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1 “Primeira Impressão”: Uma produção audiovisual como narrativa histórica Profa. Dra. Márcia Ramos de Oliveira Acadêmicos: Alan Carlos Ghedini, Anderson Florentino da Silva Débora Mendes Bregue Daniel Este texto é resultado da reflexão em que estiveram envolvidos seus autores, quando da produção do filme, curta-metragem, “Primeira Impressão”. Tal iniciativa reuniu um grupo de estudantes do Curso de História/UDESC, entre outros interessados, que participaram da Oficina de Produção e Reflexão de Narrativas Históricas Audiovisuais oferecida pelo Prof. Fernando Chíquio Boppré. 1 O relato aqui apresentado insere-se, em grande parte, na experiência de ter freqüentado a Oficina e, posteriormente, também ter experienciado as demais etapas de desenvolvimento do filme, entre produção do roteiro, definição das cenas/tomadas, captação de imagens, escolha e montagem das cenas, sonorização, apresentação e créditos do filme. Partindo de uma perspectiva em se considerar a história inserida em um contexto que busca relativizar a ordem dos discursos e, construir narrativas a partir de novas experiências, especialmente no que se refere as linguagens utilizadas, percebe-se que o audiovisual vem ganhando espaço enquanto um importante recurso. Tal situação pode ser percebida no expressivo número de trabalhos historiográficos voltados a análise de diferentes contextos históricos a partir de imagens e sonoridades registrados, especialmente datados no século XX. Nesse sentido, a proposta de desenvolvimento de uma produção audiovisual, como a que foi apresentada na Oficina, encontra-se vinculada diretamente a uma preocupação em refletir acerca da produção historiográfica relacionada a este universo, além de perceber no uso da imagem e do som, uma outra possibilitadade de construção de texto e sentido nas narrativas históricas. 1 Fernando Boppré vem desenvolvendo um importante trabalho na área de cinema e história em Florianópolis, trajetória que se iniciou na sua graduação no Curso de História, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), através do LAPIS – Laboratório de Pesquisa em Imagem e Som -; atualmente encontra-se vinculado a esta Instituição como mestrando no PPG em História. Quando ministrou a citada oficina atuava como diretor do Museu Hassis (Fundação Hassis), na mesma cidade.

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“Primeira Impressão”: Uma produção audiovisual como narrativa histórica

Profa. Dra. Márcia Ramos de Oliveira Acadêmicos: Alan Carlos Ghedini,

Anderson Florentino da Silva Débora Mendes Bregue Daniel

Este texto é resultado da reflexão em que estiveram envolvidos seus autores,

quando da produção do filme, curta-metragem, “Primeira Impressão”. Tal iniciativa

reuniu um grupo de estudantes do Curso de História/UDESC, entre outros interessados,

que participaram da Oficina de Produção e Reflexão de Narrativas Históricas

Audiovisuais oferecida pelo Prof. Fernando Chíquio Boppré.1 O relato aqui apresentado

insere-se, em grande parte, na experiência de ter freqüentado a Oficina e,

posteriormente, também ter experienciado as demais etapas de desenvolvimento do

filme, entre produção do roteiro, definição das cenas/tomadas, captação de imagens,

escolha e montagem das cenas, sonorização, apresentação e créditos do filme.

Partindo de uma perspectiva em se considerar a história inserida em um contexto

que busca relativizar a ordem dos discursos e, construir narrativas a partir de novas

experiências, especialmente no que se refere as linguagens utilizadas, percebe-se que o

audiovisual vem ganhando espaço enquanto um importante recurso. Tal situação pode

ser percebida no expressivo número de trabalhos historiográficos voltados a análise de

diferentes contextos históricos a partir de imagens e sonoridades registrados,

especialmente datados no século XX.

Nesse sentido, a proposta de desenvolvimento de uma produção audiovisual,

como a que foi apresentada na Oficina, encontra-se vinculada diretamente a uma

preocupação em refletir acerca da produção historiográfica relacionada a este universo,

além de perceber no uso da imagem e do som, uma outra possibilitadade de construção

de texto e sentido nas narrativas históricas.

