história da filosofia 10

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  • 8/14/2019 histria da filosofia 10

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    HISTRIA DA FILOSOFIADcimo volumeNicola Abbagnano

    Digitalizao e Arranjos:ngelo Miguel Abrantes(quarta-feira, 1 de Janeiro de 2003)

    HISTRIA DA FILOSOFIA

    VOLUME X

    3 Edio

    TRADUO DE:

    Armando da Silva Carvalho

    Antnio Ramos Rosa

    EDITORIAL PRESENA

    Titulo original STORIA DELLA. FILOSOFIA @ Copyright bAbbagnano Capa de F. C.

    Reservados todos os direitos para a lngua portuguesa EditPresena, Lda. Rua Augusto Gil, 35-A - 1000 LISBOA

    VIII

    KIERKEGAARD

    597. KIERKEGAARD: VIDA E OBRA

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    A obra de Kierkegaard no pode ser reduzida certamente amomento da polmica contra o idealismo romntico. No enmuitos dos seus temas constituem uma anttese polmica exdos temas desse idealismo. A defesa da singularidade do hocontra a universalidade do espirito; da existncia contra a razdas alternativas inconciliveis contra a sntese conciliadoradialctica; da liberdade como possibilidade contra a liberdade necessidade; e por fim da prpria categoria de possibilidadepontos fundamentais da filosofia kierkegaardiana que, no conjunto, constituem uma alternativa radicalmente diversa daqque o idealismo tinha apontado para a filosofia europeia. Tratno entanto, de uma alternativa que permanece relativameinoperante na filosofia de Oitocentos e que s no fim do scomeou a alcanar ressonncia primeiro no pensamento religdepois no filosfico.

    Sren Kierkegaard nasceu na Dinamarca, em Copenhaga, a 5 dde 1813. Educado por um pai j velho no clima de uma religi

    severa, inscreve-se na Faculdade de Teologia de Copenhaga,dominava, entre os jovens

    telogos, a inspirao hegeliana. Em 1840, dez anos depois dingresso na Universidade, licenciava-se com uma dissertao o conceito de ironia especialmente em Scrates, que publicavano seguinte. Mas no inicia a carreira de pastor a que fichabilitado. Em 1841-1842 foi a Berlim e ouviu as lies de Sc

    que aqui ensinava a sua filosofia positiva, baseada (como j vi565) na radical distino entre realidade e razo. Entusiasmadprincipio, com Schelling, Kierkegaard em breve se mdesiludido. A partir de ento passa a viver de um capital deipelo pai, absorvido em escrever os seus livros. Os incideexteriores da sua vida so escassos e aparentement

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    insignificantes: o noivado, que ele prprio frustrou, com ROlsen; o ataque de um jornal humorstico "0 corsrio"; a polque ocupou os ltimos anos da sua vida, contra o ambiente teode Copenhaga e especialmente contra o telogo hegelMartensen. Kierkegaard morreu a 11 de Outubro de 1855.

    Mas estes episdios tiveram, quer na sua vida interior (comotestemunha o seu Dirio), quer nas suas obras, uma profuressonncia, aparentemente desproporcionada com a sua existncia. Kierkegaard fala no Dirio de um "grande terramque em certa altura se produziu na sua vida e que o obrigou a ma sua posio perante o mundo (Tagebcher, II, A 805). vagamente se refere causa desta alterao ("Uma culpa depesar sobre toda a famlia, um castigo de Deus descera sobre por isso ela deveria desaparecer, banida como uma tentativasucedida pela poderosa mo de Deus"); e apesar dos seus bighaverem procurado, to indiscreta quanto inutilmente, descoessa culpa, ela continua a ser, mesmo em relao ao prKierkegaard, uma ameaa simultaneamente vaga e terr

    Kierkegaard fala no seu Dirio, e tambm no seu leito de mortum "um espinho cravado na carne" que ele fora destinadsuportar; e tambm neste caso, perante a ausncia de qualqdado preciso, se pode descobrir o carcter grave e obsessivoproblema. Provavelmente seria esse espinho na carne que o imde levar a bom termo o noivado com Regina Olsen, com quemdepois de alguns anos, por sua prpria iniciativa. Tambm nest

    nenhum motivo preciso, nenhuma causa determinada; apesentimento de uma ameaa obscura e incompreensvel, paralisante. No entanto, Kierkegaard no segue a carreira de panem qualquer outra; e mesmo em relao actividade de escsente perante ela uma "relao potica", uma relao longnalheia: acentuada ainda pelo facto de haver publicado os seus l

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    sob pseudnimos diversos, impedindo assim qualquer relao seu contedo e a sua prpria pessoa. Estes elementos biogrfdevem estar continuamente presentes para se compreenderposio filosfica de Kierkegaard.

    Eis as suas obras principais: O conceito de ironia (1841); Aude que faz parte o Dirio de um sedutor (1843); Temor e trem(1843); A repetio (1843); Migalhas-filosficas (1844); O code angstia (1844); Prefcio (1844); Estdios no caminho da(1845); Postilha conclusiva no cientfica (1846); O ponto desobre a minha actividade de escritor (pstumo, mas escrito1846-47); A doena mortal (1849). Kierkegaard tambm autnumerosos Discursos religiosos, e publicou em 1855 (MSetembro) o peridico "0 momento" no qual dirigiu os seus atcontra a Igreja dinamarquesa.

    598. KIERKEGAARD: A EXISTNCIA COMO POSSIBIL

    Aquilo que constitui sinal caracterstico da obra e da personali

    de Kierkegaard o facto de ele ter procurado reconduzircompreenso de toda a existncia humana categoria possibilidade e de ter evidenciado o carcter neRamente apareda possibilidade como J Kant tinha reconhecido como fundade todo o poder humano uma possibilidade real ou transcendmas Kant, que tinha apenas destacado o aspecto positivo dpossibilidade, faz dela uma efectiva capacidade humana, limsim, mas que encontra nos seus prprios limites a sua validad

    sua promessa de realizao. Kierkegaard descobre e acentua, uma energia at ento nunca alcanada, o aspecto negativo dea possibilidade que entra na construo da existncia humanaefeito, todas as possibilida-

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    des alm de serem possibilidades-de-sim so tambpossibilidades-de-no: implicam a nulidade possvel daquilopossvel, por conseguinte a ameaa do nada. Kierkegaard vescreve, sob o signo desta ameaa. Vimos j como todos os pcaractersticos da sua vida se revestiram, para ele, de umobscuridade problemtica. As relaes com a famlia, a promenoivado, a sua actividade de escritor, surgem-lhe carregadasalternativas terrveis, que acabam por paralis-lo. Ele prprio vem absoluto, a figura descrita de forma to impressionante pginas finais do conceito de angstia: a do discpulo da angdaquele que sente em si a possibilidade aniquiladora e terrlatente em qualquer alternativa da existncia. Perante qualqalternativa, Kierkegaard sente-se paralisado. Ele prprio afirm"uma cobaia de experincias da existncia" e de reunir em spontos extremos de toda a oposio. "Aquilo que eu sou umeste procura em mim e no meu gnio a satisfao de conservminha existncia no ponto zero, entre o frio e o calor, entrsabedoria e a estupidez, entre alguma coisa e o nada como

    simples talvez" (Stadien auf dem Lebensweg, trad. SchremPfleiderer, pp. 246-7). O ponto zero a indeterminapermanente, o equilbrio instvel entre as alternativas opostasse abrem a qualquer possibilidade. E este foi sem dvida o esna carne de que Kierkegaard falava: a impossibilidade de reduprpria vida a um objectivo preciso, de escolher entre alternativas opostas, de reconhecer-se e actuar numa possibilid-nica. Esta impossibilidade traduz-se, para ele, no conhecim

    de que o prprio objectivo, a unidade da prpria personalidadeprecisamente nesta condio excepcional de indeciso einstabilidade e de que o centro do seu eu est em no havercentro.

    A sua actividade literria no teve outro fim que no fosse o

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    esclarecer as possibilidades fundamentais que se oferecemhomem, os estdios ou momentos da vida que constituemalternativas da existncia, entre as quais o homem geralmenlevado a escolher, apesar de ele, Kierkegaard, no poder escoA sua actividade foi a de um contemplativo; afirmou e julgoantes de tudo, um poeta. E multiplicou a sua personalidadepseudnimos, de

    ]o

    forma a acentuar a distncia entre si e as formas de vida quedescrevendo, para que desse a entender claramente que ele prno estava empenhado em escolher entre elas. S no cristianKierkegaard vislumbra uma ncora de salvao: na medida emcristianismo lhe parecia encarnar a mesma doutrina da existque a seus olhos surgia como nica verdadeira e ao mesmo toferecer, com a ajuda sobrenatural da f, um modo de se subtao peso de uma escolha demasiado penosa.

    Por seu lado a filosofia hegeliana , para Kierkegaard, a antteponto de vista sobre a existncia por ele vivido, e uma antilusria. As alternativas possveis da existncia no se deireunir e conciliar na continuidade de um nico processo dialNeste, a oposio das prprias alternativas apenas aparenporque a verdadeira e nica realidade a unidade da razo coprpria. Mas o homem singular, concretamente existenteabsorvido e dissolvido pela razo. Perante isto, Kierkegaard di

    que "A verdade, afirma ele (Tagebcher, 1, A 75), s verdquando uma verdade para mim". A verdade no o objecpensamento, mas o processo pelo qual ele se apropria dela, faza sua e vivendo-a: a apropriao da verdade a verdade. reflobjectiva, prpria da filosofia de Hegel,_Rirkegg4r ntraar fixa aoa existncia: a re exo

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    **-o. subject.ivg,-jig- a @@_que.o homem singst"Lrectamente envolvido qqqRIQ_@@@ destino en&Q @,obj@ctiva_.e desinteressada, mas apaixonada e paradHegel fez do hornem um gnero animal, uma vez que s nos ganimais o gnero superior ao singular. Mas o gnero humancomo caracterstica o facto de o indivduo ser superior ao gn(Ib., X, A, 426). isto, segundo Kierkegaard, o que nos efundamentalmente o cristianismo; o ponto em que se deve ta batalha contra a filosofia hegeliana e em geral contra todfilosofia que se baseie na reflexo objectiva. Kierkegaconsidera como aspecto essencial do objectivo a que se propinsero da pessoa singular, com todas as suas exigncias, no da investigao filosfica. No sem razo que ele teria mangravar no seu tmulo esta nica inscrio: "Um individuo" (Ib.

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    599. KIERKEGAARD: ESTDIOS DA EXISTNCIA

    O primeiro livro de Kierkegaard intitula-se significativamenteOu... Trata-se de uma recolha de escritos com pseudnimos eapresentam a alternativa de dois estdios fundamentais da vidvida esttica e a vida moral. O prprio titulo indica j como dois estdios no so dois graus de um desenvolvimento nicpasse de um ao outro e os concilie. Entre um estdio e o oexiste um abismo e um salto. Cada um deles forma uma vida

    que, pelas suas oposies internas, se apresenta ao homem cuma alternativa que exclui a outra.

