história da filosofia 11

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HISTRIA DA FILOSOFIA Dcimo primeiro volume NICOLA ABBAGNANO obra digitalizada por ngelo Miguel Abrantes. Se quiser possuir obras do mesmo tipo ou, por outro lado, tem livros que no se importa de ceder, por favor, contacte-me: ngelo Miguel Abrantes, R. das Aucenas, lote 7, Bairro Mata da Torre, 2785-291, S. Domingos de Rana. telef: 21.4442383. mvel: 91.9852117. Mail: [email protected] [email protected]. VOLUME XI EDITORIAL PRESENA

TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILDSOFIA Copyright by NICOLA ABBAGNANO Reservados todos os direitos para a lngua portuguesa EDITORIAL PRESENA, LDA. - R. Augusto Gil, 2 clv.-E. - Lisboa XII O POSITIVISMO EVOLUCIONISTA 647. POSITIVISMO EVOLUCIONISTA: O PRESSUPOSTO ROMNTICO

A outra orientao do positivismo a evolucionista. Esta orientao consiste em tomar o conceito de evoluo como o fundamento de uma teoria geral da realidade natural e como manifestao de uma realidade - sobrenatural ou metafsica - infinita e ignota. O ponto de partida desta orientao, ou seja, o conceito de evoluo, extrado da doutrina do transformismo biolgico, que foi elaborada por Lamarck e Darwin: ele apresenta-se, efectivamente, como a generalizao de tal doutrina. Mas tal generalizao condicionada pelo pressuposto romntico de que o finito a manifestao ou revelao do infinito, j que s em virtude deste pressuposto, os processos evolutivos singulares, que a cincia pode verificar fragmentariamente em alguns aspectos da natureza, se unem num processo nico, universal, contnuo e necessariamente progressivo. Sob este aspecto, o evolucionismo positivista a extenso ao mundo da natureza do conceito da histria elaborado pelo idealismo romntico. Tal como a histria na doutrina de Fichte ou de Schelling, a natureza, na teoria de Spencer, um processo de desenvolvimento necessrio, cuja lei o progresso. 648. HAMILTON E MANSEL A introduo da filosofia romntica na Inglaterra fez-se atravs da obra de Hamilton, que, com a doutrina da incognoscibilidade do absoluto, constitui tambm um precedente do positivismo de Spencer. William Hamilton (nascido em Glasgow a 8 de Maro de 1788, falecido em Edimburgo a 6 de Maio de 1856) foi uma figura notvel sobretudo pela sua vastssima erudio filosfica, que o levou a contactar

directamente com a filosofia alem do romantismo. O seu primeiro escrito foi um estudo intitulado Filosofia de Cousin, aparecido na "Edinburgh Review" de 1829. Em 1836, foi nomeado professor de lgica e metafsica na Universidade de Edimburgo. As suas Lies de metafsica e de lgica, compostas no primeiro ano de ensino, foram depois repetidas por ele durante vinte anos sem qualquer alterao e publicadas postumamente por Mansel (4 vol., 1859-60). Em 1852, Hamilton publicou uma recolha de artigos com o ttulo Discusses de filosofia e literatura; e, em 1856, as Obras de Thomas Reid com notas e comentrios. As Lies, de Lgica de Hamilton constituem um dos mais brilhantes tratados da lgica tradicional no sculo XIX. Foram to importantes as correces que fez lgica tradicional, que estas viriam a revelar-se fecundas no campo da lgica matemtica; nomeadamente, o princpio da quantificao do predicado, segundo o qual nas proposies se deve considerar a quantidade no s do sujeito mas tambm do predicado. Tal quantificao efectua-se, de facto, ou mediante o uso dos quantificadores (por exemplo, "Pedro, Joo, Jaime, etc., so todos apstolos") ou mediante modos indirectos como a limitao e a excepo ou, de uma maneira subentendida, como quando se diz: "Todos os homens so mortais", devendo entender-se: "Todos os homens so alguns mortais". As Lies de metafsica apresentam em primeiro lugar uma verso

da teoria da percepo imediata prpria da escola escocesa, de que, sob certos aspectos, Hamilton um continuador. Hamilton, todavia, traz a esta teoria uma modificao importante, negando que a percepo imediata faa conhecer as coisas tais como so em si mesmas. "A teoria da percepo imediata, diz ele, no implica que ns percebamos a realidade material absolutamente e em si mesma, isto , fora da relao com os outros rgos e as nossas faculdades, pelo contrrio, o objecto total e real da percepo o objecto exterior em relao com os nossos sentidos e com a nossa faculdade cognitiva. Mas, embora relativo a ns, o objecto no representao, no uma modificao do eu. Ele o no-eu-o no-eu modificado e relativo, talvez, mas sempre no-eu" (Lectures on Metaphisics, 1, 1870, p. 129). A teoria da percepo imediata, no elimina, portanto, segundo Hamilton, o relativismo do conhecimento, o qual se baseia em trs razes: 1.o a existncia no cognoscvel absolutamente em si mesma mas s de modos especiais, 2.o estes modos s podem ser conhecidos em relao com as nossas faculdades, 3.o no podem estar em relao com as nossas faculdades seno como determinadas modificaes dessas mesmas faculdades (Ib., 1, p. 148). Decerto que nesta forma a doutrina da percepo imediata no tem o mesmo significado que a escola escocesa do senso comum lhe conferira: esta escola, de facto, entendia aquela doutrina no sentido de que os objectos so percebidos imediatamente e em si mesmos. Alm disso, entre um objecto condicionado e tornado relativo pela sua relao com as faculdades humanas e uma "ideia" no sentido de Descartes e de Berkeley a diferena puramente verbal.

A relatividade do conhecimento permite a Hamilton afirmar a incognoscibilidade, e no a inconcebilidade, do Absoluto. Contra Cousin e Schelling, Hamilton afirma esta incognoscibilidade, ao passo que, de acordo com eles, defende a existncia do Absoluto, cuja realidade se revelaria na crena. "Pensar condicionar, afirma (Discussions, p. 13), e uma limitao condicional uma lei fundamental das possibilidades do pensamento. O Absoluto no concebvel seno como uma negao da possibili-

10 dade de ser concebido". Por outro lado, "a esfera da nossa crena muito mais extensa do que a esfera do nosso conhecimento; e, portanto quando nego que o Infinito possa ser conhecido por ns, estou bem longe de negar que ele possa e deva ser crido por ns" (Ib., II, p. 530-31). Esta superioridade da crena sobre o conhecimento vincula Hamilton escola escocesa; mas para Hamilton, a crena , romanticamente, a revelao imediata e primitiva que o prprio Infinito faz de si ao homem e que, por conseguinte, condiciona o prprio processo do conhecer. Falando da percepo da realidade externa, Hamilton reconhece que, propriamente falando, ns no sabemos se o objecto de tal percepo um no-eu, e no uma percepo do eu; s a reflexo faz crer que o seja "porque obedecemos f numa necessidade originria da nossa natureza que nos impe tal crena" (Reid's Works, p. 744-50). Ao nome de Hamilton est ligado o de Henry Longuevifie Mansel

(1820-71) que foi o seu intrprete. Em dois livros, Os limites do pensamento religioso (1858) e Filosofia do condicionado (1866), Mansel construiu sobre as premissas de Hamilton uma teologia negativa. Deus como absoluto e infinito inconcebvel. Ele no pode no entanto ser concebido como causa primeira, j que a causa existe apenas em relao ao efeito e ao absoluto repugna toda a relao. Toda a tentativa de o conceber de algum modo d lugar a dilemas insolveis. "0 absoluto no pode ser concebido nem como consciente nem como inconsciente; nem como complexo nem como simples; no II pode ser definido nem mediante diferenas nem mediante a ausncia de diferenas: no pode ser identificado com o universo nem pode ser distinto dele" (Limits of Rel. Thought, p. 30). Do mesmo modo, o infinito que deveria ser concebido como todo em potncia e nada em acto revela precisamente nisto a sua impossibilidade de ser concebido, j que "se pode ser o que no , incompleto, e se todas as coisas, no tem nenhum sinal caracterstico que o possa distinguir de uma coisa qualquer" (Ib., p. 48). Esta incognoscibilidade do Infinito e do Absoluto , todavia, relativa ao homem, no pertence natureza do prprio Absoluto. "Ns somos obrigados, diz Mansel (1b., p. 45), pela prpria constituio do nosso esprito a crer na existncia de um Ser absoluto e infinito". Esta crena funda-se na nossa conscincia moral e intelectual, na estrutura e no curso da natureza e na revelao" (Phil. of the Conditioned. p. 245). Mas to-pouco

estes fundamentos da crena permitem afirmar alguma coisa sobre os atributos de Deus. Subsiste uma diferena enorme entre a mais alta moralidade humana concebvel e a perfeio divina, distncia que pode ser de algum modo abolida pelo conceito escolstico de analogia. A doutrina de Hamilton e Mansel ao mesmo tempo um cepticismo da razo e um dogmatismo da f. O cepticismo da razo foi utilizado como fundamento do agnosticismo que caracterizava em boa parte o positivismo evolucionista. O dogmatismo da f iria ter a sua continuao histrica no espiritualismo ingls contemporneo. 12 649. A TEORIA DA EVOLUO Se o princpio romntico do infinito que se revela ou realiza no finito a categoria tacitamente pressuposta pela filosofia positivista da evoluo, a teoria biolgica da transformao da espcie , de facto, o seu ponto de partida. Com efeito, o evolucionismo uma generalizao desta doutrina biolgica, generalizao tacitamente fundada nesta categoria. Podem-se encontrar antecedentes imediatos da teoria do transformismo biolgico nalgumas intuies de Buffon (1707-88). O famoso autor da Histria natural (1749-88), embora declarando-se explicitamente partidrio da doutrina tradicional da fixidez das espcies vivas, admite hipoteticamente a possibilidade de que se tivessem desenvolvido a partir de um tipo comum, atravs de lentas variaes sucessivas, verificadas em todas as direces. Foi ainda em Buffon que Kant, provavelmente, se inspirou ao propor a

hiptese (1790), no pargrafo 80 da Crtica do Juzo, de "um verdadeiro parentesco" das formas vivas e da sua derivao de uma "me comum", assim como a ideia de uma evoluo contnua da natureza da nebulosa primitiva at ao homem. Porm, tais hipteses eram apenas intuies genricas, no apoiadas num sistema coordenado de observaes. O primeiro a apresentar de um modo cientfico a doutrina do transformismo biolgico foi o naturalista francs Joo Baptista Lamarck (1744-1829). Na sua Filosofia zoolgica (1809) e na Histria natural dos animais sem vrtebras (1815-22), Lamarck enunciava quatro leis que deviam presidir formao dos organismos ani13 mais: 1.o a vida, pela sua prpria fora, tende continuamente a aumentar o volume de cada corpo vivo e a estender as suas partes; 2.1> a produo de um novo rgo animal resulta do aparecimento de uma nova necessidade e do novo movimento que esta necessidade suscita e encoraja; 3.o o desenvolvimento dos rgos e a sua fora de aco esto constantemente na razo directa do uso dos prprios rgos; 4.o tudo o que foi adquirido, perdido ou modificado na organizao dos indivduos conservado e transmitido mediante a gerao dos novos indivduos. Estas quatro leis so a primeira formulao cientfica do modo por que se verificaria a transformao dos organismos. Tal modo reportado substancialmente ao princpio de que o uso dos rgos, requerido pelas necessidades e, portanto, pelo ambiente exterior, pode modificar radicalmente os prprios rgos. As ideias de Lamarck no tiveram nenhuma ressonncia imediata

