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Grupos e Geometria: um convite à Geometria Diferencial Alexandre Paiva Barreto DM-UFSCar 2 o Colóquio da Região Sudeste Janeiro de 2013

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Grupos e Geometria:um convite à Geometria Diferencial

Alexandre Paiva Barreto

DM-UFSCar

2o Colóquio da Região Sudeste

Janeiro de 2013

Sumário

1 Espaços Métricos 11.1 Definições básicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11.2 Isometrias e Similaridades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71.3 Curvas e Geodésicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

2 Um pouquinho de Topologia 15

3 Geometria Euclidiana 193.1 Classificação das isometrias e similaridades . . . . . . . . . . . . . . . . . 193.2 Orientação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203.3 Propriedades dos Espaços Euclidianos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

4 Espaços Métricos Intrínsecos 254.1 Definições básicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254.2 Ângulos e Curvatura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

5 Geometrias Localmente Euclidianas 315.1 Superfícies Cilíndricas Euclidianas I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 315.2 Superfícies Cilíndricas Euclidianas II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 355.3 Toros Euclidianos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 385.4 Superfícies Cilíndricas Euclidianas não orientáveis . . . . . . . . . . . . . 415.5 Garrafas de Klein Euclidianas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

6 Um exemplo de geometria localmente não euclidiana 45

7 Introdução à Geometria Diferencial 497.1 Abertos Riemannianos de Rn . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 497.2 O Plano Hiperbólico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 527.3 Variedades Riemannianas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

8 Ações de Grupos 638.1 Definições Básicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 638.2 Ações de Grupos vs. Recobrimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 678.3 Geometrias Localmente Euclidianas de dimensão 2 e 3 . . . . . . . . . . 688.4 Geometrias Localmente Hiperbólicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70

iii

iv SUMÁRIO

Capítulo 1

Espaços Métricos

1.1 Definições básicas

Definição 1.1 Umamétrica sobre um conjunto X é uma aplicação

d : X× X → R

verificando, para quaisquer x, y, z ∈ X, as seguintes propriedades:

(i) d (x, y) ≥ 0.

(ii) d (x, y) = 0 se e somente se x = y.

(iii) d (x, y) = d (y, x) .

(iv) (Desigualdade Triangular) d (x, z) ≤ d (x, y) + d (y, z) .

Um espaço métrico é um par (X, d), onde X é um conjunto e d é uma métrica sobreX. Para quaisquer dois elementos (ou pontos) x, x′ ∈ X, o número d (x, x′) será denominadodistância de x a x′.

Quando não houver risco de confusão, escreveremos simplesmente "um espaço métrico X"e sua métrica será denotada por d ou dX.

Definição 1.2 Considere dois espaços métricos X e Y. Diremos que Y é um subespaçométrico (ou simplesmente subespaço) de X quando Y ⊂ X e dY for a métrica induzidapor dX, isto é, quando

dY(y, y′

)= dX

(y, y′

), ∀y, y′ ∈ Y.

A menos de menção explícita em contrário, subconjuntos de um espaço métrico serão sempremunidos da métrica induzida.

Exemplo 1.3 Amétrica canônica de Rn é a função

d : (u, v) ∈ Rn ×Rn 7−→ ‖u− v‖ ∈ R

onde

‖u‖ =

√(u1)

2 + . . .+ (un)2, ∀u = (u1, . . . , un) ∈ Rn.

1

2 CAPÍTULO 1. ESPAÇOS MÉTRICOS

O espaço métrico (Rn, d) é denominado espaço Euclideano n-dimensional e será denotadosimplesmente por En.

De uma forma geral, se (V, ‖.‖) é um espaço vetorial normado, então a função

d : (u, v) ∈ V×V 7−→ ‖u− v‖ ∈ R

é uma métrica em V denominadamétrica canônica.

Exemplo 1.4 Dado um conjunto X, denote por B (X;R) o conjunto de todas as funçõeslimitadas de X em R. A função

d : ( f , g) ∈ B (X;R)× B (X;R) 7−→ supx∈X

| f (x)− g (x)| ∈ R

é uma métrica sobre B (X;R).

Definição 1.5 Considere um espaço métrico X, um ponto x ∈ X e um raio r > 0. Ossubconjuntos de X

BX (x, r) = {y ∈ X ; d (x, y) < r}BX [x, r] = {y ∈ X ; d (x, y) ≤ r}SX (x, r) = {y ∈ X ; d (x, y) = r}

são denominados, respectivamente, bola aberta, bola fechada e esfera de centro x e raio r.Quando não houver risco de confusão, omitiremos o subíndice X das notações acima.

Definição 1.6 Considere um espaço métrico X. Um subconjunto Y ⊂ X é dito:

(i) aberto em X se, para todo ponto y ∈ Y, existe r > 0 tal que

BX (y, r) ⊂ Y.

(ii) fechado em X, se X− Y é aberto em X.

(iii) limitado se existem um ponto x ∈ X e um raio r > 0 tais que

Y ⊂ BX (x, r) .

Proposição 1.7 Considere um espaço métrico X e denote por τ o conjunto dos abertos de X.Então

(i) ∅,X ∈ τ.

(ii)⋃

λ∈Γ

Yλ ∈ τ, para toda família (Yλ)λ∈Γ de elementos de τ.

(iii)n⋂

i=1Yi ∈ τ, para qualquer família finita Y1, . . . ,Yn de elementos de τ.

A proposição anterior motiva a seguinte definição:

1.1. DEFINIÇÕES BÁSICAS 3

Definição 1.8 Uma topologia sobre um conjunto X é uma coleção τ de subconjuntos de Xverificando as seguintes propriedades:

(i) ∅,X ∈ τ.

(ii)⋃

λ∈Γ

Yλ ∈ τ, para toda família (Yλ)λ∈Γ de elementos de τ.

(iii)n⋂

i=1Yi ∈ τ, para qualquer família finita Y1, . . . ,Yn de elementos de τ.

Um espaço topológico é um par (X, τ), onde X é um conjunto e τ uma topologia em X.Neste caso, os elementos da topologia τ são denominados abertos de (X, τ).

Quando não houver risco de confusão, escreveremos simplesmente "um espaço topológicoX" e sua topologia será denotada por τ ou τX.

Definição 1.9 Dizemos que um espaço topológico (Y, τ′) é um subespaço topológico (ousimplesmente subespaço) de (X, τ) quando Y ⊂ X e τ′ é a topologia induzida por τ, isto é,

τ′ = {U ∩Y ; U ∈ τ} .

A menos de menção explícita em contrário, subconjuntos de um espaço topológico serão sempremunidos da topologia induzida.

Exemplo 1.10 Considere um espaço métrico X e denote por τ o conjunto de abertos de X(segundo a definição 1.6). Decorre da proposição 1.7 que τ é uma topologia sobre X denominadatopologia canônica.

Exercício 1.11 Sejam X um conjunto, (Y, τY) um espaço topológico e f : X → Y uma função.Demonstre que

τX ={f−1 (V) ; V ∈ τY

}

é uma topologia em X.

Exercício 1.12 Seja X um espaço topológico. Uma coleção B de abertos de X é denominadauma base para a topologia de X se, para todo U ∈ τ e para todo x ∈ U, existe B ∈ B tal quex ∈ B ⊂ U.

(i) Se B é uma base para a topologia de X, demonstre que, para todo aberto U de X, existeuma coleção (Bλ)λ∈Γ de elementos básicos (isto é, de elementos de B) tal que

U =⋃

λ∈Γ

Bλ.

(ii) Demonstre que as bolas abertas de raio 1n , onde n ∈ N, formam uma base para a topologia

canônica de um espaço métrico.

Definição 1.13 Um espaço topológico (X, τ) é dito de Hausdorff se, para quaisquer doispontos x, x′ ∈ X, existem abertos disjuntos U,V ∈ τ tais que x ∈ U e x′ ∈ V.

4 CAPÍTULO 1. ESPAÇOS MÉTRICOS

Exercício 1.14 Demonstre que todo espaço métrico, munido de sua topologia canônica, é umespaço topológico de Hausdorff.

Definição 1.15 Sejam X um espaço topológico e Y um subconjunto de X:

(i) Um ponto x ∈ X é dito aderente à Y se, para todo aberto U de X contendo x, tem-se queY ∩U 6= ∅. A aderência de Y em X é o conjunto Y dos pontos de X que são aderentesà Y. Dizemos que Y é denso em X quando Y = X.

(ii) A fronteira de Y em X é o conjunto

∂Y = Y ∩ X− Y.

(iii) Um ponto x ∈ X é denominado um ponto de acumulação de Y se, para todo aberto Ude X contendo x, tem-se que Y∩ (U − {x}) 6= ∅. O conjunto dos pontos de acumulaçãode Y em X será denotado por Y′.

(iv) O interior de Y é o maior aberto int (Y) de X contido em Y.

Exercício 1.16 Sejam X um espaço topológico e Y um subconjunto de X. Determine se asafirmações abaixo são verdadeiras ou falsas. Justifique suas respostas!

(i) Y = int (Y) ∪ ∂Y = Y ∪Y′.

(ii) ∂Y = Y′ ∩Y.

(iii) Y é fechado em X se e somente se Y = Y.

Exercício 1.17 Com as notações da definição anterior, demonstre que:

(i) x0 é aderente à (resp. ponto de acumulação de) A se, para todo aberto U de X contendox0, tem-se A ∩U 6= ∅ (resp. (A− {x0}) ∩U 6= ∅).

(ii) x0 ∈ ∂A se, para todo aberto U de X contendo x0, tem-se que A ∩ U 6= ∅ e(X − A) ∩U 6= ∅.

(iii) A é fechado em X se e somente se A = A.

(iv) A = int (A) ⊔ ∂A = A ∪ A′ é o menor fechado de X contendo A.

Definição 1.18 Considere um espaço topológico X. Dizemos que uma sequência xn ∈ Xconverge para x ∈ X se, para todo aberto U ∈ τ contendo x, existe n0 ∈ N tal que xn ∈ U,para todo n ≥ no.

Quando este for o caso, escreveremos

limn→∞

xn = x ou xn → x.

Exercício 1.19 Considere um espaço métrico X e um subconjunto A de X. Demonstre quex0 ∈ X é ponto aderente à (resp. de acumulação de) A se e somente se existe uma sequência ande pontos de A (resp. de A− {x0}) tal que an → x0.

1.1. DEFINIÇÕES BÁSICAS 5

Exercício 1.20 Sejam X um espaço topológico de Hausdorff e xn uma sequência convergentede X. Demonstre que o limite de xn é único. Dê um exemplo de um espaço topológico X e deuma sequência em X que convirja para dois limites distintos.

Exercício 1.21 A noção de convergência de sequências depende da topologia? Caso umasequência convirja em duas topologia distintas o limite deverá ser o mesmo?

Exercício 1.22 Quando X é um espaço métrico, demonstre que a noção de convergênciaapresentada na definição 1.18 é equivalente a seguinte: uma sequência xn ∈ X converge paraum ponto x ∈ X se, para todo ε > 0, existe um número natural n0 tal que

xn ∈ B (x, ε) , ∀n > n0.

Definição 1.23 Considere um espaço métrico X. Uma sequência xn de pontos de X édenominada uma sequência de Cauchy se, para todo ε > 0, existe n0 ∈ N tal que

d (xm, xn) < ε, ∀m, n ≥ n0.

Diremos que X é completo quando toda sequência de Cauchy em X for convergente (em X).

Exercício 1.24 Demonstre que toda sequência convergente em um espaço métrico é umasequência de Cauchy.

Definição 1.25 Sejam X e Y dois espaços topológicos, A um subconjunto não vazio de X ex0 ∈ X um ponto aderente à A. Dizemos que l ∈ Y é o limite de uma função f : A → Yquando x tende a x0 se, para todo aberto V de Y contendo l, existe um aberto U de X contendox0 tal que

f (A ∩U − {a}) ⊂ V

Quando este for o caso, escreveremos limx→x0

f (x) = l.

Exercício 1.26 Considere dois espaços métricos X e Y, um subconjunto A de X, um pontox0 ∈ X aderente à A, um ponto l ∈ Y e uma função f : A → Y. Demonstre que as seguintesafirmações são equivalentes:

(i) limx→x0

f (x) = l

(ii) para todo ε > 0, existe δ > 0 tal que

f (x) ∈ BY (l, ε) , ∀x ∈ BA (x0, δ)− {x0} .

(iii) para toda sequência an em A− {x0} convergindo para x0, tem-se

limn→∞

f (an) = l.

6 CAPÍTULO 1. ESPAÇOS MÉTRICOS

Definição 1.27 Sejam X e Y dois espaços topológicos e f : X → Y uma função. Dizemos quef é contínua em x0 ∈ X quando

limx→x0

f (x) = f (x0) .

Diremos que f é contínua quando f for contínua em todos os pontos de seu domínio.Um homeomorfismo entre X e Y é uma bijeção contínua com inversa contínua. Quando

um tal homeomorfismo existir, diremos que X e Y são homeomorfos.Uma aplicação f : X → Y é dita um homeomorfismo local quando, para todo ponto

x ∈ X, existir um aberto U de X contendo x tal que V = f (U) é um aberto de Y e a restriçãof|U : U → V é um homeomorfismo.

Exercício 1.28 Sejam X e Y dois espaços topológicos e f : X → Y uma função. Verifique quef é contínua se e somente se f−1 (V) é um aberto de X, para todo aberto V de Y.

Exercício 1.29 Sejam X, Y e Z espaços topológicos. Dadas funções f : X → Y e, g : Y → Z,discuta a existência de limites e a continuidade da aplicação g ◦ f .

Exercício 1.30 As noções de limite e de continuidade dependem das topologias envolvidas?Justifique sua resposta!

Definição 1.31 Seja X um espaço topológico. Um subconjunto K ⊂ X é dito compacto se,para toda família de abertos U = {Uλ ; λ ∈ Γ} de X verificando

K ⊂⋃

λ∈Γ

Uλ, (1)

existem índices λ1, . . . , λk ∈ Γ tais que

K ⊂k⋃

i=1

Uλi . (2)

Diremos que X é localmente compacto se, para todo ponto x de X, existe um aberto U deX tal que x ∈ U e U é compacto.

Observação 1.32 Sejam X um espaço topológico e K um subconjunto de X. Uma família U ={Uλ ; λ ∈ Γ} verificando (1) é denominada uma cobertura aberta de K. Uma subcoberturade U é uma família V = {Uλ ; λ ∈ Γ′}, onde Γ′ ⊂ Γ, verificando (2). Utilizando estanomenclatura, o conjunto K é dito compacto quando toda cobertura aberta de K possui umasubcobertura finita.

Exercício 1.33 Demonstre que um espaço métrico X é compacto se e somente se toda sequênciaem X admite uma subsequência convergente para um ponto de X.

Exercício 1.34 Demonstre que

(i) Todo subconjunto fechado de um espaço métrico compacto é compacto.

(ii) Todo espaço métrico completo é fechado.

1.2. ISOMETRIAS E SIMILARIDADES 7

(iii) Todo espaço métrico compacto é limitado e completo (logo fechado).

Exercício 1.35 Considere um espaço topológico X e uma sequência Xn de subespaçostopológicos compactos de X verificando

Xn+1 ⊂ Xn, ∀n ∈ N.

Demonstre que ⋂

n∈NXn 6= ∅.

O resultado seria válido sem a hipótese de compacidade? O resultado permaneceria válidose trocássemos a hipótese de compacidade pela exigência de que Xn seja uma sequência desubespaços fechados de X?

Definição 1.36 Dizemos que um espaço métrico X é finitamente compacto quando toda bolafechada de X for um subconjunto compacto.

Exercício 1.37 Apresente um exemplo de espaço métrico que não é finitamente compacto.

Proposição 1.38 Seja X um espaço topológico compacto. Se f : X → R é uma funçãocontínua, então existem pontos x1, x2 ∈ X tais que

f (x1) ≤ f (x) ≤ f (x2) , ∀x ∈ X.

Definição 1.39 Seja (X, τ) um espaço topológico. Uma separação de (X, τ) é umadecomposição X = U ∪ V, onde U,V ∈ τ e U ∩ V = ∅. Uma separação é dita trivialquando U = ∅ ou V = ∅. Dizemos que (X, τ) é conexo quando admite apenas as separaçõestriviais.

Exercício 1.40 Sejam X e Y dois espaços topológicos e f : X → Y uma função contínua. Se Xé compacto (resp. conexo), podemos garantir que f (X), visto como subespaço topológico de Y,é compacto (resp. conexo)?

1.2 Isometrias e Similaridades

Definição 1.41 Considere dois espaços métricos X e Y. Dizemos que uma função f : X → Ypreserva distância quando

dY(f (x) , f

(x′))

= dX(x, x′

), ∀x, x′ ∈ X.

Se, além de preservar distância, f for uma bijeção, diremos que f é uma isometria e que osespaços métricos X e Y são isométricos. O conjunto das isometrias de X em Y será denotadopor Isom (X,Y) ou simplesmente por Isom (X) quando X = Y.

Diremos que f é uma isometria local quando, para todo ponto x ∈ X, existirem abertosU de X e V de Y tais que x ∈ U, f (U) = V e a restrição f|U : U → V é uma isometria.Quando uma tal isometria local existir, diremos que os espaços métricos X e Y são localmenteisométricos.

8 CAPÍTULO 1. ESPAÇOS MÉTRICOS

Definição 1.42 Considere dois espaços métricos X e Y. Diremos que uma função f : X → Y

(i) é umamudança de escala de fator k > 0 quando

d′(f (x) , f

(x′))

= kd(x, x′

), ∀x, x′ ∈ X.

(ii) é uma similaridade quando f é uma bijeção e uma mudança de escala. Quando este for ocaso, diremos que os espaços métricos X e Y são similares. O conjunto das similaridadesde X em Y será denotado por Sim (X,Y) ou simplesmente por Sim (X) quando X = Y.

Observação 1.43 Similaridades com fator k > 1 (resp. k < 1) são também denominadasexpansões (resp. contrações).

As isometrias (resp. similaridades) de En são denominadas isometrias (resp.similaridades) euclidianas.

Exercício 1.44 Demonstre que a inversa de uma expansão (resp. contração) é uma contração(resp. expansão).

Exercício 1.45 Considere um espaço métrico X. Demonstre que, munidos da operação decomposição, os conjuntos Isom (X) e Sim (X) são grupos. Mais ainda, demonstre queIsom (X) é um subgrupo de Sim (X).

Exercício 1.46 Verifique que as relações de isometria e de similaridade são reflexivas, simétricase transitivas.

Exercício 1.47 Sejam X um conjunto, Y um espaço métrico e f : X → Y uma bijeção.Demonstre que

dX :(x, x′

)∈ X× X 7−→ dY

(f (x) , f

(x′))

∈ R

é uma métrica em X (denominada métrica induzida por f ) e que f é uma isometria entre(X, dX) e (Y, dY).

Exercício 1.48 Demonstre que toda mudança de escala (e em particular que toda função quepreserva distância) é contínua e injetiva.

