do reacuteu K ndash que sequer teve apresentada
a sua culpa ou fora condenado por qualquer crime ndash eacute outra das cenas que Felman
retoma neste ensaio para nos falar dessa forccedila sacrificial Ela aproxima essa passagem
literaacuteria da traacutegica trajetoacuteria de Walter Benjamin que na fronteira entre a Espanha e
a Franccedila deu cabo de sua proacutepria vida impedido de seguir em sua fuga da Gestapo
por falta de um visto em seu passaporte Dramas pessoais e literaacuterios explicitam o
elemento traumaacutetico do inconsciente juriacutedico Literatura (Kafka) e histoacuterias de vida
(Benjamin) se unem para compor essa contraleitura do significado do direito Assim
como na famosa paraacutebola kafkiana ldquoDiante da leirdquo em que um camponecircs eacute barrado
diante da porta da lei e laacute permanece sem poder entrar ateacute a sua morte do mesmo
modo lembra Felman Benjamin sucumbiu na fronteira na porta que poderia levaacute-lo
agrave liberdade pela simples ausecircncia de um carimbo (para aleacutem dos vaacuterios outros vistos
que jaacute havia conseguido em seu passaporte)
De resto uma das questotildees fundamentais que a autora enfrenta eacute justamente o
bloqueio cultural agraves questotildees ldquopessoaisrdquo na cena do tribunal que poderiam servir de
ponte aos traumas sociais coletivos Para ela existiria um abismo entre o direito e a
representaccedilatildeo dessas questotildees No caso do famoso julgamento de O J Simpson
divulgado nos EUA como sendo ldquoo julgamento do seacuteculordquo ela lecirc o confronto de dois
dramas e traumas que se embatem no tribunal um apagando o outro trauma de
gecircnero (violecircncia contra a mulher) e trauma de raccedila (violecircncia contra os afrodescen-
dentes) A imagem do rosto da ex-esposa de O J Simpson com marcas de espanca-
mento as gritantes evidecircncias da violecircncia de gecircnero (na cena do crime e na histoacuteria
do casal) natildeo foram levadas em conta no julgamento Antes ele foi guiado pelo medo
social de se repetir a terriacutevel tradiccedilatildeo norte-americana de perpetraccedilatildeo de uma ldquojus-
Trata-se do julgamento do famoso jogador de futebol americano Orenthal James Simpson que foi acusadode assassinar em 1994 a ex-esposa Nicole Brown Simpson e seu amigo Ronald Goldman A fuga espetacu-lar de Simpson foi televisionada para todo o mundo e seu julgamento em 1995 foi considerado ldquoo julga-mento do seacuteculordquo tendo sido assistido por mais da metade da populaccedilatildeo norte-americana Nessa ocasiatildeoele foi absolvido pelos dois crimes por um tribunal de juacuteri
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ticcedila brancardquo que condena reacuteus afrodescendentes como meio de reforccedilar estereoacutetipos
escravocratas racistas e de violecircncias seculares
Por outro lado a autora recorre a Tolstoi e agrave sua magistral novela A sonata a
Kreutzer mostrando como nessa peccedila literaacuteria a violecircncia de gecircnero apresentada nofinal do seacuteculo XIX jaacute se mostrava tatildeo ominosa quanto no final do seacuteculo seguinte
O protagonista dessa novela confessa ter assassinado a esposa e apresenta esse crime
como algo que escapou inteiramente agrave justiccedila institucional ndash jaacute que o direito o absol-
veu A diferenccedila fundamental com relaccedilatildeo ao julgamento de O J Simpson eacute que na
literatura toda a trama de encobrimento da violecircncia de gecircnero intriacutenseca agraves relaccedilotildees
matrimoniais eacute esmiuccedilada e posta agrave luz do dia A literatura tira o manto de hipocrisia
que cobre a realidade da violecircncia que dormita nas relaccedilotildees de gecircnero e de um modo
geral nas relaccedilotildees sociais fazendo justiccedila agrave elaboraccedilatildeo criacutetica do trauma No caso es-
peciacutefico dessa violecircncia de gecircnero intra-matrimocircnio a casa o lar a famiacutelia satildeo vistos
como o local de um mal-estar ndash como Freud jaacute havia revelado
Felman ao entrecruzar direito psicanaacutelise e literatura mostra-nos como a esfera
subjetiva eacute esmagada pelo direito na mesma medida em que recebe um local um
espaccedilo na literatura E eacute justamente a partir da esfera subjetiva que o direito e a estru-
tura de poder satildeo desconstruiacutedos criticamente Mas a autora natildeo desdobra um tipo
de pensamento maniqueiacutesta que simplesmente opotildee o inferno juriacutedico a um eventualparaiacuteso literaacuterio Pelo contraacuterio ela estaacute atenta agraves ambiguidades dessas instacircncias
Assim o tribunal de Nuremberg por exemplo eacute visto tanto como um tribunal que
reiterou a forccedila e a violecircncia dos vencedores como tambeacutem deve ser visto como um
momento fundamental na instituiccedilatildeo dos ldquocrimes contra a humanidaderdquo Mais do
que isso ainda e essa eacute a originalidade da leitura da autora nesse julgamento pela
primeira vez convocou-se um grande trauma social coletivo (a violecircncia extrema
contra os judeus) ao tribunal A histoacuteria adentrou a corte Jaacute K-Zetnik sobrevivente
do nazismo um escritor e literato conhecido por produzir uma densa literatura sobreAuschwitz foi a testemunha que sucumbiu no julgamento de Eichman Essa cena
mostra como a literatura colapsou diante do tribunal e como seu testemunho se daacute
em outro niacutevel A reflexatildeo de Felman traz agrave discussatildeo do tema o famoso Jrsquoaccuse [Eu
acuso] de Zola A literatura mostra Felman presta um testemunho avant la lettre
quanto agraves (in)justiccedilas dos tribunais seja Tostoi com relaccedilatildeo a O J Simpson seja Zola
e seu Eu acuso com relaccedilatildeo ao julgamento Eichmann seja Kafka e seu ldquoDiante da leirdquo
com relaccedilatildeo a Benjamin
Tambeacutem na antiga trageacutedia podemos ver a literatura servindo de testemunho doinconsciente juriacutedico Muitos estudiosos jaacute destacaram a continuidade entre a cena
dos tribunais e a da trageacutedia grega com suas duas partes confrontando-se e tendo
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a ldquojusticcedilardquo no seu horizonte Refiro-me aqui sobretudo agrave Oresteia de Eacutesquilo uma
trilogia na qual assistimos a Agamenon ser assassinado por sua esposa Clitemnestra
que em seguida eacute assassinada por seu filho Orestes que por sua vez na terceira
trageacutedia eacute absolvido desse seu crime no tribunal inaugural fundador do direito
positivado no Monte Ares julgamento este presidido por ningueacutem menos que Palas
Atena A deusa representa aiacute o direito instituiacutedo que se une agraves Fuacuterias prometendo
manter a ordem A ordem do direito lembrava Benjamin no anteriormente referi-
do ensaio necessita de um poder ameaccedilador (ldquoDie rechterhaltende Gewalt ist eine
drohenderdquo) Esta ideia faz-nos lembrar justamente da seguinte passagem da trageacutedia
Eumecircnides a terceira da trilogia quando Palas Atena define a nova ordem juriacutedica
que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes
Prestai atenccedilatildeo ao que instauro aqui atenienses convocados por mim mesma para julgar pela primeira vez um homem autor de um crime em que foi derramado sangueA partir deste dia e para todo o sempre o povo que jaacute teve como rei Egeu teraacute a incum-becircncia de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares [] Sobreesta elevaccedilatildeo digo que a Reverecircncia e o Temor seu irmatildeo seja durante o dia seja de noiteevitaratildeo que os cidadatildeos cometam crimes a natildeo ser que eles prefiram aniquilar as leisfeitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com efluacutevios turvos as fontes claras natildeoteraacute onde beber) Nem opressatildeo nem anarquia eis o lema que os cidadatildeos devem seguir
e respeitar Natildeo lhes conveacutem tampouco expulsar da cidade todo o Temor se nada tiver atemer que homem cumpriraacute aqui seus deveres
Esse perfil falocecircntrico e patriarcal que eacute dado agrave ordem juriacutedica como aquela que
empunha a espada para existir eacute tambeacutem desdobrado nas falas do tribunal quando
Orestes e seu advogado Apolo empilham prova sobre prova para convencer os jura-
dos quanto agrave inocecircncia do matricida Orestes apela todo o tempo para a figura de seu
pai Agamenon e Apolo por sua vez evoca tambeacutem seu pai Zeus como guardiatildeo da
verdade e da justiccedila Vale lembrar que Atena eacute apresentada nessa trageacutedia como uma
deusa sem matildee nascida diretamente de seu genitor Zeus Orestes acaba absolvido
pelo ldquovoto de Minervardquo ou seja de Palas Atena Por outro lado o parricida Eacutedipo
como sabemos da trilogia de Soacutefocles sobre esse personagem uma vez descobertos
seu crimes ldquoinvoluntaacuteriosrdquo eacute cegado e banido de sua cidade matar a matildee eacute perdoaacutevel
o pai jamais parecem-nos dizer esses protomodelos sociais do Ocidente
Esse convencer objetivo marcado pela comprovaccedilatildeo espetacular de preferecircncia
visual tiacutepico do tribunal deve ser oposto a um outro espaccedilo para recepccedilatildeo do teste-
munho oral muitas vezes fragmentado e carregado de subjetividade Eacute esse espaccedilo
testemunhal que Felman defende aqui destacando os quase insuperaacuteveis limites de
sua acolhida por parte da instituiccedilatildeo juriacutedica Sem organizaccedilatildeo poliacutetica a voz do
testemunho individual e coletivo daqueles que sofreram uma grave injusticcedila social
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ou privada natildeo consegue dobrar o poder do direito Poder esse que se concretiza
simbolicamente nas casas da Justiccedila esses palaacutecios com suas colunas gregas que
parecem ainda ornar templos em homenagem a Palas Atena a quem se sacrificam as
viacutetimas O modo como Felman abre nossos olhos para perceber o condicionamento
reciacuteproco entre trauma e direito e ao mesmo tempo para a forccedila da fala testemu-
nhal ndash apresentada na literatura e em filmes como o Shoah de Lanzmann e Que
bom te ver viva de Luacutecia Murat ndash deve nos inspirar a lutar no sentido de ampliar
na sociedade os espaccedilos de audiccedilatildeo aos traumas pessoais e sociais Essa mudanccedila na
sociedade soacute pode ser compreendida como parte de um longo e intenso processo de
lutas sociais nas quais justamente os testemunhos dos oprimidos se levantam con-
tra a opressatildeo numa tentativa de resistecircncia e de elaboraccedilatildeo do trauma Eacute evidentee este livro o mostra claramente com autores como Kafka Benjamin Dostoievski
Zola e Tolstoi que uma mudanccedila na esfera do direito soacute poderaacute se dar no contexto
de uma sociedade ela mesma transformada com outra estrutura de poder e uma
distribuiccedilatildeo econocircmica menos injusta Mas estabelecer uma criacutetica do direito eacute algo
efetivo que eacute parte dessa luta por uma transformaccedilatildeo mais global da sociedade Nos
templos do direito como nas trageacutedias a justiccedila estaraacute sempre em um longiacutenquo
horizonte O testemunho no seu sentido forte poliacutetico de engajamento criacutetico na
mudanccedila ndash e natildeo em seu sentido positivista que reafirma o poder da esfera juriacutedi-ca tal como se daacute nas salas de tribunal ndash eacute acolhido nas artes e em algumas esferas
puacuteblicas deixando suas marcas na sociedade como um todo e inclusive forccedilando
as barreiras erguidas pelo direito A criacutetica do direito em grande parte soacute eacute possiacutevel
justamente graccedilas agrave articulaccedilatildeo poliacutetica do testemunho na vida social e concreta
Mas se os sem voz e excluiacutedos se os traumas natildeo articulados pessoais comunitaacute-
rios eacutetnicos e sociais eventualmente adentram a corte isso ocorre natildeo por conta de
uma mudanccedila imanente ou de uma abertura democraacutetica da esfera juriacutedica em si
mesma mas antes como fruto de lutas que se desenrolam haacute deacutecadas ndash e mesmoseacuteculos ndash que tambeacutem visam a tirar a venda da Justiccedila
Felman nos lanccedila com esta obra uma seacuterie de questotildees que atingem o acircmago da
instituiccedilatildeo juriacutedica Assim como Freud abalou nossa identidade e visatildeo do que eacute o
ser humano ao revelar o inconsciente psicoloacutegico tambeacutem Felman ao apontar para
o inconsciente juriacutedico reconfigura o direito e seus limites Ambos psicanaacutelise e a
visada de Felman apostam na forccedila da palavra de um logos subjetivado que enfren-
ta as feridas geradas pelo logos totalitaacuterio e monoloacutegico Com essa abertura criacutetica
proposta por este livro percebemos tambeacutem em que medida sua autora conseguiu
de modo raro e exemplar se colocar muito aleacutem de sua disciplina e galgar um espaccedilo
soacutelido para a criacutetica cultural Soacute podemos desejar que esse gesto se multiplique
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Esse gesto tambeacutem aponta para a originalidade da autora dentro da aacuterea dos
estudos em ldquoLaw and Literaturerdquo ou seja das interfaces entre direito e literatura
Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que
a literatura aborda especificamente temas juriacutedicos ao inveacutes de se apoiar nos estudos
literaacuterios para melhor compreensatildeo da hermenecircutica juriacutedica ou ainda de tratar
das implicaccedilotildees juriacutedicas do campo literaacuterio e tradutoacuterio Felman vai muito aleacutem e
busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura
Como vimos para ela tanto o conceito de trauma eacute um importante vaso comunica-
dor entre essas aacutereas como tambeacutem as anaacutelises de Benjamin Levinas e Arendt sobre
os fenocircmenos do direito e da justiccedila servem de chave nessa empresa de estabelecer
um diaacutelogo entre o mundo do direito e o das letras Felman constroacutei uma plataforma
conceitual e filosoacutefica bastante robusta que permite repensar o campo direito e o da
literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa Tambeacutem nesse sentido
este estudo eacute fundamental
Por fim eacute importante destacar a qualidade do trabalho de traduccedilatildeo levado a cabo
por Ariani Sudatti doutora em direito pela FDUSP e tambeacutem formada em Letras pela
Unicamp Essa dupla formaccedilatildeo garantiu o rigor desta empreitada e nos abriu o acesso
a essas preciosas ideias de Felman que devido agrave sua formulaccedilatildeo conceitual exige uma
traduccedilatildeo atenta e cuidadosa capaz de transitar entre as duas aacutereas Soacute posso esperarque este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre noacutes e gere uma reflexatildeo
(auto)criacutetica por parte daqueles que atuam na esfera juriacutedica ou entatildeo que se interes-
sam pelos grandes debates que enfrentam a questatildeo da Justiccedila e do Direito
Berlim 7 de abril de 2013
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P Maacutercio Seligmann-Silva
Trauma lei e literaturao olhar criacutetico de Shoshana Felman sobre o Direito
Shoshana Felman eacute sem duacutevida uma das criacuteticas e teoacutericas da literatura mais
