filosofia cristã - santo agostinho - o mestre do ocidente

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CAPITULO

II

SANTO A G O S T I N H O , O MESTRE D O OCIDENTE

Na pessoa de Agostinho a filosofia patrstica e, qui, a filosofia crist como tal, atinge o seu apogeu. E' certo que Agostinho no pode ser contado entre os mestres da sntese. Dir-se-ia que o seu espirito, sempre vivo e pujante, empenhado em concitar o homem a decises ticas e teorticas sempre novas, no comporta sequer a idia de um sistema. Seja como for, a histria no-Io apresenta como a figura que conjugando, da maneira mais feliz, o ardor pnico ao esprito helnico e vontade romana iria ser o pioneiro do pensamento cristo, o preceptor dos povos e o orientador dos sculos. De sua plenitude iro haurir as geraes de todo um milnio, sem jamais conseguir esgot-la. Encerrara-se definitivamente a era das perseguies. Todavia, s lutas externas seguem-se, e no menos rduas, as lutas internas. De um lado havia o perigo ariano a reclamar medidas enrgicas; de outro lado, o maniquesmo com sua metafsica essencialmente anticrist e pag, continuava ameaando a prpria medula da Igreja. E j se anunciavam as disputas sobre a graa. E' neste ambiente de renhidas lutas espirituais que se desenrola a vida do grande Doutor da Igreja. E sobre este fundo que devemos interpretar-lhe a obra, ainda que o seu contedo transcenda de muito a situao histrica que a viu nascer.Vida. Em nossa exposio da doutrina de Agostinho, teremos de fazer referncias freqentes sua vida e carreira; por isso no mencionaremos, por ora, seno os dados biogrficos mais salientes. As fontes principais de que iremos servir-nos so as "Confessiones", contendo a autobiografia de Agostinho, as "Retractationes" e uma biografia composta por seu amigo Possdio. Nasceu Agostinho a 13 de novembro de 354 em Tagasta, hoje Souk-Aras, perto de Hipona, na provncia romana da Numdia. Seu pai era pago, mas converteuse antes de morrer. Sua me santa Mnica. Estudou, sucessivamente, em Tagasta, Madaura e Cartago. Lecionou retrica, primeiro em Cartago, depois em Roma, onde se desgostou com a conduta grosseira dos estudantes e, finalmente, em Milo. Ali, o jovem retor comeou a freqentar os sermes de Ambrsio, movido, inicialmente, por um interesse puramente literrio. A breve trecho, porm, sentiu-se tocado pelas palavras do bispo, e depois de muitas lutas interiores fez-se batizar (Sbado Santo de 387). Pouco mais tarde deixou Milo, para retornar frica. A meio caminho, na cidade de stia, faleceulhe a me. Agostinho demorou-se ainda cerca de um ano em Roma, e n o outono de 388 est de volta em Tagasta, sua cidade natal. Pouco depois fundou uma espcie de mosteiro em sua casa paterna. Mas no tardou a ver-se

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S. AGOSTINHO, MESTRE DO

OCIDENTE

arrancado ao seu retiro, a instncias de Valrio, bispo de Hipona, que o ordenou sacerdote e lhe confiou a misso de pregador. Alguns anos depois Valrio f-lo seu coadjutor e sucessor. Agostinho contava, ento, 42 anos de idade. Faleceu a 28 de agosto de 430, durante o assdio da cidade episcopal pelos vndalos. Prendado de carter extraordinariamente simptico, Agostinho exerceu u m a atrao irresistvel sobre os contemporneos. Sua m a n s i d o e sua capacidade profundamente h u m a n a de compreenso moderavam-lhe a passionalidade e exuberncia pnicas. Conhecedor dos abismos d o c o r a o humano, contemplou-lhe tambm as m a i s sublimes alturas. Seu s m b o l o um corao em chamas e o olhar v o l t a d o s alturas. Obras e edies. Arrolaremos, a seguir, os escritos mais importantes sob o n g u l o de vista filosfico. 1. Confessiones, em 13 livros. Redigidas em 399. A primeira parte nos descreve a vida de Agostinho at pouco antes de sua converso; a segunda parte (livro 10) analisa o seu estado de alma a o tempo da redao; a terceira parte (livros 11-13) contm um hino de louvor a Deus, entremeado de reflexes profundas sobre a criao, inspiradas n o primeiro captulo do Gnesis. E m consonncia com o d u p l o sentido da palavra "confessio", a obra resume-se num reconhecimento sincero das prprias fraquezas humanas (aspecto autobiogrfico) e n u m a exaltao entusistica d a bondade e da providncia divinas (aspecto teolgico, freqentemente descurado). Cf. Conf. X , 1 ss. e Retract. 11,32; 137: "Confessionum mearum libri tredecim, et de malis et de bonis meis Deum l a u d a n t iustum et bonum, et in eum excitant intellectum et affectum". M L 32,659-868. C S E L 30, Bibl. Teubneriana 1106. Citaremos a edio C S E L por livros, captulos e p a r g r a f o s ; os nmeros subseqentes ao ponto e vrgula indicam a pgina (e a l i n h a ) . 2. Retractationes, em dois livros. D a t a da redao: entre 426 e 427. Contm uma reviso critica das suas obras, bem como uma srie de correes e de indicaes valiosas sobre a composio dos diversos escritos. E' o mais belo monumento sua grandeza de alma. Agostinho enumera 92 obras, num total de 232 livros. M L 32,584-665. C S E L 36; citaremos esta ltima edio. 3. Contra Acadmicos, em trs livros. Escritos em 386, contm uma refutao exaustiva do ceticismo. N o primeiro livro o autor examina o conceito de sabedoria; no s e g u n d o expe a doutrina dos acadmicos, e no terceiro oferece uma refutao da mesma. M L 32,905-958. 4. De beata vita. O d i l o g o reproduzido neste opsculo teve lugar no aniversrio natalcio de Agostinho (12 de novembro), enquanto trabalhava n o " C o n t r a Acadmicos". Principia com uma descrio magistral das trs classes de homens que, ao c a b o de penosa viagem pelo m a r d a vida, se vem ameaados pelo escolho d a soberba, n o momento preciso em que a embarcao chega ao porto ansiosamente suspirado. Agostinho mostra, a seguir, que a verdadeira felicidade n o se encontra seno na verdade divina e na u n i o com Deus. M L 32,959-976. C S E L 63,89-116. F l o P a t r 27. A edio citada a CSEL. 5. De ordine, em dois livros. Tambm esta obra deve sua origem a um d i l o g o realizado na poca em que Agostinho ainda trabalhava no " C o n t r a Acadmicos" (386). D i g n a de m e n o a participao de Mnica neste dilogo. Trata do problema d a origem do mal e do carter universal da Providncia divina. M L 32,976-1020. CSEL 63,119-185; as nossas citaes s o tiradas desta edio. 6. Soliloquia, espcie de monlogo, em dois livros. Foi escrito em 386. A p s uma fervorosa prece inicial, Agostinho aborda o problema do conhecimento, das qualidades d o s b i o e d a verdade, que, sendo imortal, reclama um substrato tambm imortal, a alma. M L 32,869-904.