devido sobretudo ao enorme apoio que a tese oposta da fixidez das espcies teve durante alguns decnios merc da autoridade de George Cuvier (1769-82), o fundador da paleontologia, ou seja, do estudo dos restos fsseis das espcies extintas. No seu Discurso sobre as revolues do globo (1812), Cuvier explicou a extino das espcies fossilizadas mediante catstrofes, gerais que periodicamente destruiriam as espcies vivas de cada poca geolgica, dando ensejo a que Deus criasse novas. O transformismo biolgico s pde afirmar-se quando esta teoria das catstrofes foi eliminada; e essa eliminao foi obra do gelogo ingls Charles Lye11 (17971875). Nos seus Princpios de geologia 14 (1833), Lye11 exps a tese de que o estado actual da terra no devido a uma srie de cataclismos mas aco lenta, gradual e insensvel das mesmas causas que continuam a actuar sob os nossos olhos. Tal doutrina tornava impossvel explicar a gnese e a extino das espcies vivas mediante causas extraordinrias ou sobrenaturais e abria definitivamente a via ao transformismo biolgico. Este fez a sua entrada triunfal na cincia com a obra de Charles Darwin (12 de Fevereiro de 1809-19 -Abril de 1882). Sobrinho de um naturalista, chamado Erasmo, Darwin foi o tipo do cientista inteiramente dedicado s suas pesquisas. Depois de uma viagem por mar durante cinco anos, dedicou-se a recolher e a ordenar o material para a sua grande obra A origem das espcies, que apareceu em 1859. O livro teve um sucesso fulgurante e a primeira edio, de mais de 1.000 exemplares, esgotou-se no

primeiro dia de venda. Seguidamente, Darwin publicou A variao dos animais e das plantas no estado domstico (1868) e Descendncia do homem (1871). O ltimo trabalho notvel de Darwin foi a Expresso das emoes no homem e nos animais (1872), a que se seguiram alguns trabalhos cientficos menores. Em 1887, o filho de Darwin, Francisco, publicou dois volumes intitulados A vida e a correspondncia de Charles Darwin, que contm tambm uma breve autobiografia do filsofo, e que so indispensveis para a compreenso da sua personalidade. O mrito de Darwin consiste em ter elaborado uma completa e sistemtica teoria cientfica do transformismo biolgico, fundandoa num nmero enorme 15 de observaes e de experincias, e em a ter apresentado precisamente no momento em que a ideia romntica do progresso, nascida no terreno da investigao histrica, alcanava a sua mxima universalidade e parecia indestrutvel. A teoria de Darwin assenta em duas ordens de factos: LO, a existncia de pequenas variaes orgnicas que se verificam nos seres vivos ao longo do curso do tempo e por influncia das condies ambientais, variaes que, em parte, pela lei das probabilidades so vantajosas aos indivduos que as apresentam: 2.O a luta pela vida, que se verifica necessariamente entre os indivduos vivos pela tendncia da cada espcie a multiplicar-se segundo uma progresso geomtrica. Este ltimo pressuposto evidentemente extrado da doutrina de Malthus ( 638). Destas duas ordens de factos se segue que os indivduos em que se manifestam mutaes orgnicas vantajosas tm mais probabilidades de sobreviver na luta pela vida; e em virtude do princpio de

hereditariedade haver neles uma tendncia pronunciada para deixar em herana aos seus descendentes os caracteres acidentais adquiridos. Tal a lei da seleco natural, que "tende, diz Darwin (Origens das espcies, 4.O, 18), ao aperfeioamento de cada criatura viva em relao com as suas condies de vida orgnicas e inorgnicas, e, por conseguinte, na maior parte dos casos, com um progresso da organizao. Todavia, as formas simples inferiores podem perpetuar-se por muito tempo se forem convenientemente adaptadas s suas simples condies de vida. "A acumulao das pequenas variaes e a sua conservao por meio da hereditariedade produzem as 16 variaes dos organismos animais que, nos seus termos extremos, a passagem de uma espcie outra. O que o homem faz com as plantas e os animais domsticos produzindo gradualmente as variedades que so mais teis s suas necessidades, pode faz-lo a natureza numa escala muito mais vasta, pois "que limites se podem pr a esse poder que actua durante longas eras e perscruta rigorosamente a estrutura, a organizao inteira e os hbitos de cada criatura, para favorecer o que est bem e rejeitar o que est mal?" (1b., 14, 2). Desta teoria se segue que entre as vrias espcies devem ter existido inmeras variedades intermdias que ligavam estreitamente todas as espcies de um mesmo grupo; mas, evidentemente, a seleco natural exterminou estas formas intermdias de que, no entanto, se podem encontrar traos nos fsseis (Ib., 6.o, 2). Alm do estudo dos fsseis, o dos rgos

rudimentares, das espcies chamadas aberrantes e da embriologia pode conduzir a determinar a ordem progressiva dos seres vivos. "Se ns, escreve Darwin, no possumos rvore genealgica, nem livro de oiro, nem brases hereditrios, temos, no entanto, a possibilidade de descobrir e seguir os traos das numerosas linhas divergentes das nossas genealogias naturais, mediante a herana, desde h muito conservada, dos caracteres de cada espcie" (Ib., 14.O, 5). A concluso de Darwin nitidamente optimista: cr ter estabelecido o inevitvel progresso biolgico do mesmo modo que o romantismo idealista e socialista acreditava no inevitvel progresso espiritual. "Ns podemos concluir com alguma confiana que nos ser 17 permitido contar com um futuro de durao incalculvel. E como a seleco natural actua apenas para o bem de cada indivduo, todo o dom fsico ou intelectual tender a progredir para a perfeio" (1b., 14.-, 6). A outra obra fundamental de Darwin, A descendncia do homem, tende, em primeiro lugar, a estabelecer que "no existe nenhuma diferena fundamental entre o homem e os mamferos mais elevados no que respeita s faculdades mentais". A nica diferena entre a inteligncia e a linguagem do homem e a dos outros animais uma diferena de grau que se explica pela lei da seleco natural e tambm, em parte, pela escolha sexual a que Darwin atribui, para a evoluo do homem, uma importncia bastante maior do que para a evoluo dos animais. Darwin no cr que o conhecimento da descendncia do homem de organismos inferiores diminua de algum modo a dignidade humana. "Quem visse um selvagem na sua terra natal, escreve em As origens do homem, (trad. ital., p. 579) no sentiria muita vergonha se se visse obrigado a reconhecer que o

sangue de uma criatura mais humilde lhe corre nas veias. Quanto a mim, preferia muito mais ter descendido daquele herico macaco que enfrentou o seu terrvel inimigo para salvar a vida ao seu guardio ou daquele velho babuno que desceu da montanha para arrancar triunfante o seu jovem companheiro a uma furiosa matilha de ces, do que de um selvagem que se compraz em torturar os seus inimigos, oferece sacrifcios de sangue, pratica o infanticdio sem remorsos, trata as 18 suas mulheres como escravas, no conhece o que a decncia e dominado por grosseiras supersties". Darwin, foi e quis ser exclusivamente um cientista. S raramente, e dir-se-ia contra vontade, se decidiu a exprimir as suas convices filosficas e religiosas; e sempre em privado, em cartas particulares no destinadas publicao. Contudo, estas convices, foram-lhe inspiradas pela sua doutrina da descendncia inferior do homem, descendncia que no pode autorizar uma grande f na capacidade do homem para resolver certos problemas fundamentais. "Per-unto a mim mesmo, escreve numa carta (Vida e corresp., trad. franc., p. 368), se as convices do homem, que se desenvolveu a partir do esprito de animais de ordem inferior, tm algum valor e se se pode ter alguma confiana nelas. Quem poderia confiar nas convices do esprito de um macaco, se que existem convices num esprito semelhante?" Noutra carta de 1789 (1b., p. 353-54) exprime-se assim: "Sejam quais forem as minhas convices sobre este tema, elas s podem ter importncia para

MI prprio. Mas, j que mo perguntais, posso assegurar-vos que o meu juzo sofre amide flutuaes... Nas minhas maiores oscilaes, nunca cheguei ao atesmo no verdadeiro sentido da palavra, isto , nunca cheguei a negar a existncia de Deus. Eu penso que, em geral (e sobretudo medida que envelheo), a descrio mais exacta do meu estado de esprito a de agnstico". O termo agnosticismo fora criado em 1869 pelo naturalista Thomas Huxley (1825-956) que chegara, antes da publicao da Origem das espcies, a inferir por si prprio a transformao das espcies 19 biolgicas e que se tornou logo um dos mais entusiastas partidrios de Darwin. "0 termo, diz HuXley (Collected Essays, V, p. 237 e sgs.) veio-me mente como anttese de "gnstico" da histria da Igreja que pretendia saber muito sobre coisas que eu ignorava". Tal termo implica j, na mente de Huxley, uma referncia quela impossibilidade de conceber o Absoluto e o Infinito em que haviam insistido Hamilton e Mansel. Mas, para Darwin, este termo tem um sentido menos explcito, significando simplesmente a impossibilidade de encontrar no domnio da cincia quaisquer asseres que confirmem ou desmintam decisivamente as crenas religiosas tradicionais. Darwin, no entanto, supunha possvel negar decididamente qualquer "inteno" da natureza, isto , toda a causa

final, e aduzia a este propsito a existncia do mal e da dor (Vida e corresp., trad. franc., 1, p. 361-62). Porm, estava convencido de que "o homem ser no futuro uma criatura bastante mais perfeita do que actualmente" (1b., p. 363); e, na realidade, as suas convices cientficas e toda a estrutura sistemtica da sua teoria da evoluo se fundam no pressuposto da ideia do progresso que dominava o clima romntico da poca. Atravs da obra de Darwin, a cincia inseriu o mundo inteiro dos organismos vivos na histria progressiva do universo. 650. SPENCER: O INCOGNOSCVEL A poca era, pois, propcia a uma teoria do progresso que no o restringisse ao destino do homem no mundo, mas sim o estendesse ao mundo inteiro, na 20 totalidade dos seus aspectos. Elaborar a doutrina do progresso universal e pr em relevo o valor infinito e, portanto, religioso (mesmo quando s misteriosamente religioso) do progresso, tal foi o objectivo que Spencer se props ao difundir em Maro de 1860 o plano do seu Sistema de filosofia, de vastas propores. Herbert Spencer nasceu a 27 de Abril de 1820 em Derby, em Inglaterra e foi engenheiro dos caminhos de ferro em Londres. Publicou primeiramente alguns artigos de carcter poltico e econmico; em 1845, tendo recebido uma pequena herana, obedeceu sua vocao

