gênero curta-metragem aspectos formais históricos políticos e pedagógicos

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Breve histórico do gênero curta-metragem, considerando seus aspectos formais, políticos e pedagógicos.

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GNERO CURTA-METRAGEM: ASPECTOS FORMAIS, HISTRICOS, POLTICOS E PEDAGGICOSJean Carlos Dourado de Alcntara

Neste captulo, buscamos oferecer ao leitor uma noo do conceito de curta-metragem, suas caractersticas definidoras e sua evoluo como gnero discursivo. Pretendemos, tambm, abordar seus aspectos histricos, bem como a poltica econmica que, de certa maneira, deu os contornos que atualmente ele apresenta. E por ltimo, idealizamos elencar algumas vantagens de usar este gnero nas aulas de linguagem, sobretudo se comparado com o longa-metragem. Na ltima seo, procuramos fundamentar a aplicabilidade, bem como a pertinncia pedaggica de usar o curta-metragem como instrumento de ensino nas aulas de lngua portuguesa. Alm disso, pretendemos, tendo como norte balizador os PCN, apresentar possibilidades de aplicao concretas desse recurso em sala de aula. Discutimos ainda o papel a ser desempenhado pelo professor na utilizao dessa ferramenta, desde a escolha do material at o desfecho do processo, com vistas a contribuir para o ainda tmido emprego dos curtas no ensino de lngua materna. E, embora este trabalho no seja sobre curta-metragem, e sim sobre professores que fazem uso dele em sua prtica de ensino, faz-se mister trazer luz informaes de natureza tcnico-histrica sobre esse tipo de filme, que nos ajudaro a entender melhor a importncia desse gnero como um canal por meio do qual mltiplas vozes puderam e ainda podem ecoar seus pensamentos de modo livre e democrtico. Nos primrdios da histria do cinema, a definio do curta-metragem era associada a uma limitao tcnica. Dessa forma, a produo de curtas no era uma questo de escolha de seus produtores; ao contrrio, tratava-se da nica forma possvel de realizao cinematogrfica naquele momento embrionrio das produes cinematogrficas. Mais de cem anos se passaram, as possibilidades e aparatos tecnolgicos se multiplicaram, os avanos estticos vieram e algumas das caractersticas e critrios que identificavam um curta-metragem naquela poca ainda so vlidos at hoje: um curta-metragem definido pela sua extenso. Todavia, esse conceito foi adquirindo propriedades controversas. Cada vez mais surgiam posies dspares e opiniticas em torno da definio de um curta-metragem. 17

Segundo definio da maioria dos dicionrios, esse tipo de produo definido como Filme Curto, cuja durao geralmente inferior a 30 minutos. No entanto, as caractersticas de um curta-metragem vo muito alm do seu formato. Outras propriedades relacionadas sua curta durao conferem-lhe peculiaridades discursivas importantes, como o reduzido nmero de personagens e dilogos, condensao narrativa que, por sua vez, leva condensao da linguagem e da ao; tempo da histria, na maioria dos casos, linear; verossimilhana com a realidade, grande carga emotiva e sugestiva, alm de apresentar desfechos geralmente surpreendentes. E, pela sua natureza cinematogrfica, grande a possibilidade de veicular contedos culturais com valores educativos. Por isso mesmo, torna-se uma fonte inesgotvel e valiosa para trabalhar aspectos da interao humana, como cultura e linguagem. Mas algumas dvidas ainda restam com relao ao que vem a ser um curta-metragem. Ribeiro (2013) problematiza levantando a seguinte indagao: Embora quase todos os dicionrios estipulem o limite mximo de 30, 40 e at 50 minutos, haveria um limite mnimo para um filme curto? Outra controvrsia lembrada por ela refere-se ao nome curta-metragem, em oposio ao longa-metragem. Dessa relao, pode-se deduzir, pondera a pesquisadora, que ambos estariam inseridos na categoria filme cinematogrfico. No entanto, a realidade sugere outra classificao aos curtas, a de produo audiovisual, uma vez que sua difuso e explorao comercial no esto, a princpio, direcionadas para as telas das salas de cinema, embora partilhe das caractersticas definidoras de um filme cinematogrfico. Essa questo ser tratada com mais profundidade na seo que se segue. 1.1 Curta-metragem no Brasil: histria e poltica econmica Para alm de uma investigao sobre a definio do curta-metragem, faz-se necessrio um levantamento histrico do processo de formao e transformao pelo qual o curta passou desde que se fez presente no Brasil. Qualquer concluso sobre o assunto baseada apenas em sua conjuntura atual seria superficial e at mesmo equivocada. Na abordagem dialgica na qual nos baseamos, entendemos que qualquer concepo, sobre qualquer assunto, construda de forma dialogal com os aspectos scio-histricos que a constituem. Assim, consideramos indispensvel conhecer a histria do gnero curta-metragem desde sua gnese no 18