OBRAS E EDIES

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7. De immortalitate animae, obra redigida em Milo p a r a seu uso pessoal. E' u m a continuao dos Solilquios. Foi publicada revelia d o autor. Agostinho frisa o carter inacabado d o livro, que em parte se lhe afigurava incompreensvel a ele mesmo. M L 32,1021-1034. 8. De quantitate animae. Escrito em Roma, no ano 388. Discorre sobre a origem, a natureza e a imaterialidade da alma e sua relao a o corpo. O tema principal, porm, a imaterialidade. ML 32, 1035-1080. 9. De Musica, em seis livros. Escrito na frica, antes de 391. Agostinho planejara este escrito como parte de u m a obra muito mais extensa, os "Disciplinarum libri", uma espcie de enciclopdia das artes liberais. N o mesmo intuito Agostinho redigira, ainda em M i l o , o " D e G r a m m a t i c a " (387), extraviado desde 426; apenas alguns fragmentos chegaram at ns. O s seis livros sobre a msica so uma introduo tcnica do ritmo e d o verso. N o sexto livro o autor descreve o m o d o como o ritmo e o n m e r o nos conduzem ao Eterno. M L 32,1081-1194. 10. De Magistro, composto em 389. E ' um dilogo com Adeodato (que contava ento 16 anos de idade) sobre a funo da linguagem e sobre Cristo, o verdadeiro Mestre. M L 32,1193-1222. 11. De vera religione, escrito entre 389 e 390. Visa provar, contra os maniqueus, q u e o cristianismo a nica religio verdrtieira. , a nosso ver, a melhor introduo filosofia de Agostinho. M L 34,121-172. 12. De libero arbtrio, em trs livros. Iniciado em 388, em R o m a , s foi concludo na frica, em 395. Versa sobre a origem do mal, a liberdade e a razo p o r que Deus nos dotou de uma vontade livre, embora previsse o abuso q u e dela faramos. M L 32,1231-1310. 13. De Trinitate, em 15 livros. Redigido de 399 a 419. E ' sua obra mestra em matria dogmtica. Os primeiros sete livros explanam a doutrina d a Trindade com base na Sagrada Escritura, solucionando, ao mesmo tempo, as dificuldades decorrentes da revelao e da razo. Os oito livros restantes procuram penetrar mais a fundo n o mistrio, merc de analogias e imagens emprestadas, sobretudo, da psicologia. A obra uma fonte preciosa para a psicologia agostiniana. M L 42,819-1098. 14. De civitate Dei, em 22 livros. D a t a de redao: 413-426. O ensejo externo para a composio desta obra foi a tomada de R o m a por Alarico, em 410. O s dez primeiros livros contm u m a grandiosa apologia do cristianismo contra as acusaes dos gentios, que culpavam os cristos pela runa de R o m a e do Imprio. A parte restante espraia-se num a m p l o tratado de teologia da histria. M L 41. C S E L 40,1 e 2, Bibl. Teubtieriana 1104/05. Citaremos a edio CSEL. A o lado destas, h muitas outras obras importantes para a filosofia de Agostinho, em particular os escritos contra os maniqueus e os comentrios escritursticos, entre os quais se destacam as trs exposies do Gnesis. A segunda destas intitula-se " D e Genesi ad litteram imperfectus liber" e a terceira, " D e Genesi ad litteram", embora trate apenas dos trs primeiros captulos de Gnesis, em 12 livros. D e igual importncia so as respostas a uma srie de questes, coligidas no " D e diversis quaestionibus octoginta tribus". Os livros " D e Genesi ad litteram" e " D e Genesi ad litteram imperfectus liber" sero citados segundo a edio C S E L 28 ( I ) ; os demais escritos, bem como as cartas, de acordo com a edio M L . Tradues. Confisses, trad. de J. Oliveira Santos, S.J. e A. Ambrsio de P i n a , S.J., 5* edio, Porto 1955. A s Confisses, trad. de Frederico Ozanam Pessoa de Barros, Editora das Amricas, S. P a u l o 1961. Contra acadmicos, traduo e prefcio de Vieira de Almeida, Biblioteca Filosfica, Coimbra. A Cidade de Deus, trad. de Oscar Paes Leme, 3 vols., Editora das Amricas, So Paulo 1961.