influentes no panorama atual Sua obra vem inspirando diversos autores e apontando
para novas abordagens da literatura e da cultura de um modo geral nas quais ela faz
convergir seu erudito saber literaacuterio e filoloacutegico com seu competente domiacutenio dapsicanaacutelise dialogando ainda como vemos aqui de modo muito competente com os
estudos juriacutedicos Assim desde o iniacutecio dos anos 1990 ela foi ao lado de Cathy Ca-
ruth uma das principais responsaacuteveis pelo estabelecimento dos ldquoestudos de traumardquo
que ateacute hoje tecircm multiplicado de modo muito criativo a leitura e a interpretaccedilatildeo de
fenocircmenos culturais sobretudo a partir do processo histoacuterico violento e catastroacutefico
que culminou nas grandes guerras do seacuteculo XX e se estende ateacute nossos dias
O presente ensaio eacute uma aposta muito bem sucedida em outros encontros inter-
disciplinares natildeo menos profiacutecuos e absolutamente atuais Estudos literaacuterios psica-
naliacuteticos e teoria do Direito encontram-se aqui para lanccedilar uma luz inusitada sobre
os verdadeiros noacutes buracos negros da histoacuteria da cultura moderna e notadamente
do seacuteculo XX Partindo de autores como Freud Walter Benjamin Levinas e Hannah
Arendt postos em diaacutelogo com Tolstoi Zola Kafka entre outros a autora vai apre-
Doutor em Teoria Literaacuteria pela Universidade Livre de Berlim poacutes-doutor pela Universidade de Yale eprofessor livre-docente de Teoria Literaacuteria na Unicamp Entre outros eacute o autor de O Local da Diferenccedila (Editora 34 2005) vencedor do Precircmio Jabuti na categoria Melhor Livro de TeoriaCriacutetica Literaacuteria 2006
e foi professor visitante em Universidades no Brasil na Alemanha na Argentina e no Meacutexico De Felman jaacute se encontra publicado no Brasil um importante ensaio que permite uma boa introduccedilatildeo
no seu universo temaacutetico e teoacuterico FELMAN Shoshana Educaccedilatildeo em crise ou as vicissitudes do en-sino In NESTROVSKI Arthur SELIGMANN-SILVA Maacutercio (Orgs) Cataacutestrofe e representaccedilatildeo SatildeoPaulo Escuta 2000
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sentar e analisar os traumas sociais coletivos que estruturam nossas sociedades Seu
locus privilegiado neste estudo eacute o da caixa de ressonacircncia dos tribunais Felman
adentra a cena do tribunal o ldquoteatro da justiccedilardquo para flagrar natildeo o triunfo da razatildeo
e da justiccedila mas sim o momento em que os traumas sociais satildeo aiacute reencenados
postos em accedilatildeo e via de regra reafirmados Ao inveacutes de encarar o tribunal e a cena
do julgamento como local de uma catarse social curativa ou seja de resoluccedilatildeo dos
conflitos Felman nos ensina a vecirc-los como oportunidades para maior explicitaccedilatildeo
dos traumas ndash individuais e coletivos ndash e de seus entrecruzamentos Todavia essa
explicitaccedilatildeo ou mise en action dos traumas natildeo estaacute voltada para a sua elaboraccedilatildeo
criacutetica mas antes presta- se a reproduzir e aprofundar os mesmos e ainda silenciar
as suas demandas de representaccedilatildeoO tiacutetulo deste livro natildeo deixa de remeter ao conceito freudiano de inconsciente
e agrave sua reelaboraccedilatildeo feita por Walter Benjamin Em seu ensaio sobre ldquoA obra de arte
na era de sua reprodutibilidade teacutecnicardquo Benjamin afirmara com relaccedilatildeo ao cinema
que com essa teacutecnica ldquoentra em accedilatildeo a cacircmera com seus meios auxiliares ndash seu
descer e subir seu interromper e isolar sua dilataccedilatildeo e compressatildeo do ocorrido seu
ampliar e reduzir Somente por meio da cacircmera chegamos a conhecer o inconsciente
oacuteptico assim como conhecemos o inconsciente pulsional por meio da psicanaacuteliserdquo
Felman por sua vez mostra de que maneira podemos perceber os tribunais e os jul-gamentos juriacutedicos como uma via privilegiada de acesso aos traumas sociais funcio-
nando tambeacutem como uma lupa ou seja uma lente que aproxima e dilata as fissuras
da sociedade Nessa cena os testemunhos desempenham um papel fundamental
Na teoria literaacuteria o conceito de testemunho desempenha um papel central para
se entender o processo histoacuterico com sua violecircncia estrutural sobretudo a partir do
seacuteculo XX era tanto de genociacutedios guerras e grandes perseguiccedilotildees em massa como
tambeacutem de afirmaccedilatildeo dos direitos humanos Mas esse testemunho no tribunal estaacute
bloqueado marcado pela sua proacutepria impossibilidade O teatro do direito (e natildeotanto o teatro da justiccedila) apenas aparentemente abre-se para a voz das testemunhas
Na verdade a violecircncia institucional que alicerccedila o direito silencia e oprime essas
vozes Mais do que isso simbolicamente a proacutepria sala de tribunal com sua pom-
posidade e com as hierarquias reforccediladas pelas roupas pelos coacutedigos discursivos e
de conduta pela presenccedila de ldquoautoridadesrdquo reproduz uma estrutura de poder so-
cialmente injusta e desigual e revela que o direito e a lei satildeo colunas fundamentais
que sustentam essa mesma estrutura Essa instacircncia que se quer imparcial e digna
de mediar os conflitos entre as partes eacute na verdade cega para as questotildees subjetivas
para os traumas e dramas sociais que estatildeo ali no meio da sala do tribunal mas satildeo
ao mesmo tempo obliterados e emudecidos
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Felman vai tomar o testemunho de um sobrevivente de Auschwitz que sucumbe
no momento de seu depoimento e entra em coma durante o julgamento de Eichmann
como o momento paradigmaacutetico para percebermos essa incomensurabilidade entre o
direito e o trauma Voltaremos a essa cenaPara Benjamin como lemos em seu ensaio de 1921 ldquoZur Kritik der Gewaltrdquo
(ldquoPara uma criacutetica do poderviolecircnciardquo) assim como para seu contemporacircneo Kafka
existe uma forccedila violenta miacutetica que dormita no direito Esfera juriacutedica e justiccedila
aleacutem de natildeo terem nada a ver uma com a outra seriam antes forccedilas antagocircnicas
Benjamin destaca o elemento sacrificial do direito que se manifesta de modo claro
na possibilidade de instituiccedilatildeo da pena de morte O final do romance O processo de
Kafka que encena a execuccedilatildeo fria e absurda do reacuteu K ndash que sequer teve apresentada
a sua culpa ou fora condenado por qualquer crime ndash eacute outra das cenas que Felman
retoma neste ensaio para nos falar dessa forccedila sacrificial Ela aproxima essa passagem
literaacuteria da traacutegica trajetoacuteria de Walter Benjamin que na fronteira entre a Espanha e
a Franccedila deu cabo de sua proacutepria vida impedido de seguir em sua fuga da Gestapo
por falta de um visto em seu passaporte Dramas pessoais e literaacuterios explicitam o
elemento traumaacutetico do inconsciente juriacutedico Literatura (Kafka) e histoacuterias de vida
(Benjamin) se unem para compor essa contraleitura do significado do direito Assim
como na famosa paraacutebola kafkiana ldquoDiante da leirdquo em que um camponecircs eacute barrado
diante da porta da lei e laacute permanece sem poder entrar ateacute a sua morte do mesmo
modo lembra Felman Benjamin sucumbiu na fronteira na porta que poderia levaacute-lo
agrave liberdade pela simples ausecircncia de um carimbo (para aleacutem dos vaacuterios outros vistos
que jaacute havia conseguido em seu passaporte)
De resto uma das questotildees fundamentais que a autora enfrenta eacute justamente o
bloqueio cultural agraves questotildees ldquopessoaisrdquo na cena do tribunal que poderiam servir de
ponte aos traumas sociais coletivos Para ela existiria um abismo entre o direito e a
representaccedilatildeo dessas questotildees No caso do famoso julgamento de O J Simpson
divulgado nos EUA como sendo ldquoo julgamento do seacuteculordquo ela lecirc o confronto de dois
dramas e traumas que se embatem no tribunal um apagando o outro trauma de
gecircnero (violecircncia contra a mulher) e trauma de raccedila (violecircncia contra os afrodescen-
dentes) A imagem do rosto da ex-esposa de O J Simpson com marcas de espanca-
mento as gritantes evidecircncias da violecircncia de gecircnero (na cena do crime e na histoacuteria
do casal) natildeo foram levadas em conta no julgamento Antes ele foi guiado pelo medo
social de se repetir a terriacutevel tradiccedilatildeo norte-americana de perpetraccedilatildeo de uma ldquojus-
Trata-se do julgamento do famoso jogador de futebol americano Orenthal James Simpson que foi acusadode assassinar em 1994 a ex-esposa Nicole Brown Simpson e seu amigo Ronald Goldman A fuga espetacu-lar de Simpson foi televisionada para todo o mundo e seu julgamento em 1995 foi considerado ldquoo julga-mento do seacuteculordquo tendo sido assistido por mais da metade da populaccedilatildeo norte-americana Nessa ocasiatildeoele foi absolvido pelos dois crimes por um tribunal de juacuteri
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ticcedila brancardquo que condena reacuteus afrodescendentes como meio de reforccedilar estereoacutetipos
escravocratas racistas e de violecircncias seculares
Por outro lado a autora recorre a Tolstoi e agrave sua magistral novela A sonata a
Kreutzer mostrando como nessa peccedila literaacuteria a violecircncia de gecircnero apresentada nofinal do seacuteculo XIX jaacute se mostrava tatildeo ominosa quanto no final do seacuteculo seguinte
O protagonista dessa novela confessa ter assassinado a esposa e apresenta esse crime
como algo que escapou inteiramente agrave justiccedila institucional ndash jaacute que o direito o absol-
veu A diferenccedila fundamental com relaccedilatildeo ao julgamento de O J Simpson eacute que na
literatura toda a trama de encobrimento da violecircncia de gecircnero intriacutenseca agraves relaccedilotildees
matrimoniais eacute esmiuccedilada e posta agrave luz do dia A literatura tira o manto de hipocrisia
que cobre a realidade da violecircncia que dormita nas relaccedilotildees de gecircnero e de um modo
geral nas relaccedilotildees sociais fazendo justiccedila agrave elaboraccedilatildeo criacutetica do trauma No caso es-
peciacutefico dessa violecircncia de gecircnero intra-matrimocircnio a casa o lar a famiacutelia satildeo vistos
como o local de um mal-estar ndash como Freud jaacute havia revelado
Felman ao entrecruzar direito psicanaacutelise e literatura mostra-nos como a esfera
subjetiva eacute esmagada pelo direito na mesma medida em que recebe um local um
espaccedilo na literatura E eacute justamente a partir da esfera subjetiva que o direito e a estru-
tura de poder satildeo desconstruiacutedos criticamente Mas a autora natildeo desdobra um tipo
de pensamento maniqueiacutesta que simplesmente opotildee o inferno juriacutedico a um eventualparaiacuteso literaacuterio Pelo contraacuterio ela estaacute atenta agraves ambiguidades dessas instacircncias
Assim o tribunal de Nuremberg por exemplo eacute visto tanto como um tribunal que
reiterou a forccedila e a violecircncia dos vencedores como tambeacutem deve ser visto como um
momento fundamental na instituiccedilatildeo dos ldquocrimes contra a humanidaderdquo Mais do
que isso ainda e essa eacute a originalidade da leitura da autora nesse julgamento pela
primeira vez convocou-se um grande trauma social coletivo (a violecircncia extrema
contra os judeus) ao tribunal A histoacuteria adentrou a corte Jaacute K-Zetnik sobrevivente
do nazismo um escritor e literato conhecido por produzir uma densa literatura sobreAuschwitz foi a testemunha que sucumbiu no julgamento de Eichman Essa cena
mostra como a literatura colapsou diante do tribunal e como seu testemunho se daacute
em outro niacutevel A reflexatildeo de Felman traz agrave discussatildeo do tema o famoso Jrsquoaccuse [Eu
acuso] de Zola A literatura mostra Felman presta um testemunho avant la lettre
quanto agraves (in)justiccedilas dos tribunais seja Tostoi com relaccedilatildeo a O J Simpson seja Zola
e seu Eu acuso com relaccedilatildeo ao julgamento Eichmann seja Kafka e seu ldquoDiante da leirdquo
com relaccedilatildeo a Benjamin
Tambeacutem na antiga trageacutedia podemos ver a literatura servindo de testemunho doinconsciente juriacutedico Muitos estudiosos jaacute destacaram a continuidade entre a cena
dos tribunais e a da trageacutedia grega com suas duas partes confrontando-se e tendo
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a ldquojusticcedilardquo no seu horizonte Refiro-me aqui sobretudo agrave Oresteia de Eacutesquilo uma
trilogia na qual assistimos a Agamenon ser assassinado por sua esposa Clitemnestra
que em seguida eacute assassinada por seu filho Orestes que por sua vez na terceira
trageacutedia eacute absolvido desse seu crime no tribunal inaugural fundador do direito
positivado no Monte Ares julgamento este presidido por ningueacutem menos que Palas
Atena A deusa representa aiacute o direito instituiacutedo que se une agraves Fuacuterias prometendo
manter a ordem A ordem do direito lembrava Benjamin no anteriormente referi-
do ensaio necessita de um poder ameaccedilador (ldquoDie rechterhaltende Gewalt ist eine
drohenderdquo) Esta ideia faz-nos lembrar justamente da seguinte passagem da trageacutedia
Eumecircnides a terceira da trilogia quando Palas Atena define a nova ordem juriacutedica
que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes
Prestai atenccedilatildeo ao que instauro aqui atenienses convocados por mim mesma para julgar pela primeira vez um homem autor de um crime em que foi derramado sangueA partir deste dia e para todo o sempre o povo que jaacute teve como rei Egeu teraacute a incum-becircncia de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares [] Sobreesta elevaccedilatildeo digo que a Reverecircncia e o Temor seu irmatildeo seja durante o dia seja de noiteevitaratildeo que os cidadatildeos cometam crimes a natildeo ser que eles prefiram aniquilar as leisfeitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com efluacutevios turvos as fontes claras natildeoteraacute onde beber) Nem opressatildeo nem anarquia eis o lema que os cidadatildeos devem seguir
e respeitar Natildeo lhes conveacutem tampouco expulsar da cidade todo o Temor se nada tiver atemer que homem cumpriraacute aqui seus deveres
Esse perfil falocecircntrico e patriarcal que eacute dado agrave ordem juriacutedica como aquela que
empunha a espada para existir eacute tambeacutem desdobrado nas falas do tribunal quando
Orestes e seu advogado Apolo empilham prova sobre prova para convencer os jura-
dos quanto agrave inocecircncia do matricida Orestes apela todo o tempo para a figura de seu
pai Agamenon e Apolo por sua vez evoca tambeacutem seu pai Zeus como guardiatildeo da
verdade e da justiccedila Vale lembrar que Atena eacute apresentada nessa trageacutedia como uma
deusa sem matildee nascida diretamente de seu genitor Zeus Orestes acaba absolvido
pelo ldquovoto de Minervardquo ou seja de Palas Atena Por outro lado o parricida Eacutedipo
como sabemos da trilogia de Soacutefocles sobre esse personagem uma vez descobertos
