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Filosofia

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APRESENTAÇÃO

Prezado aluno,

Esta disciplina destina‑se, mais especificamente, à formação acadêmica do aluno de Direito, na medida em que se ocupa de questões relativas a importantes reflexões que ocuparam pensadores desde a Grécia Antiga, de maneira a promover um melhor e mais aguçado entendimento de aspectos essenciais à sua formação jurídica.

Trata de aspectos que poderão promover conhecimento de questões fundamentais à consolidação do Direito em diferentes momentos da história da humanidade, expondo o aluno à própria evolução do pensamento filosófico e jurídico.

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FILOSOFIA

1. A PALAVRA FILOSOFIA1

A palavra filosofia é grega. É composta por duas outras: philo e sophia. Philo deriva‑se de philia, que significa amizade, amor fraterno, respeito entre os iguais. Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a palavra sophos, sábio.

Atribui‑se ao filósofo grego Pitágoras de Samos (que viveu no século V a.C.) a invenção da palavra filosofia. Segundo Pitágoras, a sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas os homens podem desejá‑la ou amá‑la, tornando‑se filósofos.

2. A FILOSOFIA É GREGA

A Filosofia, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e sistemático da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e de suas transformações, da origem e causas das ações humanas e do próprio pensamento, é um fato tipicamente grego. Através da Filosofia, os gregos instituíram para o Ocidente europeu as bases e os princípios fundamentais do que chamamos razão, racionalidade, ciência, ética, política, técnica, arte.

Evidentemente, isso não quer dizer, de modo algum, que outros povos, tão antigos quanto os gregos, como os chineses, os hindus, os japoneses, os árabes, os persas, os hebreus, os africanos ou os índios da América não possuam sabedoria, pois possuíam e possuem. Também não quer dizer que esses povos não tivessem desenvolvido o pensamento e as formas de conhecimento da natureza e dos seres humanos, pois desenvolveram e desenvolvem.

A Filosofia surge, portanto, quando alguns gregos, admirados e espantados com a realidade, insatisfeitos com as explicações que a tradição lhes dera, começaram a fazer perguntas e buscar respostas para elas, demonstrando que o mundo e os seres humanos, os acontecimentos e as coisas da natureza, os acontecimentos e as ações humanas podem ser conhecidos pela razão humana, e que a própria razão é capaz de conhecer‑se a si mesma.

3. O SIMBOLISMO DA SABEDORIA2

Em muitas línguas, a coruja é a ave que simboliza a sabedoria. Isso se deve ao fato de que, na tradição grega, a coruja foi vista como a ave de Athena (Minerva, para os romanos), ou seja, como símbolo da

1 Texto adaptado da obra Convite à Filosofia, Unidade 1, A Filosofia, Capítulo 1 “Origem da Filosofia”, da autoria de Marilena Chauí. São Paulo: Editora Ática, 2000.

2 Texto adaptado da obra Curso de Filosofia do Direito. 6. ed. da autoria de Eduardo C. B. Bittar & Guilherme Assis de Almeida. São Paulo: Atlas, 2008.

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racionalidade e da sabedoria, como a representação da atitude desperta, que procura, que age sob o fluxo lunar e que não dorme quando se trata da busca do conhecimento.

Associada à capacidade de enxergar mesmo nas trevas, seus grandes olhos voltados para a compreensão, para a observação, são suficientemente significativos para traduzirem a ideia de que a busca da sabedoria pressupõe um olhar atento para a compreensão do mundo (CHEVALIER, 2005 apud BITTAR & ALMEIDA, 2008, p. 1, 2).

Em sua obra: “Curso de Filosofia do Direito”, Bittar & Almeida (2008) chamam a nossa atenção para o fato de que “uma longa experiência que seja não refletida, mas mecanicamente vivida, não é sinônimo de sabedoria adquirida. A sabedoria realmente evoca experiência e capacidade de absorção reflexiva da experiência mundana, esta predisposição de voltar‑se para o processo de convívio com o espanto diante do mundo”.

Os especialistas referem‑se a construções de mosteiros e de fortalezas no período medieval como outra metáfora para explicar a questão da sabedoria. Os mosteiros construídos em regiões mais altas, as fortalezas em um alto penhasco. Em ambos os casos, observam‑se consideráveis distâncias da vida urbana, de onde se pode ter ampla visão do todo. Os mosteiros, lugares de reclusão, de ligação com o divino, propiciam aos monges a condição de serem mediadores entre o mundo humano e o divino. A capacidade de os monges orientarem resulta da sua condição de ver muito além do que os homens conseguem ver. Já das fortalezas no exercício de seu papel defensivo contra os inimigos de uma sociedade vulnerável a toda sorte de ataques e embates, os sentinelas podem ter ampla visão de tudo para propor o aviso estratégico ou de propor o ataque sobre o perigo iminente do invasor.

Para os autores, a visão de um filósofo não é a de um especialista, mas a de um conhecedor das diversas perspectivas em que se inscreve a vivência mundana e suas questões, em geral, seus grandes dilemas. Sua visão não é a visão local, a do cientista, mas a visão geral, abrangente. O filósofo observa diversos aspectos de questões abrangentes, suas observações se dão de modo integral e holístico. Suas questões são enigmáticas para a condição humana. O filósofo lida com questões aporéticas [dúbias, paradoxais] (Que é ser? Qual é a natureza humana? Qual o sentido da vida? Qual a melhor forma de governo? Como se pode definir justiça?). Assim, busca um lugar privilegiado para observação. Distancia‑se para compreender, ora para contemplar tal qual o monge, ora para ter a certeza da mais clara estratégia defensiva, como o guerreiro (BITTAR & ALMEIDA, 2008).

Nas palavras dos autores, “ao usar o pensamento como força de compreensão, acaba por agir sobre o mundo, e isto porque, ao utilizar o ferramental da razão, se posta como sentinela e defensor da garantia de que a razão será conservada na vida social como um distintivo fundamental da condição humana. [...] A filosofia exerce uma verdadeira vigília dirigida a si mesma e ao mundo circundante, dedicada a cumprir uma tarefa de fundamental importância para a existência humana” (BITTAR & ALMEIDA 2008, p. 4).

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4. PARA QUE FILOSOFIA?3

4.1 A atitude filosófica

Ao tomar distância da vida cotidiana e de si mesmo, indagando sobre as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência; o homem estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer o porquê de suas crenças e sentimentos. Essa atitude recebe o nome de atitude filosófica.

ATITUDE FILOSÓFICA = APRECIAÇÃO DISTANCIADA DO OBJETO DE REFLEXÃO.

4.2 A atitude crítica

A primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, um dizer não ao senso comum, aos pré‑conceitos, aos pré‑juízos, aos fatos e às ideias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido.

A segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é, uma interrogação sobre o que são as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as indagações fundamentais da atitude filosófica.

A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que chamamos de atitude crítica e pensamento crítico.

ATITUDE CRÍTICA = primeiro negar o pré‑estabelecido (1º passo) para poder provocar, indagar (2o passo).

A Filosofia começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do senso comum e, portanto, começa dizendo que não sabemos o que imaginávamos saber; por isso, o patrono da Filosofia, o grego Sócrates, afirmava que a primeira e fundamental verdade filosófica é dizer: “Sei que nada sei”. Para o discípulo de Sócrates, o filósofo grego Platão, a Filosofia começa com a admiração; já o discípulo de Platão, o filósofo Aristóteles, acreditava que a Filosofia começa com o espanto.

Admiração e espanto significam: tomamos distância do nosso mundo costumeiro, através de nosso pensamento, olhando‑o como se nunca o tivéssemos visto antes, como se não tivéssemos tido família, amigos, professores, livros e outros meios de comunicação que nos tivessem dito o que o mundo é; como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é, por que é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que somos, por que somos e como somos.

3 Texto adaptado da obra Convite à Filosofia, Unidade 1, A Filosofia, Capítulo 1 “Origem da Filosofia”, da autoria de Marilena Chauí. São Paulo: Editora Ática, 2000.

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5. PARA QUE FILOSOFIA?

Todas as pretensões das ciências pressupõem que elas acreditem na existência da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento, na tecnologia como aplicação prática de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados.

Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é ciência, são questões filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas.5.1 Atitude filosófica: indagar

Características da atitude filosófica que independem do conteúdo investigado:

•Perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a ideia, é. A Filosofia pergunta qual é a realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa, não importa qual.

•Perguntar como a coisa, a ideia ou o valor, é. A Filosofia indaga qual é a estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa, uma ideia ou um valor.

•Perguntar por que a coisa, a ideia ou o valor, existe e é como é. A Filosofia pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma ideia, de um valor.

As perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio pensamento: o que é pensar, como é pensar, por que há o pensar? Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo, a Filosofia se realiza como reflexão.

6. A REFLEXÃO FILOSÓFICA

A Filosofia torna‑se, então, o pensamento interrogando‑se a si mesmo.

Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo.

A reflexão filosófica é radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer‑se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento.

A reflexão filosófica organiza‑se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou questões:

1. Quais os motivos, as razões e as causas para pensarmos o que pensamos, dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos?

2. Qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos ou fazemos?

3. Qual é a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos? Crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro, um conhecimento?

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A atitude filosófica inicia‑se com perguntas sobre a essência, a significação ou a estrutura e a origem de todas as coisas.

A reflexão filosófica indaga, dirige‑se ao pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir.

7. FILOSOFIA: UM PENSAMENTO SISTEMÁTICO

A Filosofia, cada vez mais, ocupa‑se com as condições e os princípios do conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o conteúdo dos valores éticos, políticos, artísticos e culturais; com a compreensão das causas e das formas da ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo; com as transformações históricas dos conceitos, das ideias e dos valores.

A Filosofia volta‑se também para o estudo da consciência em suas várias modalidades: percepção, imaginação, memória, linguagem, inteligência, experiência, reflexão, comportamento, vontade, desejo e paixões; procurando descrever as formas e os conteúdos dessas modalidades de relação entre o ser humano e o mundo, do ser humano consigo mesmo e com os outros.

A Filosofia visa ao estudo e à interpretação de ideias ou significações gerais como: realidade, mundo, natureza, cultura, história, subjetividade, objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição, mudança etc.

Em outras palavras, a Filosofia se interessa por aquele instante em que a realidade natural (o mundo das coisas) e a histórica (o mundo dos homens) tornam‑se estranhas, espantosas, incompreensíveis e enigmáticas, quando o senso comum já não sabe o que pensar e dizer e as ciências e as artes ainda não sabem o que pensar e dizer.

Essa descrição da atividade filosófica capta a Filosofia como análise (das condições da ciência, da religião, da arte, da moral), como reflexão (isto é, volta da consciência para si mesma para conhecer‑se como capacidade para o conhecimento, o sentimento e a ação) e como crítica (das ilusões e dos preconceitos individuais e coletivos, das teorias e práticas científicas, políticas e artísticas), estando essas três atividades (análise, reflexão e crítica) orientadas para elaboração filosófica de significações gerais sobre a realidade e os seres humanos. Além de análise, reflexão e crítica, a Filosofia é a busca do fundamento e do sentido da realidade em suas múltiplas formas, indagando o que são, qual sua permanência e qual a necessidade interna que as transforma em outras. O que é o ser e o aparecer‑desaparecer dos seres?

A Filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e os conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e as formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é sociologia nem psicologia, mas a interpretação e a avaliação crítica de conceitos e métodos da sociologia e da psicologia. Não é política, mas interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é história, mas interpretação do sentido dos acontecimentos inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do

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conhecimento e da ação humana, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento da mudança das formas do real ou dos seres; a Filosofia sabe que está na História e que possui uma história.

8. A UTILIDADE DA FILOSOFIA

Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às ideias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações em uma prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes.

9. A ORIGEM DA FILOSOFIA

A Filosofia surgiu quando alguns pensadores gregos se deram conta de que a verdade do mundo e dos humanos não era secreta e misteriosa, que precisava ser revelada por divindades a alguns escolhidos, mas, ao contrário, podia ser conhecida por todos por meio de operações mentais de raciocínio, que são as mesmas em todos os seres humanos. Descobriram que a linguagem respeita exigências do pensamento, o que, por esse mesmo motivo, os conhecimentos verdadeiros podem ser transmitidos e ensinados a todos.

10. TRAÇOS DA ATIVIDADE FILOSÓFICA NO SEU NASCIMENTO

1. Tendência à racionalidade: os gregos foram os primeiros a definir o ser humano como animal racional, a considerar que o pensamento e a linguagem definem a razão, que o homem é um ser dotado de razão e que a racionalidade é um traço distintivo em relação a todos os outros seres.

2. Recusa de explicações preestabelecidas: cada fato exige uma explicação racional como resultado de investigação.

3. Tendência à argumentação e ao debate: nenhuma solução pode ser aceita em que tenha sido demonstrada, isto é, provada racionalmente em conformidade com princípios e regras do pensamento verdadeiro.

4. Capacidade de generalização: mostrar que uma explicação tem validade para muitas outras coisas diferentes ou muitos fatos diversos, porque sob a aparência da diversidade e variação, pode‑se descobrir semelhanças e identidades. A capacidade racional chama–se síntese (palavra grega que significa reunião, fusão de várias coisas em uma união íntima para formar um todo).

5. Capacidade de diferenciação: mostrar que fatos ou coisas que parecem iguais ou semelhantes, na verdade, são diferentes quando examinados pela razão. A capacidade racional de compreender

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diferenças em coisas nas quais parece haver identidade e semelhança chama‑se análise (palavra grega que significa ação de desligar, separar, resolução de um todo em suas partes).

Com a Filosofia, os gregos instituíram para o Ocidente europeu as bases e os princípios fundamentais do que chamamos de razão, racionalidade, ciência, ética, política, técnica e arte.

11. OS PERÍODOS DA FILOSOFIA GREGA4

A história da Grécia costuma ser dividida pelos historiadores em quatro grandes fases ou épocas:

1. A da Grécia homérica, correspondente aos 400 anos narrados pelo poeta Homero, em seus dois grandes poemas, “Ilíada” e “Odisseia”.

2. A da Grécia arcaica ou dos sete sábios, do século VII ao século V a.C., quando os gregos criaram cidades como Atenas, Esparta, Tebas, Megara, Samos etc., com predominância da economia urbana, baseada no artesanato e no comércio.

3. A da Grécia clássica, nos séculos V e IV a.C., quando a democracia se desenvolve, a vida intelectual e artística entra no apogeu e Atenas domina a Grécia com seu império comercial e militar.

4. E, finalmente, a da época helenística, a partir do final do século IV a.C., quando a Grécia passa para o poderio do império de Alexandre da Macedônia e, depois, para as mãos do Império Romano, terminando a história de sua existência independente.

Os períodos da Filosofia não correspondem exatamente a essas épocas, já que ela não existe na Grécia homérica e só aparece nos meados da Grécia arcaica. Entretanto, o apogeu da Filosofia acontece durante o apogeu da cultura e da sociedade grega, portanto, durante a Grécia clássica.

12. PERÍODOS DA FILOSOFIA GREGA

1. Período pré‑socrático ou cosmológico (do final do século VII ao final do século V a.C.): a origem do mundo e as causas das transformações na natureza.

2. Período socrático ou antropológico (do final do século V e todo o século IV a.C.): a ética, a política e as técnicas (em grego, ântropos = homem, período antropológico).

3. Período sistemático (do final do século IV ao final do século III a.C.): busca reunir e sistematizar tudo quanto foi pensado sobre a cosmologia e a antropologia; busca mostrar o objeto do conhecimento filosófico, desde que as leis do pensamento e de suas demonstrações estejam firmemente estabelecidas para oferecer os critérios da verdade e da ciência.

4 Texto adaptado da obra Convite à Filosofia, Unidade 1, A Filosofia, Capítulo 3 “Campos de investigação da Filosofia”, da autoria de Marilena Chauí. São Paulo: Editora Ática, 2000.

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4. Período helenístico ou greco‑romano (do final do século III a.C. até o século VI d.C.): esse período alcança Roma e o pensamento dos primeiros padres da Igreja. A Filosofia se ocupa, sobretudo, com as questões da ética, do conhecimento humano e das relações entre o homem e a natureza e de ambos com Deus.

FILOSOFIA GREGA

Pode‑se perceber que os dois primeiros períodos da Filosofia grega têm como referência o filósofo Sócrates de Atenas, de onde vem a divisão em Filosofia pré‑socrática e socrática.

13. PERÍODO PRÉ‑SOCRÁTICO OU COSMOLÓGICO

13.1 Principais filósofos pré‑socráticos:

1. Escola Jônica: Tales de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Anaximandro de Mileto e Heráclito de Éfeso.

2. Escola Itálica: Pitágoras de Samos, Filolau de Crotona e Árquitas de Tarento.

3. Escola Eleata: Parmênides de Eleia e Zenão de Eleia.

4. Escola da Pluralidade: Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de Clazômena, Leucipo de Abdera e Demócrito de Abdera.

13.2 Características da cosmologia:

1. Busca explicação racional e sistemática sobre a origem, a ordem e a transformação da natureza, da qual os seres humanos fazem parte, de modo que, ao explicar a natureza, a Filosofia explique a origem e as mudanças dos seres humanos.

2. Nega que o mundo tenha surgido do nada, como acredita a religião judaico‑cristã, segundo a qual Deus cria o mundo do nada. Por isso diz: “Nada vem do nada e nada volta ao nada”. Isso significa:

a) que o mundo, ou a natureza, é eterno;

b) que no mundo, ou na natureza, tudo se transforma em outra coisa sem jamais desaparecer, embora a forma particular que uma coisa possua desapareça com ela, mas não sua matéria.

3. Afirma que o fundo eterno, perene, imortal, de onde tudo nasce e para onde tudo volta é invisível para os olhos do corpo e visível somente para o olho do espírito, isto é, para o pensamento.

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4. Entende que o fundo eterno, perene, imortal e imperecível de onde tudo brota e para onde tudo retorna é o elemento primordial da natureza e chama‑se physis (em grego, physis = fazer surgir, fazer brotar, fazer nascer, produzir). A physis é a natureza eterna e em perene transformação.

5. Considera que, embora a physis (o elemento primordial eterno) seja imperecível, ela dá origem a todos os seres infinitamente variados e diferentes do mundo, seres que, ao contrário do princípio gerador, são perecíveis ou mortais.

6. Afirma que todos os seres, além de serem gerados e de serem mortais, são seres em contínua transformação, mudando de qualidade (por exemplo, o branco amarelece, acinzenta, enegrece; o novo envelhece, o quente esfria, o dia se torna noite, a primavera cede lugar ao verão, o saudável adoece, a criança cresce etc.) e mudando de quantidade (o pequeno cresce e fica grande, o longe fica perto, um rio aumenta de volume na cheia e diminui na seca etc.), portanto, o mundo está em mudança contínua, sem por isso perder sua forma, sua ordem e sua estabilidade.

A mudança – nascer, morrer, mudar de qualidade ou de quantidade – chama‑se movimento e o mundo está em movimento permanente.

O movimento do mundo chama‑se devir (vir a ser, transformar‑se, tornar‑se, metamorfosear–se) e segue leis rigorosas que o pensamento conhece, que mostram que toda mudança é passagem de um estado ao seu contrário: dia‑noite, claro‑escuro, cheio‑vazio, um‑muitos etc., e também no sentido inverso, noite‑dia. O devir é, portanto, a passagem contínua de uma coisa ao seu estado contrário. Uma passagem que não é caótica. Obedece a leis determinadas pela physis ou pelo princípio fundamental do mundo.

14. O PRINCÍPIO ETERNO E IMUTÁVEL DA ORIGEM DA NATUREZA E DE SUAS TRANSFORMAÇÕES:

Tales dizia que o princípio era a água ou o úmido.

Anaximandro considerava que era o ilimitado sem qualidades definidas.

Anaxímenes, que era o ar ou o frio.

Heráclito afirmou que era o fogo.

Leucipo e Demócrito disseram que eram os átomos. E assim por diante.

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1. O QUE É MITO

Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e

da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder etc.).

A palavra mito vem do grego mythos e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e na confiabilidade da pessoa do narrador. Essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados.

Quem narra o mito? O poeta‑rapsodo. Quem é ele? Por que tem autoridade? Acredita‑se que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti‑la aos ouvintes. Sua palavra – o mito – é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável.

É o nome dado a um artista popular ou cantor que, na antiga Grécia, ia de cidade em cidade recitando poemas.

2. O MITO NARRA A ORIGEM DO MUNDO E DE TUDO O QUE NELE EXISTE?

2.1 Maneiras principais:

a. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres, isto é, tudo o que existe decorre de relações sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações geram os demais deuses: os titãs (seres semi‑humanos e semidivinos), os heróis (filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com um humano), os humanos, os metais, as plantas, os animais, as qualidades, como quente‑frio, seco‑úmido, claro‑escuro, bom‑mau, justo‑injusto, belo‑feio, certo‑errado etc.

A narração da origem é, assim, uma genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades, por outros seres, que são seus pais ou antepassados.

Tomemos um exemplo da narrativa mítica:

5 Texto adaptado da obra Convite à Filosofia, Unidade 1, A Filosofia, Capítulo 1 “Origem da Filosofia da autoria”, de Marilena Chauí. São Paulo: Editora Ática, 2000.

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b. Houve uma grande festa entre os deuses. Todos foram convidados, menos a deusa Penúria, sempre miserável e faminta. Quando a festa acabou, Penúria veio, comeu os restos e dormiu com o deus Poros (o astuto engenhoso). Dessa relação sexual, nasceu Eros (ou Cupido), que, como sua mãe, está sempre faminto, sedento e miserável, mas, como seu pai, tem mil astúcias para se satisfazer e se fazer amado. Por isso, quando Eros fere alguém com sua flecha, esse alguém se apaixona e logo se sente faminto e sedento de amor, inventa astúcias para ser amado e satisfeito, ficando ora maltrapilho e semimorto, ora rico e cheio de vida.

c. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo. Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre as forças divinas, ou uma aliança entre elas para provocar alguma coisa no mundo dos homens.

