financiamento indireto da seguridade social
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MARCOS SÉRGIO DE SOUZA
FINANCIAMENTO INDIRETO DA SEGURIDADE SOCIAL
MESTRADO EM DIREITO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
SÃO PAULO − 2005
MARCOS SÉRGIO DE SOUZA
FINANCIAMENTO INDIRETO DA SEGURIDADE SOCIAL
Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Previdenciário, sob orientação do Professor Wagner Balera.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
SÃO PAULO − 2005
BANCA EXAMINADORA
_________________________
_________________________
_________________________
DEDICATÓRIA,
A Deus, que me mostra em todos os
momentos a verdadeira essência do
seu amor.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por tudo.
Ao Professor Doutor Wagner Balera, com
todos os aplausos por saber ensinar.
Aos meus amigos do Curso de Mestrado,
pela perseverança acadêmica.
A todos, minhas sinceras homenagens.
RESUMO
Estuda a evolução histórica da seguridade social, seu financiamento
indireto e sua natureza, sob a perspectiva da relação jurídica que se estabelece
entre o gestor e os beneficiários do sistema. Através de um estudo analítico,
aprofunda a temática da seguridade social e sua estrutura constitucional.
Inicialmente, enfoca a visão constitucional essencial dos princípios da
seguridade social e, a seguir, aborda as colisões a direitos fundamentais e os
mecanismos para a neutralização jurídica do financiamento indireto da
seguridade social, que passam pelo desinteresse do Estado em cumprir sua
obrigação constitucional. Para melhor entender o financiamento da seguridade
social, discute a efetividade constitucional e conclui pela necessidade de uma
eficaz ação do Poder Executivo que coadune os princípios da seguridade
social com o financiamento indireto. Verifica se a expectativa de um melhor
financiamento ocorreu no pós-Carta Magna de 1988, com as novas diretrizes
traçadas pelo legislador pátrio no campo da seguridade social. Nesse sentido,
analisa o Poder Público em relação às regras jurídicas do regime
previdenciário e como o ambiente digital que está difundido nas organizações
exige dos seus gestores eficácia nas decisões, que permita o cumprimento de
sua parte no financiamento da seguridade social.
ABSTRACT
This essay studies the historical evolution of the social security, its indirect
financing and nature, under the perspective of the juridical relationship that
settles down between the manager and the beneficiaries of the system.
Through an analytic study, it deepens the thematic of the social security and
its constitutional structure. Initially it focuses the constitutional and essential
vision of the principles of the social security and after it approaches the
collisions to fundamental rights and the mechanisms for the juridical
neutralization of the indirect financing of the social security mainly due to the
indifference of the State in accomplishing its constitutional obligation. For
better understanding the financing of the social security, it discusses the
constitutional effectiveness and concludes by the need of an effective action
of the Executive Power that conforms the principles of the social security with
the indirect financing. It verifies if the expectation for a better financing
happened after the 1988 Constitution with the new guidelines traced by the
legislator in the field of the social security. In that sense, it analyzes the Public
Power in relation to the juridical rules of the social security regime and how
the digital atmosphere that is diffused in the organizations demands from its
managers effectiveness in the decisions that allows the execution of its role in
the financing of the social security.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................ 1
1 SISTEMA DA SEGURIDADE SOCIAL...................................................... 4
1.1 Conceito de seguridade social................................................................. 4
1.2 Autonomia da seguridade social ........................................................... 14
2 ANÁLISE HISTÓRICA DA SEGURIDADE SOCIAL ............................. 21
2.1 Evolução histórica da seguridade social ............................................... 21
2.1.1 Idade antiga .................................................................................. 23
2.1.2 Idade média .................................................................................. 25
2.1.3 Revolução francesa – assistência pública .................................... 28
2.1.4 Revolução Industrial – previdência social ................................... 30
2.1.5 Advento da seguridade social ...................................................... 33
2.1.6 Necessidades individuais com complicações sociais .................. 38
2.2 Evolução histórica da seguridade social no Brasil................................ 40
2.2.1 Primeiras legislações brasileiras de seguro social ....................... 42
2.3 A previdência e o sistema constitucional brasileiro.............................. 45
2.3.1 Constituição da República de 1891 ............................................. 45
2.3.2 Constituição de 1934.................................................................... 47
2.3.3 Constituição de 1937.................................................................... 48
2.3.4 Constituição de 1946.................................................................... 48
2.3.5 Constituição de 1967.................................................................... 49
2.3.6 Emenda Constitucional n. 1/1969 ................................................ 50
2.3.7 Constituição de 1988.................................................................... 51
3 FUNDAMENTO DE VALIDADE DE UMA ORDEM NORMATIVA.... 57
3.1 A questão do fundamento de validade .................................................. 57
3.2 Validade e eficácia ................................................................................ 62
3.3 Teoria da norma fundamental e doutrina do direito natural ................. 64
3.4 Jurisprudência ....................................................................................... 66
3.5 Lacunas do direito ................................................................................. 68
4 FINANCIAMENTO INDIRETO DA SEGURIDADE SOCIAL ............... 72
4.1 Financiamento indireto da saúde........................................................... 90
4.1.1 Retrospecto histórico ................................................................... 90
4.1.1.1 Período de 1974 a 1979........................................................... 90
4.1.1.2 Período de 1980 a 1986........................................................... 93
4.1.1.3 Período de 1987 a 1990........................................................... 97
4.1.1.4 Período posterior a 1990 ....................................................... 100
4.2 Financiamento indireto da assistência social ...................................... 118
4.2.1 Retrospecto histórico ................................................................. 118
4.3 Orçamento público e o financiamento indireto................................... 130
5 CONCLUSÕES.......................................................................................... 147
BIBLIOGRAFIA........................................................................................... 150
ANEXOS....................................................................................................... 159
EMENDA CONSTITUCIONAL N. 29,
DE 13 DE SETEMBRO DE 2000 ............................................................ 159
EMENDA CONSTITUCIONAL N. 31, 14 DE DEZEMBRO DE 2000. 164
RESOLUÇÃO N. 121 DO CONSELHO NACIONAL
DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, DE 1º DE AGOSTO DE 1996................. 167
RESOLUÇÃO N. 322 DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE,
DE 8 DE MAIO DE 2003 ......................................................................... 169
INTRODUÇÃO
A proposta deste trabalho é o estudo do financiamento indireto da
seguridade social.
A expectativa atual é que os entes políticos, em virtude das exigências
previstas na Constituição Federal de 1988, cumpram suas obrigações
financeiras para com a seguridade social.
O orçamento da seguridade social compreende todas as entidades e
órgãos a ela vinculados, da Administração direta ou indireta, bem como os
fundos e fundações mantidos pelo Poder Público.
O artigo 195 da Constituição Federal estabelece que seguridade social
deva ser financiada por toda sociedade, de forma direta e indireta, nos termos
da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
O constituinte não fixou o percentual com o qual cada ente federativo
deve contribuir matéria que depende de definição legal. Não há, assim, a
garantia de um percentual fixo das receitas a ser destinado ao financiamento
da seguridade social.
Inicialmente, a Lei de Diretrizes Orçamentárias fixa as metas e
prioridades para a gestão da seguridade social e, depois, a lei orçamentária
2
estabelece a parcela do orçamento público destinada ao cumprimento dessa
finalidade.
É certo que certa parcela do orçamento deve ser consignada à
seguridade, mas não se sabe bem qual é o percentual correspondente a essa
parcela, mas somente que deve ser definida pelo orçamento de cada pessoa
política, o que efetivamente não está ocorrendo.
O objetivo principal da desvinculação entre o orçamento fiscal e o
orçamento da seguridade social é a garantia de que os recursos orçados para
os órgãos ou entidades que atuam nesse segmento não sejam destinados para
outros fins, sob pena de responsabilidade.
Já se percebe que neste trabalho será adotado o posicionamento de
cobrar dos entes federativos a obrigação em relação ao financiamento indireto
da seguridade social.
O Capítulo II da Constituição trata da seguridade social em seu artigo
194, que assim disciplina:
“A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinados a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.”
É importante destacar que os direitos somente serão assegurados se as
ações implementadas indicarem a fonte de recursos que financiará o programa
de trabalho fixado para a seguridade social. Caso contrário, os indicadores
sociais do Brasil continuarão apresentando resultados abaixo do desejado,
3
situação que somente será revertida se for implementado o processo de
planejamento.
O trabalho é constituído de introdução ao tema e cinco capítulos. A
introdução define o problema, os objetivos do trabalho, bem como as hipóteses
que norteiam a questão social e delimitam a estrutura e o campo de estudo.
No primeiro capítulo, estudaremos o conceito do sistema de seguridade
social, seus princípios e características voltadas ao aspecto do seu
financiamento.
No segundo, abordaremos a evolução histórica da seguridade social, as
primeiras legislações, bem como sua presença nas Constituições do Brasil.
No terceiro capítulo, definiremos a Teoria da Norma Jurídica, a questão
de sua validade e eficácia a sua proposição prescritiva.
No quarto, conceituaremos o financiamento indireto da seguridade
social e seus objetivos. Enfatizando a emenda Constitucional n. 29/00,
demonstrando a inovação da vinculação das verbas orçamentárias na área da
saúde , estudaremos o aspecto do orçamento público, caracterizá-lo como um
sistema de informações, seus princípios e suas contribuições, apresentaremos
um modelo conceitual de orçamento público e sua aplicação em os futuros
governos, como uma solução para o conflito existente em relação ao
financiamento indireto.
No quinto capítulo, faremos nossas considerações finais e destacaremos
nossa contribuição para a solução do problema enfocado.
1 SISTEMA DA SEGURIDADE SOCIAL
1.1 Conceito de seguridade social
Antes de analisar o problema do financiamento da seguridade
social, é necessário entender o sistema como um todo, penetrar no contexto da
seguridade social, descrevendo seu regime jurídico, que é peculiar.
A sua definição está na Lei de Organização e Custeio da
seguridade social (Lei n. 8.212/91), que assim qualificou o sistema:
“Artigo 1º - A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinadas a assegurar o direito relativo à saúde, à previdência social e à assistência social.”
Nesse sentido, Wagner Balera adverte que:
“A integração das áreas que, dentro e fora do aparelho governamental, recebem a incumbência de satisfazer certos direitos sociais implica a racionalização da atividade administrativa, permitindo, destarte, melhor aproveitamento das particulares formas de proteção pelos usuários.”1
A seguridade social consubstancia-se em matéria estritamente
complexa, situada na área das ciências humanas, a envolver relação entre o
homem, a sociedade e fatores diversos, individuais, coletivos, sociais,
econômicos, políticos e ordenamento jurídico vigentes, entre outros.
Celso Barroso Leite associa a seguridade à idéia de tranqüilidade
que a sociedade deve garantir aos seus membros e também que:
1 Wagner Balera, Sistema de seguridade social, p. 13.
5
“A seguridade social deve ser entendida e conceituada como o conjunto de medidas com as quais o Estado, agente da sociedade, procura atender à necessidade que o ser humano tem de segurança na adversidade, de tranqüilidade quanto ao dia de amanhã.”2
Ilídio das Neves em uma excelente observação exprime a missão
fundamental da seguridade social:
“É assegurar de forma organizada a proteção dos cidadãos contra determinados riscos da existência, pois se considera que os seus efeitos danosos não interessam apenas individualmente às pessoas, mas também à sociedade no seu todo.”3
Por sua vez, Wagner Balera, com base na Constituição Federal
brasileira, conceitua seguridade social como o “conjunto de medidas
constitucionais de proteção dos direitos individuais e coletivos, concernentes
à saúde, à previdência e à assistência social”.4
José Manuel Almansa Pastor define seguridade social como
sendo:
“El instrumento estatal específico protector de necessidades sociales, individuales y colectivas, a cuya protección preventiva, reparadora y recuperadora tienen derecho los individuos, en la extensión, limites y condiciones que las normas dispongan, segun permite su organización financiera.”5
Portanto, a finalidade específica da seguridade social é a
libertação do homem da indigência e da miséria, objetivo concretizado pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral
das Nações Unidas de 10 de dezembro de 1948.
2 Celso Barroso Leite, Conceito de seguridade social, p. 17. 3 Ilídio das Neves, Direito da segurança social..., p. 19. 4 Wagner Balera, A seguridade social na Constituição de 1988, p. 34. 5 José Manuel Almansa Pastor, Derecho de la seguridad social, p. 63.
6
As finalidades da seguridade social foram enumeradas pela
Organização Internacional do Trabalho no final da década de 1950, e são as
seguintes:
“a) cobrir de maneira completa e coordenada todas as eventualidades capazes de levar o trabalhador, sem culpa sua, a perder o salário, temporária ou definitivamente, completando essa proteção pela assistência médica e pelos abonos familiares; b) estender a proteção a todas as pessoas adultas, na medida de sua necessidade, e aos seus dependentes; c) prover prestações que, embora de montante moderado, permitam aos beneficiários manter nível de vida aceitável, e que sejam outorgadas em virtude de um direito nitidamente definido em lei; d) financiar o sistema por métodos tais que tornem o beneficiário suficientemente consciente do custo das prestações que recebe, aplicando amplamente o princípio da solidariedade entre os pobres e ricos, entre pessoas que gozam saúde e aqueles de saúde abalada, entre homens e mulheres, entre pessoas em atividade e os velhos demais ou jovens demais para trabalhar.”6
Essas finalidades formam, segundo José do Reis Feijó Coimbra7,
a concepção da função do Estado, assim desenhada de forma a abrir espaço
para intervir na economia, no sentido de ser responsável pela proteção dos
membros da coletividade atingidos por contingências que eliminam ou
diminuem sua capacidade de auto-sustentação. Se essas contingências têm
repercussão social e causam necessidades, e se o futuro amedronta a todos
que dependem do próprio trabalho para sobreviver, o Estado, como principal
artífice do bem-estar e da justiça sociais, tem responsabilidade pela proteção,
em face dessas ocorrências.
Como resultado, receptiva se torna a consciência da coletividade
à idéia de que o bem comum é o fim do Estado, cabendo a este disciplinar os
interesses individuais, conciliando-os com os da sociedade. Nesse sentido, a
6 Celso Barroso Leite e Luiz Paranhos Velloso anotam que a tradução para o vernáculo desses
objetivos foi publicada na Revista dos Industriários, n. 70, ago. 1959 (Previdência social, p. 76). 7 José dos Reis Feijó Coimbra, Direito previdenciário brasileiro, p. 7.
7
ação dos governos já não se limitaria, portanto, à garantia dos direitos civis e
políticos, à ordem interna e defesa do país na esfera internacional, devendo
voltar-se para a proteção de outros direitos, denominados então de sociais e
econômicos.
Para Wagner Balera, tendem ao “objetivo último da justiça social
todas as políticas sociais que, com instrumental da seguridade social, o Estado
e a sociedade implementarão, em obediência aos comandos do Estatuto
Fundamental”.8
Analisando a Carta Magna e os ensinamentos aqui discutidos,
somos levados a concluir acerca da existência de um regime jurídico típico e
que as normas jurídicas que tratam da seguridade social são unidas pela
finalidade de seu objeto, a razão de existir do próprio sistema protetivo, e
então tanto a proteção quanto o custeio devem estar sob a égide do princípio
da contrapartida.
Esse preceito constitucional previsto no parágrafo 5º do artigo
195 da Constituição Federal de 1988, é a pedra de toque de todo o conjunto de
normas constitucionais relacionadas ao financiamento. O dispositivo citado
revela a existência de um regime jurídico específico para a seguridade social
e, nessa condição, não pode ser desintegrado ou recortado pelos que tratam
das prestações, por um lado, e pelos que tratam do custeio, de outro lado, uma
vez que não é possível compreender o que será necessário para o custeio de
um conjunto de prestações se não soubermos o quanto será gasto.
8 Wagner Balera, Sistema de seguridade social, p. 16.
8
Muito menos será possível defender a extensão subjetiva ou
objetiva de prestações se não tivermos a noção do caixa e dos recursos que
para ali devem ser destinados.
A Organização Internacional do Trabalho definiu nos seguintes
termos os objetivos da seguridade social:
“39 - No nosso entender, a seguridade social tem objetivos mais amplos que prevenir ou aliviar a pobreza. Ela constitui resposta a uma aspiração de segurança no sentido mais abrangente. Seu propósito fundamental é dar aos indivíduos e às famílias a tranqüilidade de saber que o nível e a qualidade de sua vida não serão significativamente diminuídos, até onde for possível evitá-lo, por nenhuma circunstância econômica ou social. Para isso é preciso não só atender às necessidades, à medida que surjam, mas também começar por prevenir os riscos e, ao mesmo tempo, ajudar os indivíduos e as famílias a se adaptarem da melhor maneira a qualquer incapacidade ou situação desfavorável não evitada ou que não teria sido possível evitar. Por isso, a seguridade social não depende apenas de dinheiro, mas também de extensa gama de serviços sociais e de saúde(...). O que verdadeiramente importa é permitir a segurança, e não os procedimentos que venham a ser escolhidos para esse efeito: custeio mediante contribuições ou impostos, benefícios ou serviços e entidades públicas ou privadas e de fins lucrativos ou não. Considerações de eficiência econômica e de participação, a tradição nacional, o maior ou menor grau de aceitação pelos usuários e a existência de determinadas instituições podem fazer com que em determinado país algumas modalidades sejam mais indicadas que outras. Mas não devemos confundir os meios com os fins.”9
Importante refletir que o sistema social é constituído por toda a
sociedade brasileira, com destaque para a classe trabalhadora e os
aposentados e pensionistas, e que se busca uma forma de financiamento eficaz
visando garantir os direitos da seguridade social.
Nos dias atuais, são as reformas sociais de base o instrumento
maior de que dispõe a sociedade brasileira para se libertar do Estado opressor,
9 Celso Barroso Leite, Conceito de seguridade social, p. 19.
9
cujos efeitos incidem sobre os trabalhadores e os aposentados e pensionistas
do sistema previdenciário.
É necessária uma maior participação da comunidade nos seus
destinos, o que implica, conseqüentemente, em acesso a mais direitos e
aumento da cidadania.
O país atualmente suporta um ônus de aproximadamente 5.600
sistemas previdenciários diferentes. Senão, vejamos:
• Regime Geral de Previdência Social (RGPS), mantido pelo
INSS para os trabalhadores em geral (um único regime);
• Previdência do servidor da União (um único regime);
• Previdência dos servidores de cada Estado, com normas
diferenciadas (27 Estados);
• Previdência dos Municípios, que têm autonomia para
legislar sobre sua própria previdência (± 5.560 municípios);
• Previdência dos militares (um único regime).
Leny Xavier de Brito e Souza, analisando o tema, esclarece que:
“São previdências demais para um só país. Com essa implantação indiscriminada de sistemas sem um estudo atuarial sério de sua viabilidade, no momento de ‘pagar a conta’, ou seja, de manter benefício prometido, a entidade, não conseguindo honrar esse compromisso, corre a solicitar ‘repasse’ da União. Se a União não ajudar, esses diversos sistemas não terão arrecadação suficiente para manter suas aposentadorias e pensões.”10
Não podemos aceitar essa situação, precisamos recuperar a
seguridade social como instrumental moderno e condizente com a realidade
10 Leny Xavier de Brito e Souza, O servidor público e as suas múltiplas previdências sociais, p. 16.
10
socioeconômica brasileira, dela extirpando essa visão falaciosa da previdência
pública, difundida pelas classes dominantes, mediante um processo gradual de
aperfeiçoamento das instituições jurídico-políticas do Estado contemporâneo,
em prol das maiorias.
Necessitamos não só de uma técnica de controle social, mas
também de critérios de justiça e de utilidade das normas jurídicas para
sociedade como um todo.
O Estado, por meio de seus poderes constituídos, na qualidade de
representantes autênticos de toda sociedade, de auxiliares eficazes e eficientes
na execução das normas produzidas e de intérpretes e aplicadores das normas
respectivamente, não deve preocupar-se apenas com a execução das normas
produzidas, mas também, e com igual atuação, empenhar-se na produção de
direitos fora do quadro institucional (democracia participativa).
A Federação não pode continuar a gerir um sistema
desproporcional e irracional como o modelo atual, no qual o pagamento dos
benefícios é custeado pelos seus orçamentos, pois hoje muitos Municípios
deixam de aplicar em saúde e educação para pagar seus pensionistas.
Mesmo com o advento da Lei Complementar n. 101/2001 (Lei de
Responsabilidade Fiscal), muitos Municípios continuam gastando valores
elevados para pagar seus aposentados, além de não cumprirem sua parte no
financiamento indireto estipulado pelo artigo 195 da Constituição Federal.
Isso não significa que somos contra os pensionistas, ou mesmo
contra os 5.560 Municípios brasileiros, mas existe a necessidade impreterível
de uma reforma mais profunda no sistema, para o aperfeiçoamento de suas
11
instituições jurídico-políticas, colocando o planejamento orçamentário no seu
devido lugar.
O primeiro passo já foi dado para alterar o sistema atual. É óbvio
que essas alterações deverão ocorrer de forma gradativa, a exemplo da
Emenda Constitucional n. 20, de 15.12.1998, que representou enorme avanço,
separando os trabalhadores em dois grupos: “1º grupo: contribuintes do
regime geral (INSS); 2º grupo: todos os outros servidores, que a partir de
agora, terão de seguir as mesmas normas para chegar à aposentadoria.”11
As alterações mais polêmicas foram as seguintes:
• a entidade que não puder manter por sua própria
responsabilidade, um regime saudável para seus servidores,
deve vinculá-los ao regime geral;
• se quiser manter regime próprio, terá de instituir
paralelamente um plano de previdência complementar, para
o qual o servidor contribuirá com uma parte, e a instituição
com uma parte igual;
• servidor, para conquistar sua aposentadoria, terá de
comprovar 10 anos de serviço público, 5 anos no cargo, ter
idade mínima e cumprir “pedágio”.
A Portaria n. 4.882 do Ministério da Previdência Social, de 16 de
dezembro de 1998, esclarece no seu artigo 2º que:
11 Leny Xavier de Brito e Souza, O servidor público e as suas múltiplas previdências sociais, p. 17.
12
“Os regimes próprios de previdência social dos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios deverão ser organizados com base em normas gerais de contabilidade e atuarial, de modo a garantir o seu equilíbrio financeiro e atuarial, nos termos da Lei n. 9717, de 28 de novembro de 1998.”12
Conforme o artigo supra, houve mudança no sistema de
previdência do servidor, que não poderá mais deixar a garantia de sua futura
aposentadoria em mãos do Estado, sem sua supervisão. E a própria entidade
governamental já está se posicionando para que haja total transparência na
gestão do valor descontado dos servidores, a título de benefício futuro.
Importante destacar ainda que o sistema de seguridade social visa
os direitos sociais, quer positivados pelo legislador pátrio, quer ainda
provenientes do direito informal, que criaram uma consciência jurídica
resultante das necessidades sociais.
O sistema busca o direito justo, embasado em valores
socioculturais, visando o bem-estar da sociedade.
Aldemir de Oliveira, a propósito, lembra que:
“A aplicação da hermenêutica sobre a seguridade social não deve ficar adstrita tão-somente à interpretação positivista das normas jurídicas; deverá aprofundar sua exegética de forma mais exaustiva e ampla, sempre mais favorável aos segurados do sistema de seguridade social, tendo como princípio fundamental o pleno exercício da cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.”13
12 Em sua justificativa, o Ministro Waldeck Ornélas esclarece que se baseou no direito brasileiro
constitucional e infraconstitucional, tendo em vista as decisões do Supremo Tribunal Federal (REsp n. 1.265/AM, RE n. 114.352/ES, ADIn ns. 152/MG e 122/SC, entre outras) e ainda o disposto na Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998.
13 Aldemir de Oliveira, A previdência social na carta magna, p. 22.
13
Para operacionalizar a problemática do sistema da seguridade
social no Estado contemporâneo brasileiro, devemos estudá-la através de três
planos, como instrumento de uma ação prática:
• no plano epistemológico, em que cabe a análise axiológica
(valores sociais e psicossociais), “o direito que é” (direito
justo);
• no plano psicossocial, em que não podemos verificar apenas
a existência de representações jurídicas, mas de outras
manifestações da consciência jurídica da sociedade
provenientes dos movimentos sociais (novos sujeitos de
direito);
• no plano operacional, em que se montam as estratégias para
modificar ou afastar “o direito que não deve ser” (injusto) e
criar o direito “que deve ser” (justo).
A justiça social, por sua vez, é a materialização dos desejos e
aspirações das classes trabalhadoras, dos aposentados e dos pensionistas, ou
seja, a concretização do projeto popular.
A justiça política é o instrumento fundamental do Estado para
partilhar os bens construídos pela cooperação social, com o intuito de
erradicar o profundo dualismo social em que vive a sociedade brasileira.
A partir desses conceitos, verifica-se que a função social do
Estado é nitidamente focada: o Estado tem o dever de dirigir suas ações
concretas no sentido da consolidação de um Estado democrático e social para
toda a sociedade brasileira.
14
Esse Estado tem como princípio basilar erradicar a pobreza e a
marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais, como
instrumentais jurídico-políticos de eficácia plena.
Essa base sócio-constitucional, portanto, deve ser construída por
toda sociedade brasileira, possibilitando a criação de novos paradigmas para a
seguridade social, com a participação das classes trabalhadoras e dos
aposentados e pensionistas como participantes e agentes dessa transformação,
no processo da partilha social das riquezas produzidas.14
É certo que devemos buscar um sistema protetor mais eficaz,
com medidas mais efetivas de assistência e previdência social, ampliando o
alcance e a abrangência do amparo ao homem.
Em síntese, esse sistema protetor só se completará quando o
Estado cumprir sua parcela de financiamento de forma eficaz, separando em
cada orçamento a parte que cabe à seguridade social, cumprindo a norma
constitucional de financiamento indireto.
1.2 Autonomia da seguridade social
Segundo a teoria monista, o sistema de seguridade social
pertence ao direito do trabalho, sendo seu mero apêndice. Já para a teoria
dualista, o direito da seguridade social possui autonomia, não se confundindo
com o direito do trabalho.15
14 Aldemir de Oliveira, A previdência social na carta magna, cit., p. 24. 15 Marcus Orione Gonçalves Correia; Érica Paula Barcha Correia, Curso de direito da seguridade
social, p. 38-39.
15
A Constituição de 1988 estabeleceu que a seguridade social é
gênero, abrangendo a previdência social (arts. 200 e 201), a assistência social
(arts. 203 e 204) e a saúde (arts. 196 a 199), o que a torna totalmente
desvinculada do direito do trabalho, que teve suas regras incluídas no artigo 7º
do Capítulo II (Dos direitos sociais) do Título II (Dos direitos e garantias
fundamentais).
A seguridade social possui várias regras próprias, como as Leis
ns. 8.212/91 (Plano de Custeio), 8.213/91 (Plano de Beneficio), 8.742/92
(Assistência Social) e 8.080/90 (Saúde).16
Esse sistema tem função de estabelecer os mecanismos jurídicos
de vinculação de indivíduos à seguridade social, desenhar as prestações (em
dinheiro ou em serviços) oferecidas e as condições para o acesso às mesmas,
além de fixar as formas de financiamento do sistema protetivo.
No Diploma Maior, o artigo 193 foi instituído para inaugurar o
regime jurídico da seguridade social e funcionar como uma verdadeira chave
interpretativa de todo o sistema.17
Vários conceitos utilizados pela seguridade social não são
encontrados em outros ramos do direito, como o de segurado, salário de
benefício, salário de contribuição, auxílio-doença, renda mensal inicial etc.
Observa-se também que a seguridade social possui princípios
próprios18, elencados nos incisos I a VII do parágrafo único do artigo 194 da
Constituição.
16 Aristeu de Oliveira, Previdência social – Legislação, p. 33, 63, 278 e 302. 17 Wagner Balera, A seguridade social na Constituição de 1988, p. 32. 18 Wagner Balera esclarece que esses princípios são a base e a estrutura do sistema previdenciário
(Sistema de seguridade social, p. 21-24).
16
Destaca-se primeiramente o princípio da universalidade, que
abrange a cobertura e o atendimento de toda a população brasileira,
indistintamente. Nesse plano, brasileiros e estrangeiros aqui residentes devem
ser amparados pelo sistema de seguridade social.
O segundo princípio constitucional tem como objetivos a
uniformidade e a equivalência dos benefícios e dos serviços prestados às
populações urbanas e rurícolas.
Essa característica de uniformidade do sistema de seguridade
social é fundamental, porque cumpre a disposição constitucional de igualdade
de todos perante a lei, estabelecida no artigo 5º da Constituição Federal.
O terceiro princípio constitucional tem como objetivos a
seletividade e a distributividade na prestação dos benefícios e serviços, o que
requer do plano básico previdenciário benefícios que, além de serem
suficientes para atender às reais necessidades dos indivíduos, também sejam
compatíveis com a economia nacional e a redistribuição de rendas.
Esses critérios devem obedecer a uma escala salarial, conforme o
padrão social em que estão enquadrados os segurados do sistema
previdenciário. A finalidade objetiva outra diretriz constitucional, contida no
artigo 201, II da Carta de 1988.
O quarto princípio constitucional é a irredutibilidade do valor dos
benefícios, cujo objetivo é manter o poder real de compra de bens e serviços
dos indivíduos, em face das quedas salariais ocasionadas pelo fenômeno
inflacionário, que é cíclico na economia capitalista nacional.
17
O quinto princípio constitucional é a equidade na forma de
participação no custeio da seguridade social. Toda a sociedade deve participar
de forma direta ou indireta do financiamento do sistema nacional de
seguridade social.
O sexto princípio tem por objetivo a diversidade da base de
financiamento da seguridade social. O legislador objetivou que o
financiamento tivesse como base de cálculo múltiplos fatos geradores (trata-
se do denominado “pluralismo contributivo”) e fontes de recursos provindas
de todo a sociedade brasileira.
A Lei Orgânica da Seguridade Social (Lei n. 8.212, de
24.7.1991), que instituiu o plano de custeio, estabelece que, no âmbito da
Federação, o orçamento nacional será composto das receitas da União, das
contribuições sociais e de outras fontes. As contribuições sociais deverão ser
provenientes dos participantes diretos do sistema previdenciário nacional
(empregadores, trabalhadores, autônomos e facultativos).
Enfatizamos que a contribuição do Estado é proveniente, de
forma indireta, do orçamento fiscal, devendo ser fixado obrigatoriamente na
lei orçamentária anual o destino das verbas arrecadadas para tal finalidade, o
que de fato não está ocorrendo.
De outro lado, os empregadores deverão contribuir por meio de
parcelas que incidem sobre o faturamento bruto (Cofins), cujo índice foi
instituído pela Lei Complementar n. 70/91, e sobre o lucro líquido do imposto
sobre a renda, conforme alíquotas determinadas em lei.
18
O Estado deverá ainda arrecadar recursos para o sistema da
seguridade social pela denominadas cotas de previdência sobre receitas
líquidas dos concursos de prognósticos em todo território nacional. Ademais,
poderão integrar esses recursos as multas de serviços de arrecadação e
fiscalização, da prestação de outros serviços e do fornecimento ou
arrendamento de bens provindos de patrimônio industriais e financeiros,
oriundos de doações, legados, subvenções ou receitas provenientes de culturas
ilegais (psicotrópicos) e outros, determinados em lei.