seu crimes ldquoinvoluntaacuteriosrdquo eacute cegado e banido de sua cidade matar a matildee eacute perdoaacutevel
o pai jamais parecem-nos dizer esses protomodelos sociais do Ocidente
Esse convencer objetivo marcado pela comprovaccedilatildeo espetacular de preferecircncia
visual tiacutepico do tribunal deve ser oposto a um outro espaccedilo para recepccedilatildeo do teste-
munho oral muitas vezes fragmentado e carregado de subjetividade Eacute esse espaccedilo
testemunhal que Felman defende aqui destacando os quase insuperaacuteveis limites de
sua acolhida por parte da instituiccedilatildeo juriacutedica Sem organizaccedilatildeo poliacutetica a voz do
testemunho individual e coletivo daqueles que sofreram uma grave injusticcedila social
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ou privada natildeo consegue dobrar o poder do direito Poder esse que se concretiza
simbolicamente nas casas da Justiccedila esses palaacutecios com suas colunas gregas que
parecem ainda ornar templos em homenagem a Palas Atena a quem se sacrificam as
viacutetimas O modo como Felman abre nossos olhos para perceber o condicionamento
reciacuteproco entre trauma e direito e ao mesmo tempo para a forccedila da fala testemu-
nhal ndash apresentada na literatura e em filmes como o Shoah de Lanzmann e Que
bom te ver viva de Luacutecia Murat ndash deve nos inspirar a lutar no sentido de ampliar
na sociedade os espaccedilos de audiccedilatildeo aos traumas pessoais e sociais Essa mudanccedila na
sociedade soacute pode ser compreendida como parte de um longo e intenso processo de
lutas sociais nas quais justamente os testemunhos dos oprimidos se levantam con-
tra a opressatildeo numa tentativa de resistecircncia e de elaboraccedilatildeo do trauma Eacute evidentee este livro o mostra claramente com autores como Kafka Benjamin Dostoievski
Zola e Tolstoi que uma mudanccedila na esfera do direito soacute poderaacute se dar no contexto
de uma sociedade ela mesma transformada com outra estrutura de poder e uma
distribuiccedilatildeo econocircmica menos injusta Mas estabelecer uma criacutetica do direito eacute algo
efetivo que eacute parte dessa luta por uma transformaccedilatildeo mais global da sociedade Nos
templos do direito como nas trageacutedias a justiccedila estaraacute sempre em um longiacutenquo
horizonte O testemunho no seu sentido forte poliacutetico de engajamento criacutetico na
mudanccedila ndash e natildeo em seu sentido positivista que reafirma o poder da esfera juriacutedi-ca tal como se daacute nas salas de tribunal ndash eacute acolhido nas artes e em algumas esferas
puacuteblicas deixando suas marcas na sociedade como um todo e inclusive forccedilando
as barreiras erguidas pelo direito A criacutetica do direito em grande parte soacute eacute possiacutevel
justamente graccedilas agrave articulaccedilatildeo poliacutetica do testemunho na vida social e concreta
Mas se os sem voz e excluiacutedos se os traumas natildeo articulados pessoais comunitaacute-
rios eacutetnicos e sociais eventualmente adentram a corte isso ocorre natildeo por conta de
uma mudanccedila imanente ou de uma abertura democraacutetica da esfera juriacutedica em si
mesma mas antes como fruto de lutas que se desenrolam haacute deacutecadas ndash e mesmoseacuteculos ndash que tambeacutem visam a tirar a venda da Justiccedila
Felman nos lanccedila com esta obra uma seacuterie de questotildees que atingem o acircmago da
instituiccedilatildeo juriacutedica Assim como Freud abalou nossa identidade e visatildeo do que eacute o
ser humano ao revelar o inconsciente psicoloacutegico tambeacutem Felman ao apontar para
o inconsciente juriacutedico reconfigura o direito e seus limites Ambos psicanaacutelise e a
visada de Felman apostam na forccedila da palavra de um logos subjetivado que enfren-
ta as feridas geradas pelo logos totalitaacuterio e monoloacutegico Com essa abertura criacutetica
proposta por este livro percebemos tambeacutem em que medida sua autora conseguiu
de modo raro e exemplar se colocar muito aleacutem de sua disciplina e galgar um espaccedilo
soacutelido para a criacutetica cultural Soacute podemos desejar que esse gesto se multiplique
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Esse gesto tambeacutem aponta para a originalidade da autora dentro da aacuterea dos
estudos em ldquoLaw and Literaturerdquo ou seja das interfaces entre direito e literatura
Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que
a literatura aborda especificamente temas juriacutedicos ao inveacutes de se apoiar nos estudos
literaacuterios para melhor compreensatildeo da hermenecircutica juriacutedica ou ainda de tratar
das implicaccedilotildees juriacutedicas do campo literaacuterio e tradutoacuterio Felman vai muito aleacutem e
busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura
Como vimos para ela tanto o conceito de trauma eacute um importante vaso comunica-
dor entre essas aacutereas como tambeacutem as anaacutelises de Benjamin Levinas e Arendt sobre
os fenocircmenos do direito e da justiccedila servem de chave nessa empresa de estabelecer
um diaacutelogo entre o mundo do direito e o das letras Felman constroacutei uma plataforma
conceitual e filosoacutefica bastante robusta que permite repensar o campo direito e o da
literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa Tambeacutem nesse sentido
este estudo eacute fundamental
Por fim eacute importante destacar a qualidade do trabalho de traduccedilatildeo levado a cabo
por Ariani Sudatti doutora em direito pela FDUSP e tambeacutem formada em Letras pela
Unicamp Essa dupla formaccedilatildeo garantiu o rigor desta empreitada e nos abriu o acesso
a essas preciosas ideias de Felman que devido agrave sua formulaccedilatildeo conceitual exige uma
traduccedilatildeo atenta e cuidadosa capaz de transitar entre as duas aacutereas Soacute posso esperarque este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre noacutes e gere uma reflexatildeo
(auto)criacutetica por parte daqueles que atuam na esfera juriacutedica ou entatildeo que se interes-
sam pelos grandes debates que enfrentam a questatildeo da Justiccedila e do Direito
Berlim 7 de abril de 2013
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P Maacutercio Seligmann-Silva
Trauma lei e literaturao olhar criacutetico de Shoshana Felman sobre o Direito
Shoshana Felman eacute sem duacutevida uma das criacuteticas e teoacutericas da literatura mais
influentes no panorama atual Sua obra vem inspirando diversos autores e apontando
para novas abordagens da literatura e da cultura de um modo geral nas quais ela faz
convergir seu erudito saber literaacuterio e filoloacutegico com seu competente domiacutenio dapsicanaacutelise dialogando ainda como vemos aqui de modo muito competente com os
estudos juriacutedicos Assim desde o iniacutecio dos anos 1990 ela foi ao lado de Cathy Ca-
ruth uma das principais responsaacuteveis pelo estabelecimento dos ldquoestudos de traumardquo
que ateacute hoje tecircm multiplicado de modo muito criativo a leitura e a interpretaccedilatildeo de
fenocircmenos culturais sobretudo a partir do processo histoacuterico violento e catastroacutefico
que culminou nas grandes guerras do seacuteculo XX e se estende ateacute nossos dias
O presente ensaio eacute uma aposta muito bem sucedida em outros encontros inter-
disciplinares natildeo menos profiacutecuos e absolutamente atuais Estudos literaacuterios psica-
naliacuteticos e teoria do Direito encontram-se aqui para lanccedilar uma luz inusitada sobre
os verdadeiros noacutes buracos negros da histoacuteria da cultura moderna e notadamente
do seacuteculo XX Partindo de autores como Freud Walter Benjamin Levinas e Hannah
Arendt postos em diaacutelogo com Tolstoi Zola Kafka entre outros a autora vai apre-
Doutor em Teoria Literaacuteria pela Universidade Livre de Berlim poacutes-doutor pela Universidade de Yale eprofessor livre-docente de Teoria Literaacuteria na Unicamp Entre outros eacute o autor de O Local da Diferenccedila (Editora 34 2005) vencedor do Precircmio Jabuti na categoria Melhor Livro de TeoriaCriacutetica Literaacuteria 2006
e foi professor visitante em Universidades no Brasil na Alemanha na Argentina e no Meacutexico De Felman jaacute se encontra publicado no Brasil um importante ensaio que permite uma boa introduccedilatildeo
no seu universo temaacutetico e teoacuterico FELMAN Shoshana Educaccedilatildeo em crise ou as vicissitudes do en-sino In NESTROVSKI Arthur SELIGMANN-SILVA Maacutercio (Orgs) Cataacutestrofe e representaccedilatildeo SatildeoPaulo Escuta 2000
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sentar e analisar os traumas sociais coletivos que estruturam nossas sociedades Seu
locus privilegiado neste estudo eacute o da caixa de ressonacircncia dos tribunais Felman
adentra a cena do tribunal o ldquoteatro da justiccedilardquo para flagrar natildeo o triunfo da razatildeo
e da justiccedila mas sim o momento em que os traumas sociais satildeo aiacute reencenados
postos em accedilatildeo e via de regra reafirmados Ao inveacutes de encarar o tribunal e a cena
do julgamento como local de uma catarse social curativa ou seja de resoluccedilatildeo dos
conflitos Felman nos ensina a vecirc-los como oportunidades para maior explicitaccedilatildeo
dos traumas ndash individuais e coletivos ndash e de seus entrecruzamentos Todavia essa
explicitaccedilatildeo ou mise en action dos traumas natildeo estaacute voltada para a sua elaboraccedilatildeo
criacutetica mas antes presta- se a reproduzir e aprofundar os mesmos e ainda silenciar
as suas demandas de representaccedilatildeoO tiacutetulo deste livro natildeo deixa de remeter ao conceito freudiano de inconsciente
e agrave sua reelaboraccedilatildeo feita por Walter Benjamin Em seu ensaio sobre ldquoA obra de arte
na era de sua reprodutibilidade teacutecnicardquo Benjamin afirmara com relaccedilatildeo ao cinema
que com essa teacutecnica ldquoentra em accedilatildeo a cacircmera com seus meios auxiliares ndash seu
descer e subir seu interromper e isolar sua dilataccedilatildeo e compressatildeo do ocorrido seu
ampliar e reduzir Somente por meio da cacircmera chegamos a conhecer o inconsciente
oacuteptico assim como conhecemos o inconsciente pulsional por meio da psicanaacuteliserdquo
Felman por sua vez mostra de que maneira podemos perceber os tribunais e os jul-gamentos juriacutedicos como uma via privilegiada de acesso aos traumas sociais funcio-
nando tambeacutem como uma lupa ou seja uma lente que aproxima e dilata as fissuras
da sociedade Nessa cena os testemunhos desempenham um papel fundamental
Na teoria literaacuteria o conceito de testemunho desempenha um papel central para
se entender o processo histoacuterico com sua violecircncia estrutural sobretudo a partir do
seacuteculo XX era tanto de genociacutedios guerras e grandes perseguiccedilotildees em massa como
tambeacutem de afirmaccedilatildeo dos direitos humanos Mas esse testemunho no tribunal estaacute
bloqueado marcado pela sua proacutepria impossibilidade O teatro do direito (e natildeotanto o teatro da justiccedila) apenas aparentemente abre-se para a voz das testemunhas
Na verdade a violecircncia institucional que alicerccedila o direito silencia e oprime essas
vozes Mais do que isso simbolicamente a proacutepria sala de tribunal com sua pom-
posidade e com as hierarquias reforccediladas pelas roupas pelos coacutedigos discursivos e
de conduta pela presenccedila de ldquoautoridadesrdquo reproduz uma estrutura de poder so-
cialmente injusta e desigual e revela que o direito e a lei satildeo colunas fundamentais
que sustentam essa mesma estrutura Essa instacircncia que se quer imparcial e digna
de mediar os conflitos entre as partes eacute na verdade cega para as questotildees subjetivas
para os traumas e dramas sociais que estatildeo ali no meio da sala do tribunal mas satildeo
ao mesmo tempo obliterados e emudecidos
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Felman vai tomar o testemunho de um sobrevivente de Auschwitz que sucumbe
no momento de seu depoimento e entra em coma durante o julgamento de Eichmann
como o momento paradigmaacutetico para percebermos essa incomensurabilidade entre o
direito e o trauma Voltaremos a essa cenaPara Benjamin como lemos em seu ensaio de 1921 ldquoZur Kritik der Gewaltrdquo
(ldquoPara uma criacutetica do poderviolecircnciardquo) assim como para seu contemporacircneo Kafka
existe uma forccedila violenta miacutetica que dormita no direito Esfera juriacutedica e justiccedila
aleacutem de natildeo terem nada a ver uma com a outra seriam antes forccedilas antagocircnicas
Benjamin destaca o elemento sacrificial do direito que se manifesta de modo claro
na possibilidade de instituiccedilatildeo da pena de morte O final do romance O processo de
Kafka que encena a execuccedilatildeo fria e absurda do reacuteu K ndash que sequer teve apresentada
a sua culpa ou fora condenado por qualquer crime ndash eacute outra das cenas que Felman
retoma neste ensaio para nos falar dessa forccedila sacrificial Ela aproxima essa passagem
literaacuteria da traacutegica trajetoacuteria de Walter Benjamin que na fronteira entre a Espanha e
a Franccedila deu cabo de sua proacutepria vida impedido de seguir em sua fuga da Gestapo
por falta de um visto em seu passaporte Dramas pessoais e literaacuterios explicitam o
elemento traumaacutetico do inconsciente juriacutedico Literatura (Kafka) e histoacuterias de vida
(Benjamin) se unem para compor essa contraleitura do significado do direito Assim
como na famosa paraacutebola kafkiana ldquoDiante da leirdquo em que um camponecircs eacute barrado
diante da porta da lei e laacute permanece sem poder entrar ateacute a sua morte do mesmo
modo lembra Felman Benjamin sucumbiu na fronteira na porta que poderia levaacute-lo
agrave liberdade pela simples ausecircncia de um carimbo (para aleacutem dos vaacuterios outros vistos
que jaacute havia conseguido em seu passaporte)
De resto uma das questotildees fundamentais que a autora enfrenta eacute justamente o
bloqueio cultural agraves questotildees ldquopessoaisrdquo na cena do tribunal que poderiam servir de
ponte aos traumas sociais coletivos Para ela existiria um abismo entre o direito e a
representaccedilatildeo dessas questotildees No caso do famoso julgamento de O J Simpson
divulgado nos EUA como sendo ldquoo julgamento do seacuteculordquo ela lecirc o confronto de dois
dramas e traumas que se embatem no tribunal um apagando o outro trauma de
gecircnero (violecircncia contra a mulher) e trauma de raccedila (violecircncia contra os afrodescen-
dentes) A imagem do rosto da ex-esposa de O J Simpson com marcas de espanca-
mento as gritantes evidecircncias da violecircncia de gecircnero (na cena do crime e na histoacuteria
do casal) natildeo foram levadas em conta no julgamento Antes ele foi guiado pelo medo
social de se repetir a terriacutevel tradiccedilatildeo norte-americana de perpetraccedilatildeo de uma ldquojus-
