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1 FUTEBOL E EXCLUSÃO SOCIAL NO PÓS-ABOLIÇÃO EM PELOTAS CHRISTIAN FERREIRA MACKEDANZ Universidade Federal de Pelotas [email protected] Este trabalho pretende discutir de que forma os negros se relacionaram com o futebol, em Pelotas, no período pós-abolição 1 . Essa temática estará melhor amparada pela História Cultural, pois foi através da Escola dos Annales que esta vertente historiográfica se consolidou, promovendo uma ampliação tanto metodológica, como de linhas de pesquisa 2 . Estabelecer essas conexões entre futebol e outras demandas sociais e políticas tem sido possível dentro dessa nova realidade, sem deixar de lado as várias contribuições trazidas pela história social, com a qual este trabalho também dialoga. Dito isto, os primeiros aportes teóricos tentarão situar como este trabalho entende o tema do preconceito com o negro. Hofbauer (2006) faz um histórico do racismo na sociedade ocidental. Para ele, “até o século XVI o conceito de raça [...] era usado exclusivamente para destacar a ‘linhagem pura’ de famílias nobres da realeza e dos bispos” (HOFBAUER, 2006, p. 101). Esta vinculação da raça com a linhagem é importante, pois ao analisar as metamorfoses históricas do racismo, o mesmo autor observa, em relação ao Brasil escravocrata, que: uma vez que o controle social era tratado como uma questão primordialmente privada, isto é, a esfera privada imperava sobre a pública, a concepção do Estado assemelhava-se mais a uma espécie de ‘núcleo familiar ampliado’. [...] Sabemos que os valores burgueses surgiram no contexto de uma história específica. A valorização do indivíduo e dos direitos civis deu-se como produto da luta da burguesia contra o Antigo Regime. [...] Trata-se de mudanças estruturais que não ocorreram no Brasil do século XIX (HOFBAUER, 2006, p. 151). 1 Sobre o recorte temporal da pesquisa é importante ser dito que, apesar de se referir genericamente ao pós-abolição, o ano inicial do estudo é 1904, pela chegada do futebol à região, e o ano final é 1930, ano do fim da República Velha e período em que o processo de democratização desse esporte se acentuou. 2 Sobre essa questão ver BURKE (1991).

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Page 1: FUTEBOL E EXCLUSÃO SOCIAL NO PÓS ABOLIÇÃO EM PELOTAS ... · 1 Sobre o recorte temporal da pesquisa é importante ser dito que, apesar de se referir genericamente ao pós-abolição,

1

FUTEBOL E EXCLUSÃO SOCIAL NO PÓS-ABOLIÇÃO EM PELOTAS

CHRISTIAN FERREIRA MACKEDANZ

Universidade Federal de Pelotas

[email protected]

Este trabalho pretende discutir de que forma os negros se relacionaram com o

futebol, em Pelotas, no período pós-abolição1. Essa temática estará melhor amparada

pela História Cultural, pois foi através da Escola dos Annales que esta vertente

historiográfica se consolidou, promovendo uma ampliação tanto metodológica, como de

linhas de pesquisa2. Estabelecer essas conexões entre futebol e outras demandas sociais

e políticas tem sido possível dentro dessa nova realidade, sem deixar de lado as várias

contribuições trazidas pela história social, com a qual este trabalho também dialoga.

Dito isto, os primeiros aportes teóricos tentarão situar como este trabalho entende o

tema do preconceito com o negro. Hofbauer (2006) faz um histórico do racismo na

sociedade ocidental. Para ele, “até o século XVI o conceito de raça [...] era usado

exclusivamente para destacar a ‘linhagem pura’ de famílias nobres da realeza e dos

bispos” (HOFBAUER, 2006, p. 101).

Esta vinculação da raça com a linhagem é importante, pois ao analisar as

metamorfoses históricas do racismo, o mesmo autor observa, em relação ao Brasil

escravocrata, que:

uma vez que o controle social era tratado como uma questão primordialmente

privada, isto é, a esfera privada imperava sobre a pública, a concepção do

Estado assemelhava-se mais a uma espécie de ‘núcleo familiar ampliado’.

[...] Sabemos que os valores burgueses surgiram no contexto de uma história

específica. A valorização do indivíduo e dos direitos civis deu-se como

produto da luta da burguesia contra o Antigo Regime. [...] Trata-se de

mudanças estruturais que não ocorreram no Brasil do século XIX

(HOFBAUER, 2006, p. 151).

1 Sobre o recorte temporal da pesquisa é importante ser dito que, apesar de se referir genericamente ao

pós-abolição, o ano inicial do estudo é 1904, pela chegada do futebol à região, e o ano final é 1930, ano

do fim da República Velha e período em que o processo de democratização desse esporte se acentuou. 2 Sobre essa questão ver BURKE (1991).

