a filosofia da história

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A FILOSOFIA DA HISTÓRIA Voltaire Sobre a história SEÇÃO I Definição A história é ó relato dos fatos dados como verdadeiros, ao contrário da fábula, que è o relato dos fatos dados como falsos... Há a história das opiniões, que nada mais é que a coletânea dos erros humanos. Á história aas artes pode ser a mais útil de todas, quando soma ao conhecimento da invenção e do progresso das artes a descrição do seu mecanismo. A história natural, impropriamente dita história, é uma parte essencial da física. Dividiu-se a história dos acontecimentos em sagrada e profana; a história sagrada é uma sequencia das operações divinas e milagrosas pelas quais Deus houve por bem conduzir outrora a noção judaica e exercer hoje nossa fé. Se eu aprendesse hebraico, ciências, história, Tudo isso está além do possível. (LA FONTAINE, liv. VIII, FAB. XXV) Primeiros fundamentos da história Os primeiros fundamentos de toda história são os relatos dos pais aos filhos, transmitidos em seguida de uma geração; a outra; em sua origem, eles são no máximo prováveis, quando não entram em choque com o senso comum, e perdem, um grau de probabilidade a cada geração. Com o tempo, a fábula cresce e a verdade se perde: vem daí que todas as origens dos povos são absurdas. Assim, os egípcios haviam sido governados pelos deuses por vários séculos; depois disso, o foram por semideuses; enfim, tiveram reis durante onze mil trezentos e quarenta anos; e o Sol nesse espaço de tempo havia mudado quatro vezes de oriente e de ocidente. Os fenícios do tempo de Alexandre pretendiam estar estabelecidos em seu país havia trinta mil anos; e esses trinta mil anos estavam repletos de tantos prodígios quanto a cronologia egípcia. Confesso que é fisicamente bem possível que a Fenícia tenha existido não apenas trinta mil anos, mas

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A FILOSOFIA DA HISTRIAVoltaire

Sobre a histria

SEO IDefinioA histria relato dos fatos dados como verdadeiros, ao contrrio da fbula, que o relato dos fatos dados como falsos...H a histria das opinies, que nada mais que a coletnea dos erros humanos. histria aas artes pode ser a mais til de todas, quando soma ao conhecimento da inveno e do progresso das artes a descrio do seu mecanismo.A histria natural, impropriamente dita histria, uma parte essencial da fsica. Dividiu-se a histria dos acontecimentos em sagrada e profana; a histria sagrada uma sequencia das operaes divinas e milagrosas pelas quais Deus houve por bem conduzir outrora a noo judaica e exercer hoje nossa f.

Se eu aprendesse hebraico, cincias, histria,Tudo isso est alm do possvel.(LA FONTAINE, liv. VIII, FAB. XXV)

Primeiros fundamentos da histriaOs primeiros fundamentos de toda histria so os relatos dos pais aos filhos, transmitidos em seguida de uma gerao; a outra; em sua origem, eles so no mximo provveis, quando no entram em choque com o senso comum, e perdem, um grau de probabilidade a cada gerao. Com o tempo, a fbula cresce e a verdade se perde: vem da que todas as origens dos povos so absurdas. Assim, os egpcios haviam sido governados pelos deuses por vrios sculos; depois disso, o foram por semideuses; enfim, tiveram reis durante onze mil trezentos e quarenta anos; e o Sol nesse espao de tempo havia mudado quatro vezes de oriente e de ocidente.Os fencios do tempo de Alexandre pretendiam estar estabelecidos em seu pas havia trinta mil anos; e esses trinta mil anos estavam repletos de tantos prodgios quanto a cronologia egpcia. Confesso que fisicamente bem possvel que a Fencia tenha existido no apenas trinta mil anos, mas trinta trilhes de sculos, e que tenha passado, como o resto do globo, por trinta milhes de revolues. Mas no temos conhecimento delas. sabido que maravilhoso ridculo reina na histria antiga dos gregos.Os romanos, to srios como eram, mesmo assim envolveram de fbulas a histria dos seus primeiros sculos. Esse povo, to recente em comparao com as naes asiticas, esteve quinhentos anos sem historiadores. Assim, no de espantar que Rmulo fosse filho de Marte, que uma loba tenha sido sua ama-de-leite, que ele tenha marchado com mil homens da sua aldeia de Roma contra vinte e cinco mil combatentes da aldeia dos sabinos; que depois disso tenha se tornado deus; que Tarqunio, o Velho, tenha cortado uma pedra com uma navalha e que uma vestal tenha puxado um navio para a terra com seu cinto, etc.Os primeiros anais de todas as nossas naes modernas no so menos fabulosos. s vezes, as coisas prodigiosas e improvveis devem ser relatadas, mas como provas da credulidade humana: elas entram na histria das opinies e das tolices; mas o campo demasiadamente imenso.