Exercício 1.49 Demonstre que as

1. translações por um vetor v ∈ En

Tv : x ∈ En 7→ x+ v ∈ En

2. rotações de angulo θ ∈ R em torno da origem

Rθ : (x, y) ∈ E2 7→ (x cos θ − y sen θ, x sen θ + y cos θ) ∈ E2

3. rotações de angulo θ ∈ R em torno do ponto p = (x0, y0) ∈ E2

Rθ,p (x, y) = (x− x0) (cos θ, sen θ) + (y− y0) (− sen θ, cos θ) + (x0, y0)

para todo (x, y) ∈ E2.

1.2. ISOMETRIAS E SIMILARIDADES 9

4. reflexões com relação a reta ra,b ={(x, y) ∈ E2 ; y = ax+ b

}de E2

Fa,b (x, y) =(x− a2 (x+ 1) + 2a (y− b)

1+ a2,2ax− y+ a2 (y− b)− a3 + 2b

1+ a2

)

para todo (x, y) ∈ E2.

5. as "glide reflections" (reflexões com deslizamento, em tradução livre) sobre a retara,b =

{(x, y) ∈ E2 ; y = ax+ b

}de E2, com fator de translação λ ∈ R

Ga,b,λ = Tv ◦ Fa,b, onde v = λ(1, a+ b)√1+ (a+ b)2

são isometrias euclidianas.

Exercício 1.50 Demonstre que, para todo escalar k > 0, a aplicação

Sk : x ∈ En 7−→ kx ∈ En

é uma similaridade euclidiana de fator k.

Definição 1.51 Considere um espaço métrico X. Dois subconjuntos A e B de X são ditoscongruentes (resp. similares) quando existir uma isometria (resp. uma similaridade) f de Xverificando B = f (A).

Definição 1.52 Um espaço métrico X é dito homogêneo quando, para quaisquer dois pontosx1, x2 ∈ X, existe uma isometria f ∈ Isom (X) verificando x1 = f (x2).

Exercício 1.53 Demonstre que En é homogêneo.

Terminamos esta seção apresentando alguns resultados relacionando isometrias ecompacidade.

Proposição 1.54 Nenhum espaço métrico compacto pode ser isométrico a um de seussubespaços próprios. Mais precisamente, se X é um espaço métrico compacto e f : X → Xpreserva distância, então f é sobrejetiva (e portanto uma isometria).

Proposição 1.55 Considere um espaço métrico compacto X e uma função f : X → X.

1. Se f é sobrejetiva e

d(f (x) , f

(x′))

≤ d(x, x′

), x, x′ ∈ X

então f é uma isometria.

2. Sed(f (x) , f

(x′))

≥ d(x, x′

), x, x′ ∈ X

então f é uma isometria.

10 CAPÍTULO 1. ESPAÇOS MÉTRICOS

1.3 Curvas e Geodésicas

Definição 1.56 Uma curva em um espaço topológico X é uma função contínua γ : I → X,onde I é um intervalo real não degenerado. Quando a = inf (I) ∈ I (resp. quandob = sup (I) ∈ I), o ponto γ (a) (resp. o ponto γ (b)) é denominado extremo inicial (resp.extremo final) de γ. Diremos que γ é simples quando γ for uma função injetiva.

Definição 1.57 Um laço em um espaço topológico X é uma curva γ : [a, b] → X verificandoγ (a) = γ (b). O ponto γ (a) = γ (b) é denominado ponto base de γ. Diremos que γ ésimples quando a restrição de γ ao intervalo [a, b) for uma função injetiva.

Definição 1.58 Considere um espaço topológico X. Diremos que a curva γ : [a, b] → X

1. passa pelo ponto x ∈ X quando x ∈ Im (γ).

2. liga o ponto x ∈ X ao ponto x′ ∈ X quando γ (a) = x e γ (b) = x′.

Diremos que X é conexo por caminhos quando quaisquer dois pontos de X puderem serligados por uma curva em X.

Exercício 1.59 Demonstre que todo espaço topológico conexo por caminhos é conexo.

Definição 1.60 Considere um espaço métrico X. Uma geodésica em X é uma curva quepreserva distância localmente. Mais precisamente, uma curva γ : I → X é uma geodésica se,para todo t0 ∈ I, existe ε = ε (t0) > 0 tal que

d(γ (t) ,γ

(t′))

=∣∣t− t′

∣∣ , (3)

para quaisquer t, t′ ∈ (t0 − ε, t0 + ε) ∩ I.Sendo toda geodésica uma curva, ficam bem definidas expressões como: geodésica

passando por um ponto, extremos inicial e final da geodésica e de geodésica ligandodois pontos.

Uma geodésica minimizante em X é uma geodésica que preserva distância globalmente,isto é, que verifica a propriedade (3) para quaisquer t e t′ pertencentes ao seu domínio.

Definição 1.61 Dizemos que um espaço métrico X é:

(i) geodesicamente convexo quando quaisquer dois pontos distintos de X podem serligados por uma geodésica minimizante.

(ii) geodesicamente conexo quando existir uma geodésica passando por quaisquer doispontos de X.

(iii) geodesicamente completo quando toda geodésica γ : I → X admite uma únicaextensão geodésica γ : R → X.

Observação 1.62 Muitas vezes nos referiremos (de forma abusiva) a imagem de uma geodésica(minimizante ou não) como sendo uma geodésica. Quando houver necessidade de distinção, aimagem de uma geodésica será denominada linha geodésica.

1.3. CURVAS E GEODÉSICAS 11

Observação 1.63 Quando não houver risco de confusão, utilizaremos a notação [x, x′] paradenotar uma geodésica minimizante ligando pontos x à x′ de X.

Exercício 1.64 Considere uma curva γ : [a, b] → En no espaço Euclidiano. As seguintesafirmações são equivalentes:

(i) γ é uma geodésica minimizante.

(ii) γ (t) = γ (a) + (t− a) γ(b)−γ(a)‖γ(b)−γ(a)‖ , para todo t ∈ [a, b].

(iii) Existe v ∈ En unitário tal que γ′ (t) = v, para todo t ∈ [a, b].

Conclua que En é geodesicamente convexo. Generalize o resultado para um espaço vetorialnormado qualquer.

Exercício 1.65 Considere uma curva γ : R → En no espaço Euclidiano. Demonstre que γ éuma geodésica se e somente se ‖γ (1)− γ (0)‖ = 1 e

γ (t) = γ (0) + t [γ (1)− γ (0)] , t ∈ R.

Conclua que En é geodesicamente completo e que todas as geodésicas de En sãominimizantes. O resultado é válido para um espaço vetorial normado qualquer?

Exercício 1.66 Considere um espaço métrico X, três pontos x1, x2 e x3 de X e dois segmentosgeodésicos minimizantes [x1, x2] e [x2, x3]. O conjunto [x1, x2] ∪ [x2, x3] é um segmentogeodésico minimizante ligando x1 à x3 se e somente se

d (x1, x3) = d (x1, x2) + d (x2, x3) .

Exercício 1.67 Considere dois espaços métricos X e Y, uma isometria f : X → Y e umageodésica γ : I → X. Verifique que f ◦ γ é uma geodésica de Y. Se γ é minimizante, podemosconcluir que f ◦ γ também o é? Repita o exercício para o caso em que f é apenas uma isometrialocal.

Exercício 1.68 Considere um espaço métrico X geodesicamente conexo e geodesicamentecompleto e seja U um aberto de X. Demonstre que se uma similaridade ϕ de X fixa todosos pontos de U, então ϕ é a identidade de X.

Definição 1.69 Considere um espaço métrico X e uma curva γ : [a, b] → X. Para todapartição

P = {t0, t1, . . . , tk} ⊂ [a, b] , a = t0 < t1 < . . . < tk = b

de [a, b], podemos definir o escalar positivo

L (γ, P) =k

∑i=1

d (γ (ti) ,γ (ti−1)) .

Definimos o comprimento de γ por

L (γ) = sup {L (γ, P) ; P é partição de [a, b]} .

Diremos que γ é retificável quando L (γ) < +∞.

12 CAPÍTULO 1. ESPAÇOS MÉTRICOS

Exercício 1.70 Considere um espaço métrico X, uma curva γ : [a, b] → X e duas partições Pe Q de [a, b].

(i) Se Q é um refinamento de P (isto é, se P ⊂ Q), demonstre que

L (γ, P) ≤ L (γ,Q) .

(ii) Demonstre que L (γ) ∈ [d (γ (a) ,γ (b)) ,+∞] .

Exercício 1.71 Considere um espaço métrico X e uma curva γ : [a, b] → X. Verifique asseguintes propriedades:

(i) L (γ) = L(

γ|[a,c]

)+ L

(γ|[c,b]

), para todo c ∈ (a, b)

(ii) Se γ é retificável, então a função

t ∈ [a, b] 7−→{

L(

γ|[a,t]

)se t > a

0 se t = a∈ R

é contínua.

(iii) Considere um ponto x ∈ X e um aberto U de X contendo x. Então

inf{L (α) ; α é uma curva em X ligando x à um ponto x′ ∈ X−U

}

é estritamente positivo.

(iv) Considere uma curva α : [b, c] → X verificando α (b) = γ (b) e defina

γ ∗ α : t ∈ [a, c] 7−→

γ (t) se t ∈ [a, b]

⊘ (t) se t ∈ [c, d]∈ X.

Então γ é retificável se e somente se γ e α o são. Além disso, vale

L (γ ∗ α) = L (γ) + L (α) .

(v) L (γ) = d (γ (b) ,γ (a)) se e somente se γ é uma geodésica minimizante. Neste caso,observe que L (γ) = b− a.

Exercício 1.72 Considere um espaço métrico X e uma curva γ : I → X. Umareparametrização de γ é uma curva da forma γ ◦ ϕ : J → X, onde ϕ : J → I eum homeomorfismo (denominado mudança de parâmetro). A curva γ ◦ ϕ é dita umareparametrização positiva (resp. negativa) de γ quando ϕ for crescente (resp. decrescente).Demonstre que

(i) L (γ) = L (γ ◦ ϕ), para qualquer homeomorfismo ϕ : [c, d] → [a, b]. Isto é, ocomprimento é invariante por reparametrizações.

1.3. CURVAS E GEODÉSICAS 13

(ii) Existe um homeomorfismo crescente ψ : [c, d] → [a, b] tal que

d− a = L (γ)

L(

γ ◦ ψ|[t,t′]

)= t′ − t, ∀t < t′ ∈ [0,L (γ)] .

A reparametrização γ ◦ ψ é denominada reparametrização de γ pelo comprimentode arco. Note que sempre é possível escolher c = 0 e d = L (γ). Verifique ainda que afunção

L : t ∈ [c, d] 7−→ L(

γ ◦ ψ|[c,t]

)∈ R

é derivável e que satisfaz L′ (t) = 1, para todo t ∈ [c, d].

Exercício 1.73 Duas curvas, em um espaço métrico, que possuam a mesma imagem devempossuir também o mesmo comprimento? Justifique!

Exercício 1.74 Considere dois espaços métricos X e Y, uma isometria f : X → Y e uma curvaγ : I → X. Verifique que L ( f ◦ γ) = L (γ). Repita o exercício para o caso em que f é apenasuma isometria local.

Exercício 1.75 Seja (V, ‖.‖) um espaço vetorial normado. Demonstre que toda curva γ :[a, b] → V de classe C1 é uma curva retificável e que é verdadeira a igualdade

L (γ) =∫ b

a

∥∥γ′ (t)∥∥ dt.

Observação 1.76 Considere um espaço métrico X e uma curva γ : I → X. Embora nãotenhamos o direito de falar em derivada da curva γ (por que?), podemos definir, de formabastante intuitiva, a velocidade da curva γ em um ponto t0 ∈ I por

vγ (t0) = limε→0

d (γ (t0 + ε) ,γ (t0))|ε| ,

quando o limite acima existir. Não é difícil verificar que:

(i) Se γ é uma geodésica, então vγ (t) = 1, para todo t ∈ I.

(ii) Se X é um espaço vetorial normado, d a sua métrica canônica e γ é uma curva derivável,então vγ (t) = ‖γ′ (t)‖, para todo t ∈ I.

(iii) Se I = [a, b] e a função vγ : [a, b] → [0,+∞) está bem definida e é integrável, então

L (γ) =∫ b

avγ (t) dt.

14 CAPÍTULO 1. ESPAÇOS MÉTRICOS

Capítulo 2

Um pouquinho de Topologia

Considere um espaço topológico X e duas curvas α, β : [0, 1] → X verificando

α (1) = β (0) .

A curva produto de α e β é definido por

α ∗ β : t ∈ [0, 1] 7−→

α (2t) se t ∈[0, 12]

β (2t− 1) se t ∈[12 , 1] ∈ X

Exercício 2.1 Verifique que a curva produto está bem definida e é contínua.

Definição 2.2 Considere um espaço topológico X, um ponto x0 ∈ X e dois laços α, β : [0, 1] →X em x0, isto é,

α (0) = α (1) = β (0) = β (1) = x0.

Dizemos que α e β são homotópicos quando existe uma aplicação contínua (denominadahomotopia)

H : [0, 1]× [0, 1] → X

verificandoH (0, t) = α (t) e H (1, t) = β (t) , ∀t ∈ [0, 1]

H (s, 0) = H (s, 1) = x0, ∀t ∈ [0, 1]

A relação de homotopia é uma relação de equivalência (verifique!) e o conjunto das classesde equivalência de laços em x0, munido da operação

α ∗ β = α ∗ β

é um grupo denominado grupo fundamental de X em x0 e será denotado por Π1 (X, x0).

Exercício 2.3 Verifique que se X é um espaço topológico conexo por caminhos, então os gruposfundamentais Π1 (X, x0) e Π1 (X, x1) são isomorfos, para quaisquer pontos x0, x1 ∈ X.Portanto, quando não houver risco de confusão, escreveresmo apenas Π1 (X) para representar"o" grupo fundamental de X.

15

16 CAPÍTULO 2. UM POUQUINHO DE TOPOLOGIA

Exercício 2.4 Considere dois espaços topológicos X e Y, um ponto x0 ∈ X e umhomeomorfismo ϕ : X → Y. Demonstre que Π1 (X, x0) e Π1 (Y, ϕ (x0)) são isomorfos.Dito de outra forma, demonstre que o grupo fundamental é um invariante topológico (isto é,invariante por homeomorfismos).

Exemplo 2.5 O grupo fundamental

(i) da circunferência S1 ={u ∈ E2 ; ‖u‖ = 1

}, munida da métrica induzida, é cíclico

gerado pela classe da curva

α : t ∈ [0, 1] 7−→ (cos 2πt, sen 2πt) ∈ E2.

Isto é, Π1(S1)≈ Z.

(ii) do cilindro C ={(x, y, z) ∈ E3 ; x2 + y2 = 1

}, munido da métrica induzida, é cíclico

gerado pela classe da curva

α : t ∈ [0, 1] 7−→ (cos 2πt, sen 2πt, 0) ∈ E3.

Isto é, Π1 (C) ≈ Z.

(iii) do toro de revolução TR,r, onde R > r > 0, obtido quando giramos o círculo

C ={(0, y, z) ∈ R3 ; (y− R)2 + z2 = r2

}

em torno do eixo OZ é grupo abeliano gerado pelas classes das curvas (não homotópicas,certo?)

α : t ∈ [0, 1] 7−→ (0, R+ r cos 2πt, r sen 2πt) ∈ E3

β : t ∈ [0, 1] 7−→ ((R+ r) cos 2πt, (R+ r) sen 2πt, 0) ∈ E3

Isto é, Π1 (TR,r) ≈ Z× Z.

Definição 2.6 Diremos que um espaço topológico X é simplesmente conexo quando X éconexo por caminhos e Π1 (X, x0) é trivial, para um (e portanto para todos) ponto x0 ∈ X.

Definição 2.7 Sejam X e Y dois espaços topológicos conexos por caminhos. Dizemos que Xé um recobrimento de Y quando existe uma aplicação sobrejetiva Π : X → Y (denominadaaplicação de recobrimento) verificando a seguinte propriedade: todo ponto y ∈ Y possuiuma vizinhança aberta U ⊂ Y conexa por caminhos tal que, para toda componente conexa porcaminhos V de Π−1 (U), a restrição

Π|V : V → U

é um homeomorfismo. Por simplicidade escreveremos "Considere um recobrimento Π : X →Y" e ficará implícito que X e Y são espaços topológicos conexos por caminhos.

Quando X e Y forem espaços métricos e as aplicações Π|V acima definidas forem isometrias,diremos Π : X → Y é um recobrimento métrico.

Diremos que X é um recobrimento universal (resp. recobrimento métrico universal)de Y, quando X é um recobrimento (resp. recobrimento métrico) de Y e X é simplesmenteconexo.

17

Definição 2.8 Considere dois espaços topológicos (resp. métricos) X e Y. Se Π : X → Y éum recobrimento (resp. recobrimento métrico), então os homeomorfismos (resp. as isometrias)ϕ : X → X verificando

Π ◦ ϕ = Π

são denominados transformações de recobrimento. O conjunto das transformações derecobrimento, munido da operação de composição é um grupo, denominado grupo dastransformações de recobrimento, e será denotado por HomΠ (X) (resp. por IsomΠ (X)).

Exercício 2.9 Considere um recobrimento Π : X → Y. Demonstre que:

(i) Para todo y ∈ Y, o conjunto Π−1 (y) é um subconjunto discreto de X

(ii) Se Π−1 (y) possui n elementos, então, para todo y′ ∈ Y, o conjunto Π−1 (y′) possui nelementos. O número n é denominado número de folhas do recobrimento.

Proposição 2.10 Considere um espaço topológico (resp. métrico) Y verificando a seguintepropriedade: existe n ∈ N tal que, para todo y ∈ Y, existe uma vizinhança aberta U ⊂ Y de yhomeomorfa a um aberto de En. Então

(i) Y possui um recobrimento (resp. recobrimento métrico) universal Π : Y → Y

(ii) IsomΠ

(Y)≈ Π1 (Y)

(iii) O número de folhas do recobrimento Π : Y → Y coincide com a cardinalidade de Π1 (Y)

Além disso, se Y1 e Y2 são dois recobrimentos (resp. recobrimentos métricos) universais deY, então Y1 e Y2 são homeomorfos (resp. isométricos). Dito de outra forma, o recobrimento(resp. recobrimento métrico) universal é único a menos de homeomorfismo (resp. isometria).

18 CAPÍTULO 2. UM POUQUINHO DE TOPOLOGIA

Capítulo 3

Geometria Euclidiana

3.1 Classificação das isometrias e similaridades

Os teoremas a seguir classificam todas as isometrias e similaridades do espaçoeuclidiano n-dimensional:

Teorema 3.1 Considere uma função f : En → En. As seguintes afirmações são equivalentes:

(i) f é uma isometria.

(ii) f preserva distância.

(iii) Existe uma (única) transformação linear ortogonal A : En → En e um vetor v ∈ En talque

f (x) = A (x) + v, x ∈ En.

Exercício 3.2 Demonstre que toda isometria do plano euclidiano fica completamentedeterminada pela imagem de três pontos não colineares.

Teorema 3.3 Considere uma função f : En → En. As seguintes afirmações são equivalentes:

(i) f é uma similaridade.

