guia de estudos teoria do conhecimento

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  • 7/23/2019 Guia de Estudos Teoria Do Conhecimento

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    Universidade Federal de LavrasUFLACentro de Educao DistnciaCEAD

    Curso de Graduao em Filosofia

    TEORIA DO CONHECIMENTO

    Roney Wagner Vieira

    LAVRAS/MG

    2015

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    Ficha Catalogrfica Preparada pela Diviso de Processos Tcnicos da

    Biblioteca da UFLA

    Vieira, Roney Wagner.

    Curso de graduao em filosofia: teoria do conhecimento /

    Roney Wagner Vieira.Lavras : UFLA, 2015.

    82 p.

    Uma publicao do Centro de Educao a Distncia da

    Universidade Federal de Lavras.

    Bibliografia.

    1. Formao de professores. 2. Racionalismo. 3. Empirismo.

    Criticismo. I. Universidade Federal de Lavras. II. Ttulo.

    CDD121

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    Governo Federal

    Presidente da Repblica: Dilma Vana Rousseff

    Ministro da Educao: Renato Janine Ribeiro

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES)

    Universidade Aberta do Brasil (UAB)

    Universidade Federal da Lavras

    Reitor: Jos Roberto Soares Scolforo

    Vice-Reitora: dila Vilela Resende von Pinho

    Pr-Reitora de Graduao: Soraya Alvarenga Botelho

    Centro de Educao a Distncia

    Coordenador Geral: Ronei Ximenes Martins

    Coordenador Pedaggico: Warlley Ferreira Sahb

    Coordenador de Projetos: Cleber Carvalho de Castro

    Coordenadora de Apoio Tcnico: Fernanda Barbosa Ferrari

    Coordenador de Tecnologia da Informao: Andr Pimenta Freire

    Departamento de Cincias Humanas

    Filosofia (EaD)

    Coordenador de Curso: Andr Chagas Ferreira Souza

    Coordenador de Tutoria: Joo Geraldo Martins da Cunha

    Coordenador Adjunto: Roney Wagner Vieira

    Revisora de contedo: La SilveiraRevisor textual: Benedito Fernando Pereira

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    SUMRIO

    APRESENTAO ............................................................................................. 5UNIDADE 1 - O RACIONALISMO CARTESIANO ....................................... 8

    1.1 DESCARTES E A FUNDAO DA FILOSOFIA MODERNA9

    1.2 AS REGRAS DO MTODO12

    1.3 O CETICISMO METODOLGICO..14

    1.4 A SUPERAO DA DVIDA.17

    1.5 DEUS E A CINCIA.19

    1.6 O MECANICISMO...

    25UNIDADE 2 - HUME: O EMPIRISMOCTICO...288

    2. 1 O EMPIRISMO DE HUME.29

    2.2 ORIGEM E CONEXO DAS IDEIAS...31

    2.3 O PRINCPIO DE CAUSALIDADE E O PROBLEMA DEHUME...........................................................................................................34

    2.4 A SOLUO DO PROBLEMA...39

    2.5 A CRENA E A EXISTNCIA DOS OBJETOS E DOEU..411

    2.6 CRENA EPROBABILIDADE..477

    UNIDADE 3 - A FILOSOFIA CRTICA DE KANT ....................................... 52

    3.1 A REVOLUO COPERNICANA ....................................................... 53

    3.2 ESPAO E TEMPO..56

    3.3 O EU PENSO E OS CONCEITOS PUROS DO

    ENTENDIMENTO..59

    3.4 A CAUSALIDADE E A DIALTICA DA RAZO...72

    REFERNCIAS81

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    APRESENTAO

    A preocupao do homem com a compreenso do mundo e com a

    explicao do seu funcionamento remonta aos primrdios da sua existncia. O

    mito, a magia e a religio foram, durante milnios, os principais recursos com

    os quais o homem se localizava diante da realidade e compreendia sua

    dinmica. O problema do conhecimento, no entanto, sempre foi decisivo para a

    definio da filosofia em relao a outras formas de pensamento. Desde o seu

    surgimento, a filosofia se prope uma tarefa que parte dela mesma, por vezes,

    chegou a considerar impossvel: garantir a verdade daquilo que julgamos sabersobre a realidade e sobre o nosso prprio poder de conhecer. Para os que

    julgam possvel o conhecimento verdadeiro, a chave para a compreenso do

    mundo e do prprio homem a faculdade da razo. A constatao de uma

    ordem na disposio das coisas e a presena em ns da capacidade do

    pensamento permite afirmar que o mundo possui uma racionalidade e que

    podemos conhecer seu funcionamento na medida em que somos seres

    racionais.Desde a Grcia antiga a investigao sobre a natureza do

    conhecimento prope questes que ainda hoje esto na pauta do pensamento

    filosfico: O que o conhecimento? Como possvel conhecer? Existe algum

    modo de garantir sua verdade diante dos argumentos do ceticismo?

    Este guia de Teoria do Conhecimento pretende apresentar a

    apropriao e o desenvolvimento dessa investigao na modernidade. A partir

    do paradigma cientfico iniciado no sculo XVII, propomos acompanhar o queconcomitantemente considerado como uma verdadeira revoluo filosfica.

    Se as descobertas astronmicas retiraram a terra do centro do universo, tambm

    permitiram libertar o homem das iluses ou dos equvocos com os quais havia

    at ento fundado o seu conhecimento a respeito do mundo e sua posio no

    universo. Inicia-se um processo de secularizao da conscincia do homem e,

    em oposio ao objetivismo tpico da concepo aristotlica e medieval do

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    conhecimento, destaca-se a sua subjetividade essencial. O ideal da vida

    exclusivamente contemplativa superado por uma exigncia de aproximao

    cada vez maior entre theoriaeprxis. contemplao da natureza, impe-se a

    necessidade de domin-la e de controlar o mecanismo de conexo dos

    fenmenos para os fins do homem. Com a antiga concepo do cosmos, caem

    tambm por terra a indiscutibilidade de antigos conceitos como os de um

    universo finito e hierarquicamente ordenado segundo conceitos de valor como

    o de perfeio ou de harmonia das esferas e a diviso da realidade em mundos

    distintos, com funcionamentos distintos. O conhecimento deve ter justificativas

    que lhe garantam validade universal e deve ser acessvel a todos os homens.Do sculo XVII at os nossos dias a discusso sobre o conhecimento

    envolve inevitavelmente a ntima relao entre a filosofia e o mtodo

    cientfico. O que o conhecimento cientfico, como ele possvel, de que

    faculdades fazemos uso para conhecermos, qual a relao entre o

    conhecimento e mundo, que consequncias prticas e morais podem decorrer

    das descobertas cientficas, so alguns dos problemas que nortearo a

    investigao filosfica a partir de ento.O contedo desse guia comea pelo racionalismo cartesiano. De

    acordo com o esprito revolucionrio de seu tempo, Descartes o mentor da

    noo moderna de um mtodo baseado na razo que permite separar, entre os

    contedos presentes na mente, aquilo que certo e seguro daquilo que incerto

    e duvidoso. Sua teoria do conhecimento assume como critrio de verdade o

    princpio da clareza e da distino dos contedos da conscincia, tal como se

    d na demonstrao das evidncias matemticas.A segunda parte dedicada ao empirismo de Hume. Sua crtica ao

    princpio de causalidade como guia para a compreenso e para a previso dos

    fenmenos da natureza colocam a razo em crise. Sua preocupao com o

    conhecimento da natureza humana expe, por meio da dvida ctica, a

    importncia da experincia para a conduo do raciocnio e tambm a pouca

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    eficcia da razo em oferecer a segurana necessria regularidade das leis da

    natureza.

    Na terceira parte, o criticismo kantiano apresentado como a sntese

    e, ao mesmo tempo, como a crtica das posies antagnicas do racionalismo e

    do empirismo. Novamente se associa a filosofia ideia de uma revoluo no

    conhecimento. O estudo das faculdades do sujeito do conhecimento opera um

    novo giro copernicano e consagra a subjetividade como tema central do

    pensamento moderno. A razo confronta-se consigo mesma e declara sua

    prpria limitao. A experincia dos objetos, por sua vez, revela a estrutura

    subjetiva inevitvel como constituinte daquilo que conhecido. A maiorextenso dessa unidade proporcional magnitude dessa filosofia, tanto em

    relao ao contexto de sua construo e s concepes do conhecimento que a

    precederam, quanto em sua importncia para a questo do conhecimento na

    posteridade.

    Razo, experincia, pensamento, percepo, intuio, imaginao,

    sensibilidade, representao, verdade, lei, cincia. As significaes que esses

    termos recebem na sucesso aqui apresentada constituem o arcabouo temticode que se serve toda discusso contempornea a respeito do que podemos de

    fato conhecer.

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    UNIDADE 1 - ORACIONALISMO

    CARTESIANO

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    1.1 DESCARTES E A FUNDAO DA FILOSOFIA MODERNA

    Para Descartes, filosofia e cincia so inseparveis. Como pensador do

    sculo XVII, sua filosofia est intimamente envolvida com a atmosfera

    revolucionria que promoveu a demolio da antiga concepo do homem e do

    universo. Desde a publicao do De Revolutionibusde Nicolau Coprnico em

    1543, at os Philosophiae Naturalis Principia Mathematicade Isaac Newton,

    em 1687, compreende-se o perodo comumente designado com a expresso

    revoluo cientfica. Na esteira da chamada revoluo astronmica, que deCoprnico at a fsica newtoniana foi alimentada, por exemplo, pelas

    descobertas de Tycho Brahe, Kepler e, sobretudo, Galileu; a filosofia v-se

    diante da necessidade de questionar os fundamentos da cosmologia

    aristotlico-ptolomaica e das concepes de homem e de Deus resultantes da

    assimilao tomista do pensamento de Aristteles. A concepo tradicional de

    conhecimento era marcada pela confiana no carter definitivo das teorias

    aristotlicas. Agora, tanto as categorias do pensamento, os princpios causais e

    a noo de um saber filosfico como o saber das essncias, como a orientao

    teolgica da busca pelo saber, tornam-se objeto de dvida e de crtica.

    A discrepncia entre a cosmologia aristotlica e os conhecimentos

    alcanados a partir de uma nova concepo de conhecimento, que implicava a

    unio da teoria com a prtica ou da cincia com a tcnica, colocava em questo

    a relao tradicional entre o pensamento filosfico e a investigao cientfica.

    A nova forma de saber devia ser pblica, progressiva e controlvel atravs do

    experimento que se tornava cada vez mais rigoroso graas preciso cada vez

    maior de novos instrumentos de medida.