    O estdio esttico a forma de vida que existe no tomo, furtivirrepetvel. O esteta aquele que vive poeticamente, que vivimaginao e de reflexo. dotado da sensibilidade delicad

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    lhe permite descobrir na vida o que ela tem de interessante e stratar os casos vividos como se fossem obra da imaginao poAssim o esteta forja um mundo luminoso, donde est ausente tque a vida tem de banal, insignificante e mesquinho; e viveestado de embriagus intelectual contnua. A vida esttica excrepetio, que implica a monotonia e exclui o interessantefactos mais prometedores. A vida esttica concretamenrepresentada por Kierkegaard na figura de Joo, o protagonistaDirio de um sedutor, que sabe colocar o seu prazer, no na bdesenfreada e indiscriminada do gozo, mas na limitao intensidade da satisfao. Mas a vida esttica revela a sinsuficincia e a sua misria no aborrecimento. Todo o queesteticamente um desesperado, tenha ou no conscincia disdesespero o ltimo termo da concepo esttica da v(Entweder-Oder, trad. Hirsch, 11, p. 206). o desejo de umadiferente que se projecta como uma outra alternativa possvel. para alcanar essa alternativa, o esteta precisa de se lanar desespero, optando por ele e entregando-se a ele com todempenho, para romper o invlucro da pura esteticidade e alca

    num salto, a outra alternativa possvel, a vida tica. "Escportanto o desespero, diz Kierkegaard; o prprio desespero escolha, pois pode duvidar-se sem se optar pela dvida, mas npode desesperar sem que haja uma

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    escolha. Quem desespera, escolhe de novo e escolhe-se a si pr

    no na sua imediatidade, como indivduo acidental, mas escolhsi prprio dentro da prpria validade eterna" (Ib., p. 224). A tica nasce portanto com esta escolha. Ela implica uma estabile uma continuidade que a vida esttica, como incessante busvariedade, exclui por si. A vida tica o domnio da reafirmasi, do dever e da fidelidade a si prprio: o domnio da liberdade

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    qual o homem se forma ou se afirma por si. "0 elemento esttaquele para o qual o homem imediatamente aquilo queelemento tico aquele para o qual o homem se transforma ntransforma" (Ib., p. 190). Na vida tica, o homem singular suse a uma forma, adequa-se ao universal e renuncia a ser excepTal como a vida esttica incarnada pelo sedutor, a vida tiincarnada pelo marido. O matrimnio a expresso tpiceticidade, segundo Kierkegaard: um objectivo que pode ser ca todos. Enquanto que na concepo esttica do amor, duas peexcepcionais s podem ser felizes por fora da suexcepcionalidade, na concepo tica do matrimnio todoesposos podem ser felizes. Alm disso, a pessoa tica vive dtrabalho. O seu trabalho tambm a sua vocao porque trabcom prazer: o trabalho pe-na em relao com outras pessoas, ao realizar a sua tarefa realiza tudo aquilo que pode desejarmundo (Ib., p. 312).

    A caracterstica da vida tica, neste sentido, a escolha quhomem faz de si prprio. A escolha de si prprio uma es

    absoluta porque no se trata da escolha de uma qualqdeterminao finita mas a escolha da liberdade: ou seja, o fundprpria escolha (Ib., p. 228). Uma vez efectuada esta escolhindivduo descobre em si uma riqueza infinita, descobre que eem si uma histria onde reconhece a identidade consigo prEsta histria inclui as suas relaes com os outros, mesmomomentos em que o indivduo parece isolar-se mais, penetmais profundamente na raiz que o une a toda a humanidade. Pe

    escolha, o indivduo no poder renunciar a nada da sua hisnem mesmo aos aspectos mais dolorosos e cruis; e ao reconhse nesses aspectos, arrepende-se. O arrependimento a ltipalavra da escolha tica, e faz com que

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    essa mesma escolha parea insuficiente, entrando no domreligioso. "0 arrependimento do indivduo, afirma Kierkegenvolve o indivduo, a famlia, o gnero humano, at se enccom Deus. S com esta condio ele poder escolher-se a si pre tal condio para ele a nica indispensvel porque s atrdela se pode escolher a si prprio num sentido absoluto" (Ib230). A escolha absoluta portanto arrependimentreconhecimento da prpria culpa, da culpa de tudo aquilo de qsente herdeiro. "Mas esse encontrar-se a si prprio no algontimo, deve verificar-se fora do indivduo, deve ser conquistao arrependimento o seu amor porque o escolhe, de foabsoluta, pela mo de Deus" Ob., p. 230). esta a jogada finvida tica, a jogada que, pela sua prpria estrutura, tendealcanar a vida religiosa.

    No entanto no existe continuidade entre a vida tica e a vreligiosa. Entre elas existe igualmente um abismo ainda profundo, uma oposio ainda mais radical do que a existente

    a esttica e a tica. Kierkegaard esclarece esta oposio em Tee Tremor, concretizando a vida religiosa na pessoa de AbrTendo vivido at aos setenta anos no respeito pela lei moral, Abrecebe-de Deus ordem para matar o filho Isaac, infringindo asslei que at ento o tinha governado. O significado da figurAbrao reside no facto de o sacrifcio do filho lhe ser sugeridopor uma qualquer exigncia moral (corno acontece, por execom o cnsul Brutus) mas por um puro comando divino que

    contraste com a lei moral e com o afecto natural e no encoqualquer justificao, mesmo perante os familiares de Abraooutras palavras, a afirmao do principio religioso suspinteiramente a aco do princpio moral. Entre os dois princpiexiste possibilidade de conciliao ou de sntese. A sua oposiradical. Mas se assim, a escolha entre os dois princpios no

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    ser facilitada por nenhuma considerao geral, nem decididabase em qualquer regra. O homem que tem f como Abrao opelo principio religioso, seguir a ordem divina, ainda que cuuma ruptura total com a generalidade dos homens e com a nmoral. Mas a f no um princpio geral; uma relao prentre o ho-

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    mem e Deus, uma relao absoluta com o absoluto. Estamdomnio da solido: nele no se entra "acompanhado", no sevozes humanas e no se distinguem regras. Dai o carcter inceperigoso da vida religiosa. Como pode o homem estar certo deexcepo justificada? Como pode saber que ele o eleito, aququem Deus encarregou de uma tarefa excepcional, que exi justifica a suspenso da tica? Existe apenas um sinal indirecfora angustiante com que se apresenta esta pergunta ao homque foi verdadeiramente eleito por Deus. A angstia da incertea nica segurana possvel. A f por isso a certeza angustian

    angstia que se torna certa de si e de uma relao oculta com DO homem pode implorar a Deus que lhe conceda a f; mpossibilidade de implorar no ela prpria um dom divino?existncia, na f, de uma contradio no eliminvel. A paradoxo e escndalo. Cristo o sinal desse paradoxo: aquelsofre e morre como homem, apesar de falar e agir como Deuaquele que e deve ser reconhecido como Deus, ainda que somorra como um msero homem. O homem colocado pera

    dilema: crer ou no crer. Por um lado, ele quem deve escolheoutro, toda a iniciativa fica excluda porque Deus tudo e deriva tambm a f. A vida religiosa encontra-se nas malhas dcontradio inexplicvel.

    Mas esta contradio tambm a da existncia huma

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    Kierkegaard v deste modo revelada, atravs do cristianismprpria substncia da existncia. Paradoxo, escndalo, contradnecessidade e ao mesmo tempo impossibilidade de decidir, dangstia, so as caractersticas da existncia e so ao mestempo os factores essenciais do cristianismo. Um cristianistodavia, de que Kierkegaard se apercebe (nos ltimos anos dvida) ser bastante diferente do cristianismo das religies ofici"Estou na posse de um livro, escreve ele, que neste pais se pconsiderar desconhecido e cujo ttulo no posso deixar de enun"0 Novo Testamento de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristopolmica contra o pacifico e acomodado cristianismo da Igdinamarquesa, polmica onde Kierkegaard declarou descterreiro, mais pela sinceridade e honestidade do que pcristianismo, demonstra como, na verdade,

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    ele defendeu no cristianismo o significado da existncia que reconhecido e feito seu. Mas este significado, ainda que

    encontre expresso e, por assim dizer, incarnado historicamentcristianismo, no est limitado ao domnio religioso mas ligtodas as formas ou estdios da existncia. A religio integra-o,no o monopoliza: a vida esttica e a vida tica incluemigualmente, como se viu. E as obras mais significativaKierkegaard so as que o tratam de forma directa e o fixam nosignificado humano.

    600. KIERKEGAARD: O SENTIMENTO DO POSSVANGSTIA

    Kierkegaard comeou por pretender delinear os estdfundamentais da vida, apresentando-os como alternativas quexcluem e como situaes dominadas por irremediveis contr

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    internos. O aprofundamento da sua investigao leva-o ao pprincipal em que se enrazam as prprias alternativas da vidaseus contrastes: a existncia como possibilidade. Kierkegenfrenta directamente, nas suas duas obras fundamentais,Conceito de angstia e A doena mortal, a situao de radincerteza, de instabilidade e de dvida, em que o homemencontra constitucionalmente, pela natureza problemtica do mde ser que lhe prprio. No conceito de angstia esta situaesclarecida nos confrontos das relaes do homem com o munDoena mortal, nos confrontos das relaes do homem conprprio, ou seja nas relaes constitutivas do eu.

    A angstia a condio gerada no homem pelo possvel constitui. Est estreitamente ligada ao pecado e na base do prpecado original. A inocncia de Ado ignorncia; mas ignorncia que contm um elemento que determinar a quedaelemento no nem calma nem repouso; mas tambm nperturbao ou luta, porque nada existe contra que lutar. apum nada; mas mesmo este nada gerador de angs

    Diferentemente do temor e de outros estados anlogos quereferem sempre a algo de determinado, a angstia no se refernada de preciso. Ela

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    o puro sentimento da possibilidade. "A proibio divina, aKierkegaard, torna Ado inquieto porque desperta nele

    possibilidade da liberdade. Aquilo que se oferecia inocnciao nada da angstia, penetra agora dentro dele, mas permaneceainda um nada: a angustiante possibilidade de poder. Em requilo que pode, Ado no tem ideia alguma, pois de outra seria um pressuposto tudo o que iria seguir-se, ou seja, a difereentre o bem e o mal. Em Ado apenas existe a possibilidad

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    poder, uma forma superior de ignorncia, uma expresso supde angstia, uma vez que neste grau mais elevado ela e noAdo ama-a e furta-se a ela". Na ignorncia daquilo que podepossui o seu poder na forma de pura possibilidade; e a experivivida desta possibilidade a angstia. A angstia no necessidade nem liberdade abstracta, livre-arbtrio; liberdafinita, limitada e manietada e deste modo se identifica comsentimento da possibilidade.