O poeta Homero, na “Ilíada”, que narra a guerra de Troia, explica por que, em certas batalhas, os troianos eram vitoriosos e, em outras, a vitória cabia aos gregos. Os deuses estavam divididos, alguns a favor de um lado e outros a favor do outro. A cada vez, o rei dos deuses, Zeus, ficava com um dos partidos, aliava‑se com um grupo e fazia um dos lados – ou os troianos ou os gregos – vencer uma batalha.

A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade entre as deusas. Elas apareceram em sonho para o príncipe troiano Paris, oferecendo a ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor, Afrodite. As outras deusas, enciumadas, fizeram‑no raptar a grega Helena, mulher do general grego Menelau, e isso deu início à guerra entre os humanos.

d. Encontrando as recompensas ou os castigos que os deuses dão a quem os desobedece ou a quem os obedece.

Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo pelos homens? Para os homens, o fogo é essencial, pois com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passam a cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a se aquecer no inverno, quanto podem fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra.

Um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os humanos. Prometeu foi castigado (amarrado em um rochedo para que as aves de rapina, eternamente, devorassem seu fígado) e os homens também foram castigados (cf. A caixa de Pandora).

Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas, alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos homens. Como os mitos sobre a origem do mundo são genealogias, diz‑se que são cosmogonias e teogonias.

A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie). Gonia, portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto. Cosmos, como já vimos,

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quer dizer mundo ordenado e organizado. Assim, a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas.

Teogonia é uma palavra composta de gonia e theós, que em grego significa: as coisas divinas, os seres divinos, os deuses. A teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses, a partir de seus pais e antepassados.

A Filosofia, ao nascer, é, como já dissemos, uma cosmologia, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas de transformações e repetições das coisas; para isso, ela nasce de uma transformação gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos? Continua ou rompe com a cosmogonia e a teogonia?

Respostas dadas

A primeira delas foi dada no fim do século XIX e começo do século XX, quando reinava um grande otimismo sobre os poderes científicos e capacidades técnicas do homem. Dizia‑se, então, que a Filosofia nasceu por uma ruptura radical com os mitos, sendo a primeira explicação científica da realidade produzida pelo Ocidente.

A segunda resposta foi dada a partir de meados do século XX, quando os estudos dos antropólogos e dos historiadores mostraram a importância dos mitos na organização social e cultural das sociedades e como os mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar e sentir de uma sociedade.

Por isso, dizia‑se que os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em seus mitos e que a Filosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do interior dos próprios mitos, como uma racionalização deles.

Atualmente, consideram‑se as duas respostas exageradas e afirma‑se que a Filosofia, percebendo as contradições e as limitações dos mitos, foi reformulando e racionalizando as narrativas míticas, transformando‑as em outra coisa, em uma explicação inteiramente nova e diferente.

3. DIFERENÇAS ENTRE FILOSOFIA E MITO

a. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longínquo e fabuloso; voltando‑se para o que era antes que tudo existisse tal como existe no presente.

A Filosofia, ao contrário, preocupa‑se em explicar como e por que, no passado, no presente e no futuro (isto é, na totalidade do tempo), as coisas são como são.

b. O mito narrava a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais e personalizadas.

A Filosofia, ao contrário, explica a produção natural das coisas por elementos e causas naturais e impessoais.

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O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a Filosofia fala em céu, mar e terra. O mito narra a origem dos seres celestes (os astros), terrestres (plantas, animais, homens) e marinhos pelos casamentos de Gaia com Urano e Ponto.

A Filosofia explica o surgimento desses seres por composição, combinação e separação dos quatro elementos – úmido, seco, quente e frio, ou água, terra, fogo e ar.

c. O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e o incompreensível, não só porque esses eram traços próprios da narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença no mito vinham da autoridade religiosa do narrador.

A Filosofia, ao contrário, não admite contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação seja coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres humanos.

4. CONDIÇÕES HISTÓRICAS PARA O SURGIMENTO DA FILOSOFIA

Resolvido esse problema, temos ainda um último a solucionar: o que tornou possível o surgimento da Filosofia na Grécia no final do século VII e no início do século VI a.C.? Quais as condições materiais, isto é, econômicas, sociais, políticas e históricas que permitiram o surgimento da Filosofia?

Podemos apontar como principais condições históricas para o surgimento da Filosofia na Grécia:

4.1 As viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer.

4.2 A invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível.

4.3 A invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e generalização.

4.4 O surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o

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velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente em que a Filosofia poderia surgir.

4.5 A invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento da capacidade de abstração e generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas – como os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses – supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a ideia dela, o que dela se pensa e se transcreve.

4.6 A invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofia:

1. A ideia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade – da polis – servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional.

2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, um poeta‑vidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer.

Com a polis, isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti‑la com os outros, persuadi‑los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa.

A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.

3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A ideia de um pensamento que todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental para a Filosofia.

5. O MITO DA CAVERNA

O Mito da Caverna narrado por Platão no livro VII de “Republica” é, talvez, uma das mais poderosas metáforas imaginadas pela filosofia, em qualquer tempo, para descrever a situação geral em que se

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encontra a humanidade. Para o filósofo, todos nós estamos condenados a ver sombras a nossa frente e tomá‑las como verdadeiras. Essa poderosa crítica à condição dos homens, escrita há quase 2500 anos, inspirou e ainda inspira inúmeras reflexões pelos tempos afora.

Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja entrada permite a passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para a entrada, nem locomover‑se, forçados a olhar apenas a parede do fundo, e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do sol. Acima do muro, uma réstia de luz exterior ilumina o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo com que as coisas que se passam no mundo exterior sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. Por trás do muro, pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras de homens, mulheres, animais cujas sombras são projetadas na parede da caverna. Os prisioneiros julgam que essas sombras são as próprias coisas externas e que os artefatos projetados são os seres vivos que se movem e falam. Um dos prisioneiros, tomado pela curiosidade, decide fugir da caverna. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões e escala o muro. Sai da caverna e no primeiro instante fica totalmente cego pela luminosidade do sol, com a qual seus olhos não estão acostumados; pouco a pouco, habitua‑se à luz e começa ver o mundo. Encanta‑se, deslumbra‑se, tem a felicidade de, finalmente, ver as próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas sombras. Deseja ficar longe da caverna e só voltará a ela se for obrigado, para contar o que viu e libertar os demais. Assim como a subida foi penosa, porque o caminho era íngreme e a luz ofuscante, também o retorno será penoso, pois será preciso habituar‑se novamente às trevas, o que é muito mais difícil do que habituar‑se à luz. De volta à caverna, o prisioneiro será desajeitado, não saberá mover‑se nem falar de modo compreensível para os outros, não será acreditado por eles e correrá o risco de ser morto pelos que jamais abandonarão a caverna.

5.1 Interpretação

A caverna, diz Platão, é o mundo sensível onde vivemos. A réstia de luz que projeta as sombras na parede é um reflexo da luz verdadeira (as ideias) sobre o mundo sensível. Somos os prisioneiros. As sombras são as coisas sensíveis que tomamos pelas verdadeiras. Os grilhões são nossos dogmas, preconceitos, nossa confiança em nossos sentidos e opiniões. O instrumento que quebra os grilhões e faz a escalada do muro é a dialética. O prisioneiro curioso que escapa é o filósofo. A luz que ele vê é a luz plena do ser, isto é, o bem, que ilumina o mundo inteligível como o sol ilumina o mundo sensível. O retorno à caverna é o diálogo filosófico. Os anos despendidos na criação do instrumento para sair da caverna são o esforço da alma, descrito na “Carta Sétima”, para produzir a “faísca” do conhecimento verdadeiro pela “fricção” dos modos de conhecimento. Conhecer é um ato de libertação e iluminação.

O Mito da Caverna apresenta a dialética como movimento ascendente de libertação do nosso olhar que nos libera da cegueira para vermos a luz das ideias, mas descreve também o retorno do prisioneiro para ensinar aos que permaneceram na caverna como sair dela. Há, assim, dois movimentos: o de ascensão (a dialética ascendente), que vai da imagem à crença ou opinião, desta para a matemática e desta para a intuição intelectual e à ciência; e o de descensão (a dialética descendente), que consiste em praticar com outros o trabalho para subir até a essência e a ideia. Aquele que contemplou as ideias no mundo inteligível desce aos que ainda não as contemplaram

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para ensinar‑lhes o caminho. Por isso, desde Mênon, Platão dissera que não é possível ensinar o que são as coisas, mas apenas ensinar a procurá‑las.

Os olhos foram feitos para ver; a alma, para conhecer. Os primeiros estão destinados à luz solar; a segunda, à fulguração da ideia. A dialética é a técnica liberadora dos olhos do espírito.

O relato da subida e da descida expõe como dupla violência necessária: a ascensão é difícil, dolorosa, quase insuportável; o retorno à caverna, uma imposição terrível à alma libertada, agora forçada a abandonar a luz e a felicidade. A dialética, como toda a técnica, é uma atividade exercida contra uma passividade, um esforço para concretizar seu fim forçando um ser a realizar sua própria natureza. No mito, a dialética faz a alma ver sua própria essência – conhecer – vendo as essências (ideia) – o objeto do conhecimento ‑, descobrindo seu parentesco com elas. A violência é libertadora porque desliga a alma do corpo, forçando‑a a abandonar o sensível pelo inteligível.

O Mito da Caverna nos ensina algo mais, afirma o filósofo alemão Martin Heidegger, no ensaio intitulado “A doutrina de Platão sobre a verdade”, que interpreta o mito como exposição platônica do conceito da verdade. Desse ensaio, destacamos alguns aspectos:

A ideia do Bem, correspondente ao sol, não só ilumina todas as outras, isto é, torna todas as outras visíveis para o olho do espírito, mas é também a ideia suprema, porque é a visibilidade plena, é a causa da visibilidade de todo o mundo inteligível. A filosofia, conhecimento da verdade, é conhecimento da ideia do bem, princípio incondicionado de todas as essências.

Assim como o sol permite aos olhos ver, assim o bem permite à alma conhecer. A luz é a meditação entre aquele que conhece e o aquilo que se conhece.

6. A CAIXA DE PANDORA

É um mito grego que narra a chegada da primeira mulher à Terra e, com ela, a origem de todas as tragédias humanas. Essa história é apresentada na obra “Os Trabalhos e os Dias”, do poeta grego Hesíodo, que viveu no século VIII a.C.

Prometeu, deus cujo nome em grego significa “aquele que vê o futuro”, doou aos homens o fogo e os ensinou as técnicas para acendê‑lo e mantê‑lo. Zeus, o soberano dos deuses, enfureceu‑se com esse ato, porque o segredo do fogo deveria ser mantido entre os deuses. Por isso, ordena a Hefesto, deus do fogo e das habilidades técnicas, que criasse uma mulher que fosse perfeita e que a apresentasse à assembleia dos deuses. Atena, a deusa da sabedoria e da guerra, vestiu essa mulher com uma roupa branquíssima e adornou‑lhe a cabeça com uma guirlanda de flores, montada sobre uma coroa de ouro. Hefesto a conduziu pessoalmente aos deuses e todos ficaram admirados; cada um lhe deu um dom particular. Atena lhe ensinou as artes que convêm ao seu sexo, como a arte de tecer. Afrodite lhe deu o encanto, que despertaria o desejo dos homens. As Cárites, deusas da beleza, e a deusa da persuasão ornaram seu pescoço com colares de ouro. Hermes, o mensageiro dos deuses, concedeu‑lhe a capacidade de falar, juntamente com a arte de seduzir os corações por meio de

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discursos insinuantes. Depois que todos os deuses lhe deram seus presentes, ela recebeu o nome de Pandora, que em grego quer dizer “todos os dons”.

Finalmente, Zeus lhe entregou uma caixa bem fechada e ordenou que ela a levasse como presente a Prometeu. Entretanto, ele e Pandora não quiseram receber a caixa e recomendou a seu irmão, Epimeteu, que também não aceitasse nada vindo de Zeus. Epimeteu, cujo nome significa “aquele que reflete tarde demais”, ficou encantado com a beleza de Pandora e a tomou como esposa.

Pandora, não resistindo à curiosidade, abriu a caixa e de lá escaparam todos os males que, a partir de então, assolam a humanidade e que tornam miserável a existência dos homens. Ao fechá‑la, amedrontada diante do que via, deixou aprisionada na caixa a Esperança (uma criatura alada que estava prestes a voar), que é a única forma por meio da qual os homens podem suportar todo mal que se abateu sobre eles.

6.1 Interpretação

Esse mito, como muitos outros, tem versões diferentes. Em uma delas, por exemplo, a Esperança chega a escapar da caixa e é graças a ela que os homens conseguem enfrentar todos os males e não desistem de viver. Além disso, nessa outra narrativa, o presente de Hermes não é a capacidade de seduzir, mas sim a falsidade. Fala‑se, ainda, que não era uma caixa o que Pandora levava, mas um vaso. Essas variações, aliás, mostram como os mitos sofriam modificações à medida que eram narrados.

Na Grécia antiga, em suma, é importante ressaltar essa “familiaridade” das pessoas com os deuses. Os mitos formavam, para os gregos daquele tempo, um sistema complexo, que explicava praticamente todos os elementos de sua cultura. Eles estavam organizados em um conjunto coerente, lógico; em termos amplos, era uma maneira de ver o mundo, de explicá‑lo e compreendê‑lo.

O conteúdo relata‑nos o modo como os gregos compreendiam a natureza feminina, acentuando sua beleza, sensualidade e poder de destruição para o homem, diz Fernando Segolin, professor de Literatura da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo.

A importância de compreendermos tal metáfora reside, essencialmente, na condição de entendermos que a memória que constrói a imagem da mulher é pautada por fato que culminam em uma imagem complexa, na medida em que ela parece catalisar a culpa pelos males da humanidade. Se pensarmos na versão do Pecado Original, como trata a Bíblia Sagrada, teremos uma outra construção da imagem da mulher que lhe confere características negativas.

A curiosidade, o poder de sedução e a beleza da mulher formam uma imagem de pouca confiança e a apresentam ao mundo dentro de uma complexa dualidade – desejada e temida pelos males que poderá causar.

Uma leitura sob a ótica da ideologia que perpassa o texto permite‑nos compreender que a fúria de Zeus pode ser atribuída ao fato de que ao poder dominante sempre interessa a alienação dos dominados, pois o conhecimento leva o homem a enxergar a realidade e, diante desta, de questionar suas incoerências. Logo, o homem, dotado de conhecimento, torna‑se crítico e, desse modo, indesejável ao poder dominante.

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Sob a mesma perspectiva, podemos dizer que, sendo o homem – dominante – em função da memória que o define como um ser dotado de força e coragem, a imagem da mulher – dominada – em função da memória que a define frágil e dependente do homem – uma vez descrita por ele, não poderia ser constituída de elementos capazes de desfazer a relação de dominação entre ambos.

A RAZÃO

1. OS VÁRIOS SENTIDOS DA PALAVRA RAZÃO

A Filosofia se realiza como conhecimento racional da realidade natural e cultural, das coisas e dos seres humanos. Dissemos que ela confia na razão e que, hoje, ela também desconfia da razão. Até agora, não dissemos o que é a razão, apesar de ser ela tão antiga quanto a Filosofia.

Por identificar razão e certeza, a Filosofia afirma que a verdade é racional; por identificar razão e lucidez (não ficar ou não estar louco), a Filosofia chama nossa razão de luz e luz natural; por identificar razão e motivo, por considerar que sempre agimos e falamos movidos por motivos, a Filosofia afirma que somos seres racionais e que nossa vontade é racional; por identificar razão e causa e por julgar que a realidade, opera de acordo com relações causais, a Filosofia afirma que a realidade é racional.

Para muitos filósofos, a razão não é apenas a capacidade moral e intelectual dos seres humanos, mas uma propriedade ou qualidade primordial das próprias coisas, existindo na própria realidade. Para esses filósofos, nossa razão pode conhecer a realidade (natureza, sociedade, história) porque ela é racional em si mesma.

Fala‑se, portanto, em razão objetiva (a realidade é racional em si mesma) e em razão subjetiva (a razão é uma capacidade intelectual e moral dos seres humanos).

A razão objetiva é a afirmação de que o objeto do conhecimento ou a realidade é racional.

Na razão objetiva, considera‑se que a própria natureza e o mundo obedecem a uma lógica, a uma racionalidade. A razão humana faria parte dessa racionalidade extrínseca e tentaria se incorporar e ajustar junto a ela.

Se a razão for objetiva, considera‑se que o homem percebe uma ordem do mundo com a razão, mas essa ordem existe no próprio mundo, tendo sido engendrada por uma inteligência ou sendo inerente ao funcionamento da máquina do mundo.

A razão subjetiva é a afirmação de que o sujeito do conhecimento e da ação é racional.

A razão subjetiva não identifica uma racionalidade na natureza, mas que o sujeito do conhecimento, ou seja, aquele que se propõe conhecer usando suas faculdades mentais, que é racional. O homem é racional e usa a razão para discernir um mundo e uma natureza que, muitas vezes, não são racionais, pelo menos não essencialmente.

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FILOSOFIA

Para muitos filósofos, a Filosofia é o momento do encontro, do acordo e da harmonia entre as duas razões ou racionalidades.

2. ORIGEM DA PALAVRA RAZÃO

Na cultura da chamada sociedade ocidental, a palavra razão origina‑se de duas fontes: a palavra latina ratio e a palavra grega logos. Ambas significam: contar, reunir, medir, juntar, separar, calcular.

Por isso, logos, ratio ou razão significam pensar e falar ordenadamente, com medida e proporção, com clareza e de modo compreensível para outros.

Assim, na origem:

Razão é a capacidade intelectual para pensar e exprimir‑se correta e claramente, para pensar e dizer as coisas tais como são. A razão é uma maneira de organizar a realidade pela qual esta se torna compreensível. É também a confiança de que podemos ordenar e organizar as coisas porque são organizáveis, ordenáveis, compreensíveis nelas mesmas e por elas mesmas, isto é, as próprias coisas são racionais.

Desde o começo da Filosofia, a origem da palavra razão fez com que ela fosse considerada oposta a quatro outras atitudes mentais:

1. Ao conhecimento ilusório, isto é, ao conhecimento da mera aparência das coisas que não alcança a realidade ou a verdade delas. Para a razão, a ilusão provém de nossos costumes, preconceitos, aceitação imediata das coisas, tais como aparecem e tais como parecem ser. As ilusões criam as opiniões que variam de pessoa para pessoa e de sociedade para sociedade. A razão se opõe à mera opinião.

2. Às emoções, aos sentimentos, às paixões, que são cegas, caóticas, desordenadas, contrárias umas às outras, ora dizendo “sim” a alguma coisa, ora dizendo “não” a essa mesma coisa, como se não soubéssemos o que queremos e o que as coisas são. A razão é vista como atividade ou ação (intelectual e da vontade) oposta à paixão ou à passividade emocional.

3. À crença religiosa, pois, nesta, a verdade nos é dada pela fé em uma revelação divina, não dependendo do trabalho de conhecimento realizado pela nossa inteligência ou pelo nosso intelecto. A razão é oposta à revelação e, por isso, os filósofos cristãos distinguem a luz natural – a razão – da luz sobrenatural – a revelação.

4. Ao êxtase místico, no qual o espírito mergulha nas profundezas do divino e participa dele, sem qualquer intervenção do intelecto ou da inteligência, nem da vontade. Pelo contrário, exige um estado de abandono, de rompimento com a atividade intelectual e com a vontade, um rompimento com o estado consciente, para entregar‑se à fruição do abismo infinito. A razão ou consciência se opõe à inconsciência do êxtase.

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3. OS PRINCÍPIOS RACIONAIS

Desde seu começo, a Filosofia considerou que a razão opera seguindo certos princípios que ela própria estabelece e que estão em concordância com a própria realidade, mesmo quando os empregamos sem conhecê‑los explicitamente. Ou seja, o conhecimento racional obedece a certas regras ou leis fundamentais que respeitamos até mesmo quando não conhecemos diretamente quais são e o que são. Nós as respeitamos porque somos seres racionais e porque são princípios que garantem que a realidade é racional.

São eles:

Princípio da identidade: uma coisa, seja ela qual for, só pode ser conhecida e pensada se for percebida e conservada com sua identidade.

Princípio da não contradição: (também conhecido como princípio da contradição) é impossível que a árvore que está diante de mim seja e não seja uma mangueira; que o cachorrinho de dona Filomena seja e não seja branco.

Princípio do terceiro excluído: define a decisão de um dilema – “ou isto ou aquilo” – e exige que apenas uma das alternativas seja verdadeira. Mesmo quando temos, por exemplo, um teste de múltipla escolha, escolhemos, na verdade, apenas entre duas opções – “ou está certo ou está errado” – e não há terceira possibilidade ou terceira alternativa.

Princípio da razão suficiente ou princípio da causalidade: afirma que tudo o que existe e tudo o que acontece tem uma razão (causa ou motivo) para existir ou para acontecer e que tal razão (causa ou motivo) pode ser conhecida pela nossa razão.

Ex.: A morte é um efeito necessário e universal; a guerra é a causa necessária e universal da morte de pessoas. Os dois fatos podem ou não acontecer. Mas, se uma guerra acontecer, terá necessariamente como efeito mortes.

4. CARACTERÍSTICAS DOS PRINCÍPIOS DA RAZÃO

• Não possuem um conteúdo determinado: são formas, indicam como as coisas devem ser e como devemos pensar, mas não nos dizem quais coisas são, nem quais os conteúdos que devemos ou vamos pensar.