O sétimo princípio é considerado uma das maiores conquistas da
sociedade brasileira, especialmente das denominadas “classes sociais”, e se
trata da presença de representantes diretos da sociedade civil como
participantes efetivos na direção e controle do sistema nacional de seguridade
social.
Observa-se que ficou assegurada constitucionalmente a
participação popular nas direções políticas dos colegiados de todos os
sistemas da seguridade social (saúde, previdência e assistência social), em
conjunto com os órgãos públicos, em substituição ao tradicional sistema
representativo, podendo-se dizer que se iniciou uma nova práxis da
democracia participativa, conforme amparo previsto no artigo 10, caput da
Constituição de 1988.
Destacado do artigo 194 e inserido no parágrafo 5º do artigo 195,
aparece o principio da contrapartida, fundamental para o sistema de
seguridade social, como lapidarmente ressalta Pedro Vidal Neto: “Não é
19
possível proporcionar benefícios e serviços sem a provisão de recursos
econômicos para sua efetivação.”19
Esse princípio, imerso no subsistema de seguridade social,
entrelaça inafastavelmente as prestações ao custeio, e se encontra positivado
no artigo 195, parágrafo 5º da Constituição Federal de 1988, que prescreve:
“Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado,
majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total.”
A regra da contrapartida pode ser observada por dois ângulos
distintos. De um lado, materializa-se na noção de dever de equilíbrio do
orçamento da seguridade social.
Ninguém pode supor que o ordenamento jurídico autorize o
descompasso entre metas a serem atingidas e recursos disponíveis, como
ensina Wagner Balera:
“É que, se o esquema engendrado pelo parágrafo 5º do artigo 195 da Constituição não admite a criação de nenhum benefício sem a correspondente fonte de custeio total, por simples aplicação do modus tollens deve carregar consigo a conseqüência natural de que, posta a fonte de custeio, já está criado o benefício. (...) Atentando para a construção lógica do chamado modus tollens percebe-se que, dado um condicional (se p então q), a negação do conseqüente (q) leva a negar também o antecedente. A regra da contrapartida ajusta-se a esse esquema lógico condição sem a qual o sistema não pode funcionar com equilíbrio.”20
O cumprimento desse princípio é essencial para a promoção do
equilíbrio do sistema de seguridade social, e assim o legislador só poderá criar
19 Pedro Vidal Neto, Natureza jurídica da seguridade social, p. 181. 20 Wagner Balera, Sistema de seguridade social, p. 55.
20
novas prestações de seguridade, aumentar o valor das já existentes ou ampliar
o espectro da universalidade subjetiva se houver expressa previsão em lei de
fontes de custeio para tais prestações.
Esses princípios devem ser levados à exaustão pelo Estado
(sociedade brasileira), através de seus agentes políticos da Administração
direta, também denominados “poderes constituídos”.
A seguridade social tem instituto próprio, ou seja, o Instituto
Nacional do Seguro Social e o Conselho Nacional de Seguridade Social.
O artigo 22, inciso XXIII da Constituição Federal dispõe que
compete privativamente à União legislar sobre seguridade social. Isso indica
que a seguridade social não é parte do direito do trabalho, pois do contrário o
legislador constituinte diria que a União iria legislar apenas sobre direito do
trabalho, e não sobre seguridade social.
Portanto, fica evidente sua autonomia, reforçando a idéia de que
um instituto autônomo deve ter seu próprio financiamento, e para mantê-lo os
entes federativos devem cumprir seu papel em relação ao financiamento
indireto através de seus orçamentos.
2 ANÁLISE HISTÓRICA DA SEGURIDADE SOCIAL
2.1 Evolução histórica da seguridade social
A análise histórica é para o nosso trabalho fundamental, dado que
as idéias e as posições doutrinárias base, num determinado momento, são, até
certo ponto, ou mesmo em grande parte, o resultado da evolução do
pensamento e da ação dos homens, das sociedades e dos Estados.
A origem das primeiras formas de proteção social confunde-se
com a própria existência do homem e de sua organização em família e
sociedade21. Isso porque, nos momentos de dificuldade, é da natureza humana
a necessidade de ajuda de seus pares. Nesse sentido, o homem precisa de
amparo na infância e na velhice e de ajuda médica na doença. Ele precisa de
ajuda financeira no desemprego, quando os encargos da família excedem os
meios para sustentá-la, e assim por diante.
As características atuais dos sistemas de segurança social e dos
respectivos ordenamentos jurídicos refletem sempre, em maior ou menor
escala, um processo evolutivo, um movimento dinâmico feito de mudanças,
de recuos e de progressos, em suma, das interações verificadas no decurso do
tempo.22
Segundo Ilídio das Neves:
“(...) análise histórica revela-se, no entanto, particularmente significativa num domínio como o do sistema e do direito da segurança social, não só por serem realidades relativamente recentes na Europa, onde surgiram há pouco
21 Celso Barroso Leite; Luiz Assumpção Paranhos Velloso, Previdência social, p. 32. 22 José dos Reis Feijó Coimbra, Direito previdenciário brasileiro, p. 1.
22
mais de 110 anos, mas também porque no atual debate acerca da sua crise e da necessidade de uma reforma, algumas propostas de reforço da intervenção de modalidades privadas, baseadas em seguros coletivos e em fundos de pensões geridos em capitalização, vêm, no fundo, a levantar a questão do reordenamento interno dos sistemas através de uma ponderação crítica daquela evolução, dos momentos mais significativos das mudanças verificadas e dos pressupostos técnicos e doutrinários em que se basearam as decisões tomadas.”23
O trabalho é a origem do sustento do homem. Segundo a Bíblia
Sagrada, no início da criação, disse Deus: “Do suor do teu rosto comerás o teu
pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; pois é pó e ao pó
tornarás”.24
Portanto, o sustento da família depende necessariamente do
trabalho e o protótipo de qualquer forma de seguridade social representa a
solidariedade das gerações, a responsabilidade do chefe em relação ao grupo,
a generalização da responsabilidade e a atividade de previsão.
No entanto, a capacidade da família, tanto econômica como
técnica, na luta contra o infortúnio, é limitada. Se não houver um médico na
família, a pessoa adoentada ficará sem amparo. Ou então, caso o chefe da
família perca o emprego, e nenhum outro membro estiver trabalhando, toda a
família ficará inevitavelmente em dificuldade.
O homem procurou, desde o passado mais remoto, associar-se
com seus semelhantes, formando grupos cada vez maiores e organizados, para
superar os efeitos de necessidades e adversidades que o desequilibrassem
moral e financeiramente. Com o decorrer do tempo, essa associação, que era
23 Ilídio das Neves, Direito da segurança social..., p. 147. 24 Bíblia Sagrada, Gên 3,19.
23
livre e calcada apenas no hábito e na solidariedade voluntária das pessoas,
passou a ser exigida por força de lei.
A evolução dos sistemas de proteção, até a seguridade social, é a
história da transferência gradual da responsabilidade, das pessoas para grupos
mais organizados e economicamente mais fortes, até se chegar ao Estado. É a
história ainda da ampliação dos riscos e necessidades de serem
compreendidos.
Celso Barroso Leite e Luiz Paranhos Velloso anotam que o
Estado:
“(...) trouxe para sua órbita o esforço coletivo que já se vinha empreendendo mediante o mutualismo, e assim surgiu o seguro social. Paralelamente, assumiu o estado o encargo de prestar, no todo ou em parte, em amplitude variável de país para país, pelo menos algumas formas de assistência a que a solidariedade de grupos ou simples espírito caritativo tinham dado origem desde tempos imemoriais; e dessa maneira surgiu a assistência pública, ou assistência social.”25
2.1.1 Idade antiga
Aguinaldo Simões revela que as notícias mais remotas de
comportamento humano preocupado com o bem-estar das pessoas advêm de
obras religiosas e literárias. Essa preocupação estaria presente na antiga
China, por meio dos ensinamentos de Confúcio; na antiga Índia, onde se
ligam a ela preceitos de budismo e fórmulas para se “curar doentes”; e entre
os hebreus dos tempos bíblicos.26
25 Celso Barroso Leite; Luiz Assumpção Paranhos Velloso, Previdência social, p. 31. 26 Aguinaldo Simões, Princípios da segurança social: previdência social e assistência, p. 70-71.
24
José do Reis Feijó Coimbra anota que:
“Como lembra Oscar Saraiva, as primeiras manifestações de proteção social se assinalam em épocas recuadas, pois em Teofrasto (228 a.C.), encontra-se referência à associação existente na Helade, cujos membros contribuíam para um fundo, à conta do qual era prestado socorro aos contribuintes que viessem a ser atingidos por adversidades.”27
Em Roma, existiram associações de finalidades similares,
dedicadas à proteção de seus membros, como indica Jefferson Daiber, ao lado
das instituições de caridade (Cód. Teodósio – 1.15.17.19 e 22 – De Sacros
Eccles).28
Mozart Victor Russomano complementa essas informações
considerando “razoável admitir-se que os agrupamentos profissionais da
Índia, dos hebreus e dos árias (indicados no Hamurabi) tivessem finalidades
assistenciais, ao lado da defesa dos interesses de seus integrantes”29. Essas
finalidades também existiam nas organizações profissionais dos pastores,
agricultores, barqueiros e soldados do antigo Egito.
Os gregos antigos, assim como os demais povos da época,
viviam sob a disciplina e o amparo da família, e esta sob a proteção de sua
religião e dos seus deuses domésticos, não se conhecendo naqueles remotos
tempos exemplo de assistência, e menos ainda de previdência fora das
primeiras organizações de trabalhadores na Grécia30, os “eranol”, quando
apareceram algumas normas de caráter assistencial e até mesmo um embrião
de socorro mútuo.
27 José dos Reis Feijó Coimbra, Direito previdenciário brasileiro, p. 2. 28 Jefferson Daibert, Direito previdênciário e acidentário do trabalhador urbano, Rio de Janeiro:
Forense, 1978, apud José dos Reis Feijó Coimbra, Direito previdenciário brasileiro, p. 2. 29 Mozart Victor Russomano, Curso de previdência social, p. 3. 30 Ibidem, p. 7.
25
Para José Manuel Almansa Pastor, as associações na
Antigüidade romana já tinham clara finalidade mutualista porque a sua
constituição exigia a união de pelo menos três indivíduos que se
comprometiam a contribuir periodicamente para a formação de um fundo
comum destinado especialmente à cobertura dos gastos com doença e morte.31
A exigência de contribuição periódica dos indivíduos
levou Mozart Victor Russomano também a destacar o caráter mutualista das
associações da antiga Roma.32
Anníbal Fernandes entende que mutualismo é a “forma de
associação baseado no princípio da reciprocidade de direitos e obrigações
entre os participantes”33. Ele se destina à proteção contra riscos, hoje melhor
designados como contingências sociais. O nascimento do mutualismo
propriamente dito será discutido no próximo item.
2.1.2 Idade média
A derrocada do Império Romano do Ocidente deu lugar
aos reinos bárbaros e ao feudalismo, mas a evolução sócio-econômica
também propiciou, no século X, o ressurgimento das trocas comerciais e o
incremento das concentrações urbanas, mesmo nas regiões em que a vida
rural era anteriormente dominante.
Nas novas cidades, a vida urbana levou o trabalho a outras
formas de cooperação e organização. Os artesãos associaram-se em guildas e
31 José Manuel Almansa Pastor, Derecho de la seguridad social, p. 85. 32 Mozart Victor Russomano, Curso de previdência social, p. 4. 33 Anníbal Fernandes, Mutualismo, sua origem, sentido e alcance, p. 67.
26
corporações de ofícios. As guildas eram associações de proteção mútua que
ampliaram o círculo de atuação dos artesãos, regulamentando e elevando o
seu trabalho ao nível de verdadeiras corporações profissionais. Influenciadas
pelos princípios cristãos da caridade e fraternidade, as guildas estimulavam a
solidariedade de seus membros, vinculando-se por laços de fraternidade e
assistência.
Diversas outras organizações foram criadas nos moldes das
guildas. Esclareça-se que o advento do cristianismo seguramente influenciou
o espírito da seguridade social, na medida em que suscitava a caridade, a
fraternidade e a solidariedade das pessoas, valores que passaram a ser grandes
norteadores da conduta humana.34
As corporações da Idade Média estavam estruturadas para
proteção de seus membros, pertencentes a uma determinada categoria e
localidade, das contingências sociais, tarefas hoje atribuídas ao Estado, tais
como a assistência médica e o auxílio-funeral. Elas não recebiam recursos do
Estado e nem tinham o caráter de compulsoriedade do seguro social moderno,
estando calcadas em um modelo que se denominou mutualismo.35
No século XIV, surgiu o seguro do transporte marítimo,
destinado a indenizar o navegador das perdas eventualmente sofridas nas
viagens empreendidas.
34 Aguinaldo Simões, Princípios de segurança social; previdência social e assistência, p. 72-73. 35 Segundo a doutrina pátria, o marco inicial da seguridade social é a legislação que consagrou pela
primeira vez o direito subjetivo à proteção social, a Lei dos Pobres da Inglaterra. (Wagner Balera, A seguridade social na constituição de 1988; Celso Barroso Leite e Luiz Paranhos Velloso, Previdência social; José dos Reis Feijó Coimbra, Direito previdenciário brasileiro).
27
Em 1601, foi instituída na Inglaterra a Lei dos Pobres, que
conferia a prestação de auxílio às pessoas comprovadamente necessitadas.
Essa Lei de 19 de dezembro de 1601, da Rainha Isabel I, criou contribuições
compulsórias, denominadas poor taxes, como fonte de custeio, que vigeram
por aproximadamente um século e meio.36
José dos Reis Feijó Coimbra esclarece que as formas de
proteção do trabalhador na Idade Média jamais lograram moldar um sistema
apoiado na solidariedade de toda uma categoria da população ou profissão.37
Os cidadãos ainda não tinham consciência de que um
eficiente e funcional sistema de proteção assistencial deveria se calcar em
normas jurídicas, a consagrar um direito individual contra o Estado. Até
porque o sistema jurídico vigente permitia ao Estado limitar sua condição de
obrigado, tanto do valor da obrigação, quanto da eleição do próprio credor38.
Esse sistema vigorou até a eclosão do liberalismo e da Revolução Francesa.
Há que se citar, também, como instituição que trouxe
subsídios à evolução histórica, mais especificamente da previdência social, a
caixa econômica, que substituiu os “pés-de-meia” de pequenas economias em
depósitos individuais, com a permissão de retiradas mensais.39
36 Marcos Orione Gonçalves Correia; Érica Paula Barcha Correia, Curso de direito da seguridade
social, p. 2. 37 José dos Reis Feijó Coimbra, Direito previdenciário brasileiro, p. 5. 38 Ibdem, mesma página. 39 Marcus Orione Gonçalves Correia; Érica Paula Barcha Correia, ob. cit., p. 3.
28
A primeira caixa econômica foi organizada em Hamburgo,
na Alemanha, em 1778, sendo posteriormente instituída na Inglaterra e nos
Estados Unidos, em 1816.40
Entretanto, mesmo anteriormente aos fatos já expostos, a
maior contribuição à matéria foi dada pelo seguro privado, fonte inspiradora
do seguro social. Ressalta-se que o seguro privado a prêmio, como contrato
aleatório, ficou bem caracterizado a partir do século XII. Da França,
recebeu o seguro embasamento jurídico próprio e, da Inglaterra, a estrutura
matemática, que se preocupou com a elaboração de estatísticas, tábuas
biométricas, cálculo das probabilidades, compensação e pulverização dos
riscos, e outras técnicas peculiares à ciência atuarial. Assim, estavam
criadas as condições técnicas indispensáveis ao aparecimento do seguro
social.41
2.1.3 Revolução francesa – assistência pública
A eclosão da Revolução Francesa e o advento da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada pela Assembléia
Constituinte da França em 27 de agosto de 1789, imprimiram um novo rumo
às formas de proteção social.
As corporações de ofício foram extintas, porém, no que
concerne à assistência social, elas já haviam sido substituídas pelas
sociedades mútuas, a partir da segunda metade do século XVIII.
40 João Gualberto de Oliveira, Caixas econômicas: economia e história, p. 17. 41 Marcus Orione Gonçalves Correia; Érica Paula Barcha Correia, Curso de direito da seguridade
social, p. 3.
29
Segundo José do Reis Feijó Coimbra, a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão “pareceu inscrever entre seus princípios
básicos a pedra fundamental da atual seguridade social”.42
Assim, o auxílio prometido aos necessitados passava a ser
uma dívida da sociedade, um direito do cidadão. Faltava para a inauguração
da seguridade social apenas o reconhecimento pela legislação desse direito,
uma vez que se teria, no rol dos direitos juridicamente protegidos do homem,
o de ser amparado pelo Estado nas situações de necessidade derivadas de um
risco social.
Tal reconhecimento, entretanto, não se deu logo após o
advento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão porque, à
primeira vista e pelos mais ortodoxos, poderia ser visto como contrário ao
liberalismo de base individualista que estava sendo inaugurado.
Qualquer medida de amparo estatal ao mais fraco seria
contrária ao pensamento à época dominante, qual seja, a de que o Estado
deveria eximir-se ao máximo da intervenção econômica. Mais tarde, ver-se-ia
que o problema do indivíduo acabaria refletindo na própria sociedade. Ou
seja, o direito individual era na verdade um problema da sociedade.
Aos poucos, houve o aperfeiçoamento do pensamento
dominante, no sentido de que os interesses individuais não poderiam
sobrepujar os interesses coletivos, sob pena de colocar em risco a estabilidade
social do país. Era imperativo que se legislasse em busca do equilíbrio das
relações do capital com o trabalho.
42 José dos Reis Feijó Coimbra, Direito previdenciário brasileiro, p. 6.
30
A intervenção do Estado na economia se fazia necessária à
proteção da liberdade do cidadão e à mantença dos três postulados
fundamentais da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade (ou
solidariedade).
Ao mesmo tempo, todos se conscientizavam de que o fim
do Estado era o bem comum e que os direitos individuais deveriam ser
disciplinados em conciliação aos direitos da sociedade.
Ao cabo dessa evolução de pensamentos, admitia-se que o
principal fim do Estado era o bem comum da sociedade. Era necessário que
ele interviesse na economia, a fim de garantir a segurança do cidadão.
Era dever social a aplicação de parcela da receita tributária
no auxílio aos desafortunados e em sua manutenção, quando isso não fosse
possível pelo próprio esforço. E, assim, o Estado Liberal se viu, aos poucos,
substituído pelo moderno Estado Democrático, verdadeiramente Estado
Social.
2.1.4 Revolução Industrial – previdência social
Com a Revolução Industrial do século XIX, houve a
introdução do uso em larga escala de máquinas, a transformar o modo e o
ritmo de produção econômica, fazendo surgir uma massa de trabalhadores que
viviam de baixos salários, sem gozar de nenhum tipo de estabilidade.
A falta de cobertura dos riscos sociais gerava angústia e
insegurança nos trabalhadores, que trataram de organizarem-se em sindicatos.
Os protestos e as greves, a postularem pela melhoria das condições de
31
trabalho, não tardaram a surgir. Os trabalhadores tinham a seu favor o poder
de voto.
Note-se que o Estado Liberal não encontrou meios de
efetivar práticas anteriores, de forma a substituir as obras de assistência e
previdência postas em prática pelas abolidas corporações de ofício e grêmios
organizados pelo cristianismo através dos séculos. O capitalismo passou a
dominar como sistema, dirigindo à sua vontade a lei da oferta e da procura,
criando um verdadeiro mercado de trabalho humano, tornando insuportáveis
as condições de vida.
Percebendo o vazio moral deixado pelas idéias liberais
revolucionárias, Napoleão, procurando dirimir os excessos da Revolução,
firmou com a Santa Sé, em 15 de julho de 1801, a concordata, que permitiu à
Igreja Católica o retorno à defesa dos trabalhadores desamparados e a
prestação de serviços a eles.43
Em 1869, o Parlamento da Confederação Norte, diante dos
graves problemas trazidos pelo desenvolvimento industrial na Alemanha,
convidou o chanceler Bismark a desenvolver um projeto de “seguro
operário”, apto a substituir a limitada assistência pública.44
Estudando as bases do sistema de cooperativa, do
mutualismo do seguro privado e do socorro mútuo, Bismarck e seus
colaboradores chegaram à conclusão de que, com respaldo em tais idéias,
43 Marcus Orione Gonçalves Correia; Érica Paula Barcha Correia, Curso de direito da seguridade
social, p. 4. 44 Ibidem, p. 5.
32
poderiam combater o socialismo e o capitalismo, em um só tempo, que
ameaçavam a estabilidade política do Império Alemão.
Como fruto de tal reflexão, Bismark instituiu na Alemanha
o seguro-doença (em 1883), custeado por contribuições dos empregados,
empregadores e Estado; o seguro contra acidentes (em 1884), custeado pelos
empresários; o seguro de invalidez e velhice (em 1889), também baseado na
contribuição tríplice. Todos esses seguros eram de filiação obrigatória pelos
trabalhadores que recebessem até 2.000 marcos anuais.45
O sistema de seguro social obrigatório alemão, idealizado
por Bismark, e constituído basicamente pelos três ramos vistos – seguro-
doença, seguro-acidente e seguro-velhice e invalidez – exerceu forte
influência nos seguros sociais obrigatórios, que rapidamente se espalharam
pela Europa, de 1885 a 1935. Tal sistema ficou conhecido como sistema
clássico de seguro social, caracterizado pela existência de um conjunto
heterogêneo e autônomo de seguros sociais.
O sistema de seguro social de Bismark é tido, pela maioria
dos autores, como marco histórico-legal da previdência social. E, de fato, pela
primeira vez na história, se tem, por imposição legal, uma articulação de
esforços entre o Estado, empresário e trabalhador, a formar uma técnica de
proteção direta a essa última classe.46
Oportunas as palavras de Wagner Balera:
45 Ilídio das Neves, Direito da segurança social..., p. 149. 46 Celso Barroso Leite; Luiz Assumpção Paranhos Velloso, Previdência social, p. 35.
33
“A previdência social é, antes de tudo, uma técnica de proteção que depende da articulação entre o Poder Público e os demais atores sociais. Estabelece diversas formas de seguro, para qual ordinariamente contribuem os trabalhadores, o patronato e o Estado e mediante o qual se intenta reduzir ao mínimo os riscos sociais, notadamente os mais graves: doença, velhice, invalidez e acidentes no trabalho.”47
2.1.5 Advento da seguridade social
Da instituição do seguro social obrigatório em 1883, na
Alemanha, que, repita-se, inaugurou a previdência social no mundo, até o
advento da seguridade social propriamente dita, Celso Barroso Leite e Luiz
Paranhos Velloso48 didaticamente distinguem três períodos:
O primeiro período estende-se de 1883 até 1918 (término
da Primeira Guerra Mundial), e corresponde à expansão da previdência social
nos países da Europa. O segundo período inicia-se em 1918, perdurando até
1945, e corresponde à universalização do seguro social obrigatório. E,
finalmente, o terceiro período, que se inicia com o final da Segunda Guerra
Mundial (1945) e caracteriza-se pela progressiva passagem da previdência
social para o que se convencionou chamar de seguridade social.
É claro que essa divisão é meramente didática, sendo até
intuitivo que a seguridade social não foi “programada”, mas sim concebida ao
longo do tempo pela influência dos fatos e documentos associados, cuja
intensidade nem sempre respeita a ordem ali indicada. Dessa didática divisão,
tem-se as duas guerras mundiais como marcos históricos representativos da
evolução da seguridade social.
47 Wagner Balera, Introdução à seguridade social, p. 31. 48 Celso Barroso Leite; Luiz Assumpção Paranhos Velloso, Previdência social, p. 36-39.
34
Isso ocorreu porque o momento de guerra em geral é
propício ao desenvolvimento dos sistemas de proteção social, em razão do
aumento da preocupação das pessoas com a segurança, e pelo
desenvolvimento tecnológico e industrial que os países em conflito
inevitavelmente acabam apresentando.
A seguir, indicaremos os principais fatos e diplomas
históricos referentes à evolução da seguridade social, começando pela
encíclica Rerum Novarum, editada pelo Papa Leão XIII em 1891, que defende
a intervenção do Estado na economia para a defesa do interesse comum e
implantação dos seguros obrigatórios.49
Debatendo a questão do intervencionismo estatal (e
decerto aprovando o seguro social bismarkiano), ela prega que:
“Assim como por todos estes meios o Estado pode tornar-se útil às diversas classes, pode igualmente melhorar muitíssimo a sorte da classe operária e isto em todo o rigor do seu direito e sem temer a censura de ingerência indébita, pois que, em virtude mesmo do seu ofício, o Estado deve servir o interesse comum. E é evidente que, quanto mais se multiplicarem as vantagens resultantes desta ação de ordem geral, tanto menos necessidade haverá de recorrer a outros expedientes para remediar as condições dos trabalhadores.”50
Em 1919, o tratado de Versalhes e a conseqüente criação
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) deram impulso à criação de
diversas convenções e recomendações internacionais, uniformizando e
difundindo as normas de seguro social. Essas medidas foram decisivas para a
construção do arcabouço jurídico da seguridade social.
49 Papa Leão XIII, Rerum Novarum sobre as condições dos operários, p. 5. 50 Marcus Orione Gonçalves Correia; Érica Paula Barcha Correia, Curso de direito da seguridade
social, p. 6.
35
Ainda em 1919, surge a Constituição de Weimar, que
confere dignidade constitucional à questão social, inaugurando a época do
constitucionalismo social, a substituir as velhas estruturas jurídicas baseadas
no individualismo. Sua importância para a seguridade social está traduzida
nas palavras de Wagner Balera:
“Velhas estruturas jurídicas baseadas no individualismo cedem passo, ante essa ordem na qual se acha colocado, como elemento subjacente, o solidarismo. Dali para frente caberá ao Estado atuar como agente no desenvolvimento social e, desse lugar de comando, sobrepor-se ao aleatório das situações concretas. Contando com o auxílio do planejamento – talvez sua principal arma tática – cumpre ao Estado providência engendrar, num sistema, a segura cobertura das terríveis contingências que deram causa à questão social.”51
O Social Security Act, de 1935, foi instituído nos Estados
Unidos durante o governo Roosevelt, como plano de resposta à grave crise
econômica do país, utilizou pela primeira vez a expressão seguridade social e
ganhou voga com a lei neozelandesa de 1938.
As duas leis são exemplos de um regime de grande
alcance, cobrindo os riscos biológicos e econômicos, baseado na fusão dos
princípios da assistência e do seguro.
A Carta do Atlântico, de 1941, dentre outras declarações,
afirmava o desejo “de lograr no campo da economia a colaboração mais
estreita entre todas as nações, com o fim de conseguir para todos melhoria nas
normas de trabalho, prosperidade econômica e seguridade social”. Em 1942, é
realizada, em Santiago do Chile, a Primeira Conferência Interamericana de
51 Wagner Balera, Introdução à seguridade social, p. 34.
36
Seguridade Social, ocasião na qual foi editada a Declaração de Santiago,
contendo os objetivos e o conteúdo da seguridade social.
O Reino Unido, como preparação de seu programa de
reconstrução para o pós-guerra, criou uma comissão interministerial, sob o
comando de Wiliam Beveridge, para preparar um plano unificando todos os
sistemas de seguro e de assistência social. Conforme anota José Almansa
Pastor, a Comissão Beveridge teceu críticas ao seguro social clássico,
oferecendo uma nova visão sobre o instituto, inspirada na libertação das
necessidades sociais pela adequada e justa redistribuição de renda. Com
efeito, o sistema de proteção social não poderia reduzir-se a um mero
conjunto de seguros sociais, devendo abranger a assistência social, um serviço
nacional de saúde, ajuda à família e seguros voluntários.52
O chamado Plano Beveridge, de 1942, concebeu um
seguro nacional, cujas características principais são: unificação e
homogeneidade dos seguros sociais, incluindo os acidentes de trabalho, que
devem abandonar a proteção baseada na responsabilidade empresarial;
unificação das contribuições, para a simplificação econômica e
administrativa, abrangendo todos os riscos; igualdade das prestações e das
condições para sua aquisição, atendendo mais às necessidades do que aos
riscos; dar caráter de serviço público à prestações da seguridade social;
universalização da cobertura e do atendimento; dever de pensar em outras
fontes de custeio, além do salário, devendo o Estado garantir a parte faltante.
52 José Manuel Almansa Pastor, Derecho de la seguridad social, p. 73-74.
37
O Plano Beveridge foi publicado em dezembro de 1942,
pouco antes do Natal, e algumas semanas após a batalha de El Alamein, que
se travou no deserto do norte da África.53
A imprensa popular teria, inclusive, cunhado a seguinte
frase para definir o plano: from the cradle to the grave (do berço ao túmulo),
em uma alusão à cobertura de todas as necessidades humanas, desde o
nascimento, até a morte.
Houve imediato reconhecimento popular de que o plano
era dirigido a uma Inglaterra mais igualitária, e Beveridge rapidamente viu
sua popularidade crescer.
Entretanto, o Partido Conservador logo se manifestou
contrariamente, considerando o plano por demais distanciado da realidade.
Além do Plano Beveridge, as recomendações da
Organização Internacional do Trabalho sobre garantia dos meios de
assistência médica (Declaração de Filadélfia, de 1944) atraíram atenção geral
quanto a: estender a seguridade social à totalidade da população; reconhecer a
unidade essencial das funções de garantia dos meios de vida, que até então
figuravam em regimes diferentes; reconhecer a unidade essencial dos serviços
sanitários preventivos e curativos; conceder benefícios iguais, pelo menos ao
mínimo vital, compreendendo o salário-família; manter os princípios do
seguro e especialmente o da contribuição dos segurados; reconhecer que a
seguridade social não é possível sem uma política de pleno emprego e não
constitui mais que uma parte da campanha total para a liberação da
53 Marcus Orione Gonçalves Correia; Érica Paula Barcha Correia, Curso de direito da seguridade
social, p. 9.
38
necessidade; prever serviços complementares de assistência social, a fim de
cobrir as necessidades não satisfeitas pelo seguro social.54
A idéia de seguridade social idealizada pelo Plano
Beveridge foi imediatamente acolhida por todos os governos e povos do
mundo livre, exercendo influência sobre a legislação da Commonwealth, dos
Estados Unidos antes do fim da guerra, dos países da América Latina, assim
como de países como Índia, Turquia e Egito.
Finalmente, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos aprovada pela Organização das Nações Unidas estatuiu em seu
artigo 22 que “toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à
seguridade social e a obter, mediante o esforço nacional e a cooperação
internacional, levados em conta a organização e os recursos de cada Estado, a
satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua
dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade”.
Em 1952, a Conferência Internacional do Trabalho
aprovou a Convenção n. 102, que trata das normas mínimas de seguridade
social, revelando o grau mínimo de proteção social que o Estado deve
propiciar aos seus cidadãos.