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Portanto, ao falar de racismo no Brasil, é preciso lembrar que o paternalismo

dominava as relações políticas. Neste mesmo raciocínio, mas indo além, GUIMARÃES

(2005, p. 14) comenta que

a ordem hierárquica, seja estamental, seja racial, sobre a qual se fundou a

sociedade escravocrata no Brasil, não foi inteiramente rompida, nem com a

Abolição, nem com a República, nem com a restauração democrática do pós-

guerra, tampouco com a República Nova.

Além do preconceito étnico, os negros eram excluídos também por não fazerem

parte das famílias mais influentes. Tal aspecto será fundamental para que se possa

entender porque quando os negros começam a ter alguns direitos, isso acontece, num

primeiro momento, apenas com um grupo restrito.

Para finalizar essa análise dos caminhos que o racismo percorreu, é importante

perceber como é recente a superação de alguns desses discursos. O mesmo autor aponta

que “alguns cientistas começaram, a partir da década de 1930, a reivindicar o abandono

do conceito de raça” (HOFBAUER, 206, p. 217). Para ele:

foi apenas depois da Segunda Guerra Mundial, e principalmente na década de

1950, que, no Brasil, o discurso intelectual – hegemônico – do

branqueamento sofreu questionamentos sérios (HOFBAUER, 2006, p. 261).3

Após estas considerações sobre a temática do racismo em si, acho pertinente

debater como a historiografia trata o fenômeno da escravidão e o que isso pode

influenciar na análise do preconceito no período pós-abolição. Al-Alam (2008) analisa

quais as correntes historiográficas que já discutiram a escravidão no Rio Grande do Sul.

A primeira vertente se caracterizava por tentar demonstrar que aqui a escravidão era

mais branda, enfatizando que os trabalhos pesados estariam de acordo com a “natureza

negra” e que “não seriam nem pesados e nem excessivos, estariam conforme a

resistência física dos trabalhadores (AL-ALAM, 2008, p. 38).

Contrapondo-se a esta visão,

3 Cabe salientar a importância dos crimes raciais cometidos pelos nazistas para essa mudança de

mentalidade.

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Maestri e Gutierrez já demonstraram a horrenda realidade dos trabalhos dos

escravizados, obrigados a labutar cerca de 16 horas por dia, de pés descalços,

suscetíveis à umidade do ar muito grande, na beira dos arroios e canais;

muitos acabavam não chegando à média de expectativa de vida, que era de 5

a 7 anos de trabalho efetivo (AL-ALAM, 2008, p. 39).

Porém, essa reação àquela primeira vertente acabou por criar uma segunda

tradição historiográfica, “marcada pela ênfase dos estudos da resistência escrava através

da violência, ou seja, através das revoltas, dos justiçamentos, das fugas, das formações

de quilombos, etc” (Al-Alam, 2008, p. 40). Estudos muito interessantes e importantes,

mas

representantes dessa época, partiram de uma concepção limitada de cultura,

fazendo a oposição entre resistência e aculturação, ou seja, ou o sujeito

resiste, e quase sempre pela violência, ou ele é totalmente destruído pelo

senhor ou colonizador, tornando-se um aculturado, perdendo totalmente suas

bagagens culturais. (AL-ALAM, 2008, p. 41).

Tentando superar esse enrijecimento da segunda tradição, surge uma terceira

corrente, na qual

muitos pesquisadores, sejam eles antropólogos, historiadores ou sociólogos,

já contestaram o binômio aculturação/resistência, colocaram em cheque (sic)

a ideia de que os sujeitos perdem totalmente seus padrões culturais quando

sofrem um processo de espoliação, de violência física e moral; temos que

pensar que eles se apropriavam dos signos culturais impostos, mas os

adaptando de acordo com suas leituras de mundo, suas perspectivas, suas

experiências de vida, a cultura seria constantemente recriada (AL-ALAM,

2008, p. 41).

Faço este debate, para dizer que o meu trabalho dialoga com esta terceira

vertente. Mesmo que não seja mais dentro do ambiente da escravidão, no pós-abolição o

negro segue lutando contra o racismo, e é fundamental perceber que essa luta é muito

mais complexa do que a exclusiva confrontação pela violência física.