• Possuem validade universal: onde houver razão (nos seres humanos e nas coisas, nos fatos e nos acontecimentos), em todo o tempo e em todo lugar, tais princípios são verdadeiros e empregados por todos (os humanos) e obedecidos por todos (coisas, fatos, acontecimentos).

• São necessários: indispensáveis para o pensamento e a vontade, indispensáveis para as coisas, os fatos e os acontecimentos. Indicam que algo é assim e não pode ser de outra maneira. Necessário significa: é impossível que não seja dessa maneira e que pudesse ser de outra.

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FILOSOFIA

A antropologia mostrou como outras culturas podem oferecer uma concepção muito diferente da qual estamos acostumados a ter sobre o pensamento e a realidade. Isso não significa, como imaginaram durante séculos os colonizadores, que tais culturas ou sociedades sejam irracionais ou pré‑racionais, mas que possuem uma outra ideia do conhecimento e outros critérios para a explicação da realidade.

Como a palavra razão é europeia e ocidental, parece difícil falarmos em outra razão, que seria própria de outros povos e culturas. No entanto, o que os estudos antropológicos mostraram é que precisamos reconhecer a “nossa razão” e a “razão deles”, que se trata de outra razão e não da mesma razão em diferentes graus de uma única evolução.

5. PROBLEMAS QUE ABALARAM A RAZÃO NO SÉCULO XX

A noção de ideologia introduzida por Marx, um não filósofo, e o conceito de inconsciente, trazido por Freud, também não filósofo.

A noção de ideologia veio mostrar que as teorias e os sistemas filosóficos ou científicos, aparentemente rigorosos e verdadeiros, escondiam a realidade social, econômica e política, e que a razão, em lugar de ser a busca e o conhecimento da verdade, poderia ser um poderoso instrumento de dissimulação da realidade, a serviço da exploração e da dominação dos homens sobre seus semelhantes.

A razão seria um instrumento da falsificação da realidade e de produção de ilusões pelas quais uma parte do gênero humano se deixa oprimir pela outra.

A noção de inconsciente, por sua vez, revelou que a razão é muito menos poderosa do que a Filosofia imaginava, pois nossa consciência é, em grande parte, dirigida e controlada por forças profundas e desconhecidas que permanecem inconscientes e jamais se tornarão plenamente conscientes e racionais.

A razão e a loucura fazem parte de nossa estrutura mental e de nossas vidas e, muitas vezes, como no fenômeno do nazismo, a razão é louca e destrutiva.

Fatos como esses levaram o filósofo francês Merleau‑Ponty a dizer que a Filosofia contemporânea deveria encontrar uma nova ideia da razão, uma razão alargada, na qual pudessem entrar os princípios da racionalidade definidos por outras culturas e encontrados pelas descobertas científicas.

Isso é duplamente necessário e importante porque se revela uma luta contra o colonialismo e o etnocentrismo – uma contravisão de que a “nossa” razão e a “nossa” cultura são superiores e melhores do que as dos outros povos. Além do mais, a razão estaria destinada ao fracasso se não fosse capaz de oferecer para si mesma novos princípios exigidos pelo seu próprio trabalho racional de conhecimento.

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Unidade I

6. O SENSO COMUM6

O Sol é menor do que a Terra – certezas como essa formam o senso comum de nossa sociedade, transmitido de geração em geração e, muitas vezes, transformando‑se em crença religiosa, em doutrina inquestionável. Contudo, a astronomia demonstra que o Sol é, muitas vezes, maior do que a Terra e, desde Copérnico, sabe‑se que é a Terra que se move em torno dele.

Há significativa diferença entre nossas certezas cotidianas e o conhecimento científico.

CARACTERÍSTICAS DO SENSO COMUM

Nossos saberes cotidianos estão atrelados a características que lhes são próprias:

a) São subjetivos, isto é, exprimem sentimentos e opiniões individuais e de grupos, variando, portanto.

b) São qualitativos, isto é, as coisas são julgadas por nós a partir das qualidades que entendemos que tenham, tais como doces ou azedas.

c) São heterogêneos, isto é, referem‑se a fatos que julgamos diferentes, porque os percebemos como diversos entre si.

d) São individualizadores por serem qualitativos e heterogêneos, isto é, cada coisa ou cada fato nos aparece como um indivíduo ou como um ser autônomo: a seda é macia.

e) São generalizadores, pois tendem a reunir, em uma só opinião ou ideia, coisas e fatos julgados semelhantes: falamos dos animais, das plantas, dos seres humanos etc.

f) Em decorrência das generalizações, tendem a estabelecer relações de causa e efeito entre as coisas ou entre os fatos: “onde há fumaça, há fogo”; “dize‑me com quem andas e te direi quem és”; “ingerir sal quando se tem tontura é bom para a pressão” etc.

g) Não se surpreendem com a regularidade, a constância, a repetição e a diferença das coisas; mas, ao contrário, a admiração e o espanto se dirigem para o que é imaginado como único, extraordinário ou miraculoso.

h) Pelo mesmo motivo e não por compreenderem o que seja investigação científica, tendem a identificá‑la com a magia, considerando que ambas lidam com o misterioso, o oculto, o incompreensível.

Essa mesma identificação entre ciência e magia aparece na televisão brasileira, como no programa “Fantástico”, como o nome indica, mostra aos telespectadores resultados científicos como se fossem espantosos obra de magia, assim como exibem magos ocultistas como se fossem cientistas.

6 Texto adaptado da obra: Convite à Filosofia, Unidade 7, As ciências, Capítulo 1‑ “A atitude científica”, da autoria de Marilena Chauí. São Paulo: Editora Ática, 2000.

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FILOSOFIA

i) Costumam projetar nas coisas ou no mundo sentimentos de angústia e de medo diante do desconhecido. Durante a Idade Média, as pessoas viam o demônio em toda a parte e, hoje, enxergam discos voadores no espaço.

Nossas certezas cotidianas e o senso comum de nossa sociedade ou de nosso grupo social cristalizam‑se em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os acontecimentos por serem subjetivos, generalizadores, expressões de sentimentos de medo e angústia, e de incompreensão quanto ao trabalho científico.

A ATITUDE CIENTÍFICA

A ciência desconfia da veracidade de nossas certezas, de nossa adesão imediata às coisas, da ausência de crítica e da falta de curiosidade. Por isso, onde vemos coisas, fatos e acontecimentos, a atitude científica vê problemas e obstáculos, aparências que precisam ser explicadas e, em certos casos, afastadas.

O conhecimento científico opõe‑se ponto por ponto às características do senso comum:

a) É objetivo: procura as estruturas universais e necessárias das coisas investigadas.

b) É quantitativo: busca medidas, padrões, critérios de comparação e avaliação para coisas que parecem ser diferentes. Ex.: as diferenças de intensidade dos sons, pelo comprimento das ondas sonoras.

c) É homogêneo: busca as leis gerais de funcionamento dos fenômenos, que são as mesmas para fatos que nos parecem diferentes. Por exemplo, a lei universal da gravitação demonstra que a queda de uma pedra e a flutuação de uma pluma obedecem à mesma lei de atração e repulsão no interior do campo gravitacional.

d) É generalizador: reúne individualidades, percebidas como diferentes, sob as mesmas leis, os mesmos padrões ou critérios de medida, mostrando que possuem a mesma estrutura. Ex.: a química mostra que a enorme variedade de corpos se reduz a um número limitado de corpos simples que se combinam de maneiras variadas, de modo que o número de elementos é infinitamente menor do que a variedade empírica dos compostos.

e) São diferenciadores, pois não reúnem nem generalizam por semelhanças aparentes, mas distinguem os que parecem iguais, desde que obedeçam a estruturas diferentes. A palavra queijo parece ser a mesma coisa que a palavra inglesa cheese e a palavra francesa fromage, quando, na realidade, são muito diferentes, porque se referem a estruturas diferentes.

f) Só estabelecem relações causais depois de investigar a natureza ou estrutura do fato estudado e suas relações com outros semelhantes ou diferentes. Ex.: um corpo não cai porque é pesado. O peso de um corpo depende do campo gravitacional onde se encontra – Ex.: nas naves espaciais, onde a gravidade é igual a zero, todos os corpos flutuam, independentemente do peso ou do tamanho.

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g) Surpreende‑se com a regularidade, a constância, a frequência, a repetição e a diferença das coisas e procura mostrar que o maravilhoso, o extraordinário ou o “milagroso” é um caso particular do que é regular, normal, frequente. Procura, assim, apresentar explicações racionais, claras, simples e verdadeiras para os fatos, opondo‑se ao espetacular, ao mágico e ao fantástico.

h) Distingue‑se da magia, pois esta admite uma participação ou simpatia secreta entre coisas diferentes, que agem umas sobre as outras por meio de qualidades ocultas e considera o psiquismo humano – uma força capaz de ligar‑se a psiquismos superiores (planetários, astrais, angélicos, demoníacos) para provocar efeitos inesperados nas coisas e nas pessoas.

A atitude científica, ao contrário, opera um desencantamento ou desenfeitiçamento do mundo, mostrando que nele não agem forças secretas, mas causas e relações racionais que podem ser conhecidas e que tais conhecimentos podem ser transmitidos a todos.

i) Afirma que, pelo conhecimento, o homem pode libertar‑se do medo e das superstições, deixando de projetá‑los no mundo e nos outros.

j) Procura renovar‑se e modificar‑se continuamente, evitando a transformação das teorias em doutrinas e destas em preconceitos sociais.

O fato científico resulta de um trabalho paciente e lento de investigação e de pesquisa racional, aberto a mudanças, não sendo nem um mistério incompreensível nem uma doutrina geral sobre o mundo.

Os fatos ou objetos científicos não são dados empíricos espontâneos de nossa experiência cotidiana, mas são construídos pelo trabalho da investigação científica.

k) Separar os elementos subjetivos e objetivos de um fenômeno.

l) Construir o fenômeno como um objeto do conhecimento, controlável, verificável, interpretável e capaz de ser retificado e corrigido por novas elaborações.

m) Demonstrar e provar os resultados obtidos durante a investigação, graças ao rigor das relações definidas entre os fatos estudados; a demonstração deve ser feita não só para verificar a validade dos resultados obtidos, mas para prever racionalmente novos fatos como efeitos dos já estudados.

n) Relacionar com outros fatos um fato isolado, integrando‑o em uma explicação racional unificada, pois somente essa integração transforma o fenômeno em objeto científico, isto é, em fato explicado por uma teoria.

o) Formular uma teoria geral sobre o conjunto dos fenômenos observados e dos fatos investigados, isto é, formular um conjunto sistemático de conceitos que expliquem e interpretem as causas e os efeitos, as relações de dependência, identidade e diferença entre todos os objetos que constituem o campo investigado.

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FILOSOFIA

PRÉ‑REQUISITOS PARA A CONSTITUIÇÃO DE UMA CIÊNCIA/ EXIGÊNCIAS DA PRÓPRIA CIÊNCIA

Delimitar ou definir os fatos a investigar, separando‑os de outros semelhantes ou diferentes; estabelecer os procedimentos metodológicos para observação, experimentação e verificação dos fatos; construir instrumentos técnicos e condições de laboratório específicas para a pesquisa; elaborar um conjunto sistemático de conceitos que formem a teoria geral dos fenômenos estudados, que controlem e guiem o andamento da pesquisa, além de ampliá‑la com novas investigações e permitam a previsão de fatos novos a partir dos já conhecidos.

COMO A CIÊNCIA DISTINGUE‑SE DO SENSO COMUM?

O senso comum é uma opinião baseada em hábitos, preconceitos, tradições cristalizadas.

A ciência baseia‑se em pesquisas, investigações metódicas e sistemáticas e na exigência de que as teorias sejam internamente coerentes e digam a verdade sobre a realidade. A ciência é conhecimento que resulta de um trabalho racional.

O QUE É UMA TEORIA CIENTÍFICA?

É um sistema ordenado e coerente de proposições ou enunciados baseados em um pequeno número de princípios, cuja finalidade é descrever, explicar e prever do modo mais completo possível um conjunto de fenômenos, oferecendo suas leis necessárias. A teoria científica permite que uma multiplicidade empírica de fatos aparentemente muito diferentes sejam compreendidos como semelhantes e submetidos às mesmas leis; e, vice‑versa, permite compreender por que fatos aparentemente semelhantes são diferentes e submetidos a leis diferentes.

1. PERÍODO SOCRÁTICO OU ANTROPOLÓGICO7

Com o desenvolvimento das cidades, do comércio, do artesanato e das artes militares, Atenas tornou‑se o centro da vida social, política e cultural da Grécia, vivendo seu período de

esplendor, conhecido como o Século de Péricles.

É a época de maior florescimento da democracia. A democracia grega possuía, entre outras, duas características de grande importância para o futuro da Filosofia:

•A igualdade de todos os homens adultos perante as leis e o direito de todos de participar diretamente do governo da cidade, da polis. Como consequência, a democracia sendo direta e não por eleição de representantes.

•A garantia de todos na participação do governo e aos que dele participavam, o direito de exprimir, discutir e defender em público suas opiniões sobre as decisões que a cidade deveria tomar.

7 Texto adaptado da obra Convite à Filosofia, Unidade 1, A Filosofia, Capítulo 3 “Campos de investigação da Filosofia”, da autoria de Marilena Chauí. São Paulo: Editora Ática, 2000.

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Surge a figura política do cidadão.

Nota: estavam excluídos da cidadania o que os gregos chamavam de dependentes: mulheres, escravos, crianças e velhos. Também estavam excluídos os estrangeiros.

Para conseguir adesão nas assembleias, o cidadão precisava saber falar e ser capaz de persuadir. Com isso, uma mudança profunda ocorreu na educação grega.

Quando as famílias aristocráticas, senhoras das terras dominavam o poder, tudo lhes pertencia. Valendo‑se dos dois grandes poetas gregos, Homero e Hesíodo, criaram um padrão de educação, próprio dos aristocratas que afirmava que o homem ideal ou perfeito era o guerreiro belo e bom. Belo: seu corpo era formado pela ginástica, pela dança e pelos jogos de guerra, imitando os heróis da guerra de Troia (Aquiles, Heitor, Ájax, Ulisses). Bom: seu espírito era formado escutando Homero e Hesíodo, aprendendo as virtudes admiradas pelos deuses e praticadas pelos heróis, a principal delas sendo a coragem diante da morte, na guerra. A virtude era a Arete (excelência e superioridade), própria dos melhores, os aristoi.

Quando, porém, a democracia se instala e o poder vai sendo retirado dos aristocratas, esse ideal educativo ou pedagógico também vai sendo substituído por outro. O ideal da educação do Século de Péricles é a formação do cidadão. A Arete é a virtude cívica.

O cidadão aparece mais e exerce sua cidadania quando opina, discute, delibera e vota nas assembleias.

Assim, a nova educação estabelece como padrão ideal a formação do bom orador, isto é, aquele que saiba falar em público e persuadir os outros na política.

2. OS SOFISTAS

Os sofistas – primeiros filósofos do período socrático – adotavam essa educação, substituindo a educação antiga dos poetas. Os sofistas mais importantes foram: Protágoras de Abdera, Górgias de Leontini e Isócrates de Atenas.

A palavra sofista deriva do grego sophistés, com o sentido original de habilidade específica em algum setor, ou homem que detém um determinado saber (do grego sóphos, saber, sabedoria).

A partir do século V a.C. surgiram os professores itinerantes de gramática, eloquência e retórica, que ofereciam seus conhecimentos para educar os jovens na prática do debate público. A educação tradicional era insuficiente para preparar o cidadão para a discussão política. Era preciso o domínio da linguagem e da flexibilidade e agudeza dialética para derrotar os adversários.

Apresentavam‑se como mestres de oratória ou de retórica, afirmando ser possível ensinar aos jovens tal arte para que fossem bons cidadãos. Diziam que os ensinamentos dos filósofos cosmologistas estavam repletos de erros e contradições e que não tinham utilidade para a vida da polis.

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FILOSOFIA

Que arte era essa? A arte da persuasão. Os sofistas ensinavam técnicas de persuasão para os jovens, que aprendiam a defender a posição ou opinião A, depois a posição ou opinião contrária, não A, de modo que, em uma assembleia, soubessem ter fortes argumentos a favor ou contra uma opinião e ganhassem a discussão.

O êxito desses tutores foi extraordinário. Passaram a ser designados de sofistas, sábios capazes de elaborar discursos fascinantes, com intenso poder de persuasão. Por outro lado, foram recebidos com hostilidade e desconfiança pelos partidários do antigo regime aristocrático e conservador.

Pensadores como Sócrates, Platão, Xenofonte e Aristóteles passaram a atacar sistematicamente os sofistas. O termo que antes era um elogio adquire um sentido pejorativo: argumento sofístico ou sofisma é o mesmo que falso argumento ou argumento intencionalmente falacioso.

Na peça “As Nuvens”, Aristófanes diz que o sofista possui a habilidade de pronunciar um discurso justo e um discurso injusto sobre o mesmo tema. No caso de um homicídio, por exemplo, o sofista poderia argumentar com igual brilhantismo como advogado de defesa e como promotor de acusação.

Outro discípulo de Sócrates e contemporâneo de Platão, Xenofonte escreve nos “Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates” que os sofistas eram comerciantes da sabedoria e, como tais, comparáveis à venalidade da prostituição.

Aristóteles, na obra “Argumentos Sofísticos”, acusa os sofistas de “traficantes de uma sabedoria aparente, não real”. (Arg. Sof., I, 165 a). Como se não bastasse, ainda o mesmo Platão em diálogos como “Ménon e Crátilo”, dirige aos sofistas as mesmas denúncias de vendedores caros de uma ciência não real, mas aparente.

Como homem de seu tempo, Sócrates, considerado o patrono da Filosofia, concordava com os sofistas em relação:

•à educação antiga do guerreiro belo e bom já não atendia às exigências da sociedade grega;

•aos filósofos cosmologistas, que defendiam ideias tão contrárias entre si que também não eram uma fonte segura para o conhecimento verdadeiro.

Nota: temos dificuldade para conhecer o pensamento dos grandes sofistas porque eles não deixaram textos. Restaram fragmentos apenas. Temos conhecimento do que eles disseram por meio de seus adversários – Platão, Xenofonte, Aristóteles; portanto, não temos como saber se estes foram justos com os sofistas. Os historiadores mais recentes consideram os sofistas verdadeiros representantes do espírito democrático, isto é, da pluralidade conflituosa de opiniões e interesses, enquanto seus adversários seriam partidários de uma política aristocrática, na qual somente algumas opiniões e interesses teriam o direito para valer para o restante da sociedade.

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TEXTO 2

3. SÓCRATES

Nasceu em 477 ou 469 a.C., em Atenas, filho de Sofrônico, escultor, e de Fenáreta, parteira. Dedicou‑se inteiramente à meditação e ao ensino filosófico, sem recompensa alguma, não obstante sua pobreza. Desempenhou alguns cargos políticos e foi sempre modelo irrepreensível de bom cidadão. Foi, acima de tudo, um autodidata e alcançou a alta cultura ateniense da época.

O filósofo Sócrates, considerado o patrono da Filosofia, rebelou‑se contra os sofistas, dizendo que não eram filósofos, pois não tinham amor pela sabedoria nem respeito pela verdade, defendendo qualquer ideia, se isso fosse vantajoso. Corrompiam o espírito dos jovens, pois faziam o erro e a mentira valerem tanto quanto a verdade.

Apesar de ter sido um valioso soldado, manteve‑se afastado da vida pública e da política contemporânea, na medida em que estas não se coadunavam com a postura crítica e ética que defendia. Acreditava que ao formar cidadãos sábios, honestos, temperados daria à pátria uma contribuição de valor singular.

3.1 Proposta de Sócrates

Propunha que, antes de querer conhecer a natureza e persuadir os outros, cada um deveria conhecer‑se a si mesmo. A expressão “conhece‑te a ti mesmo” que estava gravada no pórtico do templo de Apolo, patrono grego da sabedoria, tornou‑se a divisa de Sócrates.

Por fazer do autoconhecimento a condição de todos os outros conhecimentos verdadeiros, é que se diz que o período socrático é antropológico, isto é, voltado para o conhecimento do homem, particularmente de seu espírito e de sua capacidade para conhecer a verdade.

O retrato que a história da Filosofia possui de Sócrates foi traçado por seu mais importante aluno e discípulo, o filósofo ateniense Platão. Nas obras de Platão temos o pensamento socrático, mas estas não nos podem dar o preciso retrato histórico do pensamento de Sócrates, na medida em que o retrato que o discípulo faz do mestre é necessariamente atravessado pela sua leitura. Ainda assim, cabe a Platão o privilégio de ter sido o grande historiador do pensamento de Sócrates.

3.2 O retrato que Platão nos deixa de Sócrates

Andava pelas ruas e praças de Atenas, pelo mercado e pela assembleia indagando a cada um: “Você sabe o que é isso que está dizendo?”, “Você sabe o que é isso em que acredita?”, “Você acha que conhece realmente aquilo em que acredita, aquilo em que está pensando, aquilo que está dizendo?”, “Você diz”, falava Sócrates, “que a coragem é importante, mas o que é a coragem?

Você acredita que a justiça é importante, mas o que é a justiça? Você diz que ama as coisas e as pessoas belas, mas o que é a beleza? Você crê que seus amigos são a melhor coisa que você tem, mas o que é a amizade?”

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Sócrates fazia perguntas sobre as ideias e os valores nos quais os gregos acreditavam e que julgavam conhecer. Isso os deixava embaraçados, irritados e curiosos, pois, quando tentavam responder ao célebre “o que é?”, descobriam, surpresos, que não tinham respostas, pois nunca haviam pensado em suas crenças, em seus valores e em suas ideias.