2.1.6 Necessidades individuais com complicações sociais
Questão importante, e para a qual Celso Barroso Leite
expressamente sempre chamou atenção em seus trabalhos, reside no fato de
que as necessidades essenciais de cada indivíduo que a seguridade social deve
54 José Manuel Almansa Pastor, Derecho de la seguridad social, p. 74.
39
atender podem se tornar necessidades sociais. Isso porque, se as necessidades
aparentemente individuais não forem atendidas, atingem os demais indivíduos
e a sociedade inteira. Esse é um dos principais motivos a justificar o caráter
social das prestações da seguridade social.55
Nesse sentido, Rio Nogueira também assinala que
“Se não existisse o INPS, grandes massas obreiras ficariam entregues à miséria extremada, quando o infortúnio roubasse o potencial laborativo dos trabalhadores. Sobreviria a crise, e, na imprevidência generalizada, a grande vítima seria o próprio Estado, que lhe deveria enfrentar as conseqüências.”56
As manifestações desses dois autores são deduções lógicas
que se extraem da história e das noções conceituais da seguridade social. Mas,
ainda que elas pareçam óbvias, são pilares a justificar a seguridade social,
apesar de as prestações da seguridade social serem em geral direcionadas à
proteção da sociedade em geral. Assim, todos têm interesse na seguridade
social, e todos devem custeá-la.
Para James M. Malloy, as manifestações históricas
denotam que:
“(...) um fenômeno decisivo do século XX foi o surgimento e o desenvolvimento do bem-estar. A maioria dos países adotou ‘programas sociais’ destinados a proteger, no mínimo, uma parte dos cidadãos, das vicissitudes da vida moderna causadas por perturbações sociais próprias do desenvolvimento econômico e da modernização.”57
55 Celso Barroso Leite, A proteção social no Brasil, p. 16-17 e Conceito de seguridade social, p.
19-25. 56 Rio Nogueira, A crise moral e financeira da previd6encia social, p. 14. 57 James M. Malloy, A política da previdência social no Brasil, p. 11.
40
2.2 Evolução histórica da seguridade social no Brasil
José dos Reis Feijó Coimbra explica que a política social
brasileira de amparo ao homem evoluiu da assistência prestada por caridade
de seus semelhantes, até o estágio em que se mostra como um direito
subjetivo, garantido pela sociedade aos seus membros, que é, na verdade, o
reflexo de três formas de atuação: a beneficência, a assistência pública e a
previdência.58
Desde a colônia, as maiorias viviam oprimidas pelos senhores de
engenho e forneciam seu trabalho braçal escravo nas fazendas de cana-de-
açúcar.
Historicamente, a burguesia agrária beneficiou-se primeiro da
mão-de-obra dos africanos, depois dos trabalhadores rurais nativos e, mais
tarde, dos imigrantes pobres oriundos da Europa, sem alternativas na sua terra
de origem, principalmente os de origem italiana, em decorrência do
capitalismo mercantilista em franco progresso no Continente Europeu.59
No Brasil, esses trabalhadores estavam subordinados à classe
dominante da época, ou seja, aos coronéis proprietários das grandes extensões
de terra em que era cultivada a cana-de-açúcar e depois o café, que se
transformaram em exportadores das matérias-primas transportadas pelas
ferrovias brasileiras.
58 José dos Reis Feijó Coimbra, Direito previdenciário brasileiro, p. 32. 59 Aldemir de Oliveira, A previdência social na carta magna, p. 25.
41
A Constituição outorgada pelo Imperador D. Pedro I em
25.3.1824, no artigo 179, XXXI do Título VIII, pela primeira vez na história
brasileira inseriu no texto constitucional, ainda que de forma meramente
assistenciária, um instrumento de ajuda aos cidadãos brasileiros mais
necessitados.60
A ideologia liberal francesa repercutiu no Brasil Império e os
constituintes de 1824 introduziram no Texto Maior, como garantia, o primeiro
instrumento de proteção social aos cidadãos que se encontrassem em estado
de necessidade, isto é, em estado de calamidade pública.
Importante destacar que primeiramente prevaleceu a beneficência
inspirada pela caridade, e é exemplo dela a fundação da Santa Casa de
Misericórdia, pelo Padre José de Anchieta, no século XVI. Já de molde
diverso foram as Irmandades das Ordens Terceiras, surgidas no século XVII,
que se configuravam como mutualidades. Da assistência pública tem-se
notícia inaugural em 1828, com a Lei Orgânica dos Municípios, ao tempo em
que outra forma de mutualidade, o Montepio Geral da Economia, surgia em
1835. Do seguro social, tal como muito após se formulou, nos tempos
anteriores ao século XX pouco se cogitou.61
As caixas funcionaram muito bem no período imperial como
instrumentos de um verdadeiro seguro em bases sociais, por meio dos
montepios.
O desenvolvimento dos montepios foi decrescendo no país, face
aos conglomerados populacionais nas metrópoles brasileiras, efeito da
revolução industrial em franca expansão nos países europeus.
60 Aldemir de Oliveira, A previdência social na carta magna, p. 26. 61 José dos Reis Feijó Coimbra, Direito previdenciário brasileiro, p. 32.
42
2.2.1 Primeiras legislações brasileiras de seguro social No Brasil, no fim do Império, algumas medidas
legislativas foram tomadas para proporcionar aos empregados públicos
alguma forma de proteção.
Observamos existirem caixas de socorros em cada uma das
estradas de ferro do Estado (Lei n. 3.397/1888), o fundo de pensões do
pessoal das oficinas da Imprensa Nacional (Dec. n. 10.269/1889), o montepio
obrigatório dos empregados do Ministério da Fazenda (Dec. n. 942-A), a
aposentadoria para os empregados da Estrada de Ferro Central do Brasil (Dec.
n. 221/1890), benefício depois ampliado a todos os ferroviários de empresas
do Estado (Dec. n. 565/1890), a aposentadoria por invalidez e a pensão por
morte dos operários efetivos do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (Lei n.
217/1892), a caixa de pensões dos operários da Casa da Moeda (Dec. n.
9284/11), a caixa de pensões e empréstimo para o pessoal das capitazias da
Alfândega do Rio de Janeiro (Dec. n. 9.517/1912) e, em 1917, a caixa de
aposentadoria e pensões para os operários da Casa da Moeda.62
Em 1923, foi promulgada a Lei n. 4.682, conhecida como
Lei Eloy Chaves, instituindo uma caixa de aposentadoria e pensões para cada
empresa ferroviária, tornando seus empregados segurados obrigatórios, e
desfrutando dos seguintes benefícios: assistência médica, aposentadoria por
tempo de serviço e por idade avançada, por invalidez após dez anos de serviço
e pensão aos seus dependentes. Posteriormente, a Lei n. 5.109/1926 deferiu
igual regime de amparo aos empregados e empresas de navegação marítima e
fluvial, bem como aos portuários.63
62 José dos Reis Feijó Coimbra, Direito previdenciário brasileiro, p. 33. 63 Ibidem, mesma página.
43
Com a criação do Ministério do Trabalho com
competência para assuntos de previdência social, apareceram institutos
amparando não mais os servidores de uma só empresa, mas de uma categoria
profissional, em todo território nacional.
Surgem então o instituto dos marítimos, o IAPM (Dec. n.
22.872/1933), o instituto dos comerciários, o IAPC (Dec. n. 24.273/1934), o
instituto dos bancários, o IAPB (Dec. n. 24.615/1934), o instituto dos
trabalhadores em transportes de cargas, o IAPTC (Dec. n. 7.720/1945), e
assim por diante, até o maior de todos, que foi o dos industriários, o IAPI
(Dec. n. 627/1936).64
Além desses institutos, que executavam as mesmas
atividades, foram proporcionadas aos trabalhadores outras formas de serviços:
em 1940, foi criado o Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS);
em 1941, foi instituído o abono em benefício das famílias de prole numerosa
(Dec. n. 4.890/1942), origem da Legião Brasileira de Assistência (LBA); o
Decreto n. 4.048/1942 organizou o Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (SENAI); em 1946, surgiu o Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial (SENAC), através do Decreto n. 8.261; posteriormente, surgiu o
Serviço Social da Indústria (SESI), pelo Decreto n. 9.403, e, por fim, o
Serviço Social do Comércio (SESC), pelo Decreto n. 9.853.
A separação das categorias profissionais resultava em uma
proteção diferenciada, quando o ideal seria a unificação da previdência,
tentativa frustada feita em 1945, através do Decreto n. 7.526, que criou o
Instituto dos Seguros do Brasil.
64 José dos Reis Feijó Coimbra, Direito previdenciário brasileiro, p. 34.
44
A uniformização legislativa da área previdenciária
começou em 1947, quando o deputado Aluízio Alves apresentou um projeto
de lei que previa o amparo social de toda a população, sob moldes diversos,
do qual resultou a Lei n. 3.807, de 23 de agosto de 1960, conhecida mais pela
sua sigla LOPS – Lei Orgânica da Previdência Social, proporcionando
unidade de tratamento para os chamados segurados e dependentes.65
Essa Lei criou o chamado regime geral de previdência
social, que operou importantíssimas mudanças, mas não unificou os
organismos gestores, nem assegurou proteção a todos, excluídos os
domésticos e os trabalhadores do campo.
Os trabalhadores do campo tiveram sua proteção efetivada
pela Lei n. 4214/63, chamada de Estatuto do Trabalhador Rural, cuja
concretização se deu em 1971 com a Lei Complementar n. 11, que deu ao
trabalhador rural, de modo efetivo, a proteção social tanto esperada,
instituindo o sistema de amparo do Prorural.66
A LOPS generalizou e unificou em um modelo único a
proteção social dos trabalhadores relacionados às atividades privadas, porém
só em 1966 é que o Decreto n. 72 criou um único organismo, unificando as
instituições previdenciárias: surge então o Instituto Nacional de Previdência
Social (INPS).
Todas as instituições teriam que ser cuidadas por um único
ministério, o que acontece em 1974, quando foi criado o Ministério da
Previdência Social, porém a grande reformulação aconteceu somente em
65 José dos Reis Feijó Coimbra, Direito previdenciário brasileiro, p. 35. 66 Ibidem, p. 36.
45
1977, com a promulgação da Lei n. 6.439, que não alterou os direitos
subjetivos dos beneficiários, previstos nas leis anteriores, mudando-se apenas,
e por conveniência administrativa, a estrutura orgânica das entidades, sujeitos
passivos das obrigações de amparo, com a instituição do Sistema Nacional de
Previdência e Assistência Social (SINPAS). Essa Lei também reordenou o
ambiente previdenciário, criando áreas específicas de atuação, relativas à
prestação de serviços, à assistência médica, à assistência social e à gestão
financeira do sistema.67
Portanto, um grande passo foi dado, não existindo mais a
divisão por clientela, dos trabalhadores urbanos, dos trabalhadores rurais, dos
industriários, dos comerciários, e assim por diante, e sim por área de
atividade, de prestações e de financiamento, o que perdurou até a
promulgação da Carta Magna de 1988, que exprimiu a plenitude da
seguridade brasileira.
2.3 A previdência e o sistema constitucional brasileiro
2.3.1 Constituição da República de 1891
Importante destacar que, depois de quase setenta anos de
monarquia constitucional no Brasil, a proteção social se limitava à
autoproteção social, a cargo das pessoas interessadas em um plano
previdenciário facultativo.68
67 José dos Reis Feijó Coimbra, Direito previdenciário brasileiro, p. 36. 68 Aldemir de Oliveira, A previdência social na Carta Magna, p. 28.
46
Apesar do progresso dos montepios no Brasil Império e à
subvenção estatal, embora ligados apenas à classe trabalhadora, o cenário
internacional trouxe grandes mudanças sociais.
O próprio desenvolvimento da industrialização mundial
teve grande reflexo na vida urbana das grandes cidades brasileiras, em face da
exportação de matérias-primas para as nações desenvolvidas.
Nesse aspecto, o Estado monarquista deveria passar por
um processo de desenvolvimento estrutural. Na Constituinte, porém, as elites
dominantes da época defenderam seus interesses, diante do capitalismo
concorrencial, com o objetivo de traçar novos rumos políticos, econômicos e
sociais, em face da nova realidade mundial.
Os constituintes republicanos foram cruéis em termos de
proteção social, não repetindo sequer para as sociedades mutualistas, os
estímulos do período imperial.
Não levou em consideração a marginalização social em
que vivia a sociedade civil dos grandes centros brasileiros, causada pela
crescente emigração européia, sem uma infra-estrutura adequada.
O Estado Republicano não cumpriu sua função social,
como instrumento estimulador de ações sociais para as classes dos
trabalhadores. A competência pelos socorros públicos, que era de
responsabilidade do governo central, em decorrência de garantia
constitucional, passou a ser de cada membro da federação, ou seja, dos
Estados, com a fundação República Federativa. Cumpre observar, no entanto,
que, em termos de proteção social, não houve, até 1919, nenhum fato social
47
significativo, mas tão-somente uma descentralização administrativa dos
socorros públicos, nos casos de calamidade pública.69
Em síntese, a Constituição republicana não trouxe
nenhuma garantia constitucional, em termos de proteção social, para a classe
trabalhadora.
2.3.2 Constituição de 1934
Após a Primeira Grande Guerra, grandes transformações
mundiais ocorreram, constituindo-se uma sociedade mais justa e solidária.
Internamente, com a revolução de 1930, abriram-se espaços políticos para
reivindicações da sociedade civil por maior proteção social para as classes
trabalhadoras.70
Havia grande necessidade da garantia estatal ser inserida
na Carta Magna de 1934, fundamentada nos princípios da democracia social,
e foi a partir dessa Constituição que a previdência social foi considerada
realmente como seguro social, com a participação tripartite da União,
empregadores e empregados, como contribuintes iguais e diretos do sistema
previdenciário.
O princípio fundamental e sustentáculo de qualquer
organização de previdência social é o solidarismo social, fruto da contribuição
de todos.
Nesse sentido, a solidariedade social é o fundamento
nuclear da associação dos indivíduos em sociedade, para se protegerem com
69 Aldemir de Oliveira, A previdência social na Carta Magna, p. 31. 70 Ibidem, p. 32-34.
48
maior segurança dos eventos sociais, por tratar-se de um elemento histórico e
sucessório na vida das gerações humanas.
Com o advento da inclusão da previdência social na
Constituição, o Estado, como gestor, obriga-se, pelo contrato social firmado, a
agir no sentido de concretizar a segurança social para as classes trabalhadoras,
com base na realidade da época.
2.3.3 Constituição de 1937
Esta Constituição foi cercada por crises, dentre elas a do
capitalismo, a recessão e o desemprego, ao lado do crescimento das ditaduras
fascista e nazista que levaram à Segunda Guerra Mundial. 71
Nesse período, o poder militar esmagou a sociedade civil
internacional, inaugurando um novo período de retrocesso político em termos
de proteção social, conforme o próprio artigo 37, “m” da Carta de 1937.
Esse cenário trouxe grandes prejuízos à classe
trabalhadora, decorrente da omissão constitucional em garantir um plano de
custeio como fonte de recursos e manutenção dos benefícios, e por sequer
dispor sobre a participação contributiva dos recursos da União no custeio do
seguro social.
2.3.4 Constituição de 1946
Com o fim da Segunda Grande Guerra e a vitória dos
aliados, iniciou-se um novo momento político e econômico, com a construção
71 Aldemir de Oliveira, A previdência social na Carta Magna, p. 35-36.
49
de uma nova ordem mundial, dividindo o mundo em dois grandes blocos, de
um lado os soviéticos, e do outro os norte-americanos.72
O Brasil, aliado dos Estados Unidos, redemocratizou-se e
convocou uma assembléia nacional constituinte que concluiu seus trabalhos
com a promulgação da Carta Magna de 1946.
Essa Constituição falhou em seu artigo 157 do Título V,
incisos XV e XVI, por não manter, como a Constituição Federal de 1934, a
divisão tripartite das contribuições sociais, em igualdade de condições, pelas
três esferas interessadas numa política social eficiente em termos de custeio
previdenciário. A falha foi ainda maior pelo fato de não incluir a classe
trabalhadora rural sob o amparo do sistema previdenciário.
Após essa Constituição, ocorreu o triste episódio da
revolução de 1964, em que os militares, novamente agindo de forma arbitrária
e opressora das classes sociais menos favorecidas, legitimaram os interesses
da burguesia, em consonância com o exercício do poder político-militar.
2.3.5 Constituição de 1967
Importante destacar que, no período que antecedeu a Carta
Magna de 1967, foi elaborado o Decreto-Lei n. 72, de 21.11.1966, que criou o
Instituto Nacional da Previdência Social (INPS), unificando de forma
institucional a estrutura administrativa da proteção social no país, instalado
definitiva em 2.1.1967, mais tarde SINPAS, e atualmente Instituto Nacional
72 Aldemir de Oliveira, A previdência social na Carta Magna, p. 36-39.
50
do Seguro Social (INSS), vinculado ao Sistema Nacional de Seguridade
Social.73
A Carta de 1967 trouxe em seu bojo, no Título III, o artigo
158, cujo inciso XVI estendeu o sistema previdenciário aos trabalhadores
rurais, em condições iguais às dos trabalhadores urbanos, considerados, os
primeiros, as categorias mais necessitadas do país, não obstante ter criado o
seguro-desemprego, com custeio tripartite para os trabalhadores urbanos e já
existirem leis esparsas de previdência social rural desde a promulgação da
Carta de 1946.
Em termos de recursos, o parágrafo 1º do o artigo 158
estabeleceu a contrapartida entre receitas e despesas, para assegurar aos
beneficiários as prestações previdenciárias criadas pela lei ordinária.
2.3.6 Emenda Constitucional n. 1/1969
Novamente a sociedade brasileira estava à mercê de um
golpe militar e, em termos de proteção, o legislador não incluiu no artigo 165,
inciso XVI do Título III, a classe trabalhadora rural, e manteve a contribuição
desigual das três partes interessadas no seguro social em nível nacional.74
Importante ainda destacar que ficou garantida, em seu
artigo 165, parágrafo único, a contrapartida para o custeio dos benefícios
previdenciários.
73 Aldemir de Oliveira, A previdência social na Carta Magna, p. 39-42. 74 Ibidem, p. 42-46.
51
O referido critério perdurou por vários anos, causando
graves prejuízos à classe trabalhadora brasileira, sendo suprimido somente na
Constituição de 1988.
2.3.7 Constituição de 1988
A partir da promulgação da Carta Magna de 1988, iniciou-
se um novo período para a previdência, inserida que passou a estar na ordem
constitucional, como uma das modalidades mais importantes de proteção
social.
A Carta Magna, ao cuidar do sistema da seguridade social,
previu que ele deveria ser detalhado pela legislação. Tanto a organização do
sistema como a criação das diversas bases de financiamento que lhe dariam
sustentáculo ficaram na dependência da disciplina infraconstitucional.75
O Estado Federal brasileiro passou a ter um compromisso
nas funções sociais do “dever agir” e de estimulador das ações sociais,
exercidas por seus agentes políticos governamentais (sociedade política),
assegurando condições básicas para concretizar, na práxis social, os direitos à
saúde, à previdência e à assistência social, por tratar-se de um objetivo
fundamental do Estado redemocratizante.76
A estrutura da seguridade social é formada pelo tripé
saúde, previdência e assistência social. É de ordem pública e básica,
organizada sob a forma de gestão pública, com a participação e controle da
75 Wagner Balera, Curso de direito previdenciário: homenagem a Moacyr Velloso Cardoso de
Oliveira, p. 33. 76 Aldemir de Oliveira, A previdência social na Carta Magna, p. 60.
52
sociedade civil, representada por duas entidades classistas com caráter
democrático, em forma de co-gestão.
No âmbito do financiamento, a Constituição de 1988
inovou, convidando a sociedade brasileira a participar, quer de forma direta,
quer indireta, no financiamento do Sistema Nacional de Seguridade Social.
O ápice do esquema protetivo brasileiro realmente ocorre
com a promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988. Nela, o
constituinte separou, no título da ordem social, todo um capítulo dedicado ao
tema da seguridade social.
Ao tratar da seguridade social, a Constituição de 1988
comina aos Poderes Públicos o dever de organizá-la, isto é, ordenarem em
sistema, construírem o sistema da seguridade social.
A Constituição estabelece no artigo 194 o objeto da
seguridade social, estipulando-a como um conjunto integrado de ações, de
iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os
direitos relativos a saúde, à previdência e à assistência social, e fixa também
as áreas em que esse conjunto de ações se realizará. Nesse artigo “estão as
diretrizes fundamentais da seguridade social: as áreas por ela abrangidas e que
constituem os limites possíveis dentro dos quais suas ações se desenvolvem
(saúde, previdência e assistência social)”.77
O artigo 59 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias estabelece que deveria ser editada a lei de organização de
77 Daniel Pulino, A aposentadoria por invalidez do direito positivo brasileiro, p. 18.
53
seguridade social, vale dizer, a lei que estabelece o sistema de seguridade
social.
Por seu turno, o artigo 198 da Carta Magna que cuida do
sistema único de saúde, também fala em sistema; na verdade, aí se trata de um
subsistema, o de saúde integrado ao sistema genérico da seguridade social.
O constituinte regulou a forma e a extensão da proteção
constitucional nos artigos 196 a 204, incluindo nos artigo 196 a 200 a
proteção à saúde de todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país; no
artigo 201, tratou do regime geral da previdência social, determinando a
cobertura dos eventos doença, invalidez, morte e idade avançada; a proteção à
maternidade, especialmente da gestante; a proteção ao trabalhador em
situação de desemprego involuntário; o salário-família e auxílio reclusão para
os dependentes dos segurados de baixa renda e pensão por morte do segurado
(artigo 201). E, no artigo 202, regulou regime previdenciário complementar e
facultativo.
A seguridade social é formada pelo tripé saúde,
previdência social e assistência social. Trata-se de ordem pública básica
(também conhecida como primeiro pilar), organizada sob a forma de gestão
pública, com a participação e controle da sociedade civil, representada por
suas entidades classistas, com caráter democrático e descentralizado, em
forma de co-gestão.78
O artigo 203 conferiu o direito à assistência social pública
a todos os necessitados, tendo por objetivos: a proteção à família, à
78 Aldemir de Oliveira, A previdência social na Carta Magna, p. 61.
54
maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; o amparo às crianças e
adolescentes carentes; a promoção da integração ao mercado de trabalho; a
habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção
de sua integração à vida comunitária; a garantia de um salário mínimo de
benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprove
não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua
família.
Importante a idéia do constituinte de participação das
classes sociais provenientes da sociedade civil brasileira, constituídas por
trabalhadores, empregadores, aposentados, pensionistas e a comunidade em
geral, nos colegiados, e com todos os poderes decisórios inerentes ao
exercício da cidadania plena perante o Sistema Nacional de Seguridade
Social, como centro principal de imputações oriundas das bases sociais.79
Esses colegiados devem ser representados de modo
significativo por seus conselheiros, escolhidos democraticamente pelos
respectivos segmentos sociais, no órgão de gestão pública e nas respectivas
esferas políticas da Federação.
O grande objetivo desses colegiados é estabelecer
prioridades e metas para cada setor específico da seguridade social,
priorizando os recursos necessários para executar o programa conforme as
metas traçadas pelos conselheiros de cada área, estabelecendo políticas de
integração de forma democrática e descentralizada, controlando e avaliando
suas respectivas gestões econômicas.
79 Aldemir de Oliveira, A previdência social na Carta Magna, p. 60.
55
Em face dos custos da previdência, o legislador
constitucional prescreveu na Carta Magna os mecanismos financiadores dessa
proteção social por ele criada. No artigo 195, fixou as formas do sistema de
proteção, prescrevendo, em seu parágrafo 5º, um fecho unificador da área de
prestações e da área de custeio, ao proibir a criação de prestações, se ausentes
as respectivas fontes de custeio.
Esse dispositivo passou a funcionar como um princípio
elementar do conjunto de normas da seguridade social, pois instaurou a noção
de caixa, onde os débitos não poderão ser maiores que os créditos.
Ordenando a alocação desses créditos num instrumento
orçamentário específico, nos termos do artigo 165, parágrafo 5°, III, o
constituinte coroou seu intuito de criar um regime jurídico especial para a
seguridade social.
O constituinte procedeu assim para garantir uma
destinação concreta aos recursos decorrentes do financiamento feito pela
sociedade (de forma direta ou indireta), pois tinha consciência de que o
sistema de proteção, dada sua envergadura, dependeria de todo o
financiamento que lhe fosse devido, sob pena de não resistir às críticas e aos
interesses mesquinhos.
Verificamos que, com a criação de um conjunto de normas
que formam um específico regime jurídico para a seguridade social, o
constituinte prescreveu uma estrutura administrativa específica para o
sistema, determinando-lhe um caráter democrático e descentralizado,
mediante gestão quadripartite.
56
A Carta Maior também desenhou os riscos sociais
passíveis de serem cobertos pelo sistema protetivo e a extensão subjetiva e
objetiva das prestações a serem criadas pelo legislador inferior; fixou o campo
de atuação dessas prestações (saúde, assistência social e previdência social) e
os instrumentos necessários para o seu financiamento.
A vontade do legislador foi fundamentada pelos seguintes
objetivos e princípios constitucionais: dignidade da pessoa humana;
construção de uma sociedade livre, justa e solidária; erradicação da pobreza,
da marginalização e redução das desigualdades sociais; e promoção do bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
O legislador pátrio de 1988, no artigo 194, destacou como
instrumento principal de proteção social os princípios norteadores, com
diretrizes indispensáveis ao objetivo de concretizar as metas políticas e sociais
do Estado contemporâneo, conforme estudamos no capítulo relacionado ao
sistema, demonstrando inequivocadamente a autonomia da seguridade social,
enfatizando sempre que sua autonomia financeira e administrativa dependerá
única e exclusivamente da base do financiamento indireto e direto para honrar
seus compromissos com a sociedade brasileira.
3 FUNDAMENTO DE VALIDADE DE UMA ORDEM NORMATIVA
3.1 A questão do fundamento de validade
Faremos neste capítulo uma reflexão sobre o fundamento de
validade de uma norma, procurando discutir especialmente as normas
constitucionais previdenciárias como instrumento de mudanças sociais para a
construção de uma sociedade mais justa e solidária, em prol das classes
trabalhadoras inativas, dependentes da eficácia dessas normas e do sistema
previdenciário federal.
É necessário iniciar o questionamento desenvolvendo algumas
idéias em torno dessa problemática social de eficácia e validade, e nada
melhor do que Kelsen, para quem o fundamento de validade de uma norma
apenas pode ser a validade de uma outra norma. Uma norma que representa o
fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada
como norma superior, em confronto com uma norma que é, em relação a ela,
a norma inferior80. Na verdade, parece que se poderia fundamentar a validade
de uma norma com o fato de ela ser posta por qualquer autoridade, por um ser
humano ou sobre-humano: assim acontece quando se fundamenta a validade
dos dez mandamentos com o fato de Deus, Jeová, os ter dado no Monte Sinai;
ou quando se diz que devemos amar os nossos inimigos porque Jesus, o filho
de Deus ordenou no Sermão da Montanha.
A norma afirmada na premissa maior, segundo a qual devemos
observar os mandamentos de Deus (ou do Seu filho), está contida no
pressuposto de que as normas, cujo fundamento de validade está em questão,
80 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, p. 9-21.
58
provêm de uma autoridade, quer dizer, de alguém que tem capacidade, ou
seja, competência para estabelecer normas válidas.81
Todas as normas cuja validade possa ser reconduzida à mesma
norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A
norma fundamental é a fonte comum de validade de todas as normas
pertencentes a uma mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade
comum.82
Existem dois tipos de normas: um tipo estático e um tipo
dinâmico. A conduta dos indivíduos determinada por uma norma do tipo
estático é considerada como devida (devendo ser) por força do seu conteúdo:
porque a sua validade poder ser reconduzida a uma norma a cujo conteúdo
pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, do
particular ao geral.
A norma de cujo conteúdo outras normas são deduzidas, como o
particular do geral, tanto quanto ao seu fundamento de validade como quanto
ao seu teor de validade, apenas pode ser considerada como norma
fundamental quando o seu conteúdo for considerado como imediatamente
evidente.
O fundamento e teor de validade das normas de um sistema
moral são muitas vezes reconduzidos a uma norma considerada como
imediatamente evidente. Dizer que uma norma é imediatamente evidente
significa que ela é dada na razão, com a razão. O conceito de uma norma
81 Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, p. 64. 82 Ibidem, p. 58.
59
evidente pressupõe o conceito de uma razão prática, quer dizer, de uma razão
legisladora.
O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma
fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato
produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o
que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as
normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre essa norma
fundamental.
Ensina Kelsen que a norma fundamental limita-se a delegar uma
autoridade legisladora, quer dizer, a fixar uma regra em conformidade com a
qual devem ser criadas as normas do sistema.83
A norma fundamental é o fundamento de validade de todas as
normas pertencentes a uma mesma ordem jurídica, ela constitui a unidade na
pluralidade dessas normas.
O conhecimento do direito, como todo conhecimento, procura
apreender o seu objeto como um todo e descrevê-lo em proposições isentas de
contradição. Ele parte do pressuposto de que os conflitos de normas no
material normativo que lhe é dado, ou melhor, proposto, podem e devem
necessariamente ser resolvidos pela via da interpretação.
Existe a escala das normas, e o problema do conflito de normas
dentro de uma ordem jurídica põe-se de forma diferente, conforme se trata de
83 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, p. 9-10.
60
um conflito entre normas do mesmo escalão e de um conflito entre uma
norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior.84
Vejamos o que sucede quando numa mesma lei se encontram
duas disposições que contrariam uma à outra, tais como aquelas que
prescrevem que o adúltero deve ser punido e que não deve ser punido, que
todo aquele que comete um delito determinado por lei deve ser punido, e que
as pessoas com menos de quatorze anos não devem ser punidas.
Um conflito pode existir entre duas normas individuais, por
exemplo, entre duas decisões judiciais, particularmente quando as duas
normas foram postas por órgãos diferentes. Nesse caso, uma lei pode conferir
competência a dois tribunais para decidir o mesmo caso, sem emprestar à
decisão de um dos tribunais o poder de anular a decisão do outro – essa é na
verdade uma técnica jurídica muito imperfeita.
O conflito é resolvido pelo fato de o órgão executivo ter a
faculdade de escolher entre observar uma ou outra das decisões; quer dizer,
efetivar ou não efetivar a pena ou a execução civil, observar uma ou outra das
normas individuais.
Se uma norma do escalão inferior é considerada como válida,
tem-se que considerar como estando em harmonia com uma norma do escalão
superior. Na exposição da construção escalonada da ordem jurídica, se
mostrará como isso sucede.
O domínio de validade de uma norma, especialmente o seu
domínio temporal de validade, pode ser limitado, que dizer: o começo e o fim
84 Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, p. 93-100.
61
da sua validade podem ser determinados por ela própria ou por uma norma
mais elevada que regula sua produção.
A norma fundamental segue a necessidade da sociedade. Kelsen
afirma que as leis ditadas sob a antiga Constituição e que não são recebidas já
não são consideradas válidas, e que os órgãos instituídos de acordo com a
antiga Constituição já não são considerados competentes.85
O princípio da legitimidade é limitado pelo princípio da
efetividade, o que não está efetivamente ocorrendo no Estado contemporâneo
pós-Carta Magna de 1988, relativamente aos dispositivos de justiça política
para a classe dos trabalhadores, em particular o financiamento indireto da
seguridade social.