    Segundo Franklin Leopoldo e Silva, a tarefa de Descartes ser a de

    refazer o carter sistemtico do saber, unindo novamente cincia e filosofia,

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    fsica e metafsica1. Era preciso ir aos fundamentos. E, para isso, Descartes

    desenvolve um mtodo que visa fornecer regras simples que tornem impossvel

    tomar o falso pelo verdadeiro e, aperfeioando a cincia, levem ao

    conhecimento de tudo o que se possa conhecer. A unidade das cincias remete

    unidade da razo e esta unidade do mtodo. A razo, a coisa mais bem

    distribuda do mundo, a faculdade de bem julgar, que permite distinguir o

    verdadeiro do falso, o bom senso naturalmente igual em todos os homens.

    Para ele, era necessrio encontrar novos princpios que rompessem com a

    tradio aristotlica e medieval e permitissem erigir o conhecimento racional

    da totalidade do real, pelo menos em suas linhas essenciais.Embora a maior parte de sua obra seja dedicada s pesquisas cientficas,

    Descartes no concorda que elas sejam suficientes em si mesmas. Nos

    Princpios da Filosofia, ele constri uma imagem da relao entre as cincias e

    a filosofia que traduz o empreendimento que se propunha realizar:

    Assim, toda a filosofia como uma rvore, da qual as razes soa metafsica, o tronco a fsica e os ramos que surgem desse

    tronco so todas as outras cincias, que se reduzem a trsprincipais, ou seja, a medicina, a mecnica e a moral, entendendoaqui como a mais elevada e perfeita a moral que, pressupondoum conhecimento total das outras cincias, o ltimo grau dasabedoria. Ora, como no das razes nem do tronco das rvoresque colhemos os frutos, mas somente das extremidades dos seusramos, a principal utilidade da filosofia depende daquelas suas

    partes que s aprendemos por ltimo2.

    1O autor lembra a inspirao de Descartes na famosa concepo de Galileu formulada na obra

    O ensaiador: a natureza est escrita em linguagem matemtica. Isso significa que contamoscom um poderoso instrumento de conhecimento, plenamente adequado decifrao darealidade natural: a matemtica. Essa cincia no se ope fsica como a quantidade se ope qualidade (conforme pensavam os aristotlicos), mas a prpria natureza tal que se prestanaturalmente a um tratamento matemtico. Essa concepo galilaica se transformar no pontocentral do mtodo de Descartes, cujo aspecto principal consiste na extenso do modelo deconhecimento matemtico a todos os objetos. por esse caminho que Descartes tentarencontrar os novos fundamentos para o conhecimento no apenas da natureza, mas tambm deDeus e da alma (SILVA, F. L. Descartes: a metafsica da modernidade. So Paulo: Moderna,2005.)2DESCARTES, R. ApudREALE G./ANTISERI D. Histria da Filosofia, vol. II,So Paulo:Paulus, 1990, p. 361.

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    Descartes dedica-se, ento, a avaliar o que poderia buscar na

    matemtica e na lgica tradicionais para elaborar um mtodo que permitisse

    construir um sistema do conhecimento, completo e coerente com as exigncias

    dos novos tempos. A lgica considerada uma disciplina absolutamente estril,

    pois apesar de alguma contribuio dos estudiosos da Idade Mdia, ainda se

    resumia doutrina silogstica de Aristteles. Mesmo que permita expor com

    rigor conhecimentos j dados, pois opera deduzindo conhecimentos

    particulares a partir dos universais, o mecanismo do silogismo no contribui

    para que se possam encontrar novas verdades.

    A matemtica, embora estivesse limitada aos nmeros e s figuras,possua a noo de evidncia, ainda que esta se resumisse s operaes

    aritmticas e geometria. Mas a evidncia seria para Descartes aquilo que o

    esprito humano pode apreender de mais certo; o mtodo consistir em captar a

    razo dessa certeza para que se possa estend-la a outros campos do

    conhecimento3. Nem a turbulncia do renascimento, nem o ceticismo podiam

    relativizar as demonstraes incontestveis da matemtica. Na medida em que

    opera sob os requisitos da ordem e da medida, ela atinge um alto grau deevidncia. E esses requisitos mostram-se fundamentais no apenas para ela,

    mas para todo o pensamento.

    A superao das incertezas exigia um novo ponto de partida e um

    caminhoradicalmente oposto quele relativo viso medieval do mundo. As

    mltiplas e vagas opinies deviam dar lugar a certezas cientficas universais.

    Essa preocupao com a natureza incerta do conhecimento da poca e com a

    necessidade de se encontrar o mtodo correto para a cincia no exclusiva dopensamento cartesiano. O pensamento moderno se nutrir a partir de ento de

    duas concepes de mtodo cientfico que caracterizaram a investigao

    filosfica do sculo XVII: uma delas a perspectiva empirista, proposta por

    Francis Bacon (1561-1626) cujo mtodo fundado na observao, na

    experimentao e no procedimento indutivo. Descartes consagra a via oposta,

    3SILVA, F. L., op. cit., p. 30.

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    que inaugura o racionalismo moderno. A inspirao matemtica de seu mtodo

    significa que a certeza cientfica a que sua poca aspira s pode ser encontrada

    no poder crtico e demonstrativo da razo.

    1.2 AS REGRAS DO MTODO

    O princpio fundamental e normativo do mtodo a evidncia. Descartes

    a encontra na intuio intelectual, na clareza da ideia presente na conscincia e

    que reflete a "luz da razo" sem qualquer mediao.

    Por intuio entendo, no a convico flutuante fornecida pelossentidos ou o juzo enganador de uma imaginao decomposies inadequadas, mas o conceito da mente pura e atentato fcil e distinto que nenhuma dvida nos fica acerca do quecompreendemos; ou ento, o que a mesma coisa, o conceito damente pura e atenta, sem dvida possvel, que nasce apenas daluz da razo e que, por ser mais simples, ainda mais certo doque a deduo (...). Assim, cada qual pode ver pela intuiointelectual que existe, que pensa, que um tringulo delimitadoapenas por trs linhas, que a esfera o apenas na superfcie, eoutras coisas semelhantes, que so muito mais numerosas do quea maioria observa, porque no se dignam aplicar a mente a coisasto fceis4.

    Nas Regras para a Direo do Esprito, obra que ficou inconclusa,

    Descartes chega a enumerar vinte e uma regras. No Discurso do Mtodo,elas

    so reduzidas a quatro preceitos metodolgicos que, se firmemente observados,

    evitariam os vcios e defeitos que se encontravam no tradicional exerccio da

    filosofia, da lgica e das matemticas, preservando ao mesmo tempo suas

    vantagens:

    O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que euno conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitarcuidadosamente a pressa e a preveno, e de nada fazer constarde meus juzos que no se apresentasse to clara e distintamentea meu esprito que eu no tivesse motivo algum de duvidar dele.O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que euanalisasse em tantas parcelas quantas fossem possveis e

    4Regras Para a Direo do Esprito, Lisboa: Edies 70, 1989, p. 11.

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    necessrias a fim de melhor solucion-las. O terceiro, o deconduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetosmais simples e mais fceis de conhecer, para elevar-me, pouco a

    pouco, como galgando degraus, at o conhecimento dos maiscompostos, e presumindo at mesmo uma ordem entre os queno se precedem naturalmente uns aos outros. E o ltimo, o deefetuar em toda parte relaes metdicas to completas erevises to gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir5.

    Portanto, a evidncia alcanada sem ambiguidades atravs da

    decomposio analtica do problema em questo, qual se segue a sntese

    como reconstruo da totalidade das partes envolvidas, agora de maneira

    transparente, de modo a corresponder realidade efetiva. Essa decomposio

    inspirada no procedimento da geometria deve ser aplicada aos problemas de

    qualquer natureza, para que se proceda corretamente e se evitem equvocos.

    Desse modo, em relao s coisas percebidas pelo entendimento, chamamos

    simples s quelas cujo conhecimento to claro e distinto que o entendimento

    no as pode dividir em vrias outras conhecidas mais distintamente; tais so a

    figura, a extenso, o movimento, etc.6. decomposio deve seguir-se a

    recomposio da ordem de raciocnios que, se no est dada, deve ao menos

    ser suposta como hiptese para expressar a realidade. O objeto recomposto

    estar ento mediado pelo conhecimento, transparente ao pensamento. A

    primeira regra estabelece o princpio normativo fundamental que preserva a

    evidncia de qualquer dvida possvel. Ou seja, todo contedo do pensamento

    que se mostrar claro e distinto, tambm evidente7. E a quarta prescreve o

    cuidado de evitar precipitaes que possam levar a erros. Os quesitos da

    5DESCARTES, R. Discurso do Mtodo, So Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 50.6Regras Para a Direo do Esprito, op. cit., p. 45.

    7Segundo Raul Landim Filho, um conhecimento considerado evidente quando expresso emum juzo indubitvel. Uma ideia pode ser clara e distinta como forma do pensamento, tornandoo sujeito consciente dos seus estados subjetivos, e tambm como representao de umobjeto: Clara uma ideia que torna patente a presena do objeto, do qual ideia, conscincia atenta de um sujeito. Distinta a ideia completamente clara, isto , a queapresenta o seu objeto de uma maneira suficientemente clara e precisa para que ele possa serdistinguido de qualquer outro objeto. (LANDIM FILHO, R. L. Evidncia e Verdade noSistema Cartesiano,So Paulo: Loyola, 1992, p. 101).

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    enumerao e da reviso verificam respectivamente se a anlise est completa

    e se correta a execuo da sntese.

    Ao contrrio da filosofia aristotlica e medieval, no se trata mais de

    encontrar o universal por meio da abstrao das diferenas. Trata-se agora de

    encontrar as naturezas simples que so objetos da intuio. As meras

    aproximaes ou generalizaes imperfeitas do conhecimento tradicional so

    suplantadas pelo rigor da pesquisa conduzida segundo a restrita obedincia s

    regras e pode-se assegurar a infalibilidade do conhecimento adquirido, na

    medida em que a pesquisa se orienta pelo critrio da clarezae da distino.

    1.3 O CETICISMO METODOLGICO

    NasMeditaes Metafsicas,Descartes aplica as determinaes do

    mtodo ao saber tradicional em busca de uma verdade clara e distinta, portanto,

    evidente, a partir da qual se possa reconstruir o edifcio do saber iluminado

    pela razo. Nesse percurso, Descartes exerce racionalmente um ceticismo

    estabelecido segundo a regra da decomposio. A suspenso do juzo comea

    naquele que parece ser o nvel mais imediato do saber, o conhecimento

    sensvel, e adentra naqueles que se experimenta pelo uso exclusivo do

    intelecto, a matemtica e as ideias. Como determina a primeira regra, nenhum

    resqucio de dvida pode incidir sobre uma afirmao qualquer que possa ser

    considerada um ponto de partida para o encadeamento correto de raciocnios e

    que signifique um fundamento para o saber em relao a todas as coisas:

    o menor indcio de dvida que eu nelas encontrar ser suficientepara impelir-me a repelir todas. E, para isso, no indispensvelque analise cada uma em particular, o que requereria um esforoimenso; porm, visto que a destruio dos alicerces provocainevitavelmente o desmoronamento de todo o edifcio, no incioirei me aplicar nos princpios sobre os quais todas as minhasantigas opinies estavam assentadas8.