Brasil, bem como os fatos e circunstncias scio-polticas e culturais com os quais se relacionou. Desde 1895, com a inveno dos irmos Lumire, mesmo com imagem ampliada, o que se via eram filmes no formato curto, o nico disponvel naquele perodo, haja vista as limitaes da poca. Superada essa fase, com a evoluo tcnica e esttica, da qual rapidamente se apropriou a indstria cinematogrfica, o curta adquire um carter de complemento, uma espcie de coadjuvante do longa-metragem. Perde sua posio de atrao principal e assume uma posio complementar em relao ao longa, formato que prosperava e atingia o gosto da maioria das pessoas, cada vez mais submetidas cultura de massa - motivo suficiente para um macio investimento da indstria cultural, que logo organizou um sistema de comrcio cinematogrfico, de distribuio e, principalmente, de exibio, que crescia dia a dia, o que resultou na consolidao da cultura do entretenimento (NETO, 2012). Diante desse fenmeno, j na dcada de 1950, o cinema passa a ser encarado principalmente como divertimento, fator que passa a balizar o mercado cinematogrfico, tornando-se uma febre mundial, seguindo, em todos os cantos, o modelo norte-americano. O fato que o curta foi, de forma progressiva e rpida, perdendo seu espao, uma vez que o longa caiu no gosto popular - critrio necessrio e suficiente, na lgica de mercado, para investir sem reservas no produto em questo, no caso o longa-metragem. Ao curta restou a funo de laboratrio para inovao e experimento de novas linguagens por parte da indstria cinematogrfica, sobretudo pelo seu baixo custo de produo. E o longa eleito o formato apropriado para competir no acirrado mercado do entretenimento (BERNADET, 1995; DUARTE, 2002; NETO, 2012). Com a chegada de Getlio Vargas ao poder e a implantao do Estado Novo no final da dcada de 1930, o curta-metragem adquire novos e imprescindveis papis, agora, com proteo oficial. No deixou de ser um complemento, mas desta feita com status de oficialidade, novos tempos para o curta-metragem. O gnero deixa de assumir uma posio de coadjuvante e passa a protagonizar um papel fulcral, no nas salas de cinema, mas na educao. Os curtas-metragens passam a ser instrumentos de ensino e meio de veiculao da ideologia varguista, baseada no nacionalismo integrador. Isso s foi possvel devido s mudanas realizadas no processo de produo, distribuio e exibio de filmes, at ento regulado apenas 19

pelas leis de mercado. A ideia dos getulistas de universalizao do ensino e da informao, principalmente a oficial, valorizou os canais de difuso cultural e imps uma nova relao entre cinema e o poder (ALENCAR, 1988; NETO, 2012). nesse cenrio que surge o intelectual, extremamente nacionalista, admirador ardoroso dos novos meios de comunicao de massa, Roquette Pinto. ele quem vai conduzir um indito processo de construo de uma legislao para a indstria cinematogrfica, at ento regida apenas pelo mercado. A partir disso, ao filme estrangeiro foi imposta a obrigao de pagar uma taxa, a qual tinha o objetivo de financiar a produo de filmes curtas nacionais de carter educacional. Uma medida governamental fixa uma proporo de filmes educativos nacionais a serem, obrigatoriamente, exibidos nas salas de cinema em todo o pas. E, em 1936, o governo pedetista de Getlio Vargas, tendo como mentor intelectual Roquette Pinto, cria o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), que passa a produzir filmes curtos de carter educativo. Em seis anos, o rgo produziu cerca de 200 curtas escolares, encaminhados para escolas e institutos culturais, bem como para os circuitos de exibio pblica de todo o pas (apud: Neto, 2012, p. 33). At aqui, temos um quadro no qual o curta-metragem figura como agente didtico de brasilidade, totalmente financiado pelo estado, no passando de mero reprodutor de conhecimento e de propaganda ideolgica, situao que impedia a produo ficcional e autoral, uma vez que a perspectiva artstica no interessava ao financiador. A viso de que a narrativa ficcional e o entretenimento visando ao lucro cabiam ao longa-metragem perpetuou absoluta at a dcada de 1960 (ALENCAR,1988; BERNARDET, 1995). E nesse perodo que alguns cineastas mineiros, entre eles Humberto Mauro, comeam a criar um ambiente frtil para o renascimento, ou retomada, da chamada produo autoral. Ele inaugura um perodo em que os produtores, influenciados por movimentos como o francs Nouvelle Vague, e o americano Cinema Direto2, passam a buscar novos modelos estticos produzidos pelo ento cinema moderno do ps-guerra. Um novo modelo de curta-metragem se impe aos certames brasileiros, graas, em parte tambm, a festivais internacionais, que 2 Movimentos artsticos dos cinemas francs e americano que se inserem no movimento contestatrio prprio dos anos sessenta. Participavam desse movimento novos cineastas, sem grande apoio financeiro. Os primeiros filmes dessa escola eram caracterizados pela juventude dos seus autores, unidos por uma vontade comum de transgredir as regras normalmente aceitas para o cinema mais comercial. 20