O momento histórico, político e social procurou determinar para
a sociedade brasileira novos horizontes, ainda que no tradicional estilo
ocidental das denominadas democracias representativas.
Wagner Balera afirma que o sistema representativo se acha em
crise profunda, tendo em vista que a população mais carente não se encontra
representada na estrutura do poder.86
O objetivo é restaurar as organizações políticas comprometidas
com o Estado do Bem-estar Social, para se recuperar o fundamento de
validade da norma social.
85 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, p. 11. 86 Wagner Balera, Sistema de seguridade social, p. 18.
62
3.2 Validade e eficácia
A determinação correta dessa relação é um dos problemas mais
importantes e, ao mesmo tempo, mais difíceis de uma teoria jurídica
positivista.
Miguel Reale, em reflexão, afirma que a filosofia do direito é a
ciência das condições transcendentais da validade jurídica, ou seja, das
condições segundo as quais se tornam possíveis as indagações que, no plano
das relações empíricas, são realizadas, respectivamente, pela política do
direito, pela sociologia e a psicologia jurídicas, e pela ciência do direito ou
jurisprudência.87
O ato com o qual é posta uma norma jurídica positiva é, como a
eficácia da norma jurídica, um fato da ordem do ser. Uma teoria jurídica
positivista é posta perante a tarefa de encontrar entre os dois extremos, ambos
insustentáveis, o meio-termo correto.
A validade do direito se identifica com a sua eficácia, uma ordem
jurídica como um todo, tal como uma norma jurídica singular perde a sua
validade quando deixa de ser eficaz; por outro lado, é também falsa, na
medida em que existe uma conexão entre dever-ser da norma jurídica e o ser
da realidade natural, já que a norma jurídica positiva, para ser válida, tem que
ser posta através de um ato-de-ser (da ordem do ser).
Para a teoria pura do direito, o problema é assim como a norma
de dever-ser, como no sentido do ato-de-ser que a põe, não se identifica com
87 Miguel Reale, Filosofia do direito, p. 587.
63
esse ato, e assim a validade de dever-ser de uma norma jurídica não se
identifica com a sua eficácia da ordem do ser; a eficácia da ordem jurídica
singular é – tal como o ato que estabelece a norma – condição de validade.88
Uma ordem jurídica não perde porém a sua validade pelo fato de
uma norma jurídica singular perder sua eficácia, isto é, pelo fato de ela não
ser aplicada em geral ou em casos isolados. Uma ordem jurídica é
considerada válida quando suas normas são, numa consideração global,
eficazes, quer dizer, são de fato observadas e aplicadas. E também uma norma
jurídica singular não perde a sua validade quando apenas não é eficaz em
casos particulares, isto é, não é observada ou aplicada, embora deva ser
observada e aplicada.
A eficácia é uma condição de validade, mas não é ela mesma
validade. Isso tem de ser bem acentuado, pois não falta ainda hoje quem
procure identificar a validade do direito com a sua eficácia.
Celso Ribeiro Bastos condiciona a Constituição como
fundamento de validade de todas as demais leis. A determinação do
significado de uma de suas normas poderá importar no afastamento de uma
regra infraconstitucional até então vigente, mas que se torna incompatível
com a norma constitucional, da forma por que passa a ser compreendida.89
E, com relação à problematização e discussão relacionada à
condição de validade da norma previdenciária, apontamos uma solução,
através de uma proposta de reestruturação, com o objetivo de enfrentar a
baixa capacidade de direção e desempenho do Estado, buscando tanto a
88 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, p. 11-12. 89 Celso Ribeiro Bastos, Hermenêutica e interpretação constitucional, p. 53.
64
reforma administrativa como política, melhorando a capacidade de
regulamentação do governo, em termos qualitativos e organizacionais, com
vistas à maior efetividade da ação político-administrativa.
3.3 Teoria da norma fundamental e doutrina do direito natural
Como vimos, a questão do fundamento de validade do direito
positivo, isto é, a questão de saber por que as normas de uma ordem coercitiva
eficaz devem ser aplicadas e observadas, visa uma justificação ético-política
dessa ordem coercitiva, ou seja, visa um critério firme, segundo o qual uma
ordem jurídica positiva possa ser julgada justa e, por isso válida, ou injusta, e
por isso não válida; então, deve-se dizer que a norma fundamental
determinada pela teoria pura do direito não realiza uma tal justificação, não
fornece um tal critério.90
Uma doutrina conseqüente do direito natural distingue-se de uma
teoria jurídica positivista pelo fato de aquela procurar o fundamento da
validade do direito positivo, isto é, de uma ordem coercitiva globalmente
eficaz num direito natural diferente do direito positivo e, portanto, numa
norma ou ordem normativa a que o direito positivo, quanto ao seu conteúdo,
pode corresponder, mas também pode não corresponder; de tal forma que,
quando não corresponder a essa norma ou ordem normativa, deve ser
considerada como inválida.
90 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, p. 15.
65
Observamos ainda que o fundamento no plano filosófico, o valor
ou o complexo de valores que legitimam uma ordem jurídica fornecem a
razão de sua obrigatoriedade.91
A validade do direito positivo se apóia numa norma fundamental
que não é uma norma posta, mas uma norma pressuposta, e que, portanto, não
é uma norma pertencente ao direito positivo, cuja validade objetiva é por ela
fundamentada, e também no fato de, segundo a teoria jusnaturalista, a
validade do direito positivo se apoiar numa norma que não é uma norma, que
não é pertencente ao direito positivo relativamente ao qual ela funciona como
critério ou medida de valor, do que resulta um limite imposto ao princípio do
positivismo jurídico.
Para Francesco Carnelutti, entre a realidade e o pensamento são
lançados, à guisa de pontes, os sentidos do homem. Através deles entra a
realidade ou sai o pensamento, naturalmente em sentido figurado.92
Importante destacar que a Constituição não pode ser revogada ou
alterada como as leis normais, mas somente sob condições mais rigorosas.
Prescreve-se para sua modificação ou supressão um processo mais exigente,
diferente do processo legislativo usual, a exemplo da Carta Magna de 1988,
que inseriu na ordem social a seguridade social, um processo exigente e
importante de proteção social.
91 Miguel Reale, Filosofia do direito, p. 594. 92 Francesco Carnelutti, Teoria geral do direito, p. 16.
66
3.4 Jurisprudência
A jurisprudência tradicional vê a aplicação do direito sobretudo,
se não exclusivamente, nas decisões dos tribunais civis que, de fato, quando
decidem um litígio jurídico ou impõem uma pena a um criminoso, aplicam
em regra uma norma geral de direito que foi criada pela via legislativa ou
consuetudinária.93
Os tribunais aplicam as normas jurídicas gerais ao estabelecerem
normas individuais, determinadas quanto ao seu conteúdo, pelas normas
jurídicas gerais, e nas quais é estatuída uma sanção concreta: uma execução
civil ou uma pena.
Sidney Sanches assim destaca a quíntupla função de interpretar,
vivificar, humanizar, suplementar e rejuvenescer a lei:
“Interpreta-a porque define o significado jurídico. Vivifica-a porque, ao eliminar as controvérsias, o Judiciário a faz viver. Humaniza-a, porque a personaliza, isto é aproxima a norma geral e abstrata do elemento humano a que se destina. Suplementa-a, porque o próprio julgador presta sua contribuição pessoal. Rejuvenesce-a, porque a ajusta às condições do tempo em que incide.”94
A jurisprudência ocupa-se basicamente do fenômeno pertinente à
esfera normativa. O direito apresenta-se-nos como um fenômeno histórico,
em que o passado não é simplesmente algo que já passou, e assim um evento
pretérito. Também o direito apresenta a estrutura temporal da historicidade. A
93 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, p. 267-272. 94 Sidney Sanches, Uniformização da jurisprudência, p. 5.
67
persistência do passado no direito historicamente devenente é o tema da
história do direito.95
A toda a norma pertence, como pano de fundo indispensável para
a sua compreensão, a realidade social em resposta à qual foi concebida e a
realidade social atual em que deve operar.
A jurisprudência ocupa, entre as ciências jurídicas mencionadas,
uma posição privilegiada ligada com a suas tarefas no âmbito da atividade
jurídica prática. A jurisprudência tem em vista sempre um ordenamento
jurídico determinado. A possibilidade e utilidade das indagações
juscomparatísticas assentam em que as soluções de um ordenamento positivo
são, com freqüência, respostas a problemas jurídicos gerais.
O que constitui verdadeiramente a jurisprudência é a
interpretação sucessiva idêntica da mesma norma jurídica; um caso julgado
pode ser antecedente judiciário, mas não é jurisprudência, no sentido em que
essa palavra é geralmente empregada. A jurisprudência consiste, pois, em
uma interpretação constante e uniforme da regra legal.96
O jurista que queira trabalhar com a política do direito deve obter
os dados necessários e o material de experiência das ciências que em cada
caso seja competente. Por outro lado, também é a política do direito um
campo legítimo de trabalho da jurisprudência, cuja cooperação é também
nesse campo indispensável.97
95 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, p. 254-257. 96 Alfredo Buzaid, Prefácio, in Sidney Sanches, Uniformização da jurisprudência. 97 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, p. 260-263.
68
A jurisprudência não pode transcender o limite do ordenamento
jurídico vigente. Para ela, trata-se não só de clareza e segurança jurídica, mas
também de mais justiça, preenchendo as lacunas existentes no ordenamento
jurídico.
A jurisprudência deve concretizar o bem-estar e a justiça social
para os desamparados que buscam no Poder Judiciário o direito constitucional
negado pelos governantes, conduzindo a vida brasileira para o ambiente
específico da ordem social, que é o bem-estar em seu mais avançado estágio e
o objetivo maior: a justiça social.
3.5 Lacunas do direito Para Kelsen, o importante na apreciação da teoria das lacunas é
determinar as circunstâncias nas quais se apresenta uma “lacuna” no direito.
Segundo essa teoria, o direito vigente não é aplicável num caso concreto
quando nenhuma norma jurídica geral se refere a esse caso. Por isso, o
tribunal que tem de decidir o caso precisa colmatar essa lacuna pela criação
de uma correspondente norma jurídica. O essencial dessa argumentação reside
em que a aplicação do direito vigente, como conclusão do modo geral para o
particular, não é possível nesse caso, pois falta a premissa necessária, a norma
geral. Essa teoria é errônea, pois se funda na ignorância do fato de que,
quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever de um indivíduo de
realizar determinada conduta, permite essa conduta. A aplicação da ordem
jurídica vigente não é, no caso em que a teoria tradicional admite a existência
de uma lacuna, logicamente impossível. Na verdade, não é possível nesse
caso a aplicação de uma norma jurídica singular.98
98 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, p. 285-286.
69
Para Norberto Bobbio, o problema da lacuna está na completude.
Por completude entende-se a propriedade pela qual um ordenamento jurídico
tem uma norma para regular qualquer caso. Uma vez que a falta de uma
norma se chama geralmente lacuna (num dos sentidos do termo lacuna),
completude significa falta de lacunas. Em outras palavras, um ordenamento é
completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular qualquer
caso que se lhe apresente, ou melhor, não há caso que não possa ser regulado
com uma norma tirada do sistema.99
Um ordenamento é completo quando jamais se verifica o caso de
que a ele não se podem demonstrar pertencentes nem uma certa norma nem a
norma contraditória. Especificando melhor, a incompletude consiste no fato
de que o sistema não compreende nem a norma que proíbe um certo
comportamento, nem a norma que a permite. De fato, pode-se demonstrar que
nem a proibição nem a permissão de um certo comportamento são dedutíveis
do sistema e, da forma com que foi colocado, é preciso dizer que o sistema é
incompleto e que o ordenamento jurídico tem uma lacuna.
Francesco Carnelluti100, em sua teoria geral do direito, trata
conjuntamente os dois problemas, e fala de incompletude por exuberância, no
caso das antinomias, e de incompletude por deficiência, nos caso das lacunas,
donde os dois remédios opostos de purificação do sistema, para eliminar as
normas exuberantes ou as antinomias, é da integração, para eliminar a
deficiência de normas ou lacunas.
99 Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, p. 115-123. 100 Francesco Carnelluti, Teoria geral do direito, p. 184-188.
70
Carnelutti vê que o caso de antinomia é aquele no qual há mais
normas do que deveria haver, o que expressamos com as duas conjunções e,
onde o dever do intérprete é suprimir aquilo que está a mais; o caso da lacuna,
no entanto, é um caso em que há menos normas do que deveria haver, fato
que registramos com as duas conjunções nem, onde o dever do intérprete é, ao
contrário, acrescentar aquilo que falta.
A base dos ordenamentos fundados sobre o dogma da
completude é o Código Civil francês, cujo artigo 4º diz que “o juiz que
recusar julgar, a pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da
lei, poderá ser processado como culpado de negar a justiça”.
No italiano, esse princípio é estabelecido no artigo 113 do
Código de Processo Civil, que diz que “ao pronunciar-se sobre a causa, o juiz
deve seguir as normas do direito, salvo se a lei lhe atribuir o poder de decidir
segundo a equidade”.
Concluindo, a completude é uma condição necessária para os
ordenamentos em que valem estas duas regras:101
• o juiz é obrigado a julgar todas a controvérsias que se
apresentarem a seu exame;
• ele deve julgá-las com base em uma norma pertencente ao
sistema.
101 Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, p. 118.
71
Como observado, o sistema carece de solução e, para suprir as
lacunas, de medidas que aperfeiçoem a sua estrutura. Assim sendo, em
matéria de financiamento indireto, a vinculação orçamentária seria a solução
para o sistema de seguridade social, o que preencheria a lacuna de custeio
existente.
4 FINANCIAMENTO INDIRETO DA SEGURIDADE SOCIAL
Importante refletir, como já fizemos nos capítulos anteriores, desde a
primeira elaboração constitucional do tema financiamento em 1934, que o
custeio da previdência social foi alicerçado em uma tríplice fonte de receita,
ou seja, contribuição dos trabalhadores, dos empresários e suplementação do
Estado. Inicialmente, essa contribuição era tríplice e igual mas,
posteriormente, a igualdade não perdurou.102
Importante destacar que a Constituição Federal, em seu artigo 194,
caput, estabelece que a seguridade social compreende um conjunto integrado
de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e de toda a sociedade, destinadas
a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Essa garantia, em contrapartida, possui um custo, isto é, as ações
relativas às áreas abrangidas pela seguridade social implicam despesas, e
então o custeio da seguridade social é constituído pelos recursos destinados ao
pagamento dos custos da seguridade social.
Também vimos que, desde a Lei Elói Chaves, tanto os trabalhadores
como os empregadores teriam assento no organismo dirigente das caixas
previdenciárias.
A Lei Orgânica da Previdência Social conferiu amplo poder de mando
aos colegiados tripartites que iriam dirigir as entidades, a exemplo da grande
maioria dos países avançados, cujas leis adotam a gestão tripatite.103
102 Wagner Balera, Sistema de seguridade social, p. 22. 103 Ibidem, p. 34.
73
As fontes de custeio da seguridade social, por sua vez, são os meios
econômicos e financeiros obtidos e destinados à concessão e manutenção da
seguridade social.
O financiamento do sistema de seguridade social é estabelecido no
artigo 195, caput da Constituição Federal:
“Artigo 195 - A Seguridade Social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios e das seguintes contribuições sociais (...).”
Sistematicamente, notamos o amplo preceituário de financiamento
estampado nesse artigo, sendo esses recursos os orçamentos da União, dos
Estados, dos Municípios e, ainda, as contribuições sociais previstas no artigo
195, incisos I a III, e parágrafo 8º, além de outras instituídas na forma do
parágrafo 4º do mesmo artigo.
As fontes de financiamento da seguridade social foram concebidas pelo
legislador constituinte de forma ampla e conjuntamente para as três áreas de
atuação da seguridade social.104
Existe apenas uma destinação de receita específica das contribuições
sociais a cargo das empresas, incidente sobre a remuneração paga ou
creditada aos segurados a seu serviço, bem como dos trabalhadores, para o
pagamento dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, nos termos
do inciso XI do artigo 167 da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda
Constitucional n. 20/1998. Nesse sentido, o estudo das fontes de
104 Silvania Conceição Tognetti, Contribuições para o financiamento da seguridade Social, p. 19-
31.
74
financiamento da previdência social deve ser feito por meio de análise do
financiamento da seguridade social como um todo.
O artigo 195, I e II da Constituição Federal atribui a toda a sociedade o
ônus de custear, de forma direta e indireta, a seguridade social105. O custeio
indireto advém de dotações orçamentárias da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios. Essa participação do orçamento estatal no
financiamento de programas sociais, nas conjunturas de crise porque passa o
Estado Social, o Estado do Bem-estar, está cada vez mais reduzida, pois, na
realidade, o Estado retira cada vez menos dinheiro do seu orçamento fiscal
para o orçamento social.
Em contrapartida, a sociedade cumpre com o seu papel na forma de
custeio direto advindo das contribuições sociais do trabalhador, dos demais
segurados da previdência social, do empregador, da empresa e da entidade a
ela equiparada na forma da lei, ou seja, das pessoas que diretamente se
beneficiam da proteção jurídica propiciada pela seguridade social: o
empregador porque se livra do ônus de ter que suportar o custo social da
permanente situação de risco do obreiro (invalidez, doença, acidente, morte
etc.) e o trabalhador porque é beneficiário direto das prestações da seguridade
social (aposentadoria, pensão por morte, auxílio acidente etc.).
Wagner Balera106 explica que os planos de seguridade dependem de
prévia definição do regime financeiro de toda a proteção; de fixação
precedente das contribuições por meio das quais o segurado e a empresa a ele
105 Emenda Constitucional n. 20, de 15.12.1998, incisos I e II. 106 Wagner Balera, Curso de direito previdenciário: homenagem a Moacyr Velloso Cardoso de
Oliveira, p. 38.
75
aderem; e, finalmente, de disciplina de aplicação de reservas a serem
auferidas em cada exercício.
O plano de custeio é assim definido pelo regulamento (Dec. n.
72.711/1973) da Lei Orgânica da Previdência Social (Lei n. 3.807, de
23.8.1960):
“Artigo 273 - O plano de custeio consistirá em um conteúdo de normas e previsões de despesas e receitas estabelecidas com base em avaliações atuariais e destinadas à planificação econômica do regime e seu conseqüente equilíbrio técnico-financeiro.”
Observa-se que as finalidades do plano de custeio são a planificação
econômica do regime e a busca do equilíbrio técnico-financeiro do sistema.
Para elaboração dessa peça, é necessária a colaboração dos Poderes
Legislativo e Executivo. O Congresso discute os rumos da seguridade social,
fixa metas e prioridades e fornece os meios garantidores do equilíbrio
financeiro dos projetos e programas. O governo envida esforços a fim de que
o plano de proteção cumpra integralmente os elevados objetivos que lhe
comina o Estatuto Fundamental.107
O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição
Federal estabeleceu que:
“Artigo 59 - Os projetos de lei relativos à organização da seguridade social e aos planos de custeio e benefício serão apresentados no prazo máximo de seis meses da promulgação da Constituição ao Congresso Nacional, que terá seis meses para apreciá-los.”
107. Wagner Balera, Curso de direito previdenciário: homenagem a Moacyr Velloso Cardoso de
Oliveira, p. 38.
76
Após mais de dezesseis anos da promulgação da Constituição Federal
de 1988, a seguridade social do país ainda não dispõe de um verdadeiro plano
de custeio, qual seja, formado por um conjunto de normas e previsões de
despesas e receitas estabelecidas com base em avaliações atuariais e
destinadas à planificação econômica e seu conseqüente equilíbrio técnico-
financeiro.
A Lei n. 8.212/1991, apesar de sua ementa, não pode ser considerada
como instituindo um verdadeiro plano de custeio da seguridade social porque
é destituída de avaliações atuariais, demográficas e estatísticas. Pelo que
dispõe o artigo 96 da referida lei, a elaboração desses dados técnicos passou a
ser problema do Poder Executivo:
“Artigo 96 - O Poder Executivo enviará ao Congresso Nacional, anualmente, acompanhando a proposta orçamentária da Seguridade Social, projeções atuariais relativas à seguridade social, abrangendo um horizonte temporal de, no mínimo, 20 (vinte) anos, considerando hipóteses alternativas quanto às variáveis demográficas, econômicas e institucionais relevantes.”
Um verdadeiro plano de custeio deveria ter base em avaliações técnicas
(de ordem atuarial, estatística e demográfica) para ser o diploma legal previsto
na Constituição Federal, a servir de instrumento capaz de apontar e
demonstrar as suas necessidades financeiras, presentes e futuras, da
seguridade social, custo de suas prestações, possibilidade de ampliação do
plano de cobertura, as fontes de custeio que deveriam ser criadas ou
majoradas (e a qual razão), as atividades de maior risco, o custo das
prestações a serem concedidas, assim como a composição dos valores que são
pagos a título de contribuição social.
A falta do plano de custeio elaborado nessas condições, a rigor macula
com o vício da inconstitucionalidade a instituição e a majoração de toda e
77
qualquer contribuição social destinada ao custeio da seguridade social, como,
por exemplo, a contribuição social sobre o faturamento (Cofins). Isso ocorre
porque o parágrafo 5º do artigo 195 da Constituição Federal prescreve que
nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado
ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total. Verdadeira
limitação constitucional ao poder de tributar do legislador infraconstitucional,
essa regra determina, em suma, que haja equilíbrio entre receita e despesa da
seguridade social. O instrumento constitucionalmente habilitado a demonstrar
esse equilíbrio, entretanto, é o plano atuarial, que nunca foi elaborado.
Apesar de não ser um verdadeiro plano de custeio108, a Lei n.
8.212/1991, em seu artigo 11, diz que suas fontes são as seguintes: a) receitas
da União; b) receitas das contribuições sociais; e c) receitas de outras fontes,
assim, delineando o esquema geral de custeio da seguridade social, ou seja,
financiamento direto mediante contribuições e financiamento indireto
mediante receitas orçamentárias.
Importante destacar que ao Instituto Nacional do Seguro Social
compete arrecadar e lançar as contribuições sociais, bem como fiscalizá-las e
regulamentá-las. À Secretaria da Receita Federal competem as mesmas
funções, em relação às outras contribuições sociais, cabendo àquela entidade e
a este órgão, na esfera de suas competências, promover a respectiva cobrança
e aplicar as sanções previstas legalmente.
As contribuições só podem ser exigidas após decorridos noventa dias
da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se
aplicando o disposto no artigo 150, III, alínea “b” da Constituição Federal.
108 Wagner Balera, Curso de direito previdenciário: homenagem a Moacyr Velloso Cardoso de
Oliveira, p. 38.
78
Wagner Balera observa que “considerada a magnitude do sistema de
seguridade social que o constituinte pretende ver implantado no Brasil, é certo
que a criação, majoração e extensão dos benefícios e serviços configurarão,
em breve, uma exigência social e política da sociedade”.109
O legislador constitucional, compreendendo as limitações dos recursos,
houve por bem cuidar de um campo futuro de incidência das contribuições
previdenciárias e buscou regular o modo pelo qual poderiam surgir as novas
fontes de custeio. Assim, lei pode instituir outras fontes destinadas a garantir a
manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido ao disposto no
artigo 154, inciso I da Constituição Federal.
O Supremo Tribunal Federal decidiu que a remissão feita pelo artigo
195, parágrafo 4º da Constituição Federal ao seu artigo 154, inciso I implica
na necessidade de lei complementar para a criação de novas contribuições
sociais (STF – ADIn n. 1.102-2, rel. Min. Corrêa, DJU de 17.11.96, Seção I,
p. 39.205).
A contribuição da União estabelecida nos artigos 16 e 19 da Lei n.
8.212/1991 é constituída de recursos adicionais do orçamento fiscal, fixados
obrigatoriamente na lei orçamentária anual. Além das receitas oriundas das
contribuições sociais, a União destina parte do seu orçamento fiscal para a
instituição de ações de seguridade social principalmente destinadas às áreas
de saúde e assistência social.
109 Wagner Balera, Curso de direito previdenciário: homenagem a Moacyr Velloso Cardoso de
Oliveira, p. 64.
79
No que se refere às ações de previdência social, a União somente
destina recursos adicionais se houver déficit, ou seja, se as despesas com a
previdência social superarem as receitas oriundas das contribuições das
empresas sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho e das
contribuições dos trabalhadores (art. 167, inc. XI da CF/1988).
Como já afirmamos anteriormente, o custeio da previdência social
brasileira é tríplice. As empresas contribuem sobre a remuneração paga ou
creditada aos segurados a seu serviço e os trabalhadores sobre o salário-de-
contribuição ou sobre a receita bruta proveniente da comercialização da
produção rural (segurado especial), nos termos do inciso XI do artigo 167 da
Constituição Federal. Caso essas contribuições não sejam suficientes para
fazer face aos encargos previdenciários, a União cobre o respectivo déficit.
Em síntese, as empresas, os trabalhadores e a União são responsáveis pelo
custeio da previdência social.
As receitas de outras fontes destinadas à seguridade social são descritas
no artigo 27 da Lei n. 8.212/1991:
“Artigo 27 - Constituem outras receitas da seguridade social: I - multas, atualização e juros moratórios; II - remuneração recebida por serviços de arrecadação, fiscalização e cobrança prestados a terceiros; III - receitas provenientes de prestação de outros serviços e de fornecimento ou arrendamento de bens; IV - demais receitas patrimoniais, industriais e financeiras; V - doações, legados, subvenções e outras receitas eventuais; VI - 50% dos valores obtidos e aplicados na forma do parágrafo único do artigo 243 da Constituição Federal; VII - 40% do resultado dos leilões dos bens aprendidos pela Receita Federal; VIII - outras receitas previstas em legislação específica.”
80
Apesar do sistema protetivo elaborado pelo constituinte exigir recursos
financeiros de grande monta e cujo valor real somente pode ser calculado
através de cálculos atuariais apropriados110, deve-se buscar uma solução
dentro do financiamento indireto, tópico inserido na norma constitucional que
o Estado não cumpre adequadamente.
Como observa Silvania Conceição Tognetti, o sistema de financiamento
é misto, parte dos recursos advindo dos orçamentos da União, Estados,
Distrito Federal e Municípios, e a outra parte de contribuições arrecadadas
com destinação exclusiva para o financiamento da seguridade social.111
Observando-se a evolução da seguridade social, seu financiamento
pode se dar pela instituição de fontes de custeio próprias, pelo repasse de
verbas provenientes da arrecadação de impostos ou por um sistema misto.112
À medida que o sistema de seguridade social foi-se ampliando para
alcançar situações que não podiam ser previstas por regras atuariais, cresceu a
participação das receitas de impostos no seu financiamento, ficando cada vez
mais caracterizado ser o sistema misto.
O financiamento do sistema é marcado por participação mais intensa do
Estado, através das receitas gerais dos impostos, além do estabelecimento de
contribuições de valor fixo ou escalonadas, em função dos rendimentos de
cada pessoa. Abandonou-se, em certa medida, a técnica de contribuições
sobre salários (insuficientes para manter um sistema de proteção tão amplo),
110 Wagner Balera, Curso de direito previdenciário: homenagem a Moacyr Velloso Cardoso de
Oliveira, p. 64-65. 111 Silvania Conceição Tognetti, Contribuições para o financiamento da seguridade social, p. 19-
20. 112 Ibidem, p. 19.
81
passando-se do regime de capitalização para o de distribuição ou repartição.
Com isso, as quotizações sociais se aproximaram mais das imposições
tributárias.113
Observa-se, no final do século XX, uma retração da seguridade social,
decorrente da crise econômica surgida na década de 1970 e conseqüência da
mudança na concepção do Estado. Fala-se em crise do Estado Providência ou
Estado do Bem-estar Social, para a qual, além da crise econômica e das idéias
neoliberais, também influíram a mudança do perfil da população (crescimento
demográfico, aumento da expectativa de vida) e o alto grau de proteção dos
sistemas (gigantismo da seguridade social). Assim, atualmente, cada país
tenta solucionar o problema do financiamento da seguridade social repesando
tanto as prestações sociais quanto as fontes de financiamento.114
Apenas em alguns países, como nos escandinavos, predomina o
financiamento por transferências dos recursos provenientes de impostos,
através de transferências orçamentárias.115
Qualquer que seja a forma pela qual se estruture o custeio das prestações
previdenciárias, seja escolhida a fórmula das contribuições, seja eleita a de
imposição tributária pura e simples, não se pode desconhecer os preceitos legais
aplicáveis em uma ou em outra das fórmulas e que estabelecem a relação
jurídica de custeio. Obrigacional por índole, a lei estabelece a compulsoriedade
dos recolhimentos e determina a parte orçamentária do Estado, criando a relação
obrigacional da sociedade e do Estado.116
113 Ilídio das Neves, Direito da segurança social..., p. 155-158. 114 Ricardo Lobo Torres, Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: o orçamento na
Constituição, v. 5, p. 75-84. 115 Ibidem, p. 84. 116 José dos Reis Feijó Coimbra, Direito previdenciário brasileiro, p. 236.
82
Na fase de elaboração do orçamento da seguridade social, o poder
competente já terá, na lei de diretrizes orçamentárias (art. 195, § 2º c.c. o art.
165, § 5º da CF), fixado as metas e prioridades a serem implementadas pelo
sistema de proteção social.
A lei orçamentária, da qual é parte integrante o orçamento da
seguridade social117, deve ser examinada minuciosamente, com base em
levantamentos estatísticos, demográficos e atuariais, conforme preceitua o
artigo 96 da Lei n. 8.212/91:
“Artigo 96 - O Poder Executivo enviará ao Congresso Nacional, anualmente, acompanhando a proposta orçamentária da Seguridade Social, projeções atuariais relativas à Seguridade Social, abrangendo um horizonte temporal de, no mínimo, 20 anos, considerando hipóteses alternativas quanto às variáveis demográficas, econômicas e institucionais relevantes.”
As receitas provenientes de contribuições orçamentárias se originariam
dos recursos adicionais do orçamento fiscal e, através da lei orçamentária
anual, se destinariam recursos provenientes da arrecadação de outros tributos
para a saúde, previdência e assistência social.
O problema que ousamos enfrentar inicia-se no fato de que o
constituinte infelizmente não fixou o percentual mínimo com que cada ente da
federação deveria contribuir, que tecnicamente deveria ser regulado por lei
complementar. Em conseqüência, os entes federativos não cumprem sua
obrigação orçamentária, fato esse injustificável para os integrantes da
federação brasileira, já que não há qualquer fator de discrímen aceitável.
117 Wagner Balera, Curso de direito previdenciário: homenagem a Moacyr Velloso Cardoso de
Oliveira, p. 39.
83
Cada pessoa política deveria definir no seu orçamento o valor destinado
ao financiamento indireto da seguridade social, cumprir a determinação
constitucional, garantindo a eficácia da ordem social e do seguro social
instituído no plano de beneficio da seguridade social.