    A conexo da angstia com o possvel revela-se na conexpossvel como o futuro. O possvel corresponde completamefuturo. "Para a liberdade, o possvel o futuro, para o tempfuturo o possvel. E assim tanto a um como ao outro, correspna vida individual, a angstia". O passado s pode causar angmedida em que se representa como futuro, ou seja, copossibilidade de repetio. Deste modo, uma culpa passadanascer a angstia, mas s no caso de no ser verdadeiramepassada, pois se assim fosse poderia fazer nascer arrependimento,; no a angstia. A angstia est ligada quil

    no mas poderia ser, ao nada que possvel ou possibilidadorigina o nada. Est intimamente ligada condio humanahomem fosse um anjo ou um ser bruto, no conheceria a angcom efeito, ela desaparece ou diminui nos estdios que degradlevam bestialidade, e na espiritualidade atravs da qual o hose sente extremamente feliz e privado de esprito. Mas tambnestes estdios a angstia est sempre pronta a surgir: exisoculta e dissimulada, mas sempre pronta a retomar o seu dom

    sobre o homem. " provvel que um devedor consiga libertarseu credor e apazigu-lo com palavras, mas existe um credo jamais se deixa enganar, esse credor o espirito". Com

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    efeito, a espiritualidade a reflexo do homem sobre si prpsobre a sua prpria condio humana, sobre a impossibilidaadequar-se a uma vida puramente bestial. A conscincia da moparte essencial da espiritualidade. "Quando a morte se apresecom a sua face descarnada e truculenta, no h ningum que considere com receio. Mas quando ela, para se divertir comhomens que se gabam de se divertirem sua custa, avacamuflada, quando s a nossa meditao consegue desvendasob os despojos de certa desconhecida, cuja doura nos encancuja alegria fulgura no mpeto selvagem do prazer, existe a moento somos tomados por um terror sem limites".

    As pginas conclusivas do Conceito de angstia exprimem, dpoderosamente autobiogrfico, a natureza da angstia cosentimento do possvel. A palavra mais terrvel que foi pronunpor Cristo no a que impressionava Lutero: Meu Deus porqabandonaste? mas a outra, referindo-se a Judas: Aquilo que tefazer f-lo depressa! A primeira palavra exprime o sofrimentoque estava a acontecer, a segunda a angstia por aquilo que p

    acontecer; e s nesta ltima se revela verdadeiramente humanidade de Cristo; porque humanidade significa angspobreza espiritual subtrai o homem angstia; mas o homem qsubtrai angstia escravo de todas as circunstncias quimpelem de um lado para o outro, sem parar. A angstia aterrvel de todas as categorias.

    Kierkegaard liga intimamente a angstia ao principio de infin

    ou de omnipotncia do possvel; principio que ele exprimefrequentemente, afirmando: "No possvel tudo possvel." Segeste principio, toda a possibilidade favorvel ao homem destpelo infinito nmero de possibilidades desfavorveis. " Geralmafirma Kierkegaard, diz-se que a possibilidade coisa-ligporque entendida como possibilidade de felicidade, de fort

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    etc. Mas tal no verdadeiramente possibilidade; uma invefalaz que os homens, com a sua corrupo, embelezam para tum pretexto de se lamentarem da vida e da providncia e de teocasio de se tornarem importantes a seus prprios olhos. Npossibilidade tudo igualmente possvel e aquele que foi realmeducado pela possibili-

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    dade compreendeu tanto o lado terrvel como o lado agradvmesma. Quando se frequenta a sua escola sabe-se, melhor qcriana que aprende as suas lies, que da vida no se ppretender nada e que o lado terrvel, a perdio, o aniquilamhabitam paredes meias com cada um de ns; e quando se aprenfundo que qualquer das angstias que receamos pode tombar ns, de um instante para o outro, ento somos obrigados a drealidade uma outra explicao: somos obrigados a louvrealidade ainda que ela se erga sobre ns como mo pesadarecordar que ela de longe mais fcil que a prpria possibili

    (Der Begriff Angst, V). a infinitude ou indeterminaopossibilidade que torna insupervel a angstia e faz dela a situfundamental do homem no mundo. "Quando a sagacidade fezos seus inumerveis clculos, quando os dados esto lanados,surge a angstia, ainda antes do jogo se considerar ganhoperdido na realidade; porque a angstia faz uma cruz em frentdiabo, este j no pode avanar e a mais astuta das combinadesaparece como um brinquedo, perante esse caso criado

    angstia atravs da omnipotncia da possibilidade" (Ib., V). Ea omnipotncia da possibilidade liberta-se dessa sagacidade qmove entre as coisas finitas e vai ensinando o indivduo "a encdescanso na providncia". Do mesmo modo, faz surgir o sentide culpa que no pode ser apreciado atravs da finitude: "Sehomem culpado, infinitamente culpado" (Ib., V).

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    601. KIERKEGAARD: O POSSVEL COMO ESTRUTURADESESPERO

    A angstia a condio em que o homem colocado pelo pque se refere ao mundo; o desespero a condio em que o ho colocado pelo possvel que se refere sua prpria interioridao seu eu. A possibilidade que provoca a angstia inerensituao do homem no mundo: a possibilidade dos factoscircunstncias, dos laos, que ligam o homem ao mundo. O de inerente personalidade do homem, relao do eu conprprio e

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    possibilidade desta relao. Desespero e angstia esto, conseguinte, intimamente ligados, mas no so idnticos: ambtodavia baseados na estrutura problemtica da existncia.

    "0 eu, afirma Kierkegaard, uma relao que se relaciona coprpria; na relao, o sentido interno dessa mesma relao. no relao, o regresso da relao a si prpria". Por issdesespero est intimamente ligado natureza do eu. Com efeieu pode querer, como pode no querer ser ele prprio. Se queele prprio, uma vez que finito, portanto insuficiente a si pr jamais alcanar o equilbrio e o repouso. Se no quer seprprio, procura ento quebrar a relao que tem consigo, q

    constitutiva e debate-se igualmente com uma impossibilifundamental. O desespero caracterstica quer de uma queroutra alternativas. Ele portanto a doena mortal, no porconduza morte do eu mas porque consiste no viver da morteeu: a tentativa impossvel para negar a possibilidade do eu, tornando-o auto-suficiente quer destruindo-o na sua natur

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    concreta. As duas formas de desespero apelam uma para a ouidentificam-se: desesperar de si, no sentido de querer desfazerde si, significa querer ser o eu que no se na verdade; querero prprio a todo o custo significa ainda querer ser o eu que noverdadeiramente, um eu auto-suficiente e completo. Num e nocaso, o desespero a impossibilidade da tentativa.

    Por outro lado, o eu, segundo Kierkegaard, "a sntesenecessidade e da liberdade" e o desespero nasce dele ou deficincia da necessidade ou da deficincia da liberdadedeficincia da necessidade a fuga do eu para possibilidades qmultiplicam indefinidamente e que jamais se materializamindivduo passa a ser "uma miragem". Por fim, diz Kierkegacomo se tudo fosse possvel, e precisamente este o momentque o abismo devora o eu" (Die Krankheit zum Tode, I, C, Adesespero aquilo a que hoje chamamos "evaso", ou seja, o rem possibilidades fantsticas, ilimitadas, que no tomam fonem se radicam em nada. "Na possibilidade tudo possvel. Pa possibilidade se pode subdividir em todos os modos possvei

    essencialmente em dois. Uma destas for-20

    mas a do desejo, da aspirao, a outra a melanclico-fant(a esperana, o temor ou angstia)" (Ib., 1, C, A, b). O desespportanto devido deficincia do possvel. Neste caso,possibilidade a nica coisa que salva. Quando algum de

    pede-se gua, gua de Colnia, gotas de Hoffmann; mas qualgum quer desesperar-se ento haver que pedir: "Descobripossibilidade, descobri-lhe uma possibilidade. A possibilidadnico remdio; dai-lhe uma possibilidade e o desesperado retorespirao, reanima-se, porque o homem que permanece possibilidade como se lhe faltasse o ar. s vezes a inven

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    fantasia humana pode bastar para que se descubra umpossibilidade; mas no fim, quando se trata de acreditar, seapenas isto: "que a Deus tudo possvel" (Ib.).

    Precisamente porque a Deus tudo possvel, o crente possantdoto seguro contra o desespero: "o facto da vontade de Dser possvel, faz com que eu possa rezar, mas se ela fonecessria, o homem seria essencialmente mudo como o an(Ib.).

    Como oposto da f, o desespero o pecado: por isso o opospecado a f, e no a virtude. A f consiste na eliminao totdesespero, a condio em que o homem, ainda que orientanpara dentro de si prprio, deixa de iludir-se sobre a sua ausuficincia para reconhecer a sua dependncia em relao a DNeste caso, a vontade de se ser o prprio no colide comimpossibilidade da auto-suficincia que determina o desespporque uma vontade que se socorre do poder em cujas mprprio homem se colocou, o poder de Deus. A f substi

    desespero pela esperana e pela crena em Deus. Transporthomem para l da razo e de qualquer possibilidade compreenso: ela o absurdo, o paradoxo, o escndalo. Qrealidade do homem seja a do indivduo isolado perante Deutodo o indivduo como tal, quer seja um poderoso da terra queescravo, exista na presena de Deus, - este o escndafundamental do cristianismo, escndalo que nenhuma especupoder destruir ou diminuir. Todas as categorias do pensam

    religioso so impensveis. Impensvel transcendncia de Dque implica uma distncia entre Deus e o homem e assim equalquer familiaridade entre

    21

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    Deus e o homem, mesmo no acto da sua relao mais inImpensvel o pecado na sua natureza concreta, como existdo indivduo que peca. A f cr, no obstante, em tudo, e astodos os riscos. A f, para Kierkegaard, o inverso paradoxaexistncia; perante a radical instabilidade da existncia constitupelo possvel, a f liga-se estabilidade do princpio de topossibilidade, a Deus- no qual tudo possvel. Deste modo, a f apenas se subtrameaa da possibilidade, transformando a negao implcita ameaa numa afirmao de crena.

    602. KIERKEGAARD: A NOO DE "POSSVEL"

    As caractersticas que Kierkegaard reconheceu como prpriaexistncia humana no mundo, a angstia e o desespero, derivprpria estrutura de possibilidade que a constituem. Nas obrasque Kierkegaard descreveu dramaticamente essas caracterstice que so as mais famosas, no existe no entanto uma anlisnoo do possvel. Essa anlise feita por Kierkegaard no

    trabalho Migalhas de filosofia de 1844, ainda que, como veremesclarecimentos que vem aduzindo nem sempre sejam coerecom o uso que Kierkegaard fez da noo do possvel no Concangstia e na Doena mortal. No Entremez daquele escrito Kierkegaard observa correctamente que o erro de Aristtequando trata do possvel (De interpretatione, 13, cfr. 85) foi oconsiderar o prprio necessrio como possvel; e uma vez possvel pode no ser e o necessrio no pode no ser, Arist

    foi levado a admitir, alm do possvel "mutvel", que pode num possvel imutvel que significa simplesmente "no impoKierkegaard observa que Aristteles deveria ter simplesmenegado que o possvel possa incluir-se no necessrio ou qnecessrio se inclua no possvel. Portanto, tambm a tese de Hque afirma que a necessidade a sntese do possvel e do re

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    segundo Kierkegaard, fruto de uma confuso. Se o possvel e odiz ele, formassem na sua sntese o necessrio, passariamconstituir uma essncia absolutamente diferente e, tornandotal, excluiriam o devir

    22

    (o necessrio). Se os conceitos de possvel e de necessriomantm individualizados porque, segundo Kierkegaar"necessrio no devm" e o "devir no nunca necessrio"efeito, o necessrio no pode mudar porque se refere sempre prprio e sempre do mesmo modo. O necessrio por definNada dele pode ser destrudo, ao passo que o devir sempre destruio parcial, no sentido em que o possvel que ele prprojecta (no s o que excludo, como tambm o qurecuperado) destrudo pela realidade que lhe d origem.