Trata-se do julgamento do famoso jogador de futebol americano Orenthal James Simpson que foi acusadode assassinar em 1994 a ex-esposa Nicole Brown Simpson e seu amigo Ronald Goldman A fuga espetacu-lar de Simpson foi televisionada para todo o mundo e seu julgamento em 1995 foi considerado ldquoo julga-mento do seacuteculordquo tendo sido assistido por mais da metade da populaccedilatildeo norte-americana Nessa ocasiatildeoele foi absolvido pelos dois crimes por um tribunal de juacuteri
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ticcedila brancardquo que condena reacuteus afrodescendentes como meio de reforccedilar estereoacutetipos
escravocratas racistas e de violecircncias seculares
Por outro lado a autora recorre a Tolstoi e agrave sua magistral novela A sonata a
Kreutzer mostrando como nessa peccedila literaacuteria a violecircncia de gecircnero apresentada nofinal do seacuteculo XIX jaacute se mostrava tatildeo ominosa quanto no final do seacuteculo seguinte
O protagonista dessa novela confessa ter assassinado a esposa e apresenta esse crime
como algo que escapou inteiramente agrave justiccedila institucional ndash jaacute que o direito o absol-
veu A diferenccedila fundamental com relaccedilatildeo ao julgamento de O J Simpson eacute que na
literatura toda a trama de encobrimento da violecircncia de gecircnero intriacutenseca agraves relaccedilotildees
matrimoniais eacute esmiuccedilada e posta agrave luz do dia A literatura tira o manto de hipocrisia
que cobre a realidade da violecircncia que dormita nas relaccedilotildees de gecircnero e de um modo
geral nas relaccedilotildees sociais fazendo justiccedila agrave elaboraccedilatildeo criacutetica do trauma No caso es-
peciacutefico dessa violecircncia de gecircnero intra-matrimocircnio a casa o lar a famiacutelia satildeo vistos
como o local de um mal-estar ndash como Freud jaacute havia revelado
Felman ao entrecruzar direito psicanaacutelise e literatura mostra-nos como a esfera
subjetiva eacute esmagada pelo direito na mesma medida em que recebe um local um
espaccedilo na literatura E eacute justamente a partir da esfera subjetiva que o direito e a estru-
tura de poder satildeo desconstruiacutedos criticamente Mas a autora natildeo desdobra um tipo
de pensamento maniqueiacutesta que simplesmente opotildee o inferno juriacutedico a um eventualparaiacuteso literaacuterio Pelo contraacuterio ela estaacute atenta agraves ambiguidades dessas instacircncias
Assim o tribunal de Nuremberg por exemplo eacute visto tanto como um tribunal que
reiterou a forccedila e a violecircncia dos vencedores como tambeacutem deve ser visto como um
momento fundamental na instituiccedilatildeo dos ldquocrimes contra a humanidaderdquo Mais do
que isso ainda e essa eacute a originalidade da leitura da autora nesse julgamento pela
primeira vez convocou-se um grande trauma social coletivo (a violecircncia extrema
contra os judeus) ao tribunal A histoacuteria adentrou a corte Jaacute K-Zetnik sobrevivente
do nazismo um escritor e literato conhecido por produzir uma densa literatura sobreAuschwitz foi a testemunha que sucumbiu no julgamento de Eichman Essa cena
mostra como a literatura colapsou diante do tribunal e como seu testemunho se daacute
em outro niacutevel A reflexatildeo de Felman traz agrave discussatildeo do tema o famoso Jrsquoaccuse [Eu
acuso] de Zola A literatura mostra Felman presta um testemunho avant la lettre
quanto agraves (in)justiccedilas dos tribunais seja Tostoi com relaccedilatildeo a O J Simpson seja Zola
e seu Eu acuso com relaccedilatildeo ao julgamento Eichmann seja Kafka e seu ldquoDiante da leirdquo
com relaccedilatildeo a Benjamin
Tambeacutem na antiga trageacutedia podemos ver a literatura servindo de testemunho doinconsciente juriacutedico Muitos estudiosos jaacute destacaram a continuidade entre a cena
dos tribunais e a da trageacutedia grega com suas duas partes confrontando-se e tendo
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a ldquojusticcedilardquo no seu horizonte Refiro-me aqui sobretudo agrave Oresteia de Eacutesquilo uma
trilogia na qual assistimos a Agamenon ser assassinado por sua esposa Clitemnestra
que em seguida eacute assassinada por seu filho Orestes que por sua vez na terceira
trageacutedia eacute absolvido desse seu crime no tribunal inaugural fundador do direito
positivado no Monte Ares julgamento este presidido por ningueacutem menos que Palas
Atena A deusa representa aiacute o direito instituiacutedo que se une agraves Fuacuterias prometendo
manter a ordem A ordem do direito lembrava Benjamin no anteriormente referi-
do ensaio necessita de um poder ameaccedilador (ldquoDie rechterhaltende Gewalt ist eine
drohenderdquo) Esta ideia faz-nos lembrar justamente da seguinte passagem da trageacutedia
Eumecircnides a terceira da trilogia quando Palas Atena define a nova ordem juriacutedica
que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes
Prestai atenccedilatildeo ao que instauro aqui atenienses convocados por mim mesma para julgar pela primeira vez um homem autor de um crime em que foi derramado sangueA partir deste dia e para todo o sempre o povo que jaacute teve como rei Egeu teraacute a incum-becircncia de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares [] Sobreesta elevaccedilatildeo digo que a Reverecircncia e o Temor seu irmatildeo seja durante o dia seja de noiteevitaratildeo que os cidadatildeos cometam crimes a natildeo ser que eles prefiram aniquilar as leisfeitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com efluacutevios turvos as fontes claras natildeoteraacute onde beber) Nem opressatildeo nem anarquia eis o lema que os cidadatildeos devem seguir
e respeitar Natildeo lhes conveacutem tampouco expulsar da cidade todo o Temor se nada tiver atemer que homem cumpriraacute aqui seus deveres
Esse perfil falocecircntrico e patriarcal que eacute dado agrave ordem juriacutedica como aquela que
empunha a espada para existir eacute tambeacutem desdobrado nas falas do tribunal quando
Orestes e seu advogado Apolo empilham prova sobre prova para convencer os jura-
dos quanto agrave inocecircncia do matricida Orestes apela todo o tempo para a figura de seu
pai Agamenon e Apolo por sua vez evoca tambeacutem seu pai Zeus como guardiatildeo da
verdade e da justiccedila Vale lembrar que Atena eacute apresentada nessa trageacutedia como uma
deusa sem matildee nascida diretamente de seu genitor Zeus Orestes acaba absolvido
pelo ldquovoto de Minervardquo ou seja de Palas Atena Por outro lado o parricida Eacutedipo
como sabemos da trilogia de Soacutefocles sobre esse personagem uma vez descobertos
seu crimes ldquoinvoluntaacuteriosrdquo eacute cegado e banido de sua cidade matar a matildee eacute perdoaacutevel
o pai jamais parecem-nos dizer esses protomodelos sociais do Ocidente
Esse convencer objetivo marcado pela comprovaccedilatildeo espetacular de preferecircncia
visual tiacutepico do tribunal deve ser oposto a um outro espaccedilo para recepccedilatildeo do teste-
munho oral muitas vezes fragmentado e carregado de subjetividade Eacute esse espaccedilo
testemunhal que Felman defende aqui destacando os quase insuperaacuteveis limites de
sua acolhida por parte da instituiccedilatildeo juriacutedica Sem organizaccedilatildeo poliacutetica a voz do
testemunho individual e coletivo daqueles que sofreram uma grave injusticcedila social
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ou privada natildeo consegue dobrar o poder do direito Poder esse que se concretiza
simbolicamente nas casas da Justiccedila esses palaacutecios com suas colunas gregas que
parecem ainda ornar templos em homenagem a Palas Atena a quem se sacrificam as
viacutetimas O modo como Felman abre nossos olhos para perceber o condicionamento
reciacuteproco entre trauma e direito e ao mesmo tempo para a forccedila da fala testemu-
nhal ndash apresentada na literatura e em filmes como o Shoah de Lanzmann e Que
bom te ver viva de Luacutecia Murat ndash deve nos inspirar a lutar no sentido de ampliar
na sociedade os espaccedilos de audiccedilatildeo aos traumas pessoais e sociais Essa mudanccedila na
sociedade soacute pode ser compreendida como parte de um longo e intenso processo de
lutas sociais nas quais justamente os testemunhos dos oprimidos se levantam con-
tra a opressatildeo numa tentativa de resistecircncia e de elaboraccedilatildeo do trauma Eacute evidentee este livro o mostra claramente com autores como Kafka Benjamin Dostoievski
Zola e Tolstoi que uma mudanccedila na esfera do direito soacute poderaacute se dar no contexto
de uma sociedade ela mesma transformada com outra estrutura de poder e uma
distribuiccedilatildeo econocircmica menos injusta Mas estabelecer uma criacutetica do direito eacute algo
efetivo que eacute parte dessa luta por uma transformaccedilatildeo mais global da sociedade Nos
templos do direito como nas trageacutedias a justiccedila estaraacute sempre em um longiacutenquo
horizonte O testemunho no seu sentido forte poliacutetico de engajamento criacutetico na
mudanccedila ndash e natildeo em seu sentido positivista que reafirma o poder da esfera juriacutedi-ca tal como se daacute nas salas de tribunal ndash eacute acolhido nas artes e em algumas esferas
puacuteblicas deixando suas marcas na sociedade como um todo e inclusive forccedilando
as barreiras erguidas pelo direito A criacutetica do direito em grande parte soacute eacute possiacutevel
justamente graccedilas agrave articulaccedilatildeo poliacutetica do testemunho na vida social e concreta
Mas se os sem voz e excluiacutedos se os traumas natildeo articulados pessoais comunitaacute-
rios eacutetnicos e sociais eventualmente adentram a corte isso ocorre natildeo por conta de
uma mudanccedila imanente ou de uma abertura democraacutetica da esfera juriacutedica em si
mesma mas antes como fruto de lutas que se desenrolam haacute deacutecadas ndash e mesmoseacuteculos ndash que tambeacutem visam a tirar a venda da Justiccedila
Felman nos lanccedila com esta obra uma seacuterie de questotildees que atingem o acircmago da
instituiccedilatildeo juriacutedica Assim como Freud abalou nossa identidade e visatildeo do que eacute o
ser humano ao revelar o inconsciente psicoloacutegico tambeacutem Felman ao apontar para
o inconsciente juriacutedico reconfigura o direito e seus limites Ambos psicanaacutelise e a
visada de Felman apostam na forccedila da palavra de um logos subjetivado que enfren-
ta as feridas geradas pelo logos totalitaacuterio e monoloacutegico Com essa abertura criacutetica
proposta por este livro percebemos tambeacutem em que medida sua autora conseguiu
de modo raro e exemplar se colocar muito aleacutem de sua disciplina e galgar um espaccedilo
soacutelido para a criacutetica cultural Soacute podemos desejar que esse gesto se multiplique
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Esse gesto tambeacutem aponta para a originalidade da autora dentro da aacuterea dos
estudos em ldquoLaw and Literaturerdquo ou seja das interfaces entre direito e literatura
Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que
a literatura aborda especificamente temas juriacutedicos ao inveacutes de se apoiar nos estudos
literaacuterios para melhor compreensatildeo da hermenecircutica juriacutedica ou ainda de tratar
das implicaccedilotildees juriacutedicas do campo literaacuterio e tradutoacuterio Felman vai muito aleacutem e
busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura
Como vimos para ela tanto o conceito de trauma eacute um importante vaso comunica-
dor entre essas aacutereas como tambeacutem as anaacutelises de Benjamin Levinas e Arendt sobre
os fenocircmenos do direito e da justiccedila servem de chave nessa empresa de estabelecer
um diaacutelogo entre o mundo do direito e o das letras Felman constroacutei uma plataforma
conceitual e filosoacutefica bastante robusta que permite repensar o campo direito e o da
literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa Tambeacutem nesse sentido
este estudo eacute fundamental
Por fim eacute importante destacar a qualidade do trabalho de traduccedilatildeo levado a cabo
por Ariani Sudatti doutora em direito pela FDUSP e tambeacutem formada em Letras pela
Unicamp Essa dupla formaccedilatildeo garantiu o rigor desta empreitada e nos abriu o acesso
a essas preciosas ideias de Felman que devido agrave sua formulaccedilatildeo conceitual exige uma
traduccedilatildeo atenta e cuidadosa capaz de transitar entre as duas aacutereas Soacute posso esperarque este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre noacutes e gere uma reflexatildeo
(auto)criacutetica por parte daqueles que atuam na esfera juriacutedica ou entatildeo que se interes-
sam pelos grandes debates que enfrentam a questatildeo da Justiccedila e do Direito
Berlim 7 de abril de 2013
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sentar e analisar os traumas sociais coletivos que estruturam nossas sociedades Seu
locus privilegiado neste estudo eacute o da caixa de ressonacircncia dos tribunais Felman
adentra a cena do tribunal o ldquoteatro da justiccedilardquo para flagrar natildeo o triunfo da razatildeo
e da justiccedila mas sim o momento em que os traumas sociais satildeo aiacute reencenados
postos em accedilatildeo e via de regra reafirmados Ao inveacutes de encarar o tribunal e a cena
do julgamento como local de uma catarse social curativa ou seja de resoluccedilatildeo dos
conflitos Felman nos ensina a vecirc-los como oportunidades para maior explicitaccedilatildeo
dos traumas ndash individuais e coletivos ndash e de seus entrecruzamentos Todavia essa
explicitaccedilatildeo ou mise en action dos traumas natildeo estaacute voltada para a sua elaboraccedilatildeo
criacutetica mas antes presta- se a reproduzir e aprofundar os mesmos e ainda silenciar
as suas demandas de representaccedilatildeoO tiacutetulo deste livro natildeo deixa de remeter ao conceito freudiano de inconsciente
e agrave sua reelaboraccedilatildeo feita por Walter Benjamin Em seu ensaio sobre ldquoA obra de arte
na era de sua reprodutibilidade teacutecnicardquo Benjamin afirmara com relaccedilatildeo ao cinema
que com essa teacutecnica ldquoentra em accedilatildeo a cacircmera com seus meios auxiliares ndash seu
descer e subir seu interromper e isolar sua dilataccedilatildeo e compressatildeo do ocorrido seu
ampliar e reduzir Somente por meio da cacircmera chegamos a conhecer o inconsciente
oacuteptico assim como conhecemos o inconsciente pulsional por meio da psicanaacuteliserdquo
Felman por sua vez mostra de que maneira podemos perceber os tribunais e os jul-gamentos juriacutedicos como uma via privilegiada de acesso aos traumas sociais funcio-
nando tambeacutem como uma lupa ou seja uma lente que aproxima e dilata as fissuras
da sociedade Nessa cena os testemunhos desempenham um papel fundamental
Na teoria literaacuteria o conceito de testemunho desempenha um papel central para
se entender o processo histoacuterico com sua violecircncia estrutural sobretudo a partir do
seacuteculo XX era tanto de genociacutedios guerras e grandes perseguiccedilotildees em massa como
tambeacutem de afirmaccedilatildeo dos direitos humanos Mas esse testemunho no tribunal estaacute
bloqueado marcado pela sua proacutepria impossibilidade O teatro do direito (e natildeotanto o teatro da justiccedila) apenas aparentemente abre-se para a voz das testemunhas