    8Meditaes Metafsicas, So Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 250.

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    A experincia sensvel a base de tudo o que at ento considerara

    verdadeiro. Mas, por vezes, os sentidos mostraram-se enganosos. Exemplo

    disso a nitidez e a impossibilidade de dvida sobre experincias que, apesar

    de toda aparncia de realidade, podem ser vividas durante os sonhos. Ainda

    que estes sejam povoados por coisas e formas completamente distintas do que

    experimentamos quando estamos despertos, ao menos alguma semelhana

    devem ter com as coisas que consideramos reais e verdadeiras. Por mais que o

    contedo do nosso pensamento possa ser fantstico e imaginrio, sua

    composio se d a partir de outras coisas que so, a princpio, realmente

    existentes. Independente de ser real ou fictcia, todas as imagens queexperimentamos so formadas da composio de algumas cores verdadeiras,

    por exemplo. A natureza dos objetos corpreos em geral pertence a esse

    mesmo gnero. Todas as coisas fsicas apresentam uma extenso e uma figura,

    uma quantidade, ocupam um lugar no espao e possuem uma durao no

    tempo. Assim, o objeto pode ser duvidoso quanto sua realidade, mas essas

    propriedades so indubitavelmente verdadeiras e delas no se pode prescindir

    mesmo na criao de uma pintura. Assim pode-se afirmar a segurana e aincerteza de tipos distintos de conhecimento:

    Talvez seja por isso que ns no concluamos mal se afirmarmosque a fsica, a astronomia, a medicina e todas as outras cinciasdependentes da considerao das coisas compostas so muitodbias e incertas; mas que a aritmtica, a geometria e outrascincias desta natureza, que s se dedicam a coisas bastantesimples e gerais, sem se preocuparem muito se elas existem ouno na natureza, encerram alguma coisa de certo e incontestvel.Portanto, quer eu esteja acordado, quer esteja dormindo, dois

    mais trs formaro sempre o nmero cinco e o quadrado jamaister mais do que quatro lados, e no parece possvel queverdades to evidentes possam ser suspeitas de alguma falsidadeou dvida9.

    Mas, na verdade, a fora corrosiva da dvida metdica permite colocar

    sob suspeita at mesmo as cincias consideradas puras ou no empricas.

    9Idem, p. 252.

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    Segundo o rigor da regra, pode-se argumentar que no impossvel que um

    Deus absolutamente poderoso tenha nos criado de tal maneira que somos

    levados a sentir os objetos sensveis, a terra, o nosso corpo, sua extenso, sua

    figura, seu lugar ou sua durao; sem que de fato nada disso exista. Segundo

    seus desgnios, que ignoramos, pode ser que esse Deus tenha desejado que nos

    equivoquemos todas as vezes que realizamos uma soma, ou quando

    enumeramos os lados de um quadrado ou de um tringulo. Como ele permitiria

    que nos enganssemos algumas vezes, no absurdo supor que, para o nosso

    bem, nos levasse a nos enganar sempre com relao ao conhecimento que

    julgamos ter sobre todas as coisas.A demolio em srie das certezas tradicionais no as impede de

    retornarem frequentemente ao esprito e determinarem-lhe a crena. Como

    apesar de duvidosas, elas permanecem bastante provveis, Descartes insiste

    que o livre exerccio da dvida, fingindo que todas elas so falsas e

    imaginrias, permite avali-las cuidadosamente a fim de evitar que exeram

    sobre seus juzos alguma m influncia. Como no se trata do mbito do agir,

    mas de investigar o nosso conhecimento, o esforo em enganar a si mesmopermite suspender provisoriamente todas as antigas opinies sem que essa via

    resulte em imprudncia prtica. A deciso de manter-se no caminho que pode

    conduzir ao conhecimento da verdade exige a radicalidade do mtodo de

    duvidar. O pleno exerccio da dvida a eleva ao plano metafsico e culmina

    com a maior objeo ctica possvel s verdades conhecidas: a possibilidade de

    que no um verdadeiro Deus, mas um gnio maligno to poderoso quanto

    enganador nos tivesse criado, no para nos equivocarmos em relao a apenasalgumas coisas, mas para que nada pudssemos de fato conhecer. Que tudo que

    julgamos existir, como nosso prprio corpo, nossos sentidos e mesmo as

    proposies da matemtica e da geometria no passem de iluses

    ardilosamente criadas para que acreditssemos ingenuamente na realidade do

    mundo, das coisas que o compem e tambm no conhecimento das coisas mais

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    simples e gerais, objetos das cincias puras. Segundo a convico de que nada

    se pode saber com certeza, resta-nos, no mximo, a suspenso do nosso juzo.

    1.4 A SUPERAO DA DVIDA

    A dvida, enquanto um recurso metodolgico, visa logicamente um fim.

    Na segunda meditao, Descartes lembra Arquimedes que a fim de tirar o

    globo terrestre de seu lugar e transport-lo para outro, no pedia nada mais que

    no fosse um ponto fixo e certo

    10

    . A exigncia de que nada que possa serobjeto de dvida seja admitido no esprito e de que somente aquilo que se

    apresentar clara e distintamente esteja contido em nosso juzo, remete

    definio do que Descartes entende por evidncia.Como vimos, Descartes a

    encontra na intuio. E por intuio ele entende o conceito da mente pura e

    atenta to fcil e distinto que nenhuma dvida nos fica acerca do que

    compreendemos. A intuio um ato fundamental do conhecimento porque se

    trata de uma verdade que independe de qualquer mediao dos sentidos. da

    ordem exclusiva do pensamento. E pelo termo pensamento Descartes entende

    tudo aquilo que existe em ns de to factual que sejamosimediatamente conscientes dele, como, por exemplo, todas asoperaes da vontade, do intelecto, da imaginao e dos sentidosso pensamentos. E acrescentei imediatamente para excluirtudo aquilo que disso deriva: assim, por exemplo, um movimentovoluntrio tem como seu ponto inicial o pensamento, mas ele

    prprio no pensamento11.

    Portanto, qualquer que seja o ponto fixo que se possa alcanar diante dapossibilidade de todas as nossas certezas terem sido plantadas em ns pelo

    gnio maligno, ele ter que ser uma verdade tal que nenhuma dvida seja

    possvel e que se apresente clara e distintamente ao puro pensamento. E ento,

    mesmo admitindo a hiptese do gnio maligno, Descartes conclui:

    10Idem, p. 257.11Descartes, apudReale G. & Antiseri D., op. cit, p. 367.

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    Mas eu me convenci de que nada existia no mundo, que nohavia cu algum, terra alguma, espritos alguns, nem corposalguns, logo, no me convenci tambm de que eu no existia?

    Com certeza no; sem dvida eu existia, se que me convenci ous pensei alguma coisa. Mas existe algum, no sei quem,enganador muito poderoso e astucioso, que dedica todo o seuempenho em enganar-me sempre. No h, ento, dvida algumade que existo, se ele me engana; e, por mais que me engane,nunca poder fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar seralguma coisa. De maneira que, depois de haver pensado bastantenisto e analisado cuidadosamente todas as coisas, se faznecessrio concluir e ter por inaltervel que esta proposio, eusou, eu existo, obrigatoriamente verdadeira todas as vezes quea enuncio ou que a concebo em meu esprito12.

    Aqui a dvida cessa, pois no h argumento que possa questionar a

    clareza de tal evidncia. Dos dados dos sentidos s grandezas matemticas

    nada resiste ao recurso da dvida, a no ser a constatao firme do cogito.

    Dos atributos da alma o pensamento o que se mostra inalienvel pela

    dvida metdica: Nada sou, ento, a no ser uma coisa que pensa, ou seja, um

    esprito, um entendimento, uma razo13. Descartes define a natureza de sua

    existncia como res cogitans, ou uma realidade pensante e uma identidade

    entre pensamento e ser. Trata-se do pensamento em ato. a conquista de uma

    verdade primeira que se revela clara e distinta e relativa sua prpria

    existncia. Essa verdade retorna e confirma as regras que, agora

    fundamentadas, so assumidas como norma para a aquisio de qualquer saber.

    A partir de agora, toda verdade que se possa alcanar deve trazer consigo essa

    mesma marca. A filosofia se torna a doutrina do conhecimento, gnosiologia. A

    clareza e a distino, estabelecidas como garantia de verdade, dispensam

    quaisquer outras garantias e justificaes. O cogito um princpio autoevidente

    que revela a transparncia da conscincia para si mesma e qualquer verdade s

    poder ser admitida aps se mostrar adequada e coerente com essa evidncia:

    ao notar que esta verdade: eu penso, logo existo, era to slida eto correta que as mais extravagantes suposies dos cticos noseriam capazes de lhe causar abalo, julguei que podia consider-

    12Meditaes Metafsicas, op. cit., p. 258.13Idem, p. 260.

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    la, sem escrpulo algum, o primeiro princpio da filosofia que euprocurava.14

    Descartes, portanto, promove uma revoluo na filosofia. O modelo

    aristotlico-tomista suplantado pelo mtodo da anlise, da sntese e da

    verificao. A partir de agora, o critrio de verdade a clareza e a distino

    com que um conhecimento se apresenta ao intelecto, como a certeza de nossa

    existncia como res cogitans.

    1.5 DEUS E A CINCIA

    A primeira certeza, ou o princpio fundamental que a aplicao das

    regras do mtodo permitiu alcanar a conscincia de si como res cogitans.

    Cabe ento, a partir desta certeza, analisar o cogito e o contedo que ele

    apresenta a fim de descobrir se a clareza e a distino que apresenta podem ser

    tambm atributos de um possvel conhecimento do mundo, ou seja, daquilo que

    no identificvel com a prpria conscincia. Como uma intuio intelectual,

    o cogito absolutamente certo e indubitvel. Mas outros pensamentos o

    povoam na medida mesma em que se trata de ser ele uma realidade pensante.

    s formas de cada um dos pensamentos Descartes chama ideias.A ideia

    que expressa o carter fundamental do pensamento graas ao qual ele , sem

    mediao alguma, sabedor de si mesmo: "E assim, no dou o nome de ideia s

    simples imagens que so pintadas na fantasia, (...) mas somente na medida em

    que enformam o prprio esprito15. O eu de Descartes revela-se o lugar das

    ideias. Estas no so meras essncias ou arqutipos do mundo sensvel, mas

    so presenas reais na conscincia. As imagens da fantasia so resultantes de

    combinaes diversas feitas pela imaginao, a partir de ideias originrias ou

    de percepes sensveis cuja referncia a uma existncia fora do esprito

    ainda duvidosa. Mas sua presena como forma do pensar, independente de sua

    origem, faz das ideias a forma do prprio eu enquanto aquilo que intudo.