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Antes de iniciarmos a exposio da doutrina de Agostinho, convm dar uma idia do mtodo que iremos adotar. E' de praxe procederse a uma coletnea das vrias doutrinas do Doutor Hiponense, para reuni-las, segundo esquema preestabelecido, numa espcie de "sistem a " de filosofia agostiniana. Tal procedimento oferece vantagens inegveis: permite uma rpida orientao quanto s posies do mestre em face de certos problemas. Por outro lado, porm, este m o d o de proceder acarreta grave inconveniente: o resultado uma espcie de manual da filosofia agostiniana, manual que o prprio Agostinho jamais redigiu e ao qual provavelmente se negaria a apor sua assinatura. E' impossvel comprimir o pensamento de Agostinho num molde preconcebido sem arriscar-se a perder o que h nele de melhor e de mais caracterstico. S nos resta pois um caminho para expor-Ihe mais ou menos fielmente a doutrina: o de nos deixarmos conduzir por ele prprio, e acompanharmos com docilidade o ritmo natural do seu pensamento. E este no evolui em linha reta, seno que gira constantemente em torno de um centro nico, que Deus.

A. A emancipao filosfica de Agostinho. Todo o pensamento agostiniano, repetimos, gravita em torno de Deus. Para bem compreendermos o conceito agostiniano de Deus, teremos de examinar, pois, os antecedentes deste conceito na prpria vida do nosso autor.

1. A vivncia filosfica de AgostinhoFoi de sua virtuosa me que Agostinho recebeu as primeiras noes acerca de Deus. Entretanto, e este ponto de capita! importncia p a r a a compreenso de sua evoluo espiritual o jovem Agostinho foi educado na mais crassa ignorncia do cristianismo. Se bem que Mnica fosse indubitavelmente uma crist exemplar e mulher prudente e enrgica, sua f o r m a o teolgica era quase nula. A instruo religiosa de Agostinho, segundo o seu prprio testemunho, limitou-se ao seguinte: " O u v i r a falar, ainda criana, da vida eterna, que nos prometida, graas humildade do vosso Filho e Senhor nosso, descido at nossa soberba. Fui marcado pelo sinal d a c r u z " . 1 Donde se pode concluir que Agostinho fora catecmeno. E m b o r a tivesse uma vaga idia de Deus, foi s muito mais tarde que veio a conhecer o D e u s do cristianismo, atravs da leitura das epstolas de So Paulo. * A precria instruo recebida de Mnica no se revelou suficiente p a r a neutralizar as influncias da educao pag que lhe foi ministrada na escola de Tagasta e (dos onze aos dezesseis anos) em Madaura. Alcanada a idade de 16 anos, retornou casa paterna, onde passou um ano na ociosidade, enquanto o pai providenciava os meios necessrios para mand-lo a Cartago. Por esse tempo comeou Agostinho a entregar-se a toda a sorte de excessos: "Excesserunt caput meum vepres libidinum". *1 Conl. I , I I , 17; 15, 17. Ibid. V I I , 21, 27; 166. lbld. II, 3, 6; 33, 6.