1 Fernando Boppré vem desenvolvendo um importante trabalho na área de cinema e história em Florianópolis, trajetória que se iniciou na sua graduação no Curso de História, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), através do LAPIS – Laboratório de Pesquisa em Imagem e Som -; atualmente encontra-se vinculado a esta Instituição como mestrando no PPG em História. Quando ministrou a citada oficina atuava como diretor do Museu Hassis (Fundação Hassis), na mesma cidade.

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A produção do filme “Primeira Impressão” teve, entre seus objetivos,

fundalmentalmente, proporcionar aos alunos - futuros professores e pesquisadores em

história - , a experiência de contar algo através desta forma de narrativa. A idéia era, de

certa forma, contrapor as narrativas pelas quais usualmente estes discentes tem acesso

quando buscam interagir com esta área de conhecimento, entre as quais,

tradicionalmente, o texto escrito é o principal suporte. Neste caso, aliado a perspectiva

de interpretar autores e textos, além de produções cinematográficas diferenciadas

enquanto propostas, historicamente colocadas, proporcionou ao grupo envolvido um

exercício de percepção e fruição estética. Destacou-se, neste processo, a

intencionalidade dos discursos e linguagens utilizadas, a exemplo da história e do

cinema, enquanto forma de perceber, interpretar, construir o mundo e seus sentidos.

Evidenciaram-se semelhanças e diferenças na maneira como tais áreas apresentam-se

no contexto das construção de narrativas e, como resultam, em distintas e próximas

maneiras de contar, descrever, elaborar uma versão sobre algo. Estória ou história;

veracidade ou ficção? Questões começavam a brotar, invertendo-se a ordem dos

discursos.

Quando do surgimento da História, com “h” maiúsculo, especialmente destacada

no século XIX, em sua crença na possibilidade de produzir “verdades” a partir dos fatos

e documentos exemplarmente citados, evidenciava-se a importância do registro e da

prova documental. De certa forma, o cinema surgido ao final deste mesmo século,

aproximava-se desta perspectiva, pois fazia uma espécie de registro do que

documentava. As imagens de uma época, documentos que até então só haviam sido

apreendidos na fixidez das fotografias e pinturas, resplandeciam no movimento das

salas que refletiam os primeiros filmes.

A história deste período, enquanto campo disciplinar moderno, estava associada

a formulação de um olhar sobre o passado adaptado ao modelo que caracterizava o

surgimento do conjunto das ciências. Apresenta-se como paradigma incontestável a

perspectiva que condicionava o desenvolvimento do conhecimento, entre ciências

exatas e humanas, entre o espírito e a materialidade, a noção de uma evolução

ascendente, positiva. O desenvolvimento tecnológico e industrial corroborava os sonhos

da razão, condenando a espécie humana, e o meio em que existia, inevitavelmente ao

progresso. É importante salientar que a história desempenhava, então, um papel

significativo na afirmação e consolidação deste mentalidade. A maneira cartesiana de

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perceber a sociedade consolidou-se entre as ciências humanas, constituindo-se em

métodos que definiram as especificidades de cada disciplina acadêmica.

Os estudos históricos pautaram-se, neste momento, pelo enfoque da

objetividade e imparcialidade sobre o passado, baseado na comprovação de fatos, a

partir dos documentos demonstrados, enquanto registros que “falavam por si”. Tal como

uma equação matemática, cabia ao historiador organizar suas fontes enquanto variáveis

que solucionavam as “equações”/perguntas postas, verificadas a partir da veracidade

e/ou autenticidade dos documentos apresentados. Diante disso, feita a prova, tinha-se a

pretensão de narrar sobre o que “verdadeiramente” aconteceu. Sob tal perspectiva, o

fato histórico estava, então, congelado no passado, esperando pelo seu descobrimento.

A Nova História, surgida no século XX apresenta-se enquanto um rompimento

com relação a descrição anterior. Através da Escola dos Annales2 configurou-se a

predisposição a novos métodos e diferenciadas perspectivas de análises na pesquisa

histórica. As obras de historiadores como Lucien Febvre e Marc Bloch , de certa forma,

guiaram um outro olhar sobre o percurso do tempo, percebido sob múltiplas camadas,

impossibilitando de fato uma filosofia histórica, através da qual a espécie humana

estivesse caminhando linear e unidirecionalmente a um “ponto de chegada” evolutivo.