Na verdade a violecircncia institucional que alicerccedila o direito silencia e oprime essas
vozes Mais do que isso simbolicamente a proacutepria sala de tribunal com sua pom-
posidade e com as hierarquias reforccediladas pelas roupas pelos coacutedigos discursivos e
de conduta pela presenccedila de ldquoautoridadesrdquo reproduz uma estrutura de poder so-
cialmente injusta e desigual e revela que o direito e a lei satildeo colunas fundamentais
que sustentam essa mesma estrutura Essa instacircncia que se quer imparcial e digna
de mediar os conflitos entre as partes eacute na verdade cega para as questotildees subjetivas
para os traumas e dramas sociais que estatildeo ali no meio da sala do tribunal mas satildeo
ao mesmo tempo obliterados e emudecidos
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Felman vai tomar o testemunho de um sobrevivente de Auschwitz que sucumbe
no momento de seu depoimento e entra em coma durante o julgamento de Eichmann
como o momento paradigmaacutetico para percebermos essa incomensurabilidade entre o
direito e o trauma Voltaremos a essa cenaPara Benjamin como lemos em seu ensaio de 1921 ldquoZur Kritik der Gewaltrdquo
(ldquoPara uma criacutetica do poderviolecircnciardquo) assim como para seu contemporacircneo Kafka
existe uma forccedila violenta miacutetica que dormita no direito Esfera juriacutedica e justiccedila
aleacutem de natildeo terem nada a ver uma com a outra seriam antes forccedilas antagocircnicas
Benjamin destaca o elemento sacrificial do direito que se manifesta de modo claro
na possibilidade de instituiccedilatildeo da pena de morte O final do romance O processo de
Kafka que encena a execuccedilatildeo fria e absurda do reacuteu K ndash que sequer teve apresentada
a sua culpa ou fora condenado por qualquer crime ndash eacute outra das cenas que Felman
retoma neste ensaio para nos falar dessa forccedila sacrificial Ela aproxima essa passagem
literaacuteria da traacutegica trajetoacuteria de Walter Benjamin que na fronteira entre a Espanha e
a Franccedila deu cabo de sua proacutepria vida impedido de seguir em sua fuga da Gestapo
por falta de um visto em seu passaporte Dramas pessoais e literaacuterios explicitam o
elemento traumaacutetico do inconsciente juriacutedico Literatura (Kafka) e histoacuterias de vida
(Benjamin) se unem para compor essa contraleitura do significado do direito Assim
como na famosa paraacutebola kafkiana ldquoDiante da leirdquo em que um camponecircs eacute barrado
diante da porta da lei e laacute permanece sem poder entrar ateacute a sua morte do mesmo
modo lembra Felman Benjamin sucumbiu na fronteira na porta que poderia levaacute-lo
agrave liberdade pela simples ausecircncia de um carimbo (para aleacutem dos vaacuterios outros vistos
que jaacute havia conseguido em seu passaporte)
De resto uma das questotildees fundamentais que a autora enfrenta eacute justamente o
bloqueio cultural agraves questotildees ldquopessoaisrdquo na cena do tribunal que poderiam servir de
ponte aos traumas sociais coletivos Para ela existiria um abismo entre o direito e a
representaccedilatildeo dessas questotildees No caso do famoso julgamento de O J Simpson
divulgado nos EUA como sendo ldquoo julgamento do seacuteculordquo ela lecirc o confronto de dois
dramas e traumas que se embatem no tribunal um apagando o outro trauma de
gecircnero (violecircncia contra a mulher) e trauma de raccedila (violecircncia contra os afrodescen-
dentes) A imagem do rosto da ex-esposa de O J Simpson com marcas de espanca-
mento as gritantes evidecircncias da violecircncia de gecircnero (na cena do crime e na histoacuteria
do casal) natildeo foram levadas em conta no julgamento Antes ele foi guiado pelo medo
social de se repetir a terriacutevel tradiccedilatildeo norte-americana de perpetraccedilatildeo de uma ldquojus-
Trata-se do julgamento do famoso jogador de futebol americano Orenthal James Simpson que foi acusadode assassinar em 1994 a ex-esposa Nicole Brown Simpson e seu amigo Ronald Goldman A fuga espetacu-lar de Simpson foi televisionada para todo o mundo e seu julgamento em 1995 foi considerado ldquoo julga-mento do seacuteculordquo tendo sido assistido por mais da metade da populaccedilatildeo norte-americana Nessa ocasiatildeoele foi absolvido pelos dois crimes por um tribunal de juacuteri
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ticcedila brancardquo que condena reacuteus afrodescendentes como meio de reforccedilar estereoacutetipos
escravocratas racistas e de violecircncias seculares
Por outro lado a autora recorre a Tolstoi e agrave sua magistral novela A sonata a
Kreutzer mostrando como nessa peccedila literaacuteria a violecircncia de gecircnero apresentada nofinal do seacuteculo XIX jaacute se mostrava tatildeo ominosa quanto no final do seacuteculo seguinte
O protagonista dessa novela confessa ter assassinado a esposa e apresenta esse crime
como algo que escapou inteiramente agrave justiccedila institucional ndash jaacute que o direito o absol-
veu A diferenccedila fundamental com relaccedilatildeo ao julgamento de O J Simpson eacute que na
literatura toda a trama de encobrimento da violecircncia de gecircnero intriacutenseca agraves relaccedilotildees
matrimoniais eacute esmiuccedilada e posta agrave luz do dia A literatura tira o manto de hipocrisia
que cobre a realidade da violecircncia que dormita nas relaccedilotildees de gecircnero e de um modo
geral nas relaccedilotildees sociais fazendo justiccedila agrave elaboraccedilatildeo criacutetica do trauma No caso es-
peciacutefico dessa violecircncia de gecircnero intra-matrimocircnio a casa o lar a famiacutelia satildeo vistos
como o local de um mal-estar ndash como Freud jaacute havia revelado
Felman ao entrecruzar direito psicanaacutelise e literatura mostra-nos como a esfera
subjetiva eacute esmagada pelo direito na mesma medida em que recebe um local um
espaccedilo na literatura E eacute justamente a partir da esfera subjetiva que o direito e a estru-
tura de poder satildeo desconstruiacutedos criticamente Mas a autora natildeo desdobra um tipo
de pensamento maniqueiacutesta que simplesmente opotildee o inferno juriacutedico a um eventualparaiacuteso literaacuterio Pelo contraacuterio ela estaacute atenta agraves ambiguidades dessas instacircncias
Assim o tribunal de Nuremberg por exemplo eacute visto tanto como um tribunal que
reiterou a forccedila e a violecircncia dos vencedores como tambeacutem deve ser visto como um
momento fundamental na instituiccedilatildeo dos ldquocrimes contra a humanidaderdquo Mais do
que isso ainda e essa eacute a originalidade da leitura da autora nesse julgamento pela
primeira vez convocou-se um grande trauma social coletivo (a violecircncia extrema
contra os judeus) ao tribunal A histoacuteria adentrou a corte Jaacute K-Zetnik sobrevivente
do nazismo um escritor e literato conhecido por produzir uma densa literatura sobreAuschwitz foi a testemunha que sucumbiu no julgamento de Eichman Essa cena
mostra como a literatura colapsou diante do tribunal e como seu testemunho se daacute
em outro niacutevel A reflexatildeo de Felman traz agrave discussatildeo do tema o famoso Jrsquoaccuse [Eu
acuso] de Zola A literatura mostra Felman presta um testemunho avant la lettre
quanto agraves (in)justiccedilas dos tribunais seja Tostoi com relaccedilatildeo a O J Simpson seja Zola
e seu Eu acuso com relaccedilatildeo ao julgamento Eichmann seja Kafka e seu ldquoDiante da leirdquo
com relaccedilatildeo a Benjamin
Tambeacutem na antiga trageacutedia podemos ver a literatura servindo de testemunho doinconsciente juriacutedico Muitos estudiosos jaacute destacaram a continuidade entre a cena
dos tribunais e a da trageacutedia grega com suas duas partes confrontando-se e tendo
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a ldquojusticcedilardquo no seu horizonte Refiro-me aqui sobretudo agrave Oresteia de Eacutesquilo uma
trilogia na qual assistimos a Agamenon ser assassinado por sua esposa Clitemnestra
que em seguida eacute assassinada por seu filho Orestes que por sua vez na terceira
trageacutedia eacute absolvido desse seu crime no tribunal inaugural fundador do direito
positivado no Monte Ares julgamento este presidido por ningueacutem menos que Palas
Atena A deusa representa aiacute o direito instituiacutedo que se une agraves Fuacuterias prometendo
manter a ordem A ordem do direito lembrava Benjamin no anteriormente referi-
do ensaio necessita de um poder ameaccedilador (ldquoDie rechterhaltende Gewalt ist eine
drohenderdquo) Esta ideia faz-nos lembrar justamente da seguinte passagem da trageacutedia
Eumecircnides a terceira da trilogia quando Palas Atena define a nova ordem juriacutedica
que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes
Prestai atenccedilatildeo ao que instauro aqui atenienses convocados por mim mesma para julgar pela primeira vez um homem autor de um crime em que foi derramado sangueA partir deste dia e para todo o sempre o povo que jaacute teve como rei Egeu teraacute a incum-becircncia de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares [] Sobreesta elevaccedilatildeo digo que a Reverecircncia e o Temor seu irmatildeo seja durante o dia seja de noiteevitaratildeo que os cidadatildeos cometam crimes a natildeo ser que eles prefiram aniquilar as leisfeitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com efluacutevios turvos as fontes claras natildeoteraacute onde beber) Nem opressatildeo nem anarquia eis o lema que os cidadatildeos devem seguir
e respeitar Natildeo lhes conveacutem tampouco expulsar da cidade todo o Temor se nada tiver atemer que homem cumpriraacute aqui seus deveres
Esse perfil falocecircntrico e patriarcal que eacute dado agrave ordem juriacutedica como aquela que
empunha a espada para existir eacute tambeacutem desdobrado nas falas do tribunal quando
Orestes e seu advogado Apolo empilham prova sobre prova para convencer os jura-
dos quanto agrave inocecircncia do matricida Orestes apela todo o tempo para a figura de seu
pai Agamenon e Apolo por sua vez evoca tambeacutem seu pai Zeus como guardiatildeo da
verdade e da justiccedila Vale lembrar que Atena eacute apresentada nessa trageacutedia como uma
deusa sem matildee nascida diretamente de seu genitor Zeus Orestes acaba absolvido
pelo ldquovoto de Minervardquo ou seja de Palas Atena Por outro lado o parricida Eacutedipo
como sabemos da trilogia de Soacutefocles sobre esse personagem uma vez descobertos
seu crimes ldquoinvoluntaacuteriosrdquo eacute cegado e banido de sua cidade matar a matildee eacute perdoaacutevel
o pai jamais parecem-nos dizer esses protomodelos sociais do Ocidente
Esse convencer objetivo marcado pela comprovaccedilatildeo espetacular de preferecircncia
visual tiacutepico do tribunal deve ser oposto a um outro espaccedilo para recepccedilatildeo do teste-
munho oral muitas vezes fragmentado e carregado de subjetividade Eacute esse espaccedilo
testemunhal que Felman defende aqui destacando os quase insuperaacuteveis limites de
sua acolhida por parte da instituiccedilatildeo juriacutedica Sem organizaccedilatildeo poliacutetica a voz do
testemunho individual e coletivo daqueles que sofreram uma grave injusticcedila social
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ou privada natildeo consegue dobrar o poder do direito Poder esse que se concretiza
simbolicamente nas casas da Justiccedila esses palaacutecios com suas colunas gregas que
parecem ainda ornar templos em homenagem a Palas Atena a quem se sacrificam as
viacutetimas O modo como Felman abre nossos olhos para perceber o condicionamento
reciacuteproco entre trauma e direito e ao mesmo tempo para a forccedila da fala testemu-
nhal ndash apresentada na literatura e em filmes como o Shoah de Lanzmann e Que
bom te ver viva de Luacutecia Murat ndash deve nos inspirar a lutar no sentido de ampliar
na sociedade os espaccedilos de audiccedilatildeo aos traumas pessoais e sociais Essa mudanccedila na
sociedade soacute pode ser compreendida como parte de um longo e intenso processo de
lutas sociais nas quais justamente os testemunhos dos oprimidos se levantam con-
tra a opressatildeo numa tentativa de resistecircncia e de elaboraccedilatildeo do trauma Eacute evidentee este livro o mostra claramente com autores como Kafka Benjamin Dostoievski
Zola e Tolstoi que uma mudanccedila na esfera do direito soacute poderaacute se dar no contexto
de uma sociedade ela mesma transformada com outra estrutura de poder e uma
distribuiccedilatildeo econocircmica menos injusta Mas estabelecer uma criacutetica do direito eacute algo
efetivo que eacute parte dessa luta por uma transformaccedilatildeo mais global da sociedade Nos
templos do direito como nas trageacutedias a justiccedila estaraacute sempre em um longiacutenquo
horizonte O testemunho no seu sentido forte poliacutetico de engajamento criacutetico na
mudanccedila ndash e natildeo em seu sentido positivista que reafirma o poder da esfera juriacutedi-ca tal como se daacute nas salas de tribunal ndash eacute acolhido nas artes e em algumas esferas
puacuteblicas deixando suas marcas na sociedade como um todo e inclusive forccedilando
as barreiras erguidas pelo direito A criacutetica do direito em grande parte soacute eacute possiacutevel
justamente graccedilas agrave articulaccedilatildeo poliacutetica do testemunho na vida social e concreta
Mas se os sem voz e excluiacutedos se os traumas natildeo articulados pessoais comunitaacute-
rios eacutetnicos e sociais eventualmente adentram a corte isso ocorre natildeo por conta de
uma mudanccedila imanente ou de uma abertura democraacutetica da esfera juriacutedica em si
mesma mas antes como fruto de lutas que se desenrolam haacute deacutecadas ndash e mesmoseacuteculos ndash que tambeacutem visam a tirar a venda da Justiccedila
Felman nos lanccedila com esta obra uma seacuterie de questotildees que atingem o acircmago da
instituiccedilatildeo juriacutedica Assim como Freud abalou nossa identidade e visatildeo do que eacute o
ser humano ao revelar o inconsciente psicoloacutegico tambeacutem Felman ao apontar para
o inconsciente juriacutedico reconfigura o direito e seus limites Ambos psicanaacutelise e a
visada de Felman apostam na forccedila da palavra de um logos subjetivado que enfren-
ta as feridas geradas pelo logos totalitaacuterio e monoloacutegico Com essa abertura criacutetica
proposta por este livro percebemos tambeacutem em que medida sua autora conseguiu
de modo raro e exemplar se colocar muito aleacutem de sua disciplina e galgar um espaccedilo
soacutelido para a criacutetica cultural Soacute podemos desejar que esse gesto se multiplique
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Esse gesto tambeacutem aponta para a originalidade da autora dentro da aacuterea dos
estudos em ldquoLaw and Literaturerdquo ou seja das interfaces entre direito e literatura
Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que
a literatura aborda especificamente temas juriacutedicos ao inveacutes de se apoiar nos estudos
literaacuterios para melhor compreensatildeo da hermenecircutica juriacutedica ou ainda de tratar
das implicaccedilotildees juriacutedicas do campo literaacuterio e tradutoacuterio Felman vai muito aleacutem e
busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura
Como vimos para ela tanto o conceito de trauma eacute um importante vaso comunica-
dor entre essas aacutereas como tambeacutem as anaacutelises de Benjamin Levinas e Arendt sobre
os fenocircmenos do direito e da justiccedila servem de chave nessa empresa de estabelecer
um diaacutelogo entre o mundo do direito e o das letras Felman constroacutei uma plataforma
conceitual e filosoacutefica bastante robusta que permite repensar o campo direito e o da
literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa Tambeacutem nesse sentido
este estudo eacute fundamental
Por fim eacute importante destacar a qualidade do trabalho de traduccedilatildeo levado a cabo
por Ariani Sudatti doutora em direito pela FDUSP e tambeacutem formada em Letras pela
Unicamp Essa dupla formaccedilatildeo garantiu o rigor desta empreitada e nos abriu o acesso
a essas preciosas ideias de Felman que devido agrave sua formulaccedilatildeo conceitual exige uma
traduccedilatildeo atenta e cuidadosa capaz de transitar entre as duas aacutereas Soacute posso esperarque este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre noacutes e gere uma reflexatildeo
(auto)criacutetica por parte daqueles que atuam na esfera juriacutedica ou entatildeo que se interes-
sam pelos grandes debates que enfrentam a questatildeo da Justiccedila e do Direito
Berlim 7 de abril de 2013
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Felman vai tomar o testemunho de um sobrevivente de Auschwitz que sucumbe
no momento de seu depoimento e entra em coma durante o julgamento de Eichmann
como o momento paradigmaacutetico para percebermos essa incomensurabilidade entre o
direito e o trauma Voltaremos a essa cenaPara Benjamin como lemos em seu ensaio de 1921 ldquoZur Kritik der Gewaltrdquo
(ldquoPara uma criacutetica do poderviolecircnciardquo) assim como para seu contemporacircneo Kafka
existe uma forccedila violenta miacutetica que dormita no direito Esfera juriacutedica e justiccedila
aleacutem de natildeo terem nada a ver uma com a outra seriam antes forccedilas antagocircnicas
Benjamin destaca o elemento sacrificial do direito que se manifesta de modo claro
na possibilidade de instituiccedilatildeo da pena de morte O final do romance O processo de
Kafka que encena a execuccedilatildeo fria e absurda do reacuteu K ndash que sequer teve apresentada
a sua culpa ou fora condenado por qualquer crime ndash eacute outra das cenas que Felman
retoma neste ensaio para nos falar dessa forccedila sacrificial Ela aproxima essa passagem
literaacuteria da traacutegica trajetoacuteria de Walter Benjamin que na fronteira entre a Espanha e
a Franccedila deu cabo de sua proacutepria vida impedido de seguir em sua fuga da Gestapo
por falta de um visto em seu passaporte Dramas pessoais e literaacuterios explicitam o
elemento traumaacutetico do inconsciente juriacutedico Literatura (Kafka) e histoacuterias de vida
(Benjamin) se unem para compor essa contraleitura do significado do direito Assim
como na famosa paraacutebola kafkiana ldquoDiante da leirdquo em que um camponecircs eacute barrado
diante da porta da lei e laacute permanece sem poder entrar ateacute a sua morte do mesmo
modo lembra Felman Benjamin sucumbiu na fronteira na porta que poderia levaacute-lo
agrave liberdade pela simples ausecircncia de um carimbo (para aleacutem dos vaacuterios outros vistos
que jaacute havia conseguido em seu passaporte)
De resto uma das questotildees fundamentais que a autora enfrenta eacute justamente o
bloqueio cultural agraves questotildees ldquopessoaisrdquo na cena do tribunal que poderiam servir de
ponte aos traumas sociais coletivos Para ela existiria um abismo entre o direito e a
representaccedilatildeo dessas questotildees No caso do famoso julgamento de O J Simpson
divulgado nos EUA como sendo ldquoo julgamento do seacuteculordquo ela lecirc o confronto de dois
dramas e traumas que se embatem no tribunal um apagando o outro trauma de
gecircnero (violecircncia contra a mulher) e trauma de raccedila (violecircncia contra os afrodescen-
dentes) A imagem do rosto da ex-esposa de O J Simpson com marcas de espanca-
mento as gritantes evidecircncias da violecircncia de gecircnero (na cena do crime e na histoacuteria
do casal) natildeo foram levadas em conta no julgamento Antes ele foi guiado pelo medo
social de se repetir a terriacutevel tradiccedilatildeo norte-americana de perpetraccedilatildeo de uma ldquojus-
Trata-se do julgamento do famoso jogador de futebol americano Orenthal James Simpson que foi acusadode assassinar em 1994 a ex-esposa Nicole Brown Simpson e seu amigo Ronald Goldman A fuga espetacu-lar de Simpson foi televisionada para todo o mundo e seu julgamento em 1995 foi considerado ldquoo julga-mento do seacuteculordquo tendo sido assistido por mais da metade da populaccedilatildeo norte-americana Nessa ocasiatildeoele foi absolvido pelos dois crimes por um tribunal de juacuteri
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ticcedila brancardquo que condena reacuteus afrodescendentes como meio de reforccedilar estereoacutetipos
escravocratas racistas e de violecircncias seculares
Por outro lado a autora recorre a Tolstoi e agrave sua magistral novela A sonata a
Kreutzer mostrando como nessa peccedila literaacuteria a violecircncia de gecircnero apresentada nofinal do seacuteculo XIX jaacute se mostrava tatildeo ominosa quanto no final do seacuteculo seguinte
O protagonista dessa novela confessa ter assassinado a esposa e apresenta esse crime
como algo que escapou inteiramente agrave justiccedila institucional ndash jaacute que o direito o absol-
veu A diferenccedila fundamental com relaccedilatildeo ao julgamento de O J Simpson eacute que na
literatura toda a trama de encobrimento da violecircncia de gecircnero intriacutenseca agraves relaccedilotildees
matrimoniais eacute esmiuccedilada e posta agrave luz do dia A literatura tira o manto de hipocrisia
que cobre a realidade da violecircncia que dormita nas relaccedilotildees de gecircnero e de um modo
geral nas relaccedilotildees sociais fazendo justiccedila agrave elaboraccedilatildeo criacutetica do trauma No caso es-
peciacutefico dessa violecircncia de gecircnero intra-matrimocircnio a casa o lar a famiacutelia satildeo vistos
como o local de um mal-estar ndash como Freud jaacute havia revelado
Felman ao entrecruzar direito psicanaacutelise e literatura mostra-nos como a esfera
subjetiva eacute esmagada pelo direito na mesma medida em que recebe um local um
espaccedilo na literatura E eacute justamente a partir da esfera subjetiva que o direito e a estru-
tura de poder satildeo desconstruiacutedos criticamente Mas a autora natildeo desdobra um tipo
de pensamento maniqueiacutesta que simplesmente opotildee o inferno juriacutedico a um eventualparaiacuteso literaacuterio Pelo contraacuterio ela estaacute atenta agraves ambiguidades dessas instacircncias
Assim o tribunal de Nuremberg por exemplo eacute visto tanto como um tribunal que
reiterou a forccedila e a violecircncia dos vencedores como tambeacutem deve ser visto como um
momento fundamental na instituiccedilatildeo dos ldquocrimes contra a humanidaderdquo Mais do
que isso ainda e essa eacute a originalidade da leitura da autora nesse julgamento pela
primeira vez convocou-se um grande trauma social coletivo (a violecircncia extrema
contra os judeus) ao tribunal A histoacuteria adentrou a corte Jaacute K-Zetnik sobrevivente
do nazismo um escritor e literato conhecido por produzir uma densa literatura sobreAuschwitz foi a testemunha que sucumbiu no julgamento de Eichman Essa cena
mostra como a literatura colapsou diante do tribunal e como seu testemunho se daacute
em outro niacutevel A reflexatildeo de Felman traz agrave discussatildeo do tema o famoso Jrsquoaccuse [Eu
acuso] de Zola A literatura mostra Felman presta um testemunho avant la lettre
quanto agraves (in)justiccedilas dos tribunais seja Tostoi com relaccedilatildeo a O J Simpson seja Zola
e seu Eu acuso com relaccedilatildeo ao julgamento Eichmann seja Kafka e seu ldquoDiante da leirdquo
com relaccedilatildeo a Benjamin
Tambeacutem na antiga trageacutedia podemos ver a literatura servindo de testemunho doinconsciente juriacutedico Muitos estudiosos jaacute destacaram a continuidade entre a cena
dos tribunais e a da trageacutedia grega com suas duas partes confrontando-se e tendo
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a ldquojusticcedilardquo no seu horizonte Refiro-me aqui sobretudo agrave Oresteia de Eacutesquilo uma
trilogia na qual assistimos a Agamenon ser assassinado por sua esposa Clitemnestra
que em seguida eacute assassinada por seu filho Orestes que por sua vez na terceira
trageacutedia eacute absolvido desse seu crime no tribunal inaugural fundador do direito
positivado no Monte Ares julgamento este presidido por ningueacutem menos que Palas
Atena A deusa representa aiacute o direito instituiacutedo que se une agraves Fuacuterias prometendo
manter a ordem A ordem do direito lembrava Benjamin no anteriormente referi-
do ensaio necessita de um poder ameaccedilador (ldquoDie rechterhaltende Gewalt ist eine
drohenderdquo) Esta ideia faz-nos lembrar justamente da seguinte passagem da trageacutedia
Eumecircnides a terceira da trilogia quando Palas Atena define a nova ordem juriacutedica
que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes
Prestai atenccedilatildeo ao que instauro aqui atenienses convocados por mim mesma para julgar pela primeira vez um homem autor de um crime em que foi derramado sangueA partir deste dia e para todo o sempre o povo que jaacute teve como rei Egeu teraacute a incum-becircncia de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares [] Sobreesta elevaccedilatildeo digo que a Reverecircncia e o Temor seu irmatildeo seja durante o dia seja de noiteevitaratildeo que os cidadatildeos cometam crimes a natildeo ser que eles prefiram aniquilar as leisfeitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com efluacutevios turvos as fontes claras natildeoteraacute onde beber) Nem opressatildeo nem anarquia eis o lema que os cidadatildeos devem seguir
e respeitar Natildeo lhes conveacutem tampouco expulsar da cidade todo o Temor se nada tiver atemer que homem cumpriraacute aqui seus deveres
Esse perfil falocecircntrico e patriarcal que eacute dado agrave ordem juriacutedica como aquela que
empunha a espada para existir eacute tambeacutem desdobrado nas falas do tribunal quando
Orestes e seu advogado Apolo empilham prova sobre prova para convencer os jura-
dos quanto agrave inocecircncia do matricida Orestes apela todo o tempo para a figura de seu
pai Agamenon e Apolo por sua vez evoca tambeacutem seu pai Zeus como guardiatildeo da
verdade e da justiccedila Vale lembrar que Atena eacute apresentada nessa trageacutedia como uma
deusa sem matildee nascida diretamente de seu genitor Zeus Orestes acaba absolvido
pelo ldquovoto de Minervardquo ou seja de Palas Atena Por outro lado o parricida Eacutedipo
como sabemos da trilogia de Soacutefocles sobre esse personagem uma vez descobertos
seu crimes ldquoinvoluntaacuteriosrdquo eacute cegado e banido de sua cidade matar a matildee eacute perdoaacutevel
o pai jamais parecem-nos dizer esses protomodelos sociais do Ocidente
Esse convencer objetivo marcado pela comprovaccedilatildeo espetacular de preferecircncia
visual tiacutepico do tribunal deve ser oposto a um outro espaccedilo para recepccedilatildeo do teste-
munho oral muitas vezes fragmentado e carregado de subjetividade Eacute esse espaccedilo
testemunhal que Felman defende aqui destacando os quase insuperaacuteveis limites de
sua acolhida por parte da instituiccedilatildeo juriacutedica Sem organizaccedilatildeo poliacutetica a voz do
testemunho individual e coletivo daqueles que sofreram uma grave injusticcedila social
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ou privada natildeo consegue dobrar o poder do direito Poder esse que se concretiza
simbolicamente nas casas da Justiccedila esses palaacutecios com suas colunas gregas que
parecem ainda ornar templos em homenagem a Palas Atena a quem se sacrificam as
viacutetimas O modo como Felman abre nossos olhos para perceber o condicionamento
reciacuteproco entre trauma e direito e ao mesmo tempo para a forccedila da fala testemu-
nhal ndash apresentada na literatura e em filmes como o Shoah de Lanzmann e Que
bom te ver viva de Luacutecia Murat ndash deve nos inspirar a lutar no sentido de ampliar
na sociedade os espaccedilos de audiccedilatildeo aos traumas pessoais e sociais Essa mudanccedila na
sociedade soacute pode ser compreendida como parte de um longo e intenso processo de
lutas sociais nas quais justamente os testemunhos dos oprimidos se levantam con-
tra a opressatildeo numa tentativa de resistecircncia e de elaboraccedilatildeo do trauma Eacute evidentee este livro o mostra claramente com autores como Kafka Benjamin Dostoievski
Zola e Tolstoi que uma mudanccedila na esfera do direito soacute poderaacute se dar no contexto
de uma sociedade ela mesma transformada com outra estrutura de poder e uma
distribuiccedilatildeo econocircmica menos injusta Mas estabelecer uma criacutetica do direito eacute algo
efetivo que eacute parte dessa luta por uma transformaccedilatildeo mais global da sociedade Nos
templos do direito como nas trageacutedias a justiccedila estaraacute sempre em um longiacutenquo
horizonte O testemunho no seu sentido forte poliacutetico de engajamento criacutetico na
mudanccedila ndash e natildeo em seu sentido positivista que reafirma o poder da esfera juriacutedi-ca tal como se daacute nas salas de tribunal ndash eacute acolhido nas artes e em algumas esferas
puacuteblicas deixando suas marcas na sociedade como um todo e inclusive forccedilando
as barreiras erguidas pelo direito A criacutetica do direito em grande parte soacute eacute possiacutevel
justamente graccedilas agrave articulaccedilatildeo poliacutetica do testemunho na vida social e concreta
Mas se os sem voz e excluiacutedos se os traumas natildeo articulados pessoais comunitaacute-
rios eacutetnicos e sociais eventualmente adentram a corte isso ocorre natildeo por conta de
uma mudanccedila imanente ou de uma abertura democraacutetica da esfera juriacutedica em si
mesma mas antes como fruto de lutas que se desenrolam haacute deacutecadas ndash e mesmoseacuteculos ndash que tambeacutem visam a tirar a venda da Justiccedila
Felman nos lanccedila com esta obra uma seacuterie de questotildees que atingem o acircmago da
instituiccedilatildeo juriacutedica Assim como Freud abalou nossa identidade e visatildeo do que eacute o
ser humano ao revelar o inconsciente psicoloacutegico tambeacutem Felman ao apontar para
o inconsciente juriacutedico reconfigura o direito e seus limites Ambos psicanaacutelise e a
visada de Felman apostam na forccedila da palavra de um logos subjetivado que enfren-
ta as feridas geradas pelo logos totalitaacuterio e monoloacutegico Com essa abertura criacutetica
proposta por este livro percebemos tambeacutem em que medida sua autora conseguiu
de modo raro e exemplar se colocar muito aleacutem de sua disciplina e galgar um espaccedilo