O artigo 193 do Decreto n. 3.048/99, que regulamenta a forma pela qual
a seguridade social é financiada, estabelece:
“Artigo 193 - A seguridade social é financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de contribuições sociais.”
No âmbito federal, o orçamento da seguridade social é composto pelas
receitas provenientes:
I - da União;
II - das contribuições sociais; e
III - de outras fontes.
As receitas provenientes de contribuições da União advêm de recursos
adicionais do Orçamento Fiscal, fixados obrigatoriamente na Lei
Orçamentária Anual. Ou seja, além das contribuições sociais, cuja receita está
vinculada diretamente ao financiamento da seguridade social, a União pode,
através da lei orçamentária anual, destinar recursos provenientes da
arrecadação de outros tributos para a saúde, previdência e assistência
social.118
118 Ítalo Eduardo Romano; Jeane Tavares Aragão Eduardo; Amauri Santos Teixeira, Direito
previdenciário: custeio, p. 20.
84
Vale ressaltar que a Lei n. 8.212, que cuida do custeio da seguridade
social, seguindo o padrão clássico que regeu o tema do financiamento, ao
tratar da chamada contribuição da União, no parágrafo único do artigo 16,
prevê que a União será responsável pela cobertura das eventuais
insuficiências financeiras da seguridade social, quando decorrentes do
pagamento de benefícios de prestação continuada da previdência social, na
forma da lei orçamentária anual.119
Observe-se, desse enfoque, uma total irregularidade, uma vez que a
União só responde se e somente se o sistema tiver insuficiências financeiras;
se o sistema se mantiver equilibrado do ponto de vista financeiro, a
contribuição da União não será necessária.
Data vênia, a União deveria contribuir com um percentual fixo, mesmo
porque ela é a grande responsável pelo déficit que o sistema enfrenta no
momento.
A Lei n. 8.212 é inócua em relação à contribuição da União, pois
definiu tecnicamente uma alíquota zero. Ora, a União só contribuiria se
faltasse dinheiro no caixa para o pagamento de benefícios, mas isso é
inaceitável, pois a mesma lei, em seu artigo 17, dispõe que “para os
pagamentos dos encargos previdenciários da União poderão contribuir os
recursos da seguridade social referidos na alínea ‘d’ do parágrafo único do
artigo 11 desta lei, na forma da lei orçamentária anual, assegurada destinação
de recursos para as ações desta lei de saúde e assistência social”.
119 Ilídio das Neves, Direito da segurança social..., p. 67.
85
Isso é muito grave, pois significa que, além da União não contribuir,
ainda pode receber recursos do sistema para o pagamento de seus encargos
previdenciários. Essa não era a vontade do legislador constituinte, pois o
mandamento constitucional é claro e eficaz no sentido de haver parcela do
orçamento da União para o financiamento da seguridade social.
O problema do financiamento dos entes federativos também existe em
nível estadual e municipal, em relação aos seus regimes previdenciários
próprios.
Notamos que, após a reforma constitucional para a formação desses
regimes, é indispensável a existência de lei própria ou de previsão no regime
jurídico dos servidores do ente federativo, se existente, de sistema de
previdência. Neste devem estar contidas disposições concernentes ao custeio,
à enumeração dos segurados e de seus dependentes, à rede de benefícios e aos
serviços.
Na realidade, é indispensável que haja efetivamente um regime próprio,
e não, como vem ocorrendo com alguns Estados e Municípios, meras
concessões de benefícios, tais como pensões ou complementações, sem
qualquer contribuição por parte do servidor, quando teríamos uma
liberalidade com dinheiro público, o que, é claro, é grave, já que “se faz favor
com o chapéu dos outros”. Aliás, o constituinte derivado, no intuito de dar
cabo a essa lamentável situação, em bom momento, criou a Emenda
Constitucional n. 20/98, que alterou a redação do artigo 40, caput da
Constituição Federal, deixando claro que tais regimes devem possuir “caráter
86
contributivo, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e
atuarial”.120
O nosso inconformismo é claro neste trabalho, em relação às
responsabilidades financeiras que a União assumiu com dependentes dos seus
servidores já falecidos, que devem ser custeados pelo Tesouro Nacional, e não
pelo caixa da seguridade social, fato esse inadmissível e que deve ser cobrado
pela sociedade como imoral e até como desvio de finalidade do custeio.
Outro questionamento que atinge o custeio é o artigo 90 da Lei n. 8.212
que, por sua vez, refere-se à dívida da União para com o sistema de
seguridade social, estabelecendo que “o Conselho Nacional de Seguridade
Social, dentro de 180 (cento e oitenta) dias da sua instalação, adotará
providências necessárias ao levantamento das dívidas da União para com a
seguridade social”.
Esse prazo já expirou e, pior ainda, o órgão competente para a apuração
da dívida foi extinto pela Medida Provisória n. 2.143-36/2001, num manifesto
de ato de inconstitucionalidade.
Não podemos aceitar esse posicionamento. Devemos cobrar
veementemente dos entes da federação a parcela de financiamento e, da
União, além da parcela, apurar o valor real da dívida e cobrá-la de forma
eficaz. Observamos que o objetivo específico deste trabalho é buscar soluções
para o problema do financiamento indireto da seguridade social e fazer valer a
vontade do legislador constituinte.
120 Marcos Orione Gonçalves Correia; Érica Paula Barcha Correia, Curso de direito da seguridade
social, p. 68.
87
Remígio Todeschini evidencia a vontade do legislador constituinte,
relatando que o diário da Assembléia Nacional Constituinte demonstra a
preocupação geral de todos os constituintes em ter proposta única da gestão,
quando houve fusão de propostas no artigo 227, item VII, com a seguinte
redação inicial: “caráter democrático e descentralizado da gestão
administrativa, com a participação de trabalhadores, empresários, aposentados
e da comunidade.”121
No segundo turno, com nova redação, o termo comunidade foi
exemplificado em representações de trabalhadores, empresários e
aposentados.
Quando foi votada a proposta sobre o capítulo da seguridade social, o
deputado Jorge Uequed, do PMDB do Rio Grande do Sul, assim se expressou
quanto à gestão da seguridade social: “A administração da seguridade social
será feita não apenas pelo governo, mas também pelos trabalhadores,
empresários, aposentados e pela comunidade, na área da saúde.”
No primeiro turno, o mesmo deputado assim se expressava quando à
gestão tripartite da previdência:
“É bom salientar que os trabalhadores, os únicos que pagam corretamente a previdência social neste país, não têm o direito de participar da gestão dos recursos que colocam nessa atividade. O trabalhador não pode, Sr. Presidente, sequer sonegar, porque já recebe o seu salário descontada a previdência social. Os empresários, alguns pagam, outros sonegam e alguns recolhem a parcela dos empregados e não a recolhem à previdência social. É indispensável essa administração tripartite e paritária da previdência, para evitar não apenas a má utilização dos recursos, mas também que sejam utilizados recursos da previdência social em outros campos que não aqueles definidos pela ação da sua fundação e da sua organização. Estabelecer-se uma administração tripartite quer dizer não mais serão usados recursos da previdência social em nível nacional,
121 Remígio Todeschini, Gestão da previdência pública e fundos de pensão, p. 67-74.
88
regional ou municipal, nas campanhas eleitorais; não se fará mais da previdência um cabide de empregos para utilização de interesses de grupos que dominem; que, de ora em diante, após a promulgação da nova Carta, lá estarão os representantes dos trabalhadores em nível nacional, regional e municipal, para fiscalizar, denunciar e não permitir esta utilização.”122
Realmente houve, durante todo o processo da constituinte, tentativas de
emendas que visavam à redução da participação da comunidade na gestão da
previdência, o que, para Anníbal Fernandes, “seria reduzir ainda mais o
espaço dos trabalhadores e das empresas na administração da previdência
social.”123
No primeiro artigo da nossa Constituição, o princípio fundamental, a
norma-princípio, estabelece a participação popular direta: “Todo poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos desta Constituição.”
Tal princípio é de aplicabilidade imediata, e não é princípio indicador,
como são os dos fins do Estado, inscrito no artigo 3º, inciso III, e o da
erradicação da pobreza. A participação popular reforça o Estado democrático
e não deve limitar-se às instituições representativas.
Segundo José Afonso da Silva, o Estado democrático visa “realizar o
princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da
pessoa humana”124, entre os quais temos os direitos sociais da seguridade
social. Tal concepção supera o conceito da democracia liberal, que estabelece
a norma jurídica como algo abstrato e geral. O Estado Democrático de Direito
significa fazer com que a comunidade de fato esteja inserida em todos os
122 Diário da Assembléia Nacional Constituinte, sábado, 23 maio 1987, p. 2.162-2.163. 123 Anníbal Fernandes, Poder econômico versus previdência social: a previdência na crise mundial,
p. 314. 124 José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 121.
89
mecanismos de controle e decisão, para que de fato o direito seja aplicado
universalmente na vida cotidiana de todos e não seja uma mera ficção.
Necessário destacar a lição cristalina da caracterização do Estado
Democrático de Direito de José Afonso da Silva:
“A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos do governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de idéias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.”125
A democracia participativa direta está inscrita em diversos artigos da
Constituição federal e tem aplicabilidade imediata. O artigo 10 da
Constituição, inserido no Capítulo II, Dos Direitos Sociais, assegura a
participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos
públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto
de discussão e deliberação.
Wagner Balera ensina que esse direito não está sendo aplicado, portanto
a Constituição é ferida quando os trabalhadores e empregadores não têm
assento no Conselho Monetário Nacional, órgão atualmente sob a égide
monocrática do Ministro da Fazenda, subordinando-se aos ditames do Fundo
125 José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 121.
90
Monetário Internacional. Ferido também é o princípio fundamental da
soberania nacional inscrito no artigo 1º, I da Constituição de 1988.126
Com todo esse arcabouço constitucional de participação direta, pode-se
de fato realizar o Estado Democrático de Direito, em busca da equalização
das condições dos socialmente desiguais, tendo em vista a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, conforme os princípios ora elencados. Como
processo dialético, e através da participação direta, é que se busca o
aperfeiçoamento e a universalização dos direitos.
4.1 Financiamento indireto da saúde
O financiamento indireto da saúde viveu momentos históricos
importantes que refletem a luta da nação no sentido de consolidar a reforma
econômica, social e política do sistema de saúde.
4.1.1 Retrospecto histórico
4.1.1.1 Período de 1974 a 1979
Trata-se de uma fase em que ocorreram mudanças
conceituais importantes no âmbito da discussão das políticas sociais e de
saúde no Brasil, assim como reorientação política e institucional do Estado
brasileiro.
Consolidou-se o movimento brasileiro de reforma
sanitária: o diagnóstico realizado no país evidenciou as grandes desigualdades
126 Wagner Balera, Sistema de seguridade social, p. 23.
91
sociais e de saúde, o que resultou em uma agenda de propostas para a
reversão do quadro social apresentado e, em especial, das condições de saúde.
As discussões giravam em torno dos problemas e
necessidades de saúde da população e seus determinantes, de propostas
políticas e de reordenação do sistema, além de debates sobre a medicina
preventiva e social, todos temas congruentes. A temática da reforma era
apresentada assim a partir da perspectiva de construção de um novo sistema
de saúde, não tendo sido discutida a reforma, mas sim havendo discussões
críticas sobre o sistema em funcionamento e sobre a necessidade de uma
reformulação. Na época, ampliaram-se os movimentos de questionamento do
modelo de atenção à saúde característico dos serviços prestado pelo Estado.
Em 1974, o Plano de Pronta Ação (PPA) se constituiu em
uma iniciativa que viabilizou a expansão da cobertura em saúde e desenhou
uma clara tendência de fortalecimento da proposta de universalização da
atenção à saúde.
Neste ponto, vale ressaltar que a política de saúde
brasileira ainda estava conformada aos padrões meritocráticos de direito à
saúde, e apenas tinha direito à assistência médica do Instituto Nacional da
Previdência Social (INPS) o trabalhador vinculado ao instituto e seus
dependentes.
A proposta de universalização da saúde significava a
extensão desse direito a toda a população, independente de contribuição
previdenciária. Assim, se garantia a todo cidadão o direito à assistência
integral à saúde, sem qualquer tipo de discriminação.
92
Os serviços do INPS não eram os únicos a prestarem
assistência médica, mas certamente eram aqueles onde havia maior
investimento e portanto recursos. Além disso, havia, nessa lógica, uma
concentração dos serviços de assistência próximo aos centros urbanos de
produção, deixando uma parcela significativa da população sem opção de
acesso.
A instituição do Sistema Nacional de Saúde (SNS), em
1975, constituiu-se na primeira proposta nacional de configuração de um
sistema de saúde que enfrentava a necessidade de existir uma política única
para a saúde, em todo o território nacional, com diretrizes políticas definidas.
Seguiu-se o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento
(PIASS), definido em 1976 com o propósito de estender serviços de atenção
básica à saúde no Nordeste do país, que reconhecia a necessidade de definir
políticas para além dos centros urbanos e de ampliar o acesso à saúde em todo
o território nacional.
Também as V e VI Conferências Nacionais de Saúde,
realizadas em 1975 e 1977, expressaram bastante bem o esforço do Estado na
construção de um arcabouço institucional de base para a saúde, nesse período.
À guisa de síntese dessa fase, vale ressaltar que, nos anos
do governo Geisel, houve maior espaço para os movimentos contra o poder
estabelecido e o desenvolvimento de políticas sociais. No setor saúde, foi
possível o fortalecimento do movimento de reforma da política de atenção
para o setor.
No aspecto político e social, aumentaram as posições
voltadas para a definição de um Estado Democrático. Os impasses da crise
93
geral do Estado e a presença sólida de propostas de reforma para o conjunto
do Estado permitiram o encaminhamento das mesmas.
No tocante às políticas sociais, o início do processo de
abertura e democratização social permitiu o desenho de políticas de proteção
de moldes cada vez mais universalistas.
No ano de 1978, foi realizada em Alma-Ata, na URSS, a
Conferencia Mundial da Saúde, sob os auspícios da Organização Mundial de
Saúde (OMS) e do Fundo Internacional de Socorro à Infância. Dessa
conferência, surgiram vinte e duas recomendações, que foram reunidas na
Declaração de Alma-Ata (o Brasil foi um dos poucos países ausentes desse
encontro). Com base nessa declaração, o Conselho Executivo da OMS
elaborou, em 1979, o documento “Formulação de estratégias com vistas a
alcançar saúde para todos no ano 2000: princípios básicos e questões
essenciais” (saúde como completo bem-estar biopsicossocial). O documento
foi debatido na 32ª Assembléia Mundial de Saúde, realizada em Genebra, em
maio de 1979. O Brasil estava presente nessa assembléia e colocou-se de
pleno acordo com as propostas apresentadas.
4.1.1.2 Período de 1980 a 1986
A temática principal era a política de extensão da cobertura
dos serviços de saúde, numa releitura do Programa de Interiorização das
Ações de Saúde e Saneamento (PIASS) para o território nacional. A proposta
ganhou corpo com a configuração formal da proposta do Prev-Saúde,
apresentada no âmbito de discussão da VII Conferência Nacional de Saúde,
1980.
94
O Prev-Saúde visava dotar o país de uma rede de serviços
básicos que oferecesse, em quantidade e qualidade, os cuidados primários de
proteção, promoção e recuperação da saúde, tendo como meta a cobertura de
saúde para toda a população, até o ano 2000.
A atenção primária, nesse entender, seria a estratégia para
a redução das desigualdades sociais existentes, estratégia essa que atendia
duplamente aos propósitos do Estado.
No entanto, o Prev-Saúde acabou não sendo incorporado
pelo governo e muito menos estabelecido na prática, dada as resistências
intraburocráticas assentadas no INAMPS, a forte oposição das entidades do
segmento médico-empresarial e, ainda, as pressões oriundas do campo da
medicina liberal. Esse conjunto de forças conformou um sem-número de
razões para que o Prev-Saúde não se concretizasse.
O diagnóstico do Conselho Consultivo de Administração
da Saúde Previdenciária (CONASP) mostrou uma rede de saúde ineficiente,
desintegrada e complexa, na relação do INAMPS com os demais serviços de
assistência promovidos pelo Estado. Os serviços oferecidos pelo Ministério da
Saúde (secretarias estaduais e municipais inclusive) funcionavam
independentemente e paralelamente aos serviços oferecidos pelo
MPAS/INAMPS, formando uma rede pública desintegrada, o que constituía
uma dificuldade a mais no planejamento dos investimentos e gastos do setor.
Toda essa discussão configurou um novo marco político
para o debate da reforma setorial e, a partir dela, foram elaboradas propostas
operacionais para a reestruturação do sistema e desmontagem do modelo,
como a configuração das Ações Integradas de Saúde (AIS). As AIS visavam
95
dar maior racionalidade, integração e controle às ações de saúde, com a
programação e orçamentação dos recursos para a saúde, integração das ações
do setor público e conveniado e controle de recursos para o setor privado
contratado.
O contexto político também favoreceu o crescimento do
debate setorial, pois o processo de “transição democrática” trouxe novas
perspectivas e o começo do governo da Nova República, em 1985, deu início
a um processo acelerado de mudanças na saúde.
Durante todo o período de 1985 e 1986, desenvolveu-se
um processo intenso de negociação entre os grupos e setores envolvidos no
projeto de reforma (sanitaristas, previdenciários, trabalhadores e outros
grupos).
A possibilidade de implementação da reforma pressionava
para a definição de estratégias e políticas concretas de mudança setorial, mas
as forças políticas e institucionais que emanavam desses diversos grupos
prolongavam o processo de negociação, levando a alguns impasses.
No mesmo ano, foi realizada a VIII Conferência Nacional
de Saúde, que se configurou como o ápice de todo esse movimento de
negociação, tendo sido resultado de forte pressão dos “reformistas da saúde”
para a legitimação da reforma.
A Conferência contou com a presença de mais de quatro
mil pessoas e a participação expressiva de grupos sociais de diversos
segmentos, encerrando uma lista de propostas sistematizadas para a política
de saúde, dentre elas a de reformulação do Sistema Nacional de Saúde, com a
96
constituição de um comando único do sistema. Essa proposta indicava a
transferência imediata do INAMPS para o Ministério da Saúde e a separação
progressiva dos recursos para financiamento da previdência, visando encerrar
o debate entre previdência e saúde na disputa por poder e recursos.
A VIII Conferência Nacional de Saúde também indicou a
formação de uma Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS), para a
elaboração mais detalhada das propostas discutidas em plenário, e com o
objetivo de formular um texto sistematizado que pudesse subsidiar as
discussões relativas à definição da política de saúde na Assembléia Nacional
Constituinte.
A Comissão se reuniu durante todo o ano de 1987 e
apresentou, ao final do processo, um conjunto de documentos técnicos com
diretrizes para a reforma do setor saúde, reafirmando a discussão da VIII
Conferência Nacional de Saúde. Os documentos serviram de referência no
debate da Assembléia Nacional Constituinte.
Esta fase foi essencialmente político-ideológica, mostrando
o desenvolvimento dos principais alicerces da discussão para a política de
saúde a ser implementada.
A importância desta fase está na capacidade de
mobilização e implicação dos diversos atores – políticos, sociais e
institucionais – na avaliação e construção de um ideal político para a saúde,
expressando os interesses de cada parcela e os conflitos que a proposta de
reforma trazia, na perspectiva de cada grupo.
97
4.1.1.3 Período de 1987 a 1990
Nesta fase político-institucional houve um avanço da
política de consolidação jurídico-legal e social dos princípios e diretrizes do
projeto de reforma setorial. Foi um momento marcado ainda pelas discussões
da VIII Conferência Nacional de Saúde de 1986 e houve então uma real
possibilidade de legalização da reforma.
Nesse sentido, o debate acadêmico nunca esteve tão
próximo da discussão política, subsidiando as reuniões da Assembléia
Nacional Constituinte, nos anos de 1987 e 1988, e interferindo na construção
da política, como a definição do Sistema Descentralizado e Unificado de
Saúde (em 1987), cujo principal formulador foi o então presidente do
INAMPS Hésio Cordeiro, importante personagem do cenário acadêmico da
saúde.
O SUDS, como uma estratégia-ponte para o SUS, como foi
considerado por muitos analistas políticos, avançou na operacionalização da
reforma e serviu como um instrumento de continuidade do processo de
reforma da saúde, na medida em que os quadros políticos de apoio à reforma
podiam a qualquer momento ser dispensados ou afastados, diante do contexto
de renovação política com as eleições.
Mesmo sem a discussão finalizada de qual seria a melhor
estratégia para a saúde naquele momento, o SUDS mostrou-se como única
opção no encaminhamento da reforma, porque mesmo com o baixo grau de
consenso no tocante às propostas, ainda definia algo mais do que existia até
98
aquele momento. Era o primeiro passo institucional concreto rumo à reforma,
nos moldes que vinha sendo discutida.
Os frutos desse debate se apresentaram no ano de 1988
com a aprovação da nova Constituição brasileira e, em especial, da seção da
seguridade social, onde se inseriu o capítulo da saúde.
O capítulo da saúde incorporou todos os princípios
debatidos no processo de reforma, garantindo a definição dos princípios
básicos do SUS, configurando uma grande vitória do movimento reformista,
que finalmente garantia uma base institucional concreta para o
desenvolvimento da reforma. No entanto, as negociações finais na
Assembléia Nacional Constituinte deram-se em um quadro político-
institucional rearticulado, e a operacionalização da reforma foi remetida para
definição posterior, em legislação complementar.
A Constituição Federal garantiu as bases mínimas para a
reforma – princípios e diretrizes do sistema –, mas restava ainda toda a
discussão operacional da reforma, onde incidiam os principais dilemas da
negociação política. Saúde como direito do cidadão e dever do Estado, ou
seja, os cuidados a saúde ultrapassam o atendimento à doença e se estendem à
prevenção e às condições geradoras de doenças. Saúde passa a ser entendida
também como condições de vida, abarcando moradia, trabalho, educação e
lazer.
Nesse período, os reformistas da saúde já não se
apresentavam tão atuantes na discussão política, mas ainda contribuíram
efetivamente no projeto de formulação da Lei Orgânica da Saúde.
99
A Lei Orgânica da Saúde só veio a ser promulgada em
setembro de 1990, no contexto do governo Collor, e sofreu uma enormidade
de vetos. Mesmo assim, definiram-se os objetivos, atribuições, diretrizes,
princípios, organização, financiamento e planejamento do setor saúde, dentro
da nova lógica proposta pelo SUS.
Diante dos vetos que sofreu, foi formulada e aprovada uma
lei complementar (LC n. 8142), que buscou redefinir alguns pontos de veto da
lei, obtendo algum sucesso.
Com a definição das leis complementares da saúde, em
1990, fechava-se a base institucional necessária para a implementação efetiva
da reforma. A participação dos grupos reformistas e da intelectualidade na
definição das regras do sistema encerrava um primeiro ciclo e, mesmo que
ainda existissem algumas lacunas na definição da reforma, sua base
institucional estava montada. Teria início a partir desse período a construção
do SUS.
A IX Conferência Nacional de Saúde reafirmou a proposta
do SUS. As normas operacionais básicas definiram as estratégicas e
movimento táticos que orientam a operacionalidade do SUS, viabilizando a
sua implantação. Foram estabelecidas normas e procedimentos para efetivar o
processo de descentralização das ações de serviços de saúde, acatando
recomendações do Conselho Nacional de Saúde, no sentido de realizar a
descentralização para Estados e municípios de forma gradual, a partir do
preenchimento de critérios de viabilidade em cada situação, até que cada
município pudesse ficar autônomo na condução e gestão do SUS, no seu
âmbito.
100
4.1.1.4 Período posterior a 1990
A recente emenda constitucional que tratou do
financiamento do setor de saúde prevê expressamente que um percentual fixo
do orçamento da União, dos Estados e dos Municípios deve ser destinado a
esse setor, e que o percentual do orçamento da União não pode ser inferior
aos anteriormente adotados.
Assim sendo, esse setor será cada vez mais aquinhoado no
orçamento da União, independentemente das verbas destinadas à seguridade
social, observando sempre as metas e prioridades e os princípios da
universalidade e distributividade, com a participação tanto da sociedade como
do Estado.
Através da Emenda Constitucional n. 29/2000, que
vinculou os recursos para área da saúde e atendeu ao desejo do legislador
originário de 1988, a sociedade brasileira deu um grande passo na forma de
financiamento indireto.
Nesse momento, o setor de saúde passou a contar com um
quantitativo fixo da receita pública de seguridade social, caracterizada pelo
modo indireto (receita de impostos), de difícil apuração, sem prejuízo da
verba que lhe cabe na repartição da receita que ingressa pelo modo direto
(receita das contribuições sociais, inclusive a CPMF). É modo vinculado, para
definitivamente cumprir o sistema de financiamento indireto determinado
pelo constituinte originário de 1988.127
127 Wagner Balera, Sistema de seguridade social, p. 30.
101
A questão do financiamento indireto da saúde se tornou o
ponto de partida para a assistência social, para a qual também já há
mobilização para a adoção da regra do financiamento indireto. A proposta
dessa emenda constitucional avançou, na medida em que se ampliou a
discussão sobre uma possível reforma na área da saúde, com a participação
direta da sociedade que, angustiada por ver uma saúde falida e sem recursos
para a atenção ambulatorial e hospitalar, sentiu a necessidade de se
vincularem recursos próprios para a saúde, sem desvios, através de um amplo
processo de descentralização.
No Brasil, o financiamento público federal da saúde se
caracterizou por constantes alterações e pela triste realidade de que não é a
saúde uma prioridade. Ao longo do tempo, alguns aspectos chamaram mais a
atenção de nossos governantes, inclusive a questão do financiamento, reflexão
que faremos a partir de agora, relacionada à origem da vinculação
propriamente dita, ou seja, à parte do financiamento indireto.
A Carta Magna de 1988 trouxe um enorme avanço, em
resposta às demandas políticas e sociais que se acumularam ao longo do
século XX. Ela reformulou e transformou toda a organização do setor da
saúde, criou o Sistema Único de Saúde, um modelo de atenção especial à
saúde, de acordo com os princípios constitucionais, proporcionando maior
equidade na distribuição dos serviços e na atenção a toda a população.
A saúde passou a ser parte da seguridade social,
juntamente com a previdência social e a assistência social, com um orçamento
específico, o orçamento da seguridade social, dotado de uma arrecadação
102
única para os programas sociais, baseada no total dos recursos, o que
possibilita o desenvolvimento das políticas sociais previstas na Constituição.
Wagner Balera preceitua que “o que mais importa, nesse
preceituário, é a definição política dos percentuais mínimos a serem alocados
ao setor de saúde, no catálogo de receitas e impostos”.128
Passou a existir na Constituição Federal um capítulo
dedicado à seguridade social, abrangendo a previdência, a assistência social e
a saúde, dentro do qual alguns artigos dizem respeito especificamente à saúde.
O artigo 196 estabelece que “a saúde é direito de todos e
dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem
a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
O constituinte, sabedor do estado precário em que se
encontrava a saúde brasileira, não hesitou em positivar a recuperação da
saúde, o que só poderia acontecer se realmente as políticas implementadas
fossem de fato eficazes.
Ana Elizabete Mota afirma que o grande capital, os
organismos internacionais e a burocracia estatal utilizam-se de problemas
conjunturais, que afetam os seus interesses mediatos e imediatos –
reestruturação produtiva, reestabelecimento de níveis de produtividade,
redução de custos com a força de trabalho e cumprimento dos acordos
128 Wagner Balera, Sistema de seguridade social, p. 31.
103
financeiros internacionais – e os transformam em questões estruturais que
exigem reformas e aprovação da sociedade como um todo.129
O artigo 197, por sua vez, diz que “são de relevância
pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público, dispor, nos
termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua
execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa
física ou jurídica de direito privado”.
Trata-se de um novo pacto social, passando a saúde a ser
direito de todos e dever do Estado. Aliás, não podemos esquecer que o Estado
é a sociedade politicamente organizada, havendo, portanto, uma
responsabilidade solidária.
Apesar de todo o pacto firmado, os preceitos
constitucionais geravam dúvidas no cumprimento desse pacto, em relação aos
entes federativos, quanto às fontes de financiamento indireto, pois
mencionavam os orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, porém não fixando o valor, ou seja, o percentual.
O Orçamento Geral da União (OGU), formado pelo
orçamento da seguridade social e o de investimento das estatais, estabeleceu
uma nova forma e novos critérios para as transferências públicas de recursos
para o Estado, com financiamento principalmente através de recursos do
orçamento fiscal, mas agora também com recursos do orçamento da
seguridade social.
129 Ana Elizabete Mota, Cultura da crise da seguridade social, p. 221.
104
Apesar de o constituinte ter criado programas que
possibilitavam uma maior arrecadação, permitindo a incorporação de
demandas sociais, a implementação desses preceitos foi dificultada pelo
processo inflacionário da década de 90.
O processo inflacionário gerava perdas reais no repasse das
dotações orçamentárias, atraso nos repasses de recursos e realocação de
verbas que muito dificultaram o financiamento público da saúde.
Não podemos olvidar que a implementação das políticas
públicas não é atingida quando há uma instabilidade no processo de ajuste da
economia e, infelizmente, sempre há um conflito entre a satisfação das
demandas sociais e o equilíbrio das contas públicas.
Isso se deu mesmo com a criação da contribuição
provisória sobre movimentações financeiras (CPMF), que substituiu o
imposto provisório sobre movimentação financeira (IPMF). Deve-se lembrar
que o IPMF começou a ser arrecadado no início de 1994 e, já no primeiro
ano, importou em um volume de recursos de R$ 4,98 bilhões, o que
representava 7,74% da arrecadação total do governo. A CPMF entrou em
vigor em janeiro de 1997, tendo como resultado, no seu primeiro ano, uma
arrecadação de R$ 6,9 bilhões (6,45% da arrecadação total do governo
federal). A CPMF corresponde à fonte 155 no Orçamento da União.
Os recursos arrecadados com a CPMF deveriam ser
destinados ao Ministério da Saúde, para financiar o Sistema Único de Saúde,
e ao Ministério da Previdência, para reduzir parte do déficit do INSS. Com a
elevação da alíquota nos exercícios de 1999, 2000 e 2001, o percentual
acrescido deveria ser destinado ao custeio da previdência social.
105
Até janeiro de 1999, a alíquota era de 0,20%. Com a
prorrogação da cobrança, a alíquota passou para 0,38%, a partir de 17 de
junho de 1999, por um ano. Nos dois anos subseqüentes, a alíquota cobrada
seria de 0,30%, até o ano de 2001. Em março de 2001, a alíquota voltou a
0,38%. O aumento da alíquota da CPMF foi aprovado pelo Congresso em
dezembro de 2000, com o objetivo de financiar o Fundo de Combate à
Pobreza. A receita gerada com o percentual alterado seria usada no programa
“Bolsa-escola” e em projetos de saneamento.
A flutuação das fontes de financiamento das políticas de
saúde produziu uma inquietação em toda sociedade. Visando garantir recursos
estáveis para o setor, dado o ambiente de disputas e incertezas, no futuro seria
conveniente a aprovação de recursos orçamentários apropriados e vinculados.