    Estas consideraes esto presentes na anlise de Kierkegasobre o conceito de histria. Mas nos seus dois trabalhos qu

    examinmos, o uso que Kierkegaard faz da noo de possvest perfeitamente coerente com ela. Na Doena mortal recorcomo exemplo, definio da realidade como "unidadpossibilidade e da necessidade": uma definio que combinacategorias que, segundo As Migalhas, devem manter-se separAlm disso, em ambas as obras se afirma a infinitude do possvsentido em que se admite que as possibilidades so "infinitaspor outras palavras, "a omnipotncia da possibilidade". Com e

    angstia nasce do nmero infinito das possibilidades e daradical negatividade; e o desespero nasce do excesso oudeficincia de possibilidades do eu. Esta infinitude do posatribuda ao homem, esta "omnipotncia" do possvel pareceentanto contrastar com a finitude que Kierkegaard reconhece prpria do homem. Provavelmente Kierkegaard pretende afi

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    que todas (ou quase todas as possibilidades humanas edestinadas ao fracasso, a no ser que estejam apoiadas possibilidade de Deus ou garantidas por ela. Mas, em primeirouma possibilidade destinada ao fracasso no possibilidade, no uma possibilidade a que se destina ao sucesso. A formpossibilidade a da alternativa, do Ou... Ou..., em que tanto inKierkegaard. Se para o homem as possibilidades no tm forma, ento o homem no vive na possibilidade mas na necesna necessidade do fracasso. E se vive na necessidade, nem mDeus pode salv-lo a no ser alterando a natureza e fazendo-o a si: uma vez que o necessrio aquilo que no pode ser difedo

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    que . Por outro lado, que "a Deus tudo possvel" significa istmais desastrosa ou desesperada que seja a situao em quhomem se encontre, Deus pode encontrar para ele, para ehomem singular, uma possibilidade que lhe d nimo e o salv

    Deus pode fazer isto porque tem sua disposio infinpossibilidades. Se o homem se encontrasse na mesma situateria, obviamente, necessidade de Deus.

    A doutrina da infinitude e da omnipotncia do possvel deKierkegaard se serviu no Conceito de angstia e na Doena mno , portanto, muito coerente com a noo de possvel Kierkegaard tinha estabelecido nas Migalhas da filosofia e

    considerar-se como uma espcie de contaminao conceptual esta doutrina e a noo romntica do infinito.

    603. KIERKEGAARD: O INSTANTE E A HISTRIA

    Como se disse, as Migalhas da filosofia contm a n

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    kierkegaardiana de histria. Como domnio da realidade que da histria , segundo Kierkegaard, o domnio do possvel.

    O devir pode incluir em si uma duplicao, ou seja, uma possibde devir no interior do prprio devir: este segundo devirpropriamente o lugar da histria. Verifica-se em virtude de uliberdade de aco relativa, que por sua vez se liga a uma cdotada de liberdade de aco absoluta. Na histria, o passadno tem necessidade do futuro. Se o passado, pelo facto deencontrar realizado, se tornasse necessrio, o prprio futuro senecessrio quanto sua realizao posterior. Querer predizefuturo (profetizar) e querer entender a necessidade do passaso uma e a mesma coisa; e apenas uma questo de moda ode uma gerao achar mais plausvel um que outro. O passadonecessrio no momento em que devm; no se torna necessdevindo (isto seria contraditrio) e ainda menos se torna no actser compreendido e interpretado. Se se tornasse necessrio acto de ser compreendido, ganharia aquilo que a sua compreperdia, uma vez que esta en-

    24

    tenderia coisa diferente daquilo que o passado , e seria umacompreenso. Se o objecto entendido se transforma comentendimento, este ltimo transforma-se em erro. A concluso que a possibilidade, pela qual o possvel se torna realidacompanha sempre o prprio real e mantm-se ao lado do pas

    mesmo que, entretanto, tenham decorrido milnios. Portantrealidade do passado no mais que a sua prpria possibilidad

    Daqui deriva que o meio de conhecimento da histria a fpercepo imediata no pode enganar e no est sujeita dvmas o seu objecto sempre o que devm, no o devir,

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    conseguinte o presente, no a histria, que passado. A histexige um meio que seja conforme sua natureza que incluidupla incerteza, enquanto o nada do no ser ou a destruipossibilidade que se realizou, e ao mesmo tempo a destruitodas as outras possibilidades que foram excludas. Esta porta natureza da f, uma vez que a certeza da f implica semprabolio de uma incerteza anloga do devir. A f cr naquilno v; no cr que a estrela exista, porque a estrela v-se, masque essa mesma estrela tenha sido criada. O mesmo acontecequalquer outro acontecimento. Aquilo que aconteceuimediatamente cognoscvel, mas no cognoscvel imediatamacto de acontecer. A duplicidade dos factos acontecidos consno terem acontecido e em serem o lugar de passagem do nada possibilidade mltipla. A percepo e o conhecimento imignoram a incerteza com que a f se dirige ao seu objecto, ignoram tambm a certeza que surge dessa incerteza. Kierkegconclui que a f uma deciso e que por isso exclui a dvidadvida no so dois gneros de conhecimento, entre os quais econtinuidade, so antes duas paixes contrrias. A f

    significado do devir, a dvida o protesto contra uma concluspretende ultrapassar o conhecimento imediato.

    Segundo este ponto de vista, no de forma alguma uma teofarevelao e auto-revelao de Deus. A relao entre o homeDeus verifica-se no na histria, na continuidade do devir hummas antes no instante, entendido como sbita insero da verdivina no homem. Neste sentido, o cristianismo parado

    escndalo. Se a relao25

    entre o homem e Deus se verifica no instante, isso quer dizer qhomem, por sua conta, vive na no-verdade; e o conhecimento

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    condio o pecado. Kierkegaard contrape o cristianismo entendido ao socratismo, segundo o qual o homem, pelo convive na verdade e o problema consiste apenas em torn-la expem arrast-la para fora, maieuticamente. O mestre, para socratismo, uma simples ocasio para o processo maiuticovez que a verdade habita, desde o incio, no prprio discpuloisso Scrates refutava a ideia de ser chamado mestre e declaraque nada ensinava. Mas, segundo o ponto de vista cristo, umque o homem a no-verdade, trata-se de recriar o homemfaz-lo renascer, para o tornar adaptado verdade que lhe vemfora. Por isso o mestre um salvador, um redentor, aquele determina o nascimento de um homem novo, capaz de captinstante a verdade de Deus.

    A relao instantnea entre o homem e e Deus, na qual a iniciatoda divina, porque o homem a no-verdade, exclui a hiptehomem poder, com as suas foras, elevar-se at Dedemonstrando a sua existncia. "Se Deus no existe - afirKierkegaard - demonstr-lo absolutamente impossvel; m

    existe ser tambm empresa insensata. No instante em que a pcomea, j eu pressupus a sua existncia; e no como algo qponha em dvida, pois um pressuposto no pode ser tal, masalgo que est fora de questo, seno no teria empreendido a pcompreendendo a impossibilidade". Desde que se permanecampo dos factos sensveis e palpveis ou no das ideias, nenconcluso poder alcanar a existncia, mas s a partir dai. Nprova, por exemplo, a existncia de uma pedra, prova-se apena

    esta coisa existente uma pedra; o tribunal no prova a existde um criminoso mas prova que o acusado, que certamente exium criminoso. Se se quisesse alcanar Deus atravs dos seus concretos, ou seja, atravs daquilo que imediatamente se

    percebe na natureza e na histria, permanecer-se-ia sempre

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    suspenso no receio de que acontecesse qualquer coisa de terrvel que lanasse pelos ares todas as provas. Mas se tal nverifica, isso deve-se ao facto de no se considera-

    26

    rem as coisas imediatamente presentes, mas determinadconceitos das mesmas. E em tal caso a prova no parte dos aconcretos, apenas desenvolve um idealismo, que pressupbaseados na confiana em tal, podemos pretender ento desafiaobjeces futuras. Mas isto no uma prova, apenasdesenvolvimento de um pressuposto idealista.

    Deus permanece sempre para l de qualquer possvel pontchegada da investigao humana. A sua nica definio posegundo Kierkegaard, aquela que o assinala como difeabsoluta,- mas uma definio aparente, porque uma diferabsoluta no pode ser pensada, e portanto essa diferena absono significa seno que o homem no Deus, que o homem

    verdade, o pecado. E neste caso a investigao sobre Deusavanou um passo.

    O instante portanto a insero paradoxal e incompreensveeternidade no tempo, e realiza o paradoxo do cristianismo, quvinda de Deus ao mundo. S neste sentido o cristianismo podconsiderado um facto histrico; e se qualquer facto histricoapelo f, este particular facto histrico implica uma f segu

    potncia porque exige uma deciso que supere a contradimplcita na eternidade que se faz tempo, na divindade que sehomem. Mas este facto histrico no tem testemunhprivilegiados, uma vez que a sua historicidade se representainstante, sempre que o homem singular recebe o dom daKierkegaard afirma a este propsito que no existe nenhu

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    diferena entre o "discpulo em primeira mo", e o "discpusegunda mo" de Cristo. O homem que vive muitos sculos devinda de Cristo, cr na afirmao dos contemporneos de Capenas em virtude de uma condio que ele prprio dedirectamente de Deus. Por conseguinte, para ele verificaoriginalmente a vinda de Deus ao mundo, e isso acontece por vda f. A divindade de Cristo no era mais evidente partestemunha imediata, para o contemporneo de Jesus, do que qualquer cristo que tenha recebido a f. Em qualquer caso, revelao s pode acontecer no instante, e pressupe um meio a f, e um dado necessrio, a conscincia do pecado. Pressupe

    27

    bm um conceito de mestre diferente do do socratismo: Deutempo.

    604. KIERKEGAARD: BALANO DA OBRA KIERKEGA

    A filosofia de Kierkegaard , na sua complexidade, uma apoloreligiosa e precisamente a tentativa para basear a validade religio na estrutura da existncia humana como tal. Tratatodavia de uma apologtica bastante distante da racionalizavida religiosa que tinha sido feita por Hegel e que, depois de Hse havia tornado o principal objectivo da direita hegelianareligio no , para Kierkegaard, uma viso racional do mundotranscrio emotiva ou fantasia de tal viso; apenas a via d

    salvao, o nico modo de o homem se furtar angstiadesespero e ao fracasso, mediante a instaurao de uma relaimediata com Deus. O regresso a Kierkegaard na filoscontempornea foi iniciado pelo chamado "renascimkierkegaardiano" que tem em vista precisamente este aspectofilosofia de Kierkegaard.