filosfica e abandonou a carreira de engenheiro para se dedicar sua actividade de escritor. De 1848 a 1853 pertenceu redaco do "Economist". O primeiro resultado da sua actividade foram os Princpios de psicologia, publicado em 1855. Em 1857, publicou um ensaio sobre o progresso (0 progresso, sua lei e sua causa), que muito significativo pela sua orientao fundamental. E em 1862 saa o primeiro volume do Sistema de filosofia sinttica projectado em 1860, Primeiros princpios que a sua obra filosfica fundamental, a que se seguiram os dois volumes dos Princpios de biologia (1864-67), e em seguida: Princpios de psicologia (2 vol., 1870-72), Princpios de sociologia (Parte 1, 1876; Instituies cerimoniais, 1879; Instituies polticas, 1882; Instituies eclesisticas, 1885), Princpios de moralidade (Parte I, As bases da tica, 1879); Parte IV, A justia, 1891-, Parte 11 e Parte 111, 1892; Parte V, 1893). A estas obras seguiram-se: A classificao das cincias (1864); A educao (1861); O estudo da 21 sociologia (1873); O homem contra o estado (1884); Os factores da evoluo orgnica (1887); Ensaios (2 vol., 1858-63); Esttica social (1892); A inadequao da seleco natural (1893); Fragmentos vrios, (1897); Factos e comentrios (1902); Autobiografia (2 vol.. 1904)-, Ensaios sobre a educao (1911). Estes ltimos dois escritos so pstumos. Spencer morreu a 8 de Dezembro de 1903 em Brigton. No artigo sobre o progresso de 1857 (recolhido mais tarde nos Ensaios) que o primeiro esboo do seu sistema, pode-se ver

claramente qual a inspirao fundamental do evolucionismo de Spencer: devia este servir para justificar, mediante a sua lei e a sua causa fundamental, o progresso, entendido como facto universal e csmico. "Quer se trate, dizia Spencer, do desenvolvimento da terra, do desenvolvimento da vida sua superfcie, do desenvolvimento da sociedade, do governo, da indstria, do comrcio, da linguagem, da literatura, da cincia, da arte, sempre o fundo de todo o progresso a mesma evoluo que vai do simples ao complexo atravs de diferenciaes sucessivas. Desde as mais antigas mutaes csmicas de que h sinais at aos ltimos resultados da civilizao, veremos que a transformao do homogneo em heterogneo a essncia mesma do progresso". No mesmo artigo considerava-se o carcter divino e, portanto, religioso da realidade velada, mais do que revelada, do progresso csmico. Este carcter o ponto de partida dos Primeiros princpios. A primeira parte desta obra intitula-se "0 incognoscvel". Tende a demonstrar a inacessibilidade da realidade ltima e absoluta, de acordo com o sen22 tido que Hamilton e Mansel deram a esta tese. Mas Spencer servese dela para demonstrar a possibilidade de um encontro e de uma conciliao entre a religio e a cincia. Religio e cincia, de facto, tm ambas a sua base na realidade do mistrio e no podem ser inconciliveis. Ora, a verdade ltima includa em

todas as religies que "a existncia do mundo com tudo o que contm e com tudo o que o rodeia um mistrio que exige sempre ser interpretado" (First Princ., 14). Todas as religies falham ao dar esta interpretao, as diversas crenas em que se exprimem no so logicamente defensveis. Atravs do desenvolvimento da religio, o mistrio cada vez mais reconhecido como tal de modo que cumpre reconhecer a essncia da religio na convico de que a fora que se manifesta no universo completamente imperscrutvel. Por outro lado, tambm a cincia esbarra no mistrio que envolve a natureza ltima da realidade cujas manifestaes estuda. O que seja o tempo e o espao, a matria e a fora, o que a durao da conscincia finita ou infinita -e o que o sujeito do pensamento, so para a cincia enigmas impenetrveis. As ideias cientficas ltimas so todas representativas de realidades que no podem ser compreendidas. Isto deve-se ao facto de o nosso conhecimento, como Hamilton e Mansel puseram a claro, estar encerrado dentro dos limites do relativo. Decerto, por meio da cincia, o conhecimento progride e se estende incessantemente. Mas tal progresso consiste em incluir verdades gerais; e verdades gerais noutras mais gerais ainda de maneira que se segue daqui que a verdade mais geral, que

23 no admite incluses numa verdade ulterior, no compreensvel e est destinada a permanecer como mistrio (Ib., 123). Spencer admite, pois, integralmente, a tese de Hamilton e Mansel, segundo a

qual o absoluto, o incondicionado, o infinito (ou como se queira chamar ao princpio supremo da realidade) inconcebvel para o homem, dada a relatividade constitutiva do seu conhecimento. Contudo, no se detm no conhecimento do absoluto, tal como tinha sido defendido por aqueles pensadores que haviam tomado como nica definio possvel do mesmo a sua prpria incognoscibilidade. Dado que o relativo no tal, observa Spencer, seno em relao ao absoluto, o prprio relativo impensvel se impensvel a sua relao com o no relativo. "Sendo a nossa conscincia do incondicionado, em rigor, a conscincia incondicionada ou o material em bruto do pensamento, ao qual, pelo pensar damos formas definitivas, segue-se que o sentido sempre presente da existncia real a verdadeira base da nossa inteligncia" (First Princ., 26). Cumpre, pois, conceber o absoluto como a fora misteriosa que se manifesta em todos os fenmenos naturais e cuja aco sentida positivamente pelo homem. No possvel, todavia, definir ou conhecer ulteriormente tal fora. A tarefa da religio ser a de advertir o homem do mistrio da causa ltima, ao passo que o escopo da cincia ser o de estender incessantemente o conhecimento dos fenmenos. Religio e cincia so assim necessariamente correlativas. O reconhecimento da fora imperscrutvel o limite comum que as concilia e as toma solidrias. A cincia chega inevitavelmente. a 24 SPENCER este limite ao atingir os seus prprios limites, e bem assim a

religio na medida em que irresistivelmente orientada pela crtica. O homem tentou sempre, e continuar a tentar, construir smbolos que lhe representam a fora desconhecida do universo. Mas continuamente e sempre se dar conta da inadequao de tais smbolos. De sorte que os seus contnuos esforos e os seus contnuos reveses podem servir para lhe dar o devido sentido da diferena incomensurvel que existe entre o condicionado e o incondicionado e encaminh-lo para a mais alta forma da sabedoria: o reconhecimento do incognoscvel como tal. O facto de a cincia estar confinada ao fenmeno no significa para Spencer que ela esteja confinada na aparncia. O fenmeno no a aparncia: antes a manifestao do incognoscvel. E a primeira manifestao do incognoscvel o agrupar-se dos prprios fenmenos em dois grupos principais que constituem respectivamente o eu e o no-eu, o sujeito e o objecto. Estes dois grupos formam-se espontaneamente merc da afinidade e da desigualdade dos prprios fenmenos. O eu e o no-eu so fenmenos, realidades relativas; mas o seu carcter persistente permite relacion-las de algum modo com o incognoscvel. Spencer admite o princpio de que "as impresses persistentes, sendo os resultados persistentes numa causa persistente, so praticamente idnticos para ns causa mesma e podem ser habitualmente tratados como seus equivalentes" (1b., 46). Em virtude deste princpio, o espao, o tempo, a matria, o movimento, a fora, noes estas persistentes e imu25 tveis, devem ser consideradas de certo modo como produtos do prprio incognoscvel. No so decerto idnticas ao incognoscvel,

nem so modos dele: so "efeitos condicionados da causa incondicionada". Todavia, correspondem a um modo de ser ou de a-ir desconhecido por ns, desta causa; e neste sentido so reais. Spencer chama realismo transfigurado a esta correspondncia hipottica entre o incognoscvel e o seu fenmeno. "0 nmeno e o fenmeno so aqui apresentados na sua relao primordial como os dois aspectos da mesma mutao, de que somos obrigados a considerar no s o primeiro como o segundo" (1b., 50). 651. SPENCER: A TEORIA DA EVOLUO Entre a religio, a que cabe o reconhecimento do incognoscvel, e a cincia, a que cabe todo o domnio do cognoscvel, que lugar tem a filosofia? Spencer definiu-a como o conhecimento no seu mais alto grau de generalidade (First Princ., 37). A cincia conhecimento parcialmente unificado; a filosofia, conhecimento completamente unificado. As verdades da filosofia so em relao s verdades cientficas mais altas o que estas so em relao s verdades cientficas mais baixas, de modo que as generalizaes da filosofia compreendem e consolidam as mais vastas generalizaes da cincia. A filosofia o produto final desse processo que comea com a recolha de observaes isoladas e termina com as proposies univer26 sais. Por isso, deve tomar como material prprio e ponto de partida os princpios mais vastos e mais gerais a que a cincia chegou.

Tais princpios so: a indestrutibilidade da matria, a continuidade do movimento, a persistncia da fora-com todas as suas consequncias entre as quais se encontra a lei do ritmo, ou seja, da alternncia de elevao e queda no desenvolvimento de todos os fenmenos. A frmula sinttica que estes princpios gerais requerem uma lei que implica a contnua redistribuio da matria e da fora. Tal , segundo Spencer, a lei da evoluo, que significa que a matria passa de um estado de disperso a um estado de integrao (ou concentrao), enquanto a fora que operou a concentrao se dissipa. A filosofia , portanto, essencialmente uma teoria da evoluo. Os Primeiros princpios definem a natureza e os caracteres gerais da evoluo: as outras obras de Spencer estudam o processo evolutivo nos diversos domnios da realidade natural. A primeira determinao da evoluo que ela uma passagem de uma forma menos coerente a uma forma mais coerente. O sistema solar (que saiu de uma nebulosa), um organismo animal, uma nao, mostrando, no seu desenvolvimento, esta passagem de um estado de desagregao a um estado de coerncia e de harmonia crescentes. Mas a determinao fundamental do processo evolutivo o que o caracteriza como passagem do homogneo ao heterogneo. Esta caracterizao sugerida a Spencer pelos fenmenos biolgicos. Todo o organismo, planta ou animal, se desenvolve atravs 27 cia diferenciao das suas partes, que a princpio so, qumica ou

biologicamente, indistintas, e logo se diferenciam para formar tecidos e rgos diversos. Spencer cr que este processo prprio de todo o desenvolvimento, em qualquer campo da realidade: na linguagem, primeiro constituda por simples exclamaes e sons inarticulados e que logo se diferenciam em palavras diversas como na arte, que, a partir dos povos primitivos, cada vez mais se vai dividindo nos seus ramos (arquitectura, pintura, escultura, artes plsticas) e direces. Finalmente, a evoluo implica tambm urna passagem do indefinido ao definido: indefinida , por exemplo, a condio de uma tribo selvagem em que no existe especificao de tarefas e de funes; definida a de um povo civilizado, assente na diviso do trabalho e das classes sociais. Spencer usa, pois, esta frmula definitiva da evoluo (First Princ., 145): "A evoluo uma integrao de matria e uma concomitante dissipao do movimento, durante a qual a matria passa de uma homogeneidade indefinida e incoerente a uma heterogeneidade definida e coerente; e durante a qual o movimento conservado sofre uma transformao paralela". A evoluo um processo necessrio. A homogeneidade, que o seu ponto de partida, um estado instvel que no pode durar e deve passar ao estado de heterogeneidade para alcanar o equilbrio. Por isso, a evoluo deve comear; uma vez comeada, deve continuar porque as partes que permanecem homogneas tendem, por seu turno, para a sua instabilidade, para a heterogeneidade. O sentido deste processo necessrio e contnuo optimista. Spencer ad-

28 mite que, na lei do ritmo, a evoluo e a dissoluo, onde quer que se verifique, a premissa de uma evoluo ulterior. Pelo que respeita ao homem, a evoluo deve determinar uma crescente harmonia entre a sua natureza espiritual e as condies de vida. "E esta , diz Spencer (1b., 176), a garantia para crer que a evoluo s pode terminar com o estabelecimento da maior perfeio e da mais completa felicidade". Spencer nega que a sua doutrina possa ter um significado materialista ou espiritualista e considera a disputa entre estas duas orientaes como uma mera guerra de palavras. Quem esteja convencido de que o ltimo mistrio h-de permanecer sempre, est disposto a formular todos os fenmenos, seja em termos de matria, movimento e fora, seja noutros termos, mas sustentar firmemente que s numa doutrina que reconhea a causa desconhecida como coextensiva a todas as ordens dos fenmenos, pode haver uma religio coerente e uma coerente filosofia. Ver que a relao de sujeito e objecto torna necessrias as concepes antitticas de esprito e matria; mas considerar uma e outra como sinais da realidade desconhecida subjacente a ambas (Ib., 194). 652. SPENCER: BIOLOGIA E PSICOLOGIA As obras de Spencer dedicadas biologia, psicologia, sociologia e tica constituem a aplicao do princpio evolutivo ao campo destas cincias.