passam a influenciar a esttica, inclusive, de longas. Inaugura-se, ento, como veremos em seguida, uma nova etapa para o curta-metragem no Brasil (NETO, 2012). 1.2 Curta com personalidade A partir do final da dcada de 1950, jovens autores, sedentos de expor suas habilidades em produzir narrativas ficcionais, sem uma finalidade propriamente didtica, mas como expresso esttica, vidos a mostrar suas vises de mundo por meio da stima arte, cansados de produzir um cinema acrtico e de ser sala de espera para os longas internacionais, partem para uma nova etapa da produo de curtas no Brasil. Nesse perodo passam a abordar livremente os reais problemas da sociedade brasileira, bem como explorar com mais liberdade os aspectos da linguagem cinematogrfica, agora voltada para uma nova esttica, a do cinema novo. Apesar dos primeiros filmes dessa poca ainda serem, em parte, financiados por rgos fomentadores do governo e ainda apresentarem resqucios do modo didtico de produo, ainda um pouco reticentes diante das avanadas tcnicas trazidas pelas vanguardas da poca, j era possvel perceber um discurso mais ousado, independente, diferente dos envernizados, produzidos pelo INCE (NETO, 2012). nessa poca que os curtas brasileiros de fico, como Couro de Gato, de Joaquim Pedro (1961), ganham vrios prmios em festivais internacionais, fenmeno que refora a convico da capacidade de produtores brasileiros realizarem curtas autorais de fico, de forma independente, afastando-se cada vez mais do padro Complemento Nacional. E, para coroar o bom momento do curta nacional, uma tendncia j praticada na Europa chega ao Brasil. Tratava-se de um expediente que juntava alguns curtas transformando-os em um longa, estratgia que, alm de reduzir significativamente o custo da produo, garantia-lhes um espao na exibio pblica nas principais salas de cinema do pas. Foi assim com Couro de gato, acoplado a Um favelado, de Marcos Farias, por sua vez acoplado ao Z da cachorra, de Miguel Borges, tambm acoplado ao Escola de samba, alegria de viver, de Carlos Diegues e ao Pedreira de So Diogo, de Leon Hirszman, 21