3.3 A consciência da própria ignorância é o começo da Filosofia

O QUE PROCURAVA SÓCRATES?

Procurava a definição daquilo que uma coisa, uma ideia, um valor é verdadeiramente. Procurava a essência verdadeira da coisa, da ideia, do valor. Procurava o conceito e não a mera opinião que temos de nós mesmos, das coisas, das ideias e dos valores.

DIFERENÇA ENTRE UMA OPINIÃO E UM CONCEITO

A opinião varia de pessoa para pessoa, de lugar para lugar, de época para época. É instável, mutável.

O conceito, ao contrário, é uma verdade intemporal, universal e necessária que o pensamento descobre, mostrando que é a essência universal, intemporal e necessária de alguma coisa.

As perguntas de Sócrates tocaram ideias, valores, práticas e comportamentos que os atenienses julgavam certos e verdadeiros em si mesmos e por si mesmos. Suscitaram dúvidas, porque os fizeram pensar não só sobre si mesmos, mas também sobre a polis.

Assumia atitude de aprender com seu interlocutor, multiplicando perguntas até que este se deparasse com sua própria ignorância. Temos aí a ironia socrática.

Por meio de perguntas, conduzia‑o, por indução[2] dos casos particulares e concretos, um conceito, uma definição geral do objeto em questão. Em memória de sua mãe que era parteira, Sócrates deu a este processo pedagógico o nome de maiêutica, na medida em que ele provocava seus interlocutores de modo que as ideias neles e deles pudessem aflorar.

A CERTEZA DÁ LUGAR À DÚVIDA

Considerando que o poder é mais forte se ninguém pensar, se todos aceitarem as coisas como estas lhes são apresentadas e não necessariamente como são na realidade, Sócrates tornou–se um perigo em Atenas, pois fizera a juventude pensar. Sob a acusação que lhe foi imputada por Mileto, Anito e Licon no sentido de desrespeitar os deuses, corromper os jovens e violar as leis, foi levado perante a assembleia. Contudo, não se defendeu das acusações que lhe foram impingidas porque não as reconheceu. Foi condenado a tomar veneno – a cicuta – e obrigado a suicidar‑se.

Sócrates sabia que se apresentasse defesa, os juízes exigiriam que ele parasse de filosofar. Preferiu a morte a ter que renunciar à Filosofia.

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O julgamento e a morte de Sócrates são narrados por Platão em uma obra intitulada “Apologia de Sócrates”, isto é, a defesa de Sócrates, feita por seus discípulos, contra Atenas.

CARACTERÍSTICAS GERAIS DO PERÍODO SOCRÁTICO

a) A Filosofia se volta para as questões humanas no plano da ação, dos comportamentos, das ideias, das crenças, dos valores e, portanto, se preocupa com as questões morais e políticas.

b) O ponto de partida é a confiança no pensamento ou no homem como um ser racional, capaz de conhecer‑se a si mesmo e, portanto, capaz de reflexão. Reflexão é a volta que o pensamento faz sobre si mesmo para se conhecer; é a consciência conhecendo‑se a si mesma como capacidade para conhecer as coisas, alcançando o conceito ou a essência delas.

c) A preocupação se volta para estabelecer procedimentos capazes de permitir ao homem encontrar a verdade. O pensamento deve oferecer a si mesmo caminhos, critérios e meios próprios para saber o que é o verdadeiro e como alcançá‑lo em tudo que é investigado.

d) A Filosofia está voltada para a definição das virtudes morais e das virtudes políticas, tendo como objeto central de suas investigações a moral e a política, isto é, as ideias e as práticas que norteiam os comportamentos dos seres humanos tanto como indivíduos quanto como cidadãos.

e) Cabe à Filosofia, portanto, encontrar a definição, o conceito ou a essência dessas virtudes, para além da variedade das opiniões. As perguntas filosóficas se referem a valores como: justiça, coragem, amizade, piedade, amor, beleza, temperança, prudência etc., que constituem os ideais do sábio e do verdadeiro cidadão.

f) É feita, pela primeira vez, uma separação radical entre opinião e ideias.

A opinião e as imagens das coisas nos são trazidas pelos nossos órgãos dos sentidos, nossos hábitos, pelas tradições, pelos interesses.

As ideias referem‑se à essência íntima, invisível, verdadeira das coisas e só podem ser alcançadas pelo pensamento puro, que afasta os dados sensoriais, os hábitos recebidos, os preconceitos, as opiniões.

g) A reflexão e o trabalho do pensamento são tomados como uma purificação intelectual, que permite ao espírito humano conhecer a verdade invisível, imutável, universal e necessária.

h) A opinião, as percepções e as imagens sensoriais são consideradas falsas, mentirosas, mutáveis, inconsistentes, contraditórias, devendo ser abandonadas para que o pensamento siga seu caminho próprio no conhecimento verdadeiro.

Sócrates é o fundador da ciência em geral, mediante a doutrina do conceito. É fundador, em particular, da ciência moral, mediante a doutrina de que eticidade significa racionalidade, ação racional. Virtude é inteligência, razão, ciência, não sentimento, rotina, costume, tradição, lei

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positiva, opinião comum. Tudo isso tem que ser criticado, superado, subindo até a razão, não descendo até a animalidade – como ensinavam os sofistas.

A DIFERENÇA ENTRE OS SOFISTAS, SÓCRATES E PLATÃO

Os sofistas aceitavam a validade das opiniões e das percepções sensoriais e trabalham com elas para produzir argumentos de persuasão.

Sócrates e Platão consideravam as opiniões e as percepções sensoriais, ou imagens das coisas, como fonte de erro, mentira e falsidade, formas imperfeitas do conhecimento que nunca alcançam a verdade plena da realidade.

PERÍODO SISTEMÁTICO

Esse período tem como principal nome o filósofo Aristóteles de Estagira, discípulo de Platão.

1. PLATÃO

Platão, cujo nome verdadeiro era Aristócles, nasceu em Atenas, em 428 ou 427 a.C., em uma família de aristocratas abastados.

Dotado de temperamento artístico e dialético, aos vinte anos, Platão começou a conviver com Sócrates que era quarenta anos mais velho do que ele.

Durante oito anos, privou de seus ensinamentos e amizade. Depois de sua morte, Platão retirou‑se com outros socráticos para Euclides, em Mégara.

Em Atenas, pelo ano de 387, Platão fundou a sua célebre escola, que, dos jardins de Academo, recebeu o nome de Academia. Seguindo uma veia familiar, Platão interessou‑se pela política e pela filosofia política. Tinha aspirações políticas, sob uma perspectiva utopista. Para ele, uma cidade‑modelo deveria distribuir os seus habitantes em três segmentos: os sábios deveriam pertencer à ordem dos governantes; os corajosos, que deveriam zelar pela segurança, à ordem dos guardiões, e os demais, responsáveis pela agricultura e comércio, fariam parte da ordem dos produtores.

Em Atenas, Platão dedicou‑se inteiramente à especulação metafísica, ao ensino filosófico e à redação de suas obras, atividade que manteve até sua morte. Morreu em 348 ou 347 a.C., com oitenta anos de idade. Platão foi o primeiro filósofo antigo a deixar obras completas.

2. A GNOSIOLOGIA

Desde Sócrates, a filosofia tinha um fim prático, moral e Platão inscreveu‑se na mesma linha. Esse fim prático realiza‑se, no entanto, intelectualmente, através da especulação, do conhecimento da ciência. Enquanto Sócrates debruçou‑se sobre o campo antropológico e moral, Platão dedicou‑se à indagação no campo metafísico e cosmológico, ou seja, à própria realidade.

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O caráter humano em Platão acentua‑se por sua viva sensibilidade em face do universal vir‑a–ser, nascer e perecer de todas as coisas; em face do mal, da desordem que se manifesta em especial no homem, onde o corpo é inimigo do espírito, o sentido se opõe ao intelecto, a paixão contrasta com a razão.

Para Platão, o espírito humano é um mero prisioneiro na caverna do corpo. Será preciso transpor este mundo e libertar‑se do corpo para realizar o seu fim, isto é, chegar à contemplação do inteligível, para o qual é atraído por um amor nostálgico, pelo eros platônico.

A gnosiologia platônica tem o caráter científico e filosófico. Segundo Platão, o conhecimento humano integral fica nitidamente dividido em dois graus: o conhecimento sensível, particular, mutável e relativo, e o conhecimento intelectual, universal, imutável, absoluto, que ilumina o primeiro conhecimento, mas que dele não se pode derivar.

Para o pensador, o conhecimento sensível, embora verdadeiro, não sabe que é, donde pode passar indiferentemente o conhecimento diverso, cair no erro sem o saber; ao passo que o segundo, além de ser um conhecimento verdadeiro, sabe que é, não podendo de modo algum ser substituído por um conhecimento diverso, errôneo.

Poder‑se‑ia também dizer que o primeiro sabe que as coisas estão assim, sem saber o porquê o estão, ao passo que o segundo sabe que as coisas devem estar necessariamente assim como estão, precisamente porque é ciência, isto é, conhecimento das coisas pelas causas.

Platão não admite que da sensação – particular, mutável, relativa – se possa de algum modo tirar o conceito universal, imutável, absoluto; e desenvolvendo, exagerando, exasperando a doutrina da maiêutica socrática, diz que os conceitos são a priori, inatos no espírito humano, donde têm de ser oportunamente tirados, e sustenta que as sensações correspondentes aos conceitos não lhes constituem a origem, e sim a ocasião para fazê‑los reviver, relembrar conforme a lei da associação.

Platão dá ao conhecimento racional, conceptual, científico, uma base real, um objeto próprio: as ideias eternas e universais, que são os conceitos, ou alguns conceitos da mente, personalizados. Do mesmo modo, dá ao conhecimento empírico, sensível, à opinião verdadeira, uma base e um fundamento reais, um objeto próprio: as coisas particulares e mutáveis, como eram pensadas pelos sofistas.

Deste mundo material e contingente, portanto, não há ciência, devido à sua natureza inferior, mas apenas é possível, no máximo, um conhecimento sensível verdadeiro – opinião verdadeira

–que é precisamente o conhecimento adequado à sua natureza inferior. Pode haver conhecimento apenas do mundo imaterial e racional das ideias pela sua natureza superior. Esse mundo ideal, racional – no dizer de Platão – transcende inteiramente o mundo empírico,

material, em que vivemos.

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3. A METAFÍSICA AS ALMAS

Platão dá à alma humana um lugar e um tratamento à parte, de superioridade, em vista dos seus impelentes interesses morais e ascéticos, religiosos e místicos. Considera a alma humana

como um ser eterno. Deve, portanto, a alma humana libertar‑se do corpo, como de um cárcere;

essa libertação, durante a vida terrena, começa e progride mediante a filosofia, que é separação espiritual da alma do corpo, e se realiza com a morte, separando‑se, então, na realidade, a alma do corpo.

A faculdade principal, essencial da alma é a de conhecer o mundo ideal, transcendental: contemplação em que se realiza a natureza humana e da qual depende totalmente a ação moral. Entretanto, sendo que a alma racional é, de fato, unida a um corpo, dotado de atividade sensitiva e vegetativa, deve existir um princípio de uma e outra.

A alma não encontra no corpo o seu complemento, o seu instrumento adequado, mas a alma está no corpo como em um cárcere, o intelecto é impedido pelo sentido da visão das ideias, que devem ser trabalhosamente relembradas e apenas mediante uma disciplina ascética do corpo, que o mortifica inteiramente e mediante a morte libertadora, que desvencilha para sempre a alma do corpo, o homem realiza a sua verdadeira natureza: a contemplação intuitiva do mundo ideal.

O MUNDO

O mundo material, o cosmos platônico, resulta da síntese de dois princípios opostos, as ideias e a matéria. O dualismo dos elementos constitutivos do mundo material resulta do ser e do não ser, da ordem e da desordem, do bem e do mal, que aparecem no mundo. Da ideia – ser, verdade, bondade, beleza – depende tudo quanto há de positivo, de racional no vir‑a‑ser da experiência. Da matéria – indeterminada, uniforme, mutável, irracional, passiva, espacial – depende, ao contrário, tudo que há de negativo na experiência.

4. A TEORIA DO CONHECIMENTO DE PLATÃO

Platão deixou‑nos uma vasta obra filosófica que trata de temas diversos dentre os quais a questão do conhecimento merece especial atenção, sobretudo em função da influência que seu pensamento exerce ainda na atualidade, a despeito da significativa contribuição que deixou como legado no tocante a questões que versam sobre democracia, o valor da arte, as virtudes, o bem e a metafísica.

Sua busca é movida pela necessidade de alcançar o conhecimento da verdadeira natureza das coisas. Platão devota‑se à busca da compreensão da essência das coisas. Vale a ressalva que não se trata de compreender as coisas sensíveis, mas sim a realidade abstrata e essencial.

Para o pensador, o homem entre dois mundos, o da aparente realidade e o da realidade verdadeira. É no mundo da realidade aparente que o homem lida com as coisas sensíveis, perpassado pelas opiniões, crença que geram a imperfeição e a imprecisão. O mundo sensível é imperfeito. É somente no mundo

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das ideias ou formas abstratas que o homem entra em contato com a verdade, sendo a alma o veículo para acessar o conhecimento verdadeiro. Em sua obra, a “República”, Platão complementa sua teoria da alma (psyché), conferindo‑lhe funções cognitivas, intelectuais e morais.

A Academia de Platão em Atenas “operou”, por assim dizer, de 387 a.C. até 529 d.C.; porém, com a decadência de Atenas, a emergência de inúmeras escolas filosóficas e as conquistas de Alexandre, a cultura grega se espalha em um movimento que hoje chamamos de Helenismo.

4.1 A razão: inata ou adquirida? Inatismo ou empirismo?

Qual é a origem dos princípios racionais (identidade, não contradição, terceiro‑excluído e razão suficiente)? De onde veio a capacidade para a intuição (razão intuitiva) e para o raciocínio (razão discursiva)? Inatos ou adquiridos pela educação e pelo costume? Seriam algo próprio dos seres humanos ou adquiridos através da experiência?

Durante séculos, a Filosofia ofereceu duas respostas a essas perguntas. A primeira ficou conhecida como inatismo e a segunda, como empirismo.

•O inatismo afirma que nascemos trazendo em nossa inteligência não só os princípios racionais, mas algumas ideias verdadeiras, que, por isso, são ideias inatas.

•O empirismo afirma que a razão, com seus princípios, seus procedimentos e suas ideias, é adquirida por nós através da experiência. Em grego, experiência = empeiria. Assim, conhecimento empírico, isto é, conhecimento adquirido por meio da experiência.

INATISMO

Vamos falar do inatismo tomando dois filósofos como exemplo: o filósofo grego Platão (século IV a.C.) e o filósofo francês Descartes (século XVII).

INATISMO PLATÔNICO

Platão defende a tese do inatismo da razão ou das ideias verdadeiras em várias de suas obras, mas as passagens mais conhecidas se encontram nos diálogos “Mênon” e “A República”. Em “Mênon”, Sócrates, ao fazer perguntas a um jovem escravo analfabeto, observa que ele demonstra sozinho um difícil teorema de Pitágoras. Verdades matemáticas surgem em resposta às perguntas de Sócrates que vai raciocinando com ele.

Para Platão, se o escravo não houvesse nascido com a razão e com os princípios da racionalidade isso não teria acontecido? O escravo não poderia ter adquirido esse conhecimento por experiência, pois jamais ouvira falar de geometria.

Em “A República”, Platão desenvolve a teoria à qual se mencionara em “Mênon”: a teoria da reminiscência. Nascemos com a razão e as ideias verdadeiras e a Filosofia nada mais faz do que nos relembrar essas ideias.

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FILOSOFIA

TEORIA DA REMINISCÊNCIA

O MITO DE ER

O pastor Er, da região da Panfília, morreu e foi levado para o Reino dos Mortos. Ali chegando, encontra as almas dos heróis gregos, de governantes, de artistas, de seus antepassados e amigos. Ali, as almas contemplam a verdade e possuem o conhecimento verdadeiro.

Er fica sabendo que todas as almas renascem em outras vidas para se purificarem de seus erros passados até que não precisem mais voltar à Terra, permanecendo na eternidade. No caminho de retorno à Terra, as almas atravessam uma grande planície por onde corre um rio, o Lethé (que, em grego, quer dizer esquecimento) e bebem de suas águas. As que bebem muito esquecem toda a verdade que contemplaram; as que bebem pouco quase não se esquecem do que conheceram.

Aqueles que escolheram vidas de rei, de guerreiro ou de comerciante rico são as que mais bebem das águas do esquecimento; outros, que escolheram a sabedoria, são as que menos bebem. Assim, as primeiras dificilmente se lembrarão, na nova vida, da verdade que conheceram, enquanto as outras serão capazes de lembrar e ter sabedoria, usando a razão.

Conhecer é recordar a verdade que já existe em nós; é despertar a razão para que ela se exerça por si mesma, segundo Platão.

Sócrates fazia perguntas às pessoas para que elas pudessem lembrar‑se da verdade e do uso da razão.

Platão considerava que o fato de nascermos com a razão e com a verdade é essencial para distinguirmos se nos encontramos diante de uma ideia verdadeira.

O INATISMO CARTASIANO

Descartes discute a teoria das ideias inatas em várias de suas obras, mas as exposições mais conhecidas encontram‑se em duas delas: no “Discurso do método” e nas “Meditações metafísicas”. Nelas, Descartes mostra que nosso espírito possui três tipos de ideias que se diferenciam segundo sua origem e qualidade:

1. Ideias adventícias: vindas de fora – têm origem em nossas sensações, percepções, lembranças; em nossa experiência sensorial ou sensível das coisas a que se referem. São nossas ideias cotidianas e costumeiras, geralmente enganosas ou falsas, isso não corresponde à realidade das próprias. coisas. Ex.: O galho da árvore, à luz da luz, refletido na parede do quarto, a um primeiro olhar, dá origem à imagem de um branco muito comprido que entra pela janela para furtar a caixa de joias sobre uma mesa.

2. Ideias fictícias: são aquelas que criamos em nossa fantasia e imaginação, compondo seres inexistentes com pedaços ou partes de ideias adventícias que estão em nossa memória. Ex.: cavalo alado, fadas, elfos, duendes, dragões, Super‑Homem etc. São as fabulações das artes, da literatura, dos contos infantis, dos mitos, das superstições. Nunca são verdadeiras, não correspondem a nada

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que exista realmente e sabemos que foram inventadas por nós, mesmo quando as recebemos já prontas de outros que as inventaram.

3. Ideias inatas: são aquelas que não poderiam vir de nossa experiência sensorial porque não há objetos sensoriais ou sensíveis para elas, nem poderiam vir de nossa fantasia, pois não tivemos experiência sensorial para compô‑las a partir de nossa memória. São inteiramente racionais e só podem existir porque já nascemos com elas. Ex.: a ideia de infinito (pois não temos qualquer experiência do infinito). Sobre as ideias inatas, Descartes afirma que:

•São “a assinatura do Criador” no espírito das criaturas racionais e a razão é a luz natural inata que nos permite conhecer a verdade.

•São colocadas em nosso espírito por Deus, serão sempre verdadeiras, isto é, sempre corresponderão integralmente às coisas a que se referem, e, graças a elas, podemos julgar quando uma ideia adventícia é verdadeira ou falsa e saber que as ideias fictícias são sempre falsas (ou seja, não correspondem a nada fora de nós), segundo Descartes.

•São as mais simples que possuímos (simples não quer dizer “fáceis”, e sim não compostas de outras ideias).

•A mais famosa das ideias inatas cartesianas é o “Penso, logo existo”. Por serem simples, as ideias inatas são conhecidas por intuição e são elas o ponto de partida da dedução racional e da indução, que conhecem as ideias complexas ou compostas.

A TESE CENTRAL DOS INATISTAS

Se não possuirmos em nosso espírito a razão e a verdade, nunca teremos como saber se um conhecimento é verdadeiro ou falso, isto é, nunca saberemos se uma ideia corresponde ou não à realidade a que ela se refere. Não teremos um critério seguro para avaliar nossos conhecimentos.

O EMPIRISMO

Contrariamente aos defensores do inatismo, os defensores do empirismo afirmam que a razão, a verdade e as ideias racionais são adquiridas por nós através da experiência. Antes da experiência, dizem eles, nossa razão é como uma “folha em branco”, onde nada foi escrito; uma “tábula rasa”, onde nada foi gravado. Somos como uma cera sem forma e sem nada impresso nela, até que a experiência venha escrever na folha, gravar na tábula, dar forma à cera.

QUE DIZEM OS EMPIRISTAS?

Nossos conhecimentos começam com a experiência dos sentidos, isto é, com as sensações. Os objetos exteriores excitam nossos órgãos dos sentidos e vemos cores, sentimos sabores e odores, ouvimos sons, sentimos a diferença entre o áspero e o liso, o quente e o frio etc.

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FILOSOFIA

AS SENSAÇÕES SE REÚNEM E FORMAM UMA PERCEPÇÃO

As percepções, por sua vez, combinam‑se ou associam‑se. A associação pode se dar por três motivos: por semelhança, por proximidade ou contiguidade espacial e por sucessão temporal.

A causa da associação das percepções é a repetição, ou seja, de tanto algumas sensações se repetirem por semelhança, ou de tanto se repetirem no mesmo espaço ou próximas umas das outras, ou, enfim, de tanto se repetirem sucessivamente no tempo, criamos o hábito de associá‑las. Essas associações são as ideias.

As ideias, trazidas pela experiência, isto é, pela sensação, pela percepção e pelo hábito, são levadas à memória e, de lá, a razão as apanha para formar os pensamentos.