(ii) f é uma mudança de escala.

(iii) existe uma transformação linear ortogonal A : En → En, uma constante k > 0 e umvetor v ∈ En tal que

f (x) = kA (x) + v, x ∈ En.

Corolário 3.4 Isometrias e similaridades de En são aplicações de classe C∞.

Faremos a partir de agora um estudo mais detalhado das isometrias do planoeuclidiano E2. Comecemos lembrando que translações, rotações, reflexões e "glidereflections"(veja exercício [1.49]) são isometrias euclidianas. O próximo resultado nosdiz que essas são, de fato, as únicas isometrias do plano euclidiano.

19

20 CAPÍTULO 3. GEOMETRIA EUCLIDIANA

Teorema 3.5 (Chasles) Toda isometria do plano euclidiano é uma translação, uma rotaçãouma reflexão ou uma "glide reflection".

Observação 3.6 Considere um conjunto X. Dizemos que x ∈ X é um ponto fixo de umaaplicação f : X → X quando f (x) = x. Não é difícil verificar que translações e "glidereflections"não possuem pontos fixos. Por outro lado, rotações possuem um único ponto fixo ereflexões possuem uma reta de pontos fixos.

Observação 3.7 (Chasles) A classificação das isometrias do espaço euclidiano tridimensionalnão difere muito do caso bidimensional. As isometrias de E3 são: translações, rotações,"twist translations" (composições de rotações e translações cuja direção de translaçãoé paralela ao eixo de rotação), reflexões com relação à planos, "glide reflections"(composição de reflexões e translações cuja direção de translação é paralela ao plano da reflexão)e "twist reflections" (composição de reflexões e rotações cujo eixo de rotação é perpendicularao plano da reflexão.

Exercício 3.8 Use o teorema de Chasles para determinar condições para que duas isometriasdo plano euclidiano comutem.

3.2 Orientação

Imagine uma palavra escrita no plano euclidiano. Quando aplicamos umaisometria euclidiana, esta palavra "será levada para uma outra parte do plano",possuirá o mesmo tamanho, mas poderá estar escrita de forma refletida (como ocorrequando colocamos um livro em frente a um espelho).

Diremos que uma isometria preserva orientação (resp. inverte orientação) quandoela não reflete (resp. reflete) as palavras escritas no plano.

Uma outra forma intuitiva de se compreender a noção de orientação é imaginar umcírculo no plano e uma partícula percorrendo-o no sentido, digamos, anti-horário. Aimagem deste círculo por uma isometria será ainda um círculo, mas a partícula poderáou não ter invertido o seu sentido de percurso (isto é, passado do sentido anti-horáriopara o sentido horário). Diremos então que a isometria preserva ou inverte orientaçãoquando o sentido de percurso da partícula se mantém ou é invertido.

Formalizando, a definição de orientação em um espaço vetorial real de dimensãofinita é a seguinte:

Definição 3.9 Considere um espaço vetorial real E, uma base β = {e1, . . . , en} de E e umisomorfismo linear T : E → E. Denote por β′ a base de E dada por {Te1, . . . , Ten} e por dββ′

o determinante da matriz mudança de base de β para β′. Diremos que T preserva orientação(resp. inverte orientação) quando dββ′ > 0 (resp. dββ′ < 0).

3.2. ORIENTAÇÃO 21

O conjunto dos isomorfismos que preservam (resp. invertem) orientação de E será denotadopor Isom+ (E) (resp. por Isom− (E)).

Suponha que E é normado e considere f : U ⊂ E → V ⊂ E um difeomorfismo entreabertos de E. Dizemos que f preserva orientação quando

d f (x) ∈ Isom+ (E) , ∀x ∈ U.

O conjunto dos difeomorfismos de U em V que preservam (resp. invertem) orientação serádenotado por Diff+ (U;V) (resp. por Diff − (U;V)).

Exemplo 3.10 As reflexões do plano euclidiano são isometrias que invertem orientação.De fato, considere uma reta ra,b =

{(x, y) ∈ E2 ; y = ax+ b

}de E2. Como visto no

exercício [1.49], a reflexão sobre ra,b é dada por

Fa,b (x, y) =(x− a2 (x+ 1) + 2a (y− b)

1+ a2,2ax+ a2 (y− b)− a3 − y+ 2b

1+ a2

).

Logo

d f (x, y) =

[1−a21+a2

2a1+a2

2a1+a2

a2−11+a2

], ∀ (x, y) ∈ E2.

Considere a base β = {(1, a) , (−a, 1)}. Como[

1−a21+a2

2a1+a2

2a1+a2

a2−11+a2

] [1a

]=

[1−a21+a2 +

2a21+a2

2a1+a2 +

a3−a1+a2

]=

[1a

]

e [1−a21+a2

2a1+a2

2a1+a2

a2−11+a2

] [−a1

]=

[ −a+a31+a2 + 2a

1+a2

− 2a21+a2 +

a2−11+a2

]=

[a−1

]

segue que a matriz mudança de base entre β e β′ = {(1, a) , (a,−1)} é dada por

[Id]β′

β =

[1 00 −1

].

Logo

dβ,β′ = det [Id]β′

β = −1 < 0

e consequentemente Fa,b inverte orientação.

Exercício 3.11 Considere um espaço vetorial real E e dois isomorfismos lineares T, S : E → E.Demonstre que

(i) Se T e S preservam orientação, então T ◦ S preserva orientação.

(ii) Se T e S invertem orientação, então T ◦ S preserva orientação.

(iii) Se T preserva orientação e S inverte orientação, então T ◦ S e S ◦ T invertem orientação.

(iv) Munido da operação de composição, Isom+ (E) é um subgrupo de Isom (E), o conjuntodos isomorfismos de E. (O mesmo se aplica a Isom− (E)?)

22 CAPÍTULO 3. GEOMETRIA EUCLIDIANA

Exercício 3.12 Considere um espaço vetorial real normado E, dois abertos U e V de E e doisdifeomorfismos f , g : U ⊂ E → V ⊂ E. Demonstre que

(i) Se f e g preservam orientação, então f ◦ g preserva orientação.

(ii) Se f e g invertem orientação, então f ◦ g preserva orientação.

(iii) Se f preserva orientação e g inverte orientação, então f ◦ g e g ◦ f invertem orientação.

(iv) Munido da operação de composição, Diff + (U;V) é um subgrupo de Diff (U;V), oconjunto dos difeomorfismos de U em V. (O mesmo se aplica a Diff− (U;V)?)

Exercício 3.13 Demonstre que toda "glide reflection"inverte orientação.

Proposição 3.14 Sejam r e s duas retas no plano euclidiano. Denote por Fr e Fs as reflexõescom relação a esta retas.

(i) Se r e s são paralelas, então Fr ◦ Fs é uma translação.

(ii) Se r e s são concorrentes, então Fr ◦ Fs é uma rotação.

Reciprocamente, translações e rotações podem sempre ser escritas como composição de duasreflexões.

Exercício 3.15 Demonstre a proposição precedente e estabeleça a relação existente entre

(i) a distância entre duas retas paralelas e a norma do vetor associado a translação por elasinduzida.

(ii) o menor ângulo entre duas retas concorrentes e o ângulo da rotação por elas induzida.

Unindo os resultados, exemplos e exercícios precedentes obtemos os seguintescorolários:

Corolário 3.16 Toda isometria do plano euclidiano se escreve como composição de no máximotrês reflexões. Em particular, as reflexões geram o grupo de isometrias do plano euclidiano.

Corolário 3.17 Rotações e Translações são as únicas isometrias do plano euclidiano quepreservam orientação.

3.3 Propriedades dos Espaços Euclidianos

Com o intuito de servir de comparação com as geometrias que iremos definirdurante este texto, listamos agora algumas propriedades importantes dos espaçoseuclidianos:

(i) Retas são subconjuntos ilimitados de En.

(ii) Por quaisquer dois pontos distintos "passa"uma e somente uma reta de En.

3.3. PROPRIEDADES DOS ESPAÇOS EUCLIDIANOS 23

(iii) Por um ponto fora de uma reta "passa"uma única reta paralela (à reta dada).

(iv) A soma dos ângulos internos de qualquer triângulo é π.

(v) Quaisquer dois triângulos em En que possuam lados de mesmo comprimentosão congruentes.

(vi) Se dois pontos de uma reta estão contidos em um plano, então toda a reta estácontida neste mesmo plano.

(vii) Para um habitante de En, todos os pontos são indistinguíveis (isto é, En éhomogêneo). Além disso, todas as direções em ummesmo ponto são igualmenteindistinguíveis. Tecnicamente, estas afirmações significam que para quaisquerdois pontos x e y pertencentes à En e para quaisquer duas bases ortonormaisβ = {v1, . . . , vn} e β′ = {w1, . . . ,wn} de En, existe uma (única) isometriaf : En → En verificando f (x) = y e

d f (x) .vi = wi, i = 1, . . . , n.

24 CAPÍTULO 3. GEOMETRIA EUCLIDIANA

Capítulo 4

Espaços Métricos Intrínsecos

4.1 Definições básicas

Definição 4.1 Considere um espaço métrico X conexo por caminhos. A métrica intrínsecasobre X associada à métrica dX é a função

dX :(x, x′

)∈ X × X 7−→ inf

{L (γ) ; γ é uma curva ligando x à x′

}∈ R∪ {+∞} .

Diremos que a métrica dX é uma métrica intrínseca e que (X, dX) é um espaço métricointrínseco quando dX = dX.

Observação 4.2 Toda métrica intrínseca é uma métrica no sentido da definição (1.1)(verifique!). Além disso,

d(x, x′

)≤ d

(x, x′

), ∀x, x′ ∈ X.

Exemplo 4.3 Todo espaço vetorial normado (V, ‖.‖) (munido de sua métrica canônica) é umespaço métrico intrínseco. Além disso, vale que

d(x, x′

)= min

{L (γ) ; γ é uma curva de classe C∞, em V, ligando x à x′

}

para quaisquer x, x′ ∈ V. Mais geralmente, se U é um aberto de V conexo por caminhos, entãoa métrica intrínseca de U induzida pela métrica canônica de V verifica

d(x, x′

)= min

{L (γ) ; γ é uma curva derivável, em U, ligando x à x′

}

para quaisquer x, x′ ∈ U.

Exemplo 4.4 Dado r > 0, denote por Sr a esfera, em R3, de centro 0R3 e raio r. Isto é,

Sr ={u ∈ R3 ; ‖u‖ = r

}.

A métrica d induzida sobre Sr pela métrica de R3 não é intrínseca. De fato, sejam p e q doispontos antípodas de Sr. Como d é a métrica induzida pela de R3, temos que d (p, q) = 2r. Todocaminho, em Sr, ligando p à q, passa por um ponto r sobre o "equador" (círculo obtido pelainterseção de Sr com o plano que passa pela origem e é ortogonal a reta que contém p e q). ComoR3 é um espaço métrico intrínseco, qualquer caminho em R3 (em particular, em Sr), ligando p

25

26 CAPÍTULO 4. ESPAÇOS MÉTRICOS INTRÍNSECOS

à r, deve ter comprimento maior ou igual ao comprimento do segmento de reta pq, isto é, maiorou igual à r

√2. Logo, qualquer caminho em Sr ligando p à q deve ter comprimento maior ou

igual à 2r√2 e, consequentemente,

inf {L (γ) ; γ é uma curva ligando p à q} ≥ 2r√2 > 2r = d (p, q) .

Segue da definição que d não é uma métrica intrínseca.

Exercício 4.5 Considere um espaço métrico (X, d). Demonstre que d = d.

Exercício 4.6 Os espaços métricos (X, d) e de(X, d

)possuem os mesmos abertos? Justifique!

Exercício 4.7 Demonstre que duas métricas distintas em um mesmo conjunto podem induzira mesma métrica intrínseca.

Exercício 4.8 Verifique que toda curva retificável em um espaço métrico (X, d) é uma curva

em(X, d

).

Definição 4.9 Considere um espaço métrico X e um subconjunto conexo por caminhos Y deX. A métrica intrínseca sobre Y induzida pela métrica dX é a aplicação

dY :(x, x′

)∈ Y× Y 7−→ inf

{L (γ) ; γ é uma curva em Y ligando x à x′

}∈ R.

Exercício 4.10 Considere um espaço métrico X e um subconjunto conexo por caminhos Y deX. Estabeleça relações entre as métricas dX, dY,dX e dY .

Terminamos a seção com o importante teorema de Hopf-Rinow a respeito deespaços métricos intrínsecos.

Teorema 4.11 (Hopf-Rinow) Seja X um espaço métrico intrínseco localmente compacto. Asseguintes afirmações são equivalentes:

(i) X é completo

(ii) X é finitamente compacto

(iii) X é geodesicamente completo

Além disso, qualquer uma das afirmações anteriores implica que X é geodesicamente conexo.

4.2. ÂNGULOS E CURVATURA 27

4.2 Ângulos e Curvatura

Dados três pontos A, B,C ∈ E2 distintos (possivelmente colineares), seja∡ (A; B,C)o ângulo em A do triângulo ∆ (A, B,C). Sabemos da geometria analítica que

cos∡ (A; B,C) =〈B− A,C− A〉

‖B− A‖ ‖C− A‖ =‖B− A‖2 + ‖C− A‖2 − ‖C− B‖2

2 ‖B− A‖ ‖C− A‖ ,

isto é,

∡ (A; B,C) = arccos

(‖B− A‖2 + ‖C− A‖2 − ‖C− B‖2

2 ‖B− A‖ ‖C− A‖

).

A igualdade acima motiva a seguinte definição:

Definição 4.12 Considere um espaço métrico X. Dados três pontos distintos p, q, r ∈ X,considere três pontos P,Q, R ∈ E2 arbitrários verificando

d (p, q) = ‖Q− P‖ , d (p, r) = ‖R− P‖ e d (q, r) = ‖Q− R‖ .

O ângulo euclidiano de comparação, em p, dos pontos p, q, r ∈ X, é o ângulo em P dotriângulo ∆ (P,Q, R). Mais precisamente,

∡E2 (p; q, r) = arccos

(‖Q− P‖2 + ‖R− P‖2 − ‖Q− R‖2

2 ‖Q− P‖ ‖R− P‖

).

Exercício 4.13 Verifique que o ângulo de comparação apresentado acima está bem definido, istoé, que os três pontos P,Q, R ∈ E2 com as propriedades listadas sempre existem e que o valor daexpressão

arccos

(‖Q− P‖2 + ‖R− P‖2 − ‖Q− R‖2

2 ‖Q− P‖ ‖R− P‖

)

não depende da escolha dos mesmos.

A definição precedente nos fornece um meio natural de defnir o ângulo entre duascurvas que partem de um mesmo ponto:

Definição 4.14 Considere um espaçométrico X, um ponto p ∈ X e duas curvas α, β : [0, ε) →X verificando

p = α (0) = β (0) .

Definimos o ângulo entre α e β por

∡ (α, β) = lim(s,t)→(0,0)

∡E2 (p; α (s) , β (t)) ,

quando este limite existir.

Exercício 4.15 Considere um ponto a ∈ En e duas curvas diferenciáveis α, β : [0, ε) → En

verificandoa = α (0) = β (0) .

Demonstre que ∡ (α, β) existe e que coincide com o ângulo entre os vetores α′ (0) e β′ (0).

28 CAPÍTULO 4. ESPAÇOS MÉTRICOS INTRÍNSECOS

Exercício 4.16 Considere um espaço métrico intrínseco X e sejam α e β duas geodésicasminimizantes em X com mesmo extremo inicial. Verifique que

∡E2 (p; α (s) , β (t)) = arccos

(t2 + s2 − d (α (s) , β (t))2

2ts

), ∀s, t ∈ [0, ε) .

Utilize esta expressão para demosntrar que o ângulo ∡ (α, β) está bem definido.

O conceito de ângulo de comparação serve de base para a seguinte definição:

Definição 4.17 Considere um espaço métrico X. Um triângulo em (X, d) é obtido a partirda escolha de três pontos distintos p, q, r ∈ X (denominados vértices) e três geodésicasminimizantes αi : [ai, bi] → X (denominados lados), i = 1, 2, 3, verificando (em geral, aescolha isolada dos vértices não define o triângulo!)

α1 (a1) = p e α1 (b1) = qα2 (a2) = p e α2 (b2) = rα3 (a3) = q e α3 (b3) = r

Um tal triângulo será denotado por ∆ (p, q, r, α1, α2, α3), ou simplesmente por ∆ (p, q, r)quando não houver dúvidas sobre quais geodésicas minimizantes estão sendo fixadas.

Definimos∡ (p,∆), o ângulo em p de um triângulo ∆ = ∆ (p, q, r, α1, α2, α3) em X, por

∡ (p,∆) = ∡ (α1, α2)

quando este último ângulo existir. Analogamente define-se ∡ (q,∆) e ∡ (r,∆).Dado um triângulo ∆ (p, q, r) em X, considere três pontos P,Q, R ∈ E2 arbitrários

verificando

d (p, q) = ‖Q− P‖ , d (p, r) = ‖R− P‖ e d (q, r) = ‖Q− R‖ .

O triângulo ∆ (P,Q, R) é denominado um triângulo euclidiano de comparação para∆ (p, q, r). De maneira geral, um triângulo euclidiano de comparação para o triângulo∆ = ∆ (p, q, r) será denotado por ∆E2, (p, q, r) e seus ângulos por ∡E2, (p,∆), ∡E2, (q,∆) e∡E2, (r,∆).

Exercício 4.18 Verique que quaisquer dois triângulos de comparação (de um mesmo triângulofixado em um espaço métrico) são congruentes.

Possuímos agora todos os ingredientes para definir uma noção de curvatura em umespaço métrico intrínseco (lembre-se do exercício 4.16)

Definição 4.19 Considere um espaço métrico X. Dizemos que um ponto x ∈ X é um pontode curvatura maior ou igual à zero (ou simplesmente não negativa) quando existir umaberto U de X contendo x verificando

∡E2, (p,∆) ≤ ∡ (p,∆) , ∡E2, (q,∆) ≤ ∡ (q,∆)

4.2. ÂNGULOS E CURVATURA 29

e ∡E2, (r,∆) ≤ ∡ (r,∆)

para todo triângulo ∆ = ∆ (p, q, r) contido em U.Dizemos que X é um espaço métrico de curvatura maior ou igual à zero (ou

simplesmente não negativa) quando todos os seus pontos forem pontos de curvatura maiorou igual à zero. De forma análoga, podemos definir as noções de ponto e espaço métrico decurvatura menor ou igual à zero (ou simplesmente não positiva).

Observação 4.20 Um espaço de curvatura maior ou igual (resp. menor ou igual) à zero éportanto um espaço onde pequenos triângulos possuem ângulos maiores (resp. menores) que osde um trângulo de mesmos lados no plano euclidiano.

30 CAPÍTULO 4. ESPAÇOS MÉTRICOS INTRÍNSECOS

Capítulo 5

Geometrias Localmente Euclidianas

Definição 5.1 Uma geometria localmente euclidiana X de dimensão n é um espaçométrico intrínseco, finitamente compacto, geodesicamente completo e geodesicamente conexoverificando a seguinte propriedade: para todo x ∈ X existe ε > 0 tal que a bola BX (x, ε) éisométrica à uma bola de raio ε no espaço euclidiano En.