    14Discurso do Mtodo, op. cit., p. 62.15DESCARTES, R. Razes. So Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 101.

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    No itinerrio da dvida metdica, Descartes lanara mo da

    possibilidade de que algum Deus lhe tivesse criado com uma natureza tal que o

    levaria a enganar-se sempre que afirmasse qualquer certeza, mesmo em relao

    s coisas que considerasse mais patentes. Portanto, a dvida sobre a existncia

    dos objetos dos sentidos, sobre a existncia do prprio corpo e tambm sobre

    as proposies matemticas permanece mesmo depois da certeza de si mesmo

    como ser pensante16. A despeito do carter hipottico do argumento do Deus

    enganador, somente com sua superao que o caminho seguro para a cincia

    das coisas e do mundo pode se abrir:

    Visto que no tenho razo alguma para crer que exista algumDeus que seja embusteiro, e mesmo que ainda no tenhaconsiderado aquelas que provam que existe um Deus, a razo deduvidar que depende somente desta opinio bastante frgil e,

    por assim dizer, metafsica. Porm, para poder afast-latotalmente, devo analisar se existe um Deus, to logo surja aoportunidade; e, se concluir que existe um, devo tambm analisarse Ele pode ser embusteiro: j sem o conhecimento dessas duasverdades, no vejo como eu possa ter certeza de coisa alguma. E

    para que eu possa ter a oportunidade de analisar isto seminterromper a ordem de reflexo que me propus, que de passargradativamente das noes que encontrar em primeiro lugar nomeu esprito para aquelas que a poderei achar depois, necessrio que eu separe aqui todos os meus pensamentos emcertos gneros e avalie em quais deles existe verdade ouequvoco.

    17

    16Landim Filho argumenta que a caracterizao cartesiana da ideia como tudo aquilo que imediatamente percebido pelo esprito demonstra sua ruptura com a concepo realista dafilosofia escolstico-tomista. O objeto formal do intelecto no so as coisas mesmas nem as

    quididades, ou as formas das coisas materiais. Sob essa concepo repousa a tese fundamentalda acessibilidade imediata aos atos de conscincia pelo sujeito e o carter problemtico doacesso s coisas que existem fora do pensamento: A dvida do sonho e a dvida metafsica

    puseram em questo a existncia das coisas particulares, a realidade efetiva (no vocabulriocartesiano, a realidade atual ou formal) das prprias coisas, mas nem por isso foram postos emquesto os atos de conscincia: existindo ou no entes fora do pensamento, indubitvel queo sujeito pensante tem conscincia de que algo aparece naconscincia. Obviamente, o que est

    presente (ou o que aparece) na conscincia no so as coisas mesmas. O que entopercebido? So as ideias de coisas. Mesmo aps ter sido eliminada a dvida do sonho e advida metafsica, mesmo quando j tiver sido demonstrado que os corpos exteriores existentesso causas (ocasionais) das ideias sensveis, ter conscincia de algo (ou simplesmenteperceber) significar ainda ter umaideia de algo(LANDIM FILHO, op. cit., p. 56).17Meditaes Metafsicas, op. cit., p. 271.

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    Descartes identifica no esprito trs tipos de ideias. Elas podem ser

    adventcias, vindas de fora e remetentes a coisas diversas ao eu; podem ser

    factcias, construdas pelo prprio eu, e podem tambm ser inatas, surgidas

    juntamente com a prpria conscincia. A realidade subjetiva dos trs tipos de

    ideias inegvel. Porm, quanto realidade objetiva, nem todas so

    absolutamente seguras. As ideias factcias, por serem construdas pela prpria

    conscincia, so quimricas, ilusrias e, portanto, descartadas. As ideias

    adventcias s podem ser consideradas objetivas com a condio de que o

    mundo externo, assim como as faculdades sensveis que possibilitam a sua

    percepo e a prpria memria que permite conserv-la no eu, sejaminegavelmente objetivos. O carter objetivo das faculdades e do mundo externo

    vai depender ento do terceiro tipo de ideias, as ideias inatas, ou, de uma

    possvel ideia adventcia que tenha como origem algo distinto dos dados dos

    sentidos.

    Rejeitando os juzos do senso comum sobre a objetividade das ideias na

    conformidade com o mundo e vice-versa, Descartes opta pela anlise das ideias

    mesmas. Se o juzo do senso comum arvora-se a apontar a origem das ideias nomundo externo, mesmo que seja essa a origem, ele no garante a

    correspondncia ou a semelhana da ideia com o objeto, uma vez que podemos

    ser enganados a todo instante por um Gnio Maligno. Assim, tomadas as ideias

    como formas do pensar, todas parecem provir do prprio ser que pensa. Mas

    tomadas como imagens fcil concluir que elas diferem entre si. Aquelas que

    representam substncias contm mais realidade objetiva, ou possuem graus

    maiores de ser ou de perfeio do que as ideias que representam modos ouacidentes. Seu exemplo:

    Aquela pela qual eu concebo um Deus soberano, eterno, infinito,imutvel, onisciente, onipotente e criador universal de todas ascoisas que esto fora dele; aquela, digo, tem com certeza em simais realidade objetiva do que aquelas pelas quais as substnciasfinitas me so representadas

    18.

    18Idem, p. 276.

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    A luz natural, ou, a evidncia das ideias claras e distintas que

    o cogitorevelou, ensina que deve haver tanta realidade na causa quanto em seu

    efeito, pois o efeito s pode tirar sua realidade da causa. E a causa s pode

    comunicar tal realidade ao efeito contendo-a em si mesma. com o princpio

    de causalidade que Descartes chega prova da existncia de Deus pelo efeito:

    Pelo nome de Deus entendo uma substncia infinita, eterna,imutvel, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu

    prprio e todas as coisas que so (se verdade que h coisas queexistem) foram criados e produzidos. Ora essas vantagens so tograndes e to importantes que, quanto mais cuidadosamente asconsidero, menos me conveno de que essa ideia possa haver-se

    originado apenas de mim. E, portanto, necessrioobrigatoriamente concluir, de tudo o que foi dito antes, que Deusexiste; porque, mesmo que a ideia da substncia esteja em mim,

    pelo prprio fato de ser eu uma substncia, no teria a de umasubstncia infinita, eu que sou um ser finito, se ela no tivessesido colocada em mim por alguma substncia que fosse de fatoinfinita

    19.

    A diversidade da ideia de Deus em relao s coisas externas s pode

    vir ao pensamento graas causa mesma dessa diversidade, ou seja, graas a

    Deus. Se assim no fosse, toda a perfeio da ideia de Deus teria que estar em

    ns mesmos, o que faria de ns deuses, e que a nossa finitude desmente.

    Tambm nasMeditaes, Descartes formula ainda uma prova

    ontolgica de Deus. Segundo ele, uma vez que a existncia parte integrante

    da essncia de Deus, no possvel ter a ideia de Deus, ou a ideia de sua

    essncia, sem admitir tambm a sua existncia. A existncia de Deus pertence

    clara e distintamente sua natureza e, segundo Descartes, causa tanta

    repugnncia conceber um ser soberanamente perfeito que, no entanto, no

    exista, quanto conceber uma montanha sem vale. Portanto, Deus

    verdadeiramente existe.

    Assim Descartes apresenta duas provas da existncia de Deus obtidas

    pelo mtodo racional. A razo se impe como guia fundamental do homem na

    busca do conhecimento. O mtodo garantia saber que constitui um verdadeiro

    19Idem, p. 281.

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    sistema da razo que permite alcanar a verdade de Deus na fundamentao

    lgica e ontolgica, como causa da ideia que habita sua conscincia e na

    medida em que a definio de sua essncia garantia necessria da sua prpria

    existncia.

    Mas, apesar da existncia de Deus estar claramente provada, poderia ser

    Ele um embusteiro? A prpria anlise da ideia de um ser absolutamente

    perfeito implica em que Ele no , como a substncia finita, carente de nada.

    ato puro e nada em sua realidade indica qualquer necessidade ainda a se

    efetivar. E como a mentira ou o embuste indicam, segundo a razo, alguma

    necessidade, fraqueza ou malcia, patente, portanto, que ele no enganador.Mas inegvel que erramos. E se o mtodo aqui apresentado pretende

    ser o caminho para a superao da iluso e do engano e a via segura de todo

    conhecimento possvel, resta ainda a tarefa de demonstrar qual a origem do

    erro.

    Segundo Descartes, o equvoco uma privao de algum conhecimento

    que a princpio se deveria ter. E no se pode atribuir a Deus uma obra que no

    contivesse tambm toda a perfeio que nele se encontra. Pode ser que,segundo seus indecifrveis desgnios, o erro da criatura finita seja o mais

    conveniente na absoluta e inegvel perfeio do todo. Mas os enganos

    testemunham a imperfeio do prprio ser finito e a anlise desses enganos

    mostra que sua ocorrncia depende de duas causas conjuntas que so atributos

    do homem: a capacidade de conhecer e a capacidade de escolher ou o livre-

    arbtrio. Trata-se da convivncia em ns de duas faculdades distintas: o

    entendimento e a vontade. O entendimento a faculdade de conceber as ideiasrelativas s coisas. Mas a afirmao ou negao dessas ideias deciso da

    vontade. Nesse sentido, o entendimento no a fonte do erro. Pode lhe faltar o

    conhecimento de muitas coisas, mas o fato de lhe faltarem tais ideias no

    significa que Deus tivesse lhe dado uma capacidade menor do que a devida.

    Tambm no h razo para lamentar que sua vontade ou seu livre-

    arbtrio sejam estreitos demais para evitar o engano, pois o que essa faculdade

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    revela justamente o oposto, uma visvel ausncia de limites. Dentre todas as

    faculdades que possumos, o entendimento, a imaginao ou a memria,

    demonstram sempre nossa limitao em relao aos atributos divinos. Mas

    nenhuma se apresenta mais ampla e extensa do que a vontade. O que

    demonstra como nenhuma outra faculdade a imagem e semelhana que temos

    com o Criador. No entanto, justamente nessa discrepncia entre o alcance da

    vontade e o poder do nosso entendimento que se encontra a origem do erro.