Dos monumentos

Para conhecer com um pouco de certeza algo da histria antiga, s h um meio: ver se restam alguns monumentos incontestes. Temos apenas trs por escrito.O primeiro a coletnea das observaes astronmicas feitas durante mil e novecentos anos seguidos na Babilnia, enviadas por Alexandre, Grcia. Essa srie de observaes, que remonta a dois mil duzentos e trinta e quatro anos antes da nossa era vulgar, prova indiscutivelmente que os babilnios existiam como corpo de povo vrios sculos antes: porque as artes nada mais so que a obra do tempo, e a preguia natural dos homens deixa-os milhares de anos sem outros conhecimentos e sem outros talentos alm dos de se alimentar, defender-se das injrias do ar e se degolar. Julgue-se pelos germanos e pelos ingleses do tempo de Csar, pelos trtaros de hoje, pelos dois teros da frica e por todos os povos que encontramos na Amrica, com exceo, Sob, certos aspectos, dos reinos do Peru e do Mxico, e da repblica de Tlaxcala. bom lembrar que em todo esse novo mundo ningum sabia ler nem escrever.O segundo monumento o eclipse central do Sol, calculado na China dois mil cento e cinquenta e cinco anos antes da' nossa era vulgar e dado como verdadeiro por todos os nossos astrnomos. Cumpre dizer dos chineses a mesma coisa que dos povos da Babilnia: eles j compunham sem dvida um vasto imprio civilizado. Mas o que pe os chineses acima de todos os povos da Terra que nem suas leis, nem seus costumes, nem a lngua falada pelos letrados mudaram desde h cerca de quatro mil anos. No entanto, essa nao e a da ndia, as mais antigas de todas as que subsistem hoje em dia, as que possuem o mais vasto e mais belo pas, as que inventaram quase todas as artes antes que tivssemos aprendido algumas, sempre foram omitidas at nossos dias em nossas pretensas histrias universais. E, quando um espanhol e um francs enumeravam as naes, nem um nem outro deixava de chamar seu pas de a primeira monarquia do mundo, e seu rei de o maior rei do mundo, na iluso de que seu rei lhe daria uma penso assim que lesse seu livro.O terceiro monumento, muito inferior aos outros dois, subsiste nos mrmores de Arundel, em que est gravada a crnica de Atenas duzentos e sessenta e trs anos antes da nossa era-, mas ela s remonta a Cecrops, mil trezentos e dezenove anos antes do tempo em que foi gravada. Eis na histria de toda a Antiguidade as nicas pocas incontestes que temos.Prestemos maior ateno aos mrmores trazidos da Grcia por lorde Arundel. A crnica deles comea mil quinhentos e oitenta e dois anos antes da nossa era. hoje uma antiguidade de trs mil trezentos e cinquenta e trs anos, e no se v a um s fato que tenha algo de milagroso, de prodigioso. O mesmo no que concerne s olimpadas; no nesse caso que devemos dizer Graecia mendax, mentirosa Grcia, Os gregos sabiam muito bem distinguir a histria da fbula, e os fatos reais dos contos de Herdoto; assim como, em suas questes srias, seus oradores no tomavam nada emprestado dos discursos dos sofistas nem das imagens dos poetas.A data da tomada de Tria est especificada nesses mrmores; mas eles no falam nem das flechas de Apolo.Nem do sacrifcio de Ifignia nem dos ridculos combates dos deuses. A data dos inventos de Triptlemo e de Ceres a se encontra; mas Ceres no chamada de deusa. Menciona-se um poema sobre o rapto de Prosrpina; mas no se diz que ela filha de Jpiter e de uma deusa, nem que mulher do deus do inferno.Hrcules iniciado nos mistrios de Elusis; mas no se diz uma palavra sobre seus doze trabalhos, nem sobre a. sua ida frica na taa, nem sobre sua divindade, nem sobre o enorme peixe pelo qual foi engolido e que o guardou em seu ventre trs dias e trs noites, segundo Licofronte.No nosso caso, ao contrrio, um estandarte trazido do cu por um anjo aos monges de Saint-Denis; um pombo traz uma garrafa de azeite a uma igreja de Reims; dois exrcitos de cobras travam uma batalha na Alemanha; um arcebispo de Mogncia cercado e comido por ratos; e, para cmulo, toma-se o cuidado de assinalar o ano dessas aventuras. E o abade Lenglet compila e compila essas impertinncias; e os almanaques as repetiram mil vezes; e assim que se instrui a juventude; e todas essas asneiras passaram a fazer parte da educao dos prncipes.Toda histria recente. No de espantar que no se tenha histria antiga profana alm de uns quatro mil anos.As revolues deste globo, a longa e universal ignorncia dessa arte que transmite os fatos pela escrita so a causa disso. Ainda h muitos povos que no sabem fazer uso dela. Essa arte s foi comum a um nmero pequenssimo de naes civilizadas; e ainda assim estava em poucas mos. Nada mais raro entre os franceses e os alemes do que saber escrever; at o sculo XIV da nossa era vulgar, quase todos os atos eram atestados apenas por testemunhas. Na Frana, foi s sob Carlos VII, em 1454, que se comeou a redigir alguns costumes franceses, A arte de escrever era ainda mais rara entre os espanhis, da sua histriaPg. 7ser to seca e incerta at o tempo de Fernando e Isabel. V-se, por a, como o pequenssimo nmero de homens que sabiam escrever podia se impor e como foi fcil nos fazer - acreditar nos maiores absurdos.H naes que subjugaram uma parte da Terra sem utilizar os caracteres. Sabemos que Gngis Khan conquistou uma parte da sia no incio do sculo XIII; mas no nem, por ele nem pelos trtaros que sabemos disso. A histria T deles, escrita pelos chineses e traduzida pelo padre Gaubil, diz que os trtaros no possuam ento a arte de escrever.Essa arte devia ser igualmente desconhecida do cita Oguskhan, chamado pelos persas e gregos de Madis, que conquistou uma parte da Europa e da sia muito antes do reinado de Ciro. quase certo que, na poca, de cada cem naes, apenas duas ou trs usassem os caracteres. Pode ser que, num antigo mundo destrudo, os homens tenham conhecido a escrita e as outras artes; mas no nosso elas so muito recentes.Restam monumentos de outra espcie, que servem somente para constatar a antiguidade remota de certos povos e que precedem todas as pocas conhecidas e todos os livros: so os prodgios da arquitetura, como as pirmides e os palcios do Egito, que resistiram ao tempo. Herdoto, que vivia h dois mil e duzentos anos e que os havia visto, no pde saber com os sacerdotes egpcios em que tempo haviam sido erguidos. difcil dar mais antiga das pirmides menos de quatro mil anos de antiguidade, mas deve-se considerar que esses esforos da ostentao dos reis s puderam ser iniciados muito tempo depois do estabelecimento das cidades. Porm, para construir cidades numa regio inundada todos os anos, convm observar que foi antes necessrio elevar o terreno das cidades em pilotis, nesse terreno de lama, e torn-las inacessveis inundao; foi preciso, antes de tomarPg. 8essa atitude necessria e antes de ser capaz de tentar essas grandes obras, que os povos construssem retiros, durante a cheia do Nilo, no meio dos rochedos que formam duas cadeias direita e esquerda do rio. Foi preciso que esses povos reunidos tivessem os instrumentos da lavoura, da arquitetura, certo conhecimento da agrimensura, ao mesmo tempo que leis e uma polcia. Tudo isso requer necessariamente um espao de tempo prodigioso. Vemos, pelos longos detalhes que todos os dias afetam nossos empreendimentos mais necessrios e mais insignificantes, como difcil fazer grandes coisas, e que so necessrias no s uma obstinao incansvel mas vrias geraes animadas por essa obstinao.Mas, quem quer que tenha erguido uma ou duas dessas prodigiosas massas - Mens, Tot ou Quops, ou Ramss -, no ficaremos com isso mais bem informados sobre a histria do antigo Egito: a lngua desse povo est perdida. Portanto no sabemos mais coisas, a no ser que antes dos mais antigos historiadores havia matrial com que escrever uma histria antiga.seo IIComo j temos vinte mil obras, a maioria em vrios volumes, apenas sobre a histria da Frana, creio que bom saber se limitar. Somos obrigados a somar ao conhecimento de nosso pas o da histria de nossos vizinhos. -nos ainda menos permitido ignorar as grandes aes dos gregos e dos romanos, e suas leis, que ainda so em grande parte as nossas. Mas, se a esse estudo quisssemos acrescentar o de uma antiguidade mais remota, pareceramos ento algum que largasse Tcito e Tito Lvio para estudar seriamente as Mil e uma noites. Todas as origens dos povos so visivelmentePg. 