A experiência escreve e grava em nosso espírito as ideias e a razão irá associá‑las, combiná–las ou separá‑las, formando todos os nossos pensamentos. Por isso, David Hume dirá que a razão é o hábito de associar ideias, seja por semelhança, seja por diferença.

PROBLEMAS DO INATISMO

Platão afirmava que a ideia de justiça era inata, vinha da contemplação intelectual do justo em si ou do conhecimento racional das coisas justas em si.

Sendo inata, era universal e necessária. Dizia que os seres humanos variam muito nas suas opiniões sobre o justo e a justiça, pois essas opiniões se formam por experiência e esta varia de pessoa para pessoa, de época para época, de lugar para lugar. Por isso mesmo, são simples opiniões.

Uma ideia verdadeira, ao contrário, por ser verdadeira, é inata, universal e necessária, não sofrendo as variações das opiniões, que, além de serem variáveis, são, no mais das vezes, falsas, pois nossa experiência tende a ser enganosa ou enganada.

A IDEIA PLATÔNICA DA JUSTIÇA – MORAL OU POLÍTICA

Moralmente, uma pessoa é justa (pratica a ideia universal da justiça) quando faz com que o intelecto ou a razão domine e controle inteira e completamente seus impulsos passionais, seus sentimentos e suas emoções irracionais. Isso se justifica porque o intelecto ou a razão é a parte melhor e superior de nossa alma ou espírito e deve dominar a parte inferior e pior, ligada aos desejos irracionais do nosso corpo.

Politicamente, uma sociedade é justa (isto é, pratica a ideia inata e universal de justiça) quando nela as classes sociais se relacionam como na moral. Em outras palavras, quando as classes inferiores forem dominadas e controladas pelas classes superiores. Em outras palavras, a organização social deve ser estabelecida de tal modo a propiciar a prática da justiça. O exemplo mais singular dessa questão é o livro “A República”.

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A sociedade justa cria uma hierarquia ou uma escala de classes sociais e de poderes, nas quais a classe econômica, mais inferior, deve ser dominada e controlada pela classe militar, para que as riquezas não provoquem desigualdades, egoísmos, guerras, violências; a classe militar, por sua vez, deve ser dominada e controlada pela classe política para impedir que os militares queiram usar a força e a violência contra a sociedade e fazer guerras absurdas. Enfim, a classe política deve ser dominada e controlada pelos sábios (a razão), que não deixarão que os políticos abusem do poder e prejudiquem toda a sociedade.

Justiça, portanto, é o domínio da inteligência sobre os instintos, os interesses e as paixões, tanto no indivíduo quanto na sociedade.

A JUSTIÇA MORAL PLATÔNICA

Freud, o pai da psicanálise, mostrou que não temos esse poder, que nossa consciência, nossa vontade e nossa razão podem menos que o nosso inconsciente, isto é, do que o desejo. Como uma ideia inata, afinal, perdeu a verdade?

O que acontece com a justiça política platônica quando alguns filósofos que estudaram a formação das sociedades e da política mostraram a igualdade de todos os cidadãos e afirmaram que nenhuma classe tem o direito de dominar e controlar outras, e que tal domínio e controle é, exatamente, a injustiça? Como uma ideia inata, afinal, perdeu a verdade?

Como uma ideia inata que deveria ter validade universal, ou seja, ser a mesma em todo lugar e em todos os tempos, pode mudar? Se era necessária, indispensável e única, como pôde haver outra capaz de questioná‑la?

O avanço no processo do questionamento comprometeu a tese de Platão que definiu a ideia de justiça como inata. O inatismo platônico não se sustentou diante de novos questionamentos.

Tomemos, agora, outro exemplo, vindo da filosofia de Descartes. Descartes considerava que a realidade natural é regida por leis universais e necessárias do movimento, isto é, que a natureza é uma realidade mecânica.

Considera também que as leis mecânicas ou leis do movimento elaboradas por sua filosofia ou por sua física são ideias racionais deduzidas de ideias inatas simples e verdadeiras.

Quando comparamos a física de Descartes com a de Galileu, elaborada na mesma época, verificamos que a física galileana é oposta à cartesiana e é a que será provada e demonstrada verdadeira, já a de Descartes sendo falsa. Como poderia isso acontecer, se as ideias da física cartesiana eram inatas?

OS DOIS GRANDES PROBLEMAS DO INATISMO

1. A própria razão pode mudar o conteúdo de ideias que eram consideradas universais e verdadeiras (é o caso da ideia platônica de justiça).

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2. A própria razão pode provar que ideias racionais também podem ser falsas (é o caso da física cartesiana). Se as ideias são racionais e verdadeiras, é porque correspondem à realidade.

A realidade permanece a mesma e, no entanto, as ideias que a explicavam perderam a validade. O inatismo se depara com o problema da mudança das ideias, feita pela própria razão e com o problema da falsidade das ideias, demonstrada pela própria razão.

PROBLEMAS DO EMPIRISMO

PROBLEMA INSOLÚVEL DO EMPIRISMO

Se as ciências são apenas hábitos psicológicos de associar percepções e ideias por semelhança e diferença, bem como por contiguidade espacial ou sucessão temporal.

ENTÃO

As ciências não possuem verdade alguma, não explicam realidade alguma, não alcançam os objetos e não possuem nenhuma objetividade.

O ideal racional da objetividade afirma que uma verdade é uma verdade porque corresponde à realidade das coisas e, portanto, não depende de nossos gostos, opiniões, preferências, preconceitos, fantasias, costumes e hábitos.

Logo, não é subjetiva, não depende de nossa vida pessoal e psicológica. Essa objetividade, porém, para o empirista, a ciência não pode oferecer nem garantir.

A ciência, mero hábito psicológico ou subjetivo, torna‑se afinal uma ilusão. A realidade tal como é em si mesma (isto é, a realidade objetiva) jamais poderá ser conhecida por nossa razão.

O problema que questiona o empirismo é o da impossibilidade do conhecimento objetivo da realidade.

RESUMINDO

Do lado do INATISMO, o problema pode ser formulado da seguinte maneira: Como são inatos, as ideias e os princípios da razão são verdades intemporais que nenhuma experiência nova poderá modificar.

Por definição, uma ideia inata é sempre verdadeira e não pode ser substituída por outra. A história (social, política, científica e filosófica) mostra que ideias tidas como verdadeiras e universais não possuíam essa validade e foram substituídas por outras.

Se for substituída, então, não era uma ideia verdadeira e, não sendo uma ideia verdadeira, não era inata.

Do lado do EMPIRISMO, o problema pode ser formulado da seguinte maneira: A racionalidade ocidental só foi possível porque a Filosofia e as ciências demonstraram que a razão é capaz de alcançar a universalidade e a

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necessidade que governam a própria realidade, isto é, as leis racionais que governam a natureza, a sociedade, a moral, a política. A marca própria da experiência é a de ser sempre individual, particular e subjetiva.

Se o conhecimento racional for apenas a generalização e a repetição para todos os seres humanos de seus estados psicológicos, derivados de suas experiências.

ENTÃO

O que chamamos de Filosofia, de ciência, de ética etc. são nomes gerais para hábitos psíquicos, e não um conhecimento racional verdadeiro de toda a realidade, tanto a realidade natural quanto a humana.

Problemas dessa natureza, frequentes na história da Filosofia, suscitam, periodicamente, o aparecimento de uma corrente filosófica conhecida como CETICISMO, para o qual a razão humana é incapaz de conhecer a realidade e por isso deve renunciar à verdade. O cético sempre manifesta explicitamente dúvidas toda vez que a razão tenha pretensão ao conhecimento verdadeiro do real.

EMPIRISMO NA CIÊNCIA

Um conceito capital na ciência e no método científico é que toda evidência deve ser empírica, isto é, depende da comprovação feita pelos sentidos. Geralmente, são empregados termos que o diferenciam do empirismo filosófico, como o adjetivo empírico, que aparece em termos como método empírico ou pesquisa empírica, usado nas ciências sociais e humanas para denominar métodos de pesquisa que são realizados através da observação e da experiência (por exemplo, o funcionalismo).

EMPIRISMO NA FILOSOFIA

A doutrina do empirismo foi definida explicitamente pela primeira vez pelo filósofo inglês John Locke no século XVII. Locke argumentou que a mente seria, originalmente, um “quadro em branco” (tábula rasa), sobre o qual é gravado o conhecimento, cuja base é a sensação; ou seja, todas as pessoas, ao nascerem, o fazem sem saber de absolutamente nada, sem impressão nenhuma, sem conhecimento algum. Todo o processo do conhecer, do saber e do agir é aprendido pela experiência, pela tentativa e pelo erro.

Historicamente, o empirismo se opõe à escola conhecida como racionalismo, segundo a qual o homem nasceria com certas ideias inatas, as quais iriam “aflorando” à consciência e constituiriam as verdades acerca do universo. A partir dessas ideias, o homem poderia entender os fenômenos particulares apresentados pelos sentidos. O conhecimento da verdade, portanto, independeria dos sentidos físicos.

1. ARISTÓTELES8

Filho de Nicômaco, médico e amigo do rei de Amintas II da Macedônia, nasceu em Estagira, colônia grega da Trácia, no litoral setentrional do mar Egeu, em 384 a.C. Aos dezoito anos, em 367,

8 Texto adaptado da obra Convite à Filosofia, Unidade 1, A Filosofia, Capítulo 3 “Campos de investigação da Filosofia”, da autoria de Marilena Chauí. São Paulo: Editora Ática, 2000.

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foi para Atenas e ingressou na academia platônica, onde ficou por vinte anos, até a morte do mestre. Nesse período, estudou também os filósofos pré‑platônicos, que lhe foram úteis na construção do seu grande sistema.

Ao ingressar na Academia Platônica – que viria a frequentar durante vinte anos aproximadamente – Aristóteles já trazia, como herança de seus antepassados, acentuado interesse pelas pesquisas biológicas.

Aristóteles fundou sua escola – Liceu. Ficou malvisto pelos atenienses e chegou a ser acusado de ateísmo. Para evitar a condenação, retirou‑se voluntariamente para Eubeia. Aristóteles faleceu, após enfermidade, no ano seguinte, no verão de 322, com pouco mais de 60 anos de idade.

Aristóteles foi um homem de cultura, dedicado aos estudos e às pesquisas, que acabaram o isolando da vida prática, social e política. A atividade literária de Aristóteles foi vasta e intensa.

Aristóteles diverge profundamente de Platão quanto à sua teoria do conhecimento.

“Nada está no intelecto sem antes ter passado pelos sentidos”.

Conhecer é perceber o que acontece sempre ou frequentemente.

A razão abstrai, ou seja, classifica, separa e organiza os objetos segundo critérios.

Passados quase quatro séculos de Filosofia, Aristóteles apresenta uma verdadeira enciclopédia de todo o saber que foi produzido e acumulado pelos gregos em todos os ramos do pensamento e da prática, considerando essa totalidade de saberes como sendo a Filosofia.

Escreveu com admirável propriedade todos os conhecimentos anteriores e acrescentou‑lhes o trabalho próprio, fruto de muita observação e de profundas meditações. Escreveu sobre todas as ciências, constituindo algumas desde os primeiros fundamentos, organizando outras em corpo coerente de doutrinas e sobre todas espalhando as luzes de sua admirável inteligência.

a. Escritos lógicos.

b. Escritos sobre a física.

c. Escritos metafísicos: compilação feita, após sua morte, à luz de seus apontamentos e manuscritos, referentes à metafísica geral e à teologia.

d. Escritos morais e políticos.

e. Escritos retóricos e poéticos.

As obras de Aristóteles revelam um grande rigor científico por meio de exposição e expressão breve, clara, pontual e aguda.

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Filosofia não é um saber específico sobre algum assunto, mas uma forma de conhecer todas as coisas, possuindo procedimentos diferentes para cada campo das coisas que conhece.

Cada saber, no campo que lhe é próprio, possui seu objeto específico, procedimentos específicos para sua aquisição e exposição, formas próprias de demonstração e prova. Cada campo do conhecimento é uma ciência (ciência, em grego, é episteme).

Aristóteles afirma que, antes de um conhecimento constituir seu objeto e seu campo próprios, seus procedimentos próprios de aquisição e exposição, de demonstração e de prova; deve, primeiro, conhecer as leis gerais que governam o pensamento, independentemente do conteúdo que possa vir a ter.

O estudo das formas gerais do pensamento, sem preocupação com seu conteúdo, chama–se LÓGICA. Aristóteles foi o criador da lógica como instrumento do conhecimento em qualquer campo do saber.

A lógica não é uma ciência, mas o instrumento para a ciência. É indispensável para a Filosofia.

2. CLASSIFICAÇÃO ARISTOTÉLICA

Ciências produtivas: estudam as práticas produtivas ou as técnicas, isto é, as ações humanas cuja finalidade está para além da própria ação – todas as atividades humanas, técnicas e artísticas que resultam em um produto ou uma obra. São elas:

Arquitetura (cujo fim é a edificação de alguma coisa), economia (cujo fim é a produção agrícola, o artesanato e o comércio, isto é, produtos para a sobrevivência e para o acúmulo de riquezas), medicina (cujo fim é produzir a saúde ou a cura), pintura, escultura, poesia, teatro, oratória, arte da guerra, da caça, da navegação etc.

Ciências práticas: estudam as práticas humanas como ações que têm nelas mesmas seu próprio fim. São elas:

Ética, em que a ação é realizada pela vontade guiada pela razão para alcançar o bem do indivíduo, sendo este bem as virtudes morais (coragem, generosidade, fidelidade, lealdade, clemência, prudência, amizade, justiça, modéstia, honradez, temperança, etc.) e política, em que a ação é realizada pela vontade guiada pela razão para ter como fim o bem da comunidade ou o bem comum.

Para Aristóteles, como para todo grego da época clássica, a política é superior à ética.

A verdadeira liberdade, sem a qual não pode haver vida virtuosa, só é conseguida na polis, por isso, a finalidade da política é a vida justa, a vida boa e bela, a vida livre.

Ciências teoréticas, contemplativas ou teóricas: estudam coisas que existem independentemente dos homens e de suas ações que só podem ser contempladas. Theoria, em grego, significa contemplação da verdade. Temos coisas da natureza e as coisas divinas.

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FILOSOFIA

Aristóteles classifica também por graus de superioridade as ciências teóricas, indo da mais inferior à superior:

1. Ciência das coisas naturais submetidas à mudança ou ao devir: física, biologia, meteorologia, psicologia (pois a alma, que em grego se diz psychê, é um ser natural, existindo de formas variadas em todos os seres vivos, plantas, animais e homens).

2. Ciência das coisas naturais que não estão submetidas à mudança ou ao devir: as matemáticas e a astronomia (os gregos julgavam que os astros eram eternos e imutáveis).

3. Ciência da realidade pura, que não é nem natural mutável, nem natural imutável, nem resultado da ação humana, nem resultado da fabricação humana. Trata‑se daquilo que deve haver em toda e qualquer realidade, seja ela natural, matemática, ética, política ou técnica, para ser realidade. É o que Aristóteles chama de ser ou substância de tudo o que existe. A ciência teórica que estuda o puro ser chama‑se metafísica.

4. Ciência teórica das coisas divinas que são a causa e a finalidade de tudo o que existe na natureza e no homem. Vimos que as coisas divinas são chamadas de theion e, por isso, esta última ciência chama‑se teologia.

A Filosofia, para Aristóteles, encontra seu ponto mais alto na metafísica e na teologia, de onde derivam todos os outros conhecimentos.

A partir da classificação aristotélica, definiu‑se, no correr dos séculos, o grande campo da investigação filosófica, campo que só seria desfeito no século XIX da nossa era, quando as ciências particulares foram se separando do tronco geral da Filosofia. Assim, podemos dizer que os campos da investigação filosófica são três:

1. O do conhecimento da realidade última de todos os seres, ou da essência de toda a realidade. Como, em grego, ser se diz “on” e os seres se diz “ta onta”, este campo é chamado de ontologia (que, na linguagem de Aristóteles, formava‑se com a metafísica e a teologia).

2. O do conhecimento das ações humanas ou dos valores e das finalidades da ação humana: das ações que têm em si mesmas sua finalidade, a ética e a política, ou a vida moral (valores morais), e a vida política (valores políticos); e das ações que têm sua finalidade em um produto ou uma obra: as técnicas e as artes e seus valores (utilidade, beleza etc.).

3. O do conhecimento da capacidade humana de conhecer, isto é, o conhecimento do próprio pensamento em exercício.

Distinguem‑se, portanto, a lógica, que oferece as leis gerais do pensamento; a teoria do conhecimento, que oferece os procedimentos pelos quais conhecemos; as ciências propriamente ditas e o conhecimento do conhecimento científico, isto é, a epistemologia.

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Ser ou realidade, prática ou ação segundo valores, conhecimento do pensamento em suas leis gerais e em suas leis específicas em cada ciência: eis os campos da atividade ou investigação filosófica.

3. O PENSAMENTO: A GNOSIOLOGIA

Segundo Aristóteles, a Filosofia é essencialmente teorética: deve decifrar o enigma do universo, diante do qual a atitude inicial do espírito é o assombro do mistério. O seu problema fundamental é o problema do ser, não o problema da vida. O objeto próprio da filosofia, em que está a solução do seu problema, são as essências imutáveis e a razão última das coisas, isto é, o universal e o necessário, as formas e suas relações.

A filosofia aristotélica é, portanto, conceitual como a de Platão, mas parte da experiência; é dedutiva, mas o ponto de partida da dedução é tirado – mediante o intelecto da experiência.

4. FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

Partindo como Platão do mesmo problema acerca do valor objetivo dos conceitos, mas abandonando a solução do mestre, Aristóteles construiu um sistema inteiramente original. Os caracteres dessa grande síntese são:

1. Observação fiel da natureza: Platão, idealista, rejeitara a experiência como fonte de conhecimento certo. Aristóteles, mais positivo, toma sempre o fato como ponto de partida de suas teorias, buscando na realidade um apoio sólido às suas mais elevadas especulações metafísicas.

2. Rigor no método: depois de estudadas as leis do pensamento, o processo dedutivo e indutivo aplica, com rara habilidade, em todas as suas obras, substituindo a linguagem imaginosa e figurada de Platão, em estilo lapidar e conciso, criando uma terminologia filosófica de precisão admirável. Pode considerar‑se como o autor da metodologia e tecnologia científicas. Geralmente, no estudo de uma questão, Aristóteles procede por partes:

a. Começa a definir‑lhe o objeto.

b. Passa a enumerar‑lhes as soluções históricas.

c. Propõe depois as dúvidas.

d. Indica, em seguida, a própria solução.

e. Refuta, por último, as sentenças contrárias.

3. Unidade do conjunto: sua vasta obra filosófica constitui um verdadeiro sistema, uma verdadeira síntese. Todas as partes compõem‑se, correspondem‑se, confirmam‑se.

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FILOSOFIA

5. PERÍODO HELENÍSTICO

Trata‑se do último período da Filosofia antiga, quando a polis grega desapareceu como centro político, deixando de ser referência principal dos filósofos, uma vez que a Grécia encontrava‑se sob o poderio do Império Romano.

Os filósofos dizem, agora, que o mundo é sua cidade e que são cidadãos do mundo. Em grego, mundo se diz cosmos e esse período é chamado o da Filosofia cosmopolita.

Essa época da Filosofia é constituída por grandes sistemas ou doutrinas, isto é, explicações totalizantes sobre a natureza, o homem, as relações entre ambos e deles com a divindade (esta, em geral, pensada como providência divina que instaura e conserva a ordem universal). Predominam preocupações com a física, a ética – pois os filósofos já não podem se ocupar diretamente com a política, uma vez que esta é privilégio dos imperadores romanos – e a teologia.

Datam desse período quatro grandes sistemas cuja influência será sentida pelo pensamento cristão, que começa a formar‑se nessa época: estoicismo, epicurismo, ceticismo e neoplatonismo.

A amplidão do Império Romano, a presença crescente de religiões orientais no Império, os contatos comerciais e culturais entre Ocidente e Oriente fizeram aumentar os contatos dos filósofos helenistas com a sabedoria oriental.

Podemos falar em uma orientalização da Filosofia, sobretudo nos aspectos místicos e religiosos.

CÍCERO9

Túlio Cícero, considerado o primeiro romano que chegou aos principais postos do governo com base na sua eloquência e ao mérito com que exerceu as suas funções de magistrado civil. Nasceu em Arpino em 106 a.C. em uma antiga família da classe do campo equestre. Após ter aprendido na escola pública e ter chegado à maioridade, passando a vestir a toga virilis, foi entregue aos cuidados do célebre senador e jurista romano Múcio Cévola que o pôs a par das leis e das instituições políticas de Roma.

Querendo manter‑se neutro na feroz luta política da época tentou agradar aos dois campos, sem conseguir agradar a nenhum deles. Manteve‑se sempre mais perto de Pompeu e do partido senatorial do que de César e do partido popular. De fato acabou por se decidir, mas muito timidamente, pelo campo senatorial. Após a batalha de Farsalia (48 a.C.) e a consequente fuga de Pompeu, bem como de sua morte no Egito, Cícero recusou‑se a comandar tropas e regressou a Roma, governada por Antônio, representante pessoal de César. Cícero passou a dedicar‑se integralmente à filosofia e à literatura, sendo desta época o tratado “De Republica”.

9 Segundo Nalini (2008, p. 90) Por que Filosofia? São Paulo, Revista dos Tribunais.

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Unidade I

Desde jovem cultivou interesse pela Filosofia. Estudou em Atenas onde travou grande conhecimento com os ensinamentos de seus antecessores. Abraçou a vida pública e demonstrou grande competência, sobretudo na oratória forense e política.