formando o longa Cinco vezes favela, produzido pelo CPC da UNE3 (ALENCAR, 1988; NETO, 2012). 3 Centro Popular de Cultura, organizao associada Unio Nacional de Estudantes - UNE, criada em 1961, na cidade do Rio de Janeiro, por um grupo de intelectuais de esquerda, com o objetivo de criar e divulgar uma "arte popular revolucionria". Com o crescente interesse dos jovens autores pela produo cinematogrfica, surgem os primeiros cursos de cinema no Brasil. A UNB, com Nelson Pereira e Jean-Claude Bernardet, toma a frente no projeto de fundar um curso de graduao em cinema, sonho interrompido pelo endurecimento do regime militar. Diante dessa tentativa frustrada, Pereira realiza nova investida, desta vez bem sucedida, em Niteri RJ, fundando o curso de cinema da UFF. J Bernardet volta a So Paulo e cria o curso de cinema na ECA USP. O formato curto, por questes financeiras, ser o modelo de filme escolhido para as produes universitrias. E mais uma vez o curta-metragem protagonista num momento importante da histria. Em uma poca de crescente endurecimento poltico, eles sero um importante instrumento esttico de militncia e resistncia. Com a criao de vrios cursos de cinema pelo pas, o Jornal do Brasil, visando produo dessa nova gerao de cineastas, prestes a se lanarem no mercado, cria o Festival Brasileiro de Cinema Amador. Na sua primeira edio, em 1965, teve como tema o quarto centenrio da cidade do Rio de Janeiro. Os filmes foram exibidos no cinema Paissandu, ponto de encontro de muitos diretores famosos e crticos consagrados de cinema. Jovens produtores, os quais ficaram conhecidos como gerao Paissandu, sonhavam com uma carreira de cineasta. Eles queriam ser vistos e comentados pelos seus dolos presentes no festival. Todos desejavam fazer parte do movimento de mudana em processo. Muitos curta-metragistas tiveram suas carreiras de cineasta alavancadas com o sucesso obtido pelo festival, que passa a se chamar, a partir de 1971, Festival Nacional de Curta-metragem. Comea a uma nova era para o curta no Brasil. 1.3 Demarcando territrio Os novos produtores queriam ser reconhecidos e exigiam a interveno do estado na poltica de distribuio e exibio de filmes nacionais; no entanto, no abriam mo da experimentao de novas linguagens e da crtica frente ao sistema que ficou conhecido como anos de chumbo. O fato era que o governo possua 22

programas de fomento oficiais via Embrafilme, mas jamais financiaria filmes de carter crtico, que revelassem as mazelas da sociedade brasileira da poca. Na concepo oficial, o cinema deveria prestar-se unicamente a entreter a populao. Esta era a funo primeira do cinema: proporcionar filmes com abordagens ldicas, pouco politizadas, desvinculados da vida concreta. Por outro lado, os autores da poca queriam fazer uso expressivo de uma esttica no oficial, a esttica das ruas, dos guetos, do lixo, experimentar novas linguagens, no padro, como forma de fazer frente ao regime militar (ALENCAR, 1988). Diante de toda essa dificuldade de ordem financeiro-estrutural e da imprescindibilidade de testemunhar cinematograficamente aquele perodo histrico de forma crtica, surge o associativismo. Era preciso garantir o direito de expressar vises dspares da propaganda oficial, que tambm se utilizava do mesmo recurso, porm muito mais bem paramentada (MOURA, 2003). Esse movimento foi fruto da luta poltica por mais espao e liberdade esttica. Nessa toada, fundada, em 1973, a Associao Brasileira de Documentaristas, que, apesar do nome, acolhia no s os produtores de documentrios, mas tambm os curta-metragistas ficcionistas. Essa iniciativa produziu um efeito muito positivo para os produtores da poca, os quais tiveram seus filmes vistos em vrios festivais amadores e profissionais de curta-metragem. Esse perodo teve seu auge no incio dos anos 80 com a criao da CORCINA - Cooperativa dos Realizadores Cinematogrficos Autnomos (dem). Mas era preciso ampliar a esfera de circulao dessas produes, as quais s eram exibidas em festivais e centros culturais. A grande luta dos produtores era a regulamentao da exibio dos curtas ficcionais nas salas de cinema, dominadas exclusivamente pelos grandes produtores de longas. Depois de muitas reivindicaes e debates com produtores e governos, a ABD conseguiu, finalmente, em 1979, a elaborao e aprovao da chamada Lei do Curta. Tal dispositivo legal ps fim a uma inquietude de h muito por parte dos curta-metragistas ficcionais. A lei regulou a exibio do curta ficcional, experimental e documentrios nas salas do circuito comercial de todo o pas. O rgo responsvel por fiscalizar e fazer com que a lei se cumprisse foi o CONCINE Conselho Nacional de Cinema4. Esse acordo estendeu a obrigatoriedade, em todo o pas, de 4 O CONCINE tinha como objetivo formular polticas para o cinema brasileiro, bem como normatizar e fiscalizar as atividades cinematogrficas no pas, como produo, reproduo, comercializao, venda, locao, permuta, exibio, importao e exportao de obras cinematogrfica. 23