9fbulas; a razo disso que os homens tiveram de viver por muito tempo como corpo de povo e de aprender a fazer po e roupa (o que era difcil), antes de aprender a transmitir todos os seus pensamentos posteridade (o que era mais difcil ainda). A arte de escrever certamente no tem mais de seis mil anos entre os chineses; e, no obstante o que tenham dito os caldeus e os egpcios, no h indcio de que eles tenham sabido escrever e ler correntemente mais cedo. A histria dos tempos anteriores, portanto, s podia ser transmitida de memria; e sabe-se muito bem quanto a lembrana do passado se altera de gerao em gerao. Foi somente a imaginao que escreveu as primeiras histrias. No apenas cada povo inventou sua origem, mas inventou tambm a origem do mundo inteiro.A crer em Sanconiaton, as coisas comearam primeiro por um ar denso, que o vento rarefez; a desejo e o amor nasceram da, e da unio do desejo e do amor foram forma dos os animais. Os astros, s vieram mais tarde, mas somente para enfeitar o cu e,para desfrutar a viso dos animais que estavam na Terra.O Cnef dos egpcios, seu Oshireth e sua Isheth, que chamamos Osrs e sis, po so menos engenhosos e menos ridculos. Os gregos embelezaram todas essas fices; Ovdio as recolheu e ornamentou-as com os encantos da mais bela poesia. O que ele diz de um deus que desenreda o caos e da formao do homem sublime:Sanctius his animal mentisque capacius altae Deerat adhuc, et quod dominari in caetera posset,Natus homo est.(Met., I, 76-78)Pg. 10Pronaque cum spectent animalia caetera terram,Os homini sublime dedit, coelumque tueri Jussit, et erectos ad sidera tollere vultus.(Met., 1,84-86).Hesodo e os outros que escreveram tanto tempo antes nem de longe se exprimiram com essa elegante sublimidade. Mas, desde esse belo momento em que o homem seformou at o tempo das olimpadas, tudo est mergulhado numa escurido profunda.Herdoto chega aos jogos olmpicos e conta contos, aos gregos reunidos, como uma velha a crianas. Comea dizendo que os fencios navegaram do mar Vermelho ao Mediterrneo, o que supe que os fencios dobraram nosso cabo da Boa Esperana e contornaram a frica.Vem em seguida o rapto de Io, depois a fbula de Giges e Candaulo, depois Giges e Candaulo, depois belas histrias de ladres e a da filha do rei do Egito, Quops, que, tendo exigido uma pedra de cada um de seus amantes," teve pedras bastantes para construir uma das mais belas pirmides.Juntem a isso orculos, prodgios, feitos de sacerdotes, e tero a histria do gnero humano.Os primeiros tempos da histria romana parecem escritos por Herdoto; nossos vencedores e nossos legisladores s sabiam contar os anos cravando pregos numa muralha pela mo de seu sumo pontfice.O grande Rmulo, rei de uma aldeia, filho do deus Marte e de uma religiosa que a buscar gua com sua moringa. Tem um deus como pai, uma meretriz como me e uma loba como ama-de-leite. Um escudo cai expressamente do cu para Numa. Encontram-se os belos livros das sibilas. Um ugure corta um pedregulho com uma navalha, graas permisso dos deuses. Uma vestal salva um enorme navio encalhado, puxando-o com seu cinto. Castor e Plux vm combater pelos romanos, e as pegadas de seusPg. 11cavalos ficam impressas no cho. Os gauleses ultramontanos vm saquear Roma: uns dizem que eles foram expulsos pelos gansos, outros que levaram muito ouro e prata; mas provvel que, naquela poca, na Itlia, houvesse muito menos prata do que gansos. Ns imitamos os primeiros historiadores romanos, pelo menos no seu gosto pelas fbulas.Temos nossa auriflama trazida por um anjo, a santa mbula, por um pombo; e se, juntamos a isso a capa de so Martinho, estamos em boa posio. Qual seria a histria til? A que nos ensinaria nossos deveres e nossos direitos, sem parecer que pretende ensin-los.Muitas vezes pergunta-se se a fbula do sacrifcio de Ifignia tirada da histria de Jeft, se o dilvio de Deucalio inventado ou uma imitao do de No, se a aventura de Filmon e Bucis baseada na de L e sua mulher. Os judeus confessam que no se comunicavam com os estrangeiros, que seus livros s se tomaram conhecidos dos gregos aps a traduo feita por ordem de um Ptolomeu; mas os judeus foram, por muito tempo antes disso, intermedirios e usurrios dos gregos de Alexandria. Os gregos nunca foram vender roupa usada em Jerusalm. Parece que nenhum povo imitou os judeus, e que estes tomaram muitas coisas dos babilnios, dos egpcios e dos gregos.Todas as antiguidades judaicas so sagradas para ns, apesar do nosso dio e do nosso desprezo por esse povo. Na verdade, no podemos acreditar neles pela razo; mas ns nos submetemos aos judeus pela f. H cerca de oitenta sistemas sobre sua cronologia, e muito mais maneiras de explicar os acontecimentos de sua histria: no sabemos qual a verdadeira, mas reservamos a ela nossa f para o tempo em que ser descoberta.Pg. 12Temos tantas coisas a crer vindas desse povo sbio e magnnimo, que toda a nossa crena se esgotou com elas e que no nos resta mais para os prodgios de que a histria das outras naes est repleta. De nada adianta Rollin nos repetir os orculos de Apoio e as maravilhas de Semramis; de nada adianta ele transcrever tudo o que foi dito da justia desses antigos citas que saquearam a sia com tanta frequncia e que comiam ocasionalmente cante humana, pois ele sempre encontra certa incredulidade nas pessoas de bem.O que mais admiro em nossos compiladores modernos a sabedoria e a boa-f com a qual nos provam que tudo o que aconteceu outrora nos maiores imprios do mundo s se deu para instruir os habitantes da Palestina. Se os reis da Babilnia, em suas conquistas, atacam de passagem o povo hebreu, unicamente para corrigir esse povo de seus pecados. Se o rei a quem se chamou Ciro se assenhora da Babilnia, para dar a alguns judeus licena para ir para casa. Se Alexandre vencedor de Dano, para estabelecer roupas-velheiros judeus em Alexandria. Quando os romanos juntam a Sria sua vasta dominao e englobam o pequeno pas da Judeia em seu imprio, tambm para instruir os judeus; os rabes e os turcos s vieram para corrigir esse povo amvel. H que confessar que ele teve uma excelente educao; nunca ningum teve tantos preceptores. Eis como a histria til.Mas o que temos de mais instrutivo a justia exata que os letrados dispensaram a todos os prncipes com quem no estavam contentes. Vejam com que candor imparcial so Gregrio de Nazianzo julga o imperador Juliano, o filsofo: ele declara que esse prncipe, que no acreditava no diabo, tinha uma relao secreta com ele e que, um dia em que os demnios lhe apareceram todo inflamados sob as formas mais horrendas, ele os escorraou fazendo sem querer sinais-da-cruz.Pg. 13Ele chama de furioso, de miservel; garante que Julia no imolava meninos e meninas todas as noites nos pores. assim que fala do mais clemente dos homens, que nunca se vingou das invectivas que esse mesmo Gregrio proferiu , contra ele durante seu reinado.Um mtodo feliz para justificar as calnias com que se cumula um inocente fazer a apologia de um culpado. Com isso, tudo compensado; a maneira que utiliza o mesmo santo de Nazianzo. O imperador de Constncia, tio e predecessor de Juliano, quando do seu advento ao imprio havia massacrado Jlio, irmo de sua me, e os dois filhos deste, todos os trs declarados augustos; mandou depois assassinar Galo, irmo de Juliano. Essa crueldade que exerceu contra sua famlia ele notabilizou contra o imprio; mas ele era devoto, e at na batalha decisiva contra Magnncio orou a Deus numa igreja o tempo todo em que os exrcitos se enfrentavam. Eis o homem de que Gregrio faz o panegrico.Se os santos nos do a conhecer a verdade desse modo, o que no devemos esperar dos profanos, ainda mais quando so ignorantes, supersticiosos e apaixonados?s vezes, faz-s hoje uso um tanto estranho do estudo da histria. Desenterram-se mapas do tempo de Dagoberto, a maior parte suspeita e mal-entendida, e infere-se da que certos costumes, direitos, prerrogativas, que subsistiam ento, devem reviver hoje. Aconselho os que estudam e raciocinam assim a dizer ao mar: estiveste outrora em Aigues-Mortes, Frjus, Ravena, Ferrara; volta l daqui a pouco.