Sobre a questão da exclusão social, um tema central nesta pesquisa, Thompson

(1998) fala sobre como as camadas superiores procuram manipular a cultura popular. O

autor defende que “o povo está sujeito a pressões para ‘reformar’ sua cultura segundo

normas vindas de cima” (THOMPSON, 1998, p. 13). Ele também comenta que as

culturas conservadoras recorrem a costumes tradicionais e procuram reforçá-los e

explica de que forma elas agem:

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As formas são também não racionais; não apelam para a ‘razão’ por meio do

panfleto, do sermão ou do palanque do orador. Elas impõem uma variedade

de sanções pela força, o ridículo, a vergonha e intimidação (THOMPSON,

1998, p. 19).

É com este olhar que estudarei a tensão entre a tentativa da elite de manter a

prática do futebol restrita e o interesse de participar dos negros.

A seguir, irei discutir qual será o aporte teórico do futebol que, enquanto

fenômeno social/cultural, está em contato com as tensões sociais, como no caso da

exclusão social do negro no início do século XX. Além disso, pretendo discutir o

futebol como uma forma não só de legitimação do preconceito, mas também de

organização dos grupos marginalizados contra esta realidade. Neste contexto, concordo

com Loner (1999), quando ela, citando Hobsbawm, comenta que:

Hobsbawm, falando sobre a formação da classe trabalhadora inglesa,

considera de fundamental importância o papel desempenhado pelo futebol na

cultura operária, unificando inclusive a linguagem e o tema das conversas

diárias entre os operários. O mesmo autor descreve o desprezo e a

intolerância com que esta faceta do comportamento operário era vista pelos

ativistas sindicais, para os quais isso era um dos fatores a demonstrar a

estupidez e indolência das massas proletárias e a falta do que eles

caracterizariam como consciência de classe (Hobsbawm, 1987, p.291).

Entretanto, ele sublinha o papel unificador e delimitador de uma cultura

comum entre os operários ingleses, representada, ao mesmo tempo, pela

torcida por um time, pelo uso do boné e pelo consumo de peixe frito

(LONER, 1999, p. 414).

Mais importante do que discutir o impacto social do futebol na Inglaterra, é

discutir este mesmo fenômeno em relação ao Brasil, visto que a temática de pesquisa é

aqui situada. Neste sentido, as colocações de DaMatta (1994) são muito importantes.

Algumas das observações do autor são que o futebol possibilitou ao brasileiro resgatar

os valores mais profundos dos símbolos nacionais, antes restritos à elite e aos militares,

e permitiu ao povo o orgulho de ser brasileiro. Além disso, “instituiu abertamente a

malandragem como arte de sobrevivência e o jogo de cintura como estilo nacional”

(DaMATTA, 1994, p. 17).

Além dessas influências em relação à identidade nacional, o autor fala de alguns

impactos do futebol nas experiências do povo brasileiro. Sobre os aspectos negativos, o

autor reconhece que:

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Sua função no mundo moderno tem uma ligação íntima com dois aspectos

fundamentais da vida burguesa. O primeiro é a disciplina das massas que o

esporte ensina e reafirma, quando exige que todos cheguem aos estádios em

horas certas, pagando corretamente as entradas. E o segundo é a sua ligação

íntima com a idéia de fair-play, pois esporte trivializa a vitória e a derrota.

Ora, essa socialização para o fracasso e para o êxito, essa banalização da

perda, da pobreza e da má-sorte, somente poderia ocorrer numa sociedade

transformada, como disse Karl Polanyi, pelo mercado que tudo engloba e faz

crer que todos são mesmo jogadores com iguais oportunidades. Ademais, o

esporte afirma valores capitalistas básicos, como o individualismo (cada um

de nós tem o direito de escolher um clube, time ou herói esportivo), e o

igualitarismo (no início do jogo os adversários são iguais e devem ser

tratados com lisura e respeito, principalmente na derrota), o que, como já

disse, ajuda na socialização de uma justiça burguesa universalista

(DaMATTA, 1994, p. 13-14).

Porém, na chegada do futebol a estas terras, na última década do século XIX e

nas primeiras do século XX,

o velho esporte bretão entrava em conflito com valores tradicionais.

Habituada a jogar e não a competir, a sociedade brasileira, construída de

favores, hierarquias, clientes, e ainda repleta de ranço escravocrata, reagia

ambiguamente ao futebol (DaMATTA, 1994, p. 12).

É neste contexto social, que algumas das características mais interessantes dessa

interação entre futebol e povo brasileiro se manifestam, como sua capacidade de agir

como um formidável código de integração social, de possibilitar ao povo pobre a

experiência da vitória, de permitir que os brasileiros experimentem a experiência da

igualdade e da justiça, através das regras do esporte, e de propiciar a alternância entre

vencedores e perdedores, característica da democracia (DaMATTA, 1994, p. 16-17).