SUA VIVNCIA FILOSFICA

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N o ano seguinte (371) foi a Cartago p a r a cursar retrica. Precipitou-se desenfreadamente na vida devassa da metrpole.' Afeioou-se apaixonadamente ao teatro. E no tardou em associar-se quela mulher que iria ser me d e seu filho Adeodato. Seus conhecimentos d o cristianismo eram, ainda, m u i t o neggiveis; no admira, pois, que sua fora mora! fosse declinando progressivamente. Apesar de tudo, freqentava de vez em q u a n d o a Igreja, mas sem manifestar grande interesse pelo culto.* E m 373, no curso do programa acadmico, travou conhecimento com o dilogo "Hortnsio", hoje perdido, de Ccero, o qual contm uma exortao sabedoria e ao estudo da filosofia. Esta leitura teve o efeito de evidenciar os traos mais nobres do carter de Agostinho que, a despeito da profundeza de sua queda, jamais deixara de demandar s coisas do alto. Entregou-se com ardor leitura daquele tratado, que lhe proporcionou uma concepo radicalmente nova da vida, encaminhando-o p a r a o cultivo da sabedoria. N u m a palavra, Agostinho despertou para a vida filosfica. Verificou, com especial satisfao, que Ccero n o recomendava nenhuma escola filosfica em particular, mas sim a filosofia como tal, e a busca da sabedoria em si mesma. Todavia no deixou de sentir a ausncia do nome de Cristo, que "bebera com o leite materno o meu terno corao e do qual conservava o mais alto apreo"." Compreende-se, em vista disso, que determinasse buscar a sabedoria n a doutrina de Cristo. Dedicou-se, neste intuito, ao estudo da Escritura.' Este primeiro contacto com a Bblia, porm, revelou-se pouco menos que catastrfico para o jovem professor de retrica. O estilo e a linguagem dos livros sagrados pareceram-lhe extremamente ordinrios e toscos; no chegavam a corresponder ao ideal e s idias ciceronianas. Agostinho sentiu-se desorientado: saira em busca da sabedoria a conselho de Ccero, mas no a encontrara na Escritura; desejava ser cristo, mas desagradava-lhe a forma externa d o cristianismo. Neste estado, e enquanto o orgulho lhe entravava o acesso a u m a compreenso mais profunda do cristianismo, tomou conhecimento da seita maniqueista: "Itaque incidi in homines superbe d e l i r a n t e s . . . " . 1 Aderiu, pois, ao racionalismo gentio-cristo dos maniqueus, que menosprezavam os simples fiis e prometiam aos seus adeptos um saber de ordem superior, bem como a prova cabal da verdade: "et dicebant, 'veritas et ven t a s ' , et multum dicebant eam m i h i . . . " . * E foi precisamente a magia desta palavra "verdade" que o seduziu. Ademais, os maniqueus lhe pareciam ser cristos verdadeiramente esclarecidos e desembaraados das fbulas ridculas que circulavam entre o povo simples. E assim sucedeu que o jovem Agostinho se associasse seita por espao de nove anos, embora na qualidade de simples "ouvinte", e sem tornar-se um membro plenamente qualificado. O que mais o impressionava no era o sistema fantstico da seita, e sim a atitude negativa com que os maniqueus rejeitavam e condenavam os dogmas c a t l i c o s . "

O espirito racionalista de Agostinho sentia-se mais vontade entre os maniqueus do que entre os cristos, devido ao carter acentuadamente materialista da metafsica dessa seita, e conseqente afinidade com suas prprias concepes acerca de Deus e da alma. Segundo a doutrina de Mans, Deus luz, vale dizer: um ente corpreo. As almas humanas so meras partculas desta luz divina, des Tbld. III, 1, I ; 43 5. 5 Ibid. III, 3, 5; 47, 9 s Ibid. III, 4, 8; 49, 22 s. 7 Ibid. III, 5, 9; 50. Ibid. III, 6, 10; 50, 15. Ihid.; 50. 20 s. De utllitate credendi I, 2

ML 42, 08.

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terradas para os corpos visveis. Este materialismo foi a fonte principal dos erros de Agostinho neste perodo de sua v i d a : "et quoniam cum D e o meo cogitare vellem, cogitare nisi moles corporum non poteram, neque enim videbatur mihi esse quidquam quod tale non esset, ea maxima et prope sola causa erat inevitabilis erroris m e i " . " A raiz mais profunda de todos os seus erros, porm, era o seu prprio orgulho. Este o levara a inverter a ordem natural, pondo toda sua confiana em si mesmo e preferindo o saber f, ao invs de primeiro deixar-se orientar humildemente pela autoridade. Tendo-se abalanado a buscar a verdade sem guia seguro, n o era de admirar que, uma vez desiludido do maniquesmo, o jovem racionalista viesse ter ao ceticismo. Tal foi a primeira etapa do seu desenvolvimento, e esta tambm embora em sentido inverso a sua doutrina, que outra coisa no , no fundo, seno u m a interpretao de sua prpria experincia filosfica.

2. Sua emancipao A emancipao espiritual de Agostinho deu-se sob a ao decisiva dos seus contactos com o neoplatonismo e com Santo Ambrsio.

1. Renncia

ao

racionalismo.

S a n t o Ambrsio foi um dos primeiros exegetas ocidentais a fazer uso da interpretao alegrica, tal como fora praticada pelos alexandrinos. Com grande percia procurava convencer seus ouvintes de que a Escritura sempre comporta um sentido aceitvel, e at mesmo profundo, desde que saibamos entend-la corretamente. Sob a letra indagava do sentido espiritual, o que lhe permitia eliminar muitos antropomorfismos. Por esse meio pde desvendar melhor a sabedoria divina oculta na Escritura, distanciando-se a si e a Igreja docente das necedades dos maniqueus e de muitos catlicos. Esta descoberta provocou uma verdadeira revoluo no pensamento de Agostinho.

1. Agostinho descobre a noo de espirito. O contraste entre letra e espirito apenas um exemplo da oposio muito mais compreensiva entre matria e esprito em geral. O materialismo prtico impedira a Agostinho de ultrapassar o sentido concreto e imediato das palavras e imagens escrituristicas. M a s eis que os sermes esclarecedores de Ambrsio comeam a descortinar-lhe o significado profundo, e at ento insuspeitado, que se oculta sob a roupagem figurativa da letra. A s explanaes do bispo de Milo sobre os livros da Lei e dos Profetas que at ento lhe h a v i a m parecido absurdos lhe causaram grande prazer, tanto mais que experimentara em sua p r p r i a pessoa que a letra m a t a : "saepe in popularibus sermonibus suis dicentem Ambrosium laetus a u d i e b a m : Littera occidit, spiritus autem vivificat (2 C o r 3,6), cum ea quae ad litteram perversitatem docere videbantur, remoto mystico velamine spiritualiter a p e r i r e t " . " 2. Agostinho reconhece no ser absurdo principiar pela f. Embora iniciado por Ambrsio no sentido espiritual, Agostinho no cria, ainda, na dou"u

Conf. V. 10, 19; 106. 20 s. Conf. VI, 4, 6; 119, 13 s.