    Incapaz de conter a vontade nos limites do entendimento, o homem no hesita

    muitas vezes em estend-la para alm das coisas que de fato compreende e

    escolhe o mal e o falso em detrimento do bem e do verdadeiro:

    Ento, se evito exprimir meu juzo a respeito de uma coisa,quando no a concebo com bastante clareza e distino, evidente que o emprego muito bem e que no estou equivocado;

    porm, se decido neg-la ou afirm-la, ento no emprego comodevo meu livre-arbtrio; se garanto o que no verdadeiro, evidente que me equivoco, e mesmo que julgue de acordo com averdade, isto no acontece a no ser por acaso e eu no deixo deerrar e de empregar mal meu livre-arbtrio; pois a razo nosensina que o conhecimento do entendimento deve sempre virantes da determinao da vontade. E nesse mau emprego do

    livre-arbtrio que se encontra a privao que constitui a forma doengano

    20.

    O fato de no ter dotado o homem da sua prpria oniscincia no uma

    imperfeio de Deus. No cabe censur-lo por no ter nos criado de tal modo

    que nunca errssemos, pois se no sabemos a ordem da totalidade do mundo,

    nada impede que nosso conhecimento avance cada vez mais desde que

    respeitemos as determinaes do mtodo e que usemos nosso entendimento

    com responsabilidade:

    todas as vezes que mantenho minha vontade dentro dos limitesdo meu conhecimento, de tal maneira que ela no formule juzoalgum a no ser a respeito das coisas que lhe so clara edistintamente representadas pelo entendimento, no lhe podeacontecer que eu me equivoque; pois toda concepo clara edistinta , com certeza, alguma coisa de real e de positivo, e,assim, no pode se originar do nada, mas deve ter

    20Idem, p. 298.

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    obrigatoriamente Deus como seu autor; Deus, que, sendoperfeito, no pode ser causa de equvoco algum; e, porconseguinte, necessrio concluir que uma tal concepo ou um

    tal juzo verdadeiro.21

    Por fim, a prpria concepo tradicional de que toda verdade estaria

    pronta e dada por Deus nas escrituras e de que toda cincia possvel seria

    restrita aos limites do que uma teologia tradicional estabelecia como legtimos,

    cai por terra. A ideia de Deus em ns, como mostra Descartes, sugere a

    capacidade inegvel do homem de conhecer o verdadeiro em relao a si

    mesmo, ao mundo e imutabilidade das leis que o governam. O ser pensante,

    sua primeira certeza, s pode relacionar-se com um mundo externo na medida

    em que as ideias adventcias, resultantes da experincia sensvel, se mostram

    dignas de aprofundamento por meio do prprio mtodo da razo. graas

    indiscutvel objetividade da ideia de Deus e, portanto, sua inegvel

    existncia, que este mundo se torna resistente dvida. O deus enganador e o

    gnio maligno so eliminados e o mundo se abre como objeto passvel de um

    conhecimento verdadeiro. Deus , portanto, uma certeza da razo a partir da

    qual todas as outras se fundam. E no cabe ao homem, ser racional, duvidar desua existncia e de sua absoluta perfeio.

    1.6 O MECANICISMO

    Vimos que entre os tipos de ideias que se encontram na conscincia,

    Descartes enumera, alm das ideias inatas como a de Deus, aquelas que so

    fruto das operaes da imaginao e as ideias adventcias, que seriam causadas

    pelas coisas que poderiam existir fora da conscincia. A imaginao e as

    faculdades sensrias so passivas e se caracterizam por receber estmulos e

    sensaes. E uma vez demonstrada a existncia e a veracidade de Deus, ambas

    encontram-se, portanto, isentas de dvida e plenamente reabilitadas. E essas

    faculdades atestam a existncia do mundo fsico. Embora no devamos admitir

    21Idem, p. 301.

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    sem critrio todas as informaes que recebemos dos sentidos, tambm no h

    mais motivos para recus-las sumariamente, como se fossem necessariamente

    suspeitas. Desde que sejam observados os critrios da clareza e da distino

    que o mtodo prescreve, podemos evitar os enganos e conhecer o que de fato

    verdadeiro.

    O que os sentidos nos mostram do mundo externo apresenta sempre, e

    de maneira clara e distinta, a propriedade de ser extenso. Tudo o que se pode

    atribuir aos corpos pressupe a caracterstica essencial da extenso e nenhuma

    outra propriedade dos corpos se apresenta de modo to universal e necessrio.

    Outras propriedades como a cor, o peso, o som ou o sabor so todassecundrias. Assim, se o ser pensante nomeado res cogitans, o mundo

    sensvel res extensa. Toda a realidade se divide entre essas duas esferas22. O

    universo composto de matria e do movimento que Deus aplicou ao mundo

    no ato da criao. Portanto, a teoria atomista do vcuo no pode se sustentar.

    Tudo o que acontece causado pelo choque entre as partculas que movem

    umas s outras. Essa dinmica universal seria a razo do magnetismo, do

    crescimento das plantas, das funes fisiolgicas involuntrias nos homens enos animais, do calor, da luz, etc. O mundo compreendido como um imenso

    relgio mecnico, e o movimento de suas partes torna-se previsvel, segundo

    leis constantes como o princpio de conservao,que afirma a constncia da

    quantidade de movimento, que pode apenas ser transmitido, mas nunca

    degradado ou ampliado no mundo; e o princpio da inrcia que diz que

    qualquer mudana de direo s pode se dar atravs da impulso de outros

    corpos.Tanto o corpo humano como os organismos animais so pensados

    segundo essas leis. So mquinas e, portanto, objetos de anlise cientfica.

    22 Segundo Reale e Antiseri, essa proposio possui uma fora devastadora em relao sconcepes animistas tpicas do renascimento, para as quais tudo era permeado de esprito eque explicavam as interaes entre os fenmenos naturais. No existem realidadesintermedirias entre a res cogitans e a res extensa.O corpo humano, o reino animal e o mundofsico em geral so plenamente explicveis segundo as leis da mecnica, sem que se preciserecorrer a qualquer doutrina mgica ou ocultista (REALE G. & ANTISERI D., op. cit., p .377).

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    Com o modelo mecnico de interpretao da natureza, graas simplicidade de

    seus elementos tericos, torna-se vivel a construo de instrumentos tcnicos

    de pesquisa. E o conhecimento terico pode ser aplicado na transformao

    prtica do mundo. O esprito humano converte-se da cincia contemplativa

    cincia ativa, da teoriaprxis.E alcana, por fim, a unidade entre experincia

    e evidncia racional.

    Leituras obrigatrias

    1. DESCARTES, R, Meditaes metafsicas. Coleo OsPensadores. Trad. Enrico Corvisieri. So Paulo: NovaCultural, 1999 (primeira a quarta meditaes).

    2. LANDIM FILHO, R. F. Evidncia e verdade no SistemaCartesiano. So Paulo: Loyola, 1992, pp. 99-116(Captulo quinto: Evidncia e verdade).

    Leituras complementares

    FORLIN, E. O papel da dvida metafsica na constituio docogito. So Paulo: Humanitas, 2004.

    SILVA, F. L. Descartes: A Metafsica da modernidade. SoPaulo: Moderna, 2005.

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    UNIDADE 2 - HUME:

    O EMPIRISMO

    CTICO

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    mundo externo depende totalmente da constatao da existncia de Deus e da

    certeza de que Ele no um embusteiro. Mas a existncia e a veracidade de

    Deus resistem dvida metdica que suspeita das ideias resultantes das

    impresses dos sentidos e tambm das ideias da imaginao porque a ideia de

    Deus uma ideia inata. Para Hume, no existem ideias inatas, somente as

    impresses so originrias:

    O que se entende por inato? Se inato equivalente a natural,ento se deve conceder que todas as percepes e ideias doesprito so inatas ou naturais, em qualquer sentido que tomemos

    este ltimo termo, seja em oposio ao que inslito, artificialou miraculoso. Se inato significa contemporneo ao nossonascimento, a discusso parece ser frvola, pois no vale a penaaveriguar em que momento se comea a pensar: se antes oudepois de nosso nascimento. Demais, parece-me que Locke eoutros tomam o termo em sentido muito vago, tanto indicandonossas percepes, sensaes e paixes, como nossos

    pensamentos. Ora, neste sentido eu gostaria de saber o que quese quer dizer quando se afirma que o amor-prprio ou oressentimento por injrias sofridas ou a paixo entre os sexosno inata? Mas admitindo-se os termos impressese ideiasno

    sentido exposto acima e entendendo porinato

    o que primitivoou no copiado de nenhuma percepo precedente, podemosento afirmar que todas as nossas impresses so inatas e que

    nossas ideias no o so25.

    O primeiro princpio da natureza humana exprime a necessria

    derivao das ideias daquilo que as precede necessariamente, a experincia. A

    diferena entre ambas a mesma que podemos apontar entre um modelo e sua

    respectiva cpia.

    As impresses podem ser simples, como a experincia da cor verde, do

    frio ou do quente, por exemplo. E podem ser complexas, como a impresso de

    uma ma, que traz, em conjunto, sensaes diversas como a cor, o cheiro e o

    sabor. Simples ou complexas, as impresses so dadas imediatamente como se

    apresentam aos sentidos. As ideias complexas, por sua vez, podem ser

    derivadas das impresses complexas ou podem ser resultantes das combinaes

    25Idem, p. 39.

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    que ocorrem em nosso intelecto por meio da memria ou da imaginao.

    Assim como as impresses complexas, as ideias complexas podem ser

    divididas em partes, que so ideias simples para as quais existem sempre as

    impresses correspondentes. Hume desafia os crticos desse princpio da

    semelhana universal a apresentarem uma ideia simples que no tenha uma

    impresso correspondente.

    As ideias simples, por sua vez, podem se agregar umas s outras

    segundo certos princpios de associao que parecem ser independentes da

    poca ou do lugar. Esses princpios so os de semelhana, de contiguidade e de

    causa ou efeito.

    Embora outros filsofos como Locke possam ter tentado enumerar os

    princpios possveis de associao entre as ideias, Hume recorre a exemplos

    que podem assegurar a correo e a completude dessa enumerao. Segundo a

    inteno que tem ao produzir sua obra, um poeta ou um historiador deve unir

    na imaginao os eventos que relata, por alguma espcie de lao ou elo, para

    que formem uma unidade que permita situ-los em um nico plano ou ponto de

    vista como objeto e objetivo final do autor. Assim, as aes dos deuses na obrade Ovdio so apresentadas segundo o plano modelado segundo o princpio de

    semelhana. Uma ideia nos remete a outra que seja semelhante como uma

    fotografia que faz a mente ser remetida pessoa ou paisagem que ela

    representa. A unidade de uma narrativa histrica seria orientada pela conexo

    de contiguidade entre os eventos de uma determinada poro do tempo e do

    espao que se queira descrever. Uma ideia remete a outra que se apresenta

    mente como habitualmente ligada primeira, como a referncia ao nmero deendereo de uma casa se permite localizar na medida em que lembra o

    endereo imediatamente anterior ou posterior.