29 A biologia , para Spencer, o estudo da evoluo dos fenmenos orgnicos e da sua causa. A vida consiste na combinao de fenmenos diversos, contemporneos e sucessivos, a qual se encontra em correspondncia com mutaes simultneas ou sucessivas do ambiente exterior. Eis porque consiste essencialmente na funo da adaptao; e precisamente atravs desta funo que se formam e se diferenciam os rgos, a fim de corresponderem cada vez melhor s solicitaes do exterior. Spencer atribui assim o primeiro lugar, na transformao dos organismos vivos, ao princpio lamarckiano da funo que cria o rgo; reconhece, porm, a aco do princpio darwiniano da seleco natural (a que ele chama "sobrevivncia, do mais apto"), que, todavia, no pode actuar seno atravs da adaptao ao ambiente e, portanto, do desenvolvimento funcional dos rgos. Insiste, sobretudo, na conservao e na acumulao das mudanas orgnicas individuais por obra da hereditariedade; e concebe o progresso da vida orgnica como adaptao crescente dos organismos ao ambiente por acumulao das variaes funcionais que respondem melhor aos requisitos ambientais. A conscincia um estdio desta adaptao; e, mais, a sua fase decisiva. Spencer no admite a reduo integral da conscincia s impresses ou s ideias, segundo a doutrina tradicional do empirismo ingls. A conscincia pressupe uma unidade, uma fora originria; por conseguinte, uma substncia espiritual que seja a sede desta fora. Mas, tal como se verifica na

substncia e na fora material, tambm a substncia e a fora espiritual so, na sua natureza 30 ltima, incognoscveis; e a psicologia deve limitar-se a estudar as suas manifestaes. Todavia, possvel uma psicologia como cincia autnoma; e Spencer afasta-se da tese de Comte, que a negara. H uma psicologia objectiva que estuda os fenmenos psquicos no seu substracto material; e h uma psicologia subjectiva, fundada na introspeco que " constitui uma cincia completamente parte, nica no seu gnero, independente de todas as outras cincias e C1,1 antiteticamente oposta a cada uma delas" (Princ. of Psych. 56). S a psicologia subjectiva pode servir de apoio lgica, isto , pode contribuir para determinar o desenvolvimento evolutivo dos processos do pensamento. Tal desenvolvimento explica-se, contudo, como qualquer outro desenvolvimento; um processo de adaptao gradual que vai da aco reflexa, que a primeira fase do psquico, atravs do instinto e da memria, at razo. No que respeita a esta ltima, Spencer admite que existem noes ou verdades priori no sentido de serem independentes da experincia pontual e temporal do indivduo; e nesse sentido reconhece a parcial legitimidade das doutrinas "apriorsticas", como as de Leibniz e Kant. Mas o que neste sentido priori para o indivduo, no o para a espcie humana, dado que resulta da experincia acumulada pela espcie atravs de um longussimo

perodo de desenvolvimento, e que se fixou e tomou hereditria na estrutura orgnica do sistema nervoso (1b., 426-33). evidente que aqui o a priori entendido no sentido da uniformidade e da constncia de certos procediinentos intelectuais, no no sentido da validez. 31 No se poderia, de facto, excluir a possibilidade de que as experincias acumuladas fixadas pela sucesso das geraes contenham, alm de verdades, erros, prejuzos e distores. Mas uma possibilidade deste gnero tacitamente excluda por Spencer devido ao significado optimista ou exaltante que o processo evolutivo reveste para ele em todos os campos. Uma evoluo intelectual , como tal, aquisio e incremento de verdade; mais ainda, a prpria verdade em progresso atravs da sucesso das geraes. 653. SPENCER: SOCIOLOGIA E TICA Embora utilizando alguns resultados da sociologia de Comte e aceitando o nome da cincia que Comte inventara, Spencer modifica radicalmente o conceito desta. Com efeito, para Comte, a sociologia a disciplina que, descobrindo as leis dos factos sociais, permite prev-los e orient-los, o fim da sociologia a sociocracia, a fase da sociedade em que o positivismo se tornar regime. Para Spencer, ao invs, a sociologia deve limitar-se a uma tarefa puramente descritiva do desenvolvimento da sociedade humana at ao ponto a que chegou hoje. certo que pode determinar as condies a que o desenvolvimento ulterior dever satisfazer; mas no as metas e os ideais a que ele tende. Determinar as metas, isto , estabelecer qual deve ser o homem ideal numa sociedade ideal, o objectivo da

moral. A sociologia e a moral, que eram uma s coisa na obra de Comte, so assim distinguidas claramente por Spencer. 32 A sociologia determina as leis da evoluo super-orgnica e considera a prpria sociedade humana como um organismo, cujos elementos so, primeiro, as famlias, e depois os indivduos singulares. O organismo social distingue-se do organismo animal pelo facto de a conscincia pertencer apenas aos elementos que a compem. A sociedade no tem um sensrio como o animal: vive e sente s nos indivduos que a compem. A sociologia de Spencer est nitidamente orientada para o individualismo e, por conseguinte, para a defesa de todas as liberdades individuais, em contraste com a sociologia de Comte e, em geral, com a orientao social do positivismo. Um dos temas principais, tanto dos Princpios de sociologia, como das outras obras complementares (0 homem contra o estado, 1884-, Estatstica social, 1892), tema que domina de ponta a ponta a sociologia de Spencer, o princpio de que o desenvolvimento social deve ser abandonado fora espontnea que o dirige e o impulsiona para o progresso e que a interveno do estado nos factos sociais no faz seno perturbar e obstar esse desenvolvimento. objeco de que o estado deve fazer alguma coisa para extinguir ou diminuir a misria ou a injustia social, Spencer responde que o estado no o nico agente que pode eliminar os males sociais, que existem outros agentes, os quais, deixados em liberdade, podem

conseguir melhor esse objectivo. Ademais, nem todos os sofrimentos devem ser evitados, j que muitos so curativos, e elimin-los significa eliminar o remdio. Alm disso, quimrico supor que todos os males podem ser debelados; existem defeitos da natureza 33 humana que, se se lhes aplicar um pretenso remdio, voltam a surgir noutro ponto e se tomam ainda mais graves (Social Statics, ed. 1892). O homem contra o estado visa a combater "o grande preconceito da poca presente": o direito divino do Parlamento, que substituiu o grande preconceito da poca passada: o direito divino da monarquia. Um verdadeiro liberalismo deve negar a autoridade ilimitada do Parlamento, como o velho liberalismo negou o ilimitado poder do monarca (Man versus the State, ed. 1892, p. 292, 369). De resto, a crena na omnipotncia do governo gera as revolues que pretendem obter pela fora do estado toda a espcie de coisas impossveis. A ideia exorbitante do que o estado pode fazer, por um lado, e os insignificantes resultados a que o estado chega, geram sentimentos extremamente hostis ordem social (Social Statics, p. 131). O conceito de um desenvolvimento social lento, gradual e inevitvel, torna Spencer extremamente alheio s ideias de reforma social que haviam sido acariciadas pelo positivismo social, incluindo nestes os utilitaristas e Stuart Mill. "Da mesma maneira que no se pode abreviar a vida entre a infncia e a maturidade, evitando aquele montono processo de crescimento e de desenvolvimento que se opera insensivelmente com leves incrementos, tambm no possvel que as formas sociais inferiores se tornem mais elevadas, sem atravessarem pequenas modificaes sucessivas" (The Study

of Soc., 16, Concl.). O processo da evoluo social de tal modo predeterminado que nenhum ensino ou disciplina pode fazer com que ultrapassem aquele limite de velocidade 34 que lhes imposto pela modificao dos seres humanos. Antes que se possam verificar nas instituies humanas transformaes duradouras, que constituam uma verdadeira herana da raa, necessrio que se repitam at ao infinito nos indivduos os sentimentos, os pensamentos e as aces que so o seu fundamento. Por isso, toda a tentativa de forar as etapas da evoluo histrica, todos os sonhos de visionrios ou de utopistas tm como nico resultado retardar ou subverter o processo natural da evoluo social. Isto no implica, segundo Spencer, que o indivduo deva passivamente abandonar-se ao curso natural dos eventos. O prprio desenvolvimento social determinou a passagem de uma fase de cooperao humana constritiva e imposta a uma fase de cooperao mais livre e espontnea. esta a passagem do regime militar caracterizado pela prevalncia do poder estatal sobre os indivduos, aos quais impe tarefas e funes, ao regime industrial, que fundado, pelo contrrio, na actividade independente dos indivduos, a quem leva a reforar as suas exigncias e a respeitar as exigncias dos outros, fortalecendo a conscincia dos direitos pessoais e decidindo-os a resistirem ao excesso do controlo estatal. Contudo, Spencer no julga definitivo o regime industrial (no qual, alis, a sociedade actual ainda agora entrou). possvel antever-se a possibilidade de um terceiro tipo

social, o qual, embora sendo fundado, como o industrial, na livre cooperao dos indivduos, imponha mbeis altrustas em vez dos egostas, que regem o regime industrial; ou, melhor ainda, concilie o al35 trusmo com o egosmo. Tal possibilidade porm, no pode ser prevista pela sociologia, mas unicamente pela tica. A tica de Spencer , substancialmente, uma tica biolgica, que tem por objecto a conduta do homem, isto , a adaptao progressiva do homem mesmo s suas condies de vida. Tal adaptao implica no s um prolongamento da vida mas a sua maior intensidade e riqueza. Entre a vida de um selvagem e a de um homem civilizado no existe s uma diferena de durao, mas tambm de extenso: a do homem civilizado implica a consecuo de fins muito mais variados e ricos, que a tornam mais intensa e extensa. Esta crescente intensidade aquilo que se deve entender por felicidade. Dado que bom todo o acto adequado ao seu fim, a vida que se apresenta, em conjunto, mais bem adaptada s suas condies tambm a vida mais feliz e agradvel. Por conseguinte, o bem identifica-se com o prazer; e a moral hedonstica ou utilitarista , sob um certo aspecto, a nica possvel. Spencer, contudo, no admite o utilitarismo na forma que ele assumira na obra de Bentham e dos dois Mill. O mbil declarado e consciente da aco moral do homem no nem pode ser a utilidade. A evoluo social, acumulando com a sua herana um nmero enorme de experincias morais que permanecem inscritas na estrutura orgnica do indivduo, fornece ao prprio indivduo um a priori moral, que o para ele embora o no seja para a espcie. Deve admitir-se que o homem individual age por dever, por um sentimento