Cícero ocupou a posição de senador e chegou a ser figura proeminente da política romana, porém a perseguição política que sofreu com a política despótica de Júlio César o afastou do centro político romano, o que o levou a buscar a filosofia, sobretudo no exílio.

É SUA OBRA

Esse período de meditação e reclusão lhe permitiu deixar como legado um conjunto de obras sobre assuntos diversos, confirmando o ecletismo do pensador. São elas, “Sobre os Fins”, “Controvérsias Tusculanas” e “Sobre os Deveres” – versam sobre problemas éticos; “Os Tópicos” e “Os Acadêmicos” – abordam questões lógicas; “A Natureza dos Deuses”, “Sobre a Arte Adivinhatória” e “Sobre o Destino” – tratam de temas da física. Do ponto de vista da filosofia, essas são as principais obras escritas por Cícero no retiro forçado por César e vinham juntar‑se a “Sobre o Orador”, escrito em 55 a.C., “A República”, redigida em 51 a.C., e “Sobre as Leis”, provavelmente da mesma época.

Esse conjunto de obras desempenharia papel de primeiro plano na história do pensamento porque fazia do latim um idioma filosófico. Contudo, não deixaram como legado um pensamento original, mas sim uma discussão sobre diferentes teorias filosóficas gregas, confirmando o seu ecletismo.

No que concerne à teoria do conhecimento, Cícero não aceitou o cepticismo radical de Pirro de Elis (360 – 270 a.C.), tampouco filiou‑se ao dogmatismo extremado. Defendeu como critério de verdade o probabilismo do consenso universal, isto é, aquela posição que acha possível ao homem chegar a algum conhecimento das coisas, sem, no entanto, atingir a verdade absoluta.

Para Cícero, a verdade estaria naquilo que pode ser aceito por todos. As razões dessa posição são colocadas menos em um plano puramente lógico do que no terreno das necessidades práticas do homem. Para Cícero, o problema do conhecimento não pode ser solucionado exclusivamente em sua estrutura interna.

O homem necessita, todavia, admitir como verdadeiras algumas noções sem as quais não é possível manter a coesão da sociedade.

Em moral, Cícero adere às doutrinas estoicas sem, entretanto, aceitar todo o rigor da concepção segundo a qual o exercício da virtude basta‑se a si mesmo e consiste na conformidade da conduta humana às leis racionais da natureza.

Aceita essas ideias, mas exige que tais normas sejam validadas pelo consenso universal. Esse consenso universal articula‑se em torno de algumas ideias que dão fundamento à vida moral e social, principalmente a da existência de Deus e sua providência. Tais noções seriam comprovadas pela consciência natural dos homens e pela constatação de que na natureza os fenômenos organizam‑se em torno de fins, os quais supõem a existência de um fim último de todas as coisas. Outra ideia com a

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mesma função de fundamentar a vida social e moral é a da essência espiritual e divina da alma e sua imortalidade. Essa ideia encontrar‑se‑ia confirmada na preocupação do homem com sua vida futura.

A MORTE DE JÚLIO CÉSAR

O assassinato de César em 44 a.C. permitiu que Cícero tentasse recuperar a influência política e a direção do partido senatorial. Contudo, o fato de Antonio ter ocupado o lugar de Júlio César levou Cícero a escrever as “Filípicas” – orações contra o sucessor de César. Octávio, filho adotivo de César, eleito cônsul, chegou a um acordo com Antonio e Lépido, antigo general de Júlio César, formando‑se o segundo triunvirato. Cícero retirou‑se com alguns familiares para Túsculo, ao sul de Roma, onde ficou sabendo que Octávio o tinha abandonado e que Antonio não hesitara em colocar seu nome na lista dos proscritos, uma declaração de morte. Viajou para Fórmio, na costa adriática, com intenção de embarcar para a Grécia, mas acabou por ficar afirmando Moriar in patria soepe servata (Morra eu na pátria que tantas vezes salvei), o que aconteceu às mãos de soldados comandados por um seu antigo cliente. Cortaram‑lhe a cabeça e as mãos por ordem de Antonio.

Apesar desse valor histórico, as obras de Cícero não contêm um pensamento original, limitando‑se a amalgamar diferentes teorias filosóficas gregas. Cícero foi um típico eclético, discutindo os argumentos das diferentes doutrinas gregas correntes na época, sem vincular‑se inteiramente a nenhuma. Ele conheceu essas correntes quando, na juventude, estudou em Atenas, antes de tornar‑se conhecido advogado e homem público.

Cícero, em teoria do conhecimento, opôs‑se tanto ao ceticismo radical de Pirro de Elis (360 ‑ 270 a.C.) quanto ao dogmatismo extremado. Defendeu como critério de verdade o probabilismo do consenso universal, isto é, aquela posição que acha possível ao homem chegar a algum conhecimento das coisas, sem, no entanto, atingir a verdade absoluta. A verdade estaria naquilo que pode ser aceito por todos. As razões dessa posição são colocadas menos em um plano puramente lógico do que no terreno das necessidades práticas do homem. Para Cícero, o problema do conhecimento não pode ser solucionado exclusivamente em sua estrutura interna. O homem necessita, todavia, admitir como verdadeiras algumas noções sem as quais não é possível manter a coesão da sociedade.

Em moral, Cícero adere às doutrinas estoicas sem, entretanto, aceitar todo o rigor da concepção segundo a qual o exercício da virtude basta‑se a si mesmo e consiste na conformidade da conduta humana às leis racionais da natureza.

Aceita essas ideias, mas exige que tais normas sejam validadas pelo consenso universal. Esse consenso universal articula‑se em torno de algumas ideias que dão fundamento à vida moral e social, principalmente a da existência de Deus e sua providência. Tais noções seriam comprovadas pela consciência natural dos homens e pela constatação de que na natureza os fenômenos organizam‑se em torno de fins, os quais supõem a existência de um fim último de todas as coisas. Outra ideia com a mesma função de fundamentar a vida social e moral é a da essência espiritual e divina da alma e sua imortalidade. Essa ideia encontrar‑se‑ia confirmada na preocupação do homem com sua vida futura.

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Os estoicos

Depois de Cícero ter iniciado a história da filosofia em língua latina, formulando sua síntese eclética, o movimento de ideias mais importante dentro do pensamento romano foi o desenvolvimento das doutrinas estoicas, também originárias da Grécia, como o epicurismo e o ecletismo.

A escola estoica foi fundada por Zenão de Cicio (336 – 264 a.C.) e continuada por Cleanto de Assos (331 – 232 a.C.) e Crisipo de Solis (280 – 210 a.C.). Posteriormente, a escola transformou‑se, tendendo para uma posição eclética, com Panécio de Rodes (185 – 112 a.C.) e Possidónio de Apameia (135 – 51 a.C.).

O estoicismo grego propõe uma imagem do universo segundo a qual tudo o que é corpóreo é semelhante a um ser vivo, no qual existiria um sopro vital (pneuma), cuja tensão explicaria a junção e a interdependência das partes. No seu conjunto, o universo seria igualmente um corpo vivo provido de um sopro ígneo (sua alma), que reteria as partes e garantiria a coesão do todo. Essa alma é identificada por Zenão à razão e assim o mundo seria inteiramente racional. A Razão Universal (Logos), que tudo penetra e comanda, tende a eliminar todo tipo de irracionalidade, tanto na natureza, quanto na conduta humana, não havendo lugar no universo para o acaso ou a desordem.

A racionalidade do processo cósmico manifesta‑se na ideia de ciclo, que os estoicos adotam e defendem com rigor. Herdeiros do pensamento de Heráclito de Éfeso (séc. VI a.C.), os estoicos concebem a história do mundo como feita por sucessão periódica de fases, culminando na absorção de todas as coisas pelo Logos, que é Fogo e Zeus. Completado um ciclo, começa tudo de novo: após a conflagração universal, o eterno retorno.

Tudo o que existe é corpóreo e a própria razão identifica‑se com algo material, o fogo. O incorpóreo reduz‑se a meios inativos e impassíveis, como o espaço e o vazio; ou então àquilo que se pode pensar sobre as coisas, mas não às próprias coisas.

Nesse universo corpóreo e dirigido pelo fatalismo dos ciclos sempre idênticos, tudo existe e acontece segundo predeterminação rigorosa como racional. Governada pelo Logos, a natureza é justa e divina e os estoicos identificam a virtude moral com o acordo profundo do homem consigo mesmo e, através disso, com a própria natureza, que é intrinsecamente a razão. Esse acordo é o que Zenão chama “prudência” e dela decorrem todas as demais virtudes, como simples aspectos ou modalidades.

As paixões são consideradas pelos estoicos como desobediências à razão e podem ser explicadas como resultantes de causas externas às raízes do próprio indivíduo; seriam, como já haviam mostrado os cínicos, devidas a hábitos de pensar adquiridos pela influência do meio e da educação. É necessário ao homem desfazer‑se de tudo isso e seguir a natureza, ou seja, seguir a Deus e à razão universal, aceitando o destino e conservando a serenidade em qualquer circunstância, mesmo na dor e na adversidade.

Uma nova lógica

Os estoicos gregos não se limitaram a formular uma física e uma ética. Elaboraram também uma teoria do conhecimento de acentuada originalidade. As três formariam um conjunto sistemático que expressaria, no plano do conhecimento, a mesma racionalidade encontrada na natureza.

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FILOSOFIA

A teoria do conhecimento consiste, para os estoicos, em vincular estreitamente a certeza e a ciência ao plano do conhecimento sensível. A base de qualquer conhecimento seria as impressões recebidas pelos sentidos, mas já o nível do sensível estaria penetrado pela razão, sendo, portanto, predisposto à sistematização pela inteligência.

Ao lado das coisas sensíveis, os estoicos distinguem os “exprimíveis”, isto é, aquilo que se pode pensar e dizer sobre as coisas. Os “exprimíveis” seriam objeto da dialética, disciplina que se ocuparia dos enunciados verdadeiros ou falsos a respeito das coisas e não sobre as próprias coisas.

Os mais simples enunciados, segundo os estoicos, são compostos por um sujeito (expresso por um substantivo ou um pronome) e um atributo (expresso por um verbo). Esses enunciados distinguem‑se, assim, das proposições da lógica aristotélica, que estabelecem relações entre conceitos (por exemplo: “o homem é um animal racional”). Na lógica estoica, o sujeito é sempre singular (alguém, Pedro etc.) e o atributo indica sempre algo que ocorre com o sujeito.

As ligações entre os enunciados, portanto, nunca assumem o caráter de juízo categórico, permanecendo como relacionamento entre eventos, cada qual expresso por uma proposição simples (por exemplo: “Está claro, é dia”).

Os estoicos distinguem cinco tipos de juízos compostos que reúnem os enunciados simples. O juízo hipotético exprime relação entre antecedente e consequente (“Se há fumaça, há fogo”). O juízo conjuntivo simplesmente justapõe fatos (“É dia, está claro”). O juízo disjuntivo separa os enunciados, de modo que só um deles pode ser verdadeiro (“Ou é dia, ou é noite”). O juízo causal exprime relação de causa e efeito (“Está claro porque é dia”). Finalmente, o quinto tipo de juízo expressa a ideia de mais e menos (“Fica menos claro quando é mais noite”).

Séneca – A medicina da alma

Não foi a lógica dos estoicos gregos, nem mesmo sua teoria do mundo físico que atraiu o interesse dos estoicos romanos, foi sua moral da resignação, sobretudo nos aspectos religiosos que ela permitia desenvolver.

O primeiro representante do estoicismo romano, sem contar as ideias estoicas que se encontram no ecletismo de Cícero, foi Lucius Annaeus Séneca, nascido em Córdoba (Espanha), aproximadamente quatro anos antes da era cristã. Era filho de Annaeus Séneca (55 a.C.‑39 a.D.) – conhecido como Séneca, o Velho –, que teve renome como retórico e do qual restou uma obra escrita (“Declamações”). O futuro filósofo Séneca foi educado em Roma, onde estudou a retórica ligada à filosofia. Em pouco tempo, tornou‑se famoso como advogado e ascendeu politicamente, passando a ser membro do senado romano e depois nomeado questor.

O triunfo político, no entanto, não se fazia sem conflitos e o renome de Séneca suscitou a inveja do imperador Calígula, que pretendeu desfazer‑se dele pelo assassinato. Séneca, contudo, foi salvo por sua saúde frágil; julgava‑se que ele morreria muito cedo, de morte natural. O próprio Calígula é que faleceria logo depois e Séneca pôde continuar vivendo em relativa tranquilidade. Não duraria esse período muito tempo. Em 41 d.C., foi desterrado para a Córsega, sob acusação de adultério, supostamente praticado

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com Júlia Livila, sobrinha do novo imperador Cláudio César Germânico. Na Córsega, Séneca passaria quase dez anos em grande privação material.

Em 49 d.C., Messalina, primeira esposa do imperador Cláudio e responsável pelo exílio de Séneca, caiu em desgraça e foi condenada à morte. O imperador Cláudio casou‑se com Agripina e esta mandou chamar Séneca para educar seu filho Nero. Em 54 d.C., quando Nero se torna imperador, Séneca passa a ser seu principal conselheiro. Esse período estende‑se até 62 d.C., ano em que sua estrela começa a perder o brilho junto ao despótico soberano. Séneca deixa a vida pública e sofre a perseguição de Nero, que acaba por condená‑lo ao suicídio, em 65 d.C.

As “Cartas Morais de Séneca”, escritas entre os anos 63 e 65 e dirigidas a Lucílio, misturam elementos epicuristas com ideias estoicas e contêm observações pessoais, reflexões sobre a literatura e crítica satírica dos vícios comuns na época. Entre os seus doze “Ensaios Morais”, destacam‑se “Sobre a Clemência”, cautelosa advertência a Nero sobre os perigos da tirania; “Da Brevidade da Vida”, análise das frivolidades nas sociedades corruptas, e “Sobre a Tranquilidade da Alma”, que tem como assunto o problema da participação na vida pública. As “Questões Naturais” expõem a Física estoica vinculada aos problemas éticos.

Além dessas obras propriamente filosóficas, Séneca escreveu ainda nove tragédias e uma obra‑prima da sátira latina, “Apolokocintosis”, que ridiculariza Nero e suas pretensões à divindade.

Todas essas obras revelam que Séneca foi, sobretudo, um moralista. A filosofia é para ele uma arte da ação humana, uma medicina dos males da alma e uma pedagogia que forma os homens para o exercício da virtude. O centro da reflexão filosófica deve ser, portanto, a ética; e a física e a lógica devem ser consideradas como seus prelúdios.

Sua concepção do mundo repete as ideias dos estoicos gregos sobre a estrutura puramente material da natureza. Contudo, a razão universal dos gregos Cleanto e Zenão transforma Séneca em um deus pessoal, que é sabedoria, previsão e vigilância, sempre em ação para governar o mundo e realizar uma ordem maravilhosa.

Marco Aurélio – O imperador filósofo

Cronologicamente, o segundo grande representante do estoicismo romano foi Epiteto (c. 50 – 130), escravo durante muitos anos e, posteriormente, professor de filosofia. Seu ensino foi recolhido pelo discípulo Ariano de Nicomédia, em oito livros. Chegaram até a atualidade quatro livros inteiros e apenas alguns fragmentos dos restantes.

Grande admirador de Epiteto foi o imperador Marco Aurélio Antonino, que, nas pausas tranquilas de seu conturbado governo, dedicou‑se à reflexão filosófica e com isso tornou‑se o terceiro e último grande expoente do estoicismo romano.

Marco Aurélio nasceu em 121, no seio de uma família aristocrática e muito cedo perdeu os pais. Foi adotado pelo tio, Aurélio Antonino. O tio tornar‑se‑ia imperador e nomearia Marco Aurélio seu sucessor, em 161.

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FILOSOFIA

Aos onze anos de idade, Marco Aurélio conheceu o estoicismo e adotou hábitos de vida austera, recomendados por aquela escola filosófica. Depois dos anos de formação, passou a colaborar intimamente com o imperador, seu pai adotivo, ocupando o cargo de cônsul por três vezes. Em 161, Aurélio Antonino faleceu e Marco Aurélio tornou‑se imperador.

O governo de Marco Aurélio – que se estendeu por quase vinte anos, até sua morte em 180 – foi perturbado por guerras sangrentas e prolongadas, com as consequentes dificuldades internas. Além disso, Roma foi vítima de inundações, tremores de terra e incêndios. Marco Aurélio conseguiu enfrentar todas as dificuldades, tendo sido excelente guerreiro e administrador e, ao mesmo tempo, humanizando profundamente o exercício do poder. Nos poucos momentos que os encargos de governo permitiam, recolhia‑se à meditação filosófica e escrevia seus pensamentos em língua grega, que lhe parecia a mais apta a exprimir inquietações intelectuais e morais profundas. As “Meditações” (como posteriormente ficaram conhecidos aqueles pensamentos) são simples notas, apenas esboçadas.

O conteúdo das “Meditações” é a filosofia estoica, mas de um estoicismo bastante distante das doutrinas de Zenão, Cleanto e Crisipo. As especulações físicas e lógicas cedem lugar ao caráter prático dos romanos e ao aconselhamento moral. Em Marco Aurélio – como também nas “Máximas de Epiteto” ‑, a questão central da filosofia é o problema de como se deve encarar a vida para que se possa viver bem. Esse problema assume a forma de intensa preocupação com o estado de sua própria alma, em virtude da natureza delicada e sensível do autor das “Meditações”, homem religioso e pouco interessado na investigação científica. Por essa razão, o estoicismo de Marco Aurélio frequentemente apresenta discrepâncias em relação às suas origens gregas. Marco Aurélio não chegou a ser um pensador original e não procurou resolver as inconsistências de sua própria posição. Enquanto a ortodoxia estoica levava‑o na direção de um credo materialista, seu sentimento religioso impelia‑o no sentido da força moral e da benevolência. Por isso, as “Meditações”, de Marco Aurélio, expressam‑se através de uma linguagem que, por um lado, parece pressupor a aceitação de um panteísmo puramente físico; por outro, abandona os dogmas da escola estoica para seguir os ditames do coração.

A verdadeira chave para compreensão das oscilações de Marco Aurélio deve ser procurada menos em suas características psicológicas do que nas circunstâncias históricas em que viveu. O império romano estava perdendo o antigo esplendor e a cultura clássica greco‑latina mostrava os últimos sinais de vitalidade. Cada vez mais ganhava corpo uma nova concepção do mundo: o cristianismo.

Marco Aurélio expressa claramente essa etapa de transição. Nele, a autossuficiência do antigo estoicismo grego cede lugar à falta de confiança em si mesmo e à consciência das próprias imperfeições. Com isso, antecipa a virtude cristã da humildade e pouco se distanciava da concepção de um Deus único, antropomórfico e pessoal.

1. A FILOSOFIA NA HISTÓRIA 10

Como todas as outras criações e instituições humanas, a Filosofia está na História e tem uma história.

10 Texto adaptado da obra Convite à Filosofia, Unidade 1, A Filosofia, Capítulo 1 “Origem da Filosofia”, da autoria de Marilena Chauí. São Paulo: Editora Ática, 2000.

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Está na História: a Filosofia manifesta e exprime os problemas e as questões que, em cada época de uma sociedade, os homens colocam para si mesmos, diante do que é novo e ainda não foi compreendido. A Filosofia procura enfrentar essa novidade, oferecendo caminhos, respostas e, sobretudo, propondo novas perguntas, em um diálogo permanente com a sociedade e a cultura de seu tempo, da qual ela faz parte.

Tem uma história: as respostas, as soluções e as novas perguntas que os filósofos de uma época oferecem tornam‑se saberes adquiridos que outros filósofos prosseguem ou, frequentemente, tornam‑se novos problemas que outros filósofos tentam resolver, seja aproveitando o passado filosófico, seja criticando‑o e refutando‑o. Além disso, as transformações nos modos de conhecer podem ampliar os campos de investigação da Filosofia, fazendo surgir novas disciplinas filosóficas, como também podem diminuir esses campos, porque alguns de seus conhecimentos podem desligar‑se dela e formar disciplinas separadas.

A Filosofia teve seu campo de atividade aumentado:

•No século XVIII, a filosofia da arte ou estética.

•No século XIX, a filosofia da história.

•No século XX, a filosofia das ciências ou epistemologia e a filosofia da linguagem. Por outro lado, o campo da Filosofia diminuiu quando as ciências particulares que dela faziam parte foram se desligando para constituir suas próprias esferas de investigação. É o que acontece, por exemplo, no século XVIII, quando se desligam da filosofia a biologia, a física e a química.

•No século XX, as chamadas ciências humanas (psicologia, antropologia, história).

Pelo fato de estar na História e ter uma história, a Filosofia costuma ser apresentada em grandes períodos que acompanham, às vezes de maneira mais próxima, às vezes de maneira mais distante, os períodos em que os historiadores dividem a História da sociedade ocidental.

2. OS PRINCIPAIS PERÍODOS DA FILOSOFIA

2.1 Filosofia antiga (do século VI a.c. ao século VI d.c.)

Compreende os quatro grandes períodos da Filosofia greco‑romana, indo dos pré‑socráticos aos grandes sistemas do período helenístico, mencionados no capítulo anterior.

2.2 Filosofia patrística (do século I ao século VII)

Inicia‑se com as “Epístolas de São Paulo” e o “Evangelho de São João” e termina no século VIII, quando teve início a Filosofia medieval.

A patrística resultou do esforço feito pelos dois apóstolos intelectuais (Paulo e João) e pelos primeiros padres da Igreja para conciliar a nova religião – o Cristianismo – com o pensamento filosófico dos gregos

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e dos romanos, pois somente com tal conciliação seria possível convencer os pagãos da nova verdade e convertê‑los a ela. A Filosofia patrística liga‑se, portanto, à tarefa religiosa da evangelização e à defesa da religião cristã contra os ataques teóricos e morais que recebia dos antigos.