    Porm a mais comum das espcies de relao entre eventos distintos a

    de causa e efeito.Tanto o historiador quanto o poeta, em nome da unidade de

    ao de sua narrativa, remetem s fontes remotas de um determinado evento

    quanto procuram descrever suas consequncias:

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    Ele sabe que o conhecimento de causas no apenas o mais

    satisfatrio, j que esta relao ou conexo mais forte do quetodas as outras, mas tambm mais instrutivo, pois unicamentepor este conhecimento que somos capazes de controlar eventos e

    governar o futuro26.

    2.3 O PRINCPIO DE CAUSALIDADE E O PROBLEMA DE HUME

    Hume tambm divide em dois gneros distintos todos os objetos da razo ou

    da investigao humanas: so sempre relaes de ideias ou relaes de fatos. Aoprimeiro tipo pertencem cincias como a geometria, a lgebra e a aritmtica. So

    compostas de asseres intuitivamente e demonstrativamente certas:

    Que o quadrado da hipotenusa igual soma do quadrado dos

    dois lados, uma proposio que exprime uma relao entreestas figuras. Que trs vezes cinco igual metade de trintaexprime uma relao entre estes nmeros. As proposies destegnero podem descobrir-se pela simples operao do pensamentoe no dependem de algo existente em alguma parte do universo.Embora nunca tenha havido na natureza um crculo ou umtringulo, as verdades demonstradas por Euclides conservaro

    para sempre sua certeza e evidncia27.

    Esse tipo de proposies obtido com base apenas noprincpio de no

    contradio. Se se admite a definio de tringulo de Euclides, necessrio

    admitir a validade do teorema mencionado. Assim como, dada a significao

    atual dos nmeros, seria contraditrio afirmar que trs vezes cinco diferente

    da metade de trinta. A essa classe de proposies, Kant chamar juzosanalticos.No se referem ao que possa existir ou no no mundo, mas apenas

    operam com base em contedos ideais.

    J as relaes entre fatos no so determinadas do mesmo modo. O

    contrrio de um fato qualquer no implica em contradio e , portanto,

    26Idem, p. 42.27Idem, p. 47.

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    plenamente possvel. Pode ser concebido como se se encontrasse em pleno

    acordo com a realidade: Que o sol no nascer amanh to inteligvel e no

    implica mais contradio do que a afirmao de que ele nascer28. O nosso

    intelecto pode conceb-lo distintamente e, por outro lado, no pode demonstrar

    sua falsidade. A relao de causa e efeito parece fundar todos os raciocnios

    que se referem aos fatos. Por isso Hume prope investigar qual a natureza da

    evidncia que nos assegura a realidade de uma existncia e de um fato que no

    esto atualmente ao alcance dos nossos sentidos e nem registrados em nossa

    memria. por meio da relao de causa e efeito que ultrapassamos os dados

    dessas faculdades e supomos que h uma conexo entre o fato presente e outrofato que inferimos dele.

    O famoso problema lanado por Hume diz respeito justamente a essa

    passagem, operada pela nossa razo, e que concerne ao objetivo maior da

    pesquisa cientfica: a previso dos fenmenos segundo o princpio de

    causalidade. O conhecimento que temos da relao de causa e efeito provm

    inteiramente da experincia, na medida em que observamos a conjuno

    constante entre os objetos. Mas nenhum objeto revela aos nossos sentidos ascausas que o produziram nem os efeitos que dele surgiro. Todo efeito um

    fato distinto daquele que chamamos sua causa e podemos imaginar a

    ocorrncia de um sem a do outro. E nossa razo incapaz de fazer tal

    inferncia sem o auxlio da experincia. Porm, a experincia no nos d

    qualquer fundamento que assegure a vigncia para todo o sempre da relao

    que observamos no passado.

    A causa uma ideia absolutamente distinta da ideia do efeito. Nem amais detalhada anlise da primeira nos permite descobrir a priorio efeito a ela

    correspondente. No se pode atribuir razo a descoberta das causas e dos

    efeitos. O poder explosivo da plvora ou a atrao do im, no poderiam ser

    conhecidos por meio de argumentos lgicos. Estamos to acostumados com

    certas sucesses de eventos que nos parece possvel prever seus efeitos sem o

    28Idem, p. 48.

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    recurso da experincia. Se diante de um objeto desconhecido tivssemos que

    nos pronunciar sobre os efeitos que dele resultaro, o mximo que poderamos

    fazer seria inventar ou imaginar arbitrariamente um outro objeto como

    consequncia. Pois o efeito totalmente diferente da causa e no pode ser

    descoberto nela. Se uma bola de bilhar atinge outra bola, parece que

    poderamos inferir que a primeira impulsionaria a segunda. Mas, no

    movimento da primeira bola no h o menor indcio do possvel movimento da

    segunda. E mesmo que me ocorresse deduzir o segundo movimento do

    primeiro, muitos outros resultados poderiam me ocorrer como possveis. As

    bolas poderiam permanecer ambas em repouso; ou a primeira poderiaretroceder aps o choque. So possibilidades concebveis e portanto

    compatveis com o evento inicial. Nenhum raciocnio puro pode justificar por

    que rejeitamos umas possibilidades e preferimos outra.

    Quando raciocinamos a priorie consideramos um efeito ou umacausa, tal como aparece ao esprito, ou seja, independente detoda observao, jamais poderia sugerir-nos a de um objeto

    distinto, como, por exemplo, seu efeito, e menos ainda mostrar-nos a inseparvel e inviolvel conexo entre eles. preciso queum homem seja muito sagaz para poder descobrir atravs doraciocnio que o cristal o efeito do calor e o gelo o efeito dofrio, sem estar previamente familiarizado com o funcionamento

    destes estados dos corpos29.

    Ao ver a gua pela primeira vez, Ado no poderia jamais inferir a

    priorique ela tem o poder de sufoc-lo e consequentemente afog-lo.

    Mas, segundo Hume, se nossos raciocnios sobre os fatos se fundam narelao de causa e efeito, e se nossas concluses sobre a relao causal se

    fundam na experincia; ento, qual o fundamento de todas as nossas

    concluses derivadas da experincia? A resposta de Hume que nossas

    concluses de experincia no se fundam sobre raciocnios ou sobre qualquer

    outro processo do nosso entendimento:

    29Investigao Acerca do Entendimento Humano, op. cit., p. 53.

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    Se nos fosse mostrado um corpo de cor e consistncia anlogas

    s do po que havamos comido anteriormente, no teramosnenhum escrpulo em repetir o experimento, prevendo comcerteza que ele nos alimentar e nos sustentar de maneirasemelhante. Ora, eis um processo do esprito e do pensamentocujo fundamento gostaria de conhecer. Toda a gente est deacordo que no se conhece nenhuma conexo entre as qualidadessensveis e os poderes ocultos e, por conseguinte, o esprito no levado a tirar uma concluso sobre a conjuno constante eregular daquelas, tendo por base algo que possa conhecer nanatureza destas. Pode-se admitir que a experincia passada dsomente uma informao direta e segura sobre determinadosobjetos em determinados perodos do tempo, dos quais ela teveconhecimento. Todavia, esta a principal questo sobre a qualgostaria de insistir: por que esta experincia tem de ser estendidaa tempos futuros e a outros objetos que, pelo que sabemos,unicamente so similares em aparncia. O po que outrora comialimentou-me, isto , um corpo dotado de tais qualidadessensveis estava, a este tempo, dotado de tais poderesdesconhecidos. Mas, segue-se da que este outro po devetambm alimentar-me como ocorreu na outra vez, e quequalidades sensveis semelhantes devem sempre seracompanhadas de poderes ocultos semelhantes? A consequncia

    no me parece de nenhum modo necessria30.

    A inferncia que o exemplo aponta, demonstra que h um processo do

    pensamento, ou um passo dado para alm da experincia efetiva, para o qual o

    simples uso da razo no pode dar explicao. A afirmao de que um objeto

    tem sido acompanhado por um certo efeito, no idntica afirmao de que

    outros objetos semelhantes a este sero necessariamente acompanhados por

    efeitos tambm semelhantes. Se se tratasse de uma inferncia feita por meio de

    uma cadeia de raciocnios, deveria haver um termo mdio que permitisse apassagem da primeira segunda afirmao. E tal termo mdio no existe. Do

    fato de o sol ter nascido todos os dias no passado, no h por que inferir com

    certeza que ele voltar a nascer amanh. O termo mdio requerido deveria

    garantir que as conexes j experimentadas entre o que chamamos de causa e o

    seu respectivo efeito, so necessrias e infalveis e que o futuro dever repetir o

    30Idem, p. 54.

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    passado. No contraditrio imaginar que eu coma o po e tenha como efeito a

    minha sensao de fome aumentada ou inalterada.

    Se os raciocnios que envolvem relaes entre ideias so

    demonstrativos, estes que envolvem relaes de fatos no podem ser

    demonstrados por nenhum tipo de argumento. No envolve contradio alguma

    a constatao de que o curso da natureza pode se modificar. Um objeto dotado

    das mesmas qualidades sensveis de outros j experimentados, pode trazer

    efeitos diferentes ou mesmo contrrios. Que o sol no nascer amanh ou que o

    fogo resfriar o ar em seu entorno so possibilidades que no carecem de

    clareza e de distino apenas pelo fato de no serem acontecimentoscorriqueiros. Sua falsidade no pode ser demonstrada por raciocnios a priori

    ou por argumentos demonstrativos.

    Mas um fato que, de causas semelhantes, esperamos efeitos tambm

    semelhantes. E se nem o argumento demonstrativo, nem mesmo o argumento

    provvel podem provar a semelhana entre o passado e o futuro. Ento, a

    experincia no possui autoridade alguma e completamente intil para

    garantirmos que uma vez dotados das mesmas qualidades sensveis os objetosestejam impedidos de trazerem consigo efeitos ou propriedades ocultas

    completamente distintas.

    No h motivo para que se dispense o valor da experincia enquanto

    pessoas que agem. Mas, como filsofo, Hume considera legtimo perguntar

    qual o processo de raciocnio que poderia nos assegurar a falsidade de qualquer

    conjectura, mesmo a mais estranha. Qual o fundamento dessa inferncia. A

    experincia ensina criana que o fogo queima e a lembrana da sensao dedor ao tocar a chama de uma vela a leva a esperar um efeito semelhante

    daquilo que apresenta as mesmas qualidades sensveis da chama que a

    queimou. Contudo, se algum afirmar que foi por algum processo de

    argumento ou de raciocnio que a criana chegou a tal concluso, justo que se

    pea para apresentar tal argumento. Dizer que muito complexo no

    aceitvel, j que para uma simples criana seria evidente.