de obrigao moral; mas a tica evolutiva d conta do nascimento deste 36 sentimento, mostrando como ele nasce das experincias repetidas e acumuladas atravs da sucesso de inmeras geraes. Estas experincias produziram a conscincia de que o deixar-se guiar por sentimentos que se referem a resultados longnquos e gerais , habitualmente, mais til para se alcanar o bem-estar do que deixar-se guiar por sentimentos que devem ser imediatamente satisfeitos, e transformaram a aco externa poltica, religiosa e social, num sentimento de coaco puramente interior e autnomo. Mas esta reflexo sobre a evoluo demonstra tambm que o sentido do dever e da educao moral transitrio e tende a diminuir com o aumento da moral. Ainda hoje acontece que o trabalho que deve ser imposto ao rapaz como uma obrigao se resolve numa manifestao espontnea do homem de negcios submerso nos seus assuntos. Assim, a manuteno e a proteco da mulher por parte do marido, a educao dos filhos por parte dos pais, no tm, o mais das vezes, nenhum elemento coactivo, mas so deveres que se cumprem com perfeita espontaneidade e prazer. Spencer prev, por isso, que "com a completa adaptao ao estado social, aquele elemento da

conscincia moral que expresso pela palavra obrigao, desaparea de todo, As aces mais elevadas, requeridas pelo desenvolvimento harmnico da vida, sero factos to comuns como o so agora as aces inferiores a que nos impele o simples desejo" (Data of Ethics, 46). Esta fase final da evoluo moral no implica a prevalncia absoluta do altrusmo a expensas do egosmo. A anttese entre egosmo e altrusmo natural na situao presente, que se ca37 racteriza pela prevalncia indevida das tendncias egostas e na qual, por isso, o altrusmo assume a forma de um sacrifcio destas tendncias. Mas a evoluo moral, fazendo coincidir cada vez mais a satisfao do indivduo com o bem-estar e a felicidade dos outros ( e nisto que consiste a simpatia), provocar o acordo final do altrusmo com o egosmo. "0 altrusmo que dever surgir no futuro, diz Spencer, no um altrusmo que esteja em oposio ao egosmo, mas vir, por fim, a coincidir com este em grande parte da vida, e exaltar as satisfaes que so egostas por constiturem prazeres frudos pelo indivduo, embora sejam altrustas pela origem de tais prazeres" (Data of Ethics, App.). 654. DESENVOLVIMENTO DO POSITIVISMO O positivismo de Comte e de Spencer determinou rapidamente a formao de um clima cultural que deu os seus frutos fora do campo da filosofia, na crtica histrica e literria, no teatro e na literatura narrativa. Em Inglaterra, o positivismo seguiu (salvo algumas excepes, 638

sgs.) a orientao evolucionista. Os seguidores de Spencer foram, nos ltimos decnios do sculo XIX, numerosos, e numerosssimas as obras que defenderam, difundiram e expuseram, em todos os aspectos positivos e polmicos, os pontos fundamentais do positivismo. Trata-se, porm, de uma produo mais divulgadora do que filosfica, dado que nela os elementos de investigao original so mnimos e raramente apresentam novos 38 problemas ou novas abordagens dos mesmos problemas. J nos referimos a Toms Huxley (1825-95), que foi o inventor do termo agnosticismo (0 lugar do homem na natureza, 1864; Sermes laicos, 1870; Crticas e orientaes, 1873-, Orientaes americanas, 1877; Hume, 1879; Cincia e cultura, 1881; Ensaios, 1892; Evoluo e tica, 1893; Ensaios recolhidos, 9 vol., 1893-1894; etc.). Nas obras de Huxley no se encontra o carcter religioso e romntico da especulao de Spencer. Matria e fora no so para ele manifestaes de um incognoscvel divino, mas apenas nomes diversos para determinar estados de conscincia; nem to-pouco corresponde lei natural uma realidade transcendente qualquer, porque apenas uma regra comprovada pela experincia e que se supe o seja no futuro. Explicam-se deste ponto de vista as simpatias de Huxley por Hume, ao qual dedicou uma monografia, reprovando-o contudo por no ter reconhecido, juntamente com as impresses e as ideias, uma terceira ordem de impresses: "as impresses de relaes" ou "impresses de impresses", que correspondem ao

nexo de semelhana entre as prprias impresses. William Clifford (1845-79) procurou elaborar uma doutrina da coisa em si do ponto de vista do evolucionismo (Lies e ensaios, 1879). O objecto fenomnico um grupo de sensaes que so mutaes na minha conscincia. As sensaes de um outro ser no podem, porm, tornar-se objectos da minha conscincia: so expulses (ejections), que consideramos como objectos possveis de outras conscincias e que nos do a convico da existncia da realidade exte39 rior. A teoria da evoluo, mostrando-nos uma ininterrupta srie de desenvolvimentos, desde os elementos inorgnicos aos mais altos produtos espirituais, torna verosmil admitir que todo o movimento da matria seja acompanhado por um acto expulsivo que pode constituir o objecto de uma conscincia. E dado que estes actos expulsivos no so outra coisa seno as prprias sensaes, a sensao a verdadeira coisa em si, o ser absoluto, que no exige relaes com nenhum outro, e nem sequer com a conscincia. Ela o tomo psquico, cujas combinaes constituem as conscincias mesmas. O pensamento no mais do que a imagem inadequada deste mundo de tomos originrios. A estas estranhas especulaes de Clifford se encontra ligado G. S. Romanes (1848-94), autor de Um cndido exame do tesmo (1878), que conclui negativamente acerca da possibilidade de conciliar o tesmo com o evolucionismo, e de outros escritos (Esprito, movimento e monismo, 1895; Pensamentos sobre a religio, 1896), nos quais se inclina para o monismo materialista de Haeckel. Outros pensadores desenvolveram o positivismo evolucionista em

Inglaterra no campo da antropologia e da psicologia, como Francis Galton (1822-1911) e como Grant Allen. (1848-99), que estudou sobretudo a psicologia e a filosofia dos sentimentos estticos e foi tambm autor de uma obra intitulada a Evoluo da ideia de Deus (1879), que uma crtica do tesmo. Outros desenvolveram o evolucionismo no terreno das anlises morais, como Leslie e Stephen (1832-1904), autor de uma obra intitulada Cincia da tica (1882), assim como de meritrios estudos hist40 ricos sobre a filosofia inglesa do sculo XVIII e dos princpios do sculo XIX; e como Eduardo Westermarck, autor de uma vasta obra, Origem e desenvolvimento das ideias morais (1906-08). Exerceu uma influncia notabilissiraa sobre as investigaes psicolgicas do sculo XIX a obra de Alexandre Bain (1818-1903), que foi um rigoroso defensor do associacionismo psicolgico e admitiu, justamente com a associao por contiguidade e semelhana, uma terceira forma de associao, a "construtiva", que actuar na fantasia e na investigao cientfica. O sentido e o entendimento (1855), As emoes e a vontade (1859) so as principais obras psicolgicas de Bain, que se ocupou tambm de lgica, de tica e de educao (Cincia mental e cincia moral, 1868; Lgica, 1870; Esprito e corpo, 1873; A educao como cincia, 1878). 655. CLUDIO BERNARD No clima do positivismo, de que no entanto no partilhava todas as

teses, se inscreve a obra do fisilogo francs Cludio Bernard (1813-78), autor de um dos mais importantes escritos oitocentistas de metodologia da cincia, a Introduo medicina experimental (1865). A filosofia e a cincia, segundo Bernard, devem unir-se, sem que uma pretenda dominar a outra. "A sua separao - afirma - seria nociva aos progressos do conhecimento humano. A filosofia que tende incessantemente a elevar-se, faz remontar a cincia causa ou origem das coisas. Mostra que fora da cincia 41 existem questes que atormentam a humanidade e que a cincia ainda no resolveu" (Intr. Ptude de Ia mdecine exprimentale, 111, IV, 4). Se o liame entre a filosofia e a cincia se rompe, a filosofia perde-se nas nuvens, e a cincia, ficando sem direco, pra ou procede ao acaso. Nesta relao, todavia, a cincia deve ter a liberdade de proceder segundo o seu mtodo e deve, sobretudo, evitar fixar em sistemas ou doutrinas as suas hipteses directivas. A cincia no tem necessidade de sistemas ou doutrinas, ruas sim de hipteses que possam ser submetidas verificao. " O mtodo experimental, enquanto mtodo cientfico, baseia-se inteiramente na verificao experimental de uma hiptese cientfica. Esta verificao pode obter-se tanto por meio de uma nova observao (cincia de observao) como por meio de uma experincia (cincia experimental). No mtodo experimental, a hiptese uma ideia cientfica que se

tem de submeter experincia . A inveno cientfica reside na criao de uma hiptese feliz e fecunda, que dada pelo sentimento ou pelo gnio do cientista que a criou" (Ib., 11, IV, 4).O axioma fundamental do mtodo experimental o determinismo, isto , a concatenao necessria entre um facto e as suas condies. "Perante qualquer fenmeno dado, um experimentador no poder admitir nenhuma variao na expresso deste fenmeno sem admitir que ao mesmo tempo tenham sobrevindo condies novas, na sua manifestao; alm disso, ter a certeza a priori de que estas variaes so determinadas por relaes rigorosas e matemticas" (Ib., 1, 11, 7). Bernard distingue o determinismo como axioma experimental 42 do fatalismo como doutrina filosfica. "Demos o nome de determinismo causa prxima ou determinante dos fenmenos. No operamos nunca sobre a essncia dos fenmenos da natureza mas apenas sobre o seu determinismo e pelo prprio facto de operarmos sobre ele, o determinismo difere do fatalismo sobre o qual no se poderia actuar. O fatalismo supe a manifestao necessria de um fenmeno independente das suas condies, ao passo que o determinismo a condio necessria de um fenmeno cuja manifestao no forada" (1b., 111, IV, 4). Trata-se, diremos ns, de um "determinismo metodolgico": do ponto de vista do qual, observa Bernard, "no h nem espiritualismo, nem matria bruta, nem matria viva; existem s fenmenos de que necessrio

determinar as condies, isto , as circunstncias que constituem a causa prxima dos mesmos" (1b., HI, IV, 4). Deste ponto de vista, Cludio Bernard recusa-se a operar a reduo (to cara ao materialismo do seu tempo) dos fenmenos vitais aos fenmenos fsico-qumicos. Os fenmenos vitais podem ter, sem dvida, caracteres prprios e leis prprias, irredutveis aos da matria bruta. No obstante, o mtodo de que a biologia dispe o mtodo experimental das cincias fsicoqumicas. A unidade do mtodo no implica a reduo destes fenmenos s leis que os regem Qb., 11, 1, 6). Mais especificamente, os organismos vivos, embora podendo ser considerados como "mquinas", manifestam com respeito s mquinas no vivas um maior grau de independncia em relao s condies ambientais que lhes permitem o funcio43 namento. Aperfeioando-se, tomam-se pouco a pouco mais "livres" do ambiente csmico geral no sentido de que j no esto merc deste ambiente. O determinismo interno, todavia, no desaparece nunca, antes se torna tanto mais rigoroso quanto mais o organismo tende a subtrair-se ao determinismo do ambiente externo" (1b., 11, 1, 108). As ideias de Cludio Bernard conservam ainda hoje, nas linhas gerais que aqui lembramos, um equilbrio que as torna apreciveis, no apenas como fase histrica importante no desenvolvimento da metodologia das cincias, mas tambm como uma indicao ainda vlida para os desenvolvimentos das cincias biolgicas. Bernard partilha com o positivismo a averso metafsica e a f nas possibilidades da cincia: no partilha, porm, as tendncias