Exercício 5.2 O espaço euclidiano En é uma geometria localmente euclidiana de dimensão n?Justifique sua resposta!

O objetivo deste capítulo é apresentar uma família de exemplos que servirão demotivação para as definições abstratas que aparecerão mais a frente no texto. Todos osexemplos apresentados serão de dimensão 2 e 3 .

5.1 Superfícies Cilíndricas Euclidianas I

Dado L > 0, considere a região

R ={(x, y) ∈ E2 ; x ∈ [0, L]

}

e o seu quociente C = R/ ∼ pela relação de equivalência:

(x, y) ∼(x′, y′

)⇐⇒ (x, y) =

(x′, y′

)ou (x, y) =

(x′ ± L, y′

)

para quaisquer (x, y) , (x′, y′) ∈ R. Denote por Π a projeção canônica de R sobre C.

Definição 5.3 Considere dois números reais a < b. Uma aplicação γ : [a, b] → C édenominada uma curva admissível sobre C quando existir uma partição

P = {a = x0 < x1 < . . . < xk−1 < xk = b}de [a, b] cujas restrições γi : [xi−1, xi] → C, onde i = 1, . . . , k, admitam levantamentos à Rde classe C1. Mais precisamente, quando existirem aplicações de classe C1 γi : [xi−1, xi] → R,onde i = 1, . . . , k, verificando

Π ◦ γi = γi.

Diremos que uma aplicação γ : I → C, onde I é um intervalo real não degenerado, é umacurva admissível sobre C quando sua restrição a qualquer intervalo não degenerado [a, b] ⊂ Ifor uma curva admissível sobre C no sentido do parágrafo anterior.

31

32 CAPÍTULO 5. GEOMETRIAS LOCALMENTE EUCLIDIANAS

Exercício 5.4 Verifique que C é conexo por curvas admissíveis, isto é, que quaisquer doispontos de C podem ser ligados por uma curva admissível em C.

Utilizando as notações da definição precedente, definiremos o comprimento deuma curva admissível γ : [a, b] → C por

L (γ) =k

∑i=1

LE2 (γi)

onde LE2 (γi) representa o comprimento euclidiano da curva γi, isto é (conf. exercício[1.75]),

LE2 (γi) =∫ b

a

∥∥γi′ (t)

∥∥dt, i = 1, . . . , k.

No caso de uma curva admissível γ : I → C, onde I é um intervalo realnão degenerado qualquer, considere uma sequência Ii = [ai, bi], onde i ∈ N, desubintervalos não degenerado de I verificando

I =⋃

i∈NIi

e(ai, bi) ∩

(aj, bj

)= ∅, i 6= j ∈ N

e defina

L (γ) =∞

∑i=1

L (γi) ∈ [0,+∞] ,

onde, para cada i ∈ N, γi representa a restrição de γ ao intervalo Ii.

Exercício 5.5 Verifique que a noção de comprimento de uma curva admissível está bem definidae que independe das escolhas feitas.

Uma vez definida a noção de comprimento de curvas admissíveis, uma candidatanatural a métrica em C é a aplicação

d : (p, q) ∈ C× C → inf {L (γ) ; γ é uma curva admissível ligando p à q} ∈ R+.

Proposição 5.6 O par (C, d) é uma geometria localmente euclidiana de dimensão 2.

Exercício 5.7 Verifique que o espaço métrico (C, d) é isométrico ao cilindro

C ={(x, y, z) ∈ R3 ; x2 + y2 = L2

}

munido da métrica intrínseca induzida sobre C pela métrica do R3. Além disso, utilize a noçãode grupo fundamental para concluir que superfícies cilíndricas não são homeomorfas ao planoeuclidiano. Determine laços que sejam geradores do grupo fundamental de (C, d).

Definição 5.8 A espaço localmente euclidiano (C, d) de dimensão 2 acima definida édenominada superfície cilíndrica euclidiana.

5.1. SUPERFÍCIES CILÍNDRICAS EUCLIDIANAS I 33

As superfícies cilíndricas são localmente indistinguíveis do plano euclidiano, masglobalmente possuem algumas propriedades bastante diferentes das deste último.Vamos agora discutir algumas dessas diferenças.

Inicialmente, precisamos compreender quem são as geodésicas de uma superfíciecilíndrica (C, d). Sendo as geodésicas definidas por uma propriedade local e sendo(C, d) localmente euclidiana, não é difícil concluir que as geodésicas (na verdade,as imagens das geodésicas) estarão contidas em segmentos de reta contidos em R.Temos, portanto, dois tipos de geodésicas: aquelas cuja imagem está contida em únicosegmento de reta e as que são compostas por vários segmentos de reta tocando aslinhas verticais x = 0 e x = L.

Por exemplo (veja figura abaixo), considere dois pontos distintos P eQ pertencentesà C. O segmento de reta (euclidiano) ligando P à Q é a imagem de uma geodésicaligando estes pontos. Porém, uma outra geodésica entre P e Q pode ser construídafazendo-se uso do segmento de reta que liga P ao ponto Q + (L, 0). Para tal, bastatransladar a parte do segmento que se encontra a direita da reta x = L pelo vetor(−L, 0). De maneira análoga, podemos construir geodésicas ligando P à Q fazendouso dos segmentos de reta que ligam P aos pontos Q+ (nL, 0), onde n ∈ Z.

Diferente do plano euclidiano, observamos que em uma superfície cilíndricaquaisquer dois pontos podem ser ligados por uma infinidade de geodésicas (sendouma única delas minimizante, certo?). Isto significa que todo objeto observado por um"habitante" da superfície cilíndrica possuirá infinitas imagens e estas se encontrarão adistâncias diferentes dele. Caminhando na direção de qualquer uma destas imagensele chegará até o objeto.

Exercício 5.9 Verifique que em uma superfície cilíndrica existem

(i) retas paralelas, isto é, retas que não se encontram em nenhum ponto.

(ii) retas concorrentes em um único ponto.

(iii) retas distintas e concorrentes em um número infinito de pontos.

34 CAPÍTULO 5. GEOMETRIAS LOCALMENTE EUCLIDIANAS

Outra observação importante, ainda com relação as geodésicas de C, é a existênciade geodésicas fechadas (inexistentes no plano euclidiano, certo?). Note que todosegmento horizontal em R, ligando as retas x = 0 e x = L, é imagem de uma geodésicafechada de comprimento L. De fato, estas são as únicas geodésicas fechadas de C.Isto significa que em todo ponto de uma superfície cilíndrica existe uma única direçãodistinguida (lembramos que no plano euclidiano todas as direções são indistinguíveis).Um "habitante" da superfície cilíndrica virado nesta direção (em qualquer dos sentidos) veria a sua frente infinitas cópias de si mesmo (todas de costas!).

Apesar da existência de direções distinguidas, não é difícil verificar que assuperfícies cilíndricas são espaços métricos homogêneos. Para tal, basta observar(verifique!) que as transformações de C induzidas pelas aplicações

Tλ : (x, y) ∈ R 7−→ (x, y+ λ) ∈ R, λ ∈ R

e

Sλ : (x, y) ∈ R 7−→

(x+ λ − L, y) se x+ λ ≥ L

(x+ λ, y) se x+ λ < L∈ R, λ ∈ [0, L]

são isometrias de C.

Pequenas bolas em uma geometria localmente euclidiana são, por definição,isométricas a bolas do plano euclidiano. O tamanho máximo destas "bolasisométricas", no entanto, pode variar de ponto para ponto. Embora não seja exigidona definição, as superfícies cilíndricas possuem uma uniformidade para o tamanhodestes raios máximos. Como sugere a figura na página 33, todas as bolas em C, comraio menor que L/2, são isométricas a bolas de mesmo raio no plano euclidiano.

Exercício 5.10 Verifique que a soma dos ângulos internos de um triângulo em uma superfíciecilíndrica euclidiana é π.

Exercício 5.11 Quaisquer dois triângulos em uma superfície cilíndrica euclidiana, quepossuam lados de mesmo comprimento, são congruentes? Justifique sua resposta.

Exercício 5.12 Verifique se o axioma das paralelas é válido para superfície cilíndricaseuclidianas.

Exercício 5.13 Existem similaridades em uma superfície cilíndrica euclidiana? Em casoafirmativo, dê exemplos.

Exercício 5.14 Determine todas as isometrias de uma superfície cilíndrica euclidiana.

Exercício 5.15 Dadas duas funções contínuas f , g : [0, L] → R verificando f (0) = f (L),g (0) = g (L) e

f (x) < g (x) , ∀x ∈ [0, L]

considere as regiões

R f g ={(x, y) ∈ R2 ; x ∈ [0, L] e y ∈ ( f (x) , g (x))

}⊂ R

5.2. SUPERFÍCIES CILÍNDRICAS EUCLIDIANAS II 35

eR f g =

{(x, y) ∈ R2 ; x ∈ [0, L] e y ∈ [ f (x) , g (x)]

}⊂ R.

Adaptando, de maneira natural, a construção feita nesta seção para as regiões R f g e R f g,obteremos os espaços métricos C f g e C f g. Estes espaços são localmente euclidianos? Em casonegativo, determine quais das propriedades da definição de espaços localmente euclidianos elesnão possuem.

5.2 Superfícies Cilíndricas Euclidianas II

Na seção anterior, a existência de uma identifição entre pontos da região R complicabastante a construção feita. Analisando todo o processo, podemos agora apresentaruma construção equivalente, mais fácil de ser generalizada e, em certo sentido, maissimples que a precedente.

Dado L > 0, considere o subgrupo Γ de Isom(E2)gerado pela translação

TL : (x, y) ∈ E2 7−→ (x+ L, y) ∈ E2.

Mais precisamente, ϕ ∈ Γ se e somente se existe n ∈ Z tal que

ϕ : (x, y) ∈ E2 7−→ (x+ nL, y) ∈ E2.

Seja C o quociente de E2 pela relação de equivalência

(x, y) ∼ (x′, y′) ⇐⇒ ∃ ϕ ∈ Γ tal que ϕ (x, y) = (x′, y′)

⇐⇒ ∃ n ∈ Z tal que (x+ nL, y) = (x′, y′)

para quaisquer (x, y) , (x′, y′) ∈ E2. Denote por Π a projeção canônica de E2 sobre C.

Faremos uso da seguinte definição:

Definição 5.16 Considere um espaço métrico X, um ponto p ∈ X e um subgrupo Γ deIsom (X). O conjunto

Γp = {ϕ (p) ; ϕ ∈ Γ}é denominado órbita de p com relação à Γ.

Note queΓp = {p+ (nL, 0) ; n ∈ Z} ,

para todo p ∈ E2. Consequentemente, Γp é a classe de p com relação à relaçãode equivalência ∼. Chamamos atenção para o fato de que Γp não possui pontosde acumulação em E2, isto é, toda bola em E2 contém apenas um número finito deelementos de Γp.

Por tudo que vimos na seção anterior, uma candidata natural a métrica em C é aaplicação

d : (Γp, Γq) ∈ C× C 7−→ inf{dE2

(p′, q′

); p′ ∈ Γp e q′ ∈ Γq

}∈ R+.

36 CAPÍTULO 5. GEOMETRIAS LOCALMENTE EUCLIDIANAS

Exercício 5.17 Demonstre que

d (Γp, Γq) = min{dE2

(p, q′

); q′ ∈ Γq

}

para quaisquer p, q ∈ E2.

Deixamos como exercício a verificação da seguinte proposição

Proposição 5.18 O par(C, d

)é um espaço métrico isométrico à superfície cilíndrica (C, d)

vista na seção anterior.

Terminamos a seção analisando (sem demonstração) algumas propriedades daprojeção Π e da região.

R ={(x, y) ∈ E2 ; x ∈ [0, L]

}

Proposição 5.19 Considere um ponto p ∈ E2 e um raio r ∈(0, L2

]. A restrição

Π|B(p,r) : BE2 (p, r) → BC (Γp, r)

está bem definida e é uma isometria. Em particular Π é uma isometria local e portanto, umaaplicação aberta (leva abertos de E2 em abertos de C).

Corolário 5.20 As geodésicas de C são as imagens por Π das retas de E2. Mais precisamente,uma curva γ : I → C é uma geodésica de C se e somente se existe (único) v ∈ E2 tal que

γ (t) = Π (p+ tv) , ∀t ∈ I

onde p é um ponto qualquer de Π−1 (Imγ) ⊂ E2.

Faremos uso da seguinte definição:

Definição 5.21 Considere um espaço métrico X e um subgrupo Γ de Isom (X). Umsubconjunto aberto e conexo S de X verificando

(i) ϕ (S) ∩ ψ (S) = ∅, para quaisquer ϕ 6= ψ ∈ Γ

(ii) X =⋃

ϕ∈Γ

ϕ(S)

será denominado uma região fundamental de Γ.

Proposição 5.22 Se S é uma região fundamental de Γ, então

(i) Π (S) é um aberto denso de C

(ii) Π(S)= C.

5.2. SUPERFÍCIES CILÍNDRICAS EUCLIDIANAS II 37

(iii) A aplicaçãoΠ|S : S → Π (S)

é uma isometria.

Proposição 5.23 Dado q =(xq, yq

)∈ E2, considere a região

Rq ={p ∈ E2 ; d (p, q) ≤ d (p, ϕ (q)) , ∀ϕ ∈ Γ − {Id}

}.

São verdadeiras as seguintes afirmações:

(i) Rq ={(x, y) ∈ E2 ; x ∈

[xq − L

2 , xq +L2

]}

(ii) int(Rq)é uma região fundamental de Γ

(iii) Π[int(Rq)]

é um aberto denso de C

(iv) Π(Rq)= C.

(v) A restriçãoΠ|int(Rq)

: int(Rq)→ Π

[int(Rq)]

é uma isometria.

Corolário 5.24 Se q =( L2 , 0)∈ E2, então

R = Rq ={p ∈ E2 ; d (p, q) ≤ d (p, ϕ (q)) , ∀ϕ ∈ Γ − {Id}

}.

Em particular

(i) int (R) é uma região fundamental de Γ

(ii) Π [int (R)] é um aberto denso de C

(iii) Π(R)= C.

(iv) A restriçãoΠ|int(R) : int (R) → Π [int (R)]

é uma isometria.

Pelo demonstrado acima, temos o seguinte corolário:

Corolário 5.25 Toda superfície cilíndrica euclidiana tem E2 como recobrimento métrico.

Observação 5.26 Chamamos atenção para o fato de que toda a construção aqui feita poderiaser facilmente generalizada para o caso em que Γ é o subgrupo de Isom

(E2)gerado por uma

translação arbitráriaTv : p ∈ E2 → p+ v ∈ E2,

onde v ∈ E2. Mais precisamente, dado v ∈ E2, a superfície cilíndrica obtida a partir de Tv seriaisométrica á superfície cilíndrica obtida a partir de TL, onde L = ‖v‖.

38 CAPÍTULO 5. GEOMETRIAS LOCALMENTE EUCLIDIANAS

5.3 Toros Euclidianos

Fixados escalares L, L′ > 0, considere a região

R = [0, L]×[0, L′

]⊂ E2

e o seu quociente C = R/ ∼ pela relação de equivalência:

(x, y) ∼ (x′, y′) ⇐⇒ (x, y) = (x′, y′) ou (x, y) = (x′ ± L, y′)

ou (x, y) = (x′, y′ ± L′)

para quaisquer (x, y) , (x′, y′) ∈ R.

A partir deste ponto poderíamos seguir a construção feita na seção (5.1): definiruma noção de curvas admissíveis, uma noção de comprimento de curva, uma métricae, por fim, verificar que o espaçométrico obtido é uma geometria localmente euclidianade dimensão 2. Ao invés disso, vamos recomeçar a construção nos moldes da seção(5.2).

Considere o subgrupo Γ de Isom(E2) gerado pelas translações

TL : (x, y) ∈ E2 → (x+ L, y) ∈ E2

eTL′ : (x, y) ∈ E2 7−→

(x, y+ L′

)∈ E2

Mais precisamente, ϕ ∈ Γ se e somente se existem n, n′ ∈ Z tais que

ϕ : (x, y) ∈ E2 7−→(x+ nL, y+ n′L′

)∈ E2.

Seja C o quociente de E2 pela relação de equivalência

(x, y) ∼ (x′, y′) ⇐⇒ ∃ ϕ ∈ Γ tal que ϕ (x, y) = (x′, y′)

⇐⇒ ∃ n, n′ ∈ Z tal que (x+ nL, y+ n′L′) = (x′, y′)

para quaisquer (x, y) , (x′, y′) ∈ E2. Denote por Π a projeção canônica de E2 sobre C.

Para todo ponto p ∈ E2, a classe de p com relação à relação de equivalência ∼ é asua órbita

Γp ={p+

(nL, n′L′

); n, n′ ∈ Z

}

e, portanto, Γp não possui pontos de acumulação em E2.

Proposição 5.27 A aplicação

d : (Γp, Γq) ∈ C× C 7−→ min{dE2

(p, q′

); q′ ∈ Γq

}∈ R+

está bem definida e é uma métrica sobre C. Além disso, o par (C, d) é uma geometria localmenteeuclidiana de dimensão 2.

5.3. TOROS EUCLIDIANOS 39

Exercício 5.28 Dados raios R > r > 0, denote por TR,r o toro obtido quando giramos o círculo

C ={(0, y, z) ∈ R3 ; (y− R)2 + z2 = r2

}

em torno do eixo−→OZ. Demonstre que TR,r, munido da métrica induzida pelo R3, é difeomorfo

(mas não isométrico!) à (C, d). Além disso, utilize a noção de grupo fundamental para concluirque toros euclidianos não são homeomorfas ao plano euclidiano. Determine laços que sejamgeradores do grupo fundamental de (C, d).

Definição 5.29 A geometria localmente euclidiana (C, d) de dimensão 2 acima definida édenominada toro euclidiano.

Assim como ocorre com as superfícies cilíndricas, os toros euclidianos sãolocalmente indistinguíveis do plano euclidiano, porém globalmente bastantediferentes. Vamos agora discutir (de forma mais objetiva que na seção anterior!)algumas dessas diferenças.

Inicialmente, observe que a aplicação Π é um recobrimento métrico (e emparticular, uma isometria local) pois é sobrejetiva e, para todo raio

r ∈(0,min

{L2,L′

2

}],

a restriçãoΠ|B(p,r) : BE2 (p, r) → BC (Γp, r)

está bem definida e é uma isometria. Logo, as geodésicas de C são as imagens por Π

das retas de E2.

Os toros euclidianos são espaços métricos homogêneos, pois toda translação de E2

induz uma isometria em C.

Exercício 5.30 Determine todas as isometrias de um toro euclidiano.

A primeira grande diferença entre C e o plano euclidiano está no fato de que C élimitado. Mais precisamente, a distância entre quaisquer dois pontos de C é inferiorao comprimento da diagonal de R. Além disso, quaisquer dois pontos de C podem serligados por um número infinito de geodésias, sendo apenas uma delas minimizante.