Essa discussão é muito importante para este trabalho, e será retomada nas

próximas páginas, pois tentarei observar nas fontes, essa característica do futebol. Se

por um lado, se viu este esporte reforçando o preconceito, por outro esta capacidade de

integração e de igualdade amparada nas regras, pode ter feito do futebol uma prática que

contribuiu para a superação dessa realidade excludente.

Em relação ao referencial metodológico, essa pesquisa será desenvolvida através

de uma análise qualitativa de fontes escritas e fotografias. Sobre a análise das imagens,

é importante explicitar com qual olhar elas serão tratadas. Nas fotografias:

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entre o sujeito que olha e a imagem que elabora há muito mais que os olhos

podem ver. A fotografia - para além da sua gênese automática, ultrapassando

a idéia de analogon da realidade - é uma elaboração do vivido, o resultado de

um ato de investimento de sentido, ou ainda uma leitura do real realizada

mediante o recurso a uma série de regras que envolvem, inclusive, o controle

de um determinado saber de ordem técnica. (MAUAD, 1996, p. 75). [...]

Parafraseando Jacques Le Goff, há que se considerar a fotografia,

simultaneamente como imagem/documento e como imagem/monumento. [...]

Sem esquecer jamais que todo documento é monumento, se a fotografia

informa, ela também conforma uma determinada visão de mundo (MAUAD,

1996, p. 80).

Estando ciente, portanto, do olhar que deve ser direcionado para o registro

fotográfico, é importante dizer que esta pesquisa poderá cumprir adequadamente um

critério apontado pela mesma autora, quando ela diz que “há que se observar um critério

de seleção, evitando-se misturar diferentes tipos de fotografia” (MAUAD, 1996, p. 83),

afinal as fotografias estudadas serão todas do mesmo tipo (jogadores perfilados,

formando uma equipe).

Em relação às fontes escritas, algumas considerações precisam ser feitas. Como

estas se vinculam aos periódicos, as considerações de Elmir são o ponto de partida, pois

ele aconselha que deva ser feita uma leitura intensiva, ou seja, “a leitura deve ser

meticulosa, deve ser demorada, deve ser exaustiva – e muitas vezes é mesmo

enfadonha” (1995, p. 21). É importante, ainda, assinalar que cada jornal, longe da ilusão

da imparcialidade, expressa ideias e juízos do grupo que o comanda e mantém. Sobre

essa questão, Espig (1998, p. 274) alerta que

um dos mais freqüentes problemas no tratamento dado aos jornais pelos

historiadores [...] é a ausência de uma crítica interna ao conteúdo jornalístico,

e sua utilização como se este fosse uma fonte precisa, no qual a informação é

válida por si mesma.

Sendo assim, é fundamental perceber qual grupo controla qual jornal, para saber

interpretar o que se lê. Em relação à temática de pesquisa, alguns autores já analisaram

os principais jornais da cidade e, com base nesses estudos, foi possível saber sobre quais

jornais a pesquisa devia ser direcionada.

Dito isto, agora farei algumas observações sobre os jornais utilizados neste

trabalho. O primeiro jornal do qual obtive fontes escritas, foi O Libertador. Sobre ele, a

mesma autora comenta que:

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como todos os jornais oposicionistas, buscará uma maior aproximação com o

movimento operário e popular na cidade, mas, diferentemente dos demais,

esse era um jornal com uma forte aproximação com a Igreja Católica. Será

também um jornal de vida longa para os parâmetros de um órgão

oposicionista, tendo durado até 1937, sendo fechado quando o Estado Novo

aboliu os partidos e concomitantemente decretou o fechamento de vários

jornais partidários (LONER, 1998, p. 31).

O segundo jornal, que foi o mais utilizado nesta pesquisa, é A Alvorada. Para

entendermos a importância dele em relação à minha temática é necessário perceber que

o jornal A Alvorada circulou na cidade de Pelotas e região de 5 de maio de

1907 a 13 de março de 1965, o que o torna hoje o mais longevo periódico da

imprensa negra brasileira. Foi fundado por trabalhadores, na sua maioria de

origem afrobrasileira, para ser um veículo de informação, defesa e protesto

da comunidade negra e da classe operária pelotense. Por meio de suas

páginas podemos resgatar boa parte das trajetórias de vida de alguns dos

principais intelectuais negros pelotenses e líderes operários, bem como

acompanhar as discussões e demandas dos trabalhadores brasileiros daquele

período. [...] O Jornal era o espaço onde a comunidade se via representada.