Divide‑se em patrística grega (ligada à Igreja de Bizâncio) e patrística latina (ligada à Igreja de Roma) e seus nomes mais importantes foram: Justino, Tertuliano, Atenágoras, Orígenes, Clemente, Eusébio, Santo Ambrósio, São Gregório Nazianzo, São João Crisóstomo, Isidoro de Sevilha, Santo Agostinho, Beda e Boécio.

A patrística foi obrigada a introduzir ideias desconhecidas para os filósofos greco‑romanos: a ideia de criação do mundo, de pecado original, de Deus como trindade una, de encarnação e morte de Deus, de juízo final ou de fim dos tempos e ressurreição dos mortos etc. Precisou também explicar como o mal pode existir no mundo, já que tudo foi criado por Deus, que é pura perfeição e bondade. Introduziu, sobretudo com Santo Agostinho e Boécio, a ideia de “homem interior”, isto é, da consciência moral e do livre‑arbítrio, pelo qual o homem se torna responsável pela existência do mal no mundo.

Para impor as ideias cristãs, os padres da Igreja as transformaram em verdades reveladas por Deus (através da Bíblia e dos santos) que, por serem decretos divinos, seriam dogmas, isto é, irrefutáveis e inquestionáveis.

Surge uma distinção, desconhecida pelos antigos, entre verdades reveladas ou da fé e verdades da razão ou humanas, isto é, entre verdades sobrenaturais e verdades naturais, as primeiras introduzindo a noção de conhecimento recebido por uma graça divina, superior ao simples conhecimento racional.

O grande tema de toda a Filosofia patrística é o da possibilidade de conciliar razão e fé, e, a esse respeito, havia três posições principais:

1. Os que julgavam fé e razão irreconciliáveis e a fé superior à razão (diziam eles: “Creio porque absurdo”).

2. Os que julgavam fé e razão conciliáveis, mas subordinavam a razão à fé (diziam eles: “Creio para compreender”).

3. Os que julgavam razão e fé irreconciliáveis, mas afirmavam que cada uma delas tem seu campo próprio de conhecimento e não devem misturar‑se (a razão se refere a tudo o que concerne à vida temporal dos homens no mundo; a fé, a tudo o que se refere à salvação da alma e à vida eterna futura).

3. FILOSOFIA MEDIEVAL (DO SÉCULO VIII AO SÉCULO XIV)

Abrange pensadores europeus, árabes e judeus. É o período em que a Igreja Romana dominava a Europa, ungia e coroava reis, organizava Cruzadas à Terra Santa e criava, à volta das catedrais, as primeiras universidades ou escolas. A partir do século XII, por ter sido ensinada nas escolas, a Filosofia medieval também é conhecida com o nome de Escolástica.

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A Filosofia medieval teve como influências principais Platão e Aristóteles, embora Platão que os medievais conhecessem fosse o neoplatônico (vindo da Filosofia de Plotino, do século VI d.C.) e Aristóteles que conhecessem fosse aquele conservado e traduzido pelos árabes.

Conservando e discutindo os mesmos problemas que a patrística, a Filosofia medieval acrescentou outros – particularmente um, conhecido com o nome de “Problema dos Universais” – e, além de Platão e Aristóteles, sofreu uma grande influência das ideias de Santo Agostinho. Durante esse período surge propriamente a Filosofia cristã, que é, na verdade, a teologia. Um de seus temas mais constantes são as provas da existência de Deus e da alma, isto é, demonstrações racionais da existência do infinito criador e do espírito humano imortal.

A diferença e a separação entre infinito (Deus) e finito (homem, mundo), a diferença entre razão e fé (a primeira deve subordinar‑se à segunda), a diferença e a separação entre corpo (matéria) e alma (espírito), O universo como uma hierarquia de seres, em que os superiores dominam e governam os inferiores (Deus, arcanjos, anjos, alma, corpo, animais, vegetais, minerais), a subordinação do poder temporal de reis e barões ao poder espiritual de papas e bispos: eis os grandes temas da Filosofia medieval.

Outra característica marcante da Escolástica foi o método por ela inventado para expor as ideias filosóficas, conhecida como disputa: apresentava‑se uma tese e esta devia ser refutada ou defendida por argumentos tirados da Bíblia, de Aristóteles, de Platão ou de outros padres da Igreja.

Assim, uma ideia era considerada uma tese verdadeira ou falsa dependendo da força e da qualidade dos argumentos encontrados nos vários autores. Por causa desse método de disputa – teses, refutações, defesas, respostas, conclusões baseadas em escritos de outros autores ‑, costuma‑se dizer que, na Idade Média, o pensamento estava subordinado ao princípio da autoridade, isto é, uma ideia é considerada verdadeira se for baseada nos argumentos de uma autoridade reconhecida (Bíblia, Platão, Aristóteles, um papa, um santo).

Os teólogos medievais mais importantes foram: Abelardo, Duns Scoto, Escoto Erígena, Santo Anselmo, Santo Tomás de Aquino, Santo Alberto Magno, Guilherme de Ockham, Roger Bacon, São Boaventura. Do lado árabe: Avicena, Averróis, Alfarabi e Algazáli. Do lado judaico: Maimônides, Nahmanides, Yeudah bem Levi.

4. FILOSOFIA DA RENASCENÇA (DO SÉCULO XIV AO SÉCULO XVI)

É marcada pela descoberta de obras de Platão desconhecidas na Idade Média, de novas obras de Aristóteles, bem como pela recuperação das obras dos grandes autores e artistas gregos e romanos.

4.1 Linhas de pensamento que predominavam na renascença

•Proveniente de Platão, do neoplatonismo e da descoberta dos livros do Hermetismo; nela se destacava a ideia da natureza como um grande ser vivo; o homem faz parte da natureza como um microcosmo.

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•Originária dos pensadores florentinos, que valorizava a vida ativa, isto é, a política, e defendia os ideais republicanos das cidades italianas contra o Império Romano‑Germânico, isto é, contra o poderio dos papas e dos imperadores.

•Propunha o ideal do homem como artífice de seu próprio destino, tanto através dos conhecimentos (astrologia, magia, alquimia), quanto através da política (o ideal republicano), das técnicas (medicina, arquitetura, engenharia, navegação) e das artes (pintura, escultura, literatura, teatro).

5. FILOSOFIA MODERNA (DO SÉCULO XVII A MEADOS DO SÉCULO XVIII)

Esse período, conhecido como o Grande Racionalismo Clássico, é marcado por três grandes mudanças intelectuais:

•Aquela conhecida como o “surgimento do sujeito do conhecimento”.

•O ponto de partida é o sujeito do conhecimento como consciência reflexiva de si, isto é, como consciência que conhece sua capacidade de conhecer.

•A resposta à pergunta anterior constituiu a segunda grande mudança intelectual dos modernos e essa mudança diz respeito ao objeto do conhecimento.

•Essa concepção da realidade como intrinsecamente racional e que pode ser plenamente captada pelas ideias e pelos conceitos preparou a terceira grande mudança intelectual moderna.

6. FILOSOFIA DA ILUSTRAÇÃO OU ILUMINISMO (MEADOS DO SÉCULO XVIII AO COMEÇO DO SÉCULO XIX)

Esse período também crê nos poderes da razão, chamada de “As Luzes” (por isso, o nome Iluminismo). O Iluminismo afirma que:

•Pela razão, o homem pode conquistar a liberdade e a felicidade social e política.

•A razão é capaz de evolução e progresso, e o homem é um ser perfectível.

•O aperfeiçoamento da razão se realiza pelo progresso das civilizações.

•Há diferença entre natureza e civilização.

Os principais pensadores do período foram: Hume, Voltaire, D’Alembert, Diderot, Rousseau, Kant, Fichte e Schelling (embora este último costuma ser colocado como filósofo do Romantismo).

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7. FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Abrange o pensamento filosófico que vai de meados do século XIX e chega aos nossos dias. Esse período, por ser o mais próximo de nós, parece ser o mais complexo e o mais difícil de definir, pois as diferenças entre as várias filosofias ou posições filosóficas nos parecem muito grandes porque as vemos surgir diante de nós.

SANTO AGOSTINHO11

1. VIDA E OBRA

Pai pagão, mãe cristã, Agostinho (354‑430) participou das duas tradições em luta. Natural de Tagaste, norte da África, estudou em Cartago. Espírito inquieto. Ele leu a Bíblia e não se encantou. Tornou‑se maniqueísta e partiu para Roma, onde o ceticismo o atraiu por um tempo. Obteve uma cátedra em Milão e conheceu Santo Ambrósio, cuja pregação, aliada à leitura de Plotino, o fez converter‑se em 386. A partir daí, consagrou sua vida e dotes intelectuais à defesa da sua fé contra o paganismo e as heresias. Foi ordenado sacerdote e depois bispo de Hipona, cidade em que morreu quando os vândalos a cercavam.

Descreve seu itinerário espiritual nas “Confissões”. Escreveu ainda “De libero arbítrio”, “De Ordine” e sua obra‑prima é “De Civitate Dei” (413‑426). Tem uma produção imensa e em parte nunca mais localizada. Sabe‑se que escreveu “Contra Faustum Manichaeum”, “Comentários aos Salmos”, “Comentários às Epístolas”, “Sermões” e outros.

2. A LEI ETERNA E A LEI NATURAL

Santo Agostinho integrou ao Cristianismo a teoria platônica das ideias. Ideias eram modelos eternos das coisas na mente divina. A Lei eterna era a razão divina e a vontade de Deus (ratio divina vel voluntas Dei) manda respeitar a ordem natural e proíbe perturbá‑la.

Se Deus criou as coisas, deu‑lhes um princípio regulador, uma lei. Nos seres irracionais, a lei opera de modo necessário. Para o homem, criatura racional, essa lei depende de sua livre aceitação. A lei natural que se exprime na consciência é a participação da criatura racional na ordem divina do universo.

3. O QUE SIGNIFICA ESSE PENSAMENTO?

Agostinho substitui o panteísmo de Heráclito e dos estoicos – o jusnaturalismo cosmológico12 – por um jusnaturalismo teocêntrico. Ele foi a base de todas as posteriores concepções cristãs.

A lei eterna reflete‑se na consciência humana como lei ética natural. Nenhuma perversidade é capaz de apagar a lei impressa nos corações das pessoas. Os homens, por mais imersos que estejam no pecado,

11 Texto adaptado da obra Por que Filosofia? José Renato Nalini, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008.12 Jusnaturalismo cosmológico – predominante na Grécia antiga procurava encontrar na natureza, na razão

ou na divindade a formulação de um ideal de justiça.

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conservam a faculdade de distinguir o bem do mal, o justo do injusto. A lei natural, insculpida no coração do homem, é chamada a culminar e a aperfeiçoar‑se na lex veritatis da revelação cristã, por isso é que a lei natural prepara e sustenta a um só tempo a lei cristã, seja no aspecto histórico, seja no ontológico.

4. AS LEIS HUMANAS

A lei eterna, cujo autor é Deus e que se manifesta na intimidade da consciência humana como lei ética natural, é o fundamento das leis humanas ou temporais. Nada nas leis humanas existe de justo e legítimo, que não derive daquelas; ou seja, o Direito Positivo baseia‑se no Direito Natural, parte da lei eterna.

Para Agostinho, as leis humanas variam ao sabor das exigências históricas, assim como variam as formas de governo. Ele compara, sugestivamente, as leis humanas ao regime alimentar. Corpo relaxado – sociedade relapsa ou violenta – precisa de regime, leis mais fortes. Sociedade disciplinada, leis mais flexíveis. É o tratamento legislativo adequado ao corpo social enfermo ou saudável.

A clarividência de Agostinho faz com que ele trace nítida distinção entre a lei eterna e a lei positiva. O legislador humano não deve ter por missão copiar exatamente o conteúdo da lei eterna, ou seja, impor o mesmo que ela impõe e proibir tudo o que ela proíbe. A finalidade essencial do Parlamento dos homens é assegurar a paz e a ordem na sociedade, para que as pessoas possam realizar convenientemente o seu fim, seja temporal, seja eterno. Agostinho conciliou a imutabilidade da lei eterna e da lei natural com a mutabilidade da lei humana, expressa no Direito Positivo. Também limita o âmbito do jurídico‑positivo em face dos planos ético e jurídico‑natural, reduzindo‑o às relações que têm um alcance social mais relevante.

Nada obstante, é um pessimista antropológico. Acentua os efeitos do pecado original, corruptor da própria natureza. Perdida a sua integridade original, há necessidade de um papel coercitivo e repressivo do Direito Humano para impor disciplina à débil natureza corrompida dos homens.

5. PENSAMENTO POLÍTICO AGOSTINIANO

O pessimismo antropológico de Agostinho manifesta‑se também em seu pensamento político e social. Alguns modernos fizeram leitura errônea do pensamento agostiniano.

O. von Gierke e George Jellinek, por exemplo, dizem que os vínculos sociais e, sobretudo, o vínculo político são fruto do pecado e carecem de fundamento natural.

A. J. Carlyle e E. Troeltsch dizem que as instituições sociais e políticas são remédio contra o pecado, a fim de atenuar suas consequências.

É uma leitura equivocada. Agostinho está na linha de Aristóteles, dos estoicos e de Cícero. Assim como Platão, há uma tensão entre ideia e realidade, o que resta está evidenciado nos 22 livros do “De Civitate Dei”.

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6. FILOSOFIA SOCIAL

Parte do princípio aristotélico, estoico e ciceroniano da sociabilidade natural do homem. O dogma cristão da unidade da espécie humana confere a esse princípio o valor autêntico.

A sociabilidade natural dá lugar à constituição da família, instituída por Deus no Paraíso Terreal antes do pecado e conduz à cidade. Esta é mais complexa em sua finalidade, pois abarca multidão de seres racionais unidos pela comunidade dos objetos que amam. O mandato dado por Deus ao primeiro casal – “Crescei e multiplicai‑vos” – é prova inequívoca da vocação original do homem para a vida social.

Como toda sociedade, inclusive a de seres perfeitos, exige uma autoridade, são de caráter primário certas relações de subordinação. O pecado só pode significar, seja na família, seja na cidade, um fator de debilidade humana. A partir daí, o poder se torna coativo em lugar de espontaneamente acatado, o que ocorreria sem o pecado original. O poder deve ser exercido corretivamente, como forma de superar a queda ética do homem, expulso do Éden por não saber se comportar.

7. A CIDADE DE DEUS E A CIDADE DOS HOMENS

Na história da humanidade, a sociedade política sempre aparece inserida na luta irredutível que entre si sustentam a Cidade de Deus (Civitas Coelestis) e a Cidade Terrena, dos Homens ou (Civitas Diaboli).

São sociedades em sentido místico: formam‑nas os anjos bons e os homens santos de todos os tempos e os anjos maus e os homens perversos de todos os tempos. São seres racionais, unidos entre si por dois amores de sinal contrário: o amor próprio até ao desprezo de Deus e o amor de Deus até ao desprezo próprio.

São sociedades supratemporais, nasceram com a queda dos anjos rebeldes. Seu antagonismo durará até o dia do Juízo Final, mas ambas têm uma dimensão temporal e terrena, pois dividem entre si o gênero humano.

A Cidade dos Homens não se confunde com a sociedade política. Aqui convivem homens justos e homens perversos. A cidade terrena é uma, apesar da multiplicidade das sociedades políticas. A Cidade de Deus não é a Igreja, pois a pertença externa à Igreja não pressupõe necessariamente se pertence à Cidade de Deus. Pois “há filhos da Igreja ocultos entre os ímpios” e “falsos cristãos dentro da Igreja”.

8. A JUSTIÇA

Sem a justiça, os reinos não são mais que vastos latrocínios.

A justiça verdadeira só viceja no Cristianismo, mas existe a seu lado uma justiça menos plena, a justiça natural, que assegura um mínimo de moralidade.

Se a justiça natural falta, a cidade ou república não se distingue de uma quadrilha de malfeitores. Demasiadas vezes falta nos povos a justiça mínima sem a qual não faz sentido o conceito de cidade ou república.

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9. A REPÚBLICA CRISTÃ

O governante perfeito será o governante cristão. A imagem que dele esboçou Agostinho (“Civitas Dei”, V, 24) inspiraria inúmeros espelhos de príncipes até a época moderna. Carlos Magno tinha veneração por aquela imagem e com razão. J. Bryce afirmou que a teoria do Sacro Império Romano se baseou na Cidade de Deus.

10. A GUERRA JUSTA

É lícito o serviço das armas e da guerra, quando justa, ou seja, quando seu único fim é desfazer uma iniquidade.

A guerra só é legítima na medida exata em que for o meio único de fazer diante da injustiça entre os povos.

A guerra é manifestação do direito de castigar e pertencer à autoridade e só pode ser exercida contra inimigos exteriores. Se a necessidade legitima a guerra, também a ela impõe limites.

Só é permitido o que é estritamente exigível pela finalidade de restaurar o direito. Essa teoria integra‑se em uma concepção da vida internacional fundada na convivência pacífica de povos pequenos, sem outra ambição que não seja o gozo de uma “vizinhança concorde”. Haveria no mundo muitos reinos de gentes, tal como na cidade há um grande número de casas de cidadãos. Agostinho previu o pluralismo jurídico‑internacional, preferível a um império universal sob o domínio de um só soberano.

11. PROPRIEDADE

Os bens deste mundo, criados por Deus, não podem ser maus em si próprios. Só se tornam maus pelo uso que deles venha a fazer o homem. Os bens são meios, não fins. Meios ordenados ao aperfeiçoamento das criaturas. A propriedade qualifica‑se moralmente pelo espírito de quem tenha sido favorecido pela Providência. Daí o dever da esmola, que transforma a riqueza material em riqueza espiritual. A escravidão é consequência do pecado e deve ser superada pelo espírito de caridade. Também enaltece o trabalho nas diferentes atividades humanas, embora dentro de uma hierarquia. Agostinho repudia a usura e prestigia o casamento. Seus fins: perpetuação da espécie, união espiritual, fidelidade e ajuda mútua dos esposos.

12. TEXTOS DE SANTO AGOSTINHO

–O tempo diminui a dor

“O tempo não descansa, nem rola ociosamente pelos sentidos: pois produz na alma efeitos admiráveis. O tempo vinha e passava, dia após dia. Vindo e passando, inspirava‑me novas esperanças e novas recordações. Pouco a pouco, reconfortava‑me nos antigos prazeres, a que ia cedendo a minha dor.”13

13 SANTO AGOSTINHO. Confissões, Pensadores, v.VI, 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 79.

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–O que é o belo?

“Amamos nós alguma coisa que não seja o belo? Que é o belo, por conseguinte? Que é a beleza? Que é que nos atrai e afeiçoa aos objetos que amamos? Se não houvesse neles certo ornato e formosura, não nos atrairiam.”14

–Luta da alma em busca da verdade

“Pereça tudo isso e deixemos as coisas vãs e fúteis. Entreguemo‑nos unicamente à busca da verdade. A vida é miserável e a hora da morte, incerta. Se me surpreender de súbito, em que estado sairei deste mundo e onde aprenderei o que nesta vida negligenciei saber? Não terei antes de suportar os suplícios desta negligência? E se a morte me amputar e exterminar todas estas preocupações, tirando‑me os sentidos?”15

–O palácio da memória

“Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie. Aí está também escondido tudo o que pensamos, quer aumentando quer diminuindo ou até variando de qualquer modo os objetos que os sentidos atingiram. Enfim, jaz aí tudo o que se lhes entregou e depôs, se é que o esquecimento ainda o não absorveu e sepultou. Quando lá entro mando comparecer diante de mim todas as imagens que quero. Umas apresentam‑se imediatamente, outras fazem‑me esperar por mais tempo, até serem extraídas, por assim dizer, de certos receptáculos ainda mais recônditos. Outras irrompem aos turbilhões e, enquanto se pede e se procura uma outra, saltam para o meio, como que a dizerem: ‘Não seremos nós?’. Eu, então, com a mão do espírito, afasto‑as do rosto da memória, até que se desanuvie o que quero e do seu esconderijo a imagem apareça à vista. Outras imagens ocorrem‑me com facilidade e em série ordenada, à medida que as chamo. Então as precedentes cedem o lugar às seguintes, e, ao cedê‑lo, escondem‑se, para de novo avançarem quando eu quiser. É o que acontece, quando digo alguma coisa decorada.”16

SÃO TOMÁS DE AQUINO

Viveu entre 1225 e 1274, mas sua obra continua influente e decisiva para a filosofia universal. Deve‑se a ele haver compatibilizado a obra aristotélica e a dogmática cristã. Inaugura o retorno cristão à filosofia grega.

Tão importante sua contribuição para o pensamento que sua doutrina é chamada tomismo e invocada por todos os filósofos, independentemente de confissão religiosa ou agnosticismo.

14 SANTO AGOSTINHO, op.cit., idem, p. 82.15 SANTO AGOSTINHO, op.cit., idem, p. 120.16 SANTO AGOSTINHO, op.cit., idem, p. 200.

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O tomismo

O tomismo pode ser considerado como a doutrina filosófica mais influente dentro da Igreja Católica. Tomás de Aquino é mais ortodoxo, para certos teólogos, do que Agostinho. Para os não crentes, a história das doutrinas filosóficas no catolicismo pode ser explicada, em grande parte, pelo resultado da rivalidade entre as diferentes ordens religiosas. Enquanto Tomás se tornou representante do pensamento oficial dos dominicanos e, mais tarde, dos jesuítas, Agostinho inspirou o pensamento franciscano.

As principais obras de Tomás de Aquino

A “Suma Teológica”, sistematização do pensamento teológico cristão e a “Suma contra os Gentios”, destinada a evidenciar aos não cristãos a superioridade do cristianismo.