seo IIIDa utilidade da histriaEssa vantagem consiste sobretudo na comparao que um estadista, um cidado podem fazer das leis e costumesPg. 14estrangeiros com os do seu pas: o que estimula a emulao das naes modernas nas artes, na agricultura, no comrcio.Os grandes erros passados servem muito de todas as maneiras; nunca os crimes e as desgraas seriam suficientemente recordados. Digam o que quiserem, mas pode-se prevenir aqueles e estas; a histria do tirano Cristiano pode impedir que uma nao confie o poder absoluto a um tirano; e o desastre de Carlos XII em Poltava adverte um general de que no se deve penetrar na Ucrnia sem ter vveres.Foi por ter lido os detalhes das batalhas de Crcy, de Potiers, de Azincourt, de Saint-Quentin, de Gravelines, etc., que o clebre marechal de Saxe se determinava a estudar, tanto quanto possvel, questes de posio.Os exemplos produzem grande efeito no esprito de um prncipe que l com ateno. Ele ver que Henrique TV s empreendeu sua grande guerra, que devia mudar: o sistema da Europa, depois de ter garantido o nervo da guerra para poder mant-la vrios anos sem nenhum novo socorro financeiro.Ver que a rainha Elizabeth, unicamente com os recursos do comrcio e urna sbia economia, resistiu ao poderoso Filipe II, e que de cem naus que ela ps no mar contra\armada invencvel, trs quartos eram fornecidos pelas cidades comerciantes da Inglaterra.A Frana, intacta sob Lus XIV, aps nove anos da guerra mais infeliz, mostrar evidentemente a utilidade das praas-fortes fronteirias que ele construiu. Em vo o autor das causas da queda do Imprio Romano critica Justiniano por ter adotado essa mesma poltica; devia criticar somente os imperadores que desprezaram essas praas fronteirias e que abriram as portas do imprio aos brbaros.Uma vantagem que a histria moderna tem sobre a histria antiga a de ensinar a todos os potentados que, desde Pg. 15o sculo XV, sempre houve a unio contra uma potncia demasiado preponderante. Esse sistema de equilbrio sempre foi desconhecido dos antigos, e essa a razo do sucesso do povo romano, que, tendo formado uma milcia superior dos outros povos, subjugou-os um depois do outro, do Tibre ao Eufrates. necessrio ter freqentemente diante dos olhos as usurpaes dos papas, as escandalosas discrdias de seus cismas, a demncia das disputas de controvrsia, as perseguies, as guerras gestadas por essa demncia e os horrores que elas produziram.Se no se tornasse esse conhecimento familiar aos jovens, se s houvesse um pequeno nmero de estudiosos instrudos sobre esses fatos, o pblico- seria to imbecil quanto era na poca de Gregrio VII. As calamidades desses tempos de ignorncia renasceriam infalivelmente, porque no se tomaria nenhuma precauo para preveni-las. Todo o mundo sabe, em Marselha, por que inadvertncia a peste foi trazida do Levante, e dela se preservam.Aniquilem o estudo da histria, e vero talvez dias de so Bartolomeu na Frana e Cromwells na Inglaterra.