Exercício 5.31 Um toro euclidiano pode ser isométrico a uma superfície cilíndrica euclidiana?Justifique sua resposta.

Diferente do que ocorre com as supérfícies cilíndricas euclidianas, todo ponto deum toro euclidiano possui infinitas direções associadas à geodésicas fechadas (decomprimentos distintos e tão grandes quanto desejado, certo?) e infinitas direçõesassociadas à geodésicas ilimitadas. De fato, além das retas horizontais e verticais, todareta com coeficiente angular q L′

L , onde q ∈ Q, dá origem a uma geodésica fechada emC. As demais retas dão origem a geodésicas ilimitadas.

40 CAPÍTULO 5. GEOMETRIAS LOCALMENTE EUCLIDIANAS

Exercício 5.32 Descreva a "visão" de um "habitante" do toro euclidiano.

Exercício 5.33 Considere um ponto p de um toro euclidiano C. Verifique que C possuigeodésicas fechadas passando por p de comprimento arbitrariamente grande. Verifique aindaque, dentre as geodésicas fechadas de C passando por p, existe uma (única?) de menorcomprimento.

Exercício 5.34Geodésicas fechas de um toro euclidiano podem se interceptar transversalmente? Justifiquesua resposta!

Exercício 5.35 Demonstre que geodésicas ilimitadas do toro euclidiano não se auto-interceptam. Além disso, verifique que a imagem destas geodésicas são densas no toroeuclidiano.

A região R, ou mais geralmente, qualquer retângulo da forma

Sq =[xq − L

2 , xq +L2

]×[yq − L′

2 , yq +L′2

]

={p ∈ E2 ; d (p, q) ≤ d (p, ϕ (q)) , ∀ϕ ∈ Γ − {Id}

}

onde q =(xq, yq

)é um ponto arbitrário de E2, é uma região fundamental de Γ. Em

particular, temos que

(i) Π[int(Sq)]

é um aberto denso de C

(ii) Π(Sq)= C.

(iii) A restriçãoΠ|int(Sq)

: int(Sq)→ Π

[int(Sq)]

é uma isometria.

Exercício 5.36 Verifique que em um toro euclidiano existem

(i) retas paralelas, isto é, retas que não se encontram em nenhum ponto.

(ii) retas concorrentes em um único ponto.

(iii) retas concorrentes em dois únicos pontos.

(iv) retas distintas e concorrentes em um número infinito de pontos.

Existem outras opções?

Exercício 5.37 Verifique se a soma dos ângulos internos de um triângulo em um toroeuclidiano é π.

Exercício 5.38 Quaisquer dois triângulos em um toro euclidiano, que possuam lados de mesmocomprimento, são congruentes? Justifique sua resposta.

5.4. SUPERFÍCIES CILÍNDRICAS EUCLIDIANASNÃO ORIENTÁVEIS 41

Exercício 5.39 Verifique se o axioma das paralelas é válido para toros euclidianos.

Exercício 5.40 Existem similaridades em um toro euclidiano? Em caso afirmativo, dêexemplos.

Observação 5.41 Chamamos atenção para o fato de que toda a construção aqui feita poderiaser facilmente generalizada para o caso em que Γ é o subgrupo de Isom

(E2)gerado por duas

translações

Tu : p ∈ E2 7−→ p+ u ∈ E2 e Tv : p ∈ E2 7−→ p+ v ∈ E2

onde u, v ∈ E2 são linearmente idependentes. Diferente do que ocorre com as superfíciescilíndricas euclidianas, não é tão simples determinar quando um toro euclidiano assim definidoé isométrico a um toro obtido pela construção precedente.

5.4 Superfícies Cilíndricas Euclidianas não orientáveis

Dado L > 0, considere o subgrupo Γ de Isom(E2)gerado pela "glide reflection"

GL : (x, y) ∈ E2 7−→ (x+ L,−y) ∈ E2

Mais precisamente, ϕ ∈ Γ se e somente se existem n, n′ ∈ Z tais que

ϕ : (x, y) ∈ E2 7−→(x+ nL, (−1)n y

)∈ E2.

Seja C o quociente de E2 pela relação de equivalência

p ∼ q ⇐⇒ ∃ϕ ∈ Γ tal que ϕ (p) = q

para quaisquer p, q ∈ E2. Note que as classes de equivalência da relação ∼ são asórbitas

Γp = {ϕ (p) ; ϕ ∈ Γ} , p ∈ E2.

Como nos casos anteriores, as órbitas Γp não possuem pontos de acumulação em E2, aaplicação

d : (Γp, Γq) ∈ C× C 7−→ min{dE2

(p, q′

); q′ ∈ Γq

}∈ R+

é uma métrica sobre C e o par (C, d) é uma geometria localmente euclidiana dedimensão 2.

Definição 5.42 A geometria localmente euclidiana (C, d) de dimensão 2 acima definida édenominada superfície cilíndrica euclidiana não orientável.

Assim como nos casos anteriores, as superfícies cilíndricas não orientáveis sãoglobalmente bastante diferentes do plano euclidiano. Deixamos para o leitor a reflexãosobre quais são estas diferenças. Vamos nos limitar a discutir a diferença fundamentalque diferencia esta geometria das anteriores. Mais precisamente, vamos discutirporque esta geometria é dita não orientável.

42 CAPÍTULO 5. GEOMETRIAS LOCALMENTE EUCLIDIANAS

Definição 5.43 Uma geometria localmente euclidiana é dita orientável quando o grupoΓ utilizado em sua construção possui somente isometrias que preservam orientação. Casocontrário, ela é dita não orientável.

A melhor forma de entender este conceito é analisando a "percepção do mundo"de um habitante de uma superfície cilíndrica euclidiana não orientável. Inicialmente,observe que a geometria C pode ser obtida identificando as retas {0} ×R e {L} ×R daregião R = [0, L]×R pela "glide reflection"GL. Considere o caminho

γ : t ∈ [0, L] 7−→ (t, 0) ∈ R

ligando os pontos O = (0, 0) ∈ {0} ×R e P = (L, 0) ∈ {L} ×R. Note que γ induz umcaminho fechado em C que continuaremos a denotar por γ.

Imagine um habitante de C, parado sobre o ponto O, com um relógio no braçoesquerdo e olhando na direção do caminho γ. Este habitante veria a sua frente umafileira de cópias de si mesmo a distância L umas das outras. A primeira destascópias estaria com o relógio no braço direito, a segunda no braço esquerdo, a terceiranovamente no direito e assim por diante. Se ele andasse sobre o caminho γ, retornariaao ponto inicial com o relógio no braço direito e não perceberia nenhuma diferença!!!Ou seja, neste mundo a noção de direita e esquerda (ou seja, uma noção de orientação),tão bem comprendida por nós, não faria o menor sentido!!!

Caso o leitor não esteja convencido da argumentação precedente, sugerimos aconstrução de um modelo concreto de uma parte de C. Um modelo para a região[0, L]× [−1, 1] ⊂ R, com os segmentos {0} × [−1, 1] e {L} × [−1, 1] identificados viaGL (esta superfície é denominada Faixa de Möbius) pode ser facilmente construídocom uma faixa de papel e cola. Mãos à obra!!!

Terminamos a seção chamando atenção para um fato importante: diferente doque acontece com as superfícies cilíndricas euclidianas orientáveis, a curva γ definidaacima não separa C em duas componentes conexas por caminhos (corte o seu modelo!)

5.5 Garrafas de Klein Euclidianas

Fixados escalares L, L′ > 0, considere o subgrupo Γ de Isom(E2)gerado pelas

"glide reflections"GL : (x, y) ∈ E2 7−→ (x+ L,−y) ∈ E2

eGL′ : (x, y) ∈ E2 7−→

(−x, y+ L′

)∈ E2

Seja C o quociente de E2 pela relação de equivalência

p ∼ q ⇐⇒ ∃ϕ ∈ Γ tal que ϕ (p) = q

para quaisquer p, q ∈ E2. Note que as classes de equivalência da relação ∼ são asórbitas

Γp = {ϕ (p) ; ϕ ∈ Γ} , p ∈ E2.

5.5. GARRAFAS DE KLEIN EUCLIDIANAS 43

Como nos casos anteriores, as órbitas Γp não possuem pontos de acumulação em E2, aaplicação

d : (Γp, Γq) ∈ C× C 7−→ min{dE2

(p, q′

); q′ ∈ Γq

}∈ R+

é uma métrica sobre C e o par (C, d) é uma geometria localmente euclidiana dedimensão 2.

Definição 5.44 A geometria localmente euclidiana (C, d), NÃOORIENTÁVEL, de dimensão2 acima definida é denominada garrafa de Klein euclidiana.

Exercício 5.45 Faça um estudo geométrico da garrafa de Klein euclidiana comparável ao quefoi feito nas seções precedentes.ATENÇÃO: Não existe uma superfície em E3 que seja homeomorfa a garrafa de Kleineuclidiana!!!

44 CAPÍTULO 5. GEOMETRIAS LOCALMENTE EUCLIDIANAS

Capítulo 6

Um exemplo de geometria localmentenão euclidiana

Dado r > 0, denote por Sr,n a esfera, em Rn+1, de centro 0Rn+1 e raio r. Isto é,

Sr,n ={u ∈ Rn+1 ; ‖u‖ = r

}.

Denote por d a métrica induzida em Sr,n pela métrica de Rn+1, e por d a métricaintrínseca em Sr,n induzida por d (veja exemplo (4.4)).

Vamos nos concentrar nas esferas Sr,2 ⊂ E3, onde r > 0, que denotaremossimplesmente por Sr:

Não é difícil verificar que(Sr, d

)é uma geometria limitada. Mais precisamente,

quaisquer dois pontos de Sr distam um do outro no máximo πr. Para que possamoscompreender melhor esta geometria, precisamos saber quem são suas geodésicas. Apróxima proposição responde esta pergunta:

Proposição 6.1 As geodésicas de Sr tem imagem contida em seus círculos máximos, isto é, nainterseção de Sr com planos passando pela origem de R3. Reciprocamente, todo arco de círculomáximo é imagem de uma geodésica.

Corolário 6.2 Para quaisquer pontos p 6= q ∈ Sr, d (p, q) é o comprimento do menor arcodelimitado por p e q, sobre um círculo máximo de Sr passando por p e q.

Observação 6.3 Observe que todas as geodésicas de Sr são limitadas. Note que isso não decorreimediatamente do fato de que a esfera é um espaço métrico limitado. Lembre-se que o toroeuclidiano também é limitado, mas possui geodésicas ilimitadas.

Exercício 6.4 Verifique que(Sr, d

)é um espaço métrico intrínseco, localmente compacto e

geodesicamente completo.

A esfera(Sr, d

)é um espaço métrico homogêneo e, assim como ocorre no

plano euclidiano, seus pontos não possuem direções distinguidas. Verifica-se issoobservando que as transformações ortogonais de R3 são isometrias. A visão de um"habitante" desta geometria é bastante curiosa. Ele veria uma fileira de cópias de simesmo (a distância 2πr uma das outras) qualquer que seja a direção em que olhe.

45

46CAPÍTULO6. UMEXEMPLODEGEOMETRIALOCALMENTENÃOEUCLIDIANA

Exercício 6.5 Demonstre que:

(i) as transformações ortogonais são as únicas isometrias da esfera Sr.

(ii) as reflexões geram o grupo de isometrias de Sr. Mais precisamente, verifique que todaisometria pode ser escrita como composição de no máximo 3 reflexões.

(iii) as únicas isometrias de Sr que preservam orientação são as rotações. Verifique que asrotações formam um subgrupo de Isom (Sr).

(Iv) todas as isometrias de Sr possuem pontos fixos. Isto é, não existe em Sr um análogo paraas translações do plano euclidiano.

Exercício 6.6 Decreva como seria a visão de um "habitante" de(Sr, d

)caso um "objeto"

fosse colocado em um ponto diferente do que ele se encontra.

A primeira conclusão importante que se obtém a partir da proposição acima é que

em(Sr, d

)não existem retas paralelas! Naturalmente esta é uma propriedade global

e não impede que(Sr, d

)seja uma geometria localmente euclidiana. Uma forma

simples de verificar que a geometria da esfera não é localmente euclidiana é mediro comprimento de círculos de raio α ∈

(0, πr

2

). Utilizando trigonometria elementar,

verificamos que o comprimento destes círculos é 2πr sen(

αr

), valor diferente de 2πr,

que é o que esperarímos caso a esfera fosse localmentente euclidiana.

Embora a definição de ângulo vista na seção (4.2) seja bastante técnica e geral, nageometria ele pode ser reapresentada de forma muito geométrica e clara. Os ângulos(os 4!) definidos por duas geodésicas que se encontram em um ponto coincidem comos ângulos diedrais determinados pelos planos que as contém. Uma outra forma deperceber as diferenças existentes entre a esfera e o plano euclidiano é analisar a somados ângulos de um triângulo arbitrário. Considere o triângulo formado pelo ponto(0, 0, r) e por mais dois pontos contidos na interseção de Sr com o plano XY (veja figuraabaixo). É fácil verificar que este triângulo possui dois ângulos retos e que, portanto asoma dos ângulos deste triângulo excede π.

De uma forma geral, temos o seguinte resultado:

47

Proposição 6.7 Considere um triângulo ∆ não degenerado (isto é, cuja área é não nula) em Sre denote por Σ a soma de seus ângulos. Então

Area (∆) = r2 (Σ − π) .

Em particular, temos que Σ > π.

Observação 6.8 A área do triângulo a que nos referimos no teorema acima é a apresentada noscursos de Cálculo Diferencial e Integral.

Exercício 6.9 Demonstre que quaisquer dois triângulos em Sr, que possuam lados de mesmocomprimento, são congruentes.

Exercício 6.10 Determine quando duas esferas Sr e Sr′ são isométricas ou localmenteisométricas.

48CAPÍTULO6. UMEXEMPLODEGEOMETRIALOCALMENTENÃOEUCLIDIANA

Capítulo 7

Introdução à Geometria Diferencial

7.1 Abertos Riemannianos de Rn

Seja U um aberto de En conexo por caminhos. Como mencinado no exemplo (4.3),a métrica intrínseca de U induzida pela métrica de En verifica:

d(x, x′

)= min {L (γ) ; γ é uma curva de classe C∞, em U, ligando x à x′}

para quaisquer x, x′ ∈ U. Além disso (veja exercício (1.75)), o comprimento de umacurva γ : [a, b] → U de classe C1 pode ser expresso por

L (γ) =∫ b

a

√〈γ′ (t) ,γ′ (t)〉 dt .

Analisando o parágrafo precedente, vemos que uma forma simples de construirnovas geometrias sobre U seria alterando o produto escalar de Rn. Com um produtoescalar diferente os comprimentos das curvas seriam outros, a métrica induzidapoderia não ser mais a mesma, as geodésica também poderiam ser alteradas, osângulos idem etc. Uma idéia mais ousada seria colocar um produto interno diferenteem cada ponto de U. Esta idéia será desenlvolvida nesta seção.

Definição 7.1 Seja U um aberto deRn. Umamétrica Riemanniana sobre U é a uma famíliag de produtos internos gp de Rn, onde p ∈ U, verificando a seguinte propriedade: paraquaisquer campos de vetores suaves X e Y emU, isto é, para quaisquer funções X,Y : U → Rn

de classe C∞, tem-se que a função

p ∈ U 7−→ gp ( X (p) ,Y (p) ) ∈ R

é de classe C∞. Um aberto Riemanniano é um par (U, g), onde U é um aberto de Rn e gé uma métrica riemanniana sobre U. A norma de um vetor v ∈ Rn em um ponto p ∈ U édefinida por

‖v‖gp =√

gp (v, v)

Fixada uma métrica g sobre U, definimos o comprimento de uma curva γ : [a, b] → Ude classe C1 (com relação a métrica g) por

Lg (γ) =∫ b

a

∥∥γ′ (t)∥∥gγ(t)

dt =∫ b

a

√gγ(t) (γ

′ (t) ,γ′ (t)) dt .

Quando não houver risco de confusão, omitiremos os subíndices das notações precedentes.

49

50 CAPÍTULO 7. INTRODUÇÃOÀ GEOMETRIA DIFERENCIAL

Proposição 7.2 Seja (U, g) um aberto de Riemanniano. A função dg : U ×U → R definidapor

dg(x, x′

)= inf {L (γ) ; γ é uma curva suave, em U, ligando x à x′}

é uma métrica intrínseca sobre U. Além disso,(U, dg

)é um espaço métrico (intrínseco)

localmente compacto.

Observação 7.3 Considere um aberto U de Rn. A métrica Riemanniana euclidiana sobreU é por definição a métrica g tal que gp é o produto interno canônico de Rn, para todo pontop ∈ U. Chamamos atenção para o fato de que mesmo sendo U um aberto, a métrica intrínsecadg induzida por g pode ser diferente da métrica induzida pela metrica canônica de Rn.

Exemplo 7.4 O espaço hiperbólico Hn é o aberto Riemanniano obtido munindo-se o aberto

H+ = {(x1, . . . , xn) ∈ Rn ; xn > 0} ⊂ Rn

da métrica Riemanniana

g(x1,...,xn) (u, v) =

n∑i=1

xui xvi

x2n,

para todo (x1, . . . , xn) ∈ H+ e para quaisquer vetores u =(xu1 , . . . , x

un), v =

(xv1, . . . , x

vn)∈

Rn.

Exercício 7.5 Considere dois abertos Riemannianos (U, g) e (V, h) e um difeomorfismo suavef : U → V. Demonstre que f é uma isometria se e somente se

gp (u, v) = g f (p)(d fp (u) , d fp (v)

)

para todo ponto p ∈ U e para quaisquer vetores u, v ∈ Rn.

Exercício 7.6 Demonstre que os abertos de Hn e os abertos de H+ munidos da métricainduzida por En são os mesmos.

Determinar as geodésicas de um aberto Riemanniano (U, g) não é tarefa simples.Pode-se verificar que uma curva

γ : t ∈ [a, b] 7−→ (γ1 (t) , . . . ,γn (t)) ∈ U

é uma geodésica se e somente se γ é suave e as suas funções coordenadas verificamum sistema de equações diferencias da forma

γ′′1 (t) +

n∑

i,j=1Γ1ij ◦ γ (t) .γ′

i (t) .γ′j (t) = 0

...

γ′′n (t) +

n∑

i,j=1Γnij ◦ γ (t) .γ′

i (t) .γ′j (t) = 0

onde Γkij : U → R são funções suaves definidas a partir da métrica g.

7.1. ABERTOS RIEMANNIANOS DE RN 51

Foge do objetivo deste texto determinar as geodésicas de um aberto Riemanniano(U, g) arbitrário. Estamos interessados apenas no estudo de alguns casos particulares(como por exemplo o do plano hiperbólico definido acima) onde esta tarefa seráelementar. Nos limitaremos a apresentar o seguinte resultado que garante a existênciade geodésicas:

Proposição 7.7 Considere um aberto Riemanniano (U, g) deRn, um ponto p ∈ U e um vetorv ∈ Rn. Então existe uma única geodésica γ : (a, b) → U de (U, g) verificando a < 0 oua = −∞, b > 0 ou b = +∞, γ (0) = p, γ′ (0) = v e

limt→a

d (γ (t) , ∂U) = limt→b

d (γ (t) , ∂U) = 0.