SUA EMANCIPAAO

145

trina que ele propunha, ou, antes, no tinha ainda plena segurana disso. Surpreendeu-se de que at ento nem sequer lhe houvesse ocorrido a possibilidade de u m sentido mais profundo da Escritura. Embora continuasse indeciso q u a n t o a esta interpretao, o certo que o seu sentimento de segurana recebera golpe mortal. Comea a dar-se conta do erro que cometera ao submeter a doutrina da Igreja ao juzo imaturo de sua p r p r i a razo, e de hav-la rejeitado. Desejara comear pela cincia, e esta pretenso soberba fizera com que casse vtima das ensinanas absurdas dos maniqueus. Doravante j n o lhe parece to irrazovel partir da f, posto q u e toda a nossa vida social se baseia, em derradeira anlise, na crena: " E x hoc tamen quoque iam praeponens doctrinam catholicam, modestius ibi minimeque fallaciter sentiebam iuberi, ut crederetur quod d e m o n s t r a r e t u r . . q u a m illic temeraria pollicitatione scientiae credulitatem irrideri; et postea tam multa fabulosissima et absurdssima, quia demonstrari non poterant, credenda imperari"." 3. Enfim Agostinho reconhece haver recorrido aos inimigos da Igreja a fim de instruir-se na sua doutrina. Procedera, em matria de religio, como no lhe ocorreria proceder em qualquer outro assunto; confessa-o, ele mesmo, no " D e utilitate credendi" 6,13, onde se l: " D e scripturis non credendum expositorum earum inimicis". Com efeito, quem se lembraria de pedir explicao dos livros aristotlicos, a um adversrio de Aristteles? Q u e m desejaria estudar a geometria de Arquimedes sob a direo de um E p i c u r o ? Entretanto, outro n o fora o seu modo de proceder quando se dirigira aos maniqueus a fim de instruir-se na Escritura confiada s mos da Igreja.

Uma vez convencido de que a Igreja dispunha de u m a inteligncia muito mais profunda da Escritura, Agostinho sentiu a necessidade de investigar o porqu desta autoridade da Igreja. Todavia, para poder confiar-se completamente a ela e render-se f, urgia erradicar primeiro aquele mal bsico que estava na origem do seu racionalismo: a presuno: "Tumore meo separabar abs te, et nimis inflata facies claudebat oculos m e o s " . "

II. Renncia

ao

materialismo.

Embora j houvesse abandonado o maniquesmo ao qual, alis, nunca aderira com plena convico, Agostinho no superara ainda o materialismo filosfico p r p r i o desta seita. Estava s portas da Igreja, mas a ignorncia da verdadeira natureza do esprito vedava-lhe o ingresso. Pela mesma razo encontrava dificuldades insuperveis perante o problema do mal. Conta-nos, ele mesmo, q u e imaginava a Deus e aos anjos como se fossem seres corpr e o s . " Via n o universo uma nica e imensa mole, composta de corpos diversos e de grandeza limitada. Concebia a Deus como uma substncia infinita e imaginava-O a penetrar o universo inteiro, assim como a g u a penetra uma esponja. Ora bem, se todas as coisas foram criadas pela bondade divina, que as penetra da maneira acima descrita, elas devem ser boas em sua totalidade. E assim parece no haver lugar para o mal. Entretanto, inegvel a existncia do mal fsico e m o r a l ; o mal no pode ser u m puro nada, visto ser objeto de temor e causa de sofrimentos. Por outro lado, ele n o pode ter a Deus por autor. Que , pois, o m a l ?" Ibid. 7; 120, 9 s. " Conf. VII, I I ; 153, 14 s. " Ibid. 5, 7; 146.

146

S. AGOSTINHO, MESTRE DO OCIDENTE

Enquanto Agostinho, j prestes a fazer-se crente, forcejava por superar sua ignorncia e dissipar suas dvidas angustiantes, ocorreu um fato decisivo para seu desenvolvimento futuro: o encontro com o neoplatonismo.Embora muitas coisas lhe parecessem obscuras, a sua f, conquanto ainda imperfeita, n o deixava d e fortalecer-se de dia a d i a . " Em conseqncia disso, o encontro com o neoplatonismo, que lhe proporcionou uma metafsica d o espirito, foi grandemente proveitoso para o jovem Agostinho. " P o r intermdio de um certo h o m e m , entumecido por monstruoso o r g u l h o " " chegou a conhecer " a l g u n s livros platnicos". A leitura destes escritos impressionou-o profundamente. Experimentou at uma espcie de vivncia mstica, da qual nos deixou uma descrio sem paralelo na literatura universal." De certo, Agostinho n o demorou a notar que no era ali que teria de procurar o cristianismo; mas verificou, com surpresa, os numerosos pontos de contacto entre as duas doutrinas e, em particular, a importncia capital que a m b a s atribuam doutrina do Logos. Sobretudo, porm, deparou nestes livros u m a metafsica do esprito altamente desenvolvida.