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    Na relao causa-efeito esto presentes dois elementos essenciais:

    primeiramente, a contiguidade e a sucesso dos objetos que so de fato

    experimentadas. E ainda a conexo necessria entre esses objetos. Essa

    conexo no experimentada, mas somente inferida. Como vimos, para Hume,

    essa inferncia um salto ilegtimo de nossa razo, pois no h como garantir

    qualquer certeza em relao a ela.

    2.4 A SOLUO DO PROBLEMA

    Segundo Hume, constatamos a regularidade da contiguidade e dasucesso na experincia. Assim, uma vez presente a causa, esperamos pelo

    efeito. Portanto, inferimos a conexo necessria pelo fato de termos adquirido

    um hbitoou um costume ao experimentar a conexo constante no passado:

    Visto que todas as vezes que a repetio de um ato ou de umadeterminada operao produz uma propenso a renovar o mesmoato ou a mesma operao, sem ser impelida por nenhumraciocnio ou processo do entendimento, dizemos sempre queesta propenso o efeito do costume. Utilizando este termo, no

    supomos ter dado a razo ltima de tal propenso. Indicamosapenas um princpio da natureza humana, que universalmentereconhecido e bem conhecido por seus efeitos. Talvez no

    possamos levar nossas investigaes mais longe e nemaspiramos dar a causa desta causa; porm, devemos contentar-nos com que o costume o ltimo princpio que podemosassinalar em todas as nossas concluses derivadas da

    experincia31.

    O costume o que nos permite ir alm do que se apresenta

    imediatamente na experincia. Mas todas as proposies que se referem aofuturo permanecem sem qualquer fundamento. Por isso, de uma grande

    quantidade de casos semelhantes, tiramos uma concluso que no somos

    capazes de tirar de um nico caso. No se trata de um processo de raciocnio.

    As concluses que a razo tira ao analisar um crculo so as mesmas a que

    chegaria se analisasse todos os crculos do mundo, mas de uma nica

    31Investigao Acerca do Entendimento Humano, op. cit., p. 61.

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    observao de uma bola de bilhar ser impulsionada por outra, ningum poderia

    inferir que todos os outros corpos se moveriam ao receberem um impulso

    semelhante. Sem o costume, toda a nossa experincia seria intil. No

    saberamos escolher os meios segundo os fins e toda ao, assim como toda

    especulao, teriam fim. Ele , portanto, o grande guia da vida humana.

    sempre necessrio que um fato esteja presente aos sentidos ou

    memria para que possamos, a partir dele, tirar quaisquer concluses. Do

    contrrio, os nossos raciocnios permaneceriam puramente hipotticos. A razo

    por que dizemos acreditar em algum fato que podemos relatar a outros

    sempre um outro fato conectado ao primeiro. Mas, se tal conexo no terminaem um fato presente aos sentidos ou memria, no h fundamento que

    justifique a crena em sua realidade.

    Mas o costume, embora seja o nosso guia em questes de fato, no

    explica inteiramente o porqu de inferirmos de uma causa presente o efeito que

    ainda no se deu. A experincia que temos da conexo constante entre a chama

    e o calor, por exemplo, nos determina a esperar novamente o calor quando

    tivermos nova experincia da chama. A repetio nos leva a acreditarque estaconjuno existe necessariamente. Esta crena uma operao da alma to

    inevitvel quanto o motivo que nos leva a sentir amor por quem nos beneficia

    ou dio por quem nos comete uma injustia. Trata-se muito mais de uma

    espcie de instinto natural do que de resultados de um processo do

    entendimento e do pensamento, ou seja, a crena mais propriamente um ato

    da parte sensitiva que da parte cogitativa de nossa natureza32.

    Por mais que nossa imaginao possa combinar, separar ou dividirilimitadamente as ideias nascidas das impresses sensveis e inventar uma srie

    de eventos conectados com toda a aparncia de realidade, nem por isso somos

    levados a crer que essa construo corresponda a algo de existente no mundo

    ou na histria. No se trata de uma deciso de nossa vontade crer no que nos

    interessa mais. A diferena entre a fico e a crena encontra-se em algum

    32Tratado da Natureza Humana, op. cit., p. 217.

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    sentimento ou maneira de sentir que se encontra ligado a uma e no outra.

    Como os outros sentimentos, a natureza que desperta em ns a crena:

    Todas as vezes que um objeto se apresenta memria ou aossentidos, pela fora do costume, a imaginao levadaimediatamente a conceber o objeto que lhe est habitualmenteunido; esta concepo acompanhada por uma maneira de sentirou sentimento, diferente dos vagos devaneios da fantasia. Eistoda a natureza da crena. Visto que nossa mais firme crenasobre qualquer fato sempre admite uma concepo que lhe contrria, no haveria, portanto, nenhuma diferena entre nossoassentimento ou rejeio de qualquer concepo, se no

    houvesse algum sentimento distinguindo uma da outra

    33

    .

    Assim, a soluo do problema da causalidade est num sentimento, a

    crena, e no na capacidade do raciocnio. Ou seja, o fundamento da

    causalidade irracional, subjetivo, e no uma conexo necessariamente

    objetiva.

    2.5 A CRENA E A EXISTNCIA DOS OBJETOS E DO EU

    A noo clssica de substncia, tanto dos objetos fsicos quanto do

    sujeito pensante, tambm resulta em nada mais do que numa crena. No

    Tratado, Hume se prope a investigar as causas que nos levam a crer na

    existncia dos corpos: por que atribumos uma existncia CONTNUA aos

    objetos, mesmo quando esto separados dos sentidos? E por que supomos que

    possuem uma existncia DISTINTA da mente e da percepo?34. Ns s

    possumos em nossa mente as impresses e as ideias. Todo conhecimento que

    temos dos objetos externos no passa de percepo. No possumos sequer uma

    vaga noo de algo distinto das prprias ideias e das impresses. Por mais que

    33Investigao Acerca do Entendimento Humano, op. cit.p. 65.34Tratado da Natureza Humana, op. cit.,p. 221.

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    nossa imaginao divague, ela no d um passo alm de ns mesmos, qualquer

    que seja o contedo imaginado.

    Os sentidos so incapazes de nos dar a noo de uma existncia

    contnua de seus objetos quando estes no esto mais presentes para eles. Eles

    s podem nos dar uma impresso singular de cada vez e no nos permitem

    pensar em algo para alm do que nos aparece imediatamente. Se as impresses

    dos sentidos se apresentassem como realmente externas e independentes de

    ns, ento ns mesmos e os objetos seramos claramente distintos para essa

    faculdade. Necessitaramos saber at que ponto ns somos objetos para os

    nossos sentidos. primeira vista, parece no ser necessria nenhuma outrafaculdade para nos convencer da existncia externa dos corpos. Mas essa

    inferncia apresenta algumas aporias. Primeiramente, o que entendemos como

    sendo o nosso corpo? Quando olhamos para os nossos membros, mos, etc.,

    no nos referimos a nada alm de certas impresses que entram pelos sentidos.

    Mas a atribuio de uma existncia real e corprea a essas impresses ou a seus

    objetos um ato da mente extremamente difcil de explicar. Em segundo lugar,

    os sons, sabores e aromas que atribumos s coisas, no nos parecem existirdentro do que chamamos o conceito de extenso, no podem aparecer aos

    nossos sentidos como realidades externas aos corpos. E terceiro, nem mesmo a

    nossa viso pode nos informar da distncia ou da exterioridade de algo em

    relao a ns mesmos sem o concurso de algum raciocnio e da experincia.

    Tambm podemos prescindir da razo para atribuirmos existncia

    contnua e distinta aos objetos. Mesmo que tenhamos disposio argumentos

    filosficos consistentes para produzir a crena na existncia dos objetosindependentes da mente, esses argumentos so pouco conhecidos quando

    pensamos que a maior parte da humanidade atribui objetos s impresses.

    Pois a filosofia nos informa que tudo que aparece mente no seno percepo, e possui uma existncia descontnua edependente da mente; o vulgo, ao contrrio, confunde percepese objetos, atribuindo uma existncia distinta e contnua s

    prprias coisas que sente ou v. Essa opinio, portanto, por serinteiramente irracional, tem que proceder de uma outra faculdadeque no o entendimento. Podemos acrescentar que, enquanto

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    tomamos nossas percepes e objetos como a mesma coisa,jamais podemos inferir a existncia destes da existnciadaquelas. E tampouco formar um argumento baseado na relao

    de causa e efeito, a nica capaz de nos assegurar a respeito dequestes de fato35.

    Mesmo se distinguimos nossas percepes dos objetos relativos a elas,

    ainda assim, no possvel raciocinarmos partindo da existncia das primeiras

    para a concluirmos sobre a existncia dos ltimos. Portanto, a nossa razo no

    fornece certeza alguma sobre a existncia distinta e contnua dos corpos.

    A opinio da continuidade e da independncia dos objetos deve ser

    atribuda somente nossa imaginao. Toda impresso subjetiva, pois

    percepo. Como as impresses apresentam normalmente uma certa constncia

    e uma certa coerncia, a imaginao levada a supor a existncia dos corpos

    como causa das impresses. Se samos de um ambiente do qual tivemos certas

    impresses e retornamos a ele depois de um intervalo de tempo, ou se

    fechamos os olhos e voltamos a abri-los diante de um mesmo objeto ou

    cenrio, temos impresses iguais ou parcialmente diferentes, embora coerentes

    com as anteriores. O que acontece que a imaginao preenche o intervalo detempo em que estivemos ausentes ou com os olhos fechados. A

    correspondncia ou a coerncia das novas impresses com as anteriores levam-

    nos a supor que elas correspondem a uma existncia real e independente dos

    objetos em questo. Ao procedimento da imaginao, acrescenta-se o trabalho

    da memria, que d a essas impresses aquela vivacidade tpica de uma

    impresso recente que ora retomada. Essa vivacidade leva crena na

    existncia dos objetos externos correspondentes percepo.Ao examinar o fundamento da matemtica, observei que aimaginao, quando envolvida em uma cadeia de pensamentos,tende a dar continuidade a ela, mesmo na falta de seu objeto; e,como uma galera posta em movimento pelos remos, segue seucurso sem qualquer novo impulso. Afirmei ser essa a razo pelaqual, aps considerar diversos critrios aproximados deigualdade, e corrigi-los uns pelos outros, passamos a imaginar,

    35Idem, p. 226.