exibio de curtas-metragens brasileiros antes dos longas estrangeiros. Comeava a um novo ciclo para o gnero curta-metragem no Brasil. Diante do sucesso alcanado pelos curta-metragistas independentes, produtores da grande indstria cinematogrfica comearam a produzir seus prprios curtas de baixa qualidade, com o nico objetivo de fazer com que o pblico se voltasse contra o gnero e protestasse contra sua obrigatoriedade nas salas do circuito oficial de cinemas. Mais uma vez, foi necessria a interveno do CONCINE, o qual, por meio de uma resoluo, institui o chamado sistema do curta-metragem. Essa medida criava um jri especial composto por membros da ABD, da Embrafilme, do Sindicato dos Produtores de curta-metragem e por intelectuais pesquisadores de cinema, os quais passaram a selecionar os filmes considerados aptos a serem exibidos, garantindo com isso a qualidade das obras a serem assistidas pelo pbico. Alm disso, outra resoluo do CONCINE cria um fundo, mantido por um percentual da renda das sesses de cinema em todo o pas, para fomentar a produo do curta, fato que o levou a presenciar sua melhor fase, sendo chamada, segundo Caetano (2006 apud NETO, 2012), de Primavera do Curta. Ante as conquistas e transformaes pelas quais passou o filme curto no Brasil, os frutos no tardariam a chegar. Um dos curtas mais aclamados de todos os tempos, Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, ganha o Festival de Berlim, em 1989, sendo eleito pela crtica europeia um dos 100 curtas mais importantes do sculo XX. Esse sucesso foi resultado da intensa interao entre produtores de curtas ficcionais e documentaristas que conviveram por muito tempo na ABD, perodo em que sofreram influncias mtuas dos estilos e linguagens de cada gnero. Resultado disso, tivemos o curta mencionado, que, dentro de um panorama metalingustico, faz uma pardia dos estilos j consagrados, alm de criticar a suposta objetividade e autoridade da linguagem documental at ento praticada, sem deixar de ser tambm um documentrio, embora haja controvrsia. O mesmo sucesso obtido por A garota das telas (1988) e Frankestein Punk (1986), de Cao Hamburger, e A revolta dos carnudos, de Eliana Fonseca (1988) (NETO, 2012). Contudo, o sistema do curta-metragem, cujo sucesso era patente, teve seu fim com a chegada de Fernando Collor ao poder em 1990. Com sua avidez por privatizao, pe fim Embrafilme, aos CONCINES e conselhos afins. Mais uma vez, o curta precisa se reinventar, uma nova batalha recomea. 24

1.4 Espao pblico e independncia: a reconquista A era Collor desestruturou um sistema que vinha funcionando de forma equilibrada. A produo cinematogrfica reduziu drasticamente, inclusive dos longas. Em meio a essa falta de perspectiva para a produo e exibio de filmes curtos nacionais, as salas de exibio do circuito de cinema voltam a sofrer o monoplio dos filmes estrangeiros, sobretudo das produes homogneas norte-americanas. nesse cenrio desanimador que produtores apaixonados e amantes do gnero, frutos da primavera da dcada anterior, engendram, em 1990, o Festival Internacional de Curtas de So Paulo e, anos depois, no Rio de Janeiro, criam o Curta Cinema. Esses dois espaos foram os responsveis pela reorganizao e reestruturao do gnero, tornando-se referenciais de apoio, crtica e divulgao do curta-metragem at os dias de hoje. Produes como Esta no sua vida e A matadeira (1991), de Jorge Furtado, revelam que os novos cineastas mantm muito da esttica da poca primaveril dos curtas, mas apresentam uma nova tendncia significativa. Nota-se, nesse perodo, um certo arrefecimento da fico e um ressurgimento da preocupao com as questes sociais, fato que reivindica uma esttica que explore o aspecto potico da linguagem, sem, contudo, perder a ligao com a realidade, com a vida. Essa tendncia pode ser percebida nos documentrios Vala Comum (1994), de Joo Godoy e Socorro Nobre (1995), de Walter Salles (RAMOS, 2004). Outro fenmeno importante o surgimento de subgneros do curta-metragem, como o curta-piada5 e o curta-portiflio6, os quais ganham simpatizantes e depreciadores na mesma proporo. Independentemente da aprovao ou desaprovao dos cinfilos de planto, o fato revelador, na medida em que evidencia a potncia criativa desse gnero. E essa plasticidade criativa do gnero curta ocorre em razo de no haver restrio a que esto submetidos os longas comerciais no seu processo de criao e produo. 5 So curtas que contam, de forma humorada, histrias que teriam tudo pra ser um drama. Uma forma descontrada de fazer crtica social. Como forma de denncia, brincam com elementos que revelam as mazelas sociais. 6 So curtas produzidos por diretores que possuem a inteno de atuar com longas. Por isso no tm compromisso com a esttica e linguagem prprias do gnero. Esse tipo de produo est bem prximo dos padres comerciais de um longa, porm no formato curto. Essa nova retomada da produo de filmes curtas no Brasil demonstrou que, por fim, o gnero tinha alcanado uma estabilidade permanente. Tal afirmao 25