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    Por outro lado, Kierkegaard ofereceu investigao filosinstrumentos que se revelaram eficazes; como seja, os conceitopossibilidade, de escolha, de alternativa, e de existncia como de ser prprio do homem; e insistiu naquele aspecto da filospelo qual ela no tanto um saber objectivo, mas antesprojectar-se total da existncia humana e por conseguintecompromisso de tal projeco. Esta dimenso foi posteriormassumida por todas as correntes do existencialismo contempor

    A categoria de "singular", na qual Kierkegaard tanto insistitoda a sua obra, constitui um dos seus outros contributos parproblemtica do pensamento moderno. Em primeiro lugar, o scontrape-se universalidade impessoal do Eu de FichteAbsoluto de Schelling e da Ideia de Hegel e exprimeirredutibilidade do homem, da sua natureza, dos seus interessda sua liberdade a qualquer entidade infinita, imanente transcendente, que o pretenda absorver. Em segundo lugasingular contrape-se "massa", ao "pblico", "multi

    enquanto entidade28

    diferenciada e individualizada, que tem um valor em si, no red da unidade indiferenciada do nmero. Neste sentido, Kierkegcontrape a comunidade, na qual o singular , multido emsingular um nada. "A multido, afirma Kierkegaard, um

    senso, um conjunto de unidades negativas, de unidades que nunidades, que so unidades em razo do conjunto, quando o codeveria ser e tornar-se conjunto em razo da unidad(Tagebcher, X, A 390). Nestes dois contextos a categoria singular serve a Kierkegaard para enfrentar problemas passaram a ser, distncia de um sculo, ainda mais urgente

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    principalmente o da salvaguarda do indivduo contra o confore a demisso na mentalidade das " massas". Mas a mesma catdo singular surge tambm em Kierkegaard oposta a "povo" geral aos ideais igualitrios e democrticos que comeavam a nas revolues e nos movimentos de h um sculo; e utilizaddefender a fora e os privilgios do estado e uma espciegoverno de "sacerdotes cristos" no muito bem identificados eine was not tut (1847-487, trad. Ulrich, in Zeitwende, 1, psgs.). Neste aspecto, a categoria do singular serve a Kierkegapara a defesa de posies politicamente conservadoras. Finalmessa categoria tem um significado sobretudo religioso. Kierkegno ignora certamente que do "singular" fazem parte as relacom os outros e com o mundo que definem a esfera do"objectivo" ou do seu trabalho; mas o que lhe interessa a sodo indivduo perante Deus. A prpria definio que d do eseja, da personalidade humana): uma relao que se relacconsigo prpria e que surge na Doena mortal, parece encerindivduo na sua intimidade privada. Por isso as relaes cooutros e as relaes de trabalho em Kierkegaard esto limitada

    estdio da tica que, no entanto, sempre um estdio provisrexistncia; no estdio religioso, que o definitivo, o indivencontra-se isolado perante Deus. "Como singular, afiKierkegaard, o homem est s: s em todo o mundo, s na prede Deus" (Tagebcher, VIII, A 482). Em contraste com este laspecto do pensamento de Kierkegaard, o marxismo eexistencialismo, ainda que assumindo a defesa do indivduo, pr

    29curam integr-lo nas suas relaes com o mundo e com os oucompreend-lo na sua historicidade.

    NOTA BIBLIOGRFICA

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    597. Das obras de Kierkegaard existe a edio dinamarquSamiede Vaerker, a cargo de A. B. DRACHMANN, J. L. HEIH. O. LANGE, Kbenhavn, 1901-06, 2! ed., 1920-31; a tralem Gesammelte Werke, a cargo de H. GOTTSCHED eSCHREMPF, Jena, 1909-22 e sucessivas reedies; e uma traduo alem a cargo de E. HIRSCH,36 vols., Dusseldrfia, 1956 e sgs. A uma e outra se faz referno texto.

    Tradues italianas: Il dirio dei seduttore, trad. REDAELTurim,1910; In vno veritas, trad. K. FERLOV, Lanciano, 1910; Loaccusa ai Cristianesimo dei regno di Dinamarca, 2 vols., Milo1931; Il concetto dell'angoscia, trad. M. CORSSEN, Florena,Don Giovanni, trad. K. M. GULDBRANSEN e R. CANTON1945; La ripetizione, trad. E. VALENZANI, Milo, 1945; Divols., escolha e trad. de C. FABRO, Brescia, 1948-51; Timtremore, Milo, 1948; li concetto dell'angoscia, La Malatia mo

    trad. C. FABRO, Florena,1953; Briciole difilosofia, Postilia non scientifica, trad. C. FABvol., Bolonha, 1962.

    Acerca das investigaes efectuadas nestes ltimos anos soalguns aspectos da biografia de Kierkegaard, especialmente soseu modo de viver e sobre o uso prdigo do seu dinheiro, vNyman, La vita di S. K. alia luce delia moderna ricerca, in " S

    di sociologia e politica n onore di Luigi Sturzo", 11, Bolonha, 598. G. BRANDES, S. K., Leipsig, 1879; H. HOFFDING, Philosoph, Stuttgart, 1896; T. B0HUN, S. K., GtersIoh, 1925ALLEN, S. K, His Life and Thought, Londres, 1925; E. GEISK.' Gottingen, 1929; W. RUTTENBECK, S. K., Berlim, 192

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    BAIN, S. K., His Life and Religious Teaching, Londres, 1935SCHREMPF, S. K., 2 vol., Jena, 1927-28; E. PRZYWARGeheimnis, S. K., Mnchen, 1929; F. LOMBARD, K., com umde textos traduzidos, Florena, 1936; J. WAHL, tudkierkegaardiennes, Paris, 1937; W. LowRIE, A Short Life oPrinceton, 1946; P. MESNARD, Le vrai visage de K., Paris, 1CANTONI, La coscienza inquieta (S. K.) Milo, 1949; C. FABK. e Marx, Florena, 1952; J. COLLINS The Mind of K., C1954; J. HOHLENBERG, S. K, New York, 1954; SymKierkegaardianum, a cargo de S. STEFFENSEN, e H. SORECopenhaga, 1955; Kierkegaardiana, vol. colectivo a cargo THULSTRUP, Copenhaga, 1955; T. H. CROXALL, K. COMY, New York, 1956; Studi Kierkegaardiani, volume colectivo ade C. FABRO, Brescia,1957.

    30

    IX

    MARX

    605. MARX: FILOSOFIA E REVOLUO

    A filosofia de Marx , primeira vista, a ltima e a mais conseexpresso do movimento da esquerda hegeliana que foi a prireaco ao idealismo romntico e que a este mesmo ideal

    contrape uma reabilitao do homem e do seu mundo. Maprprios confrontos da esquerda hegeliana a filosofia de Mdistingue-se pelo seu carcter antiterico e comprometiempenhado como est em promover e dirigir o esforolibertao da classe operria nos confrontos dessa sociedaburguesa que se havia formado aps a revoluo industrial do

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    XVIII. Ao idealismo de Hegel que, partindo da ideia, ente justificar toda a realidade post factum, Marx contrape ufilosofia que, partindo do homem, se disponha transformactivamente, a prpria realidade. A aco, a "praxis" revoluciofaz parte integrante desta filosofia, que no se esgota comelaborao de conceitos, ainda que (obviamente) no pprescindir deles. A polmica de Marx contra a esquerda hegeliditada por esta exigncia, que Marx exprimiu uma vez de foparadoxal ao afirmar: "A filosofia e o estudo do mundo real eentre si em relao como

    31

    esto o onanismo e o amor sexual" (Ideologia tedesca, 111, ital., p. 229). O "estudo do mundo real" no tem nada a ver co"mundo das ideias puras": deve tomar em considerao a realefectiva ou, como afirma Marx, "emprica e material" do homdo mundo em que ele vive. Marx prev (ou pressente) o temque a "cincia natural compreender a cincia do homem co

    cincia do homem compreender a cincia natural", e em quhaver seno uma nica cincia" (Manoscritti economico-filodel 1844, 111, trad. ital., p. 266). Mas aquilo que poderemos ca sua "filosofia" constitudo substancialmente por uantropologia, por uma teoria da histria e por uma teoriasociedade; esta ltima partindo da reduo da prpria sociedasua estrutura econmica no seno uma teoria econmica.

    Depois da publicao das obras de juventude (o que se verifivolta de 1930) e que tornou possvel um melhor conhecimenprimeiras duas partes da sua filosofia, a influncia desta filoscomeou a ser cada vez mais extensa e profunda mesmo foramovimentos polticos que nela tiveram origem e que a considefrequentemente mais como um instrumento definitivo de lut

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    que uma via aberta para ulteriores desenvolvimentos.

    606. MARX: VIDA E OBRAS

    Karl Marx nasceu em Treviri a 15 de Maio de 1818. EstudUniversidade de Bona e depois em Berlim, onde se tornhegeliano entusiasta; formou-se em filosofia em1841 com uma tese sobre a Diferena entre a filosofia da natude Demcrito e a de Epicuro. Renunciando carreira universiMarx dedicou-se poltica e ao jornalismo. Colaborou na "Grenana" que foi o rgo do movimento liberal alemo. Umsuprimido o jornal, Marx, cujas ideias haviam entretanto evodo liberalismo para o socialismo, colaborou numa revista, os franco-alemes", que foi tambm proibida. Em 1843 dirigeParis onde permanece at 1845, colaborando no rgo refugiados alemes o "Avante". Obrigado a ausentar-se de

    32

    Paris, passa a viver em Bruxelas (de 1845 a 1848) e em 1publicava com Engels, a quem se tinha ligado de grande amizParis, o Manifesto do partido comunista que assinalou o inicdespertar poltico da classe operria e levou o socialismo do doutpico realizao histrica, dando classe operriainstrumento que deve promover e solicitar a evoluo da sociecapitalista no Sentido da prpria negao. Os acontecimento1848 levaram Marx a Colnia e a Paris; mas em 1849 estabele

    com a famlia em Londres, onde continuou a inspirar e a dirmovimento operrio internacional e onde faleceu a 14 de Mar1883.

    Os trabalhos filosoficamente mais significativos de Marx sseguintes: Crtica da filosofia do direito de Hegel, escrito em 1

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    e cuja introduo foi publicada em Paris em1844 nos "Anais franco-alemes", Economia e filosofia, escri1844, mantido indito e s publicado postumamente; A sagfamlia ou crtica da crtica crtica (1845), escrita em colaboracom Engels, e dirigida contra Bruno Bauer e os seus amhegelianos de esquerda que tinham erigido a guia da histr"poder critico da razo"; Teses sobre Fuerbach, brevssimo, importante trabalho, escrito em 1845 e publicado postumampor Engels; Ideologia alem, escrita em 1845-46, dirigida coFeuerbach, Bruno Bauer e Stirner, mantido indito e publicpostumamente; A misria da filosofia (1847), contra a obrProudhon, A filosofia da misria; Crtica da economia po(1859); O Capital, vol. 1, 1867; vols. 11 e III, publicpostumamente por Engels (1885, 1895).