1. Em primeiro lugar, recebeu a noo de uma luz incorporai, invisvel e puramente espiritual. Esta luz excede em sublimidade tudo quanto visvel aos olhos da carne, pois ela o princpio da verdade e a causa de t o d a s as outras coisas. Descortinou, pela vez primeira, a espiritualidade de D e u s . Deus s se d a conhecer quele que se aparta dos sentidos e das imagens sensveis. D o mundo exterior devemos recolher-nos ao mundo interior, isto , ao santurio do nosso prprio esprito, a fim de empreender, a p a r t i r dali, a nossa ascenso p a r a Deus. Pois Deus a luz que est acima d o esprito e que s p o d e ser atingida se transcendermos o que h de m a i s elevado em ns. *2. Em segundo lugar, Agostinho deve aos platnicos a doutrina da diversidade radical entre o ser absoluto o nico verdadeiramente digno do nome de ser e o ser meramente participado. Doravante Agostinho ir perceber o eco desta doutrina tambm na S a g r a d a Escritura: "De longe" ouve a palavra do S e n h o r : " E u sou o que s o u " , e da qual nunca m a i s poder duvidar. Mais facilmente duvidaria de sua prpria existncia do q u e da de Deus, a Verdade eterna, claramente contemplada e percebida por meio das coisas criadas ( R o m 1,20). Se Deus o nico ser absoluto, todos o s outros seres s o apenas relativos; nem deixam totalmente de existir, nem existem totalmente: "nec o m n i n o esse, nec o m n i n o non esse". Deus imutvel, e todas as outras coisas s o mutveis; por isso s Deus existe verdadeiramente. Em comparao com Ele as coisas no tm verdadeira existncia. M A g o s t i n h o se d conta de que t a m b m ele faz parte deste ser imperfeito, desta " r e g i o da dessemelhana", l o n g e ainda da meta que lhe fora dado aflorar no seu recente enlevo mstico: "Et inveni longe me esse a te in regione dissimilitudinis". n 3. E/n terceiro lugar, Agostinho deve aos platnicos a persuaso de que todas as coisas que existem so boas. Poder-se-ia alegar, com efeito, q u e as coisas n o so boas, porque se corrompem. M a s quem assim pensa n o repara em que as coisas no se poderiam corromper se no fossem boas. De fato, a corrupo pressupe certo grau de bondade. E' verdade que a s coisas no so absolutamente boas, pois do contrrio no seriam corrupti Ibld. Ibid. Ibid. > Ibid. Ibid. " Ibid. v i l , 9. 13; 154, 5. V I I , 10, 16; 157 s. 11, 17; 158, 8 s. 10, 16; 157, 21.

SUA EMANCIPAAOveis ou alterveis; mas nem p o r em q u e existem." isso deixam de ser b o a s na mesma

147medida

4. Donde se segue que o mal no seno a privao de um bem, e que o mal como tal no existe. T u d o que existe bom. L o g o , o que n o bom isto : o mal no existe. O mal se apresenta na mesma medida em que as coisas sofrem alguma privao no seu ser, o u , em outras palavras, enquanto se corrompem. De sorte que o mal no n a d a de positivo, mas uma privao ou destituio. P o r conseguinte, se todo o bem presente nas coisas fosse eliminado ou destrudo, estas deixariam totalmente de existir e reverteriam ao nada: "ergo si omni bono privabuntur, omnino nulla erunt; ergo quamdiu sunt, bona sunt: Malumque illud quod quaerebam unde esset, non est substantia; quia si substantia esset, bonum e s s e t " . " 5. Por todas estas razes, o mal no pode originar-se de Deus. Sendo o mal um no-ser, impossvel que algum lhe h a j a d a d o o ser. Deus o criador de todas as coisas, e tudo o que Ele criou bom. Ainda que n o criasse todas as coisas iguais, todas so boas, mesmo enquanto desiguais. A prpria desigualdade um bem, pois s ela torna possvel a grandiosa h a r m o n i a do universo: "et q u o n i a m non aequalia omnia fecisti, ideo sunt omnia, quia singula bona sunt, et simul omnia valde b o n a . . . " "

Assim Agostinho encontrou, enfim, a soluo do problema que tanto o angustiara. O mal, como o pecado, no uma substncia, mas sim uma lacuna, um defeito, uma ausncia de algo que deveria estar presente. O mal e o pecado constituem, pois, fundamentalmente, uma desordem. A ordem, ao invs, reina ali onde cada coisa se acha em seu devido lugar, exercendo as funes que lhe compete exercer. *

III.

Renncia

ao

ceticismo.