Nesse sentido, o setor se mobilizou para tentar aprovar no
Congresso Nacional recursos para a saúde, diminuindo o grau de incerteza e
instabilidade quanto ao financiamento, com propostas de emendas à
Constituição (PECs) visando a vinculação de receita para o setor. Após um
longo processo de negociações e votações, foi aprovada a Emenda
Constitucional n. 29/2000, fruto de muita luta, que vinculou recursos para o
setor da saúde.
A PEC que ficou conhecida como PEC da saúde foi
resultante de um movimento suprapartidário que se desenrolou durante muito
anos e passou por vários governos. Foi uma conquista extremamente
importante para garantir recursos federais, estaduais e municipais para o
atendimento da saúde e resultou da luta daqueles que tinham interesse em
106
defender a saúde do povo brasileiro, tornando possível a criação de
vinculação orçamentária, através da alteração constitucional.
A vinculação de receita na Constituição, destinada à saúde
é luta antiga de todos os médicos e de todas as entidades médicas. Já na
Constituinte de 1988, quando da criação do SUS, o deputado federal Eduardo
Jorge tentou, sem sucesso, essa vinculação orçamentária.
Durante anos, as verbas para a saúde foram insuficientes.
Infelizmente, não foi possível sensibilizar os governantes. A partir da criação
do SUS, a batalha se intensificou, tomando a forma de uma luta organizada e
suprapartidária. Nesses mais de dez anos, o SUS se expandiu em quantidade e
qualidade, mas administrando uma miséria orçamentária.
Em 1993, o deputado federal Eduardo Jorge, (escolhido
pela Sociedade de Medicina e Cirurgia como o médico deputado federal do
ano 2000), apresentou o PEC n. 169, visando destinar recursos específicos
para a saúde.
O projeto teve como relator o combativo deputado
Darcísio Perondi do Rio Grande do Sul (escolhido pela Sociedade de
Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro como médico deputado federal do ano
de 2002).
Apesar do esforço e da tenacidade do autor da emenda e do
seu relator, infelizmente, ela foi sendo procrastinada, até o arquivamento. Em
1995 o deputado Carlos Mosconi, de Minas Gerais (escolhido pela Sociedade
de Medicina e Cirurgia como o médico deputado federal do ano de 1998)
apresentou outra emenda, que tomou o número 82.
107
Essa emenda tinha algumas nuanças que a distinguiam da
outra, mas com a mesma finalidade. O relator dessa emenda foi o deputado
Ursicino Queiroz, da Bahia (escolhido pela Sociedade de Medicina e Cirurgia
como médico deputado federal do ano de 1999). Após longos anos de batalha
e recebendo o apoio dos médicos, das entidades médicas e conseguindo
sensibilizar a maioria da Câmara dos Deputados, ela foi aprovada. Na
realidade, houve um acordo suprapartidário para a aprovação.
O primeiro turno ocorreu no dia 27.10.1999, com 405
votos a favor, e o segundo turno em 10.11.1999, com 416 votos a favor. A
seguir, a emenda foi remetida para o Senado Federal. Depois de sete meses, e
muita pressão de setores da saúde, finalmente a matéria entrou em discussão,
no dia 21.6.2000, sendo aprovada em sessão do dia 29, com o apoio de 62
votos a favor e apenas 3 contra. Em 13.8.2000, a emenda foi promulgada.
Na Comissão de Seguridade Social da Câmara, papel de
destaque tiveram os deputados José linhares (CE), Alceu Collares (RS) e
Jandira Feghali (RJ), mostrando o caráter suprapartidário da Emenda.
Houve ainda, durante todo o transcurso do processo, os
apoios do Conselho Nacional de Saúde, do CONASEMS e, em especial, dos
Ministros da Saúde Jamil Haddad, Adib Jatene e José Serra.
No Senado, foi muito importante o trabalho do relator
senador Antônio Carlos Valladares e também a participação nos bastidores do
Ministro da Saúde José Serra. Apesar de todos os esforços, os valores ficaram
abaixo da expectativa, mas o mais importante foi garantir, na Constituição, a
vinculação de recursos para a saúde e a certeza de que o SUS passaria a ter
108
recursos garantidos pela Constituição, provenientes dos tributos arrecadados e
de repasses dos governos estaduais e municipais.
Os recursos do SUS passaram de R$ 19 bilhões para 22,5
bilhões. A Emenda Constitucional da Saúde garantiu, para 2001, 5% do
Orçamento Federal e, a partir daí, o mesmo percentual da variação do Produto
Interno Bruto (PIB), acrescido da inflação.
Os Estados deveriam investir 7% da arrecadação, com
aumentos sucessivos, até atingir 12% da receita. Já os municípios começaram
com a obrigação de destinar 7% e chegarão a investir 15%. Os recursos para a
saúde aumentaram, porém deve-se atentar para os desvios de verbas, os
grandes ralos por onde escapam o dinheiro devem ser consertados para que o
SUS comece a ter condições de funcionamento.
A exposição de motivos da Emenda Constitucional n.
29/2000 demonstra que a história do financiamento federal da saúde se
caracterizou sempre por apresentar um quadro de instabilidade dos montantes
destinados ao setor. As fontes de financiamento do setor − recursos ordinários
da União, contribuição social sobre o lucro líquido das empresas, contribuição
sobre o faturamento das empresas, contribuição provisória sobre a
movimentação financeira, receita proveniente dos fundos de desvinculação
fiscal e outros recursos e fontes − não foram suficientes para solucionar o
problema.
O financiamento precisava ser definido por emenda à
Constituição que estabeleceria os percentuais de recursos específicos para o
setor.
109
A proposta visava garantir a continuidade do
financiamento do setor de saúde, sem desvios ou reduções drástica no aporte
de recursos, por decisões arbitrárias e infundadas, de forma a garantir a
cobertura das necessidades de financiamento. Assim, o Ministério da Saúde
ficaria menos vulnerável a essas decisões e o setor ficaria menos
desprotegido.
O debate sobre a necessidade de vinculação de recursos
orçamentários para saúde ganhou um defensor, o então ministro José Serra,
que na época afirmou ser favorável à vinculação de recursos para a saúde
porque o orçamento da saúde sempre estava vulnerável a cortes, o que
funcionaria como obrigação para os governantes. Segundo ele, se não
houvesse todas as vinculações orçamentárias constitucionais, as pessoas
humildes ficariam cada vez mais vulneráveis à falta de assistência, a exemplo
da médica, como ocorreu quando do colapso inflacionário da década de 90.
O terceiro fator citado pelos autores da emenda sobre as
limitações da vinculação é que ela, na prática, transforma em teto o volume de
recursos previsto para ser o piso do setor, engessa o orçamento e elimina a
prejudicial flexibilidade das decisões dos governantes.
Os pontos positivos da vinculação seriam, em primeiro
lugar, a elaboração de orçamentos vinculados da assistência, previdência e
saúde, dentro do orçamento da seguridade social; em segundo lugar, a
vinculação desses recursos, entre as três esferas de governo, favorece a
descentralização; em terceiro, maiores serão os recursos para o setor da saúde,
tão necessários atualmente, dado o quadro de deterioração em que se
encontra.
110
Dado o quadro de mudanças tributárias, o setor da saúde
passou a vincular seus recursos, no intuito de possibilitar alguma garantia de
financiamento. A emenda constitucional asseguraria os recursos mínimos para
o financiamento da saúde. A PEC n. 82-C foi aprovada e deu origem à
Emenda Constitucional n. 29.
A Emenda foi promulgada em 13 de setembro de 2000,
alterou os artigos 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e
acrescentou o artigo 77 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Os critérios estabelecidos na Emenda eram auto-aplicáveis
e suas exigências e efeitos foram imediatos sobre os Estado e Municípios, não
necessitando nenhum instrumento legal para o seu cumprimento. Além de
definir os limites mínimos de aplicação na área da saúde pública, estabelece
regras de adequação para o período de 2000 a 2004. A complexidade da
emenda está nos cálculos dos limites de investimento, nos critérios de
fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde e nas normas de
cálculo dos recursos a serem aplicados pela União, definidos por meio de lei
complementar, reavaliada periodicamente, pelo menos a cada cinco anos. Na
hipótese da não edição dessa lei, permaneceriam válidos os critérios
estabelecidos na própria emenda constitucional.
Os artigos 34 e 35 da Constituição passaram a permitir que
a intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal e dos Estados nos
Municípios, assegurando a aplicação do mínimo exigido da receita resultante
de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na
manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de
saúde.
111
A mudança no artigo 156 possibilita a criação de diferentes
alíquotas do Imposto Territorial Urbano (IPTU), favorecendo a arrecadação
dos Municípios, para atender às ações e serviços públicos de saúde.
O artigo 198 tem dois novos parágrafos, que estabelecem a
participação dos entes federados no financiamento público da saúde, através
de seus respectivos orçamentos, vinculam e especificam quais impostos
podem compor a receita. Estabelecem que lei complementar definirá os
percentuais de participação de cada ente federativo e as formas de fiscalização
e controle das despesas.
A emenda cria um novo artigo para o Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, estabelecendo as formas de participação da
União, Estados, Distrito Federal e Municípios no financiamento da saúde, até
2004, ou até a elaboração de lei complementar.
A União, de acordo com o artigo 77, deve aplicar nas
ações e serviços de saúde, em 2000, o montante empenhado em ações e
serviços públicos de saúde no exercício financeiro de 1999 acrescido de, no
mínimo, 5%. Nos anos de 2001 a 2004, o valor apurado no ano anterior,
corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB).
Os Estados e o Distrito Federal devem destinar 12% dos
impostos e outras receitas a que se refere o artigo 155 e dos recursos de que
tratam os artigos 157 e 159, inciso I, alínea “a”, e inciso II, deduzidas as
parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios.
Os Municípios e o Distrito Federal devem destinar 15% do
produto de arrecadação dos impostos e outros recursos especificados no artigo
112
156 e dos recursos de que tratam os artigos 158 e 159, inciso I, alínea “b” e
parágrafo 3º.
O parágrafo 1º dispõe sobre o crescimento gradual da
contribuição dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que devem
aplicar pelo menos 7% de sua arrecadação e obrigatoriamente aumentar o
percentual, de forma a se atingir o percentual de 12% e 15%, respectivamente.
Não podem ser considerados no percentual destinado à
saúde os recursos gastos com folha de pagamento de inativos e pensionistas.
Os pagamentos de serviços de limpeza urbana ou rural e saneamento devem
ser financiados com tarifas, taxas ou contribuições cobradas dos usuários.
Cabe ressaltar que os percentuais especificados na Emenda
Constitucional n. 29 são números mínimos e não representam o valor
adequado, e sim o valor mínimo. A emenda estabelece ainda que a lei
complementar a ser promulgada definirá os critérios de rateio de recursos da
saúde, objetivando a progressiva redução de disparidades.
Portanto, não se pode deixar de lado essa participação e
muito menos não cobrar a participação do Estado no financiamento indireto,
principalmente o cumprimento na integra da Emenda Constitucional n.
20/2000. Porém, com base nessa cobrança, pesquisamos a real aplicação dos
percentuais e regras aqui discutidos e chegamos à triste constatação de que, na
prática, os governantes não estão respeitando a determinação constitucional.
A ordem constitucional é clara, mas, mesmo assim, das 27
unidades estaduais da federação, 17 não vêm cumprindo a exigência
113
constitucional. Mas nada acontece, apesar das punições previstas na Lei de
Responsabilidade Fiscal.
O país assiste, com perplexidade, à investida do governo
contra os recursos da saúde. O primeiro ataque ocorreu durante a própria
tramitação da reforma tributária na Câmara, quando o esquema
governamental quis aprovar a emenda da desvinculação de receitas do
Estados, propondo tornar livre a aplicação de 20% do total de recursos
vinculados do Estados. A medida, que afetaria principalmente as verbas para
a educação e saúde, foi repelida nas negociações partidárias, juntamente com
outra proposta, que também atingiria os recursos da saúde: a desvinculação da
aplicação de 0,38% da CPMF, da qual 0,20% vai para a saúde, 0,10% para a
Previdência e 0,08% para o combate à pobreza.
A surpresa maior foi a proposta orçamentária de 2004, com
a inclusão das verbas do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza no
orçamento da saúde. Significou uma redução de R$ 3,571 bilhões nos
repasses da União para os serviços tipicamente de saúde no próximo ano, num
flagrante descumprimento da Emenda Constitucional n. 29. Será que as atuais
autoridades federais acreditam que o sistema público de saúde vai tão bem a
ponto de poder abrir mão de parte importante de seus recursos em favor de
outros desafios nacionais? Aliás, misturar os conceitos de assistência social e
saúde, apesar de estarem dentro da estrutura constitucional da seguridade
social, é inaceitável, uma vez que são campos distintos.
A manobra em curso provocará forte reversão na tendência
de aumento das aplicações em saúde, verificada desde 2000. Em razão da
Emenda Constitucional n. 29, os gastos com saúde subiram de R$ 18,353
114
bilhões, em 1999, para R$ 27,783 bilhões, em 2003, o que corresponde a um
aumento de 51%, em apenas cinco anos.
Com a referida inclusão, por parte do governo, do Fundo
de Combate à Pobreza no orçamento da saúde de 2004, o total destinado ao
setor ficou em R$ 28,906 bilhões, o que representa aumento de apenas 4%,
menos da metade da inflação prevista para o ano.
Esse, na realidade, é um mau exemplo dado pelo governo
federal aos Estados e Municípios. Deve-se observar que várias administrações
estaduais se inspiraram na iniciativa federal, incluindo na rubrica da saúde,
gastos com outros itens, como despesas com restaurantes populares. Projeções
indicam que a perda total de recursos para a saúde, nos três níveis de governo,
chegou a R$ 10 bilhões em 2004. É também motivo de apreensão o
ressurgimento, na tramitação da reforma tributária no Senado, da proposta de
desvinculação das receitas dos Estados.
Se, por um lado, a boa notícia é que os investimentos em
saúde e educação têm aumentado nos últimos anos, por outro, a má notícia é
que os aumentos não correspondem ao que está previsto em lei. No caso da
saúde, 17 Estados não estão cumprindo a Emenda Constitucional n. 29/2000,
que estipulou um percentual mínimo de gastos com o setor. Em relação à
educação, a obrigatoriedade de repasse de 18% das receitas de impostos
federais tem sido esvaziada, pelo fato de que tributos criados sob a forma de
“contribuições” (expediente cada vez mais comum) não entram no cálculo.
Na área de saúde, um dos principais motivos para o descumprimento da
Constituição é a divergência de interpretação sobre o que deve ser
considerado gasto no setor. Como a Emenda Constitucional n. 29/2000 não
foi regulamentada, há uma zona cinzenta: alguns Estados consideram que
115
investimentos em saneamento, merenda escolar ou hospitais voltados para
públicos específicos, como o militar, devem entrar na conta. Na tentativa de
sanar a controvérsia, o Conselho Nacional de Saúde editou uma resolução a
respeito do assunto, mas também ela tem sido contestada. Toda essa confusão
tem como pano de fundo o princípio geral de que parte das receitas públicas
deve ser vinculada a determinadas despesas.
Embora constitua de fato um constrangimento para os
administradores, a vinculação faz sentido, diante do quadro de carências
sociais do país. O mecanismo ergue uma barreira ao eventual abandono da
saúde e da educação pelos governantes. Num quadro de forte restrição, para o
qual colaboram os compromissos da dívida pública, essas vinculações tendem
a ser mais contestadas. Não há, no entanto, por ora, nada que justifique essa
mudança.
Com mais ou com menos recursos, parte deles deve
permanecer destinada à saúde, sendo necessário que o Ministério Público e a
Justiça não deixem que as irregularidades ocorram impunemente.
Outro dado assustador é que os gastos do governo federal
com saúde em 2005, autorizados pelo Orçamento e pelo decreto do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, ferem a Constituição, segundo estudo das
consultorias de Orçamento e Fiscalização da Câmara e do Senado, cujo
conteúdo foi confirmado pelo próprio Ministério da Saúde.
A Emenda Constitucional n. 29/2000 estabelece
investimentos mínimos e crescentes para a saúde. Descontadas as despesas
com pessoal, a União deve aplicar na área o mesmo valor dos gastos do ano
116
anterior, acrescido da variação do Produto Interno Bruto, que é o conjunto de
riquezas produzidas em todo o país.
Segundo Marta Salomon:
“‘A dotação prevista para o Ministério da Saúde na lei e no decreto é insuficiente para o cumprimento da emenda em pelo menos R$ 440 milhões’, afirma nota conjunta das consultorias da Câmara e do Senado. O cálculo não levou em consideração a transferência de uma conta de R$ 1,2 bilhão do Ministério do Desenvolvimento Social destinada ao pagamento de benefícios do programa Bolsa-família para o Ministério da Saúde, sem correspondente elevação do limite de gastos da pasta. A operação, que consta de projeto de lei encaminhado pelo presidente Lula ao Congresso na semana passada, é um desdobramento do bloqueio de gastos públicos anunciado na última sexta-feira de fevereiro. Nesse dia, o governo congelou R$ 15,9 bilhões de despesas autorizadas por lei. Desse total, R$ 1,2 bilhão incidiu no Desenvolvimento Social. Para não comprometer seu principal programa social, o governo acomodou, então, parte dos pagamentos nas contas da Saúde, que não terá outra saída a não ser cortar outras despesas ou conseguir mais dinheiro. E, por ora, o governo não admite reduzir o tamanho do corte. Questionado pela Folha de S. Paulo, o Ministério da Saúde reconheceu que os gastos autorizados para 2005 estão aquém do que determina a emenda 29. Por meio da assessoria de imprensa, o ministério disse que mantém a expectativa de aumentar o limite de gastos durante o ano. O Ministério do Planejamento não se manifestou. Nos dois primeiros anos de mandato do Presidente da República, o governo teve problemas para cumprir o que manda a Constituição no que diz respeito aos gastos com saúde, como já vinha acontecendo desde 2001. Em 2003, faltaram R$ 595 milhões. No ano passado, ficaram faltando R$ 4,5 milhões, segundo cálculo feito pelo próprio Ministério de Saúde. Esse valor deveria ser somado à previsão de gastos de 2005. A Frente Parlamentar da Saúde reivindica R$ 2,5 bilhões de gastos extras na área em 2005 para cumprir a mesma emenda constitucional 29, segundo seu presidente, Rafael Guerra (PSDB-MG). O grupo, de cerca de 250 deputados e senadores, pretende recorrer ao Ministério Público para garantir mais verbas para área neste ano.”130
130 Marta Salomon, Gastos da União com a saúde ferem Constituição, diz estudo do Congresso,
Folha de S. Paulo, de 12.3.2005 (Disponível em: <http://www.folha.uol.com.br/>. Acesso em: 28 abr. 2005).
117
A sociedade brasileira deve cobrar o compromisso
constitucional, mas a capacidade da emenda constitucional de garantir a tão
sonhada estabilidade no setor da saúde está completamente comprometida
pois, como já estudamos, a emenda possibilita que se tenha um clima de
esperança na solução dos problemas de financiamento nesta área, desde que
haja participação da União no financiamento, que deve cumprir a
determinação constitucional e determinar os percentuais cabíveis a Estados e
Municípios. As inconsistências da emenda constitucional têm que ser
esclarecidas e superadas, para se ter o financiamento indireto da saúde
equilibrado.
Wagner Balera adverte que:
“Se esse preceito fosse cumprido (e é tarefa do Ministério Público, consoante artigo 129 da Superlei, tomar as providências jurídicas para que seja cumprido!), em breve tempo seria possível o mapeamento da situação, com o conseqüente estabelecimento das políticas de prevenção, recuperação e tratamento.”131
A Resolução do Conselho Nacional de Saúde n. 322, de 8
de maio de 2002, esclarece o que é despesa na área de saúde, em sua 5ª
diretriz:
“Das Ações e Serviços Públicos de Saúde 5ª Diretriz: Para efeito da aplicação da Emenda Constitucional n. 29, consideram-se despesas com ações e serviços públicos de saúde aquelas com pessoal ativo e outras despesas de custeio e de capital, financiadas pelas três esferas de governo, conforme o disposto nos artigos 196 e 198, parágrafo 2º da Constituição Federal e na Lei n. 8.080/90, relacionadas a programas finalísticos e de apoio, inclusive administrativos, que atendam, simultaneamente, aos seguintes critérios: I - sejam destinadas às ações e serviços de acesso universal, igualitário e gratuito;
131 Wagner Balera, Sistema de seguridade social, p. 32.
118
II - estejam em conformidade com objetivos e metas explicitados nos Planos de Saúde de cada ente federativo; III - sejam de responsabilidade específica do setor de saúde, não se confundindo com despesas relacionadas a outras políticas públicas que atuam sobre determinantes sociais e econômicos, ainda que com reflexos sobre as condições de saúde. Parágrafo único - Além de atender aos critérios estabelecidos no caput, as despesas com ações e serviços de saúde, realizadas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios deverão ser financiadas com recursos alocados por meio dos respectivos Fundos de Saúde, nos termos do artigo 77, parágrafo 3º do ADCT.”
Portanto não se pode confundir despesas da área de saúde e
programas da área de assistência social, que também necessita de uma
vinculação orçamentária urgente para atender ao carro chefe do governo
federal, que é a erradicação da pobreza, lembrando que não se combate
pobreza extirpando o orçamento da saúde.
4.2 Financiamento indireto da assistência social
Outro campo da seguridade social que necessita de vinculação
constitucional é o setor da assistência social, principalmente para resolver de
vez esse problema atual de equívoco por parte do governo federal em
confundir saúde com assistência social, apesar da diretriz do Conselho
Nacional de Saúde explicar o que são despesas na área de saúde, algo que os
governos fazem questão de ignorar.
4.2.1 Retrospecto histórico
Desde a I Conferência Nacional de Assistência Social, há
uma reivindicação de todos os atores envolvidos com a política nacional de
assistência social para que o governo federal apóie e viabilize a construção de
um Sistema Único de Assistência Social (SUAS), para que a universalização
119
do atendimento venha transformar essa política em uma política de direitos de
fato.
O Conselho Nacional de Assistência Social aprovou a nova
política nacional de assistência social, após ter realizado discussões sobre a
construção desse sistema, reunindo representantes das três esferas do governo
e da sociedade civil organizada para definir os objetivos, alcance, diretrizes,
constituição, princípios organizativos e operativos, além do campo de ação e
regulação do sistema, à luz da Lei Orgânica de Assistência Social.
Durante o processo de elaboração do Sistema Único da
Assistência Social no Congresso Nacional, os parlamentares puderam
compreender a nova concepção da política, na perspectiva do sistema único, o
impacto na execução da política nacional de seguridade social, e foram
esclarecidos a respeito de como se daria o financiamento, bem como da
relação do Estado com as entidades que compõem a rede de serviços e o seu
controle social.
Em novembro de 2003, o antigo Ministério da Assistência
Social apresentou, durante a IV Conferência Nacional, suas propostas para a
construção efetiva de um Sistema Único de Assistência Social.
Com um sistema descentralizado e participativo, o governo
tem condições de atuar de forma mais integrada com as políticas setoriais e as
diferentes esferas da Administração pública, assumindo compromissos de co-
responsabilidade e co-financiamento no desenvolvimento de ações voltadas
para a inclusão social e diminuição de desigualdades.
120
Infelizmente, dez anos após a promulgação da Lei
Orgânica de Assistência Social, o governo federal conseguiu avançar muito
pouco no setor, dentro da atribuição que lhe compete como definidor de
diretrizes para a política nacional.
A construção do Sistema Único da Assistência Social
interrompe o modelo de programas impostos de cima para baixo, que
desconsideram necessidades reais e especificidades locais. Ele tem o objetivo
de identificar os problemas sociais na ponta do processo, focando as
necessidades de cada Município, ampliando a eficiência dos recursos
financeiros e da cobertura social.
O governo federal, através do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, ganha espaço para definir
políticas e fiscalizar sua execução.
Trata-se de um modelo democrático e descentralizado que
tem a missão de ampliar a rede de assistência social brasileira.
O Sistema Descentralizado e Participativo da Assistência
Social é um conjunto orgânico de ações de assistência social de
responsabilidade da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
em seus respectivos níveis, de maneira complementar e cooperativa.
Essas ações são articuladas entre si por meio das
comissões intergestoras e contam com a participação da sociedade civil, por
intermédio dos conselhos. O sistema organizado é expresso pela rede
prestadora de serviços assistenciais, voltada para as necessidades do conjunto
da população.
121
A Lei Orgânica da Assistência Social, promulgada em
1993, estabeleceu o Sistema Descentralizado e Participativo da Assistência
Social, constituído pelas entidades e organizações de assistência social e por
um conjunto de instâncias deliberativas compostas pelos diversos setores
envolvidos na área.
As ações de assistência social organizadas nas três esferas
de governo realizam-se de forma articulada, cabendo a coordenação e as
normas gerais à esfera federal e a coordenação e execução dos benefícios,
serviços, programas e projetos, em suas respectivas esferas e dimensões, aos
Estados, Distrito Federal e Municípios.
O Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), órgão
colegiado de deliberação máxima da política nacional de assistência social,
está se preparando para a V Conferência Nacional de Assistência Social.
Segundo o Conselho, a V Conferência Nacional de
Assistência Social será um marco na história da política nacional de
assistência social, tendo em vista a consolidação, nestes doze anos da Lei
Orgânica da Assistência Social, das propostas que, ao longo da história, se
faziam presentes nas reivindicações da sociedade brasileira.
Algumas das orientações apresentadas nas conferências
municipais, estaduais e do Distrito Federal mostram a importância dos
debates encabeçado pelo CNAS em todo país, a partir da aprovação da
política nacional de assistência social.
O tema proposto para a V Conferência Nacional de
Assistência Social é “SUAS – Plano 10: estratégias e metas para a
122
implementação da política nacional de assistência social”. Ela ocorrerá em
Brasília, no período de 6 a 8 de dezembro de 2005.
A Conferência Nacional será o momento culminante desse
processo de reflexões, avaliações, debates e proposições, pois caberá a ela
deliberar, à luz das conferências municipais, estaduais e do Distrito Federal,
os rumos a serem tomados pela assistência social no país.
Wagner Balera adverte que, ao definir o conteúdo da
justiça social, a Constituição de 1988 afirma que, dentre outros resultados, ela
deverá implementar a redução das desigualdades sociais.132
A definição acima trata de princípio que postula o seu
próprio acabamento e que está a exigir esforço de governantes e governados
para reduzirem as desigualdades sociais.
Para o autor, para exigir resposta do setor da seguridade
social, a quem compete o cuidado dos necessitados, o comando ordena aos
componentes do sistema o estabelecimento de planos, programas e projetos
redutores da desigualdade, a fim de que se estabeleça a justa integração
daqueles que estão à margem da vida social.
O nosso entendimento é que isso só se dá através de uma
vinculação orçamentária, ou seja, cumprindo o financiamento indireto,
disponibilizando os recursos e garantindo os mínimos sociais, o que poderá
ser definitivamente deliberado na V conferência.
132 Wagner Balera, Sistema de seguridade social, p. 82.
123
A Emenda Constitucional n. 31, de 14 de dezembro de
2000, acrescentou o artigo 79 ao Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, instituindo o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, com
objetivo de executar ações do sistema de assistência social.
A Lei Complementar n. 111/2001 disciplinou a criação e
funcionamento do Fundo, entretanto observa Wagner Balera que “cumpre aos
responsáveis pela aplicação dos recursos desse Fundo abrir caminho entre o
assistencialismo e demagogia, fazendo com que os programas entrem na
órbita constitucional da seguridade social”.133
Demonstramos, no decorrer do trabalho, as dificuldades
enfrentadas na implementação das tarefas, em decorrência da falta de
definição dos percentuais do orçamento para o setor. Wagner Balera ainda
afirma que “é bem verdade que a exigência constitucional poderia ser
sintetizada na seguinte proposição: é necessário que cada qual seja solidário
com os demais, de tal arte que todas as pessoas tenham mínimas condições de
vida”.134
A idéia é completa, pois são chamados à responsabilidade
solidária todos os setores da comunidade, e não apenas os poderes públicos, a
quem compete, naturalmente, a coordenação das atividades, em todos os
níveis.135
133 Wagner Balera, Sistema de seguridade social, p. 34. 134 Ibidem, p. 82. 135 “A melhor organização da solidariedade, permitindo superior aproveitamento dos recursos
dispersos em todos os setores, é, segundo entendemos, instrumento indispensável para que seja atingido o fim último da comunidade a que, com tanta elegância, João Paulo II, reproduzindo a expressão de Paulo VI, denomina “a civilização do amor” (Carta Encíclica Dives in Misericordia, de 30 de novembro de 1980, ponto 94).” (Wagner Balera, Sistema de seguridade social, p. 82).
124
É necessário que o sistema busque todas as iniciativas que
marcham em favor da redução das desigualdades, a fim de tentar imprimir-
lhes coerência, respeitando a diversidade de objetivos e de estratégias de ação
das pessoas e entidades que atuam no setor. No Brasil, as desigualdades
sociais excluem dos bens sociais milhões e milhões de pessoas e criam
imenso abismo entre brasileiros.136
Poucos ficaram cada vez mais ricos, enquanto muitos
foram excluídos da vida social e reduzidos à miséria absoluta.137
Poderíamos neste ato relembrar o constitucionalismo
social, pois é dever construir uma sociedade mais justa, através da correção
dos excessos próprios do individualismo.
Não podemos tolerar mais esse quadro de desigualdade e
marginalização social, pois lutamos para que o constituinte de 1988
promulgasse a ferramenta da assistência social, e agora necessitamos colocar
essa ferramenta em prática, através da vinculação orçamentária, aplicando o
financiamento indireto e exigindo dos entes federativos a responsabilidade
social.
Não podemos esquecer que a assistência é a garantia de
proteção aos que necessitam de amparo do Estado para sobreviver. A rigor,
136 Relatório do Banco Mundial afirma que o Brasil contava com 23 milhões de pobres em 1981 e
que esse número ascendeu para 33 milhões em 1987 (BIRD, Informe sobre el desarrollo mundial, 1990 – Pobreza. (Leonardo Guimarães Neto, O mercado de trabalho na década perdida, São Paulo, Revista da Fundação SEADE, v. 4, p. 6 apud Wagner Balera, Sistema de seguridade social, p. 105).
137 O coeficiente de Gini, medida que, segundo o dicionário de economia, se emprega para o registro da concentração de renda, atingiu seu mais alto patamar em 1989: 0,652%. Isso significa que apenas 658 mil pessoas (1% da PEA) concentraram 15,9% da renda nacional do trabalho, enquanto 6,58milhões de trabalhadores (10% da PEA) ficaram com ínfimos 0,7% da mesma renda. (Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do IBGE).
125
enquanto a previdência cuida de amparar os trabalhadores e dependentes
quando ocorre uma incapacidade para o trabalho, a assistência presta serviços
aos carentes e necessitados.
A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) considera
carente aquele que têm renda familiar inferior a 25% do salário mínimo por
pessoa. Para efeitos dessa lei, o vocábulo família pressupõe a convivência sob
o mesmo teto, devendo ser compreendida como integrada pelo cônjuge,
companheiro e companheira, filho não emancipado, de qualquer condição,
menor de 18 anos, ou inválido, os pais e o irmão não emancipado, de qualquer
condição, menor de 18 anos ou inválido, lembrando que o enteado equipara-
se a filho, nos termos do parágrafo 2º do artigo 16 da Lei n. 8.213/91.