soacutelido para a criacutetica cultural Soacute podemos desejar que esse gesto se multiplique
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Esse gesto tambeacutem aponta para a originalidade da autora dentro da aacuterea dos
estudos em ldquoLaw and Literaturerdquo ou seja das interfaces entre direito e literatura
Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que
a literatura aborda especificamente temas juriacutedicos ao inveacutes de se apoiar nos estudos
literaacuterios para melhor compreensatildeo da hermenecircutica juriacutedica ou ainda de tratar
das implicaccedilotildees juriacutedicas do campo literaacuterio e tradutoacuterio Felman vai muito aleacutem e
busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura
Como vimos para ela tanto o conceito de trauma eacute um importante vaso comunica-
dor entre essas aacutereas como tambeacutem as anaacutelises de Benjamin Levinas e Arendt sobre
os fenocircmenos do direito e da justiccedila servem de chave nessa empresa de estabelecer
um diaacutelogo entre o mundo do direito e o das letras Felman constroacutei uma plataforma
conceitual e filosoacutefica bastante robusta que permite repensar o campo direito e o da
literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa Tambeacutem nesse sentido
este estudo eacute fundamental
Por fim eacute importante destacar a qualidade do trabalho de traduccedilatildeo levado a cabo
por Ariani Sudatti doutora em direito pela FDUSP e tambeacutem formada em Letras pela
Unicamp Essa dupla formaccedilatildeo garantiu o rigor desta empreitada e nos abriu o acesso
a essas preciosas ideias de Felman que devido agrave sua formulaccedilatildeo conceitual exige uma
traduccedilatildeo atenta e cuidadosa capaz de transitar entre as duas aacutereas Soacute posso esperarque este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre noacutes e gere uma reflexatildeo
(auto)criacutetica por parte daqueles que atuam na esfera juriacutedica ou entatildeo que se interes-
sam pelos grandes debates que enfrentam a questatildeo da Justiccedila e do Direito
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ticcedila brancardquo que condena reacuteus afrodescendentes como meio de reforccedilar estereoacutetipos
escravocratas racistas e de violecircncias seculares
Por outro lado a autora recorre a Tolstoi e agrave sua magistral novela A sonata a
Kreutzer mostrando como nessa peccedila literaacuteria a violecircncia de gecircnero apresentada nofinal do seacuteculo XIX jaacute se mostrava tatildeo ominosa quanto no final do seacuteculo seguinte
O protagonista dessa novela confessa ter assassinado a esposa e apresenta esse crime
como algo que escapou inteiramente agrave justiccedila institucional ndash jaacute que o direito o absol-
veu A diferenccedila fundamental com relaccedilatildeo ao julgamento de O J Simpson eacute que na
literatura toda a trama de encobrimento da violecircncia de gecircnero intriacutenseca agraves relaccedilotildees
matrimoniais eacute esmiuccedilada e posta agrave luz do dia A literatura tira o manto de hipocrisia
que cobre a realidade da violecircncia que dormita nas relaccedilotildees de gecircnero e de um modo
geral nas relaccedilotildees sociais fazendo justiccedila agrave elaboraccedilatildeo criacutetica do trauma No caso es-
peciacutefico dessa violecircncia de gecircnero intra-matrimocircnio a casa o lar a famiacutelia satildeo vistos
como o local de um mal-estar ndash como Freud jaacute havia revelado
Felman ao entrecruzar direito psicanaacutelise e literatura mostra-nos como a esfera
subjetiva eacute esmagada pelo direito na mesma medida em que recebe um local um
espaccedilo na literatura E eacute justamente a partir da esfera subjetiva que o direito e a estru-
tura de poder satildeo desconstruiacutedos criticamente Mas a autora natildeo desdobra um tipo
de pensamento maniqueiacutesta que simplesmente opotildee o inferno juriacutedico a um eventualparaiacuteso literaacuterio Pelo contraacuterio ela estaacute atenta agraves ambiguidades dessas instacircncias
Assim o tribunal de Nuremberg por exemplo eacute visto tanto como um tribunal que
reiterou a forccedila e a violecircncia dos vencedores como tambeacutem deve ser visto como um
momento fundamental na instituiccedilatildeo dos ldquocrimes contra a humanidaderdquo Mais do
que isso ainda e essa eacute a originalidade da leitura da autora nesse julgamento pela
primeira vez convocou-se um grande trauma social coletivo (a violecircncia extrema
contra os judeus) ao tribunal A histoacuteria adentrou a corte Jaacute K-Zetnik sobrevivente
do nazismo um escritor e literato conhecido por produzir uma densa literatura sobreAuschwitz foi a testemunha que sucumbiu no julgamento de Eichman Essa cena
mostra como a literatura colapsou diante do tribunal e como seu testemunho se daacute
em outro niacutevel A reflexatildeo de Felman traz agrave discussatildeo do tema o famoso Jrsquoaccuse [Eu
acuso] de Zola A literatura mostra Felman presta um testemunho avant la lettre
quanto agraves (in)justiccedilas dos tribunais seja Tostoi com relaccedilatildeo a O J Simpson seja Zola
e seu Eu acuso com relaccedilatildeo ao julgamento Eichmann seja Kafka e seu ldquoDiante da leirdquo
com relaccedilatildeo a Benjamin
Tambeacutem na antiga trageacutedia podemos ver a literatura servindo de testemunho doinconsciente juriacutedico Muitos estudiosos jaacute destacaram a continuidade entre a cena
dos tribunais e a da trageacutedia grega com suas duas partes confrontando-se e tendo
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a ldquojusticcedilardquo no seu horizonte Refiro-me aqui sobretudo agrave Oresteia de Eacutesquilo uma
trilogia na qual assistimos a Agamenon ser assassinado por sua esposa Clitemnestra
que em seguida eacute assassinada por seu filho Orestes que por sua vez na terceira
trageacutedia eacute absolvido desse seu crime no tribunal inaugural fundador do direito
positivado no Monte Ares julgamento este presidido por ningueacutem menos que Palas
Atena A deusa representa aiacute o direito instituiacutedo que se une agraves Fuacuterias prometendo
manter a ordem A ordem do direito lembrava Benjamin no anteriormente referi-
do ensaio necessita de um poder ameaccedilador (ldquoDie rechterhaltende Gewalt ist eine
drohenderdquo) Esta ideia faz-nos lembrar justamente da seguinte passagem da trageacutedia
Eumecircnides a terceira da trilogia quando Palas Atena define a nova ordem juriacutedica
que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes
Prestai atenccedilatildeo ao que instauro aqui atenienses convocados por mim mesma para julgar pela primeira vez um homem autor de um crime em que foi derramado sangueA partir deste dia e para todo o sempre o povo que jaacute teve como rei Egeu teraacute a incum-becircncia de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares [] Sobreesta elevaccedilatildeo digo que a Reverecircncia e o Temor seu irmatildeo seja durante o dia seja de noiteevitaratildeo que os cidadatildeos cometam crimes a natildeo ser que eles prefiram aniquilar as leisfeitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com efluacutevios turvos as fontes claras natildeoteraacute onde beber) Nem opressatildeo nem anarquia eis o lema que os cidadatildeos devem seguir
e respeitar Natildeo lhes conveacutem tampouco expulsar da cidade todo o Temor se nada tiver atemer que homem cumpriraacute aqui seus deveres
Esse perfil falocecircntrico e patriarcal que eacute dado agrave ordem juriacutedica como aquela que
empunha a espada para existir eacute tambeacutem desdobrado nas falas do tribunal quando
Orestes e seu advogado Apolo empilham prova sobre prova para convencer os jura-
dos quanto agrave inocecircncia do matricida Orestes apela todo o tempo para a figura de seu
pai Agamenon e Apolo por sua vez evoca tambeacutem seu pai Zeus como guardiatildeo da
verdade e da justiccedila Vale lembrar que Atena eacute apresentada nessa trageacutedia como uma
deusa sem matildee nascida diretamente de seu genitor Zeus Orestes acaba absolvido
pelo ldquovoto de Minervardquo ou seja de Palas Atena Por outro lado o parricida Eacutedipo
como sabemos da trilogia de Soacutefocles sobre esse personagem uma vez descobertos
seu crimes ldquoinvoluntaacuteriosrdquo eacute cegado e banido de sua cidade matar a matildee eacute perdoaacutevel
o pai jamais parecem-nos dizer esses protomodelos sociais do Ocidente
Esse convencer objetivo marcado pela comprovaccedilatildeo espetacular de preferecircncia
visual tiacutepico do tribunal deve ser oposto a um outro espaccedilo para recepccedilatildeo do teste-
munho oral muitas vezes fragmentado e carregado de subjetividade Eacute esse espaccedilo
testemunhal que Felman defende aqui destacando os quase insuperaacuteveis limites de
sua acolhida por parte da instituiccedilatildeo juriacutedica Sem organizaccedilatildeo poliacutetica a voz do
testemunho individual e coletivo daqueles que sofreram uma grave injusticcedila social
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ou privada natildeo consegue dobrar o poder do direito Poder esse que se concretiza
simbolicamente nas casas da Justiccedila esses palaacutecios com suas colunas gregas que
parecem ainda ornar templos em homenagem a Palas Atena a quem se sacrificam as
viacutetimas O modo como Felman abre nossos olhos para perceber o condicionamento
reciacuteproco entre trauma e direito e ao mesmo tempo para a forccedila da fala testemu-
nhal ndash apresentada na literatura e em filmes como o Shoah de Lanzmann e Que
bom te ver viva de Luacutecia Murat ndash deve nos inspirar a lutar no sentido de ampliar
na sociedade os espaccedilos de audiccedilatildeo aos traumas pessoais e sociais Essa mudanccedila na
sociedade soacute pode ser compreendida como parte de um longo e intenso processo de
lutas sociais nas quais justamente os testemunhos dos oprimidos se levantam con-
tra a opressatildeo numa tentativa de resistecircncia e de elaboraccedilatildeo do trauma Eacute evidentee este livro o mostra claramente com autores como Kafka Benjamin Dostoievski
Zola e Tolstoi que uma mudanccedila na esfera do direito soacute poderaacute se dar no contexto
de uma sociedade ela mesma transformada com outra estrutura de poder e uma
distribuiccedilatildeo econocircmica menos injusta Mas estabelecer uma criacutetica do direito eacute algo
efetivo que eacute parte dessa luta por uma transformaccedilatildeo mais global da sociedade Nos
templos do direito como nas trageacutedias a justiccedila estaraacute sempre em um longiacutenquo
horizonte O testemunho no seu sentido forte poliacutetico de engajamento criacutetico na
mudanccedila ndash e natildeo em seu sentido positivista que reafirma o poder da esfera juriacutedi-ca tal como se daacute nas salas de tribunal ndash eacute acolhido nas artes e em algumas esferas
puacuteblicas deixando suas marcas na sociedade como um todo e inclusive forccedilando
as barreiras erguidas pelo direito A criacutetica do direito em grande parte soacute eacute possiacutevel
justamente graccedilas agrave articulaccedilatildeo poliacutetica do testemunho na vida social e concreta
Mas se os sem voz e excluiacutedos se os traumas natildeo articulados pessoais comunitaacute-
rios eacutetnicos e sociais eventualmente adentram a corte isso ocorre natildeo por conta de
uma mudanccedila imanente ou de uma abertura democraacutetica da esfera juriacutedica em si
mesma mas antes como fruto de lutas que se desenrolam haacute deacutecadas ndash e mesmoseacuteculos ndash que tambeacutem visam a tirar a venda da Justiccedila
Felman nos lanccedila com esta obra uma seacuterie de questotildees que atingem o acircmago da
instituiccedilatildeo juriacutedica Assim como Freud abalou nossa identidade e visatildeo do que eacute o
ser humano ao revelar o inconsciente psicoloacutegico tambeacutem Felman ao apontar para
o inconsciente juriacutedico reconfigura o direito e seus limites Ambos psicanaacutelise e a
visada de Felman apostam na forccedila da palavra de um logos subjetivado que enfren-
ta as feridas geradas pelo logos totalitaacuterio e monoloacutegico Com essa abertura criacutetica
proposta por este livro percebemos tambeacutem em que medida sua autora conseguiu
de modo raro e exemplar se colocar muito aleacutem de sua disciplina e galgar um espaccedilo
soacutelido para a criacutetica cultural Soacute podemos desejar que esse gesto se multiplique
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Esse gesto tambeacutem aponta para a originalidade da autora dentro da aacuterea dos
estudos em ldquoLaw and Literaturerdquo ou seja das interfaces entre direito e literatura
Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que
a literatura aborda especificamente temas juriacutedicos ao inveacutes de se apoiar nos estudos
literaacuterios para melhor compreensatildeo da hermenecircutica juriacutedica ou ainda de tratar
das implicaccedilotildees juriacutedicas do campo literaacuterio e tradutoacuterio Felman vai muito aleacutem e
busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura
Como vimos para ela tanto o conceito de trauma eacute um importante vaso comunica-
dor entre essas aacutereas como tambeacutem as anaacutelises de Benjamin Levinas e Arendt sobre
os fenocircmenos do direito e da justiccedila servem de chave nessa empresa de estabelecer
um diaacutelogo entre o mundo do direito e o das letras Felman constroacutei uma plataforma
conceitual e filosoacutefica bastante robusta que permite repensar o campo direito e o da
literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa Tambeacutem nesse sentido
este estudo eacute fundamental
Por fim eacute importante destacar a qualidade do trabalho de traduccedilatildeo levado a cabo
por Ariani Sudatti doutora em direito pela FDUSP e tambeacutem formada em Letras pela
Unicamp Essa dupla formaccedilatildeo garantiu o rigor desta empreitada e nos abriu o acesso
a essas preciosas ideias de Felman que devido agrave sua formulaccedilatildeo conceitual exige uma
traduccedilatildeo atenta e cuidadosa capaz de transitar entre as duas aacutereas Soacute posso esperarque este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre noacutes e gere uma reflexatildeo
(auto)criacutetica por parte daqueles que atuam na esfera juriacutedica ou entatildeo que se interes-
sam pelos grandes debates que enfrentam a questatildeo da Justiccedila e do Direito
Berlim 7 de abril de 2013
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a ldquojusticcedilardquo no seu horizonte Refiro-me aqui sobretudo agrave Oresteia de Eacutesquilo uma
trilogia na qual assistimos a Agamenon ser assassinado por sua esposa Clitemnestra
que em seguida eacute assassinada por seu filho Orestes que por sua vez na terceira
trageacutedia eacute absolvido desse seu crime no tribunal inaugural fundador do direito
positivado no Monte Ares julgamento este presidido por ningueacutem menos que Palas
Atena A deusa representa aiacute o direito instituiacutedo que se une agraves Fuacuterias prometendo
manter a ordem A ordem do direito lembrava Benjamin no anteriormente referi-
do ensaio necessita de um poder ameaccedilador (ldquoDie rechterhaltende Gewalt ist eine