Certeza da histriaToda certeza que no demonstrao matemtica no passa de uma extrema probabilidade - no h outra certeza histrica.Quando Marco Polo falou, primeiro e apenas ele, da grandeza e da populao da China, ningum acreditou, e ele no pde exigir crdito. Os portugueses que entraram naquele vasto imprio sculos depois comearam a tornar a coisa provvel. Hoje isso certo, dessa certeza que nasce do depoimento unnime de mil testemunhas oculares dePg. 16diferentes naes, sem que ningum tenha, reclamado contra seu testemunho.Se apenas dois ou trs historiadores houvessem escrito a aventura do rei Carlos XII, que, obstinando-se a permanecer nos Estados do sulto, seu benfeitor, contra a prpria vontade, combateu com seus domsticos contra um exrcito de janzaros e de trtaros, eu teria deixado em suspenso meu juzo; mas, tendo falado com vrias testemunhas oculares e no tendo ouvido ningum pr essa ao em dvida, tive de acreditar nela; porque, afinal de contas, se ela no nem sensata nem ordinria, no contrria nem s leis da natureza nem ao carter do heri.O que contraria o curso ordinrio da natureza no deve ser digno de crdito, a no ser que seja atestado por homens visivelmente animados pelo esprito divino que seja impossvel duvidar da inspirao deles. Eis por que, no verbete CERTEZA do Dicionrio enciclopdico, um grande paradoxo dizer que deveramos acreditar igualmente em toda Paris tanto quando esta afirma ter visto um morto ressuscitar como quando esta diz que ganhamos a batalha de Fontenoy. Parece evidente que o testemunho de toda Paris sobre algo improvvel no poderia ser igualado ao testemunho de toda a Paris sobre algo provvel. So essas as primeiras noes da lgica sadia. Tal dicionrio deveria ser consagrado apenas verdade.

Incerteza da HistriaDistinguem os tempos em fabulosos e histricos. Mas os histricos deveriam ser distinguidos, por sua vez, emPg. 17verdades e em fbulas. No falo aqui de fbulas reconhecidas hoje em dia como tais: no se trata, por exemplo, dos prodgios com que Tito Lvio enfeitou ou estragou sua histria; mas, nos fatos mais aceitos, quantas razes de duvidar!Atente-se em que a repblica romana ficou quinhentos anos sem historiadores; que o prprio Tito Lvio deplora a perda dos outros monumentos que pereceram quase todos, no incndio de Roma, pleraque interiere; tenha-se em conta que nos trezentos primeiros anos a arte de escrever era rarssima, rarae per eadem tempora litterae, ter-se- ento por que duvidar de todos os acontecimentos que no esto na ordem ordinria das coisas humanas. porventura provvel que Rmulo, neto do rei dos sabinos, ter sido forado a raptar sabinas para ter esposas? A histria de Lucrcio verossmil? Algum vai. crer facilmente, dando f a Tito Lvio, que o rei Porsena fugiu cheio de admirao pelos romanos, porque um fantico quis assassin-lo? No seramos levados, ao contrrio, a acreditar em Polibo, que era duzentos anos anterior a Tito Lvio? Polibo diz que Porsena subjugou os romanos: isso muito mais provvel que a aventura de Cvola, que teria queimado a mo por ter esta se equivocado. Eu teria desafiado Poltrot a fazer o mesmo."A aventura de Rgulo, encerrado pelos cartagineses num tonel eriado de pontas de ferro, merece crdito? Polibo, contemporneo, no teria falado nela, se tivesse sido verdadeira? Ele no diz uma s palavra: porventura uma grande presuno pretender que essa histria foi inventada bem mais tarde apenas para tornar os cartagineses mais odiosos?Abram o Dicionrio de Morri, no verbete RGULO; ele garante que o suplcio desse romano est relatado em Tito Lvio; no entanto, a dcada em que Tito Lvio poderia ter falado dele se perdeu; s temos o suplemento de Freinshem; Pg. 18e ocorre que esse dicionrio, citou na verdade um alemo do sculo XVII, crendo citar um romano do tempo de Augusto. Far-se-iam volumes imensos com todos os fatos clebres e aceitos de que cabe duvidar. Mas os limites deste verbete no permitem estender-nos mais.Os templos, as festas, as cerimnias anuais, as prprias medalhas so provas histricas?Somos naturalmente levados a crer que um monumento erigido por uma nao com o fim de celebrar um acontecimento atesta a certeza deste. No entanto, se esses monumentos no foram elevados por contemporneos, se celebram alguns fatos pouco verossmeis, provam caso outra coisa, a no ser que se quis consagrar uma opinio popular?A coluna rostral erigida em Roma pelos contemporneos de Dulio sem dvida uma prova da vitria naval de Dulio; mas a esttua do ugure Nvio, que cortava uma pedra com uma navalha, provava que Nvio havia realizado esse prodgio? As esttuas de Ceres de Triptolemo; em Atenas, eram porventura testemunhos incontestes de que Ceres descera de no sei que planeta para vir ensinar agricultura aos atenienses? O clebre Laocoonte, que subsiste hoje to inteiro, atesta acaso a verdade da histria do cavalo de Tria?As cerimnias, as festas anuais estabelecidas por toda uma nao, no constatam melhor a origem a que so atribudas. A festa de Arionte montado num golfinho era celebrada tanto pelos romanos como pelos gregos. A do Fauno lembrava sua aventura com Hrcules e Onfale, quando aquele deus, apaixonado por Onfale, entrou na cama de Hrcules pensando ser a da amante.Pg. 19A clebre festa das lupercais era realizada em homenagem loba que amamentou Rmulo e Remo.Em que se baseava a festa de rion, celebrada no dia cinco dos idos de maio? No seguinte. Hireu recebeu em casa Jpiter, Netuno e Mercrio; e, quando seus convidados se despediram, esse sujeito, que no tinha mulher e que queria ter um filho, fez parte de sua dor aos trs deuses. No ouso contar o que eles fizeram no couro do boi que Hireu lhes servira na refeio; cobriram depois esse couro com um pouco de terra e da nasceu rion, ao cabo de nove meses.Quase todas as festas romanas, srias, gregas, egpcias baseavam-se em histrias assim, bem como os templos e as esttuas dos heris antigos: eram monumentos que a credulidade consagrava ao erro.Um de nossos mais antigos monumentos a esttua de so Dionsio carregando a cabea nos braos.Uma medalha, mesmo sendo contempornea, s vezes no uma prova. Quantas medalhas a adulao no cunhou, sobre batalhas mal decididas, qualificadas de vitria, e sobre empresas fracassadas, que s foram levadas a bom termo na lenda? Porventura recentemente, durante a guerra de 1740 dos ingleses contra o rei da Espanha, no se cunhou uma medalha que atestava a tomada de Carta-gena pelo almirante Vernon, quando esse almirante levantava o cerco?As medalhas s so testemunhos irrepreensveis quando o acontecimento atestado por autores contemporneos; ento essas provas, sustentando-se uma na outra, constatam a verdade.Pg. 20Deve-se, na histria, inserir arengas e fazer retratos?Se numa ocasio importante um general do exrcito ou um homem de Estado falou de uma maneira singular e forte, que caracteriza seu gnio e o do seu sculo, deve-se sem dvida reproduzir seu discurso palavra; por palavra: tais arengas so talvez a parte mais til da histria. Mas por que fazer um homem dizer o que no disse? Seria quase a mesma coisa que lhe atribuir o que ele no fez. uma fico imitada de Homero; mas o que fico num poema torna-se, a rigor, mentira num historiador. Vrios antigos usaram esse mtodo; isso no prova outra coisa, a no ser que vrios antigos quiseram dar exibies da sua eloqncia custa da verdade.