reducionistas; recusa-se a reduzir a filosofia cincia, como se recusa a reduzir o esprito matria ou a vida aos fenmenos fsico-qumicos. As teses reducionistas do positivismo foram difundidas em Frana por Taine e Renan. 656. TAINE E RENAN Hiplito Taine (1828-93), j no seu Ensaio sobre as fbulas de La Fontaine (1853), exprimia nestes termos o seu conceito do homem: "Pode-se considerar o homem como um animal de espcie superior que produz filosofias e poemas, pouco mais ou menos como os bichos de seda fazem os seus casulos e as abelhas os seus alvolos". Em Os filsofos fran44 ceses do sculo XIX (1857), Taine condenava em bloco o movimento espiritualista e via o progresso da cincia na anlise dos factos positivos e na explicao de um facto pelo outro. Um passo da introduo da Histria da literatura inglesa (1836) tornou-se famoso como expresso caracterstica do mtodo que Taine pretende aplicar crtica literria e histria como aos problemas da filosofia. "0 vcio e a virtude, - escreve ele - so produtos corno o cido sulfrico e o acar, e todo o dado complexo nasce do encontro de outros dados mais simples de que depende". Por consequncia, Taine cr que a raa, o ambiente exterior e as condies particulares do momento determinam necessariamente todos os produtos e os valores humanos, e bastam para os explicar. A Filosofia da arte (1856) obedece ao princpio de que a obra de arte o produto necessrio do conjunto das circunstncias que a condicionam e que, consequentemente, se pode extrair destas

no s a lei que regula o desenvolvimento das formas gerais da imaginao humana, mas tambm a que explica as variaes do estilo, as diferenas das escolhas nacionais e at os caracteres originais das obras individuais. A obra Sobre a inteligncia (1870) talvez a mais rigorosa, e decerto a mais genial tentativa de reduzir toda a vida espiritual a um mecanismo sujeito a leis em tudo semelhantes, pela sua necessidade rigorosa, s naturais. Taine afirma que " preciso pr de lado as palavras razo, inteligncia, vontade, poder pessoal e, at o termo eu; como tambm se devem pr de parte as palavras fora vital, fora curativa, alma vegetativa. Trata-se de metforas literrias, cmodas, 45 quando muito, como expresses abreviativas e sumrias para exprimir estados gerais e efeitos de conjunto" . A observao psicolgica no descobre outra coisa mais do que sensaes e imagens de diversas espcies, primrias ou consecutivas, dotadas de certas tendncias e modificadas no seu desenvolvimento pelo concurso ou pelo antagonismo de outras imagens simultneas ou contguas (De Vnte11--- 1903, 1, p. 124). Por outros termos, toda a vida psquica se reduz ao movimento, ao choque, ao contraste e ao equilbrio das imagens, que, por seu turno, derivam totalmente das sensaes. "Chegados sensao, estamos no limite do mundo moral; daqui ao mundo fsico h um abismo, um mar profundo que nos impede de praticar as nossas sondagens ordinrias" (1b., p. 242). Mundo fsico e mundo psquico so duas faces da mesma realidade, uma das quais acessvel conscincia, a outra aos sentidos. Mas, ao passo que o

ponto de vista da conscincia o imediato e directo, a percepo externa indirecta. "No nos informa dos caracteres prprios do objecto; informa-nos somente de uma certa classe dos seus efeitos. O objecto no nos mostrado directamente mas -nos indicado indirectamente pelo grupo de sensaes que ele desperta ou despertaria em ns" (1b., 1, p. 330). Taine apoia-se, neste ponto, na autoridade de Stuart Mill: mas acha possvel, contra Stuart Mill, "restituir aos corpos a sua existncia efectiva", reduzindo o testemunho da conscincia e a percepo sensvel externa (que so as nicas duas maneiras de conhecer) a um mnimo de determinao comum que seria a sua comum objectividade e, portanto, o seu objecto real. 46 Neste caso, sensao e conscincia reduzem-se ao movimento (porque o movimento a mnima objectividade comum que elas possuem), e podem, por isso, ser consideradas como duas tradues do texto originrio da natureza (Ib., 11, p. 117, n. 1). quanto aos conceitos, so, para Taine, simplesmente "sons significativos", produzidos originariamente pelos objectos e empregados depois, independentemente deles, por razes de semelhanas ou analogias. O conhecimento racional constitudo por juzos gerais que so cpias de signos ou sons deste gnero. Assim como os ltimos elementos de uma catedral so rgos de areia ou de silex aglutinados em pedras e formas diversas, assim tambm os ltimos elementos do conhecimento humano se reduzem a sensaes infinitesimais, todas iguais, que com as suas diversas combinaes produzem as diferenas do conjunto

(1b., 11, p. 463), Emesto Renan (1823-92) foi outro grande expoente do positivismo francs da segunda metade do sculo XIX. Na sua obra filolgica, histrica e crtica, Renan inspirou-se constantemente num positivismo que, embora no tendo a lucidez e a fora do de Taine, deixando-se arrastar s vezes por nostalgias espiritualistas e religiosas, no , em substncia, menos rigoroso. O futuro da cincia, escrito em 1848 mas publicado em 1890, o credo filosfico positivista de Renan e um verdadeiro hino de exaltao romntica cincia. A se pode ver, decerto, a influncia que exerceu sobre Renan o materialismo do qumico Marcelino Berthelot (1827-1907), seu companheiro de juventude; mas, conquanto Renan depressa tenha dei47 xado esmorecer o seu entusiasmo optimista pela cincia, as suas ideias permaneceram substancialmente imutveis. "A cincia, e s a cincia, pode dar humanidade aquilo que lhe indispensvel para viver, um smbolo e uma lei", escrevia Renan (Av. de la sc., 1894, p. 3 1) -, e via o fim ltimo da cincia na "organizao cientfica da humanidade". A religio do futuro ser o "humanismo, o culto de tudo o que pertence ao homem, a vida inteira santificada e elevada a um valor moral" (1b., p. 101). A prpria filosofia depende da cincia, pois que o seu escopo recolher e sintetizar os resultados gerais desta ltima. "A filosofia a cabea comum, a regio central do grande feixe do conhecimento humano, em que todos os raios se confundem numa luz idntica" (1b., p. 159). Ela no pode resolver os problemas do homem seno dirigindo-se s cincias particulares que lhe fornecem os

elementos destes mesmos problemas. . Mas, dado que a humanidade est em permanente devir, a histria a verdadeira cincia da humanidade (1h., p, 149). E histria Renan dedicou boa parte da sua actividade. Os estudos sobre Averris e averrosmo (1852) tendem a demonstrar que a ortodoxia religiosa impediu entre os maometanos a evoluo do pensamento cientfico e filosfico. As origens do cristianismo, cujo primeiro volume a famosa Vida de Jesus (1863), baseiam-se inteiramente no pressuposto de que as doutrinas do cristianismo no podem ser valorizadas do ponto de vista do miraculoso ou do sobrenatural, mas apenas como a manifestao de um ideal moral em perfeito acordo com a paisagem e com as condies materiais em 48 TAINE que nasceu. A Histria do povo de Israel, que Renan comeou a compor aos sessenta anos, devia mostrar como se formou entre os profetas uma religio sem dogmas nem cultos. Os Dilogos e fragmentos filosficos (1876) e o Exame de conscincia filosfico (1889, em Folhas soltas, 1892) confirmam substancialmente a atitude positivista de Renan. Nestas obras, a filosofia ainda concebida como "o resultado geral de todas as cincias"; e afirma-se que a filosofia decaiu e degenerou quando pretendeu ser uma disciplina parte, como aconteceu com a escolstica medieval, na poca do cartesianismo, e nas tentativas de Schelling e de Hegel. Nestes ltimos escritos de Renan acentua-se a nostalgia sentimental pela religio; contudo, no lhe reconhece outra utilidade seno a de uma hiptese capaz de sugerir

determinadas atitudes morais. "A atitude mais lgica do pensador perante a religio, afirma Renan (Feuilles dtaches, 1892, p. 432), a de proceder como se ela fosse religiosa. preciso agir como se Deus e a alma existissem. A religio entra assim no nmero de muitas outras hipteses, como o ter, os diversos fludos, o elctrico, o luminoso, o calrico, o nervoso e o prprio tomo, os quais sabemos bem serem apenas smbolos, meios cmodos para explicar os fenmenos, e que, no entanto, conservamos". A psicologia positivista francesa parte de Taine e tem por fundador Teodoro Ribot (1839-1916), cujo primeiro trabalho precisamente um estudo intitulado A psicologia inglesa contempornea (1870) e que em seguida se dedicou, sobretudo, ao estudo psicolgico 49 da vida afectiva, reivindicando a independncia desta contra as teses clssicas do associacionismo. 657. POSITIVISMO: A SOCIOLOGIA O clima positivista foi particularmente favorvel ao desenvolvimento da sociologia no sentido que Spencer dera a esta disciplina, ou seja, como cincia descritiva das sociedades humanas na sua evoluo progressiva. Em Inglaterra John Lubbock (1834-1913) procurou mostrar, atravs do estudo e interpretao de um abundante material etnolgico, que existiram e existem povos que nunca conheceram qualquer forma de religio (Tempos pr-histricos, 1865). E. B. Taylor (1832-1917) viu, ao invs, no mito o precedente no s das religies mas tambm das

filosofias espiritualistas modernas. Considera o animismo, isto , a crena difundida em todos os povos primitivos, de que todas as coisas esto animadas, a forma primitiva da religio e da metafsica (Investigaes sobre a histria primitiva da humanidade, 1865; A cultura primitiva, 1870; Antropologia, 1881; Ensaios, antropolgicos, 1907). Nos Estados Unidos da Amrica a sociologia spenceriana foi introduzida por William. G. Summer (1840-1910), cuja obra principal, Folkways (1906), considerada clssica como estudo comparativo dos modos de vida e dos costumes prprios de grupos sociais diversos. 50 Em Frana, a sociologia sofre a primeira viragem metodolgica importante por obra de Emilio Durkheim (1858-1917), cujo ensaio As regras do mtodo sociolgico (1895), ao mesmo tempo que pe em crise a sociologia sistemtica de Comte e Spencer, que pretende ser o estudo do mundo social na sua totalidade, delineia as normas que devem guiar as investigaes sociolgicas particulares. A primeira destas regras prescreve que se devem considerar os factos como "coisas", isto , como entidades objectivas independentes das conscincias dos indivduos que esto envolvidos nelas e tambm da conscincia do observador que os estuda. Durkheim insistiu tambm no carcter non-nativo ou construtivo que os factos sociais assumem, sendo antes eles que determinam a