Terminamos a seção apresentando as noções de ângulo entre dois vetores e de áreaem um aberto Riemanniano.

Definição 7.8 Considere um aberto Riemanniano (U, g) de Rn e um ponto p ∈ U. Dadosdois vetores u, v ∈ Rn, o ângulo entre u e v em p é definido por

∡p (u, v) = arccos

(gp (u, v)

‖u‖gp ‖v‖gp

).

Observação 7.9 Considere um aberto Riemanniano (U, g) de Rn, um ponto p ∈ U e duasgeodésicas α,β : (−ε, ε) → U de (U, g) verificando α (0) = β (0) = p. Chamamos a atençãoao fato de o ângulo entre α e β em p, como definido na seção (4.2) coincide com o ângulo, em p,entre os vetores α′ (0) e β′ (0) segundo a definição precedente.

Exercício 7.10 Demonstre que o plano hiperbólico H2 e o plano euclidiano E2 são conformes.Mais precisamente, demonstre que o ângulo entre dois vetores em H2 e em E2 coincidem.

Definição 7.11 Considere um aberto Riemanniano (U, g) de Rn e um subconjunto K ⊂ U.Definimos o volume de K (ou a área de K, quando n = 2) com relação a métrica g por

Volg (K) =∫

K

√√√√√√det

g11 (p) · · · g1n (p)... . . . ...

gn1 (p) · · · gnn (p)

dt,

onde gij (p) = gp(ei, ej

)para quaisquer i, j ∈ {1 . . . n}, quando a integral acima estiver bem

definida e for finita. Quando este for o caso, diremos que K é um subconjunto mensuràvel deU com relação a métrica g.

Exercício 7.12 Considere um aberto Riemanniano (U, g) deRn. Verifique que se g é a métricaRiemanniana euclidiana, então, o volume definido acima coincide com o volume definido noscursos de Cálculo Diferencial e Integral.

Exercício 7.13 Demonstre que a noção de volume é invariante por isometrias. Maisprecisamente, demonstre que se ϕ : (U, g) → (V, h) é uma isometria entre abertosRiemannianos e K ⊂ U é um subconjunto mensurável de U com relação a g, então ϕ (K)é um subconjunto mensurável de V com relação a h e

Volg (K) = Volh (ϕ (K)) .

52 CAPÍTULO 7. INTRODUÇÃOÀ GEOMETRIA DIFERENCIAL

7.2 O Plano Hiperbólico

Apresentaremos nesta seção algumas propriedades do plano hiperbólico H2.Veremos que ele não é uma geometria localmente euclidiana, porém, do ponto de vistaglobal, se parece muito mais com o plano euclidiano do que as geometrias esféricas ouas geometrias localmente euclidianas estudadas no início do texto.

Chamamos atenção para o fato de que a grande maioria dos resultado desta seçãopossuem generalizações naturais para os espaço hiperbólicos de dimensão maior que2. Nos restringiremos ao plano para simplificar a exposição.

Proposição 7.14 As imagens de geodésicas de H2 estão contidas nas retas verticais e noscírculo centrados no eixo OX. Por outro lado, todo segmento de reta vertical ou arco decircunferência centrado no eixo OX é imagem de uma geodésicaminimizante.

Decorre da proposição anterior que, assim como ocorre com o plano euclidiano,não existem geodésicas fechadas. Todas as geodésicas são minimizantes e quaisquerdois pontos distintos deH2 podem ser ligados por uma e somente uma geodésica. Umcálculo simples constata que todas as geodésicas tem comprimento infinito.

Exercício 7.15 Dados três pontos distintos p, q, r ∈ H2, demonstre que

d (p, q) = d (p, r) + d (r, q)

se e somente se r pertence ao segmento de geodésica ligando p à q.

A próxima proposição apresenta uma diferença fundamental entre os planoshiperbólico e euclidiano:

Proposição 7.16 Seja l uma geodésica de H2 e p um ponto de H2 − l. Então existem infinitasgeodésicas de H2 que passam por p e são paralelas à l.

Fazendo uso da identificação usual entre C e R2, o teorema a seguir classifica todasas isometrias de H2:

Teorema 7.17 Seja f : H2 → H2 uma isometria de H2.

(i) Se f preserva orientação (isto é, se f ∈ Isom+(H2)), então existem a, b, c, d ∈ R tais

que ad− bc = 1 e

f (z) =az+ bcz+ d

, ∀z ∈ H2.

(ii) Se f inverte orientação (isto é, se f ∈ Isom− (H2)), então existem a, b, c, d ∈ R tais que

ad− bc = 1 e

f (z) =−az+ b−cz+ d

, ∀z ∈ H2.

Corolário 7.18 Todas as isometrias de H2 são funções de classe C∞.

7.2. O PLANO HIPERBÓLICO 53

Exercício 7.19 Demonstre que toda isometria do plano hiperbólico fica completamentedeterminada pela imagem de três pontos não colineares (isto é, não contidos na mesmageodésica).

Exercício 7.20 Demonstre que quaisquer dois triângulos emH2, que possuam lados de mesmocomprimento, são congruentes.

Exercício 7.21 Existem similaridades em H2? Se sim, classifique-as.

O teorema precedente é suficiente para concluir que H2 é homogêneo e que seuspontos não possuem direções distinguidas.

Definição 7.22 Diremos que duas isometrias f , g ∈ Isom(H2)são conjugadas (ou, mais

precisamente, positivamente conjugadas), quando existir um isometria ϕ ∈ Isom+(H2)

tal que f = ϕ−1 ◦ g ◦ ϕ.

Exercício 7.23 Verifique que a relação de conjugação é uma relação de equivalência emIsom

(H2).

Proposição 7.24 A relação de conjugação decompõe o conjunto Isom+(H2) em três classes:

(i) isometrias conjugadas à ϕ (z) = λz (logo sem pontos fixos em H2!)

(ii) isometria conjugadas à ϕ (z) = z+ 1 (logo sem pontos fixos em H2!)

(iii) isometrias com um ponto fixo em H2

Definição 7.25 As isometrias dos tipos (1), (2) e (3) apresentadas na proposição anteriorserão denominadas, respectivamente, isometrias hiperbólicas, parabólicas e elípticas.

Exercício 7.26 Estabeleça uma relação entre a classificação das isometrias positivas

hiperbólicas apresentada na proposição anterior e o traço da matriz[a bc d

].

Exercício 7.27 Apresente um exemplo de isometria elíptica.

É de fácil verificação que a aplicação

RY : (x, y) ∈ H2 7−→ (−x, y) ∈ H2

é uma isometria de H2 que inverte orientação.

Definição 7.28 Os elementos de Isom(H2)conjugados à RY serão denominados reflexões de

H2

Exercício 7.29 Verifique que toda reflexão de H2 inverte orientação.

54 CAPÍTULO 7. INTRODUÇÃOÀ GEOMETRIA DIFERENCIAL

Observe que as isometrias hiperbólicas são as únicas isometrias positivas de H2

que deixam uma (única) geodésica invariante (não fixa!). Por outro lado, toda reflexãodeixa uma única geodésica fixa. Estas geodésicas distinguidas serão denominadaseixos destas isometrias.

Definição 7.30 As isometrias de H2 obtidas compondo-se uma isometria hiperbólica e umareflexão de mesmo eixo são denominadas "glide reflections".

Observação 7.31 Por tudo que foi dito até aqui é imediato que as "glide reflections"nãopreservam orientação. Além disso, as únicas "glide reflections"que possuem pontos fixos sãoas reflexões.

Proposição 7.32 Toda isometria de H2 que não preserva orientação é uma "glide reflection".

Corolário 7.33 O conjunto Isom(H2)se divide em quatro tipos de isometrias: as elípticas,

as parabólicas, as hiperbólicas e as "glide reflections".

Corolário 7.34 Toda isometria de H2 pode ser escrita como composição de até três reflexões.

Exercício 7.35 Determine sobre que condições duas isometrias de H2 comutam.

A próxima proposição nos permite concluir que H2 não é localmente euclidiano(Porque?).

Proposição 7.36 Seja ∆ um triângulo em H2 arbitrário. Se Σ é a soma dos seus ângulosinternos, então

Area (∆) = π − Σ.

Em particular, a soma dos ângulos internos de um triângulo no plano hiperbólico é sempremenor do que π.

Exercício 7.37 Seja D o disco unitário aberto de R2, isto é,

D ={(x, y) ∈ R2 ; x2 + y2 < 1

}.

Considere a métrica Riemanniana

g(x,y) (u, v) = 4xuxv + yuyv

[1− (x2 + y2)]2

onde (x, y) ∈ D e u = (xu, yu) , v = (xv, yv) ∈ R2. Demonstre que o aberto Riemanniano(D, g), denominado Disco de Poincaré, é isométrico a H2. Determine as geodésicas e asisometrias deste aberto Riemanniano.

Exercício 7.38 Determine as geodésicas, os planos (generalize a noção de plano de R3) e asisometrias do espaço hiperbólicoH3.

7.3. VARIEDADES RIEMANNIANAS 55

7.3 Variedades Riemannianas

A noção de superfícies regulares em R3 é muito importante e também muitofrequente na matemática. Nestas notas já fizemos uso de esferas (quando definimosas geometrias esféricas), cilíndros (veja exercício (5.7)) e toros (veja exercício (5.28)).Veremos mais a frente que todos estes são exemplos de superfícies regulares. Alémde serem importantes por si só, as superfícies regulares nos fornecerão uma fonteinfindável de abertos Riemannianos.

Considere um aberto U de Em. Lembramos que uma aplicação diferenciávelϕ : U ⊂ Em → En é dita uma imersão quando a diferencial d f (x) : Em → En éinjetora, para todo x ∈ U. Dito de outra forma, f é uma imersão quando os vetores

∂ f∂x1

(x) , . . . ,∂ f

∂xm(x)

forem linearmente independentes para todo x ∈ U. Note que isso implica que m < n!

Definição 7.39 Uma parametrização regular de dimensão m ∈ N , ou simplesmente umam-parametrização regular, em En é uma aplicação suave ϕ : U ⊂ Em → En, onde U é umaberto conexo de Em, verificando as seguintes propriedades:

(i) ϕ é uma imersão

(ii) ϕ é um homeomorfismo sobre Sϕ, o espaço métrico intrínseco obtido munindo-se aimagem de ϕ da métrica intrínseca induzida por En.

Diremos provisoriamente que um subconjunto S de En é uma subvariedaderegular parametrizada de dimensão m ∈ N, ou simplesmente uma m-subvariedaderegular parametrizada (ou ainda superfície regular parametrizada quando m = 2),se existe uma m-parametrização regular ϕ em En cuja imagem é S. Por simplicidadeescreveremos muitas vezes "uma subvariedade parametrizada ϕ : U ⊂ Em → En".

Exemplo 7.40 Considere um aberto conexo U de Em e uma função suave f : U → En. Aaplicação

ϕ : x ∈ U 7−→ (x, f (x)) ∈ Em × En

é uma m-subvariedade parametrizada de Em+1 cuja imagem é o gráfico de f . Em particular, aaplicação

ϕ : (x, y) ∈{(x, y) ∈ E2 ; x2 + y2 < 1

}7−→

(x, y,

√1− x2 − y2

)∈ E3

é uma superfície parametrizada de E3, cuja imagem é a metade superior da esfera em E3, de raio1 e centro na origem.

Considere uma subvariedade parametrizada ϕ : U ⊂ Em → En. Lembramos que,para quaisquer dois pontos p, q ∈ Sϕ, a distância entre p e q é dada por

d (p, q) = inf{L (γ) ; γ : [a, b] → Sϕ é uma curva suave ligando p a q

}(1)

56 CAPÍTULO 7. INTRODUÇÃOÀ GEOMETRIA DIFERENCIAL

onde

L (γ) =∫ b

a

∥∥γ′ (t)∥∥ dt .

A proposição abaixo nos diz como utilizar uma parametrização para definirmétricas Riemannianas em abertos de Rm:

Proposição 7.41 Considere uma subvariedade regular parametrizada ϕ : U ⊂ Em → En.Para todo ponto x0 ∈ U, defina

(gϕ

)x0(u, v) =

⟨∂ϕ

∂u(x0) ,

∂ϕ

∂v(x0)

⟩, ∀u, v ∈ Em.

Então

(i) gϕ é uma métrica Riemanniana (denominada métrica Riemanniana induzida por ϕ)sobre U,

(ii)(U, gϕ

)é isométrico a Sϕ.

Exercício 7.42 Considere duas parametrizações regulares ϕ : U ⊂ Em → En e ψ : V ⊂Em → En verificando Im ϕ = Imψ. Demonstre que a aplicação

ψ−1 ◦ ϕ :(U, gϕ

)→(V, gψ

)

é uma isometria (e, em particular, que é um difeomorfismo).

Exercício 7.43 Considere duas subvariedades regulares parametrizadas ϕ : U ⊂ Em → En eψ : V ⊂ Em′ → En′ . Demonstre que

ϕ × ψ : (x, y) ∈ U ×V ⊂ Em × Em′ 7−→ (ϕ (x) ,ψ (y)) ∈ En × En′

é uma subvariedade parametrizada.

Definição 7.44 Considere uma subvariedade regular parametrizada ϕ : U ⊂ Em → En e umsubconjunto K ⊂ Sϕ. Definimos o volume de K (ou a área de K, quando m = 2) por

Vol (K) = Volgϕ

(ϕ−1 (K)

),

quando o volume a direita na igualdade estiver bem definido. Quando este for o caso, diremosque K é um subconjunto mensuràvel de Sϕ.

Exercício 7.45 Verifique que a definição de volume apresentada acima coincide com a definiçãovista nos cursos de Cálculo Diferencial).

Embora a noção de subvariedade parametrizada seja extremamente útil e poderosa,uma grande parte dos objetos com os quais desejaríamos trabalhar não admitem umatal estrutura. A esfera e o toro são exemplo óbvios desta afirmação pois, sendocompactos, não podem ser homeomorfos a abertos do espaço euclidiano. A noçãode subvariedade regular que apresentaremos agora é formulada de forma a resolveresta limitação e generaliza o conceito de subvariedade parametrizada.

7.3. VARIEDADES RIEMANNIANAS 57

Definição 7.46 Seja S um subconjunto de En munido da métrica intrínseca induzida pelamétrica de En. Diremos que S é uma subvariedade regular de dimensão m de En,ou simplesmente uma m-subvariedade regular (ou ainda uma superfície regular quandom = 2) de En se, para todo ponto p ∈ S, existe uma m-parametrização regular ϕ em En cujaimagem é um aberto de S contendo p.

Exemplo 7.47 A esfera

S ={(x, y, z) ∈ E3 ; x2 + y2 + z2 = 1

}

é uma superfície regular de E3 pois as aplicações

ϕ1 : (x, y) ∈ D 7−→(x, y,

√1− x2 − y2

)∈ E3

ϕ2 : (x, y) ∈ D 7−→(x, y,−

√1− x2 − y2

)∈ E3

ϕ3 : (x, y) ∈ D 7−→(x,√

1− x2 − y2, y)∈ E3

ϕ4 : (x, y) ∈ D 7−→(x,−

√1− x2 − y2, y

)∈ E3

ϕ5 : (x, y) ∈ D 7−→(√

1− x2 − y2, x, y)∈ E3

ϕ6 : (x, y) ∈ D 7−→(−√

1− x2 − y2, x, y)∈ E3

onde D ={(x, y) ∈ E2 ; x2 + y2 < 1

}, são parametrizações regulares em E3 e as suas

imagens cobrem S, isto é,

S =6⋃

i=1

Im (ϕi) .

Exercício 7.48 Com as notações do exemplo anterior, faça um estudo do aberto Riemanniano(D, gϕ1

). Escreva explicitamente a métrica gϕ1 . Quem são suas geodésicas?

Exemplo 7.49 (Projeção Estereográfica) A esfera

S ={(x, y, z) ∈ E3 ; x2 + y2 + z2 = 1

}

é uma superfície regular de E3 pois as aplicações

ϕ1 : (x, y) ∈ R2 7−→(

2xx2 + y2 + 1

,2y

x2 + y2 + 1,x2 + y2 − 1x2 + y2 + 1

)∈ R3

ϕ2 : (x, y) ∈ R2 7−→(

2xx2 + y2 + 1

,2y

x2 + y2 + 1,−x2 + y2 − 1

x2 + y2 + 1

)∈ R3

são parametrizações regulares em E3 e as suas imagens cobrem S.

58 CAPÍTULO 7. INTRODUÇÃOÀ GEOMETRIA DIFERENCIAL

Geometricamente, as aplicações ϕ1 e ϕ2 tem a seguinte interpretação: para todo ponto(x, y) ∈ R2, ϕ1 (x, y) (resp. ϕ2 (x, y)) representa o ponto de interseção de S com a retapassando pelos pontos (x, y, 0) e PN = (0, 0, 1) (resp. PS = (0, 0,−1)). Fica então evidenteque

Im ϕ1 = S− {PN} e Im ϕ2 = S− {PS} .

Exercício 7.50 Com as notações do exemplo anterior, faça um estudo do aberto Riemanniano(R2, gϕ1

). Escreva explicitamente a métrica gϕ1 . Quem são suas geodésicas? Verifique que a

noção de ângulo em(R2, gϕ1

)é a mesma que em E2.

Exemplo 7.51 O cilindro

C ={(x, y, z) ∈ R3 ; x2 + y2 = 1

}

é uma superfície regular de E3 pois as aplicações

ϕθ : (x, y) ∈ (θ, θ + 2π)×R 7−→ (cos x, sen x, y) ∈ E3

onde θ ∈ R, são parametrizações regulares em E3 e as suas imagens cobrem S.

Podemos munir uma subvariedade regular de uma métrica intrínseca da mesmaforma como fizemos com as subvariedades parametrizadas. Mais precisamente, amétrica d apresentada em (1) está bem definida em subvariedades regulares. Parao cálculo de volumes, precisamos tomar alguns cuidados pois a definição não seaplica automaticamente. A solução é simples, diremos que um subconjunto K de umasubvariedade regular S émensurável se ele admite uma decomposição

K =l⊔

i=1

Ki,

onde cada Ki está contido na imagem de uma parametrização regular ϕi de S e é umsubconjunto mensurável de Sϕi (no sentido da definição (7.44)). Neste caso, definimoso volume de K (ou a área de K, quando m = 2) por

Vol (K) =l

∑i=1

Vol (Ki) .

Deixamos para o leitor o trabalho de formalizar esta definição e de verificar que elaindepende das escolhas feitas.

Lembramos que um espaço métrico intrínseco é localmente euclidiano quandotodos os seus pontos possuem uma vizinhança isométrica a um aberto do espaçoeuclidiano. No caso de uma subvariedade regular S, essa definição é equivalente aexigir que, para todo ponto p ∈ S, existe umam-parametrização regular ϕ : U ⊂ Em →En cuja imagem é um aberto de S contendo p e a métrica Riemannian gϕ induzida porϕ sobre U é a própria métrica Riemanniana de Em.