Durante o tempo em que aderira estranha cosmogonia dos maniqueus, Agostinho no deixara de ocupar-se com os filsofos. S u a s leituras o introd u z i r a m a uma astronomia cientfica, isto , a uma explicao racional e natural dos fenmenos celestes. N a opinio dos maniqueus, as estrelas, divididas em dois grandes exrcitos, e representando os dois princpios opostos do bem e do mal, esto empenhadas num conflito gigantesco; para os astrnomos, ao contrrio, os fenmenos siderais obedecem a uma s lei e formam um s sistema. Conferindo as explicaes dos maniqueus com as interpretaes cientficas, Agostinho reconheceu que estas eram muito mais verossmeis, merecendo a preferncia s fbulas daquela s e i t a . " Ora, como sabemos, ele aderira ao maniquesmo precisamente porque este lhe prometia um saber genuinamente racional. D e fato, porm, o jovem retor no conseguira convencer-se realmente, nem da cosmogonia maniquesta, nem das demais doutrinas da seita; por isso os novos conhecimentos cientficos tiveram o efeito de desiludi-lo profundamente. Foi ento que seus a m i g o s maniqueistas o encaminharam ao mestre mais celebrado da seita, Fausto de Mileve, que gozava da fama de grande sbio, e que facilmente lhe resolveria todas as dificuldades. Quando, depois de longa espera, encontrou-se afinal com Fausto, Agostinho notou que este, a despeito de sua eloqncia, dispunha de uma f o r m a o cientfica muito deficiente, pois que apenas sabia a gramtica e= Ibid. 12, 18; 158. -1 Ibid. 159. 1 s. " Ibid.; 159, 9 s. 25 Cf. " D e Ordine" e "De Conf. V, 3, 3; 91, 4 s.

libero

arbtrio".

148

S. AGOSTINHO, MESTRE DO OCIDENTE

lera alguns discursos de Ccero e um que o u t r o tratado de S n e c a . " N u m a palavra, Agostinho verificou que sua p r p r i a sabedoria era superior d o mestre. L o g o sentiu arrefecer-se-lhe por completo o zelo pelo maniquesmo ("et caeterum conatus omnis meus, quo proficere in illa secta statueram, illo homine cognito, prorsus intercidit")> embora n o se decidisse ainda a romper definitivamente com a seita; resolveu e s p e r a r . " Pouco depois dessa desiluso Agostinho v e i o a Roma, enfermo de corpo e alma. Mesmo depois de restabelecido de u m a perigosa febre, sua alma continuava a sofrer, desesperada de alcanar a verdade. A quem recorrer? Comeou a apartar-se gradativamente do maniquesmo, ainda que continuasse a manter relaes com seus adeptos; por outro lado, porm, n o se lhe abrira ainda o entendimento para a doutrina d a Igreja. N o de estranhar que, nestas circunstncias, ele se voltasse p a r a aquela filosofia que m a i s condizia com seu estado de alma, o ceticismo: "Ocorreu-me a idia de ter havido uns filsofos chamados Acadmicos, mais prudentes do que os outros, porque julgavam que de tudo se devia duvidar e sustentavam que nada de verdadeiro podia ser compreendido pelo h o m e m . . . " " busca de uma justificao cientfica d o ceticismo, recorreu a Ccero, seu velho conhecido, que o introduziu n a s doutrinas acadmicas. Avesso a toda sorte de dogmatismos, e notadamente ao dos esticos, Ccero n o pretendia ser mais do que um " g r a n d e o p i n a d o r " : "ego ipse et m a g n u s opin a t o r " . " Imitando-lhe o exemplo, Agostinho deixou de nutrir qualquer convico segura, contentando-se com simples opinies. No nmero das opinies contava t a m b m as doutrinas crists, pelas quais continuou a interessar-se, mesmo no tempo em que esteve associado aos acadmicos. A g o s t i n h o , agora, um m a n i q u e u tbio e um cristo confuso. Suas dvidas n o se restringem a u m a ou outra doutrina: estendem-se prpria possibilidade de obter qualquer conhecimento certo acerca das verdades mais decisivas e vitais. Prefere pr t u d o em dvida e abster-se de qualquer afirmativa. E assim veio a cair na perigosa letargia espiritual d a "epoch" (suspenso do j u z o ) : "Tenebam cor meum ab omni adsensione timens praecipitium, et suspendio magis necabar. Volebam enim eorum quae non videram ita me certum fieri, ut certus essem, quod septem et tria decem s i n t " . *

O problema que agora o preocupava era, pois, o seguinte: Como possvel alcanar uma verdade certa e incontestvel a respeito das coisas invisveis? N o que casse no extremo da dvida universal. Admitia, sem discusso, que possumos uma certeza genuna das verdades matemticas, bem como de muitas coisas que temos presentes aos sentidos. Mas o que ele exigia era uma certeza igual das coisas invisveis: "sed sicut hoc ita caetera cupiebam, sive corporalia quae coram sensibus meis non adessent, sive spiritualia, de quibus cogitare nisi corporaliter nesciebam". Tampouco duvidava da definio da verdade, que concebia como uma evidncia necessria, sempre constante e indefectvel. Duvidava, porm, da possibilidade de se obter tal evidncia no tocante s questes supremas. Ibid. 6, 10-11; 96 ss " Ibid. 7, 13; 99 Ibid. 10, 19; 106. 30 Ibid. 106, 4 s. n Contra Acad. I I I , 14,31; 7 1 , 8 ; cf. c Conf. VI, 4. 6; 119, 18 s. Ibid.; 119, 23 s.

Ccero,

Ac.

2,66.

SUA EMANCIPAAO 1. A experincia d a verdade.