vontade dos indivduos e, no esta que os determina, e constituindo portanto uniformidades de tipo cientfico, das quais possvel determinar as leis. Esta preeminncia do factor social sobre o individual conduz Durkheim a ver na religio o mito que a sociologia constri a partir de si mesma",, no sentido de que as realidades admitidas pelas religies seriam objectivaes ou personificaes do grupo social (Formes lmentaires de la vie rligieuse, 1912). A orientao iniciada por Durkheim foi depois continuada no perodo contemporneo por uma numerosa pliade de socilogos; e, mais directamente, por Lucien Lvy-Brhul (1857-1939) (A moral e a cincia dos costumes, 1903; As funes mentais nas sociedades inferiores, 1910; O sobrenatural e a natureza lia mentalidade primitiva, 1931). 51 Mas desde ento a sociologia cada vez mais se desligou das suas conexes sistemticas com o positivismo e, em geral, com todo o tipo de filosofia, reivindicando a sua natureza de cincia autnoma e definindo de um modo cada vez mais rigoroso os caracteres e o alcance dos seus instrumentos de investigao. A esta orientao veio dar um contributo fundamental a obra de Max Weber ( 743). 658. POSITIVISMO EVOLUCIONISTA: ARDIG O positivismo evolucionista teve na Itlia um vigoroso defensor em Roberto Ardig, que exerceu notvel influncia sobre o clima filosfico italiano dos ltimos decnios do sculo XIX. Nascido em Casteldidone (Cremona) a 28 de Janeiro de 1828, foi padre catlico e abandonou o hbito aos 43 anos (em 1871) quando considerou

incompatveis com o mesmo as convices positivistas que tinham vindo a amadurecer lentamente no seu crebro. Em 1881, foi nomeado professor de histria da filosofia na Universidade de Pdua. Ardig ps termo vida a 15 de Setembro de 1920, quando o clima filosfico italiano se orientara j para o idealismo, que tenazmente combatera nos ltimos anos da sua vida. A sua primeira obra um ensaio intitulado Pedro Pomponazzi (1869), no qual v um precursor do positivismo. Seguiram-se: A psicologia como cincia positiva (1870); A formao natural no fenmeno do sistema solar (1877); * moral dos positivistas (1889); Sociologia (1879); * facto psicolgico da percepo (1882); O verda52 deiro (1891); Cincia da educao (1893); A razo (1894); A unidade da conscincia (1898), A doutrina spenceriana do incognoscvel (1899) e outros numerosos ensaios de carcter doutrinrio ou polmico que expem, sem os alterar, os pontos fundamentais contidos nas principais obras citadas. A doutrina de Ardig anloga de Spencer: como Spencer, Ardig considera que a filosofia se reduz organizao lgica dos dados cientficos; como Spencer, admite que esta organizao se efectua em virtude do princpio de evoluo; como Spencer, finalmente, sustenta que os dados fundamentais da filosofia, o sujeito e o objecto, o eu e o mundo exterior, no so duas realidades opostas, mas sim duas organizaes diversas de um nico contedo psquico (segundo a doutrina que Hume fizera prevalecer no empirismo ingls). Sobre o primeiro ponto, Ardig reivindica para si uma certa

originalidade em relao a Spencer e, em geral, concepo positivista da filosofia, urna vez que divide esta em cincias especiais, que seriam duas: a psicologia (compreendendo a lgica, a gnstica ou teoria do conhecimento, e a esttica) e a sociologia (incluindo a tica, a diceica ou cincia do justo e a econoraia); e numa cincia geral, que teria por objecto o que est para alm dos domnios particulares destas cincias e a que, por isso, d o estranho nome de peratologia (cincia do que est para alm). Mas, precisamente, a peratologia no tem outro objecto seno as noes mais gerais das disciplinas cientficas e filosficas, e por isso considerada por Ardig como a sn53 tese das noes gerais destas cincias, segundo o conceito habitual do positivismo. De Spencer, distingue-se Ardig em dois pontos: na gerao do incognoscvel e na determinao do conceito de evoluo; ambos os pontos se fundam na orientao emprico-psicolgica da sua doutrina. Acima de tudo, Ardig rejeita o raciocnio que ascende da relatividade do conhecimento humano necessidade do incondicionado que Spencer tomara de Hamilton. Todo o conhecimento particular relativo, mas isto no significa que o conhecimento seja relativo na sua totalidade. Os conhecimentos particulares acham-se, de facto, concatenados, de modo que uns so relativos aos outros; mas desta concatenao nenhuma ilao se pode extrair sobre a relatividade do conhecimento total. Por

conseguinte, o incognoscvel no o absoluto ou o incondicionado que est para l do conhecimento huniano e o sustenta, mas antes o ignoto, ou seja, o que no se tornou ainda conhecimento distinto, Opere, 11, 1884, p. 350). Tais consideraes implicam j o conceito de um indistinto, isto , de um algo apercebido confusa ou genericamente, que, todavia, impele o pensamento para a anlise e, por conseguinte, para um conhecimento articulado e distinto. Ora, precisamente esta passagem do indistinto ao distinto o que constitui a evoluo ou, corno Ardig diz, a "formao natural" de todo o tipo ou forma da realidade. Enquanto Spencer extrara da biologia o seu conceito de evoluo como passagem do homogneo ao heterogneo, Ardig preferiu definir a evoluo em termos psicolgicos ou de conscincia. O indis54 tinto tal relativamente, isto , em relao a um distinto que dele procede assim como todo o distinto , por sua vez, um indistinto para o distinto sucessivo, porque o que produz, impele e explica tal distinto. Toda a formao natural, no sistema solar como no esprito humano, uma passagem do indistinto ao distinto; tal passagem d-se necessria e incessantemente, segundo uma ordem imutvel, regulada por um ritmo constante, quer dizer, por uma alternncia harmnica de perodos. Mas o distinto nunca

exaure o indistinto, que permanece por debaixo dele e ressurge para alm dele; e dado que o distinto o finito, necessrio admitir, para alm do finito, o infinito como indistinto. "Tal necessidade do infinito - diz Ardig - como fundo e razo do finito, no existe s na natureza mas tambm no pensamento. Mais ainda: existe no pensamento precisamente porque existe na natureza. Mesmo quando o pensamento o perde de vista, fixando-se no distinto finito, ele, oculto, assiste-o e constitui a prpria fora da lgica do seu discurso... Um pensamento isolado da mente de um homem aquele pensamento que existe com a evidncia que possui, pelo conjunto de toda a vida psquica do homem, no qual se formou; mais ainda: que existe pela vida de todos os outros homens desde o primeiro; e, portanto, pela participao com o todo, na actualidade e no passado" (Op., 11, p, 129). E Ardig defende este infinito, que um incessante desenvolvimento progressivo, contra todas as negaes que queiram interromp-lo com o recurso a uma causa ou a um fim ltimo transcendente. Toda a formao natural, incluindo o pensamento humano, um "me55

teoro" que, nascido do indistinto, acabar de novo por afundar-se no indistinto e perder-se nele (1b., p. 189). Uma atenuao do determinismo rigoroso que o positivismo admite em todos os processos naturais introduzida

por Ardig com a doutrina do acaso. A ordem global do universo pressupe infinitas ordens possveis, e a actualizao de uma ou de outro devida ao acaso. Isto sucede porque um acontecimento , em geral, o produto da interseco num dado ponto do tempo, de sries causais diversas e divergentes; e, embora cada uma destas sries seja necessria e determinada, o encontro delas no o (1b., p. 258). O pensamento humano um destes produtos casuais da evoluo csmica. "0 pensamento que hoje encontramos na humanidade um pensamento que se formou pela continuao de acidentes infinitos, que se sucederam e se juntaram por acaso uns aos outros; por isso, a justo ttulo, se pode chamar ao pensamento global da humanidade uma formao acidental, tal qual como a forma bizarra de uma nuvenzinha, que no cu impelida, antes de se desvanecer, pelo vento e dourada pelo sol" (lb., p. 268). A aco do acaso determina a imprevisibilidade e a relativa indeterminao de todos os acontecimentos naturais, incluindo as aces humanas. Mas a imprevisibilidade e indeterminao no significam liberdade para a vontade humana, do mesmo modo que no livre qualquer fenmeno natural. "A liberdade do homem, ou seja, a variedade das suas aces, afirma Ardig (Op., 111, p. 122), o efeito da pluralidade das sries psquicas, ou dos instintos, se assim os quisermos 56 chamar. E se ela imensamente maior do que nos outros animais, isso depende unicamente do facto de que a complexidade da sua constituio psquica, quer pela sua disposio

intima, quer pelas suas relaes com o exterior, se presta a um nmero de combinaes imensamente maior". A liberdade humana , portanto, um efeito daquele acaso que se encontra em todas as ordens de fenmenos e que procede da variedade de combinaes das diversas sries causais. O eu e o no-eu, a conscincia humana e o mundo exterior so, eles tambm, combinaes causais e variveis, e so constitudos ambos pelas sensaes. As sensaes so a "nebulosa" em que se forma e se organiza a psique, o indistinto, subjacente aos distintos que se constituem, ligando-se, num nico organismo lgico. Mas so tambm a nebulosa e o indistinto de que se origina o mundo exterior na distino dos seus objectos. Ardig chama auto-sntese formao do eu e hetero-sntese formao do mundo objectivo; mas, salvo a do nome, no existe qualquer diferena entre os processos formativos. "Assim como no cosmo material os elementos que lhe pertencem, o hidrognio, o oxignio, o carbono, o azoto, so comuns e se convertem ou no indivduo orgnico ou nas coisas ambientais mediante os agrupamentos formativos que as fixam ou no indivduo ou nas coisas, assim no cosmo mental os elementos da sensao so de si comuns e se convertem ou no eu ou no no-eu mediante os agrupamentos formativos que os fixam ou na autosntese ou na hetero-sntese" (1b., V. p. 483-84). 57 Os escritos morais de Ardig so essencialmente uma polmica contra todas as formas de tica religiosa, espiritualista e racionalista e respeitam a tentativa, empreendida por Spencer, de reproduzir a

formao das ideias morais do homem a factores naturais e sociais. Segundo Ardig, as idealidades e as mximas da moral nascem da reaco da sociedade aos actos que a prejudicam; reaco que, impressionando o indivduo, acaba por se fixar na sua conscincia como norma ou imperativo moral. Os caracteres intrnsecos do dever, a sua obrigatoriedade, a sua transcendncia, e a responsabilidade que lhe inerente, so devidos, pois, interiorizao progressiva, atravs das experincias constantemente repetidas, das sanes exteriores que o acto moral encontra na sociedade, enquanto acto anti-social (1b., 111, p. 425 sgs.; X, p. 279). Assim, Ardig entende a sociologia como "a teoria da formao natural da ideia de justia". Por consequncia, a justia a lei natural da sociedade humana e, precisamente, regula o exerccio do poder jurdico, que se transforma, interiorizando-se, em exigncia moral. Assim a primeira forma da justia o direito, como a primeira forma do direito a prepotncia; mas ao direito positivo contrape-se em seguida o direito natural, que o ideal do direito, que se reforma nas conscincias sob o mesmo impulso que o direito positivo, mas se realiza imperfeitamente nas formas deste. O direito positivo est sempre atrasado em relao ao direito natural, que exprime as idealidades sociais mais avanadas; e a luta destas contra o direito positivo, para o reformar 58 sua imagem, constitui a incessante evoluo da justia (lb., IV, p. 165, sgs.). 659. O EVOLUCIONISMO MATERIALISTA (MONISMO) O positivismo evolucionista , na sua forma mais rigorosa,