    607. MARX: ANTROPOLOGIA

    O ponto de partida de Marx a reivindicao do homem, do hexistente, na totalidade dos seus aspectos, feita j por Feuerba

    Engels partilha do entusiasmo que a obra de Feuerbach tisuscitado nele e em Marx, como em muitos dos jovens hegealemes. "Quem foi que descobriu o mistrio do "sistemaFeuerbach. Quem negou a dialctica do conceito, essa guerradeuses que s os

    33

    filsofos conheciam? - Feuerbach. Quem foi que apresentou nsignificado dos homens" - como se o homem pudesse ter osignificado alm de ser homem - mas "os homens" no lugar doxaile com que se embrulhava a autoconscincia infinita? Feuee s Feuerbach" (Sagrada famlia, Gesamtausgabe, 111, p. 265Marx no se agarra a este aspecto negativo da filosofia

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    Feuerbach, como tambm no se agarra ao aspecto positivo, quvalorizao das necessidades, da sensibilidade, da materialidadhomem. Feuerbach fechou-se numa posio terica contemplativa: ignorou o aspecto activo e prtico da natuhumana que se constitui e realiza apenas nas relaes sociaiestas relaes, j no contempladas, mas realizadas compreendidas na sua realizao histrica, abrem a via quilMarx chama o novo materialismo, que se ope ao velho materespeculativo ou contemplativo. "Os filsofos, afirma Marx (sobre Feuerbach, I?) at agora limitaram-se a interpretar o munde agora em diante preciso, pelo contrrio,'transform-lo"ponto de vista do novo materialismo o de uma prrevolucionria (Ib., 3?); o homem alcana a soluo dos problemas, no atravs da especulao da aco criticamiluminada e dirigida.

    Aquilo que Marx pretendeu realizar, no apenas na sua obrfilosofia e de economista, como tambm na prpria activipoltica, traduz-se numa interpretao do homem e do seu m

    que fosse simultaneamente compromisso de transformao e, nsentido, actividade revolucionria. Ora esta interpretao spossvel se no homem deixar de se reconhecer uma essdeterminvel de uma vez por todas, em abstracto, essncia surge das suas relaes privadas consigo prprio, na interioridade ou conscincia; pois s se descobre o ser do honas suas relaes exteriores com os outros homens e comnatureza que lhe fornece os meios de subsistncia. Ora es

    relaes no so determinveis de uma vez para sempre porquhistoricamente determinadas pelas formas de trabalho e produo. Por outras palavras, a personalidade real e praticamactiva do homem apenas aquela que se resolve nas relatrabalho em que o homem se encontra. "Po-

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    demos distinguir os homens dos animais, afirma Marx, conscincia, pela religio, por tudo aquilo que se quiser; mhomens comearam a distinguir-se dos animais quando comeproduzir os seus meios de subsistncia, um progresso quecondicionado pela sua organizao fsica. Produzindo os seusde subsistncia, os homens produzem indirectamente a sua prvida material" (Ideologia alem, trad. ital., p. 17). Por conseguatravs do trabalho, como relao activa com a natureza, qhomem , de certo modo, criador de si prprio; e criador no apda sua "existncia material" mas tambm do seu modo de ser sua existncia especfica, como capacidade de expresso ourealizao de si. "Este modo de produo no se deve julgar aenquanto reproduo da existncia fsica dos indivduos; etambm um modo determinado da actividade de certo indivdumodo determinado de tornar extrnseca a sua vida, um modo dedeterminado. Como os indivduos exteriorizam a sua vida, assi(Ib.).

    O ser humano o que na sua exterioridade, na relao activaa natureza e com a sociedade que o trabalho, ou a produbens materiais; no na sua interioridade ou conscincia. A proe o trabalho no so, segundo Marx, uma condenao que sobre o homem: so o prprio homem, o seu modo especifico ou de se fazer homem. Deste modo a natureza passa a ser "o cinorgnico do homem"; deste modo tambm, o homem pode r

    se a si como natureza universal ou gentica e assumir a conscide si, no tanto como indivduo, mas como "espcie ou natuniversal". Com efeito, enquanto o animal produz apimediatamente e sob o domnio da necessidade "o homem pmesmo quando livre da necessidade fsica e s proverdadeiramente quando se encontra livre de tal necessidad

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    enquanto o animal "produz apenas segundo a medida e a necesda espcie a que pertence, o homem sabe produzir segundmedida de todas as espcies e sobretudo sabe conferir ao objea medida inerente e criar tambm segundo as leis da bele(Manuscritos econmico-polticos de 1844, trad. ital., pp. 230-

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    O trabalho portanto, segundo Marx, uma manifestao, a manifestao da liberdade humana, da capacidade humana dea prpria forma de existncia especfica. No se trata, certamende uma liberdade infinita porque a produo est semrelacionada com as condies materiais e com as necessidadcriadas; e estas condies actuam como factores limitativosqualquer fase da histria. Mas trata-se de um condicionamentono exterior mas interior aos prprios indivduos humanoscondies sob as quais os indivduos, at ao momento em qusurge ainda a contradio, tm relaes entre si, so condiespertencem sua individualidade e no a qualquer coisa de exte

    eles prprios: so condies sob as quais apenas esses indivdeterminados, existentes em situaes determinadas, podproduzir a sua vida material e aquilo que com ela est ligado; so, por conseguinte, as condies das suas manifestaes pese por estas so produzidas" (Ideol. alem, p. 70). Nas relaeproduo, que so relaes dos homens entre si e com a natureactividade humana simultaneamente condicionada e condicie, por conseguinte, a iniciativa respeitante a tais relaes ,

    ltima anlise, autocondicionante. Cord efeito, quando a fassumida pelas relaes de produo, forma que at certo pocondicionou as manifestaes pessoais dos indivduos, surgeum obstculo a tais manifestaes, acaba por ser substituda uma outra forma, que se presta melhor ao condicionamento dmanifestaes mas que, por sua vez, poder tornar-se um obst

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    e ser igualmente substituda. "Como em todos os estdios, segMarx, estas condies correspondem ao desenvolvimcontemporneo das foras produtivas, a sua histria portanhistria das foras produtivas que se desenvolvem e que retomadas por uma nova gerao; portanto a histria desenvolvimento das foras dos prprios indivduos" (Ib., pp71). Nas relaes produtivas, e, por conseguinte, na determinda existncia historicamente condicionada, insere-se o homesua totalidade, com as suas necessidades e com a sua razo, coseus interesses e a sua cincia; mas insere-se na sua situaprtica e activa, enquanto se manifesta ou actua no trabalho - n

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    sua posio de contemplativo terico como homem moral, relfilosfico, como "conscincia": uma vez que a conscincia veremos em breve) o reflexo da sua actividade produtiva. Mentendeu de forma articulada, no rgida, a relao entre as forprodutivas dos indivduos e as formas, que elas determinam

    relaes sociais e da conscincia que as reflecte. desenvolvimento das foras produtivas desenrola-se de mdiverso, de acordo com a diversidade dos povos ou grupos hume s lentamente, e de modo bastante desigual, determinadesenvolvimento das formas institucionais correspondenAcontece que estas formas continuam por vezes a sobrevmesmo quando se esboaram novas foras produtivas que tendestru-Ias e a suplant-las com novas formas; ou ento, no pr

    interior do grupo, "haver indivduos com um desenvolvidiverso do todo"; ou, em geral, a conscincia surgir mais avano que respeita situao emprica contempornea, de modo nas lutas de um perodo posterior possa haver apoio, cautoridade, em tericos anteriores" Ob., p. 71). Noutros cacomo na Amrica do Norte, o processo do desenvolvimento in

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    "com os indivduos mais evoludos dos velhos pases e portantforas de relaes mais desenvolvidas, correspondentes a esindivduos, mesmo antes dessas formas de relaes se haveimposto aos outros pases" (Ib., p. 7 1). Isto quer dizer qureduo, operada por Marx, do indivduo (ou seja, do ser do hos relaes sociais, no implica de forma alguma a dissoluprprio indivduo em formas j realizadas de tais relaes, ndeterminismo rigoroso de tais formas sobre a estrutura dindivduos singulares.

    Tudo isto no serve seno para demonstrar, segundo Marxcarcter social do homem. "Tal como a sociedade produz o henquanto homem, afirma Marx, tambm ela produzida po(Manuscritos econmico-polticos de 1844, 111, trad. ital., p. 2prpria natureza, com a qual todo o homem, como ser vivo, erelao, s se humaniza na sociabilidade tornando-se um elo cada homem e o fundamento da existncia comum. "A socieafirma Marx, a total consubstanciao do homem com

    37a natureza, a verdadeira ressurreio da natureza, a realizaonaturalismo do homem, e a realizao do humanismo da natuOb., p. 260). As mesmas actividades individuais (por exemactividade cientfica) no so menos sociais que as actividcolectivas pblicas: no s porque adoptam instrumentos,exemplo a linguagem, que so produtos sociais, mas tambm

    o seu fim, o seu obj ectivo, a prpria sociedade. "0 indivduoser social. A sua manifestao de vida - ainda que no surja forma de uma manifestao de vida comum, realizada em concom as outras - uma manifestao e uma afirmao de vida sOb., p. 260). Aquilo que distingue o indivduo simplesmentmodo mais especifico ou mais particular de viver a vida do g

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    humano. "A morte, afirma Marx, surge como uma dura vitgnero sobre o indivduo e uma contradio da sua unidade; individuo determinado apenas um ser determinado e commortal" (Ib., p. 261).

    Talvez possamos agora recapitular, da forma seguinte, os poprincipais da antropologia de Marx: 1) No existe uma essnnatureza humana em geral. 2) O ser do homem semhistoricamente condicionado pelas relaes em que o homemcom os outros homens e com a natureza, pelas exignciatrabalho produtivo. 3) Estas relaes condicionam o indivdpessoa humana existente; mas os indivduos por sua condicionam-se promovendo a sua transformao ou o desenvolvimento. 4) O indivduo humano um ser social.

    608. MARX: O MATERIALISMO HISTRICO

    A terceira tese o fundamento da concepo marxista da histou seja, do materialismo histrico. Marx insiste no carc

    "emprico" do pressuposto em que se baseia. Este pressupostoreconhecimento de que a histria feita por "seres humanos vique se acham sempre em certas "condies materiais de vida j encontraram existentes ou produziram com a sua prpria a(Ideologia alem, I, p. 17). Na base deste pressuposto Marx ava

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    tese fundamental da sua doutrina da histria: o nico sujeitohistria a sociedade na sua estrutura econmica. Marx formesta tese em oposio polmica com a doutrina hegeliana seguqual o sujeito da histria , pelo contrrio, a Ideia, a conscincesprito absoluto. Ele prprio afirma que, na reviso crtic

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    filosofia do direito de Hegel, chegou concluso de que "tanrelaes jurdicas como as formas do estado no podem compreendidas nem por si prprias nem pela chamada evoludo esprito humano, mas tm as suas razes nas relaes mateda existncia, cuja complexidade Hegel assume, seguindo o exdos ingleses e dos franceses do sculo XVIII, sob a designa"sociedade civil"; e que a anatomia da sociedade civil devprocurada na economia poltica" (Para uma crtica da econpoltica, pref. trad. ital., p. 10). Mais precisamente, com basantropologia, a tese surge apresentada da seguinte forma: "produo social da sua existncia, os homens entram em reladeterminadas, necessrias, independentes da sua vontade, relaes de produo que correspondem a um determinado grdesenvolvimento das suas foras positivas materiais. O conjdestas relaes constitui a estrutura econmica da sociedade,seja, a base real sobre a qual se ergue uma superstrutura jurdicpoltica e qual correspondem formas determinadas da conscisocial. O modo de produo da vida material condiciona, em gprocesso social, poltico e espiritual da vida. No a conscinc

    homens que determina o seu ser mas , pelo contrrio, o seusocial que determina a sua conscincia" (Ib., pp. 10- 11).