Ao comentar a “Ética a Nicômaco”, de Aristóteles, Aquino expõe a sua noção de moral e o faz como era uso à época: examina diversas questões morais e procura resolvê‑las à luz das Sagradas Escrituras, das obras de Aristóteles, Cícero e Santo Agostinho.

Racionalista

Dentre os pensadores cristãos, Tomás de Aquino é considerado o racionalista. Confere ênfase maior à razão do que Agostinho, mais centrado na graça divina. O pensamento agostiniano pressupõe uma escolha: pode‑se optar entre a vida cristã e o paganismo. Já Tomás ignora essa escolha, pois vive em uma sociedade que já é inteiramente cristã. Por isso é que ele se preocupa mais em encontrar uma fórmula de emancipar a filosofia da tutela da teologia.

Havia uma questão concreta que conduziu Aquino a se ocupar desse tema. A Sorbonne, em Paris – universidade na qual Tomás de Aquino ensinou – assistia a uma disputa entre as suas diferentes faculdades. Tomás de Aquino dedicou‑se a mostrar a possibilidade de emancipação da faculdade das Artes – Filosofia e Letras – da subordinação à faculdade de Teologia.

Para Agostinho, as virtudes teologais constituíam o fundamento das virtudes cardeais ou filosóficas. Para São Tomás, ao contrário, estas possuem existência própria e podem se manifestar até mesmo entre os pagãos.

Só que, para ele, essas virtudes cardeais ou filosóficas eram virtudes imperfeitas, no sentido de que elas não eram suficientes para caracterizar uma vida moral. Fácil enfatizar seus bons argumentos: um homem pervertido pode ter coragem. Aliás, os maus são – em regra – bastante combativos. Ousados na direção de causar o mal ao semelhante. Por isso é que não existe coerência entre as virtudes. Somente a fé pode tornar tais atributos em virtudes perfeitas e procurar uma vida moral coerente.

Influência de Aristóteles

A diferença essencial com Agostinho é que Aquino se abebera, sem hesitação e sem reservas, da filosofia grega. O pensamento helênico é considerado um vestíbulo para o pensamento cristão. Aquino

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se vale de toda a filosofia grega e confere primordial função à razão no domínio moral. Daí a facilidade com que a sua teoria também pode ser apropriada pelos não cristãos.

É tamanha a influência de Aristóteles sobre Tomás de Aquino que ele vai se utilizar da terminologia do estagirita. Utiliza‑se das mesmas frases, embora tentando explicá‑las à luz da fé. Para Aristóteles, Deus é a causa final de todo ser natural. Ponto de partida para Tomás de Aquino desenvolver sua teoria, mas transformando a entidade divina aristotélica em um Deus pessoal.

Assim como para Aristóteles, o tomismo prega que cada ser tende à realização de sua essência. A natureza humana se destina à perfeição e este propósito irrefreável será o objetivo de uma vida moral.

O bem moral será toda operação propiciadora ao homem de se atualizar de acordo com a norma de sua essência, que é a de um ser dotado de razão. Identidade exata entre a versão aristotélica e tomista.

Situa‑se o homem a meio caminho na escala dos seres. Abaixo dos anjos e acima dos animais. Vive a criatura da espécie na luta permanente entre rebaixar‑se até subordinação completa aos instintos e alcançar a contemplação, qualidade dos seres angelicais. Predestinado a se desligar da matéria e atingir sua essência em plenitude, o homem dispõe da razão para fazê‑lo pensar, escolher, abandonar o vício e perseguir a virtude. É o que Tomás de Aquino chama de “intelecto especulativo”17.

As paixões

Podem ser boas ou más. São boas se regidas pela razão. Ser piedoso ao extremo, por exemplo, pode ser algo saudável. Ao lado das virtudes naturais, estão as virtudes teologais.

Aquelas são as mesmas encontradas por Aristóteles. Para o cristão, porém, há um conjunto de virtudes que resultam da atitude da criatura diante do Criador. São também virtudes naturais e se acrescentam ao elenco estudado por Aristóteles.

Das relações homem/Deus resultam as virtudes da piedade, da humildade, da santidade, da pureza e da devoção.

Assim como os gregos, Tomás de Aquino reconhece que a humanidade tende espontaneamente para o bem. Diante da multiplicidade de bens, o homem pode hesitar. Qual o bem a ser priorizado? Há liberdade de escolha? De onde vem o sentimento de liberdade?

Ora, todos os homens tendem ao bem universal, mas cada homem só pode atingir esse bem universal a partir de bens particulares e específicos. Se todos estão de acordo com a suprema finalidade humana, podem não estar em relação aos meios, os bens particulares, aqueles que podem resultar de uma opção imediata e intermediária.

17 GILSON, E. Le Thomisme, introduction au système de Saint Thomas d’Aquin. Paris, Vrin,1923, p. 38.

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Assim é que Tomás de Aquino explica a liberdade humana. Cada bem específico não é senão um aspecto do bem geral, embora possa – na observação autônoma – ser considerado um bem imperfeito.

Ao lado da moral aristotélica, existem os comandos de Deus, aos quais devemos obediência. Com isso, a moral tende a tornar‑se formalista, pois ela se traduz em um comando a ser observado, sem perquirir das consequências de sua inobservância. Surge um conceito tomista de verdade moral. Verdade moral que se identifica com o bem. A partir daí, não interessa mais a pluralidade de regras e elas não se situam no mesmo plano. Todas as concepções de conduta, que não a concepção cristã, devem ser combatidas, pois a noção de bem e de verdade se identificam.

Como reconhecer a verdade moral?

Para Tomás de Aquino, a verdade moral, outorgada por Deus aos homens, é uma espécie de luz natural que permite a cada criatura conhecer os princípios fundamentais da ação. Tomás a chama sindérese (ou Syndérèse). A razão humana, que é nossa participação na razão eterna, fornece‑nos os princípios fundamentais tanto no domínio teórico quanto no domínio da ação.

Sabemos, graças a ela, que é preciso procurar o bem e evitar o mal. Que temos obrigações naturais em relação à família, que devemos ajudar os menos favorecidos, proteger os fracos, livrar o semelhante dos perigos.

A riqueza do pensamento tomista é que não existe incompatibilidade entre conciliar tal luz natural com o pluralismo de obrigações resultantes da vida em sociedade. Os princípios fornecidos pela sindérese são gerais e podem ser adaptados a cada situação. Não é impossível conciliar os princípios com os comandos divinos, os quais devem ser interpretados igualmente em função das tradições da Igreja. Problema que não é individual, mas tarefa dos filósofos e teólogos, que devem resolvê‑los para toda a comunidade cristã. Os moralistas cristãos têm o dever permanente de adaptar os princípios gerais e os comandos de Deus à variedade das situações concretas da vida humana em sociedade.

O direito natural

A maior contribuição tomista para o pensamento jurídico do mundo moderno foi a convincente elaboração do Direito Natural. Surge uma nova teoria do Direito Natural. As concepções precedentes são as de Sócrates, para quem o Direito Positivo se confundia com o Direito Natural. Sócrates afirmava que as leis da cidade são sagradas. Também havia a formulação dos estoicos a admitirem a existência de uma moral supridora do Direito Positivo.

A concepção cristã será a da existência de regras impostas por Deus no coração dos homens. A lei eterna é abrangente e prima pela completude. Parte dela foi revelada à humanidade pelo próprio Deus ou pela Igreja. É a chamada lei divina. Outra parte está na consciência da criatura, criada à imagem e semelhança de Deus, com partícula de um DNA do criador. Esse direito intuitivo, que o homem vai procurar em sua consciência, embora ninguém tenha ensinado a ele – não matar, não se apropriar de coisas alheias, alimentar o faminto, socorrer quem está em perigo, ajudar a criança, o enfermo e o idoso – é justamente o Direito Natural.

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Muito abaixo dessa tríplice categoria – lei eterna, lei divina e lei natural – vem a lei positiva que não pode se afastar dos princípios das três espécies anteriores, por isso é que não há obrigação alguma para o ser humano em obedecer ao Direito Positivo, quando ele se opõe às leis eternas, divinas ou naturais.

O legislador é livre de adotar as disposições que ele queira, nos domínios em que a lei divina não se pronunciou. A lei divina não se preocuparia, por exemplo, com os sinais de trânsito[2]. Mas onde existam regras divinas, o legislador deve se conformar e reproduzir a norma outorgada. Se ele não o fizer, é legítima a recusa à observância.

Tomás de Aquino, com isso, fortalece a tese da resistência civil à lei injusta.

O direito de resistência

O pensamento tomista é a expressão mais aprimorada da escolástica e da sabedoria cristã. O Doutor Angélico não se dedicou a elaborar uma teoria especial sobre o direito político de

resistência. Todavia, apesar de esparsamente, legou ensinamentos sobre a tirania e a resistência.

Nenhuma novidade na concepção de Tomás de Aquino. “Se mais vale obedecer a Deus que aos homens, como ensinaram os apóstolos, nenhum governante tem o direito de se fazer obedecer quando ordena qualquer coisa contra a lei de Deus. Se assim é nesse domínio, entretanto, sucederá o mesmo no terreno puramente humano? Ou não haverá limites para a obediência dos súditos nesse campo?”18.

A resposta já fora fornecida pelas Sagradas Escrituras. A voz de Ezequiel já condenara os governantes que cuidam de seu próprio benefício, em detrimento do bem comum: “Ai dos Pastores que se apascentavam a si mesmos, isto é, que buscavam seus próprios interesses!”.

Tomás de Aquino apenas ratificou aquilo que a doutrina cristã já consagrara. “Segundo o

Angélico, três elementos há de considerar em qualquer poder:

1) A essência mesma do poder, ou seja, a relação entre o superior e o inferior.

2) A aquisição desse poder.

3) O uso.

De modo absoluto, todo poder provém de Deus, mas relativamente nem sempre:

18 Esse exemplo, encontradiço em vários doutrinadores, pode não ser muito adequado. As leis de trânsito se destinam a uma disciplina necessária, fundamental para o bom convívio. Se não houver normas disciplinadoras do tráfego, haverá caos, confusão e morte. Não é isso o que a lei eterna pretende em relação à espécie humana. Por isso, até mesmo normas aparentemente triviais estariam pressupostas na vontade de Deus em relação à primícia dentre as suas criaturas.

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1) Se o modo de aquisição não foi justo.

2) Se o uso se transformou em abuso. Dessa forma, dois poderes injustos podem existir: o mal adquirido e o abusivo”19.

O governo tirânico, direcionado a servir exclusivamente ao próprio tirano, é essencialmente injusto. Mudar esse governo não é sedição. Sedição é, na verdade, aquela do tirano que ou adquiriu mal o poder, ou dele – embora bem adquirido – veio a abusar.

A reação do povo contra essa tirania pode chegar até mesmo à guerra justa. Situação que poderia ocorrer sob tríplice condição:

1. Autoridade do príncipe (que não o tirano).

2. Uma causa justa.

3. A reta intenção. Luta admissível para punir um erro, para reparar uma injustiça, para alcançar o bem comum e, paradoxalmente, para obter a paz20.

Tudo isso é consequência do primado do Direito Natural sobre o Direito Positivo, por isso é que a luta pela laicização do Estado começava por combater a tese do Direito Natural. Todavia, a humanidade já sentiu, com o regime nazista, os perigos que o abandono do Direito Natural e o reconhecimento exclusivo do Direito Positivo representam.

Textos de Santo Tomás de Aquino

Tríplice divisão da verdade e do verdadeiro

“Conforme quando expusemos, existe uma tríplice divisão da verdade e do verdadeiro.”

A primeira tem como critério aquilo que antecede a verdade e no qual se fundamenta o verdadeiro. É assim que Agostinho define: “O verdadeiro é aquilo que é” e Avicena: “A verdade de cada coisa é aquela propriedade do seu ser que foi estabelecida para ela”. Outros há que assim definem: “O verdadeiro é a indivisão do ente e daquilo que é”.

A segunda definição baseia‑se naquilo que constitui formalmente o conceito de verdadeiro. Assim diz Isaque: “A verdade consiste na assemelhação da coisa com a inteligência”, enquanto que Anselmo oferece a seguinte definição: “A verdade consiste na retidão, perceptível exclusivamente ao espírito”. Com efeito, é desta retidão que se fala no sentido de uma certa assemelhação, conforme diz o filósofo, que dizemos na definição do verdadeiro, que é aquilo que é, ou que não é aquilo que não é.

19 PAUPÉRIO, A. M. O Direito Político de Resistência. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 67.20 PAUPÉRIO, A. M. op.cit., idem, ibidem, a citar SANTO TOMÁS. Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, II,

distinct. XLV, q.IV, a.2.

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A terceira definição de verdade e do verdadeiro baseia‑se no efeito que segue. Nesta linha Hilário afirma: “O verdadeiro é o ente que se revela e se explica”. E Agostinho: “A verdade é aquilo através do qual se revela aquilo que é”. Ou então, na mesma obra: “A verdade é o critério pelo qual julgamos o que é terrestre”21.

O estudo da sabedoria

“Dentre todos os estudos aos quais se dedicam os homens, o estudo da sabedoria supera a todos em perfeição, em sublimidade, em utilidade e em alegria que proporciona. Supera em perfeição, pois, quanto mais o homem se dedica à sabedoria, tanto mais participa da verdadeira felicidade. Com efeito, o Sábio afirma: ‘Feliz o homem que se aplicar ao estudo da sabedoria’22. Em sublimidade, pois é sobretudo em virtude do estudo da sabedoria que o homem se aproxima da semelhança com Deus, o qual ‘tudo fez com sabedoria’23 ; e, uma vez que a semelhança com alguém causa o amor, o estudo da sabedoria une de maneira especial a Deus na amizade, o que faz com que o livro da Sabedoria diga que a sabedoria constitui para todos os homens ‘um tesouro inesgotável, um tesouro tal, que os que dele hauriram participaram da amizade de Deus’24”.25

A existência de Deus

“Quanto à unidade da essência divina, a primeira coisa a crer é que Deus existe, o que, aliás, é óbvio à própria razão. Efetivamente, observamos que tudo quanto se move é movido por outros. Assim, os seres inferiores são movidos pelos superiores, da mesma forma como os elementos são movidos pelos corpos celestes. Nos elementos terrestres, por sua vez, o que é mais forte move o que é mais fraco. Também nos corpos celestes, os inferiores são movidos pelos superiores. Ora, é impossível que este processo se prolongue até ao infinito. Com efeito, se tudo aquilo que é movido por outro é como que um instrumento da primeira causa movente, caso não existisse uma primeira causa movente, todas as causas motoras seriam instrumentos. Se procedermos até ao infinito na sucessão das causas motoras, não existe uma primeira causa motora. Nesta hipótese, todos os infinitos que movem e que são movidos serão instrumentos. Ora, até mesmo os não letrados percebem que seria irrisório afirmar que os instrumentos não são movidos por algum agente principal. Equivaleria isto aproximadamente a afirmar a possibilidade de fazer uma caixa ou uma cama com a serra e o machado, porém sem a intervenção de um carpinteiro.”26

21 PAUPÉRIO, A. M. op.cit., idem, p. 72, a citar M. DE SOLAGES. La Theologie de la Guerre Juste. Paris, 1946, c.I, p. 9‑26.22 AQUINO, T. de. Questões discutidas sobre a verdade. Abril, Pensadores, vol.VIII, 1. ed. São Paulo, 1973, p. 27. Nota:

quando Tomás de Aquino faz referência ao “Filósofo”, está falando de ARISTÓTELES.23 Livro do Eclesiástico, capítulo 14, versículo 22. [8] Salmo 103, versículo 24.24 Livro da Sabedoria, capítulo 7, versículo 14.25 AQUINO, T. de. Súmula Contra os Gentios, capítulo segundo, op.cit., idem, p.64. 26 AQUINO, T. de. Compêndio de Teologia. Cap. Terceiro, op.cit., idem, p. 77.

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FILOSOFIA

JUSNATURALISMO27

Iluminismo e racionalismo: ruptura com a teocracia

A filosofia escolástica exaltava a existência de uma lei divina. Dentro dessa concepção, tal lei não possuiria nenhuma espécie de erro ou falha, em consequência de sua natureza transcendente; dessa forma, além de perfeita, seria imutável.

Essa concepção surge, de modo cristalino, nas concepções de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. A Cidade de Deus é o lugar regido pela lei divina que contrasta com a cidade dos homens, regida pela lei humana. A tarefa de incorporar a lei divina no âmbito da lei humana é o que deve ser realizado pelo Direito. Ressalte‑se que se trata de uma tarefa dificílima. Na concepção tomista há uma lei eterna, uma lei natural e uma lei humana. A lei eterna regula toda a ordem cósmica (céu, estrelas, constelações etc.) e a lei natural é decorrente dessa lei eterna. Fica claro nas duas concepções, sinteticamente resenhadas anteriormente, que a lei superior (a divina, para Santo Agostinho) e a eterna, para Santo Tomás de Aquino, emana de uma força sobre‑humana, qual seja: Deus.

Para colocar um novo centro nessa concepção é que surge o Direito Natural. O Jusnaturalismo moderno elege a reta razão como guia das ações humanas. Grócio assim define o Direito Natural:

“O mandamento da razão que indica a lealdade moral ou a necessidade moral inerente a uma ação qualquer mediante o acordo ou o desacordo desta com a natureza racional.”28

Essa mudança de centro, verdadeira revolução coperniana na esfera do Direito, indica um novo caminho a ser percorrido pela Ciência Jurídica, que deixa de estar ligada à concepção místico–religiosa, para buscar ser fundamento último na razão.

O Direito Natural divide‑se em duas fases. A primeira fase, a antiga, tem início na Cidade‑estado grega e usa a natureza como fonte da lei que “tem imensa força em toda parte e independe da diversidade das opiniões”.

Grócio inaugura uma nova concepção do Direito Natural. O princípio último de todas as coisas não seria mais Deus, nem a natureza, mas a razão. Estava criada a Escola Clássica do Direito Natural, que teve diversos representantes, entre eles, serão objeto de nosso estudo: Hugo Grócio, Samuel Pufendorf e John Locke.

Os diferentes autores da Escola Clássica do Direito Natural não necessariamente concordavam entre si. Autores como Henrique e Samuel Coccejo, Leibiniz e Joan Cristian Von Wolf adotaram uma posição antirracionalista afirmando, categoricamente, que Deus é a fonte última do Direito Natural, o que contrariava a famosa assertiva de Grócio: “O Direito Natural existiria mesmo que Deus não existisse, ou ainda que Deus não cuidasse das coisas humanas.”29

27 Texto adaptado da obra Curso de Filosofia do Direito, de autoria de José Eduardo Bittar e Guilherme A. de Almeida, 6. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008.

28 Apud Baptista, Direito e comércio internacional, 1994, p. 368.29 Ibidem, p. 367.

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Unidade I

Hugo Grócio

Nascido na Holanda, na cidade de Delf, no ano de 1583, filho de pai protestante e mãe católica. Seus primeiros trabalhos intelectuais versaram sobre: filologia, poesia, histórica e teologia. A partir de 1607, ano em que inicia o exercício da advocacia na cidade da Haia (sede do governo holandês), passa a interessar‑se pelas questões do Direito. Sua principal obra, na qual expõe sua concepção do Direito Natural, é De Jure Belli ac Pacis, publicada no ano de 1625.

A doutrina do Direito Natural de Hugo Grócio reflete o desejo de autonomia, que se manifesta, de modo inicial, em relação à Teocracia.

Não é mais Deus ou a ordem divina o substrato do Direito, mas a natureza humana e a natureza das coisas. Não há possibilidade de uma sanção religiosa. O direito natural não mudaria seus ditames na hipótese da inexistência de Deus, nem poderia ser modificado por ele.

“Portanto, não há nada de arbitrário no direito natural, como há arbitrariedade na aritmética. Os ditames da reta razão são o que a natureza humana das coisas ordenam.”

O método dedutivo, influência do raciocínio matemático e geométrico, é o que possibilita à reta razão alcançar as regras invariáveis da natureza humana.

Essa ideia, cara à Escola Clássica do Direito Natural, faz dele um Direito imutável, perene às transformações históricas e não suscetível aos diversos costumes e tradições dos diferentes povos. Essa divisão difere radicalmente da de Miguel Reale, que advoga a existência não de um direito natural imutável, mas problemático e conjetural, que vai acolhendo diversos valores no percurso da história:

De tais paradigmas axiológicos resultam determinadas normas que são consideradas ideias diretoras universais da conduta ética, costumeira e jurídica. A essas normas, que nos permitem compreender a natureza e os limites do direito positivo, é que denomino Direito Natural, de caráter problemático‑conjetural.”

Conclusões

O Direito Natural surge pela primeira vez na história do pensamento com os gregos. Dessa feita, sua grande contribuição é mostrar a ligação do Direito com as forças e as leis da natureza. Na segunda oportunidade que vem à tona, no século XVII, o Direito Natural aparece como reação racionalista à situação teocêntrica na qual o Direito fora colocado durante o medievo.

Deus deixa de ser visto como emanador das normas jurídicas, ou como última justificação para a existência delas, e a natureza passa a ocupar esse lugar. Trata‑se da acentuada passagem do pensamento teocêntrico ao antropocêntrico. Ora, com um detalhe: a natureza não dá aos homens esse entendimento; é ele mesmo, por meio de uso da razão, que apreende esse conhecimento e o coloca em prática na sociedade.

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FILOSOFIA

Esse novo pensamento prepara as bases intelectuais da Revolução Francesa (1789), que rompe, de modo definitivo e prático, com a teocracia e afirma, categoricamente, os direitos naturais. Rousseau, o próximo pensador a ser analisado, aprofunda e explicita a ideia do novo consenso realizado por meio dos contratos.