igualmente alheio ao materialismo e ao espiritualismo. Spencer afirma explicitamente (First Princ. 194) que o processo da evoluo pode ser interpretado em termos de matria e de movimento como em termos de espiritualidade e de conscincia; e, por outro lado, o Absoluto que este processo manifesta, enquanto incognoscvel, no pode ser definido como matria nem como esprito. Mas a insuprimvel tendncia romntica do positivismo dificilmente podia conservar-se nesta posio de equilbrio; e as tentativas para interpretar num sentido ou noutro o significado da evoluo foram tanto mais repetidas e enrgicas quanto, numa ou noutra das duas formas, a evoluo se prestava melhor a adquirir um significado, infinito e divino e a justificar uma exaltao religiosa ou pseudo-religiosa. Mais numerosas talvez, e decerto de maior ressonncia, foram as orientaes para o materialismo. Nos ltimos decnios do sculo XIX, uma pliade de cientistas, fsicos, bilogos e psiclogos de todos os pases, adoptaram o credo positivista, declarando ater-se rigorosamente ao estudo dos factos e das suas leis e repudiando qualquer explicao no mecnica dos mesmos. A resposta que o astrnomo Laplace 59

deu a Napoleo, que o interrogava sobre o lugar que reservava a Deus na sua doutrina astronmica: "No tenho necessidade dessa

hiptese", torna-se o lema da poca. Combatem-se todas as formas de transcendncia religiosa e de "metafsica", entendendo-se por metafsica toda a explicao no mecnica do mundo mas cai-se amide, e sem se dar conta de tal, na metafsica: numa metafsica materialista. Na Alemanha o florescimento positivista teve incio com a descoberta que Robert Mayer (1847-78) fez do equivalente mecnico do calor, que permite formular o princpio da conservao da energia. Este principio e a tentativa de reduzir a vida a um conjunto de fenmenos fsico-qumicos, excluindo o que at ento se chamara "fora vital", constituem o ponto de partida da metafsica materialista. O zologo Carlos Vogt (1817-1895) afirmava, numa obra de 1854, A f do carbonrio e a cincia, que "o pensamento est para o crebro na mesma relao em que a blis est para o fgado ou a urina para os rins". E esta tese era apresentada identicamente e condimentada com a mesma violenta polmica antireligiosa nas obras de Jacob Moleschott (1822-93), um alemo que foi, desde 1879, professor de filosofia em Roma, e numa obra famosa de Ludwig Bchner (1824-99), Fora e matria (1855). Outros naturalistas mantiveram, em compensao, uma atitude mais cauta e cingiram-se, como Darwin, a um rigoroso agnosticismo. O fisilogo alemo Emlio du Bois-Reymond (1818-96) publicou um escrito em 1880 intitulado Sete enigmas do mundo. Eis os enigmas: 1.11 a origem da matria e da fora; 2.O a 60 origem do movimento; 3.o o aparecimento da vida;

4.o a ordenao finalista da natureza; 5.O o aparecimento da sensibilidade e da conscincia; 6.o o pensamento racionalista e a origem da linguagem; 7.o a liberdade do querer. Perante estes enigmas, Du Bois-Reymond pensava que o homem devia pronunciar no s um ignoramus mas tambm um ignorabimus: a cincia nunca poder resolv-los. Ernesto Haeckel (1834-1919) teve, ao invs, a pretenso de os resolver com a doutrina do evolucionismo materialista. Haeckel foi professor de zoologia na Universidade de lena; e a sua actividade de cientista , indubitavelmente, notvel. Em 1866 publicou a Morfologia geral dos organismos, que aduzia um grande nmero de observaes e de factos em apoio da teoria darwiniana da evoluo, e era a primeira tentativa para estender esta tentativa a todas as formas orgnicas. Este ensaio antecipava-se, por conseguinte, segunda obra de Darwin, Descendncia do homem, que s apareceu em 1871. J nesta obra, porm, Haeckel concebia a teoria do transformismo biolgico como uma nova filosofia, destinada a suplantar inteiramente todas as outras filosofias e todas as religies. Dois anos depois expunha em forma popular as suas ideias na Histria da criao natural (1868), qual se seguiram: Antropogenia (1874), O monisino como elo entre a religio e a cincia (1893) e Os enigmas do mundo (1899). Esta obra, que a exposio mais completa e menos prolixa das ideias de Haeckel, teve uma difuso enorme. Venderam-se, ao todo, cerca de 400 000 exemplares, mas depois de 1920 a venda cessou e no se publicaram mais edies. Haeckel publicou ainda numerosas outras obras de polmica e de divulgao cientfica que, todavia, nada acrescentam ao contedo das obras citadas.

O principal contributo que Haeckel trouxe teoria da evoluo a que ele chama "a lei biogentica fundamental", isto , o paralelismo entre o desenvolvimento do embrio e o desenvolvimento da espcie qual pertence. Pelo que respeita ao homem, "a ontognese, ou seja, o desenvolvimento do indivduo uma breve e rpida repetio (uma recapitulao) da filognese ou evoluo da estirpe a que pertence, isto , dos precursores que formam a cadeia dos progenitores do indivduo, repetio determinada pelas leis da herana e da adaptao" (Natur. Schpfungesch, 1892). Haeckel efectuou sobre esta lei uma srie de investigaes que ilustravam e confirmavam em vasta escala a hiptese da transformao da espcie. Mas a par desta que, segundo lhe parecia, demonstrava de maneira indubitvel a continuidade e a unidade do desenvolvimento orgnico, Haeckel propunha uma outra lei fundamental que deveria demonstrar a unidade e a continuidade de todo o mundo real, isto , a chamada lei da substncia, cujos pressupostos seriam a lei da conservao da matria descoberta por Lavoisier (1789) e a lei da conservao da fora, descoberta por Mayer (1842). Esta lei, demonstrando a unidade e uniformidade do universo inteiro e concatenao causal de todos os fenmenos, leva concluso, segundo Haeckel, de que a matria e a fora no so mais que dois atributos inseparveis de uma nica substncia (Weltrtsel, trad. franc., 1902, P. 248). O monismo assim estabelecido 62 sobre estas duas leis e, em nome do monismo, Haeckel combate todas as formas de dualismo, isto , todas as formas de separao ou de distino do esprito da matria e, por conseguinte, toda a

doutrina que, de qualquer modo, admita uma divindade separada do mundo, a espiritualidade da alma e a liberdade do querer. Assim, dos sete enigmas enumerados por Du Bois-Reymond, o ltimo, concernente precisamente liberdade do querer, , sem mais, eliminado como uma superstio antiquada. Quanto ao primeiro, respeitante natureza da matria e da fora, quanto ao segundo, que concerne origem do movimento e quanto ao quinto, que concerne origem da sensao e da conscincia, o monismo, resolve a coisa facilmente porque, na realidade, fora, movimento, matria, conscincia, no tiveram origem, mas foram sempre presentes desde as primeiras fases evolutivas da nica substncia csmica. Os outros trs enigmas (a vila, a finalidade e a razo) so, pois, resolvidos em sentido materialista: a vida e a razo so produtos da evoluo, a finalidade reduzida ao mecanismo. A evoluo comea, segundo Haeckel, com a condensao de uma matria primitiva em centros individuais ou picntomos dotados de movimento e de sensibilidade. Haeckel resume assim os pontos capitais da sua "religio monista": 1.o O espao infinitamente grande e ilimitado, nunca vazio e sempre preenchido pela substncia, 2.O o tempo igualmente infinito e ilimitado, no tem nem princpio nem fim, a eternidade, 3.O a substncia encontra-se em toda a parte e em todos os tempos num estado de movi63 inento ininterrupto: o repouso perfeito no existe; mas a quantidade infinita da matria permanece invarivel como a da energia eternamente mutvel, 4.o o movimento eterno da substncia no espao um crculo eterno, cujas fases evolutivas se repetem periodicamente,

5.o estas fases consistem na alternncia peridica das condies de agregao, sendo a principal a diferenciao primitiva da massa e do ter; 6.o esta diferenciao assenta numa condensao crescente da matria e na formao de inmeros pequenos centros de condensao (picntomos) cujas causas eficientes so as propriedades originrias imanentes substncia: a substncia e o esforo; 7.o enquanto numa parte do espao se produzem, pelo processo picntico - corpos celestes, primeiro pequenos, depois maiores, e aumenta entre eles a tenso do ter, na outra parte do espao produz-se simultaneamente o processo inverso: a destruio dos corpos celestes que se chocam uns com os outros; 8.O as enormes quantidades de calor produzidas neste processo mecnico pelo choque dos corpos celestes em rotao so representadas pelas novas foras vivas que produzem o movimento das massas de poeira csmica e, por conseguinte, uma nova formao de esferas em rotao: o jogo eterno recomea desde o princpio" (Weltrtsel, p. 278-79). fcil dar-se conta do carcter arbitrrio e diletantista destas especulaes de Haeckel. Contudo, o seu enorme sucesso junto do pblico e o nmero extraordinrio de seguidores que tiveram em toda a europa, e especialmente na Alemanha, convertem-nas hum documento do esprito romntico da poca. To 64 significativo com a enorme difuso e o entusiasmo que haviam suscitado, algumas dcadas antes, as doutrinas do romantismo idealista. a tendncia romntica a procurar e a dar realidade ao infinito que conduz cientistas do tipo de Haeckel a revestir de um

significado absoluto e religioso hipteses e factos da cincia, e efectivamente, a caracterstica fundamental do positivismo materialista uma espcie de exaltao anti-religiosa, que nem por isso menos religiosa e mstica, pois no faz mais do que pr a natureza no lugar de Deus, embora no vendo nela seno leis e factos necessrios, e pretender laicizar e tornar "cientficas" atitudes prprias da religio. O desenvolvimento da cincia superou decerto este fervor religioso que animava muitos dos seus cultores, mas devia acabar por destruir os entusiasmos romnticos e as construes metafsicas com que o positivismo se pavoneava, conduzindo gradualmente a reconhecer o essencial do procedimento cientfico precisamente no que tem de mais avesso e mais alheio a qualquer interpretao metafsica ou religiosa. Em Frana, um monismo materialista anlogo ao de Haeckel foi defendido por Felix le Dantec (1869-1917) numa numerosa srie de escritos (A matria viva, 1893; O atesmo, 1907; Elementos de filosofia biolgica, 1911, etc.). E em Itlia, o positivismo materialista manifestava-se de uma forma original na obra de Csar Lombroso (1863-1909), fundador da "Escola positiva do direito penal" segundo a qual "os criminosos no praticam delitos por um acto cons65 ciente e livre de m vontade, mas porque tm tendncias ms, tendncias cuja origem se encontra numa organizao fsica e psquica diversa da normal". Deste pressuposto, a escola positivista deduzia a consequncia de que o direito da sociedade a punir o

delinquente no se funda na maldade ou na sua responsabilidade, mas apenas na sua perculosidade social. O estudo das caractersticas fsico-psquicas que determinam a delinquncia foi chamado por Lombroso "antropologia criminal". Lombroso distinguia, com respeito periculosidade social, quatro tipos de delinquentes: o delinquente antropolgico ou delinquente nato, cujos instintos, inscritos na constituio orgnica, so inalterveis; o delinquente ocasional, o delinquente louco, o delinquente por paixo ou por hbito (0 homem delinquente, 1876). A outra tese de Lombroso que suscitou tambm polmicas vivssimas a aproximao entre gnio e loucura (Gnio e degenerao, 1897). Lombroso partia da considerao dos chamados fenmeno