Fotografias, anúncios de nascimento e morte, convites para bailes,

aniversários, casamentos e jogos de futebol, denúncias sobre casos de

discriminação e preconceito racial, divergências internas, tudo está nas

páginas do semanário. Reconhecido em Pelotas como “jornal de negro”, A

Alvorada nos abre a janela para o passado e descortina uma comunidade

negra cheia de história, organização e trabalho (SANTOS, J. A. IN: LONER,

B. A.; GILL, L. A.; MAGALHÃES, M. O. (Orgs.), 2010, p. 13).

Feitas estas considerações teóricas e metodológicas, cabe agora falar sobre o

espaço que é tema dessa pesquisa.

Pelotas é a cidade que possui a maior população de afro-descendentes do interior

do Estado, isto porque havia um grande contingente de negros escravos vinculados às

charqueadas. Gutierrez (1999) mostra o contraste que existia em Pelotas, no período por

ela estudado, entre os senhores endinheirados, querendo mostrar, através das obras

arquitetônicas, seu gosto refinado e seu poder econômico, e os escravos, obrigados a

trabalhar na produção econômica escravista do charque e também nos canteiro de obras

da área urbana.

O objetivo deste trabalho, no entanto, é pesquisar o período pós-abolição. Nesse

sentido, as colocações de Loner (2010, p. 182) são fundamentais:

A população afro-descendente de Pelotas foi trazida à região para trabalhar,

sob o regime da escravidão. Posteriormente à Abolição eles se radicaram

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aqui, trabalhando em todo o tipo de serviço [...]. Em 1890, formavam cerca

de um terço da população urbana de Pelotas e sua grande concentração na

cidade tornou-os um dos principais grupos de trabalhadores do município.

Durante a maior parte do século XX, os negros sofreram muito com a

segregação e o preconceito racial, que terminaram condicionando suas

chances de ascensão social e de busca de emprego na cidade.

Além disso, Dornelles (1998, p. 108-112) comenta que a concorrência com os

imigrantes era desleal, com relação à necessidade de seu trabalho, pois estes recebiam,

tanto no campo como na cidade, um apoio muito maior da imprensa e das camadas

dirigentes. Portanto, é nesse contexto social de tensão, entre os negros que buscavam se

integrar à sociedade na sua nova condição (trabalhador livre) e a segregação e o

preconceito com que eram recebidos, que este trabalho pretende discutir como essa

situação se manifestou no futebol. Para que o recorte temporal proposto para a pesquisa

faça sentido, é fundamental que sejam feitas algumas considerações sobre como o

futebol chegou nessa cidade.

A primeira partida de futebol em Pelotas provavelmente ocorreu em 19014

(RIGO, 2004) e o primeiro clube da cidade, o Athlético Foot-Ball Club, foi fundado em

1904 (LONER, 1999; RIGO, 2004). Porém, Alves (1984, p. 16) diz que foi em 1906 “o

primeiro grande ano do futebol em Pelotas”. Rigo (2004, p. 69) confirma que, “ao que

tudo indica, 1906 pode ser considerado o ano em que o futebol deu os sinais indicativos

de que veio pra ficar. A partir desse ano, cada vez mais, ele se fez presente nos eventos

festivos e esportivos da elite pelotense.”

Este interesse da elite pelotense pelo futebol tem explicação geográfica

(proximidade com Rio Grande, do clube mais antigo, e com a Argentina e o Uruguai,

onde o futebol já era praticado antes do Brasil), mas tem, sobretudo, uma explicação

econômica. Magalhães (1993, p. 296), comparando Pelotas a Porto Alegre, destaca que:

os dois municípios praticamente se equiparavam, em desenvolvimento, no

transcorrer do Império. Mas, em 1927, do total das receitas arrecadadas pelos

municípios gaúchos, Porto Alegre participará com 43,2%, em primeiro lugar;

Pelotas, mesmo em segundo lugar, terá o índice de 6,5%.

4 Lembrando que quem jogou a partida foi o Sport Club Rio Grande, o clube mais velho do Brasil. Para

mais informações sobre ele, ver Rigo (2004, p. 55-60).

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Apesar do fim da escravidão os setores das charqueadas e da indústria saladeiril

terem tido uma queda acentuada, que os fez deixar de rivalizar com a capital, essa

região continuou tendo uma importância significativa dentro do contexto estadual, seja

nas dimensões política, econômica ou cultural, importância esta, que vai se perdendo

com o decorrer do tempo.

Com uma situação econômica favorável durante o período de funcionamento das

charqueadas, muitos senhores enviavam seus filhos para estudar na Europa, onde o

futebol já era mais praticado e possuía um significado social maior. Portanto,

Essa empatia inicial pelo futebol, muitas vezes iniciada em terras

estrangeiras, acontecia tanto com os distintos cidadãos de posse da região,

que viajavam seguidamente a negócios ou a passeio, como também com os

seus filhos, que na época iam estudar na Europa. Ao retornarem às suas

cidades de origem, além de camisas de seda, da literatura em voga e das

novidades européias do ano (o corte de cabelo, as palavras mais usadas, os

costumes e hábitos corporais em moda), alguns desses seletos filhos da elite

da região trouxeram também informações, material apropriado e um certo

conhecimento prático do futebol (RIGO, 2004, p. 64).