Também esta renovada maneira de perceber o processo histórico encontrava-se

condicionada ao seu contexto de emergência. Evidenciava a crise que se abatera sobre a

Europa, em função das duas grandes guerras mundiais ocorridas, abalando as certezas e

a visão que mundo que, até então, caracterizara a crença do progresso científico, e

humano, relativizando as interpretações, a partir de então. A disciplina histórica abria-se

enquanto campo de conhecimento, recorrendo a multidisciplinaridade na formulação de

métodos e teorias, especialmente dialogando com as ciências sociais.

Resultante desta profunda reflexão, a história deixava de ocupar-se

essencialmente com as questões políticas, redimensionando sua importância no

conjunto de elementos que a compõe, reavaliando a noção existente sobre o fato

histórico. Fernand Braudel, seguindo a renovação iniciada por Febvre e Bloch, fez

referência a esta questão em sua crítica a “história política”:

À primeira apreensão, o passado é essa massa de fatos miúdos, uns brilhantes, outros obscuros e indefinidamente repetidos, esses mesmos fatos que constituem, na atualidade, o despojo cotidiano da micro-sociologia ou sociometria (há também uma

2 FEBVRE, Lucien. "Face ao vento", Manifesto dos Anais Novos (1946). In: Febvre. São Paulo. Ática,

1978.

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micro-história). Mas essa massa não forma toda a realidade, toda a espessura da história sobre a qual a reflexão científica pode trabalhar à vontade. A ciência social tem quase horror do evento. Não sem razão: o tempo curto é a mais caprichosa, a mais enganadora das durações.

Ainda sob a perspectiva deste autor, é possível pensar no historiador como um

“encenador”, enquanto aquele que constrói cenas ou quadros, determinando sua

seqüência, baseando-se nas interpretações que apresenta e, na interdisciplinaridade que

caracterizou a busca de uma “história sem fronteiras”.

Walter Benjamim ao apresentar suas famosas “teses sobre a história”, afirma

Há um quadro de Klee que se chama Ângelus Novus. Representa um anjo que parece afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fecha-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é que chamamos progresso.3

Figura 1: Ângelus Novus de Paul Klee4

3 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7.

ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 4 Figura disponível em http://www.wbenjamin.org/aura.html Consulta: 24 /06/2007.

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No quadro e descrição apresentados, a história não é apenas comparada a

representação na imagem, mas vem a tornar-se o próprio objeto da pintura, o anjo que

referenciando o conceito, de certa forma situa o historiador em sua permanente angústia

frente ao incessante movimento de encontro e perda do passado, característico desta

disciplina.

Mais do que um recurso ilustrativo, mais do que sua descrição, através da qual

se possa fazer inúmeras interpretações, que outro uso poderia ser dado aos quadros, a

fotografias (em movimento ou não), ou ainda a música, no estudo da história?

Estas questões tornaram-se corriqueiras nos trabalhos e discussões pelas quais a

disciplina histórica vem sendo construída nas últimas décadas. Ênfases semelhantes

foram colocadas nos debates que tematizaram o desenvolvimento do cinema e da

produção artístico-cultural, entre sua origem e desenvolvimento ao longo do século XX.

Na percepção de seus precursores, tal “prática” emergia como resultado e um

experimento prático, científico, “apenas”. Sobre os Irmãos Lumière, Jean-Claude

Bernardet declarou

No dia da primeira exibição pública de cinema - 28 de dezembro de 1895, em Paris -, um homem de teatro que trabalhava com mágicas, Georges Méliès, foi falar com Lumière, um dos inventores do cinema; queria adquirir um aparelho e Lumière o desencorajou, disse-lhe que o "cinematógrapho" não tinha o menor futuro como espetáculo, era um instrumento cièntífico para reproduzir o movimento e só poderia servir para pesquisas. Mesmo que o público, no início, se divertisse com ele, seria uma novidade de vida breve, logo cansaria. Lumière enganou-se (...).5

A percepção que emerge deste fragmento tem como principal defensor o polonês

Boleslas Matuszewski, participante no projeto de Louis e Auguste Lumière, conforme

referencia Mônica Almeida Kornis,

(...) julgava que o evento filmado era mais verdadeiro que a fotografia, na medida em

que esta última admitia retoques. Deve-se observar, contudo, que Matuszewski

atribuía esse valor ao filme documentário que, aliás, era a produção dominante na

época.6

Sobre tal forma de produção – documentário -, Bernardet enfatiza a intenção

contida na tentativa de mostrar tal representação enquanto real, ou o equivalente a

verdade contida em sua narrativa,

5 BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980. 6 KORNIS, Mônica Almeida. HISTÓRIA E CINEMA: um debate metodológico. Revista Estudos Históricos, FGV, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 237-250.