    Segundo este ponto de vista, o nico elemento determinanthistria, e por isso tambm o nico elemento que se autodeterm a estrutura econmica da sociedade; enquanto que superstrutura, com tudo o que a constitui, uma espcie de somou reflexo da estrutura e s de forma indirecta participa da s

    historicidade. Por "superstrutura" Marx entende, alm das fordo direito e do estado, a moral, a religio, a metafsica, e todaformas ideolgicas e as formas de conscincia correspondenTodas estas coisas, afirma, "no tm histria, no tdesenvolvimento, mas os homens que desenvolvem a sua prmate-

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    rial e as suas relaes materiais, transformam, juntamente cesta sua realidade, o seu pensamento e os produtos do pensamento. No a conscincia que determina a vida, mas que determina a conscincia" (Ideologia alem, 1, trad. ital., pMarx insiste continuamente no facto de que "os prprios homque estabelecem as relaes sociais de acordo com a produtividade material, produzem tambm os princpios, as ias categorias, de acordo com as suas relaes sociais. Assim eideias, estas categorias, so to eternas como as relaes qexprimem. So produtos histricos e transitrios. Existe movimento continuo de acrscimo nas foras produtivasdestruio nas relaes sociais, de formao das ideias; de imuno existe seno a abstraco do movimento, mors immort(Misria da filosofia, trad. ital., 11, 1, p. 89). Utilizar categoideias ou "fantasmas" semelhantes da mente para explicahistria significa inverter o seu processo efectivo, fazer da som

    a explicao das coisas, quando so as coisas a explicasombra. Uma verdadeira teoria da histria no explica a prpartindo das ideias, mas, pelo contrrio, explica a formaoideias partindo da praxis material e assim consegue chegaconcluso de que "todas as formas e produtos da conscincia pser eliminados, no mediante a crtica intelectual, resolvendo-autoconscincia ou transformando-os em espritos, fantasmaespectros, etc., mas s atravs da transformao prtica d

    relaes sociais existentes, de que derivam essas mesmas fantaidealistas"; e que, portanto, "No a critica mas a revolufora motriz da histria, e tambm da histria, da religio,filosofia e de qualquer outra teoria" (Ideologia alem, I, trad. ip. 34).

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    Segundo este ponto de vista, as ideias que dominam numa histrica so as ideias da classe dominante: " A classe que tepoder material dominante da sociedade ao mesmo tempo atem o poder espiritual dominante" (Ib., p. 43). Com efeito, ideias no so mais que "a expresso ideal das relaes matedominantes; as relaes materiais dominantes tomadas cideias". A dependncia das ideias dominantes da classe domisurge obliterada ou oculta; em primeiro lugar, devido ao facto d

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    essas prprias ideias serem elaboradas, no interior da classe, p"idelogos activos" cujo objectivo o de promoverem a ilusclasse sobre si prpria; e em segundo lugar ao facto de que toclasse que assume o poder deve representar o seu interesse cointeresse comum de todos os membros da sociedade, deve a"dar s prprias ideias a forma da universalidade e representcomo as nicas racionais e universalmente vlidas" (Ib., p. 44)por exemplo, no fez mais que transformar "os interesses mate

    e a vontade condicionada e determinada por relaes materiaproduo" da burguesia contempornea em "autodeterminapuras da livre vontade, da vontade em si e por si", isto :"determinaes ideolgicas puramente conceptuais e em postumorais" (Ib., trad. ital., III, pp. 189-190).

    Como se disse, s a estrutura econmica da sociedade tpropriamente, histria. A moda desta histria, e portanto

    histria geral, constituda pela relao entre as foras produtie as relaes de produo (as relaes de propriedade). Quandforas produtivas alcanam um certo grau de desenvolvimentram em contradio com as relaes de produo existenque deixam por isso de ser condies de desenvolvimento patransformarem em condies de estagnao. Entra-se ento n

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    poca de revoluo social. No entanto, uma formao socialextingue quando se tiverem desenvolvido todas as forprodutivas a que pode dar lugar; as novas relaes de prodentram em aco quando se encontram amadurecidas, no sevelha sociedade, as condies materiais da sua existncia. Madmite a este propsito o progresso incessante da histria: "modos de produo asitico, antigo, feudal e burgus modpodem ser designados como pocas que marcam o progresformao econmica da sociedade" (Para a crtica da econpoltica, Pref., trad. ital., p. 11). Marx admite no entanto que progresso se encontra dirigido para uma forma final e conclu"As relaes de produo burguesas so a ltima forma antagdo processo de produo social... Mas as foras produtivas qdesenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo as condies materiais para a soluo deste

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    antagonismo. Com esta formao social encerra-se portanto a

    histria da sociedade humana" (Ib., pp. 11-12). Mas na versegundo este ponto de vista, depois da "pr-histria" no se"histria" o progresso futuro: uma vez que deixa de existir a mola para tal: a contradio entre as foras produtivas e relaes econmicas.

    609. MARX: O COMUNISMO

    Se o homem, como ser social, constitudo por relaesproduo, a sua natureza e o seu desenvolvimento dependemformas assumidas por tais relaes. evidente que, segundo ponto de vista, o progresso da natureza humana no um probpuramente individual ou privado, resolvel por via deaperfeioamento espiritual, atravs da moral, da religio ou

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    filosofia; mas um problema social, resolvel apenas atravtransformao da estrutura econmica da sociedade.

    Marx acentuou com frequncia as caractersticas daquilo que um dos teoremas mais estruturados no campo da psicologia sointima conexo da personalidade humana com o ambiente socindivduo cujas circunstncias apenas permitem desenvolvequalidade custa de outras ter um desenvolvimento unilatemutilado. Um indivduo que vive num ambiente restrito e iapenas ser capaz - caso sinta a necessidade de pensar - de pensamento abstracto que lhe servir de evaso ao seu desolquotidiano. Um indivduo que tenha com o mundo relaes me activas ser, pelo contrrio, capaz de um pensamento univervivo. Em qualquer caso, afirma Marx, as "prdicas moralizanteservem para nada (Ideologia alem, 111, trad, ital., p. 255 e sO comunismo apresenta-se ento como a nica soluo pproblema do homem porque a nica soluo que faz depenrealizao de uma personalidade humana, unificada e livre, dtransformao da estrutura social que condiciona a prp

    personalidade. A sociedade capitalista, originada pela divistrabalho, que dividiu distintamente capital e trabalho, produz dilacerao interna na personalidade

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    humana. Com efeito, nesta sociedade as foras produtivas completamente separadas dos indivduos e constituem um m

    independente, o da propriedade privada. A estas foras contrape a maioria dos indivduos que, privados de quacontedo de vida, se tornaram indivduos abstractos, ainda colocados na situao de se aliarem entre si. O trabalho, quenico modo em que os indivduos podem ainda querer entrrelao com as foras produtivas, deixou de lhes permitir a il

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    de poderem manifestar-se pessoalmente e limita-se a dar-lhesustento a troco de uma vida sem a menor alegria (Ib., 1, p. 6comunismo, conseguindo a supresso da propriedade privadcapital, elimina a frustrao que este veio trazer estrutura soce personalidade dos indivduos. O trabalho passa ento aactividade autnoma, pessoal do homem, o instrumentosolidariedade humana. Por isso o comunismo surge como "o ie consciente regresso do homem a si prprio, como homem scomo homem humano" (Manuscritos econmico-filosficos d111, trad. ital., p. 258). Por um lado, suprime a oposio ennatureza e o homem, resolvendo a favor desta toda a complexidas foras naturais; por outro, suprime a oposio entre os hominstituindo a solidariedade no trabalho comum. Assim realnaturalizao do homem e a humanizao da natureza (Ib., p. Esta realizao ser possvel de forma gradual. Numa primeirada sociedade comunista salda, aps um longo trabalho de parsociedade capitalista, ser inevitvel uma certa desigualdade eos homens, em particular uma desigual retribuio com bastrabalho prestado. S numa fase elevada da sociedade comun

    com o desaparecimento da diviso do trabalho e por conseguincontraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual e quao trabalho se tornar no apenas um meio de vida, mas necessidade da vida e as foras produtivas tiverem alcanado odesenvolvimento, a sociedade, afirma Marx, "poder escrevesua prpria bandeira: A cada um segundo a sua capacidade, e aum segundo as prprias necessidades" (Para a crtica do progde Gotha, 1875).

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    antagonismo. Com esta formao social encerra-se portanto ahistria da sociedade humana" (ib., pp. 11-12). Mas na versegundo este ponto de vista, depois da "pr-histria" no se

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    "histria" o progresso futuro: uma vez que deixa de existir a mola para tal: a contradio entre as foras produtivas e relaes econmicas.

    609. O COMUNISMO

    Se o homem, como ser social, constitudo por relaesproduo, a sua natureza e o seu desenvolvimento dependemformas assumidas por tais relaes. evidente que, segundo ponto de vista, o progresso da natureza humana no um probpuramente individual ou privado, resolvel por via deaperfeioamento espiritual, atravs da moral, da religio oufilosofia; mas um problema social, resolvel apenas atravtransformao da estrutura econmica da sociedade.