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    para essa relao, um critrio to correto e exato que no passvel do menor erro ou variao. O mesmo princpio faz comque formemos facilmente essa opinio da existncia contnua dos

    corpos. Os objetos j possuem uma certa coerncia assim comoaparecem aos nossos sentidos; mas essa coerncia ser muitomaior e uniforme se supusermos que tm uma existnciacontnua; e como a mente j vem observando uma uniformidadeentre esses objetos, ela continua naturalmente, at tornar auniformidade o mais completa possvel. A simples suposio desua existncia contnua basta para esse propsito, dando-nos anoo de uma regularidade muito maior entre os objetos do queaquela que vemos quando no olhamos para alm de nossossentidos36.

    Tambm a noo que temos do nosso EU como uma substnciaespiritual, dotada de uma existncia contnua, idntica a si mesma e

    autoconsciente, resulta enganosa. Descartes, por exemplo, no considera sequer

    necessrio que se busque uma prova de sua realidade, pois se duvidarmos dessa

    evidncia inquestionvel, no haver mais nada de que possamos ter alguma

    certeza. Para Hume, no entanto, no possumos qualquer ideia de eu como se

    costuma descrev-lo. Se tentarmos responder de que impresso deriva essa

    ideia, camos inevitavelmente em contradies e absurdos insuperveis. Todaideia deriva de uma impresso; porm o eu no uma impresso, mas apenas

    aquilo a que supostamente se referem nossas impresses e ideias. A impresso

    que pudesse dar origem a essa ideia do eu para si mesmo teria que permanecer

    invariavelmente a mesma ao logo de toda a vida. Mas, nenhuma impresso

    constante e invarivel. As paixes e as sensaes que parecem acomet-lo so

    sucessivas, nunca ocorrem todas simultaneamente. Assim, no dessas

    impresses que deriva a ideia do eu. Tal ideia, ao contrrio do que afirmam

    Descartes e outros filsofos, no existe:

    parte alguns metafsicos dessa espcie; porm, arrisco-me aafirmar que os demais homens no so seno um feixe ou umacoleo de diferentes percepes, que se sucedem umas s outrascom uma rapidez inconcebvel, e esto em perptuo fluxo emovimento. Nossos olhos no podem girar em suas rbitas semfazer variar nossas percepes. Nosso pensamento ainda mais

    36Idem, p. 231.

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    varivel que nossa viso; e todos os outros sentidos e faculdadescontribuem para essa variao. No h um s poder na alma quese mantenha inalteravelmente o mesmo, talvez sequer por um

    instante. A mente uma espcie de teatro, onde diversaspercepes fazem sucessivamente sua apario; passam,repassam, esvaem-se, e se misturam em uma infinita variedadede posies e situaes. Nela no existe, propriamente falando,nem simplicidade em um momento, nem identidade ao longo demomentos diferentes, embora possamos ter uma propensonatural a imaginar essa simplicidade e identidade. Mas acomparao com o teatro no deve nos enganar. A mente constituda unicamente pelas percepes sucessivas; e no temosa menor noo do lugar em que essas cenas so representadas oudo material de que esse lugar composto37.

    Segundo Hume, a ideia de uma mente humana a ideia de um sistema

    de diferentes percepes ou existncias encadeadas segundo a relao de causa

    e efeito. As impresses originam ideias correspondentes e estas, por sua vez,

    produzem outras impresses. Os pensamentos atraem e excluem outros

    pensamentos, se substituem uns aos outros. Assim, uma pessoa pode variar

    suas impresses e ideias e manter sua identidade. A relao de causalidade

    mantm conectadas as suas partes por mais que sofra mudanas. Ao fazer com

    que conheamos a extenso e a continuidade da sucesso de percepes, a

    memria pode ser considerada a fonte da identidade pessoal. Sem essa

    faculdade, no teramos noo alguma de causalidade e nem da cadeia de

    causas e efeitos que constituem nosso eu. De posse da noo de causalidade,

    estendemos naturalmente a identidade de nossa pessoa para alm da prpria

    memria e fazemos com que ela abarque tempos e circunstncias de que sequer

    nos lembramos mais e que, no entanto, supomos terem existido. De fato, a

    memria mais revela do que produz nossa identidade pessoal, pois nos

    lembramos efetivamente de muito poucas aes do passado. Mas, mesmo

    quando no nos lembramos dos eventos de uma determinada data posterior ao

    nosso nascimento, temos como certa a nossa existncia, apesar da ausncia de

    37Idem, p. 285.

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    lembranas. As questes relativas identidade pessoal parecem insolveis e

    talvez devam ser vistas mais como dificuldades gramaticais do que filosficas.

    Mas sentimos uma forte propenso a considerar os objetos segundo a

    maneira como nos aparecem. A experincia um princpio que nos informa

    sobre as conjunes dos objetos no passado, o hbito nos determina a esperar a

    mesma conjuno para o futuro. Ambos atuam sobre a imaginao e nos fazem

    formar algumas ideias de maneira mais vvida dos que outras. O que leva a

    mente a conceber algumas ideias com mais vivacidade do que outras no ,

    portanto, a nossa razo. E, sem essa capacidade, no poderamos sequer pensar

    em nada alm daqueles objetos presentes a nossos sentidos. Sequer poderamos

    atribuir a esses objetos alguma existncia para alm da impresso presente.

    Mesmo em relao sucesso de percepes que constitui nosso eu como

    pessoa, s poderamos admitir as percepes imediatamente presentes

    conscincia: A memria, os sentidos e o nosso entendimento so todos,

    portanto, fundados na imaginao, ou na vividez de nossas ideias38.

    No temos, pois, nenhuma impresso de eu ou substncia como de algo

    simples e individual, portanto, nenhuma ideia de eu ou substncia que se

    sustente. Tudo o que distinto separvel pelo pensamento ou pela

    imaginao. Como so concebveis todas as percepes como separadamente

    existentes, sem que haja contradio, no absurda a proposio que diz que

    os objetos existem de maneira distinta e separada sem que tenham em comum

    qualquer substncia simples. E assim como vlido tal raciocnio no tocante s

    percepes, tambm deve s-lo em relao nossa noo de identidade

    pessoal: Quando volto minha reflexo para mim mesmo, nunca consigoperceber esse eu sem uma ou mais percepes, e no percebo nada alm de

    percepes. a combinao destas, portanto, que forma o eu39. Assim como

    38Idem, p. 298.39Idem, p. 673. Segundo Gilles Deleuze, a subjetividade em humeana nada mais do queimpresso de reflexo que procede das impresses da sensao. preciso partir dos

    princpios, como os de associao, e comear pela impresso para encontrarmos o processo deconstituio do eu: No se trata de perguntar se, em Hume, o sujeito ativo ou passivo. Aalternativa falsa. Se a mantivssemos, teramos de insistir muito mais na passividade do que

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    no temos nenhuma ideia de uma substncia externa, distinta das ideias das

    qualidades particulares, tambm no podemos ter uma ideia da mente que seja

    distinta das percepes particulares.

    2.6 CRENA E PROBABILIDADE

    Para tratar do mecanismo psicolgico que permite fixar na imaginao o

    que chamou de crena, Hume assume a diviso de todos os argumentos, feita

    por Locke, entre demonstrativos e provveis. Os argumentos demonstrativosso prprios daquelas disciplinas que se baseiam nas simples relaes de

    ideias, como a matemtica. Como vimos, por ser baseada no princpio de no

    contradio, essa cincia produz um tipo de conhecimento dotado de certeza

    absoluta, produzido totalmente a priori, e no apresenta os problemas j

    apontados sobre todo o conhecimento que se funda nas relaes de fatos. No

    que diz respeito aos raciocnios provveis, Hume faz uma distino entre as

    noes de prova e de probabilidade. Cada uma oferece um grau diferente desegurana em suas concluses.

    As provas so argumentos de experincia que apresentam um grau de

    segurana maior na medida em que oferecem um tipo de evidncia superior.

    So baseados na relao de causa e efeito, que a experincia aponta como

    invarivel, e so considerados livres de dvida. Que o sol vai nascer amanh

    ou que todos os homens devem morrer so proposies que no tiveram,

    ainda, nenhum testemunho contrrio da experincia. Apesar de vir da

    na atividade do sujeito, pois ele o efeito dos princpios. O sujeito o esprito ativado pelosprincpios: essa noo de ativao ultrapassa a alternativa. medida que os princpiosmergulham seu efeito na espessura do esprito, o sujeito, que esse prprio efeito, devm cadavez mais ativo, cada vez menos passivo. Ele era passivo no incio, ativo no fim. Isso nosconfirma que a subjetividade um processo, e que preciso fazer o inventrio dos diversosmomentos desse processo. Para falar como Bergson, digamos que o sujeito primeiramenteuma marca, uma impresso deixada pelos princpios, mas que se converte progressivamenteem uma mquina capaz de utilizar essa impresso(DELEUZE, G. Empirismo e subjetividade:Ensaio Sobre a Natureza Humana segundo Hume. So Paulo: Editora 34, 2001, p. 127).

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    experincia a nica certeza que temos em relao a elas, pareceria ridculo

    algum que dissesse se tratar de acontecimentos meramente provveis.

    J os argumentos provveis, tambm resultantes da experincia,

    possuem um grau menor de segurana. Isso se d quando a conexo entre a

    causa e o efeito impossvel de detectar ou quando ela no apresenta a

    regularidade dos argumentos das provas. Podem ser fundamentados em dois

    princpios: o da chancee o da causa. A chance concebida sem a inferncia

    baseada na relao de causa e efeito. Nela opera o acaso, como negao de

    qualquer causa, que opera deixando a imaginao totalmente indiferente no

    tocante existncia ou inexistncia de determinado objeto. Nesse caso, impossvel dar superioridade a uma chance em comparao com a oposta.

    Qualquer inclinao maior para um lado envolveria a influncia de uma

    possvel causa: Ali onde nada limita as chances, todas as noes que a fantasia

    mais extravagante capaz de formar esto em p de igualdade 40. Se um dado

    tivesse quatro faces impressas com o nmero trs, e as duas restantes com o

    nmero cinco, seria mais provvel que ao ser lanado apresentasse o nmero

    trs. Mas, se tivesse mil faces, e apenas uma fosse diferente das restantes, aprobabilidade seria muito maior de apresentar uma das faces repetidas. Por

    uma disposio natural, inexplicvel, nossa crena ou expectativa seria mais

    firme e mais convicta. O maior nmero de ocorrncias leva a crena a dar

    primazia ao evento que ocorre com maior frequncia. Vimos que a crena

    consiste na concepo mais firme e mais forte de um objeto do que daquelas

    fices exclusivas d