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Ao dizer que o cinema expressa a realidade, o grupo social que encampou o cinema coloca-se como que entre parênteses, e não pode ser questionado. Esse problema é talvez um tanto complicado, mas é fundamental tentar equacioná-lo para que se tenha idéia de como se processa, no campo da estética, um dos aspectos da dominação ideológica. A classe dominante, para dominar, não pode nunca apresentar a sua ideologia, mas ela deve lutar para que esta ideologia seja sempre entendida como a verdade. Donde a necessidade de apresentar o cinema como sendo expressão do real e disfarçar constantemente que ele é artifício, manipulação, interpretação. A história do cinema é em grande parte a luta constante para manter ocultos os aspectos artificiais do cinema e para sustentar a impressão da realidade. O cinema, como toda área cultural, é um campo de luta, e a história do cinema é também o esforço constante para denunciar este ocultamento e fazer aparecer quem fala.

Ainda sob semelhante perspectiva, os cineastas, Dziga Vertov e Serguei

Eisenstein sugerem outro enfoque a esta discussão. A exemplo do que ocorreu com o

fato histórico, que perdeu a aura de verdade e independência com que fora caracterizado

no século XIX, o cinema deparou-se com a impossibilidade em reconstituir de maneira

totalizante o que ocorreu, e a forma pela qual aconteceu, na prática do documentário

fílmico. Todo filme, bem como toda manifestação humana, seria circunscrito a esfera

social em que foi produzido. Desta forma, antes que registro neutro e “verdadeiro”, a

produção cinematográfica de ficção seria sempre uma construção, ainda que Vertov

pretende-se, na produção do documentário, a intencionalidade de obtenção de algo real.

Percebia, no entanto, que o próprio processo de gravação interferia na compreensão do

registro obtido, ainda que aparentemente restituísse a sensação de quem tenha

testemunhado o motivo da cena, ou da gravação.7

A história, com relação ao cinema, deixou de percebê-lo somente enquanto

documentário, incorporando também a discussão que apresentava em sua formulação.

E, especialmente tendo em vista a função desempenhada pela “sétima arte” enquanto

produto da indústria cultural, tornou-se imprescindível adotar tal produção enquanto

tema e objeto desta disciplina, a medida em que representava, identificava, a sociedade

e a história, especialmente, no século XX.

Na concepção do cineasta catarinense Zeca Pires, pode-se pensar o cinema

também enquanto uma forma de reflexão que perceba ser sua produção um reflexo do

indivíduo e da sociedade da qual ele faz parte,

7 “(...) mesmo quando não encena o passado, o produto audiovisual de cinema ou de televisão sempre é um documento de sua época, veiculando valores, projetos, ideologias.” IN: CAPELATO, Maria Helena; MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; SALIBA, Elias Thomé. História e cinema. São Paulo: Alameda, 2007. p. 9

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A fotografia em si, o filme em si não representam, tanto quanto qualquer documento velho ou novo, uma prova de verdade. Toda a crítica externa e interna que a metodologia da história impõe ao manuscrito impõe igualmente ao filme. Todos podem igualmente ser falsos, todos podem ser inventados, todos podem conter verdade e inverdades8.

Nesta discussão, ainda que sucintamente, faz-se necessário apresentar o ponto de

vista de Ulpiano Bezerra de Meneses, em sua interpretação acerca da chamada “história

visual”. Apesar de não estar se referindo diretamente a questão do cinema, o autor

aponta para o fato da improcedência em compreender as imagens por elas mesmas.

Neste sentido, expressa contrariedade ao perceber o surgimento de determinadas

especificidades na análise histórica, restrita ao universo documental a que se remetem,

acrescentando,

Não se estudam fontes para melhor conhecê-las, identificá-las, analisá-las, interpretá-las e compreendê-las, mas elas são identificadas, analisadas, interpretadas e compreendidas para que, daí, se consiga um entendimento maior da sociedade, na sua transformação.