Dos retratosOs retratos ainda denotam, muitas vezes, mais vontade de brilhar que de instruir. Os contemporneos tm direito de pintar o retrato dos homens de Estado com os quais negociaram, dos generais sob cujo comando fizeram a guerra. Mas como de se temer que o pincel seja guiado pela paixo! Parece que os retratos que encontramos em Clarendon so feitos com mais imparcialidade, gravidade e sabedoria do que os que lemos com prazer no cardeal de Retz.Mas querer pintar os antigos, esforar-se por desenvolver suas almas, olhar os acontecimentos como caracteres com os quais se pode ler com segurana no fundo dos coraes uma iniciativa bem delicada, em muitos uma puerilidade.Pg. 21Da mxima de Ccero acerca da histria: que o historiador no ouse dizer uma falsidade nem esconder uma verdadeA primeira parte desse preceito incontestvel; preciso examinar a outra. Se uma verdade pode ter alguma utilidade para o Estado, seu silncio recomendvel. Mas vamos supor que voc escreva a histria de um prncipe, que lhe tenha confiado um segredo: deve voc revel-lo? Deve dizer posteridade o que voc seria culpado se dissesse em segredo a um s homem? O dever de um historiador prevalecer sobre um dever maior?Vamos supor ainda que voc tenha sido testemunha de uma fraqueza que no teve influncia sobre os negcios pblicos: deve revelar essa fraqueza? Nesse caso, a histria seria uma stira.Cumpre confessar que a maioria dos escritores de anedotas mais indiscreta que til. Mas que dizer desses compiladores insolentes que, achando ser um mrito maldizer, imprimem e vendem escndalos como Ia Voisin vendia venenos?

Histria satricaSe Plutarco repreendeu Herdoto por no ter este realado devidamente a glria de algumas cidades gregas e por ter omitido vrios fatos conhecidos dignos de memria, quo mais repreensveis no so hoje os que, sem ter nenhum dos mritos de Herdoto, imputam aos prncipes, s naes, aes odiosas, sem a mais leve aparncia de prova? A guerra de 1741 foi escrita na Inglaterra. Encontramos nessa histria que na batalha de Fontenoy os franceses atiraram nos ingleses com balas envenenadas e cacos de vidroPg. 22venenosos, e que o duque de Cumberland enviou ao rei de Frana uma caixa cheia desses supostos venenos-encontra dos no corpo dos ingleses feridos. O mesmo autor acrescenta que, tendo os franceses perdido quarenta mil homens nessa batalha, o parlamento de Paris promulgou um decreto pelo qual era proibido falar no assunto, sob pena de punies corporais.As memrias fraudulentas impressas h pouco com o nome de Mme de Maintenon esto cheias de semelhantes absurdos. Encontramos a que, durante o cerco de Lille, os aliados jogavam na cidade bilhetes concebidos nestes termos: Franceses, consolai-vos; a Maintenon no ser vossa rainha.Quase todas as pginas esto sujas de imposturas e termos ofensivos contra a famlia real e contra as principais famlias do reino, sem alegar a mais ligeira verossimilhana capaz de dar a menor cor a essas mentiras. No escrever histria, escrever ao sabor das calnias dignas do pelourinho.Imprimiram na Holanda, com o nome de Histria, uma multido de libelos cujo estilo to grosseiro quanto as injrias, e cujos fatos so to falsos quanto mal escritos. , dizem, um mau fruto da excelente rvore da liberdade. Mas, se os desgraados autores dessas inpcias tiveram a liberdade de enganar os leitores, cumpre usar aqui a liberdade para desengan-los.A tentao de um ganho vil, somada insolncia dos costumes abjetos, foram os nicos motivos que levaram aquele refugiado protestante do Languedoc, chamado Langlevieux, vulgo La Beaumelle, a tentar a mais infame manobra que j desonrou a literatura. Ele vendeu em 1753 por dezessete luses de ouro ao livreiro Esllinger, de Frankfurt, a Histria do sculo de Lus XIV, que no lhe pertence; e, seja para se fazer passar pelo dono, seja para ganhar seu dinheiro, ele a enche de notas abominveis contra Lus XIV,Pg. 23