Essa área é muito importante, e inclui também o amparo
aos idosos, considerados esses os que têm 65 anos ou mais. A partir da
promulgação do Estatuto do Idoso, os carentes recebem o benefício de
prestação continuada como um amparo assistencial, uma vez que sua
concessão independe de ter o beneficiário contribuído ou não para a
seguridade, apesar dos recursos para o pagamento serem da seguridade social.
No sistema atual, ao Fundo Nacional de Assistência Social
(FNAS) cabe o repasse dos recursos destinados à cobertura das despesas
relativas à assistência social, mediante efetiva instituição e funcionamento do
Conselho de Assistência Social.
O repasse dos recursos do Fundo Nacional de Assistência
Social aos Estados, Distrito Federal e Municípios é condicionado ao
cumprimento da previsão do artigo 195, caput da Constituição Federal, ou
seja, à comprovação orçamentária dos recursos próprios destinados à
126
assistência social, alocados em seus respectivos Fundos de Assistência Social,
a partir do exercício de 1999.
Cabe à União a responsabilidade pelos recursos destinados
ao financiamento dos benefícios de prestação continuada, que poderão ser
repassados diretamente pelo Ministério da Previdência e Assistência Social ao
INSS, órgão responsável pela sua execução e manutenção, uma vez que não
cabe à previdência, e muito menos à saúde, o financiamento das prestações
assistenciais. É necessária uma vinculação orçamentária urgente para
solucionar essa lacuna no financiamento da assistência social.
A assistência social tem um papel primordial na sociedade
brasileira, pois as prestações assistenciais são uma arma no combate à
marginalização e desigualdade social, dividindo-se em benefícios de
prestação continuada, benefícios eventuais, serviços sociais e projetos de
enfrentamento da pobreza.
Como já demonstramos, o benefício de prestação
continuada garante à pessoa portadora de deficiência e ao idoso uma renda
mensal de um salário mínimo, desde que ela comprove não possuir meios de
prover a própria manutenção e nem tê-la provida por sua família.
Os benefícios eventuais são aqueles que visam o
pagamento de auxílio-natalidade ou auxílio-morte às famílias cuja renda
mensal per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo.
A Lei n. 8.742/93 prevê que outros benefícios eventuais
podem ser estabelecidos para atender à necessidade advinda da situação de
vulnerabilidade temporária, com prioridade para a criança, a família, o idoso,
127
a pessoa portadora de deficiência, a gestante, a nutriz e nos casos de
calamidade pública.
Os benefícios de auxílio-natalidade e auxílio-funeral eram
pagos pelo INSS. Com a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social,
a responsabilidade foi transferida aos Municípios, conforme previsão do
artigo 15, inciso III da Lei 8.742/93.
Nos termos do parágrafo 1º do artigo 40 da Lei Orgânica
da Assistência Social, a transferência dos beneficiários do sistema
previdenciário para a assistência social deve ser estabelecida, de forma que o
atendimento da população não sofra solução de continuidade, porém inúmeros
Municípios não implementaram o pagamento de auxílio-natalidade e auxílio-
funeral.
Observamos a necessidade de se solucionarem
definitivamente esses problemas, através de uma vinculação orçamentária. A
Lei Orgânica da Assistência Social, no artigo 25 prescreve que os projetos de
enfrentamento da pobreza compreendem a instituição de investimento
econômico-social nos grupos populares, buscando subsidiar, financeira e
tecnicamente, iniciativas que lhes garantam meios, capacidade produtiva e de
gestão para a melhoria das condições gerais de subsistência, elevação do
padrão de qualidade de vida, preservação do meio ambiente e sua organização
social.
Porém, sem uma contrapartida, esses projetos se tornam
impossíveis, pois eles devem se assentar em diversos mecanismos de
128
articulação governamental, em sistema de cooperação entre organismos
governamentais e não governamentais e da sociedade civil.
É da competência da União, em âmbito nacional, e dos
Estados, em âmbito regional ou local, apoiar técnica e financeiramente os
serviços, os programas e os projetos de enfrentamento da pobreza.
Aos Municípios, por sua vez, compete executar os projetos
e enfrentamento da pobreza, incluindo toda a sociedade brasileira. O artigo 79
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias prevê, no âmbito do
Poder Executivo Federal, a criação do Fundo de Combate e Erradicação da
Pobreza, com o objetivo de viabilizar a todos os brasileiros o acesso a níveis
dignos de subsistência, cujos recursos serão aplicados em ações
suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço de renda
familiar e outros programas de relevante interesse social, voltados para a
melhoria da qualidade de vida.
Em 6 de julho de 2001, a Lei Complementar n. 111
regulamentou o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, na forma
prevista pelos artigos 79, 80 e 81 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias. Os recursos do Fundo são direcionados a ações que tenham
como alvo:
I - Famílias cuja renda per capita seja inferior à linha de
pobreza, assim como indivíduos em igual situação de renda;
II - As populações de municípios e localidades urbanas e
rurais, isoladas ou integrantes de regiões metropolitanas, que apresentem
condições de vida desfavoráveis.
129
O atendimento às famílias e indivíduos deve ser feito,
prioritariamente, por meio de programas de reforço de renda, nas modalidades
“Bolsa-escola”, para as famílias que têm filhos com idade entre seis e quinze
anos e “Bolsa-alimentação”, para as famílias com filhos em idade de zero a
seis anos e indivíduos que perderam os vínculos familiares.
Este trabalho preocupa-se exatamente com o cumprimento
dessas metas, e não podemos esquecer que hoje o governo não vem
cumprindo os programas da Emenda Constitucional n. 29/2000. Para
acompanhar o programa especifico da assistência social, foi instituído o
conselho consultivo e de acompanhamento do Fundo de Combate e
Erradicação da Pobreza, cujos membros são designados pelo Presidente da
República, com atribuição de opinar sobre as políticas, diretrizes e prioridades
do Fundo e acompanhar a aplicação de seus recursos.
Compete ao Conselho Nacional de Assistência Social
(CNAS), por decisão da maioria absoluta de seus membros, respeitados o
orçamento da seguridade social e a disponibilidade do Fundo Nacional de
Assistência Social, a proposição ao Poder Executivo de alteração dos limites da
renda mensal per capita. O Conselho Nacional de Assistência Social é um órgão
superior de deliberação colegiada, de composição paritária (sociedade civil e
governo), vinculado ao Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS).
Portanto, para enfrentar-se de cabeça erguida esses
projetos, é necessário conscientizar os entes federativos, inclusive o
Congresso Nacional, da importância de vincular o financiamento da
assistência social, através do financiamento indireto, cumprindo exatamente
do caput do artigo 195 da Constituição Federal.
130
Nesse sentido, para ajudar a formular e modelar essa
vinculação, estudaremos o orçamento em seu aspecto social, demonstrando
que a solução está no próprio sistema.
4.3 Orçamento público e o financiamento indireto O financiamento indireto refere-se à parte do orçamento que os
entes da federação devem separar para o custeio da previdência social.
Kiyoshi Harada afirma que classicamente o orçamento é
conhecido como uma peça que contém a aprovação prévia da despesa e da
receita para um período determinado.138
Para Aliomar Baleeiro, “o orçamento é considerado o ato pelo
qual o Poder Legislativo prevê e autoriza ao Poder Executivo, por certo
período e em pormenor, as despesas destinadas ao funcionamento dos
serviços públicos e outros fins adotados pela política econômica ou geral do
país, assim como a arrecadação das receitas já criadas em lei”.139
Ricardo Lobo Torres afirma que a Constituição orçamentária
constitui o Estado orçamentário, que é a particular dimensão do Estado de
Direito apoiada nas receitas, especialmente a fiscal, como instrumento de
realização das despesas.140
O orçamento público é um dos instrumentos mais antigos
utilizados pelos governos na gestão de negócios públicos. Segundo James
138 Kiyoshi Harada, Direito financeiro e tributário, p. 780. 139 Aliomar Baleeiro, Uma introdução à ciência das finanças, p. 397. 140 Ricardo Lobo Torres, Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: o orçamento na
Constituição, v. 5, p. 8.
131
Giacomoni, o orçamento “foi concebido inicialmente como um mecanismo
eficaz de controle político dos órgãos de representação sobre os executivos e
sofreu, ao longo do tempo, mudanças no plano conceitual e técnico para
acompanhar a própria evolução das funções do Estado”.141
A origem do orçamento público foi mais política que financeira,
pois os cidadãos já não suportavam mais a liberdade dos governantes de
exigir impostos e gastar dinheiro público sem autorização prévia e posterior
prestação de contas.
O embrião dos orçamentos públicos, conforme considerado pela
maioria dos tratadistas, é o artigo 12 da Magna Carta, outorgada em 1217, na
Inglaterra, pelo Rei João Sem Terra. Foi uma forma de controlar o poder dos
absolutistas, reduzindo o poder dos monarcas e limitando sua prerrogativa de
instituir tributos.142
O agravamento da situação financeira e a necessidade de
intervenção estatal no domínio econômico levam ao aparecimento do que se
convencionou chamar de Estado do Bem-estar Social (welfare state), ou de
Estado Social (Sozialstaat) na Alemanha, ou de Estado da Sociedade
Industrial (Der Staat der Industriegesselschaft), ou de Estado Pós-liberal
(Stato Post-liberale) ou de Estado Distribuidor, ou de Estado Providencial.
Influenciado pelas idéias de Keynes, o Estado do Bem-estar Social procura
aumentar os impostos e as fontes de receita, ao mesmo tempo em que amplia
as prestações públicas, principalmente no campo dos incentivos fiscais, dos
subsídios da previdência social e da seguridade social.
141 James Giacomoni, Orçamento público, p. 40. 142 Ibidem, p. 41-42.
132
No final da década de 1970, após sucessivas crises do petróleo, o
Estado do Bem-estar Social passa a sofrer séria contestação, em virtude do
crescimento insuportável da dívida pública, dos orçamentos repetidamente
deficitários, da recessão econômica e do abuso na concessão de benefícios
com dinheiro público; a sua dimensão assistencialista conduz ao incremento
das despesas com a previdência e a seguridade social, sem a contrapartida da
entrada de ingressos compatíveis com o volume dos encargos e, não raro, com
o seu custeio pela incidência exageradamente progressiva dos impostos.143
Na realidade, mesmo com diversas críticas em face da absoluta
crise que vive, o modelo social não desaparece totalmente. Passa por
modificações importantes, com diminuição do seu tamanho e a restrição do
seu intervencionismo. Deixa-se influenciar pela idéias do liberalismo social,
que não se confundem com as do neoliberalismo ou do protoliberalismo, nem,
por outro lado, com as da social democracia. Continua a ser Estado Social
Fiscal, podado em seus excessos, com o fito de obter a síntese entre o que os
alemães chamam de Estado de Impostos (Steuerstaat) e Estado de Prestações
(Leistungstaat). Vive precipuamente dos ingressos tributários, reduzindo, pela
privatização de suas empresas e pela desregulamentação do social, o aporte
das receitas patrimoniais e parafiscais. Procura, na via da despesa pública,
reduzir as desigualdades sociais e garantir as condições necessárias à
liberdade, máxime através da entrega de prestações públicas nas áreas da
saúde e da educação, abandonando a utopia da inesgotabilidade dos recursos
públicos, da viabilidade de atendimento de todas as necessidades sociais e da
possibilidade de garantir a felicidade do povo.
143 Ricardo Lobo Torres, Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: o orçamento na
Constituição, v. 5, p. 10-11.
133
Do ponto de vista orçamentário, procura o equilíbrio entre a
receita e a despesa pública e serve de fiador da redistribuição de rendas. O
Estado Orçamentário atual, por conseguinte, tem o seu perfil tributário
perfeitamente delineado e a sua vocação direcionada para os gastos
relacionados com a garantia dos direitos humanos. Não abandona, porém, a
responsabilidade pela proteção dos direitos sociais, senão até serve de árbitro
para a sua concessão, eis que tais direitos existem sob a “reserva do possível”,
isto é, sob a reserva da lei orçamentária. Muito menos se desinteressa pela
seguridade social. Só que esta, pelo extraordinário aumento de custo dos
serviços médicos e da assistência aos velhos e às crianças, passa por profunda
reformulação quanto às suas fontes de financiamento e se torna o problema
mais grave do orçamento público.144
No Brasil, com a Constituição Imperial de 1824, o orçamento
torna-se um instrumento formal cuja competência se refere à matéria
tributária. Aquela Carta Magna, em seu artigo 172, estabelecia que:
“O Ministro de Estado da Fazenda, havendo recebido dos outros ministros os orçamentos relativos às despesas da suas repartições, apresentará na Câmara dos Deputados anualmente, logo que esta estiver reunida, um balanço geral da receita e despesa do Tesouro Nacional do ano antecedente, e igualmente o orçamento geral de todas as despesas públicas do ano futuro e da importância de todas as contribuições e rendas pública.”145
A Constituição Federal de 1988 indicou como componentes do
orçamento anual o orçamento fiscal, o orçamento de investimentos e o
orçamento da seguridade social. Na prática, o orçamento anual ganha
144 Ricardo Lobo Torres, Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: o orçamento na
Constituição, v. 5, p. 14-16. 145 James Giacomoni, Orçamento público, p. 49-50.
134
amplitude maior, em face das incorporações ocorridas em cada um dos
orçamentos.146
O orçamento da seguridade social compreende todas as entidades
e órgãos a ela vinculados, da Administração direta ou indireta, bem como os
fundos e fundações mantidos pelo Poder Público.
O Capítulo II da Constituição Federal trata da seguridade social.
O artigo 194 assim disciplina:
“Artigo 194 - A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinados a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.”
Cumpre salientar que os direitos somente serão assegurados se as
ações implementadas indicarem a respectiva fonte de recursos que financiará
o programa de trabalho fixado para a seguridade social. Caso contrário, os
indicadores sociais existentes no Brasil continuarão apresentando resultados
abaixo do desejado, e somente serão revertidos pela implementação do
processo de planejamento.
O objetivo principal da desvinculação dessas ações do orçamento
fiscal para o orçamento da seguridade social é a garantia de que os recursos
orçados para os órgãos ou entidades que atuam nesse segmento não serão
destinados para outros fins, sob pena de responsabilidade.147
A Constituição Federal dedicou à fiscalização financeira e
orçamentária os artigos 70 a 75, e a colocou a cargo do Poder Legislativo,
como explica Ricardo Lobo Torres: “É matéria que se integra a Constituição
146 Flávio Cruz (Coord.), Comentários à Lei n. 4.320..., p. 19. 147 Ibidem, p. 22.
135
orçamentária que, por seu turno, faz parte da Constituição financeira, a
elaboração, a aprovação, a execução e a fiscalização do orçamento constituem
um todo, do ponto de vista material.”148
Desde o surgimento do orçamento como peça capaz de contribuir
para a melhoria do controle que o parlamentar deve exercer dentro do Estado,
alguns princípios doutrinários passaram a merecer lugar e fizeram escola nas
finanças públicas. A aceitação dos princípios orçamentários como regras
básicas fundamentais tem sido muito discutida pelos tratadistas da matéria.
Sobre eles, assim se expressa Flávio Cruz: “Alguns entendem que eles servem
apenas como categorias históricas e sua atualização e significação se faz
necessária. Outros, simplesmente, tentam reescrever princípios alternativos
para justificar a evolução do Estado Moderno.”149
Nossa opinião é que, apesar do avanço do aparelho estatal e do
seu intervencionismo acentuado na economia, os princípios podem e devem
ser respeitados. O que esses princípios têm de substancial é tentar preservar a
integridade do papel político do orçamento da sociedade.
São conhecidos muitos princípios orçamentários, entre os quais,
no Brasil, o artigo 2º da Lei n. 4.320/64 torna obrigatória a obediência aos
princípios da unidade, universalidade e anualidade.
A unidade orçamentária consiste em reunir num único
documento todas as receitas e todas as despesas do Estado, de forma a
demonstrar se há equilíbrio, superávit ou déficit. Esse princípio é apontado
148 Ricardo Lobo Torres, Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: o orçamento na
Constituição, v. 5, p. 237. 149 Flávio Cruz (Coord.), Comentários à Lei n. 4.320..., p. 22.
136
como ultrapassado e incompatível com o desenvolvimento do papel do Estado
na economia. Não concordamos, em absoluto, com essa opinião, porque
entendemos que a contabilidade pública deve primar pelo respeito ao
entendimento da execução orçamentária e não pela ocultação sutil, através da
sofisticação de documentos e terminologias desintegradas.150
A universalidade é respeitada quando o orçamento contém todas
as receitas e todas as despesas do Estado. O cumprimento deste princípio traz
às casas legislativas algumas vantagens, a saber: conhecer o montante dos
gastos públicos programados e poder, assim, autorizar a cobrança das receitas
até o limite capaz de atendê-los; impedir que o Executivo realize operações de
receitas e gastos sem a correspondente autorização do Legislativo; possibilitar
que o Legislativo conheça antecipadamente todas as receitas e gastos
desejados, autorizando as respectivas arrecadações e realizações.
O princípio da anualidade dispõe que o orçamento, enquanto
previsão de receita e despesa, deve referir-se, sempre a um período limitado
de tempo. No Brasil, o período de vigência do orçamento é coincidente com o
ano civil.
Os princípios da visam estabelecer alianças estratégicas na
definição de programas, objetivos e metas comuns a regiões e entre órgãos
públicos e entidades privadas afins, visando maximizar os resultados que se
pretenda alcançar na esfera econômica e social. Nesse conceito, está inserida
a possibilidade da formulação de alianças bilaterais ou multilaterais, entre a
área pública e a privada, devendo as cotas de participação estar devidamente
fixadas e seus valores previstos em cada orçamento dos agentes envolvidos,
inclusive com a previsão de responsabilidades solidárias pela não-consecução
150 Flávio Cruz (Coord.), Comentários à Lei n. 4.320..., p. 23.
137
do programado. Embora não figure tradicionalmente como um princípio
orçamentário no Brasil, é visível a necessidade atual dele ser considerado.
Flávio Cruz151 aponta as múltiplas finalidades do orçamento no
setor público. Entre elas, destacamos:
a) estabelecer limites para a receita e a despesa do exercício
seguinte;
b) instrumentalizar financeiramente o planejamento;
c) prever o balanço do exercício;
d) autorizar ao Poder Executivo, por certo período, a realização
de uma programação definida;
e) possibilitar aos órgãos de representação um controle político
sobre os executivos;
f) Expressar, num plano, o programa de operações do governo e
os meios necessários para a sua implementação etc.
Indubitavelmente, a principal finalidade é o controle político que
a população, por meio de seus representantes, deve exercer sobre os
governantes. Essa, no nosso entender, deve prevalecer sobre todas as demais
finalidades.
A contribuição que o orçamento empresta para a Administração é
fundamental, porém nem sempre acontece, em função do conturbado quadro
político que normalmente o restringe.152
151 Flávio Cruz (Coord.), Comentários à Lei n. 4.320..., p. 23. 152 Ibidem, p. 23-34.
138
A natureza jurídica do orçamento não é uma opinião unânime
entre os doutrinadores, que entendem que se trata de um mero ato
administrativo em relação às despesas, porque basta simples operação
administrativa e, em relação à receita tributária, assume característica de lei
em sentido material, porque gera, abstrata e genericamente, obrigações aos
contribuintes.153
Modernamente, a maioria dos autores procura decifrar o enigma
da natureza da lei orçamentária, atribuindo-lhe uma natureza sui generis que,
de autor para autor, apresenta maiores ou menores diferenças.
O artigo 166 e parágrafos da Carta Magna estabelecem um
regime peculiar de tramitação do projeto de lei orçamentária, de iniciativa do
Executivo, sem contudo exigir quórum qualificado para sua aprovação, daí a
natureza jurídica de lei ordinária.
Todavia, a lei orçamentária difere das demais leis, caracterizadas
por serem genéricas, abstratas e constantes ou permanentes. Ela é, na verdade,
uma lei de efeito concreto para vigorar por um prazo determinado de um ano,
fato que, do ponto de vista material, retira-lhe o caráter de lei. Exatamente
essa peculiaridade levou parte dos estudiosos a sustentar a tese do orçamento
como ato-condição. Sob o enfoque formal, no entanto, não há como negar a
qualificação de lei.
153 Kiyoshi Harada, Direito financeiro e tributário, p. 80.
139
Portanto, o orçamento é uma lei anual, de efeito concreto,
estimando as receitas e fixando as despesas necessárias à execução da política
governamental.154
O sistema orçamentário brasileiro encontra base nos artigos 165 a
169 da Constituição Federal.
Existem quatro dispositivos fundamentais presidindo a
organização do sistema orçamentário. O artigo 165 da Constituição enumera
os instrumentos normativos infraconstitucionais desse sistema:
• A lei complementar de caráter financeiro-orçamentário;
• A lei do plano plurianual;
• A lei de diretrizes orçamentárias; e
• A lei orçamentária anual;
As despesas fixadas no orçamento são cobertas com o produto da
arrecadação dos tributos; com base nas receitas previstas, são fixadas as
despesas; depois que o orçamento é aprovado pelo Congresso, o Executivo
passa a gastar o que foi autorizado.
Ao elaborar a peça orçamentária, é necessário equilíbrio, ou seja,
não se pode fixar despesas em valores superiores aos recursos disponíveis.
Essa limitação obriga o governo a definir prioridades na aplicação dos
recursos estimados. As metas para a elaboração da proposta orçamentária são
definidas pelo Plano Plurianual (PPA) e priorizadas pela Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO).
154 Kiyoshi Harada, Direito financeiro e tributário, p. 81.
140
A finalidade do PPA, em termos orçamentários, é a de
estabelecer objetivos e metas que comprometam o Poder Executivo e o Poder
Legislativo a dar continuidade aos programas de distribuição dos recursos.
O PPA precisa ser aprovado pelo Congresso até o final do
primeiro ano de mandato do presidente eleito. O controle da execução do PPA
é realizado pelo sistema de controle interno do Poder Executivo e pelo
Tribunal de Contas da União, e o acompanhamento e a avaliação são feitos
pelo Ministério do Planejamento e Orçamento.
Com base na LDO, que por sua vez prioriza as metas do PPA e
orienta a elaboração do Orçamento Geral da União, a Secretaria de
Orçamento Federal (SOF) elabora a proposta orçamentária para o ano
seguinte, com a participação dos Ministérios (órgãos setoriais) e as unidades
orçamentárias dos Poderes Legislativo e Judiciário.
O processo orçamentário representa um conceito central, em uma
realidade através da qual as políticas são convertidas em ações. Nessa
acepção, o orçamento público tem a função precípua de traduzir os objetivos
políticos, econômicos e sociais do governo em programas e ações concretas
do setor público, a partir de uma determinada estrutura de receitas.
O orçamento é muito mais que um mecanismo através do qual o
Poder Público planeja, administra e executa suas receitas e despesas; o
orçamento é, na realidade, o instrumento mediante o qual uma dada
correlação de forças políticas, em determinado período, é manifestada através
de proposições de ações concretas e de direcionamento do setor público. Vale
ressaltar, “reside, aqui, sua feição política, através do qual se travam os
141
embates entre os representantes das classes e de suas frações para definir a
direção e a forma de ação do Estado”.155
O orçamento público coloca-se como instrumento central nas
sociedades democráticas, e é através dele que o Legislativo autoriza e legitima
politicamente, para um período de tempo pré-estabelecido, em geral um ano,
o montante e a forma de alocação dos recursos públicos. Nesse sentido, o
orçamento é também o principal instrumento de controle do Poder
Legislativo, ou da sociedade em geral, sobre as ações do Executivo.
Alfredo Augusto Becker critica fortemente os orçamentos
públicos, afirmando que o direito positivo que disciplina o orçamento do
Estado sofre, atualmente, de tão profunda crise que “les règles traditionnielles
du droit budgétaire craquent de toutes parts”, e em todos os Estados.156
Se, para melhor agilidade de execução do orçamento público, o
Estado optasse pela renúncia (ou redução a um mínimo) das estruturas
jurídicas que disciplinam o orçamento, então o Estado agiria desregradamente
(lei: regra de conduta), com resultados extremamente ruinosos, porque a lei
(direito positivo) é o único instrumento criado pela atividade do homem que
até hoje se mostrou eficaz e capaz, nas mãos do Estado, de promover e manter
o bem comum.
O autor afirma ainda que certamente é necessária uma radical
modificação na estrutura jurídica do orçamento público, porém ela não pode
jamais consistir na renúncia ao jurídico, mas sim na construção de novo
instrumental jurídico a serviço do Estado. Não se deve esquecer que esse
155 Ricardo Lobo Torres, Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: o orçamento na
Constituição, v. 5, p. 215-230. 156 Alfredo Augusto Becker, Teoria geral do direito tributário, p. 213.
142
novo instrumental deverá ter a matéria prima (dados-diretrizes) oferecida pelo
vertiginoso progresso das modernas ciências das finanças públicas, política
fiscal e economia política.157
A lei orçamentária anual é a lei que contém as previsões das
receitas e das despesas do Estado. É uma lei anual de iniciativa do Chefe do
Poder Executivo e engloba três orçamentos:
• orçamento fiscal, no qual há a estimativa das receitas
tributárias e a fixação das despesas, referente aos poderes da
União, seus fundos, órgãos e entidades da Administração
direta e indireta, inclusive fundações públicas;
• orçamento de investimento das empresas em que a União,
direta ou indiretamente, detém a maioria do capital social
com direito a voto; e,
• orçamento da seguridade social, abrangendo todos os órgãos
e entidades das Administrações direta e indireta, bem como
os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder
Público, com atribuições nos setores da saúde, previdência
social e assistência social.
Os orçamentos fiscal e da seguridade social são apresentados em
conjunto. Quando da sua elaboração, identifica-se a esfera orçamentária em
que se situa um dado subprojeto ou subatividade, por intermédio da letra F, no
caso do orçamento fiscal, e da letra S, no caso do orçamento da seguridade
social.
157 Alfredo Augusto Becker, Teoria geral do direito tributário, p. 214.
143
Wagner Balera158 explica que a Constituição Federal exige a
participação ativa dos representantes dos três setores na preparação do
orçamento da seguridade social da seguridade social, que juntos devem
elaborar a proposta orçamentária a ser oportunamente, encaminhada pelo
Poder Executivo ao parlamento. É o que estabelece o parágrafo 2º do artigo
195 da Constituição.
Verifica-se que todo o suprimento de fundos deve ser autorizado
pelo orçamento, que também consente com a despesa, assegurando a cada
área a gestão de seus recursos.
A própria Lei n. 4.320/1964, ao estabelecer normas gerais de
direito financeiro para a elaboração de orçamentos e balanços, traz a seguinte
definição para o fundo especial:
“Artigo 71 - Constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que, por lei, se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação.”159
O orçamento anual é produto de um processo de planejamento
que incorpora as intenções do governo, com vistas a atender às prioridades da
coletividade. Entretanto, é possível que, durante a execução do orçamento,
ocorram situações, fatos novos ou mesmo problemas não previstos na fase de
elaboração, e a própria Lei n. 4.320/1964, em seu artigo 40, prevê
mecanismos para corrigir as falhas de previsão, ou seja, permite abrir novas
dotações para ajustar o orçamento com os objetivos a atingir. Esses
mecanismos são os chamados créditos adicionais.160
158 Wagner Balera, Sistema de seguridade social, p. 27. 159 Flávio Cruz (Coord.), Comentários à Lei n. 4.320..., p. 104. 160 Ibidem, p. 82.
144
A propósito, a Constituição Federal, em seu artigo 166, parágrafo
8º, estabelece que “os recursos que, em decorrência de veto, emenda ou
rejeição do projeto de lei orçamentária anual, ficarem sem despesas
correspondentes, poderão ser utilizados, conforme o caso, mediante créditos
especiais ou suplementares, com prévia e específica autorização legislativa”.
De acordo com o artigo 41 da Lei n. 4.320/1964, os créditos
adicionais podem ser classificados como:
• Suplementares - os créditos destinados a reforço de dotação
orçamentária já existente no orçamento;
• Especiais - os créditos destinados a atender despesas para as
quais não haja dotação específica; e
• Extraordinários - os créditos destinados a atender despesas
urgentes e imprevistas, casos de guerra, comoção interna ou
calamidades públicas.161
De qualquer forma, os créditos adicionais precisam indicar as
fontes de recursos utilizadas, que podem ser:
• O superávit financeiro apurado em balanço patrimonial do
exercício anterior;
• Os excessos de arrecadação, com relação às estimativas de
receita constantes da lei orçamentária anual;
• a anulação parcial ou total de dotações orçamentárias ou de
créditos adicionais autorizados em lei;
• o produto de operações de crédito autorizadas em lei.
161 Flávio Cruz (Coord.), Comentários à Lei n. 4.320..., p. 85.
145
Portanto, devemos acrescentar que créditos suplementares são
autorizados por lei e abertos por decreto do chefe do Poder Executivo.
Normalmente, a lei orçamentária anual traz, em seu texto, autorização para o
Poder Executivo abrir créditos suplementares, sob certas condicionantes.
Mostramos neste capítulo o aspecto econômico do orçamento
que, de um lado, funciona como instrumento de otimização dos recursos
financeiros, compatibilizando as necessidades da coletividade com as receitas
estimadas e efetivamente ingressadas no Tesouro, e obriga o administrador a
exercitar maior racionalidade econômica.
O equilíbrio orçamentário, no passado, era a regra de ouro das
finanças públicas, mas hoje tudo depende das situações conjunturais. Aliomar
Baleeiro assinala que o objetivo das finanças públicas não é equilibrar o
orçamento, pois este não pode ser entendido como um fim em si mesmo, mas
como instrumento de progresso de uma nação. Sua função é de equilibrar a
economia nacional, sua tarefa é afastar inflação e deflação, mantendo sempre
estável a economia, de sorte que os investimentos absorvam toda a poupança,
sem excedê-la nem ficarem abaixo dela. O pensamento atual exige a
humanização do orçamento.162
Observamos neste trabalho que o orçamento público tem três
funções precípuas: a política, a econômica e a reguladora. Devemos analisar
suas ligações com o direito e a seguridade social, dentro da Constituição
Federal, uma vez que os aspectos normativos e os conteúdos políticos
econômicos implicam em uma posição nitidamente positivista e formalista,
162 Aliomar Baleeiro, Direito tributário brasileiro, p. 69.
146
buscando uma eficácia no financiamento indireto, exigindo do Estado sua
obrigação constitucional.
Nesse sentido é que o financiamento indireto da seguridade
deveria ser observado pelo governo, pois, se o orçamento público, conforme
vimos exaustivamente, é parte integrante do sistema de gestão do governo,
está técnica e intrinsecamente inserido no subsistema do planejamento,
posicionando-se, ao mesmo tempo, como origem e fim das ações de governo,
até porque na Administração pública não existe gasto sem prévia previsão
orçamentária. Como todas as ações são escrituradas na contabilidade pública,
que é parte integrante do sistema orçamentário, bastaria nele incluir a parte
referida no artigo 195 da Constituição Federal, para todos os entes da
federação, com o que se estaria então equilibrando as finanças da seguridade
social.