9 Posicionar-se para além da análise de imagens, propõe compreender o processo

de formulação da visualidade de determinada sociedade, as maneiras como a mesma é

influenciada ao reagir, ao construir-se enquanto parte da percepção visual nela inserida.

David Mamet, ao caracterizar a adequação de uma linguagem cinematográfica,

propõe que esta deveria estar muito relacionada com a maneira pela qual as pessoas

contam histórias. Ou seja, “As pessoas dizem ‘estou parado na esquina. É um dia de

nevoeiro. Um banda de gente enlouquecida está correndo para lá e para cá. Talvez tenha

sido a lua cheia. De repente, um carro chega e o cara ao meu lado diz (...)”10. Cada frase

corresponderia a um plano obtido pela câmera no filme. Influenciado pela obra de

Eisenstein, Mamet encerra sua proposta de filmagem em uma seqüência de planos

(nomeados como “não-infletidos”), aparentemente não correlatos ( “1 – um cara parado

8 PIRES, Zeca. Cinema e história: José Julianelli e Alfredo Baumgarten, pioneiros do cinema catarinense. Blumenau: Ed. da FURB, 2000. p. 48. 9 MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Fontes visuais, cultura visual, História visual.

Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 23, n. 45, julho de 2003.

10 MAMET, David. Sobre direção de cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 22.

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na esquina; Plano 2 – plano do nevoeiro; Plano 3 – uma lua cheia brilhando; 4 – um

homem diz ‘acho que as pessoas ficam loucas nessa época do ano’; 5 – um carro se

aproxima”) 11, mas que, de alguma forma, veiculariam um significado aberto à

interpretação do público.

A proposta de David Mamet para formulação de filmes faz aflorar algumas

questões ao olhar histórico. A medida em que trabalha de acordo com pequenas frações

de imagens e sons, ao contar uma história que aos poucos ganha significado, podemos

perceber também aqui uma relação como o trabalho do historiador, na sua tentativa de

apresentar o passado. A partir de “amostras do passado” propõe-se ao material alguma

ordem, a chamada “trama” que conduz o texto histórico, fornecendo sentido ao que se

estuda, ao objeto evidenciado.

Diante de considerações, como as esboçadas até aqui, a proposta do audiovisual

“Primeira Impressão” surgiu enquanto resultado da experiência prática, desenvolvida

na já citada Oficina de Produção e Reflexão de Narrativas Históricas Audiovisuais”,

que tinha por objetivo geral “capacitar o futuro professor e pesquisador em História a

refletir e a produzir discursos audiovisuais”; e , ainda, como objetivos específicos

“possibilitar o uso de uma nova ferramenta discursiva ao aluno de História, articulando

a transmissão e produção de conhecimento a partir desta forma de narrativa, que pode

vir a ser utilizada tanto pelo pesquisador como pelo professor”.12 Para tanto, propunha-

se a produção, no período da oficina, de um curta de ficção em vídeo realizado pelos

próprios alunos; o estudo e a discussão audiovisuais clássicos e contemporâneos; o

contato direto com as tecnologias de produção de vídeo e televisão, tornando-os cientes

e críticos do processo de produção de audiovisuais.

Aparentemente tais objetivos foram contemplados. Oportunizou-se ao grupo

envolvido (formado por estudantes e professores de história) o contato com diferentes

formas de produção de narrativas, a partir das quais o texto escrito, suporte tradicional

da escrita histórica, pôde ser encarado como um discurso, uma narrativa, entre outras.

De certa maneira, o grupo experimentou a oportunidade de contar algo atravessando a

fronteira do escrito, ao perceber que apenas uma pequena parte do contexto histórico

estava assim sendo trabalhada. E, especificamente, que tal forma de expressão poderia

ser acompanhada de sons, imagens fixas e em movimento, em seqüência ou

11 Idem p. 22. 12 Objetivos apresentados na proposta encaminhada pelo Prof. Fernando Boppré ao grupo de “oficineiros”.

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contrapostas, entre outros tantos elementos utilizados, para além daqueles que

convencionava-se citar enquanto partes da narrativa histórica.