contra seu filho, contra o duque de Borgonha, seu neto, que trata sem cerimnia de prfido e de traidor de seu av e da Frana. Vomita contra o duque de Orlans, o regente, as calnias mais horrendas e mais absurdas; ningum poupado, e no entanto ele nunca conheceu ningum. Derrama sobre os marechais de Villars, de Villeroi, os ministros, as mulheres, historietas recolhidas nos cabars; e fala dos maiores prncipes como se estivesse sob sua autoridade. Ele se exprime como juiz dos reis: Dai-me um Stuart, e farei dele rei da Inglaterra, diz.Esse excesso de ridculo num desconhecido no foi considerado: teria sido severamente punido num homem cujas palavras tivessem algum peso. Mas cumpre observar que muitas vezes essas obras de trevas tm curso na Europa; elas so vendidas nas feiras de Frankfurt e de Leipzig; todo o Norte est inundado por elas. Os estrangeiros, que no esto a par, acreditam encontrar nesses libelos os conhecimentos da histria moderna. Os autores alemes nem sempre esto alertas contra essas Memrias e as utilizam como matria-prima. Foi o que sucedeu com as Memrias de Pontis, de Montbrun, de Rochefort, de Vordac; com todos esses supostos testamentos polticos dos ministros de Estado, compostos por falsrios; com o Dzimo real de Bois- Guillebert, imprudentemente publicado com o nome do marechal de Vauban; e tantas compilaes de analectos e de anedotas.A histria s vezes ainda mais maltratada na Inglaterra. Como sempre h dois partidos suficientemente violentos encamiando-se um contra o outro at o perigo comum reuni-los, os escritores de uma faco condenam tudo o que os outros aprovam. O mesmo homem representado como um Cato e como um Catilina. Como deslindar o verdadeiro entre a adulao e a stira? Talvez s haja uma regra segura: acreditar no bem que um historiador partidrio ousa dizerPg. 24dos heris da faco contrria, e no mal que ousa dizer dos, chefes da sua, pelo qual ele no tenha motivo de queixa.Quanto s Memrias realmente escritas pelos personagens envolvidos, como as de Clarendon, de Ludlow, de Burnet, na Inglaterra, de La Rochefoucauld, de Retz, na Frana: se elas coincidem, so verdadeiras; se se contrariam, duvide.Para os analectos e as anedotas, h um em cem que pode conter alguma sombra de verdade.SEO IVDo mtodo, da maneira de escrever a histria e do estiloTanto se falou sobre essa matria que pouco o que se tem a dizer aqui. Sabe-se muito bem que o mtodo e o estilo de Tito Lvio, sua gravidade, sua eloqncia comedida, convm majestade da repblica romana; que Tcito mais feito para pintar tiranos; Polibo, para dar lies de guerra; Dionsio de Halicarnasso, para desenvolver as antiguidades.Mas, moldando-se em geral nesses grandes mestres, temos hoje um fardo muito mais pesado que o deles a carregar. Exige-se dos historiadores modernos mais detalhes, fatos mais constatados, datas precisas, autoridades, mais ateno aos usos, s leis, aos costumes, ao comrcio, s finanas, agricultura, populao. Ocorre com a histria o mesmo que com a matemtica e a fsica: o campo aumentou prodigiosamente. Tanto fcil fazer uma coletnea de mexericos como hoje difcil escrever a histria.Daniel acreditava-se historiador porque transcrevia datas e relatos de batalhas em que no entendemos nada. Ele devia me informar sobre os direitos da nao, os direitos dosPg. 25principais corpos dessa nao, suas leis, seus usos, seus costumes e como eles mudaram. Essa nao est no direito de lhe dizer: eu lhe peo muito mais minha histria do que a de Lus, O Gordo, e de Lus, o Teimoso. Voc me diz, baseando-se numa velha crnica escrita ao acaso, que estando Lus VIIl acometido por uma doena mortal, extenuado, definhando, no agentando mais, os mdicos mandaram, aquele corpo cadavrico deitar-se com uma bonita moa para se recuperar, e que o santo rei rejeitou com veemncia essa vilania. Ah! Daniel, voc no conhece o provrbio italiano: donna ignuda manda luomo sotto la terra. Voc deveria ter um pouco mais de tintura da histria poltica e da histria natural.Exige-se que a histria de um pas estrangeiro no seja vazada no mesmo molde da histria da sua ptria.Se voc escreve uma histria da Frana, no obrigado a descrever o curso do Sena e do Loire; mas, se d ao pblico as conquistas dos portugueses na sia, exige-se uma topografia dos pases descobertos. Pretende-se que voc leve o leitor pela mo ao longo da frica e das costas da Prsia e da ndia; espera-se de sua parte informaes sobre os costumes, as leis, os usos dessas naes, novas para a Europa.Temos vinte histrias do estabelecimento dos portugueses nas ndias; mas nenhuma nos deu a conhecer os diversos governos desse pas, suas religies, suas antiguidades, os brmanes, os discpulos de so Joo, os guebros, os baneanes. Conservaram-nos, bem verdade, as cartas de Xavier e dos seus sucessores. Deram-nos histrias da ndia, feitas em Paris, baseadas nesses missionrios que no sabiam a lngua dos brmanes. Repetem-nos em inmeros escritos que os indianos adoram o diabo. Capeles de uma companhia de mercadores partem com esse preconceito; e, desde que vem nas costas de Coromandel umas figurasPg. 26simblicas, no deixam de escrever que so retratos do diabo, que esto no imprio dele, que vo combat-lo. Nem lhes passa pela cabea que ns que adoramos o diabo. Mamon e que vamos levar-lhe nossos votos a seis mil lguas da nossa ptria para ganhar dinheiro.A quem, em Paris, se pe a soldo de certo livreiro da rue Saint-Jacques, a quem se encomenda uma histria do Japo, do Canad, das ilhas Canrias, com base nas Memrias de algum capuchinho, no tenho nada a dizer.Basta saber que o mtodo adequado histria do seu pas no prprio para descrever as descobertas do novo mundo; que no se deve escrever sobre um vilarejo como se escreve sobre um grande imprio; que no se deve fazer a histria privada de um prncipe como se faz a da Frana ou da Inglaterra.Se voc s tem a dizer que um brbaro sucedeu outro brbaro margem do Oxus e do Iaxarte, em que voc til ao pblico?Essas regras so bem conhecidas; mas a arte de escrever bem a histria sempre ser rarssima. Sabe-se muito bem que necessrio um estilo grave, puro, variado, agradvel. Vale para as leis da escrita da histria o mesmo que para todas as artes do esprito: muitos preceitos e poucos grandes artistas.SEO VHistria dos reis judeus e dos paralipmenosTodos os povos escreveram sua histria assim que puderam escrever. Os judeus tambm escreveram a deles. Antes de terem reis, viviam sob uma teocracia; pretendiam-se governados por Deus.Pg. 27Quando os judeus quiseram ter um rei como os outros povos vizinhos, o profeta Samuel, interessadssimo em no ter rei, declarou-lhes da parte de Deus que era Deus mesmo que eles rejeitavam assim; desse modo, a teocracia acabou para os judeus quando a monarquia comeou.Logo, poder-se-ia dizer sem blasfemar que a histria dos reis judeus foi escrita como a dos outros povos e que Deus no se deu ao trabalho de ditar ele prprio a histria de um povo que ele j no governava.Essa opinio s pode ser defendida com a mais extrema desconfiana. O que poderia confirm-la que os Paralipmenos contradizem abertamente o Livro dos Reis, na cronologia e nos fatos, do mesmo modo que os historiadores profanos tambm se contradizem algumas vezes. Alm do mais, se Deus sempre escreveu a histria dos judeus, h que acreditar que ainda a escreve: porque os judeus continuam sendo seu povo eleito. Eles devem se converter um dia, e parece que nesse dia tero tanto direito de considerar sagrada a histria da sua disperso quanto tm o direito de dizer que Deus escreveu a histria dos seus reis.Podemos fazer mais uma reflexo que, tendo Deus sido o nico rei por muito tempo e, depois, tendo sido o historiador dos reis, devemos ter por todos os judeus o mais profundo respeito. No h roupa-velheiro judeu que no esteja infinitamente acima de Csar ou de Alexandre. Como no se prosternar diante de um roupa-velheiro que prova que sua histria foi escrita pela prpria Divindade, enquanto as histrias gregas e romanas nos foram transmitidas apenas por profanos?Se o estilo da Histria dos reis e dos Paralipmenos divino, bem possvel tambm que nem todas as aes contadas nessas histrias sejam divinas. Davi assassina Uri. Isboset e Mefiboset so assassinados. Absalo assassina Amnon; Joab assassina Absalo; Salomo assassina Adofiias,Pg. 28seu irmo; Baasa assassina Nadab; Zinri assassina El Onri assassina Zinri; Acab assassina Nabot; Je assassina: Acab e Joro; os moradores de Jerusalm assassinam Amazias, filho de Jos; Salum, filho de Jabes, assassina Zacarias, o de Jeroboo; Menam assassina Salum, filho de Jabesf Peca, filho de Remalias, assassina Pecaas, filho de Menam; Osias, filho de Ela, assassina Peca, filho de Remalias. Silencia-se sobre muitos outros pequenos assassinatos. H que confessar que, se o Esprito Santo escreveu essa histria, ele no escolheu um tema muito edificante.