    Marx acentuou com frequncia as caractersticas daquilo que um dos teoremas mais estruturados no campo da psicologia soIntima conexo da personalidade humana com o ambiente sociindivduo cujas circunstncias apenas permitem desenvolve

    qualidade custa de outras ter um desenvolvimento unilatemutilado. Um indivduo que vive num ambiente restrito e iapenas ser capaz - caso sinta a necessidade de pensar - de pensamento abstracto que lhe servir de evaso ao seu desolquotidiano. Um indivduo que tenha com o mundo relaes me activas ser, pelo contrrio, capaz de um pensamento univervivo. Em qualquer caso, afirma Marx, as "prdicas moralizanteservem para nada (Ideologia alem, III, trad, ital., p. 255 e seg

    O comunismo apresenta-se ento como a nica soluo pproblema do homem porque a nica soluo que faz depenrealizao de uma personalidade humana, unificada e livre, dtransformao da estrutura social que condiciona a prppersonalidade. A sociedade capitalista, originada pela divistrabalho, que dividiu distintamente capital e trabalho, produz

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    dilacerao interna na personalidade

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    humana. Com efeito, nesta sociedade as foras produtivas completamente separadas dos indivduos e constituem um mindependente, o da propriedade privada. A estas foras contrape a maioria dos indivduos que, privados de quacontedo de vida, se tornaram indivduos abstractos, ainda colocados na situao de se aliarem entre si. O trabalho, quenico modo em que os indivduos podem ainda querer entrrelao com as foras produtivas, deixou de lhes permitir a ilde poderem manifestar-se pessoalmente e limita-se a dar-lhesustento a troco de uma vida sem a menor alegria (Ib., 1, p. 6comunismo, conseguindo a supresso da propriedade privadcapital, elimina a frustrao que este veio trazer estrutura soce personalidade dos indivduos. O trabalho passa ento aactividade autnoma, pessoal do homem, o instrumentosolidariedade humana. Por isso o comunismo surge como "o i

    e consciente regresso do homem a si prprio, como homem scomo homem humano" (Manuscritos econmico-filosficos d111, trad. ital., p. 258). Por um lado, suprime a oposio ennatureza e o homem, resolvendo a favor desta toda a complexidas foras naturais; por outro, suprime a oposio entre os hominstituindo a solidariedade no trabalho comum. Assim realnaturalizao do homem e a humanizao da natureza (Ib., p. Esta realizao ser possvel de forma gradual. Numa primeira

    da sociedade comunista sada, aps um longo trabalho de parsociedade capitalista, ser inevitvel uma certa desigualdade eos homens, em particular uma desigual retribuio com bastrabalho prestado. S numa fase elevada da sociedade comuncom o desaparecimento da diviso do trabalho e por conseguincontraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual e qua

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    o trabalho se tornar no apenas um meio de vida, mas necessidade da vida e as foras produtivas tiverem alcanado odesenvolvimento, a sociedade, afirma Marx, "poder escrevesua prpria bandeira: A cada um segundo a sua capacidade, e aum segundo as prprias necessidades" (Para a crtica do progde Gotha, 1875).

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    Mas deste comunismo, o autntico, Marx distingue o comugrosseiro que no consiste na abolio da propriedade privadana atribuio da propriedade privada comunidade e na redutodos os homens a proletrios. Este comunismo , segundo M"uma manifestao de inferioridade da propriedade privadapretende colocar-se como comunidade positiva" (Manusceconmico-filosficos de 1844, 111, trad. ital., p. 257). Trata-uma expresso daquilo que hoje, depois de Nietzsche e Schchamamos ressentimento. Afirma Marx: "Este comunismo na mem que nega a personalidade do homem, apenas a expre

    consequente da propriedade privada que a sua negao. A igeral, que se torna uma fora, apenas a forma oculta ondcupidez se instala e se satisfaz duma outra forma: o pensamenttoda a propriedade privada como tal transforma-se, pelo menorelao propriedade mais rica, em inveja e desejo ardentenivelamento" (Ib., p. 256). Faz parte deste comunismosubstituio do matrimnio pela comunho de mulheres, uma va mulher passa a ser propriedade comum; a este aspecto ilust

    carcter degradante desta forma de comunismo porque precisamente na relao entre o homem e a mulher que melhmanifesta o grau em que o homem realizou a sua prhumanidade (Ib., p. 257).

    Mas, como se disse, o aparecimento, a afirmao e a vitri

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    comunismo esto condicionados pelo desenvolvimento econcomunismo no pode ser um dever ser, um ideal, uma utopia contraponha realidade histrica e pretenda dirigi-Ia no sentque pretende. Marx afirmou energicamente que a classe oper"no tem que realizar qualquer ideal" (A guerra civil em Frtrad. ital., Roma, 1907, p. 47). E no Manifesto do partido comescreveu: "Os enunciados tericos dos comunistas no se basem ideias ou princpios que tenham sido inventados ou descobpor este ou por aquele reformador do mundo. Eles no so maexpresses gerais das relaes efectivas de uma luta de classeexistentes, de um movimento histrico que se vai desenvolvendos nossos olhos". O fim da sociedade capitalista e o adventcomunismo dever-se-o ao desenvolvimento inevitvel da prp

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    economia capitalista; a qual, sendo por um lado incapaz de assa existncia dos trabalhadores assalariados, por outro rene esmesmos trabalhadores na grande indstria e com isso cria

    fora que est destinada a destru-Ia. a prpria burguesia qproduz os seus coveiros.

    Esta eliminao total do elemento tico, este submeter a realizada exigncia humana do comunismo apenas ao desenvolvimestrutura econmica da sociedade capitalista, a consequinevitvel do materialismo histrico; que seria totalmente nequando se admitisse que uma qualquer ideologia (entre el

    comunismo) pudesse nascer e realizar-se independentementestrutura econmica da sociedade ou contra ela. Mas, em radessa exigncia, toda a validade do comunismo como idepoltica depende da demonstrao da tese de que tal serdesembocar inevitvel do desenvolvimento da sociedade capite compreende-se porque que Marx se sentia permanentem

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    empenhado na demonstrao desta tese, a que dedicou a sua principal, O Capital. Esta obra, na qual Marx reuniu e levou todas as suas investigaes no campo da economia, no podcompreendida isoladamente; pressupe a filosofia da histriMarx, sem todavia ser dela dependente quanto sua estruturaos seus pontos principais. O materialismo histrico afirmanenhuma mutao social se verifica por aco de uma ideolode um ideal utpico porque a ideologia no faz mais que exprelaes sociais historicamente determinadas.O Capital pretende demonstrar que o comunismo exprimrelaes sociais que se vo formando na sociedade capitalista portanto ele ser o desembocar inevitvel do desenvolvimdessa sociedade.

    Como evidente, Marx parte do principio de Adam Smith Ricardo de que o valor de um bem qualquer determinadoquantidade de trabalho necessrio sua produo. Por essa rase o capitalista correspondesse ao assalariado com o produto tdo seu trabalho, no teria para si qualquer margem de lucro. O

    acontece que ele compra ao assalariado a fora de trabalpagando-a, como se paga outra qualquer mercadoria, com baquantidade de trabalho que chega para produzi-Ia, ou seja, com

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    base naquilo que necessrio para o sustento do operrio e dafamlia (que representa a fora de trabalho futura). Deste modo

    torna possvel o fenmeno da mais-valia, que aquela parte doproduzido pelo trabalho assalariado de que o capitalista se aproE a mais valia torna possvel a acumulao capitalista, a produdinheiro atravs do dinheiro, que o fenmeno fundamentasociedade burguesa (0 Capital, 1, 3). Marx defende esta tapresentando uma rica e minuciosa anlise do nasciment

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    moderna sociedade capitalista. E dirige esta anlise no senti- ddemonstrar as duas teses fundamentais que deveriam justificacomunismo do ponto de vista do materialismo histrico: a acumulao capitalista, pela qual a riqueza tenderia a concentrem poucas mos; e a lei da misria progressiva do proletariadoqual, correspondentemente acumulao do capital, se verificnivelamento na misria de todas as classes produtivas; as quaicerta altura, estariam prontas e preparadas para a expropriaoexgua minoria capitalista e para assumir todas as funepoderes sociais. Deste modo a produo capitalista, sendo negdaquela propriedade privada que corolrio do trabaindependente, a certa altura ter de produzir a sua prprnegao. A sociedade capitalista ser destruda pela sua prcontradio interna: pela contradio das foras produtivas qdepois de haverem procurado desenvolver as suas mxpossibilidades e alcanar o mximo incremento do capital, enem conflito com esse objectivo e rompem com o invcapitalista, levando expropriao dos expropriadores. "A procapitalista, afirma Marx, (Cap. 1, 24, 7) gera a sua pr

    negao, com a fatalidade que preside aos fenmenos da natureA discusso destas teses econmicas, que foram contrariadas ulterior desenvolvimento da economia politica, excede os limipresente obra. Basta ter assinalado essa caracterstica para ficesclarecida a relao entre a filosofia e a doutrina econmmarxista, relao que fundamental para a compreensopersonalidade histrica de Marx.

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    610. MARX: A ALIENAO

    A condio do homem na sociedade capitalista foi caracterizad

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    Marx, especialmente nas suas obras de juventude, como alienMarx fora buscar este conceito a Hegel que o tinha utilizadoltimas pginas da Fenomenologia para ilustrar o processo pela Autoconscincia coloca o objecto, ou seja, se coloca a si prcomo objecto e assim se aliena de si para em seguida regressarprpria. "A alienao da Autoconscincia, afirma Hegel, cdeste modo, a coisidade: dai que essa alienao tenha significado no apenas negativo mas tambm positivo e isto npara ns ou em si mas tambm para a Autoconscincia. Para enegativo do objecto ou o auto-limitar-se deste ltimo temsignificado positivo, porque sabe qual a nulidade do objecto umque, por um lado, se aliena a si prprio; com efeito, nesta aliecoloca-se a si prpria como objecto, ou, em razo da incinunidade do ser-por-si coloca o objecto como se fosse ela prprpor outro lado, existe tambm o outro momento pelo qual elimitou e chamou em si mesma essa alienao e objectivipermanecendo portanto dominada por si no seu ser-outro comEste o momento da conscincia que , por isso, a totalidadeseus momentos" (Fenomenologia do esprito, VIII, ed. Glockn

    602-03).Nas mos de Marx esta noo transforma-se completamenteprimeiro lugar, o sujeito da alienao no a autoconscinciasegundo Marx, um conceito abstracto e fictcio, mas o homhomem real ou existente; e a alienao no figura especulmas a condio histrica em que o homem acaba por se descnos confrontos da propriedade privada e dos meios de produ

    propriedade privada, com efeito, transforma os meios de prodde simples instrumentos e materiais da actividade produhumana, em fins a que fica subordinado o prprio homem. "Noperrio que utiliza os meios de produo, afirma Marx, smeios de produo que utilizam o operrio; em lugar de surconsumidos por ele como elementos materiais da sua activ

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    produtiva, so eles que o consomem como fermento do seu provital; e o processo vi-

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    tal do capital consiste no seu movimento de valor que se valosi prprio" (Capital, 1, cap. lX, trad. ital., p. 339). Por oupalavras, a propriedade privada aliena o homem de si porqtransforma de fim em meio, de pessoa em instrumento deprocesso impessoal que o domina sem olhar s suas exignciasuas necessidades. "A produo produz o homem no s mercadoria, a mercadoria humana, o homem com o carctemercadoria, mas produ-lo, de acordo com este carcter, comoser desumano quer espiritual quer fisicamente" (Manuscreconmico-filosficos de 1844, trad. ital., p. 242). A caractermais grave desta alienao, aquela em que Marx mais insespecialmente nas obras de juventude, a ciso ou a dilacerque ela produz no prprio ser humano. Como vimos, o hoconstitudo por relaes de produo que so relaes co

    natureza e com os outros homens; estas relaes, na forma assumem por efeito da propriedade privada, tendem a cindir-deste modo a cindirem o homem da natureza e dos outros homafast-lo das suas relaes com eles e, por conseguinte, conprprio. "A propriedade privada, afirma Marx, apenas a exprsensvel do facto de o homem se tornar objectivo em relaoprprio, um o