Para a produção do filme “Primeira Impressão” foram captadas imagens tendo

o centro da cidade de Florianópolis como cenário, percorrendo trajetos cotidianos destes

estudantes, entre as ruas centrais, o terminal de ônibus e o prédio da instituição que

frequentavam.

O trabalho por eles desenvolvido levou em consideração o fato de que não havia

ali atores, nem cineastas, profissionais ou amadores. Mas enfatizou-se, por outro lado,

que o interesse e a vontade de contar a “história” de maneira não usual a que estavam

habituados poderia ser não apenas possível, mas profícua, interessante.

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Quadro a quadro, ao longo dos 8 minutos e 35 segundos que dura o filme, é

possível visualizar a cidade descrita de maneira bastante agitada através da fumaça,

barulho de motor e sirene, passos apressados.

O barulho e a pressa ganham ênfase de início, caracterizando a cidade nos seu

cotidiano e hábitos. A câmera passa a acompanhar o passo apressado de um rapaz e os

ruídos atordoantes da cidade vão sumindo a partir do momento em que, tendo como

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plano apenas os pés e parte das pernas do suposto ator, surge uma flor, expressiva em

sua coloração, destoando da multiplicidade de outros tons presentes nas imagens

colhidas desta cidade. Deixando um cenário saturado de muitos prédios e concreto,

voltando-se para outro, onde é possível divisar a arquitetura tendo por detalhe os

prédios antigos e coloridos, vem surgindo a canção que entoa e dá sentido a estória

contada.13

Nessa época do ano

Quando o frio vem chegando E há menos flores que espinhos

Os dias perdidos

Vem a luz Ainda éramos filhos

Éramos amigos

Até sermos engolidos Pela vida sem brilho Por nossos inimigos

Na rotina comum

E sou só um Mas não sou um deles

Eu sou só um

E mesmo que pareça tolo E sem sentido

Eu ainda brigo por sonhos Eu ainda brigo

Esta curta narrativa, caracterizada pela ausência da palavra falada, evidenciou

aos alunos da Oficina os recursos possíveis, evidentes, na utilização da imagem e do

som enquanto possibilidade narrativa, e talvez, de acordo com a intencionalidade

presente, de contar uma “história”.

13 Canção “lores e Espinhos”, Paralamas do Sucesso, CD Longo caminho, Gravadora EMI, 2003.

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Nesta experiência, buscou-se refletir como os produtos

cinematográficos/audiovisuais são formulados: quem produz, pra quem está produzindo

e quais são os objetivos estabelecidos. Aliado a isto, permaneceu a perspectiva de que a

produção historiográfica venha a fazer uso deste importante recurso na socialização do

conhecimento na área.

A realização deste audiovisual, portanto, proporcionou ao grupo envolvido na

Oficina não apenas refletir sobre os processos de composição e narrativa presentes na

produção do cinema, mas veio acompanhada de outras tantas indagações que

equivaliam a como contar uma estória de ficção, o que trazia novos questionamentos

sobre a diferença entre as formas de contar a história, entre a ficção e a não-ficção. Seria

possível tal dissociação?

De acordo com Marc Ferro após um longo tempo, a relação dos povos com seu

passado – sua memória –, não se distinguia mais muito claramente de sua relação com

esse arquivo, as imagens que evocava em sua mente, sua memória “fílmica”.14 Surgira ,

quase que naturalmente, uma espécie de cinefilia em massa. A relação com os recursos

de produção destas imagens pelo cinema e/ou outras formas de audiovisuais, de certa

forma estabeleceram a relação que existe entre nossas lembranças, inclusive intervindo

sobre elas, com nosso passado, a ponto de modificá-lo. Tal constatação tornou

imperiosa a necessidade de que o historiador, especialmente aquele dedicado aos

14 FERRO, Marc. Cinema e História. Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1992. p.69

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acontecimentos dos séculos em que a indústria cultural popularizou o acesso a tantas

narrativas assim produzidas, venha a ocupar-se em refletir sobre as condições e

intencionalidade de tal forma de produção. Destaca ainda Marc Ferro, que o cinema

contribuiu especialmente na valorização da memória e da tradição oral, principalmente

por não fazer uso de métodos restritos, tendo como força de expressão essencialmente a

palavra escrita, a exemplo da tradicional linguagem histórica, ou da literatura formal.