drohenderdquo) Esta ideia faz-nos lembrar justamente da seguinte passagem da trageacutedia
Eumecircnides a terceira da trilogia quando Palas Atena define a nova ordem juriacutedica
que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes
Prestai atenccedilatildeo ao que instauro aqui atenienses convocados por mim mesma para julgar pela primeira vez um homem autor de um crime em que foi derramado sangueA partir deste dia e para todo o sempre o povo que jaacute teve como rei Egeu teraacute a incum-becircncia de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares [] Sobreesta elevaccedilatildeo digo que a Reverecircncia e o Temor seu irmatildeo seja durante o dia seja de noiteevitaratildeo que os cidadatildeos cometam crimes a natildeo ser que eles prefiram aniquilar as leisfeitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com efluacutevios turvos as fontes claras natildeoteraacute onde beber) Nem opressatildeo nem anarquia eis o lema que os cidadatildeos devem seguir
e respeitar Natildeo lhes conveacutem tampouco expulsar da cidade todo o Temor se nada tiver atemer que homem cumpriraacute aqui seus deveres
Esse perfil falocecircntrico e patriarcal que eacute dado agrave ordem juriacutedica como aquela que
empunha a espada para existir eacute tambeacutem desdobrado nas falas do tribunal quando
Orestes e seu advogado Apolo empilham prova sobre prova para convencer os jura-
dos quanto agrave inocecircncia do matricida Orestes apela todo o tempo para a figura de seu
pai Agamenon e Apolo por sua vez evoca tambeacutem seu pai Zeus como guardiatildeo da
verdade e da justiccedila Vale lembrar que Atena eacute apresentada nessa trageacutedia como uma
deusa sem matildee nascida diretamente de seu genitor Zeus Orestes acaba absolvido
pelo ldquovoto de Minervardquo ou seja de Palas Atena Por outro lado o parricida Eacutedipo
como sabemos da trilogia de Soacutefocles sobre esse personagem uma vez descobertos
seu crimes ldquoinvoluntaacuteriosrdquo eacute cegado e banido de sua cidade matar a matildee eacute perdoaacutevel
o pai jamais parecem-nos dizer esses protomodelos sociais do Ocidente
Esse convencer objetivo marcado pela comprovaccedilatildeo espetacular de preferecircncia
visual tiacutepico do tribunal deve ser oposto a um outro espaccedilo para recepccedilatildeo do teste-
munho oral muitas vezes fragmentado e carregado de subjetividade Eacute esse espaccedilo
testemunhal que Felman defende aqui destacando os quase insuperaacuteveis limites de
sua acolhida por parte da instituiccedilatildeo juriacutedica Sem organizaccedilatildeo poliacutetica a voz do
testemunho individual e coletivo daqueles que sofreram uma grave injusticcedila social
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ou privada natildeo consegue dobrar o poder do direito Poder esse que se concretiza
simbolicamente nas casas da Justiccedila esses palaacutecios com suas colunas gregas que
parecem ainda ornar templos em homenagem a Palas Atena a quem se sacrificam as
viacutetimas O modo como Felman abre nossos olhos para perceber o condicionamento
reciacuteproco entre trauma e direito e ao mesmo tempo para a forccedila da fala testemu-
nhal ndash apresentada na literatura e em filmes como o Shoah de Lanzmann e Que
bom te ver viva de Luacutecia Murat ndash deve nos inspirar a lutar no sentido de ampliar
na sociedade os espaccedilos de audiccedilatildeo aos traumas pessoais e sociais Essa mudanccedila na
sociedade soacute pode ser compreendida como parte de um longo e intenso processo de
lutas sociais nas quais justamente os testemunhos dos oprimidos se levantam con-
tra a opressatildeo numa tentativa de resistecircncia e de elaboraccedilatildeo do trauma Eacute evidentee este livro o mostra claramente com autores como Kafka Benjamin Dostoievski
Zola e Tolstoi que uma mudanccedila na esfera do direito soacute poderaacute se dar no contexto
de uma sociedade ela mesma transformada com outra estrutura de poder e uma
distribuiccedilatildeo econocircmica menos injusta Mas estabelecer uma criacutetica do direito eacute algo
efetivo que eacute parte dessa luta por uma transformaccedilatildeo mais global da sociedade Nos
templos do direito como nas trageacutedias a justiccedila estaraacute sempre em um longiacutenquo
horizonte O testemunho no seu sentido forte poliacutetico de engajamento criacutetico na
mudanccedila ndash e natildeo em seu sentido positivista que reafirma o poder da esfera juriacutedi-ca tal como se daacute nas salas de tribunal ndash eacute acolhido nas artes e em algumas esferas
puacuteblicas deixando suas marcas na sociedade como um todo e inclusive forccedilando
as barreiras erguidas pelo direito A criacutetica do direito em grande parte soacute eacute possiacutevel
justamente graccedilas agrave articulaccedilatildeo poliacutetica do testemunho na vida social e concreta
Mas se os sem voz e excluiacutedos se os traumas natildeo articulados pessoais comunitaacute-
rios eacutetnicos e sociais eventualmente adentram a corte isso ocorre natildeo por conta de
uma mudanccedila imanente ou de uma abertura democraacutetica da esfera juriacutedica em si
mesma mas antes como fruto de lutas que se desenrolam haacute deacutecadas ndash e mesmoseacuteculos ndash que tambeacutem visam a tirar a venda da Justiccedila
Felman nos lanccedila com esta obra uma seacuterie de questotildees que atingem o acircmago da
instituiccedilatildeo juriacutedica Assim como Freud abalou nossa identidade e visatildeo do que eacute o
ser humano ao revelar o inconsciente psicoloacutegico tambeacutem Felman ao apontar para
o inconsciente juriacutedico reconfigura o direito e seus limites Ambos psicanaacutelise e a
visada de Felman apostam na forccedila da palavra de um logos subjetivado que enfren-
ta as feridas geradas pelo logos totalitaacuterio e monoloacutegico Com essa abertura criacutetica
proposta por este livro percebemos tambeacutem em que medida sua autora conseguiu
de modo raro e exemplar se colocar muito aleacutem de sua disciplina e galgar um espaccedilo
soacutelido para a criacutetica cultural Soacute podemos desejar que esse gesto se multiplique
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Esse gesto tambeacutem aponta para a originalidade da autora dentro da aacuterea dos
estudos em ldquoLaw and Literaturerdquo ou seja das interfaces entre direito e literatura
Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que
a literatura aborda especificamente temas juriacutedicos ao inveacutes de se apoiar nos estudos
literaacuterios para melhor compreensatildeo da hermenecircutica juriacutedica ou ainda de tratar
das implicaccedilotildees juriacutedicas do campo literaacuterio e tradutoacuterio Felman vai muito aleacutem e
busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura
Como vimos para ela tanto o conceito de trauma eacute um importante vaso comunica-
dor entre essas aacutereas como tambeacutem as anaacutelises de Benjamin Levinas e Arendt sobre
os fenocircmenos do direito e da justiccedila servem de chave nessa empresa de estabelecer
um diaacutelogo entre o mundo do direito e o das letras Felman constroacutei uma plataforma
conceitual e filosoacutefica bastante robusta que permite repensar o campo direito e o da
literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa Tambeacutem nesse sentido
este estudo eacute fundamental
Por fim eacute importante destacar a qualidade do trabalho de traduccedilatildeo levado a cabo
por Ariani Sudatti doutora em direito pela FDUSP e tambeacutem formada em Letras pela
Unicamp Essa dupla formaccedilatildeo garantiu o rigor desta empreitada e nos abriu o acesso
a essas preciosas ideias de Felman que devido agrave sua formulaccedilatildeo conceitual exige uma
traduccedilatildeo atenta e cuidadosa capaz de transitar entre as duas aacutereas Soacute posso esperarque este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre noacutes e gere uma reflexatildeo
(auto)criacutetica por parte daqueles que atuam na esfera juriacutedica ou entatildeo que se interes-
sam pelos grandes debates que enfrentam a questatildeo da Justiccedila e do Direito
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ou privada natildeo consegue dobrar o poder do direito Poder esse que se concretiza
simbolicamente nas casas da Justiccedila esses palaacutecios com suas colunas gregas que
parecem ainda ornar templos em homenagem a Palas Atena a quem se sacrificam as
viacutetimas O modo como Felman abre nossos olhos para perceber o condicionamento
reciacuteproco entre trauma e direito e ao mesmo tempo para a forccedila da fala testemu-
nhal ndash apresentada na literatura e em filmes como o Shoah de Lanzmann e Que
bom te ver viva de Luacutecia Murat ndash deve nos inspirar a lutar no sentido de ampliar
na sociedade os espaccedilos de audiccedilatildeo aos traumas pessoais e sociais Essa mudanccedila na
sociedade soacute pode ser compreendida como parte de um longo e intenso processo de
lutas sociais nas quais justamente os testemunhos dos oprimidos se levantam con-
tra a opressatildeo numa tentativa de resistecircncia e de elaboraccedilatildeo do trauma Eacute evidentee este livro o mostra claramente com autores como Kafka Benjamin Dostoievski
Zola e Tolstoi que uma mudanccedila na esfera do direito soacute poderaacute se dar no contexto
de uma sociedade ela mesma transformada com outra estrutura de poder e uma
distribuiccedilatildeo econocircmica menos injusta Mas estabelecer uma criacutetica do direito eacute algo
efetivo que eacute parte dessa luta por uma transformaccedilatildeo mais global da sociedade Nos
templos do direito como nas trageacutedias a justiccedila estaraacute sempre em um longiacutenquo
horizonte O testemunho no seu sentido forte poliacutetico de engajamento criacutetico na
mudanccedila ndash e natildeo em seu sentido positivista que reafirma o poder da esfera juriacutedi-ca tal como se daacute nas salas de tribunal ndash eacute acolhido nas artes e em algumas esferas
puacuteblicas deixando suas marcas na sociedade como um todo e inclusive forccedilando
as barreiras erguidas pelo direito A criacutetica do direito em grande parte soacute eacute possiacutevel
justamente graccedilas agrave articulaccedilatildeo poliacutetica do testemunho na vida social e concreta
Mas se os sem voz e excluiacutedos se os traumas natildeo articulados pessoais comunitaacute-
rios eacutetnicos e sociais eventualmente adentram a corte isso ocorre natildeo por conta de
uma mudanccedila imanente ou de uma abertura democraacutetica da esfera juriacutedica em si
mesma mas antes como fruto de lutas que se desenrolam haacute deacutecadas ndash e mesmoseacuteculos ndash que tambeacutem visam a tirar a venda da Justiccedila
Felman nos lanccedila com esta obra uma seacuterie de questotildees que atingem o acircmago da
instituiccedilatildeo juriacutedica Assim como Freud abalou nossa identidade e visatildeo do que eacute o
ser humano ao revelar o inconsciente psicoloacutegico tambeacutem Felman ao apontar para
o inconsciente juriacutedico reconfigura o direito e seus limites Ambos psicanaacutelise e a
visada de Felman apostam na forccedila da palavra de um logos subjetivado que enfren-
ta as feridas geradas pelo logos totalitaacuterio e monoloacutegico Com essa abertura criacutetica
proposta por este livro percebemos tambeacutem em que medida sua autora conseguiu
de modo raro e exemplar se colocar muito aleacutem de sua disciplina e galgar um espaccedilo
soacutelido para a criacutetica cultural Soacute podemos desejar que esse gesto se multiplique
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estudos em ldquoLaw and Literaturerdquo ou seja das interfaces entre direito e literatura
Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que
a literatura aborda especificamente temas juriacutedicos ao inveacutes de se apoiar nos estudos
literaacuterios para melhor compreensatildeo da hermenecircutica juriacutedica ou ainda de tratar
das implicaccedilotildees juriacutedicas do campo literaacuterio e tradutoacuterio Felman vai muito aleacutem e
busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura
Como vimos para ela tanto o conceito de trauma eacute um importante vaso comunica-
dor entre essas aacutereas como tambeacutem as anaacutelises de Benjamin Levinas e Arendt sobre
os fenocircmenos do direito e da justiccedila servem de chave nessa empresa de estabelecer
um diaacutelogo entre o mundo do direito e o das letras Felman constroacutei uma plataforma
conceitual e filosoacutefica bastante robusta que permite repensar o campo direito e o da
literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa Tambeacutem nesse sentido
este estudo eacute fundamental
Por fim eacute importante destacar a qualidade do trabalho de traduccedilatildeo levado a cabo
por Ariani Sudatti doutora em direito pela FDUSP e tambeacutem formada em Letras pela
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a essas preciosas ideias de Felman que devido agrave sua formulaccedilatildeo conceitual exige uma
traduccedilatildeo atenta e cuidadosa capaz de transitar entre as duas aacutereas Soacute posso esperarque este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre noacutes e gere uma reflexatildeo
(auto)criacutetica por parte daqueles que atuam na esfera juriacutedica ou entatildeo que se interes-
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Esse gesto tambeacutem aponta para a originalidade da autora dentro da aacuterea dos
estudos em ldquoLaw and Literaturerdquo ou seja das interfaces entre direito e literatura
Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que
a literatura aborda especificamente temas juriacutedicos ao inveacutes de se apoiar nos estudos
literaacuterios para melhor compreensatildeo da hermenecircutica juriacutedica ou ainda de tratar
das implicaccedilotildees juriacutedicas do campo literaacuterio e tradutoacuterio Felman vai muito aleacutem e
busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura
Como vimos para ela tanto o conceito de trauma eacute um importante vaso comunica-
dor entre essas aacutereas como tambeacutem as anaacutelises de Benjamin Levinas e Arendt sobre
os fenocircmenos do direito e da justiccedila servem de chave nessa empresa de estabelecer
um diaacutelogo entre o mundo do direito e o das letras Felman constroacutei uma plataforma
conceitual e filosoacutefica bastante robusta que permite repensar o campo direito e o da
literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa Tambeacutem nesse sentido
este estudo eacute fundamental
Por fim eacute importante destacar a qualidade do trabalho de traduccedilatildeo levado a cabo
por Ariani Sudatti doutora em direito pela FDUSP e tambeacutem formada em Letras pela
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a essas preciosas ideias de Felman que devido agrave sua formulaccedilatildeo conceitual exige uma
traduccedilatildeo atenta e cuidadosa capaz de transitar entre as duas aacutereas Soacute posso esperarque este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre noacutes e gere uma reflexatildeo
(auto)criacutetica por parte daqueles que atuam na esfera juriacutedica ou entatildeo que se interes-
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