Além disso, o material para a prática era caro, sendo a bola um item precioso.

Juntando esses fatores, é possível entender porque os primeiros anos do futebol em

Pelotas foram marcados pelo elitismo. Porém, a elite tomava medidas para tentar

garantir que este esporte continuasse restrito. A intenção era a de controlar:

quem, como e onde se praticava o futebol fazia parte das intenções da elite da

época, que estava atenta para fazer de seu tempo de lazer uma experiência

singular de classe. A resistência a uma miscigenação maior, tanto social

como racial, era uma das fortes preocupações para uma fração significativa

da cidade, que fazia questão de viver aristocraticamente (RIGO, 2004, p.82).

Loner (1999) também fala sobre a questão da tensão entre a elite e a

democratização deste esporte em Pelotas. Para ela, o futebol

desenvolveu-se primeiro junto às classes mais abastadas, mas rapidamente o

futebol encontrou-se com a classe operária e demais setores populares. Já em

1909 havia o clube Aliança dos Operários, cuja primeira diretoria

contemplava dois negros em posições de destaque. (LONER, 1999, p. 142)

[...] Essa transformação iniciou ainda nos times de várzea e nas disputas

amigáveis, pois os principais campeonatos foram, por muito tempo,

controlados pela elite. Dizer que o futebol era um esporte mais democrático

não significa que ele fosse imune aos processos seletivos vigentes na

sociedade. Houve discriminação racial em vários desses clubes, mais

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evidente nas diretorias, mas evidenciando-se, em alguns casos, também no

campo de esportes. (LONER, 1999, p. 144)

Assim, em Pelotas “segundo a hierarquia antes apontada, destacam-se

inicialmente os times de elite, como o: Brasil, Pelotas, Ideal, União, Rio Branco e

outros” (LONER, 1999, p. 144). No caso do E. C. Pelotas, fundado em 1908 da fusão

dos clubes C. S. Internacional, C. Esportivo e Foot-Ball Club (RIGO, 2004), é possível

observar, através da imagem 1, como de fato o clube começa sendo composto

exclusivamente por jogadores brancos.

Imagem 1: Equipe do S. C. Pelotas de 1912 que venceu uma série de jogos amistosos na região e

se auto-intitulou Campeã Estadual. (Revista Almanaque de Pelotas, 1917, p. 89).

Se parece consensual que o E. C. Pelotas surgiu com este viés elitista, o caso do

G. S. Brasil, fundado em 1911 (RIGO, 2004), merece maiores cuidados. Como

atualmente este clube é considerado popular, muitas vezes, isso produz a falsa

impressão de que essa característica o acompanha desde o seu nascimento. BOANOVA

(1997), por exemplo, afirmou que “a expressão ‘time de negros’ encontra no G. S.

Brasil uma assimilação, pois este time realmente contava com negros entre suas equipes

desde seu nascimento, sendo muitas vezes negros os ídolos da equipe” (BOANOVA,

1997, p. 17). Os trabalhos de Loner (1999) e Rigo (2004) apontam que essa

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característica popular não estava presente já na fundação. Loner (1999, p. 144) diz que:

[...] o G. S. Brasil, nascido de uma dissidência no time de empregados da

cervejaria Haertel, depois ficará conhecido como time "de negros", mas no

início isso não se configura em suas diretorias, em que apareciam nomes de

indivíduos da pequena burguesia, muitos deles filhos de imigrantes.

Apesar desse início, Rigo (2004, p. 151) coloca que:

Entre os times que disputavam o campeonato da Liga Pelotense de Foot-

Ball5, o Grêmio Esportivo Brasil logo se tornou o clube mais popular. Ele é

lembrado também como o primeiro clube desta liga que sê dispôs a aceitar

em seu grupo jogadores negros e mulatos. O depoimento concedido por Seu

Clóvis ressalta que, já em 1919, quando o Brasil venceu a primeira edição do

Campeonato Estadual, promovido pela federação Rio Grandense de

Desportos, fazia parte da equipe campeã o mulato Babá.

A imagem 2, mostra que o jogador mulato referido acima não estava presente

apenas em 1919, mas já em 1917 (o Babá é o segundo jogador em pé, da direita para a

esquerda).