SEO VIDas ms aes consagradas ou desculpadas na histria

at por demais comum os historiadores louvarem pssimos homens que prestaram servio seita dominante ou ptria. Esses elogios talvez sejam os de um cidado zeloso, mas esse zelo ultraja o gnero humano. Rmulo assassina o irmo, e fazem dele um deus. Constantino degola o filho, asfixia a mulher, assassina quase toda a famlia: foi elogiado em conclios, mas a histria deve detestar suas barbries. Ainda bem para ns, sem dvida, Clvis ter sido catlico; ainda bem para a Igreja anglicana Henrique VIII ter abolido os monges; mas cumpre confessar que Clvis e Henrique VIII eram monstros de crueldade.Quando o jesuta Berruyer, que, apesar de jesuta, era um tolo, teve a ideia de parafrasear o Antigo e o Novo Testamento em estilo de ruela, sem outra inteno que a de faz-los ser lidos, jogou flores de retrica na faca de dois gumes que o judeu Ede enfiou com cabo e tudo no ventre do rei Eglom, no sabre com que Judite cortou a cabea dePg. 29Holofernes depois de se ter prostitudo a ele, e em vrias outras aes desse gnero, Q parlamento, respeitando a Bblia, que relata essas histrias, condenou o jesuta que as louvava e mandou queimar o Antigo e o Novo Testamento, quero dizer, o do jesuta.Mas, como os juzos dos homens so sempre diferentes em casos assim, a mesma coisa aconteceu com Bayle num caso oposto: ele foi condenado por no ter elogiado todas as aes de Davi, rei da provncia da Judia. Um tal de Jurieu, pregador refugiado na Holanda, com outros pregadores refugiados, quiseram obrig-lo a se retratar. Mas como se retratar de fatos registrados na Escritura? Bayle no tinha acaso certa razo em pensar que nem todos os fatos relatados nos livros judeus so aes santas; que Davi cometeu, como qualquer outro, aes criminosas e que, se chamado de homem segundo o corao de Deus, em virtude da sua penitncia, e no por causa dos seus feitos?Deixemos de lado os nomes e pensemos apenas nas coisas. Suponhamos que durante o reinado de Henrique IV um cura da Santa Liga tenha derramado em segredo uma garrafa de leo na cabea de um pastor da Brie, que esse pastor v corte, que o cura o apresente a Henrique IV como um bom violinista capaz de dissipar sua melancolia, que o rei o faa seu escudeiro e lhe d unia de suas filhas em casamento; que, depois, tendo S rei se desentendido com o pastor, este busque refugio junto a um prncipe da Alemanha, inimigo do seu sogro, que arme seiscentos bandoleiros crivados de dvidas e de devassido, que corra os campos com essa canalha, degole amigos e inimigos, extermine at mesmo as mulheres e crianas de peito, para que ningum possa dar notcia dessa carnificina; suponhamos ainda que esse mesmo pastor da Brie se tome rei da Frana aps a morte de Henrique IV e mande assassinar o neto deste, depois de t-lo feito comer a sua mesa, e entregue, Pg. 30morte os outros sete netos do rei: quem no confessar que esse pastor da Brie um pouco duro?Os comentadores consideram que o adultrio de Davi e o assassinato de Urias so faltas que Deus perdoou. Podemos, portanto, considerar que os massacres acima so faltas que Deus tambm perdoou.No entanto, no se teve a menor condescendncia com, Bayle. Mas, para concluir, tendo alguns pregadores de Londres comparado Jorge II com Davi, um dos serviais desse monarca publicou um livrinho no qual se queixa da comparao. Ele examina, toda a conduta de Davi, vai infinitamente mais longe que Bayle, trata Davi com maior severidade do que Tcito trata Domiciano. Esse livro no provocou na Inglaterra o menor murmrio; todos os leitores sentiram que as ms aes sempre so ms, que Deus pode perdo-las quando a penitncia for proporcional ao crime, mas que nenhum homem deve aprov-las.Portanto h mais razo na Inglaterra do que havia na Holanda no tempo de Bayle. Sente-se hoje que no se deve apresentar como modelo de santidade o que digno do ltimo suplcio; e sabe-se que, se no se deve consagrar o crime, tampouco se deve crer no absurdo.

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