Como já discutimos anteriormente, o cilindro é uma superfície regular localmenteeuclidiana. Deixamos para o leitor a tarefa de verificar que a métrica induzida pelas

7.3. VARIEDADES RIEMANNIANAS 59

parametrizações ϕθ apresentadas no exemplo anterior, é de fato amétrica Riemannianade E2.

Mesmo em uma subvariedade regular localmente euclidiana, podem existirparametrizações regulares desta superfície que não induzam em seus domínios amétrica Riemanniana euclidiana. O próximo exemplo apresenta uma parametrizaçãodo cilindro que exemplifica este fenômeno (Verifique!):

Exemplo 7.52 O cilindro

C ={(x, y, z) ∈ R3 ; x2 + y2 = 1

}

é uma superfície regular de E3 pois a aplicação

ϕ : (x, y) ∈ R2 − {(0, 0)} 7−→(

x√x2 + y2

,y√

x2 + y2, ln(√

x2 + y2))

∈ E3

é uma parametrização regular em E3 cuja imagem é C.

Exemplo 7.53 (Superfícies de Revolução) Seja

γ : t ∈ (a, b) 7−→ (0, y (t) , z (t)) ∈ E3

subvariedade regular parametrizada em E3 verificando

y (t) > 0 , ∀t ∈ (a, b) .

O subconjunto S de E3 obtido quando giramos a imagem de γ em torno do eixo OZ é umasuperfície regular pois as aplicações

ϕθ : (t, s) ∈ (a, b)× (θ, θ + 2π) 7−→ (y (t) cos s, y (t) sen s, z (t)) ∈ E3

onde θ ∈ R, são parametrizações regulares em E3 e as suas imagens cobrem S. Em particular,os cilindros e toros de revolução (conf. exercício (5.28)) são superfícies regulares.

Exercício 7.54 A tractriz é a curva γ : (0, 2π) → R3 dada por

γ (t) =(0, sen t, ln

(tg

t2

)+ cos t

).

A superfície regular obtida quando giramos a tractriz em torno do eixo OZ é denominadapseudo-esfera. Demonstre que a pseudo esfera, munida da métrica intrínseca induzida porE3, é um espaço métrico intrínseco não completo e localmente hiperbólico.

Vimos que o toro euclidiano é difeomorfo, porém não isométrico, a um torode revolução TR,r. Resultados avançados da Geometria Diferencial asseguram queé possível encontrar uma superfície regular em um espaço euclidiano En que sejaisométrica ao toro euclidiano. No entanto, estes resultados asseguram que umasuperfície regular com tal propriedade não pode ser encontrada em E3.

Por outro lado, como existe uma bijeção entre TR,r e o toro euclidiano, podemosinduzir a métrica do toro euclidiano sobre TR,r como mencionado no exercício (1.47).O espaço métrico obtido será isométrico ao toro euclidiano e estará contido em E3.Note que a métrica que colocamos em TR,r não é a métrica (intrínseca ou não) induzidapor E3!

A discussão precedente nos leva as seguintes indagações:

60 CAPÍTULO 7. INTRODUÇÃOÀ GEOMETRIA DIFERENCIAL

• Podemos colocar em um subconjunto do espaço euclidiano ambiente umamétrica que nos seja mais conveniente?

• É realmente necessário fazer uso dos espaços euclidianos para se obter umadefinição de superfície regular?

As indagações acima nos levam a seguinte definição:

Definição 7.55 Uma variedade Riemanniana de dimensão m ∈ N, ou simplesmente umam-variedade Riemanniana (ou ainda, uma superfície Riemanniana quando m = 2), éum par (S,A), onde S é um espaço topológico de Hausdorff e A é uma família enumerável(denominada atlas) de aplicações (denominadas parametrizações)

ϕλ : (Uλ, gλ) ⊂ Em → Vλ ⊂ S, λ ∈ Λ

verificando

(i) Para todo λ ∈ Λ, ϕλ é um homeomorfismo.

(ii) S =⋃

λ∈Λ

Vλ.

(iii) Se Vλ,λ′ = Vλ ∩Vλ′ 6= ∅, então a plicação

ϕλ,λ′ : x ∈ ϕ−1λ (Vλ,λ′) 7−→ ϕ−1

λ′ ◦ ϕλ (x) ∈ ϕ−1λ′ (Vλ,λ′)

é uma isometria.

Diremos que (S,A) é orientável quando ϕλ,λ′ é orientável, para todo λ, λ′ ∈ Λ, isto é,quando d (ϕλ,λ′) (p) preserva orientação para todo λ, λ′ ∈ Λ e para todo p ∈ ϕ−1

λ (Vλ,λ′).Quando não houver risco de confusão, escreveremos expressões do tipo "seja S uma

variedade Riemanniana e ϕ uma parametrização de S" ao invés de "seja (S,A) uma variedadeRiemanniana e ϕ uma parametrização de A".

Exemplo 7.56 Subvariedades regulares e geometrias localmente euclidianas são exemplos devariedades Riemannianas.

Exemplo 7.57 Uma geometria localmente hiperbólica X de dimensão n é um espaçométrico intrínseco, finitamentemente compacto, geodesicamente completo e geodesicamenteconexo verificando a seguinte propriedade: para todo x ∈ X existe ε > 0 tal que a bola BX (x, ε)é isométrica à uma bola de raio ε no espaço hiperbólicoHn.

Toda geometria localmente hiperbólica é uma variedade Riemanniana.

Exemplo 7.58 Tome r > 0. Uma geometria localmente r-esférica X de dimensãon é um espaço métrico intrínseco, finitamentemente compacto, geodesicamente completo egeodesicamente conexo verificando a seguinte propriedade: para todo x ∈ X existe ε > 0tal que a bola BX (x, ε) é isométrica à uma bola de raio ε na esfera Sr,n.

Toda geometria localmente r-esférica é uma variedade Riemanniana.

7.3. VARIEDADES RIEMANNIANAS 61

Exemplo 7.59 Considere a esfera

S ={(x, y, z) ∈ E3 ; x2 + y2 + z2 = 1

}

e denote por PN o ponto (0, 0, 1) ∈ S. É facil constatar que o conjunto S− {PN}, munido damétrica intrínseca induzida por E3, não é um espaço métrico completo. Por outro lado, fazendouso da bijeção

ϕ : (x, y) ∈ E2 7−→(

2xx2 + y2 + 1

,2y

x2 + y2 + 1,x2 + y2 − 1x2 + y2 + 1

)∈ E3

definida no exemplo (7.49), podemos induzir a métrica de E2 sobre S − {PN} e, desta forma,obter um espaço métrico intrínseco completo isométrico à E2. Note que (S− {PN} ,A = {ϕ})é uma superfície Riemanniana.

Para adaptar a definição da métrica intrínseca de uma subvariedade regular paraas variedades Riemannianas, precisamos apenas de uma noção de comprimento decurvas. Para tal, vamos proceder como na generalização da noção de volume de umsubconjunto de uma subvariedade regular (a definição de volume em subvariedadesregular se reescreve "mutatis mutandis"para variedades Riemannianas, certo?).

Assim como ocorre em subvariedades parametrizadas, precisamos de uma noçãode curvas suaves em variedades Riemannianas.

Uma aplicação γ : [a, b] → S em uma variedade Riemanniana é uma curva suavese existe uma partição

P = {a = t0 < t1 < . . . < tk = b}

de [a, b] e parametrizações ϕi : Ui ⊂ Em → Vi ⊂ S, i ∈ {1, . . . , k}, de S tais que

γ ([ti−1, ti]) ⊂ Vi

e as curvasαi = ϕ−1

i ◦ γ|[ti−1,ti], i ∈ {1, . . . , k}

são suaves nos abertos Riemannianos(Ui, gϕi

).

Definimos o comprimento de γ por

L (γ) =k

∑i=1

Lgϕi(αi)

quando os comprimentos do lado direito da igualdade estiverem todos definidos.Novamente deixamos para o leitor o trabalho de verificar que esta definição independedas escolhas feitas.

Exercício 7.60 Defina a noção de ângulo entre curvas suaves em uma variedade Riemanniana.

62 CAPÍTULO 7. INTRODUÇÃOÀ GEOMETRIA DIFERENCIAL

Exercício 7.61 Se trocarmos, na definição de variedade Riemanniana, a exigência de queas aplicações ϕλ,λ′ sejam isometrias pela condição mais fraca de que elas sejam apenasdifeomorfismos, obtemos uma noção mais fraca porém muito importante em Matemática. Anoção de variedade diferenciável. Demonstre que, em uma variedade diferenciável, as noçõesde comprimento de curvas suaves, de volume e de ângulos não estão bem definidas. Dito deoutra forma, em variedades diferenciáveis não podemos fazer geometria!!!

Terminamos o capítulo com um importante resultado de classificação:

Teorema 7.62 A única geometria localmente euclidiana (resp. hiperbólica ou r-esférica), dedimensão n e simplesmente conexa é o espaço euclidiano En (resp. o espaço hiperbólicoHn ou aesfera Sr).

Considere duas variedades Riemannianas X e Y e um recobrimento métrico Π :X → Y. Quando Y é uma geometria localmente euclidiana (resp. hiperbólica ou r-esférica), é imediato que X também o é. Temos então o seguinte corolário:

Corolário 7.63 O recobrimento universal de toda geometria localmente euclidiana (resp.hiperbólica ou r-esférica), de dimensão n é, a menos de isometria, o espaço euclidiano En (resp.o espaço hiperbólicoHn ou a esfera Sr).

Capítulo 8

Ações de Grupos

8.1 Definições Básicas

Definição 8.1 Considere um conjunto X e um grupo G cuja unidade será denotada por 1.Uma ação de G sobre X é uma aplicação

φ : G× X → X

verificando:

(i) φ (1, x) = x, para todo x ∈ X.

(ii) φ [g, φ (h, x)] = φ (gh, x), para todo x ∈ X e para quaisquer g, h ∈ G.

Para todo ponto x ∈ X, os conjuntos

Gx = {φ (g, x) ; g ∈ G} e Fix (x) = {g ∈ G ; φ (g, x) = x}

são denominados, respectivamente, órbita e estabilizador de x pela ação φ.Para todo g ∈ G, o conjunto

Fix (g) = {x ∈ X ; φ (g, x) = x}

é denominado conjunto de pontos fixos de g com relação a ação φ.Quando não houver risco de confusão, escreveremos apenas gx ao invés de φ (g, x).

Observação 8.2 Note que, para cada g ∈ G, a aplicação

φg : x ∈ X 7−→ φ (g, x) ∈ X

é uma bijeção e cuja inversa é φg−1 . De fato,

φg ◦ φg−1 (x) = φg

[φ(g−1, x

)]= φ

[g, φ

(g−1, x

)]= φ

(gg−1, x

)= φ (1, x) = x

para todo x ∈ X.Estaremos particularmente interessados nos casos em que X é um espaço métrico e que as

aplicações φg são isometrias (e neste caso diremos que a ação φ é isométrica), similaridades ou,ao menos, homeomorfismos.

63

64 CAPÍTULO 8. AÇÕES DE GRUPOS

Observação 8.3 Lembramos que o conjunto Bij (X) das bijeções de X, munido da operaçãode composição, é um grupo. Se olharmos atentamente para definição acima, veremos que elasignifica apenas que a aplicação

Φ : g ∈ G 7−→ φg ∈ Bij (X)

é um homomorfismo de grupos.

Exercício 8.4 Considere um conjunto X, um ponto x ∈ X, um grupo G e uma ação φ de Gem X. Demonstre que Fix (x) é um subgrupo normal de G e que a aplicação

g ∈ GFix (x)

7−→ φ (g, x) ∈ Gx

está bem definida e é uma bijeção.

Exercício 8.5 Considere um conjunto X, um grupo G e uma ação φ de G em X. Umsubconjunto Y de X é dito invariante pela ação φ se

φg (Y) = Y , ∀g ∈ G.

Demonstre que φ induz uma ação de G sobre um subconjunto Y de X se e somente Y éinvariante pela ação φ.

Exemplo 8.6 Seja X um conjunto e G um subgrupo de Bij (X). A aplicação

φ : (ϕ, x) ∈ G× X 7−→ ϕ (x) ∈ X

é uma ação de G sobre X denominada ação canônica. Observe que φϕ = ϕ, para todo ϕ ∈ G.

Exemplo 8.7 Seja (V, ‖.‖) um espaço vetorial normado munido de sua métrica canônica. Aaplicação

φ : (λ, v) ∈ R+∗ ×V 7−→ λv ∈ V

é uma ação de R+∗ sobre V, onde cada φλ é uma similaridade de V.

Fixemos algumas notações:

Definição 8.8 Considere um conjunto X, um grupo G e uma ação φ de G em X. Diremos queφ é dita:

(i) Fiel se φg 6= φh, para todo g 6= h ∈ G. Isto é, quando a aplicação

Φ : g ∈ G 7−→ φg ∈ Bij (X)

for injetiva. Observe que, neste caso, G é isomorfo a um subgrupo de Bij (X) e a açãopode ser vista como uma ação canônica.

(ii) Transitiva se, para quaisquer pontos x, y ∈ X, existe um elemento g ∈ G tal queφg (x) = y.

8.1. DEFINIÇÕES BÁSICAS 65

(iii) Livre se Fix (g) = ∅, para todo g ∈ G.

(iv) Descontínua se X é um espaço métrico e, para todo compacto K ⊂ X, o conjunto{g ∈ G ; φg (K) ∩ K 6= ∅

}

é finito.

Definição 8.9 Considere um espaço métrico X. Diremos que um grupo G de bijeções de X édescontínuo quando a ação canônica de G sobre X for descontínua.

Exemplo 8.10 Considere as translações

Tw : p ∈ E2 7−→ p+w ∈ E2, ∀w ∈ E2.

Para quaisquer vetores u, v ∈ E2 linearmente independentes, a aplicação

φ : (λ, µ, x) ∈ Z2 × X 7−→ x+ λu+ µv ∈ X

é uma ação isométrica fiel, livre, descontínua e não transitiva deZ2 sobre X. Neste caso, observeque φ(λ,µ) = Tλu+µv, para quaisquer λ, µ ∈ Z.

Exemplo 8.11 Dado θ ∈ (0, 2π), denote por Rθ : E2 → E2 a rotação de ângulo θ em tornoda origem. Sendo Rθ uma isometria, podemos considerar a ação isométrica canônica do grupocíclico G gerado por Rθ sobre E2. Esta ação é fiel, não é livre nem transitiva e será descontínuase e somente se θ = 2π

n , para algum n ∈ N (Verifique!).

Exercício 8.12 Considere um espaço métrico X, um ponto x ∈ X e um grupo G de bijeções deX. Denote por φ a ação canônica de G sobre X. Demonstre que se φ é descontínua, então:

(i) Fix (x) é finito.

(ii) Gx é um subconjunto fechado e discreto de X, isto é, para todo y ∈ Gx, existe ε > 0 talque

BX (y, ε) ∩ G (x) = {y} .

(iii) Uma sequência da forma φ (gn, x) ∈ X, onde gn ∈ G, converge em X se e somente seexiste n0 ∈ N e h ∈ G tais que gn = h, para todo n > n0.

Exercício 8.13 Considere um recobrimento métrico Π : X → X. Demonstre que o grupo

IsomΠ

(X)das isometrias de recobrimento de Π é livre e descontínuo.

Nem sempre é um tarefa fácil saber quando uma ação é descontínua. Asproposições abaixo apresentam condições necessárias e suficientes para garantir a"descontinuidade" de uma ação:

Proposição 8.14 Considere um espaço métrico X. Um grupo G de similaridades de X édescontínuo (isto é, a ação canônica de G sobre X é descontínua) se e somente se

(i) Fix (x) é finito

66 CAPÍTULO 8. AÇÕES DE GRUPOS

(ii) Gx é um subconjunto fechado e discreto de X

para todo x ∈ X.

Proposição 8.15 Considere um espaço métrico X finitamente compacto. Um grupo G deisometrias de X é descontínuo se e somente se existe um ponto x ∈ X tal que

(i) Fix (x) é finito

(ii) Gx é um subconjunto fechado e discreto de X

Definição 8.16 Considere um espaçométrico X e um grupo G de isometrias de X. Uma regiãofundamental de G é um subconjunto aberto conexo R de X verificando

(i) φg (R) ∩ φh (R) = ∅, para quaisquer g 6= h ∈ G

(ii) X =⋃

g∈Gφg(R)

Diremos que R é localmente finita se, para todo x ∈ X, existe um aberto x ∈ U ⊂ X talque {

g ∈ G ; φg(R)∩U 6= ∅

}

é finito.

Encontrar uma região fundamental para a ação de um grupo de isometrias podenão ser uma tarefa fácil. A proposição abaixo apresenta uma forma de construir regiõesfundamentais de ações descontínuas de grupos de isometrias sobre espaços métricosbem comportados:

Proposição 8.17 Considere um espaço métrico X, um ponto x0 ∈ X e um grupo descontínuoG de isometrias de X. Para todo g ∈ G, defina o subconjunto

Hg (x0) = {x ∈ X ; d (x, x0) < d (x, g (x0))}Se X é geodesicamente conexo, geodesicamente completo e finitamente compacto, então oconjunto (denominado Domínio de Dirichlet de G centrado em x0)

DG (x0) =⋂

1 6=g∈GHg (x0)

é uma região fundamental localmente finita de G.

No caso em que X = E2 ou H2, podemos ser mais precisos:

Proposição 8.18 Seja X = E2 ou H2, um ponto x0 ∈ X e um grupo descontínuo G deisometrias de X. Então o domínio de Dirichlet de G centrado em x0 é um polígono convexo e,para cada aresta a de DG (x0), existe um único elemento ga ∈ G verificando

(i) φga (a) é uma aresta b 6= a de DG (x0)

(ii) φga [DG (x0)] ∩ DG (x0) = b

Além disso, os elementos ga acima descritos formam um conjunto gerador de G.

8.2. AÇÕES DE GRUPOS VS. RECOBRIMENTOS 67

8.2 Ações de Grupos vs. Recobrimentos

Definição 8.19 Considere um conjunto X, um grupo G e uma ação φ de G em X. O conjunto

X/φ = {Gx ; x ∈ X}

das órbitas dos elementos de X, com relação ação φ, é denominado quociente de X pela açãoφ. A aplicação

Π : x ∈ X 7−→ Gx ∈ X/φ

é denominada projeção canônica.Quando G for um grupo de bijeções de X e φ for a ação canônica de G sobre X, escreveremos

X/G ao invés de X/φ.

Observação 8.20 Fazendo uso das notações da definição precedente, observe que a relação

x ∼ x′ ⇐⇒ ∃ g ∈ G tal que φ (g, x) = x′

para quaisquer x, x′ ∈ X, é uma relação de equivalência em X cujo conjunto das classes X/ ∼coincide com o quociente X/φ.

Considere um espaço métrico X, um grupo G e uma ação φ de G em X. Sendo Xum espaço métrico, é natural nos perguntarmos se não é possível induzir de formanatural uma métrica sobre o quociente X/φ. Pelo que vimos nos exemplos do capítulo5, a candidata natural é a aplicação

d : (Gx,Gy) ∈ X/φ × X/φ 7−→ inf{dX(x′, y′

); x′ ∈ Gx e y′ ∈ Gy

}∈ R+.