A produção do filme “Primeira Impressão” revelou não apenas uma experiência

de trabalho e/ou utilização de recursos na formulação do audiovisual. Houve a singular

possibilidade pelos acadêmicos do Curso de História/FAED de entrar em contato com

outras formas de criação, geralmente fora da pauta e do conteúdo programático de

grande parte das instituições que graduam profissionais nesta área. O que se verificou

assim, foi o registro de um encontro, de um momento especial na formação destes

alunos: a possibilidade de criação, entre o audiovisual e a história, a participação em

uma proposta desenvolvida em um ambiente aberto a discussão quanto aos meios,

recursos e intenções na arte de contar e narrar.

Referências:

AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP, Papirus, 1993. ___________ O olho interminável [cinema e pintura]. São Paulo: Cosac & Naïfy, 2004. FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. MAMET, David. Sobre direção de cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. PIRES, Zeca. Cinema e história: José Julianelli e Alfredo Baumgarten, pioneiros do cinema catarinense. Blumenau: Ed. da FURB, 2000. CAPELATO, Maria Helena; MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; SALIBA, Elias Thomé. História e cinema. São Paulo: Alameda, 2007. MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 23, n. 45, julho de 2003. KORNIS, Mônica Almeida. HISTÓRIA E CINEMA: um debate metodológico. Revista Estudos Históricos, FGV, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 237-250. NÓVOA, Jorge. Apologia da relação cinema-história. http://www.ufba.br/~revistao/01apolog.html. Consulta: 24 /06/2007. Márcia Ramos de Oliveira (Osório/RS, 1965) é doutora em História Cultural pela UFRGS e professora no Mestrado e Departamento de História da UDESC. É coordenadora do Núcleo de Estudos Históricos (NEH) e do Laboratório de Imagem e Som (LIS) na UDESC. É membro do GT Nacional de História Cultural / ANPUH ( no qual atuou como coordenadora regional entre 2001 e 2003) e da International Association for the Study of Popular Music – IASPM (Rama Latinoamericana). É líder no Grupo de

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Pesquisa “Linguagens e Identificações” CNPq/UDESC. Desenvolveu trabalhos sobre a canção e a música popular brasileira, com ênfase na produção musical do compositor Lupicínio Rodrigues, temáticas nas quais produziu diversos artigos e publicações científicas. No momento desenvolve o projeto “Impressões sobre os ‘nacionalismos’ no Brasil: a contribuição da música na formação do ideário nacional (1860-1930)” (PROBIC/UDESC), além outras iniciativas vinculadas a práticas extensionistas e de ensino, entre as quais destaca-se a implentação da Rádio Online do NEH.

Alan Carlos Ghedini (Mafra / SC, ) é graduando em História na UDESC. Bolsista de Pesquisa PROBIC/UDESC no projeto projeto “Impressões sobre os ‘nacionalismos’ no Brasil: a contribuição da música na formação do ideário nacional (1860-1930)”.; atuou anteriormente no projeto “Representações na história: apreciação da documentação visual e sonora”e foi monitor na disciplina de Prática Curricular Imagem e Som II no Curso de História / UDESC; atividades que deram origem a artigos e publicações na área. Membro do GP “Linguagens e Identificações” CNPq/UDESC. Anderson Florentino da Silva (São José/SC, 1985), é graduando em História na UDESC e bolsista do Núcleo de Estudos Históricos - NEH/FAED/UDESC, no Programa de Extensão “Memória, mídia e tecnologias da informação: pesquisa e ensino na história", através do projeto “ Multimeios, Internet e Jogos Eletrônicos: possibilidades para o ensino e pesquisa em história“. Membro do GP “Linguagens e Identificações” CNPq/UDESC. Débora Mendes Bregue Daniel (Florianópolis, 1986), é graduanda em História na UDESC e bolsista do Núcleo de Estudos Históricos - NEH/FAED/UDESC, no Programa de Extensão “Memória, mídia e tecnologias da informação: pesquisa e ensino na história", através do projeto “Rádio Online do NEH: construção de uma proposta de comunicação e interação entre pesquisa e ensino de história”. Membro do GP “Linguagens e Identificações” CNPq/UDESC.