5 CONCLUSÕES
A seguir, arrolamos as principais conclusões a que chegamos no
decurso deste trabalho:
1. Na introdução, apresentamos o modelo conceitual de um sistema de
seguridade social brasileira e seu financiamento indireto, voltado para o
formato constitucional atual posto pela Constituição Federal de 1988.
2. O Estado Brasileiro não cumpre sua obrigação para com a seguridade
social e a sociedade sofre sérios riscos sociais, ou seja, põe em risco o bem-
estar das futuras gerações.
3. Os sistemas orçamentários não cumprem a regra imposta pelo
constituinte e não permitem ações do governo nas áreas de assistência, saúde
e previdência social.
4. Esse cenário provoca uma deficiência no processo como um todo,
que tem forte impacto nas classes menos favorecidas, pois toda ação que se
pretenda seja racional e eficaz na consecução de seus objetivos deve possuir
uma fonte de custeio eficaz para cobrir seus gastos.
5. O aprimoramento institucional dependerá necessariamente de uma
consciência por parte do governo, resultante da unificação dos orçamentos e
da criação de metas com novas peças orçamentárias, separando os percentuais
devidos à seguridade social, notadamente o Plano Plurianual e a Lei de
Diretrizes Orçamentárias, acompanhada de uma redefinição mais ampla do
148
processo orçamentário, com a inclusão do percentual devido ao financiamento
indireto da seguridade social.
6. Observados os princípios da seguridade social, torna-se ainda mais
urgente a necessidade de elaborar um plano de custeio calcado em “normas e
previsões de despesas e receitas estabelecidas com base em avaliações
atuariais e destinadas à planificação econômica do regime e seu conseqüente
equilíbrio técnico-financeiro”, para se mensurar a vantagem que as prestações
da seguridade social propiciam a cada um dos atores sociais, o custo dessas
prestações e a composição das contribuições sociais devidas.
7. A inexistência de um plano de custeio bem elaborado, nos moldes
acima descritos, macula o financiamento e dá margem ao Estado brasileiro de
não cumprir o financiamento indireto destinado ao custeio da seguridade
social.
9. Com efeito, defendemos uma reestruturação na forma de
financiamento, criando um laço de afinidade entre toda a sociedade, capaz de
justificar que cada membro contribua para a manutenção de um sistema de
proteção especial, e ao mesmo tempo cobre de seus representantes a parcela
do Estado, resgatando a solidariedade que tecnicamente justifica a cobrança
das contribuições e a obrigação governamental de separar em seus orçamentos
a parte do financiamento indireto, cumprindo a justiça social.
10. A finalidade deste trabalho foi mostrar a situação do financiamento
indireto. Procuramos definir estrategicamente a solução do problema,
enfatizando o exemplo de vinculação orçamentária na área da saúde, que se
deu através da promulgação da Emenda Constitucional n. 29, mas não foi
149
adequadamente aplicada pelos entes federativos, o que demonstra a falta de
solidariedade dos seus governantes.
12. Insistimos sobre a indefinição dos recursos financeiros aptos a
fomentar as políticas de assistência social, causa de existência de milhões de
excluídos. Defendemos a imediata vinculação orçamentária desse setor, para
que haja integração sistemática entre os setores oficiais de assistência social e
a comunidade.
13. Sob essa ótica de solidariedade mútua, finalizamos o trabalho,
acreditando ter alcançado nosso objetivo, de conscientizar sobre a importância
e relevância deste tema, visto que qualquer um pode se encontrar na situação
de precisar das prestações sociais do Estado, e que só será beneficiado se o
sistema estiver fundado em um financiamento sólido que permita a ele
cumprir com suas prestações.
150
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16.
ANEXOS
EMENDA CONSTITUCIONAL N. 29, DE 13 DE SETEMBRO DE 2000
Altera os artigos 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e
acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
para assegurar os recursos mínimos para o financiamento das ações e
serviços públicos de saúde.
As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do
parágrafo 3º do artigo 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte
Emenda ao texto constitucional:
Artigo 1º - A alínea “e” do inciso VII do artigo 34 passa a vigorar com a
seguinte redação:
“Artigo 34 - (...)
(...)
VII - (...)
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos
estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na
manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços
públicos de saúde.”
Artigo 2º - O inciso III do artigo 35 passa a vigorar com a seguinte redação:
“Artigo 35 - (...)
(...)
III - não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na
manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços
públicos de saúde;”
160
Artigo 3º - O parágrafo 1º do artigo 156 da Constituição Federal passa a
vigorar com a seguinte redação:
“Artigo 156 - (...)
§ 1º - Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o
artigo 182, parágrafo 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I
poderá:
I - ser progressivo em razão do valor do imóvel; e
II - ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do
imóvel.
(...).”
Artigo 4º O parágrafo único do artigo 160 passa a vigorar com a seguinte
redação:
“Artigo 160 - (...)
Parágrafo único - A vedação prevista neste artigo não impede a União e
os Estados de condicionarem a entrega de recursos:
I - ao pagamento de seus créditos, inclusive de suas autarquias;
II - ao cumprimento do disposto no artigo 198, parágrafo 2º, incisos II e
III.”
Artigo 5º - O inciso IV do artigo 167 passa a vigorar com a seguinte redação:
“Artigo 167 - (...)
(...)
IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa,
ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que
se referem os artigos 158 e 159, a destinação de recursos para as ações
e serviços públicos de saúde e para manutenção e desenvolvimento do
ensino, como determinado, respectivamente, pelos artigos 198,
parágrafo 2º, e 212, e a prestação de garantias às operações de crédito
por antecipação de receita, previstas no artigo 165, parágrafo 8º, bem
como o disposto no parágrafo 4º deste artigo;
161
(...).”
Artigo 6º - O artigo 198 passa a vigorar acrescido dos seguintes parágrafos 2º
e 3º, numerando-se o atual parágrafo único como parágrafo 1º:
“Artigo 198 - (...)
§ 1º - (parágrafo único original)
§ 2º - A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos
mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre:
I - no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar
prevista no parágrafo 3º;
II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação
dos impostos a que se refere o artigo 155 e dos recursos de que tratam
os artigos 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas
que forem transferidas aos respectivos Municípios;
III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da
arrecadação dos impostos a que se refere o artigo 156 e dos recursos de
que tratam os artigos 158 e 159, inciso I, alínea b e parágrafo 3º.
§ 3º - Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco
anos, estabelecerá:
I - os percentuais de que trata o parágrafo 2º;
II - os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde
destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos
Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a
progressiva redução das disparidades regionais;
III - as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com
saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal;
IV - as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União.”
Artigo 7º - O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a
vigorar acrescido do seguinte artigo 77:
162
“Artigo 77 - Até o exercício financeiro de 2004, os recursos mínimos
aplicados nas ações e serviços públicos de saúde serão equivalentes:
I - no caso da União:
a) no ano 2000, o montante empenhado em ações e serviços públicos de
saúde no exercício financeiro de 1999, acrescido de, no mínimo, cinco
por cento;
b) do ano 2001 ao ano 2004, o valor apurado no ano anterior, corrigido
pela variação nominal do Produto Interno Bruto – PIB;
II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, doze por cento do
produto da arrecadação dos impostos a que se refere o artigo 155 e dos
recursos de que tratam os artigos 157 e 159, inciso I, alínea ‘a’, e inciso
II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos
Municípios; e
III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, quinze por cento do
produto da arrecadação dos impostos a que se refere o artigo 156 e dos
recursos de que tratam os artigos 158 e 159, inciso I, alínea ‘b’ e
parágrafo 3º.
§ 1º - Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que apliquem
percentuais inferiores aos fixados nos incisos II e III deverão elevá-los
gradualmente, até o exercício financeiro de 2004, reduzida a diferença à
razão de, pelo menos, um quinto por ano, sendo que, a partir de 2000, a
aplicação será de pelo menos sete por cento.
§ 2º - Dos recursos da União apurados nos termos deste artigo, quinze
por cento, no mínimo, serão aplicados nos Municípios, segundo o
critério populacional, em ações e serviços básicos de saúde, na forma
da lei.
§ 3º - Os recursos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
destinados às ações e serviços públicos de saúde e os transferidos pela
União para a mesma finalidade serão aplicados por meio de Fundo de
163
Saúde que será acompanhado e fiscalizado por Conselho de Saúde, sem
prejuízo do disposto no artigo 74 da Constituição Federal.
§ 4º - Na ausência da lei complementar a que se refere o artigo 198,
parágrafo 3º, a partir do exercício financeiro de 2005, aplicar-se-á à
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o disposto
neste artigo.”
Artigo 8º - Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua
publicação.
164
EMENDA CONSTITUCIONAL N. 31, 14 DE DEZEMBRO DE 2000
Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
introduzindo artigos que criam o Fundo de Combate e Erradicação da
Pobreza.
As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do
parágrafo 3º do artigo 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte
emenda ao texto constitucional:
Artigo 1º - A Constituição Federal, no Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, é acrescida dos seguintes artigos:
“Artigo 79 - É instituído, para vigorar até o ano de 2010, no âmbito do Poder Executivo Federal, o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, a ser regulado por lei complementar com o objetivo de viabilizar a todos os brasileiros, acesso a níveis dignos de subsistência, cujos recursos serão aplicados em ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço de renda familiar e outros programas de relevante interesse social voltados para melhoria da qualidade de vida.” Parágrafo único - O Fundo previsto neste artigo terá Conselho Consultivo e de Acompanhamento que conte com a participação de representantes da sociedade civil, nos termos da lei. Artigo 80 - Compõem o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza: I - a parcela do produto da arrecadação correspondente a um adicional de oito centésimos por cento, aplicável de 18 de junho de 2000 a 17 de junho de 2002, na alíquota da contribuição social de que trata o artigo 75 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; II - a parcela do produto da arrecadação correspondente a um adicional de cinco pontos percentuais na alíquota do Imposto sobre Produtos
165
Industrializados − IPI, ou do imposto que vier a substituí-lo, incidente sobre produtos supérfluos e aplicável até a extinção do Fundo; III - o produto da arrecadação do imposto de que trata o artigo 153, inciso VII, da Constituição; IV - dotações orçamentárias; V - doações, de qualquer natureza, de pessoas físicas ou jurídicas do País ou do exterior; VI - outras receitas, a serem definidas na regulamentação do referido Fundo. § 1º - Aos recursos integrantes do Fundo de que trata este artigo não se aplica o disposto nos artigos 159 e 167, inciso IV, da Constituição, assim como qualquer desvinculação de recursos orçamentários. § 2º - A arrecadação decorrente do disposto no inciso I deste artigo, no período compreendido entre 18 de junho de 2000 e o início da vigência da lei complementar a que se refere o artigo 79, será integralmente repassada ao Fundo, preservado o seu valor real, em títulos públicos federais, progressivamente resgatáveis após 18 de junho de 2002, na forma da lei. Artigo 81 - É instituído Fundo constituído pelos recursos recebidos pela União em decorrência da desestatização de sociedades de economia mista ou empresas públicas por ela controladas, direta ou indiretamente, quando a operação envolver a alienação do respectivo controle acionário a pessoa ou entidade não integrante da Administração Pública, ou de participação societária remanescente após a alienação, cujos rendimentos, gerados a partir de 18 de junho de 2002, reverterão ao Fundo de Combate e Erradicação de Pobreza. § 1º - Caso o montante anual previsto nos rendimentos transferidos ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, na forma deste artigo, não alcance o valor de quatro bilhões de reais, far-se-á complementação na forma do artigo 80, inciso IV, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
166
§ 2º - Sem prejuízo do disposto no parágrafo 1º, o Poder Executivo poderá destinar ao Fundo a que se refere este artigo outras receitas decorrentes da alienação de bens da União. § 3º - A constituição do Fundo a que se refere o caput, a transferência de recursos ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza e as demais disposições referentes ao parágrafo 1º deste artigo serão disciplinadas em lei, não se aplicando o disposto no artigo 165, parágrafo 9º, inciso II, da Constituição. Artigo 82 - Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem instituir Fundos de Combate à Pobreza, com os recursos de que trata este artigo e outros que vierem a destinar, devendo os referidos Fundos ser geridos por entidades que contem com a participação da sociedade civil. § 1º - Para o financiamento dos Fundos Estaduais e Distrital, poderá ser criado adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, ou do imposto que vier a substituí-lo, sobre os produtos e serviços supérfluos, não se aplicando, sobre este adicional, o disposto no artigo 158, inciso IV, da Constituição. § 2º - Para o financiamento dos Fundos Municipais, poderá ser criado adicional de até meio ponto percentual na alíquota do Imposto sobre Serviços ou do imposto que vier a substituí-lo, sobre serviços supérfluos. Artigo 83 - Lei federal definirá os produtos e serviços supérfluos a que
se referem os artigos 80, inciso II, e 82, parágrafos 1º e 2º.”
Artigo 2º - Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua
publicação.
167
RESOLUÇÃO N. 121 DO CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, DE 1º DE AGOSTO DE 1996
Proposta orçamentária
O Presidente do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, no uso
das atribuições que lhe confere a Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993 e, o
inciso VII do artigo 23, da Resolução n. 66, de 2 de maio de 1996, em
conformidade com a deliberação da Reunião Plenária, realizada no dia 26 de
junho de 1996.
Considerando que a Secretaria de Assistência Social – SAS/MPAS apresentou
uma proposta orçamentária do Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS
para o exercício de 1997, no valor de R$ 1.627.209.954 (hum bilhão,
seiscentos e vinte e sete milhões, duzentos e nove mil, novecentos e cinqüenta
e quatro reais);
Considerando que a proposta apresentada tem um acréscimo de 25% nas
metas a serem atingidas;
Considerando que o valor proposto representa um acréscimo de R$ 915
milhões sobre os valores aprovados para o Fundo Nacional de Assistência
Social – FNAS no presente exercício, resolve: aprovar com ressalvas, a
proposta apresentada:
I - por não contemplar as seguintes deliberações da I Conferência Nacional de
Assistência Social:
a) destinação de 5% do orçamento da Seguridade Social para Assistência
Social;
b) a modificação da renda per capita familiar de ¼ para 1 salário mínimo para
os beneficiários do beneficio de prestação continuada;
c) rebaixamento da idade mínima do beneficiário do beneficio de prestação
continuada para 60 anos;
168
II - por não apresentar o montante da receita prevista para a Seguridade
Social;
III - por não definir as fontes de receita a serem utilizadas para o
financiamento das despesas previstas;
IV - pela necessidade de revisão da classificação funcional-programática, para
melhor descrição dos recursos destinados à Assistência Social no Orçamento
Federal;
V - por faltarem informações sobre a capacidade da rede de entidades de
Assistência Social, particularmente no atendimento de crianças carentes de 0
a 6 anos, impedindo a apresentação de uma proposta orçamentária mais
adequada às necessidades sociais;
VI - pela aprovação do Fundo de Estabilidade Fiscal, com vistas a permitir a
política de estabilização monetária e o pagamento de juros e amortização da
Dívida Pública Mobiliária Federal – DPMF, que implicará na diminuição do
Orçamento da Seguridade Social em 1997, com sérios riscos à execução da
Política Nacional de Assistência Social;
VII - por ter ficado evidenciado a falta de articulação entre o beneficio de
prestação continuada e a Política de Assistência da Pessoa Portadora de
Deficiência;
VIII - pelas metas físicas propostas estarem muito abaixo das previstas no
Plano Plurianual de Governo para o quadriênio 1996-1999 e na Lei de
Diretrizes Orçamentárias para 1997.
169
RESOLUÇÃO N. 322 DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, DE 8 DE MAIO DE 2003
O Plenário do Conselho Nacional de Saúde, em sua Centésima Trigésima
Reunião Ordinária, realizada nos dias 7 e 8 de maio de 2003, no uso de suas
competências regimentais e atribuições conferidas pela Lei n. 8.080, de 19 de
setembro de 1990, e pela Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990 e conforme
estabelecido no artigo 77, parágrafo 3º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias – ADCT, Considerando:
• que o mesmo referendou a aprovação da Resolução n. 316, aprovada pelo
Plenário do CNS em sua 118ª Reunião Ordinária, realizada nos dias 3 e 4 de
abril de 2002, passando a mesma constituir-se na Resolução n. 322, de 08 de
maio de 2003;
• a promulgação da Emenda Constitucional n. 29163, em 13 de setembro de
2000, vinculando os recursos orçamentários da União, Estados, Distrito
Federal e Municípios a serem aplicados obrigatoriamente em ações e serviços
públicos de saúde;
• serem os dispositivos da Emenda Constitucional n. 29 auto-aplicáveis;
• a necessidade de esclarecimento conceitual e operacional do texto
constitucional, de modo a lhe garantir eficácia e viabilizar sua perfeita
aplicação pelos agentes públicos até a aprovação da Lei Complementar a que
se refere o parágrafo 3º do artigo 198 da Constituição Federal;
• a necessidade de haver ampla discussão pública para a elaboração da Lei
Complementar prevista no parágrafo 3º do artigo 198 da Constituição Federal,
de forma a disciplinar os dispositivos da Emenda Constitucional n. 29;
• os esforços envidados pelos gestores do SUS, com a realização de amplas
discussões e debates sobre a implementação da Emenda Constitucional n. 29,
163 Vide p. 159.
170
com o intuito de promover a aplicação uniforme e harmônica dos ditames
constitucionais;
• as discussões realizadas pelo grupo técnico formado por representantes do
Ministério da Saúde, do Ministério Público Federal, do Conselho Nacional de
Saúde − CNS, do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde −
CONASS, do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde −
CONASEMS, da Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados,
da Comissão de Assuntos Sociais do Senado e da Associação dos Membros
dos Tribunais de Contas – ATRICON, resultando na elaboração do
documento “Parâmetros Consensuais Sobre a Implementação e
Regulamentação da Emenda Constitucional 29”; e
• os subsídios colhidos nos seminários sobre a “Operacionalização da
Emenda Constitucional 29”, realizados em setembro e dezembro de 2001,
com a participação de representantes dos Tribunais de Contas dos Estados,
dos Municípios e da União, do Ministério da Saúde, do Conselho Nacional de
Saúde e do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde –
CONASEMS.
Resolve:
I - Aprovar as seguintes diretrizes acerca da aplicação da Emenda
Constitucional n. 29, de 13 de setembro de 2000:
DA BASE DE CÁLCULO PARA DEFINIÇÃO DOS RECURSOS
MÍNIMOS A SEREM APLICADOS EM SAÚDE
Primeira Diretriz: A apuração dos valores mínimos a serem aplicados em
ações e serviços públicos de saúde, de que tratam o artigo 198, parágrafo 2º
da Constituição Federal e o artigo 77 do ADCT, dar-se-á a partir das seguintes
bases de cálculo:
171
I - Para a União, até o ano de 2004, o montante efetivamente empenhado em
ações e serviços públicos de saúde no ano imediatamente anterior ao da
apuração da nova base de cálculo.
II - Para os Estados:
• Total das receitas de impostos de natureza estadual:
ICMS, IPVA, ITCMD
• (+) Receitas de transferências da União:
Quota-parte do FPE
Cota-parte do IPI – Exportação
Transferências da Lei Complementar n. 87/96 (Lei Kandir)
• (+) Imposto de Renda Retido na Fonte – IRRF
• (+) Outras receitas correntes:
Receita da Dívida Ativa Tributária de Impostos, Multas, Juros de Mora e
Correção Monetária.
• (-) Transferências financeiras constitucionais e legais a Municípios:
ICMS (25%),
IPVA (50%),
IPI – Exportação (25%),
(=) Base de Cálculo Estadual
III – Para os Municípios:
• Total das receitas de impostos municipais:
ISS, IPTU, ITBI
• (+) Receitas de transferências da União:
Quota-parte do FPM
Quota-parte do ITR
Quota-parte da Lei Complementar n. 87/96 (Lei Kandir)
• (+) Imposto de Renda Retido na Fonte – IRRF
• (+) Receitas de transferências do Estado:
172
Quota-parte do ICMS
Quota-parte do IPVA
Quota-parte do IPI – Exportação
• (+) Outras Receitas Correntes:
Receita da Dívida Ativa Tributária de Impostos, Multas, Juros de Mora e
Correção Monetária
(=) Base de Cálculo Municipal
IV - Para o Distrito Federal:
Base de Cálculo Estadual Base de Cálculo Municipal
ICMS (75%) ICMS (25%)
IPVA (50%) IPVA (50%)
ITCD IPTU
Simples ISS
Imposto de Renda Retido na Fonte ITBI
Quota-parte FPE Quota-parte FPM
Quota-parte IPI - exportação (75%) Quota-parte IPI - exportação (25%)
Transferência LC 87/96 - Lei Kandir (75%) Quota-parte ITR
Dívida Ativa Tributária de Impostos Transferência LC 87/96 - Lei
Kandir (25%)
Multas, juros de mora e correção monetária Dívida Ativa Tributária de Impostos
Multas, juros de mora e correção
monetária
DOS RECURSOS MÍNIMOS A SEREM APLICADOS EM SAÚDE
Segunda Diretriz: Para a União, a aplicação dos recursos mínimos em ações e
serviços públicos de saúde, no período do ano de 2001 até 2004, a que se
refere o artigo 77, II, “b”, do ADCT, deverá ser observado o seguinte:
I - a expressão “o valor apurado no ano anterior”, previsto no artigo 77, II,
“b”, do ADCT, é o montante efetivamente empenhado pela União em ações e
serviços públicos de saúde no ano imediatamente anterior, desde que
173
garantido o mínimo assegurado pela Emenda Constitucional, para o ano
anterior;
II - em cada ano, até 2004, o valor apurado deverá ser corrigido pela variação
nominal do Produto Interno Bruto – PIB do ano em que se elabora a proposta
orçamentária (a ser identificada no ano em que se executa o orçamento).
Terceira Diretriz: Para os Estados e os Municípios, até o exercício financeiro
de 2004, deverá ser observada a regra de evolução progressiva de aplicação
dos percentuais mínimos de vinculação, prevista no artigo 77, do ADCT.
§ 1º - Os entes federados cujo percentual aplicado em 2000 tiver sido não
superior a sete por cento deverão aumentá-lo de modo a atingir o mínimo
previsto para os anos subseqüentes, conforme o quadro abaixo.
Percentuais Mínimos de Vinculação
Ano Estados Municípios
2000 7% 7%
2001 8% 8,6%
2002 9% 10,2%
2003 10% 11,8%
2004 12% 15%
§ 2º - Os entes federados que em 2000 já aplicavam percentuais superiores a
sete por cento não poderão reduzi-lo, retornando aos sete por cento. A
diferença entre o efetivamente aplicado e o percentual final estipulado no
texto constitucional deverá ser abatida na razão mínima de um quinto ao ano,
até 2003, sendo que em 2004 deverá ser, no mínimo, o previsto no artigo 77
do ADCT.
Quarta Diretriz: O montante mínimo de recursos a serem aplicados em saúde
pelo Distrito Federal deverá ser definido pelo somatório (i) do percentual de
vinculação correspondente aos estados, aplicado sobre a base estadual
definida na primeira diretriz com (ii) o percentual de vinculação
174
correspondente aos municípios aplicado sobre a base municipal definida na
primeira diretriz, seguindo a regra de progressão prevista no artigo 77 da
ADCT, conforme abaixo demonstrado:
Ano Montante Mínimo de Vinculação
2000 0,07×Base Estadual+0,070×Base Municipal
2001 0,08×Base Estadual+0,086×Base Municipal
2002 0,09×Base Estadual+0,102×Base Municipal
2003 0,10×Base Estadual+0,118×Base Municipal
2004 0,12×Base Estadual+0,150×Base Municipal
Parágrafo único - Aplica-se ao Distrito Federal o disposto no parágrafo 2º da
Terceira Diretriz.
DAS AÇÕES E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE
Quinta Diretriz: Para efeito da aplicação da Emenda Constitucional n. 29,
consideram-se despesas com ações e serviços públicos de saúde aquelas com
pessoal ativo e outras despesas de custeio e de capital, financiadas pelas três
esferas de governo, conforme o disposto nos artigos 196 e 198, parágrafo 2º,
da Constituição Federal e na Lei n. 8.080/90, relacionadas a programas
finalísticos e de apoio, inclusive administrativos, que atendam,
simultaneamente, aos seguintes critérios:
I - sejam destinadas às ações e serviços de acesso universal, igualitário e
gratuito;
II - estejam em conformidade com objetivos e metas explicitados nos Planos
de Saúde de cada ente federativo;
III - sejam de responsabilidade específica do setor de saúde, não se
confundindo com despesas relacionadas a outras políticas públicas que atuam
175
sobre determinantes sociais e econômicos, ainda que com reflexos sobre as
condições de saúde.
Parágrafo único - Além de atender aos critérios estabelecidos no caput, as
despesas com ações e serviços de saúde, realizadas pelos Estados, Distrito
Federal e Municípios deverão ser financiadas com recursos alocados por meio
dos respectivos Fundos de Saúde, nos termos do artigo 77, parágrafo 3º do
ADCT.
Sexta Diretriz: Atendido ao disposto na Lei n. 8.080/90, aos critérios da
Quinta Diretriz e para efeito da aplicação da Emenda Constitucional n. 29,
consideram-se despesas com ações e serviços públicos de saúde as relativas à
promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde, incluindo:
I - vigilância epidemiológica e controle de doenças;
II - vigilância sanitária;
III - vigilância nutricional, controle de deficiências nutricionais, orientação
alimentar, e a segurança alimentar promovida no âmbito do SUS;
IV - educação para a saúde;
V - saúde do trabalhador;
VI - assistência à saúde em todos os níveis de complexidade;
VII - assistência farmacêutica;
VIII - atenção à saúde dos povos indígenas;
IX - capacitação de recursos humanos do SUS;
X - pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico em saúde,
promovidos por entidades do SUS;
XI - produção, aquisição e distribuição de insumos setoriais específicos, tais
como medicamentos, imunobiológicos, sangue e hemoderivados, e
equipamentos;
XII - saneamento básico e do meio ambiente, desde que associado
diretamente ao controle de vetores, a ações próprias de pequenas
comunidades ou em nível domiciliar, ou aos Distritos Sanitários Especiais
176
Indígenas (DSEI), e outras ações de saneamento a critério do Conselho
Nacional de Saúde;
XIII - serviços de saúde penitenciários, desde que firmado Termo de
Cooperação específico entre os órgãos de saúde e os órgãos responsáveis pela
prestação dos referidos serviços.
XIV – atenção especial aos portadores de deficiência.
XV – ações administrativas realizadas pelos órgãos de saúde no âmbito do
SUS e indispensáveis para a execução das ações indicadas nos itens
anteriores;
§ 1° - No caso da União, excepcionalmente, as despesas com ações e serviços
públicos de saúde da União financiadas com receitas oriundas de operações
de crédito contratadas para essa finalidade poderão integrar o montante
considerado para o cálculo do percentual mínimo constitucionalmente
exigido, no exercício em que ocorrerem.
§ 2° - No caso dos Estados, Distrito Federal e Municípios, os pagamentos de
juros e amortizações decorrentes de operações de crédito contratadas a partir
de 1°.1.2000 para custear ações e serviços públicos de saúde,
excepcionalmente, poderão integrar o montante considerado para o cálculo do
percentual mínimo constitucionalmente exigido.
Sétima Diretriz: Em conformidade com o disposto na Lei 8.080/90, com os
critérios da Quinta Diretriz e para efeito da aplicação da Emenda
Constitucional n. 29, não são consideradas como despesas com ações e
serviços públicos de saúde as relativas a:
I – pagamento de aposentadorias e pensões;
II - assistência à saúde que não atenda ao princípio da universalidade
(clientela fechada);
III - merenda escolar;
IV - saneamento básico, mesmo o previsto no inciso XII da Sexta Diretriz,
realizado com recursos provenientes de taxas ou tarifas e do Fundo de
177
Combate e Erradicação da Pobreza, ainda que excepcionalmente executado
pelo Ministério da Saúde, pela Secretaria de Saúde ou por entes a ela
vinculados;
V - limpeza urbana e remoção de resíduos sólidos (lixo);
VI - preservação e correção do meio ambiente, realizadas pelos órgãos de
meio ambiente dos entes federativos e por entidades não governamentais;
VII - ações de assistência social não vinculadas diretamente a execução das
ações e serviços referidos na Sexta Diretriz e não promovidas pelos órgãos de
Saúde do SUS;
VIII - ações e serviços públicos de saúde custeadas com recursos que não os
especificados na base de cálculo definida na primeira diretriz.
§ 1° - No caso da União, os pagamentos de juros e amortizações decorrentes
de operações de crédito, contratadas para custear ações e serviços públicos de
saúde, não integrarão o montante considerado para o cálculo do percentual
mínimo constitucionalmente exigido.
§ 2° - No caso dos Estados, Distrito Federal e Municípios, as despesas com
ações e serviços públicos de saúde financiadas com receitas oriundas de
operações de crédito contratadas para essa finalidade não integrarão o
montante considerado para o cálculo do percentual mínimo
constitucionalmente exigido, no exercício em que ocorrerem.
DOS INSTRUMENTOS DE ACOMPANHAMENTO, FISCALIZAÇÃO E
CONTROLE
Oitava diretriz: Os dados constantes no Sistema de Informações sobre
Orçamentos Públicos em Saúde do Ministério da Saúde – SIOPS serão
utilizados como referência para o acompanhamento, a fiscalização e o
controle da aplicação dos recursos vinculados em ações e serviços públicos de
saúde.
178
Parágrafo único - Os Tribunais de Contas, no exercício de suas atribuições
constitucionais, poderão, a qualquer tempo, solicitar, aos órgãos responsáveis
pela alimentação do sistema, retificações nos dados registrados pelo SIOPS.
Nona Diretriz: O Sistema de Informação Sobre Orçamentos Públicos em
Saúde – SIOPS, criado pela Portaria Interministerial n. 1.163, de outubro de
2000, do Ministério da Saúde e da Procuradoria Geral da República, divulgará
as informações relativas ao cumprimento da Emenda Constitucional n. 29 aos
demais órgãos de fiscalização e controle, tais como o Conselho Nacional de
Saúde, os Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde, o Ministério Público
Federal e Estadual, os Tribunais de Contas da União, dos Estados e
Municípios, o Senado Federal, a Câmara dos Deputados, as Assembléias
Legislativas, a Câmara Legislativa do Distrito Federal e as Câmaras
Municipais.
Décima Diretriz: Na hipótese de descumprimento da Emenda Constitucional
n. 29, a definição dos valores do exercício seguinte não será afetada; ou seja,
os valores mínimos serão definidos tomando-se como referência os valores
que teriam assegurado o pleno cumprimento da Emenda Constitucional n. 29
no exercício anterior. Além disso, deverá haver uma suplementação
orçamentária no exercício seguinte, para compensar a perda identificada, sem
prejuízo das sanções previstas na Constituição e na legislação.
HUMBERTO COSTA
Presidente do Conselho Nacional de Saúde
Homologo a Resolução CNS n. 322, de 8 de maio de 2003, nos termos do
Decreto de Delegação de Competência de 12 de novembro de 1991.
HUMBERTO COSTA
Ministro de Estado da Saúde