5 Que começa a ser disputada em 1913 (RIGO, 2004, p. 87).

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Imagem 2: Equipe do G. E. Brasil, campeã da cidade em 1917. (Revista Brasil Gigante.

Edição da ORPAL – Org. de Pub. E Emp. Prom. Ltda. (Dir.) Edson, Pires. n. 1. 1971.).

Rigo (2004, p. 152) ainda comenta que “se a presença isolada do mulato Babá

na equipe de 1919 pode ser vista apenas como mais uma exceção à regra, o mesmo não

se pode dizer das equipes que o clube formou um pouco mais tarde”. Este tema, do

momento em que os clubes comentados passaram a aceitar mais atletas negros, voltará a

ser debatido mais adiante. Neste momento, o que fica explícito é a relutância inicial dos

principais clubes pelotenses em aceitar jogadores negros. É nesse contexto que surge a

Liga José do Patrocínio. Loner (1999, p. 144) assinala que:

a Liga José do Patrocínio foi fundada em 10/6/1919, congregando times

negros da cidade e mantendo sua existência pelas próximas duas décadas.

Faziam parte dela os clubes Juvenil, América do Sul, Universal, Vencedor,

União Democrata e Luzitano.

Rigo (2004, p. 150) também corrobora o surgimento dessa liga e o caráter que

ela irá assumir, fazendo ainda algumas considerações sobre o quadro excludente que

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antecede a sua criação ao colocar que:

como resultado do acúmulo dessas experiências de resistência e de

contraposição à perpetuação exclusiva de um futebol branco e de elite,

fundou-se em Pelotas, em 1919, a “Liga José do Patrocínio”, que logo se

tornou conhecida como ‘a liga dos negros’. No primeiro ano de sua

existência, fizeram parte de seu campeonato as seguintes equipes: ‘América

do Sul, Juvenil e Vencedor’.

Na imagem 3, é possível ver, se feita uma comparação com as outros duas

imagens mostradas, o contraste entre os clubes (brancos) da Elite do futebol Pelotense e

os clubes (negros) da Liga José do Patrocínio, nas primeiras décadas de prática do

futebol em Pelotas.

Imagem 3: Equipe do S. C. Juvenil que disputava a Liga José do Patrocínio, em 1922 (A Alvorada,

15/11/1931).

Nesse ponto da discussão, sobre o surgimento do futebol em Pelotas e os

primeiros conflitos, que acabaram opondo a Liga (Branca) Pelotense de Foot-Ball e a

liga (Negra) José do Patrocínio, cabe uma reflexão em relação às fontes. Os vestígios

trazidos nesta pesquisa pretendem demonstrar a existência de preconceito na elite do

futebol pelotense, nas primeiras décadas do século XX. Porém, isso pretende ser

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discutido a partir da percepção da não-existência de negros nos clubes da elite e da

investigação dos caminhos percorridos por eles para continuarem praticando o esporte,

como no caso da Liga José do Patrocínio. É fundamental que se diga que não foram

encontradas fontes que relataram um episódio claro, visível de negação da prática do

esporte a um negro. Nesse ponto, percebe-se como os silenciamentos estão presentes na

relação entre história e memória. Sobre essa questão Le Goff (1992, p. 109) lembra que:

a reflexão histórica se aplica hoje à ausência de documentos, aos silêncios da

história. (...) Falar dos silêncios da historiografia tradicional não basta; penso

que é preciso ir mais longe: questionar a documentação histórica sobre as

lacunas, interrogar-se sobre os esquecimentos, os hiatos, os espaços brancos

da história. Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a

história a partir dos documentos e das ausências de documentos.

É dessa forma que esta pesquisa irá se relacionar com as fontes. Procurará

perceber na ausência do negro, a maior prova do preconceito velado ao qual este grupo

era submetido nas décadas posteriores à abolição.

Voltando ao debate sobre a Liga José do Patrocínio, os clubes da Liga, além

das suas funções esportivas, pareciam ter um papel importante na reunião de membros

da comunidade negra pelotense, dados os inúmeros convites para bailes que faziam6.

Mas foi em um episódio, a princípio alheio ao futebol, através do qual esta

Liga mostrou cumprir um papel social que extrapolava o âmbito desportivo. A matéria

de jornal abaixo se trata de um protesto contra um caso de preconceito que havia

ocorrido e que tinha sido negado por outro jornal da cidade. O interessante dessa fonte

não é saber qual foi o episódio que gerou a denúncia, pois por não ter relação com o

futebol seria tema para outro estudo. O que é importante é que o representante da Liga

José do Patrocínio foi o primeiro a assinar a moção de protesto, o que demonstra que a

instituição interferia a favor dos negros, também em outras esferas e não apenas no

futebol.