possvel por duas razes. A primeira est vinculada ao fato de diretores j consagrados preferirem criar seus filmes no formato curto, deixando de encar-lo apenas como trampolim para uma carreira de produtor de longas. J era possvel construir uma carreira cinematogrfica como produtor de curta-metragem. A segunda razo tem a ver com o incentivo governamental e apoio advindos de instituies privadas. Com o impeachment de Collor e ascenso dos tucanos ao poder, cria-se a chamada renncia fiscal em favor das artes, e pe-se em prtica o plano de retomar a produo cinematogrfica brasileira. Leis de incentivo cultura so criadas e milhares de espaos dedicados arte so espalhados pelo pas, tais como os do Banco do Brasil e do Ita, para citar os mais importantes. Isso permitiu que outras regies, para alm do eixo Rio So Paulo, entrassem para o circuito dos festivais. No entanto, um fenmeno ainda mais contundente iria selar, de uma vez por todas, o futuro do curta-metragem. Em 1995, surge uma novidade que impactaria todos os aspectos da produo humana, fossem eles cientfico, cultural ou comercial. Trata-se da Internet. Nunca uma estrutura de rede representou to bem o Tecendo a Manh, de Joo Cabral de Melo Neto. Enfim, o galo canta e todos podem ouvir, porque h tantos galos quanto necessrios a postos na rede, levando o seu grito a outro e a outros at que todos possam ouvi-los, e com uma rapidez que Joo Cabral sequer sonhava. o espao de exibio de filmes curtos mais eficaz e democrtico que um produtor independente puderia desejar. Em 1998, surge o site Portacurtas, que rene em um portal milhares de curtas nacionais e os disponibiliza, online, para quem quiser assistir, em qualquer lugar do planeta. Isso numa poca em que a tecnologia webstreaming7 e a banda larga estavam apenas comeando. O site patrocinado pela Petrobrs, financiadora das principais produes cinematogrficas do pas. 7 Tecnologia que permite a transmisso instantnea de dados de udio e vdeo atravs das redes. Com ela, o usurio consegue assistir a filmes ou escutar msica sem a necessidade de fazer download, o que torna mais rpido o acesso aos contedos online. O Portacurtas possui atualmente mais de oito mil curtas catalogados, o maior banco de dados online de curtas brasileiros. O projeto disponibiliza as fichas tcnicas de todos os filmes, numa cinemateca acessvel 24h por dia. Alm desse 26

espao, h outros espaos virtuais, como o Youtube e o Vmeo8, onde o prprio produtor pode atuar como divulgador e exibidor de seus trabalhos. Por meio da rede, produtores independentes podem organizar seus prprios festivais, abordando os temas que desejarem, como o caso do Festival Internacional de Cinema na Internet, o Fluxus9. Tal realidade proporcionada pela internet, na avaliao de Moletta (2009), levou ao rompimento definitivo da fronteira entre produo cinematogrfica e audiovisual, acabando com a barreira entre pelcula e fita, porque, na web, a reputao de uma produo no est na bitola do filme ou no formato mini DV ou HD; o prestgio de um filme est na quantidade de acesso e comentrios dos usurios, atravs do qual se obtm, em tempo real, a reao do pblico. Assim, finalmente, o gnero curta-metragem atingiu sua maturidade, tanto em independncia quanto em pblico, conquistando de vez liberdade temtica, esfera de circulao e suporte infinitos. A Internet um espao onde as hegemonias ainda encontram resistncia. Lugar onde a tendncia nica perde sua fora, um verdadeiro stio de explorao, no qual se acomodam e se compatibilizam todas as estticas, todas as linguagens e discursos. A internet, espao no oficial, passou, num movimento contrrio, a influenciar decisivamente os espaos oficiais, retroalimentando a exibio de filmes nos espaos fsicos, impactando a frequncia do pblico tanto nas salas de cinema quanto nos centros culturais. Os festivais e premiaes, frequentemente, acabam contemplando diretores que comearam sua carreira cinematogrfica na internet.