O problema é que, em geral, d não é uma métrica. A proposição a seguir nos apresentaum cenário onde d possui as propriedades desejadas:

Proposição 8.21 Considere um espaço métrico X e um grupo descontínuo G de isometrias deX. Então a aplicação d definida acima é uma métrica em X/G (denominadamétrica canônicade X/G). Além disso, se G é também livre, então a projeção canônica

Π : x ∈ X → Gx ∈ X/G

é um recobrimento métrico verificando

Π (BX (x, r)) = BX/G (Gx, r) , ∀x ∈ X e ∀r > 0.

Corolário 8.22 O quociente do espaço euclidiano En (resp. espaço hiperbólico ou espaço r-esférico) por um grupo livre e descontínuo de isometrias é uma geometria localmente euclidiana(resp. hiperbólica ou r-esférica) de dimensão n.

Para provar a recíproca do corolário, precisamos do seguinte teorema:

68 CAPÍTULO 8. AÇÕES DE GRUPOS

Teorema 8.23 Considere um espaço métrico X verificando a seguinte propriedade: existen ∈ N tal que, para todo x ∈ X, existe uma vizinhança aberta U ⊂ X de x homeomorfa aum aberto de En. Se Π : X → X é o seu recobrimento métrico universal (conf. proposição

2.10), então IsomΠ

(X)≈ Π1 (X) é um grupo de isometrias livre e decontínuo e

X/Π1 (X) := X/ IsomΠ

(X)

é isométrico a Y.

Fazendo-se uso do corolário 7.63 temos:

Corolário 8.24 Toda geometria localmente euclidiana (resp. hiperbólica ou r-esférica) X dedimensão n é isométrica ao quociente do espaço euclidianoEn (resp. espaço hiperbólico ou espaçor-esférico) por um grupo livre e descontínuo de isometrias isomorfo ao grupo fundamentalΠ1 (X).

Como todas as isometrias das esferas Sr ⊂ E3 (conf. capítulo 6) possuem pontosfixos, temos o seguinte corolário:

Corolário 8.25 A esferas Sr ⊂ E3 são as únicas geometrias localmente esféricas de dimensão2.

8.3 Geometrias Localmente Euclidianas de dimensão 2 e3

Nesta seção vamos apresentar a classificação completa das geometrias localmenteeuclidianas de dimensão 2 e 3. Pelos resultados da seção anterior, precisamos apenasconhecer os grupos livres e discontínuos de isometrias de E2 e E3.

Lembramos que as isometrias do plano euclidiano são (conf. teorema (3.5)) astranslações, as rotações, as reflexões e as "glide reflections". Como estamos interessadosem grupos de isometrias livres, podemos desconsiderar as rotações e as reflexões.

Teorema 8.26 Existem CINCO tipos de grupos livres e discontínuos de isometrias de E2. Sãoeles:

(i) G1 = 〈Id〉

(ii) G2 = 〈Tu〉

(iii) G3 = 〈Tu, Tv〉, onde u, v ∈ E2 são vetores linearmente independentes

(iv) G4 = 〈Gr,λ〉

(v) G5 = 〈Gr,λ, Tu〉, onde u ∈ E2 não é um vetor diretor da reta r.

8.3. GEOMETRIAS LOCALMENTE EUCLIDIANAS DE DIMENSÃO 2 E 3 69

onde Tw é a translação por um vetor 0 6= w ∈ E2 e Gr,λ é a "glide reflection", de fator detranslação λ ∈ R, com relação a reta r.

Concluímos então que as únicas geometrias localmente euclidianas são as vistas nocapítulo 5. Isto é:

Corolário 8.27 As únicas geometrias localmente euclidianas de dimensão 2 são: o plano, assuperfícies cilíndricas euclidianas, o toro euclidiano, as superfícies cilíndricas euclidianas nãoorientáveis e as garrafas de Klein euclidianas.

Como mencionado no fim da seção 3.1, as isometrias de E3 são: as translações, asrotações, as "twist translations" (composições de rotações e translações cuja direçãode translação é paralela ao eixo de rotação), as reflexões com relação à planos,às "glide reflections" (composição de reflexões com relação à planos e translaçõescuja direção de translação é paralela ao plano da reflexão) e as "twist reflections"(composição de reflexões e rotações cujo eixo de rotação é perpendicular ao plano dareflexão. Novamente podemos descartar as rotações e reflexões por serem as únicasque possuem pontos fixos.

Teorema 8.28 Existem DEZOITO tipos de grupos livres e discontínuos de isometrias de E3.São eles:

(i) G1 = 〈Id〉

(ii) G2 = 〈Rr,λ,θ〉

(iii) G3 = 〈Gπ,v〉

(iv) G4 = 〈Tu, Tv〉, onde u, v ∈ E3 são vetores linearmente independentes.

(v) G5 = 〈Rr,λ,θ, Tu〉, onde u ∈ E3 é perpendicular a reta r.

(vi) G6 = 〈Gπ,u, Tu〉, onde u ∈ E3 é perpendicular ao plano π.

(vii) G7 = 〈Gπ,u,Gπ,v〉, onde u, v ∈ E3 são vetores linearmente independentes.

(viii) G8 = 〈Rr,λ,π,Gπ,v〉, onde v ∈ E3 é perpendicular à reta r.

(ix) G9 = 〈Tu, Tv, Tw〉, onde u, v,w ∈ E3 são vetores linearmente independentes.

(x) G10 = 〈Tu, Tv, Rr,λ,π〉, onde u, v ∈ E3 são vetores linearmente independentes eperpendiculares à reta r.

(xi) G11 =⟨Tu, Tv, Rr,λ,π

2

⟩, onde u, v ∈ E3 são vetores ortogonais, de mesmo módulo e

perpendiculares à reta r.

(xii) G12 =⟨Tu, Tv, Rr,λ,π

3

⟩, onde u, v ∈ E3 são vetores de mesmo módulo, perpendiculares

à reta r, verificando ∡ (u, v) = π3 .

70 CAPÍTULO 8. AÇÕES DE GRUPOS

(xiii) G13 =⟨Tu, Tv, Rr,λ, 2π

3

⟩, onde u, v ∈ E3 são vetores de mesmo módulo, perpendiculares

à reta r, verificando ∡ (u, v) = 2π3 .

(xiv) G14 = 〈Tu, Tv,Gπ,w〉, onde u,w ∈ E3 geram o plano π e v ∈ E3 é perpendicular a esteúltimo.

(xv) G15 = 〈Tu, Tv,Gπ,w〉, onde u,w ∈ E3 geram o plano π e v ∈ E3 verifica v = e + u2 ,

onde e ∈ E3 é um vetor perpendicular ao plano.

(xvi) G16 = 〈Rr,λ,π,Gπ,v, Tw〉, onde r ⊂ π, w ∈ E3 é perpendicular ao plano π e v ∈ E3 éperpendicular à reta r e ao vetor w.

(xvii) G17 = 〈Rr,λ,π, Tw ◦ Gπ,v〉, onde w ∈ E3 é perpendicular ao plano π, r é paralela ao

plano π e verifica, d(r,π) = ‖w‖2 e v ∈ E3 é perpendicular à reta r e ao vetor w.

(xviii) G18 = 〈Rr,λ,π, Rr′,λ,π〉, onde r e r′ são retas reversas perpendiculares.

onde Tw é a translação por um vetor 0 6= w ∈ E3, Rr,λ,θ é a "twist translation", com fator detranslação λ 6= 0 e ângulo de rotação θ, com relação a reta r ⊂ E2, Gπ,w é a "glide reflection",com vetor de translação 0 6= w ∈ E3, com relação ao plano π e Sr,θ,π é a "twist reflection", comângulo de rotação θ, com relação ao plano π e a reta r.

Deixamos para o leitor a tarefa de estudar cada um dos 17 tipos de geometriaslocalmente euclidianas de dimensão 3 não triviais (Determine, por exemplo, suasgeodésicas e planos!).

8.4 Geometrias Localmente Hiperbólicas

Vamos começar analisando alguns exemplos:

Exemplo 8.29 Dado L > 0, seja G o subgrupo cíclico de Isom(H2) gerado pelo elemento

parabólicoϕ : (x, y) ∈ H+ 7−→ (x+ L, y) ∈ H+.

A geometria localmente hiperbólica SL obtida quando quocientamos H2 por G é denominadapor alguns autores por pseudo esfera completa.

Exercício 8.30 Sobre a pseudo esfera completa, demonstre:

(i) [0, L]×R∩H+ é uma região fundamental de G

(ii) R× (h,∞), onde h > 0, é invariante pela ação de G

(iii) S2π é um completamento da pseudo esfera clássica. Mais precisamente, existe h > 0 talque a variedade hiperbólica R× (h,∞) /G é isométrica à pseudo esfera clássica.

Exercício 8.31 Determine e estude o comportamento das geodésicas de SL.

8.4. GEOMETRIAS LOCALMENTE HIPERBÓLICAS 71

Denote S2 a esfera unitária de E3. Isto é,

S2 ={u ∈ E3 ; ‖u‖ = 1

}.

Exemplo 8.32 Via projeção estereográfica, temos que o conjunto S = S2−{(0, 0, 1)}, munidoda métrica intrínseca induzida por E3, é homeomorfo ao plano euclidiano E2. Este último, porsua vez, é homeomorfo ao conjunto

D ={u ∈ E2 ; ‖u‖ < 1

}

munido da métrica induzida (certo?). Vimos no exercício (7.37) que existe uma métricaRiemanniana g em D tal que (D, g) é isométrico ao espaço hiperbólico H2. Logo, existe umamétrica intrínseca d em S tal que (S, d) é isométrico ao espaço hiperbólico (certo?))

A grande diferença existente entre as geometrias localmente euclidianas e asgeometrias localmente hiperbólicas está na impossibilidade de listar todos ossubgrupos livres e descontínuos de Isom

(H2). A identificação das faces de um

polígono hiperbólico (como fizemos na seção 5.1 para o caso euclidiano) e a colagem depolígonos via isometrias se tornam portanto, caminhos interessantes para a construçãodestas geometrias. Chamamos atenção que estamos chamando de polígono a qualquerconjunto P ⊂ H2 não trivial (isto é, com mais de dois pontos) da forma

P = Hr1 ∩ . . . ∩ Hrk

onde r1, . . . , rk são geodésicas deH2 e Hr1 , . . . ,Hrk são semi-espaços de H2 delimitadospelas geodésicas r1, . . . , rk.

Observação 8.33 As arestas de um polígono não incluem segmentos contidos no eixo OX.

Exemplo 8.34 Considere a região R ⊂ H+ delimitada pelas retas x = ±1 e pelas

circunferências de centros(± 1

2 , 0)e raio 1

2 . Identifique as retas com a isometria

ϕ : (x, y) ∈ H+ 7−→ (x+ 2, y) ∈ H+

e as semi-circunferências com a isometria

ψ : z ∈ H+ 7−→ z2z+ 1

∈ H+

A geometria localmente hiperbólica obtida é homeomorfa a esfera S2 menos 3 pontos e éisométrica ao quociente de H2 pelo subgrupo livre e descontínuo G de Isom

(H2)gerado por ϕ

e ψ. Além disso, R é uma região fundamental de G.

Exemplo 8.35 Considere a região R ⊂ H+ definida no exemplo anterior e a região R′ ⊂ H+

delimitada pelas retas x = 9 e x = 11 e pelas circunfrências de centros (9.5, 0) e (10.5, 0) eraio 1

2 .Denote por ϕ a reflexão com relação a reta x = 5. Note que ϕ (R) = R′. Logo ϕ induz uma

relação bijetora entre as curvas que delimitam as regiões R e R′. Dito de outra forma, desejamos"colar" a reta x = 1 sobre a reta x = 9, a reta x = −1 sobre a reta x = 11 etc.

A geometria localmente hiperbólica determinada via colagem de R e R′ pelo processo acimadescrito é também homeomorfa a esfera S2 menos 3 pontos.

72 CAPÍTULO 8. AÇÕES DE GRUPOS

Analisando os exemplos acima, algumas perguntas aparecem naturalmente:

(i) Qualquer identificação das faces de um polígono em H2 dá origem a umavariedade Riemanniana localmente hiperbólica?

(ii) Supondo que uma identificação das faces de um polígono em H2 deu origem auma variedade Riemanniana localmente hiperbólica, como assegurar que ela écompleta?

Usando os resultados dos capítulos anteriores, esta pergunta é equivalente aseguinte: Quando o subgrupo de Isom

(H2)gerado pelas identificações de faces

é livre e descontínuo?

(iii) Qualquer colagem de polígonos dá origem a uma variedade Riemannianalocalmente hiperbólica? Ela é completa?

Observação 8.36 As construções apresentadas nos exemplos anteriores podem também serrealizadas no espaço euclidiano e os questionamentos acima seriam os mesmos. Embora osresultados apresentados nesta seção sejam para o espaço hiperbólico, chamamos atenção para aexistência de resultados análogos para o caso euclidiano.

Exemplo 8.37 Para ilustrar o tipo de problema que pode ocorrer quando fazemos construçõesenvolvendo colagens como as acima, considere a seguinte construção:

Seja R um quadrante determinado por duas retas ortogonais r e s concorrentes em p. SejaR′ outro quadrante determinado por outras duas retas ortogonais r′ e s′ concorrentes em p′.Considere o espaço S obtido quando colamos R e R′ pelas únicas isometrias que identificam pcom p′, r com r′ e s com s′.

Note que S não é uma variedade Riemanniana localmente hiperbólica porque o ângulomáximo entre 2 vetores no ponto p (ou em p′ uma vez que eles foram identificados) é π radianose não 2π radianos como ocorre em uma tal variedade.

Quando fazemos colagens como as exibidas acima, formamos o que são chamadosde ciclos de vértices. Estes ciclos nada mais são do que conjuntos de vértices que sãoidentificados durante o processo de colagem do(s) polígono(s) envolvido(s). Para cadaum destes ciclos v, denote por ∡ (v) a soma dos ângulos dos vértices de v (em seusrespectivos polígonos).

Proposição 8.38 Se ∡ (v) = 2π, para todos os ciclos de vértices v provenientes de umaconstrução via colagens, então o espaçométrico obtido é uma variedade Riemanniana localmentehiperbólica.

Analisemos a questão da completude. É um resultado clássico da GeometriaRiemanniana que toda variedade Riemanniana compacta é completa. Assim sendo,qualquer processo de colagem fazendo uso de apenas uma quantidade finita depolígonos limitados, sempre dará origem a uma variedade Riemanniana completa, istoé, à uma geometria localmente hiperbólica. Analisemos então o caso em que se faz usode polígonos não necessariamente limitados.

Por simplicidade, nos concentraremos no caso em que apenas um polígono éutilizado no processo de colagem. Para tal, faremos uso da seguinte definição:

8.4. GEOMETRIAS LOCALMENTE HIPERBÓLICAS 73

Definição 8.39 Uma família de polígonos P = {Pλ ; λ ∈ Λ} em H2 é um ladrilhamentode H2 se:

(i) Int (Pλ) ∩ Int(Pµ

)= ∅, para quaisquer λ 6= µ ∈ Λ

(ii) Pλ ∩ Pµ = ∅ ou Pλ ∩ Pµ é uma aresta comum à Pλ e Pµ, para quaisquer λ 6= µ ∈ Λ

(iii) H2 =⋃

λ∈Λ

(iv) Para todo ponto p ∈ H2, existe ε > 0 tal que

{λ ∈ Λ ; Pλ ∩ B (p, ε)}

é finito.

Teorema 8.40 Seja G o grupo gerado pelas isometrias de colagem de um polígono P. Se

P = {g (P) ; g ∈ G}

é um ladrilhamento de H2, então G é descontínuo e P é uma região fundamental para G.

Corolário 8.41 Seja G o grupo gerado pelas isometrias de colagem de um poígono P. Suponhaque ∡ (v) = 2π, para todo ciclo de vértices v. Então a variedade Riemanniana localmentehiperbólica obtida no processo de colagem é uma geometria localmente hiperbólica se e somentese

(i) G é livre

(ii) P = {g (P) ; g ∈ G} é um ladrilhamento de H2

Observação 8.42 Infelizmente as hipóteses do corolário anterior não são simples de seremverificadas. Duas condições necessárias para uma "boa escolha" das isometrias g de colagemsão as seguintes:

(i) g não possui pontos fixos

(ii) g (P) ∩ P e g−1 (P) ∩ P são arestas de P

(iii) Se g1, . . . , gk são as isometrias de colagem escolhidas, então, para todo i 6= j ∈ {1, . . . , k},gi (P) ∩ gj (P) = ∅ ou gi (P) ∩ gj (P) é uma aresta comum aos polígonos gi (P) egj (P).

É possível obter resultados mais precisos que os apresentados aqui para a escoha dasisometrias de colagem. Encaminhamos o leitor interessado ao clássico livro "The Geometryof Discrete Groups" de Alan F. Beardon.

O exemplo a seguir nos diz que as condições apresentadas na observação anteriornão são suficientes para garantir a completude da variedade Riemanniana localmentehiperbólica obtida:

74 CAPÍTULO 8. AÇÕES DE GRUPOS

Exemplo 8.43 Considere o polígono P ⊂ H2 delimitado pelas retas x = 1 e x = 2. Vamosidentificar estas retas utilizando a isometria

ϕ : z ∈ H2 7−→ 2z ∈ H2

O quociente S obtido é uma variedade Riemanniana localmente hiperbólica pois a condiçãosobre os ciclos de vértices é automáticamente satisfeita. No entanto S não é completa (isto é, nãoé uma geometria localmente hiperbólica.

Inicialmente observe que ϕ não é uma "boa escolha" para isometria de colagem pois nãoverifica a condição 1 da observação anterior. Portanto, nem precisamos recorrer ao coroláriopara concluir que S não é completa.

Por outro lado, é fácil verificar que {ϕn (P) ; n ∈ Z} não é um ladrihamento pois

ϕn (P) ⊂ H2 ∩{(x, y) ∈ R2 ; x > 0

}, ∀n ∈ Z.

Referências Bibliográficas

[1] Alan F. Beardon; The Geometry of Discrete Groups, Springer, 1983.

[2] Dmitri Burago,Yuri D. Burago,Sergei Ivanov; A Course inMetric Geometry, AMS,2001.

[3] Elon L. Lima; Grupo Fundamental e Espaço de Recobrimento, SBM, 1998.

[4] Elon L. Lima; Espaços Métricos, SBM, 1977.

[5] James R. Munkres; Topology, Prentice-Hall, 2000.

[6] John G. Ratcliffe; Foundations of Hyperbolic Manifolds, Springer,2006.

[7] John Stillwell; Geometry of Surfaces, Springer, 1993.

[8] Manfredo P. do Carmo; Differential geometry of curves and surfaces, Prentice-Hall, 1976.

[9] Manfredo P. do Carmo; Geometria Riemanniana, SBM, 1988.

[10] Viacheslav V. Nikulin, Igor R. Shafarevich; Geometry and Groups, Springer, 1994.

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