Preconceito de Casta - Moção de solidariedade das Associações e dos

homens de cor desta cidade, ao periódico Porto-Alegrense ‘O Exemplo’. Nós

abaixo firmados declaramos ao público em geral que estamos em plena

solidariedade aos artigos publicados no ‘O Exemplo’, semanário que se edita

6 É possível citar, como exemplo, as matérias do A Alvorada de 3 de abril de 1932 (p. 7), de 10 de julho

de 1932 (p. 2) e 14 de agosto de 1932 (p. 8), que convidam para os bailes organizados, respectivamente,

pelos clubes Sport Club Juvenil, S. C. Universal e S. C. América do Sul.

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em Porto Alegre sobre o caso dos preconceitos de raça, existentes no Teatro 7

de Abril. O Vespertino local ‘A Opinião Publica’, um dos porta-vozes dessa

seleção, entretanto, no dia 12 do corrente, teve o desplante de negar a

existência do preconceito de cor, da parte da empresa Xavier & Santos e da

própria sociedade pelotense; e tudo vem demonstrando o contrário. Pelotas,

12 de Julho de 1927. Jose Antonio Ferreira da Silva, pela Liga de Foot Ball

José do Patrocínio; Alcides [...]7 Firma Reconhecida (O Libertador,

16/07/1927, p. 4).

Pode-se relacionar este indicativo de que o futebol também foi um instrumento

de organização dos negros naquele período, com as considerações sobre o significado

social do futebol no Brasil feitas por DaMatta (1994, p. 16-17), quando ele comenta que

o futebol é/foi importante para a sociedade brasileira:

Primeiro porque ele é um formidável código de integração social. De fato, o

futebol ajuda uma coletividade altamente dividida internamente a afirmar-se

como uma coletividade capaz de atuar de modo coordenado, corporadamente

e de eventualmente vencer. Ora, essa experiência com uma organização

coletiva com a qual podemos nos identificar abertamente e que opera para

nosso deleite e benefício é muito rara no mundo diário brasileiro, um

universo onde as instituições públicas estão, há décadas, desmoralizadas pela

inflação e por práticas sociais clientelísticas e personalistas desconcertantes,

difundidas por todos os partidos políticos e irremovíveis. Uma segunda

dimensão do futebol como força integrativa é a sua capacidade de

proporcionar ao povo, sobretudo ao povo pobre e destituído, a experiência da

vitória e do êxito. Essa vitória que o mundo moderno traduz com a palavra

mágica ‘sucesso’ e que o sistema social hierarquizado e concentrador de

riqueza do Brasil faz com que poucos possam experimentar. Mas através do

‘jogo de futebol’ as massas brasileiras podem experimentar vencer com os

seus times favoritos. [...] Finalmente, o futebol proporciona à sociedade

brasileira a experiência da igualdade e da justiça social. Pois, produzindo um

espetáculo complexo, mas governado por regras simples que todos

conhecem, o futebol reafirma simbolicamente que o melhor, o mais capaz e o

que tem mais mérito pode efetivamente vencer. Que a aliança entre talento e

desempenho pode conduzir à vitória inconteste. E, melhor que tudo, que as

regras valem pra todos. Para os times campeões e para os times comuns, para

ricos e pobres, para negros e brancos, e para os sãos e os doentes. Nesse

sentido profundo o futebol dá uma potente lição de democracia. [...] Além

disso, [...] tal afirmação das regras do jogo conduz a uma alternância entre

vitoriosos e perdedores que, projetada na vida social, é a base da mais

autêntica experiência democrática. [...] Aprende-se, pois, que a alternância na

glória é a glória da alternância – base da igualdade e da justiça modernas.

Para mim, é a mais bela lição de igualdade que um povo massacrado pela

injustiça pode receber.

Talvez em parte pelas manifestações de inconformidade das entidades e dos

grupos negros pelotenses e também, em boa parte, pelo movimento que estava em

7Seguem-se várias outras assinaturas.

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marcha por todo o país, o fato é que, com a proximidade dos anos 30, os negros foram

gradualmente sendo mais aceitos nas principais equipes de futebol de Pelotas. Porém os

reflexos deste quadro excludente inicial, que este trabalho pretendeu analisar, ainda

podem ser percebidos, como nos recentes casos de injúria racial ocorridos no futebol

brasileiro e mundial.

Para além de um simples esporte, o futebol deve ser percebido, ainda mais no

caso brasileiro pela dimensão da prática, como uma manifestação cultural que, como as

demais, está em constante relação circular, influenciando e sendo influenciada, com as

demais facetas sociais e que, por isso, é um importante e privilegiado objeto de estudo.

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