149

Desta vez, ainda, foi no neoplatonismo que Agostinho encontrou o que procurava. Convenceu-se, de sbito, da existncia de uma realidade supra-sensivel, isto : de um mundo espiritual, e, acima dste, de um Deus, Verdade segura e Luz imutvel. Numa espcie de vivncia mstica descortinou-se-lhe o panorama de uma realidade suprasensivel e at mesmo supra-espiritual, e, n u m a espcie de intuio espiritual, tomou contacto com a transcendncia da luz divina: "Intravi et vidi qualicumque oculo animae meae, supra eundem oculum animae meae, supra mentem meam, lucem incommutabilem.. . Q u i novit veritatem, novit eam; et qui novit eam, novit aeternitatem. Caritas novit eam. O aeterna veritas, et vera caritas, et cara aeternitas! Tu es Deus m e u s . . . Et audivi sicut auditur in corde, et non erat prorsus unde d u b i t a r e m " . "Esta experincia e esta sbita intuio interior bastaram para o seu convencimento pessoal. Entretanto e nisto est a prova da profunda sinceridade do seu esforo investigador e da sobriedade d o seu espirito filosfico Agostinho no se deu por satisfeito com isso. Ele passara pela terrvel experincia da dvida e d a desesperana, e como soubesse que ningum est isento de semelhantes dificuldades, tratou de proporcionar a todos um meio eficaz de superar a tentao do ceticismo. Esta foi u m a de suas principais tarefas cientficas, da qual procurou desempenhar-se nos trs livros " C o n t r a os Acadmicos", compostos logo aps a converso, e antes mesmo de receber o batismo. Refeito de sua prpria enfermidade espiritual, serititMe na obrig a o de vir em auxlio de todos aqueles que sofriam do mesmo mal. **

2. Refutao d o ceticismo.A seguinte exposio norteia-se principalmente pelo "Contra Acadmicos"; num ou noutro ponto, porm, teremos de referir-nos a certas idias posteriores a esta obra. Agostinho, com efeito, j a m a i s perdeu de vista a sua prpria experincia ctica. E' por isso que as suas investigaes metafsicas acerca da divindade principiam, freqentemente, com a constatao da existncia de u m a verdade certa e inabalvel. a) A evidncia imediata dos fatos. A argumentao do ctico invoca invariavelmente os erros dos sentidos. Tais erros, porm, nada demonstram contra aquele que n o busca a verdade nos sentidos, mas no esprito. E ainda que os sentidos n o reproduzissem fielmente a s coisas, um fato incontestvel que eles pelo menos percebem algo. O a t o de percepo u m fato que no admite a menor dvida. Supondo-se embora que o mundo n o existisse, no h como negar o fato de que eu estou percebendo um mundo. Caso se negasse at mesmo este dado elementar, j no haveria sobre que discutir; com efeito, n o posso iludir-me, nem enganar-me na minha percepo do mundo, a menos que esteja vendo, e vendo a l g u m a c o i s a . " Logo, se em nossos juzos no afirmarmos seno aquilo que d a d o em nossa experincia imediata, no haver iluso possvel. Pois n e n h u m acadmico poder convencer-nos de que, q u a n d o alguma coisa se nos apresenta como branca, ela n o se nos apresente c o m o branca, ou de que a q u i l o que nos parece a m a r g o" Ibid. VII, 10, 16; 157, 6 ss. Cf. Retract. 1, 1 , 1 ; 11. Contra Academ. II!, 11, 24; 64.B

150

S. AGOSTINHO, MESTRE DO OCIDENTEpela simples impresso. * razo de que alguma outra

no seja percebido como a m a r g o , pessoa n o experimenta a mesma

b ) A evidncia agostiniana d o " C o g i t o " . Nos Solilquios, onde Agostinho examina a questo da imortalidade, deparamos a l g u m a s consideraes de capital importncia. Trata-se, antes de mais nada, de encontrar um ponto de partida seguro para a soluo do importante problema. Depois da breve invocao inicial: "Deus, semper idem, noverim me, noverim te", a Ratio lhe prope as seguintes perguntas: " T u , que desejas conhecer-te a ti mesmo, sabes que s? Sei. P o r onde o sabes? N o sei. Sabes que s m o v i d o ? N o sei. Sabes que pensas? Sei. Logo, verdade que pensas? S i m ! " Depois de vrias outras perguntas e respostas do mesmo gnero, a razo verifica que uma coisa, pelo menos, certa: "Esse te seis, vivere te seis, intelligere te s e i s " . " C o m o se v, Agostinho fundamenta a verdade na existncia do sujeito existente, vivente e pensante. A argumentao culmina n o D e Trinitate, num captulo dedicado ao estudo da essncia da alma. A s opinies dos filsofos divergem neste ponto. N e n h u m filsofo entretanto pode pr em dvida os d a d o s imediatos de sua prpria conscincia: "Quem duvidar que vive, que recorda, que entende, que quer, que pensa, que sabe e que j u l g a ? Pois, se duvida, vive; se est em dvida acerca daquilo de que duvida, lembra-se (ou tem conscincia disso); se duvida, sabe que est d u v i d a n d o ; se duvida, porque quer ter certeza; se duvida, p e n s a ; se duvida, sabe que n o sabe; se duvida, j u l g a que no deve assentir temerariamente". E ainda que se pudesse duvidar de tudo o mais, disto n o se pode duvidar. Caso contrrio j n o haveria do que duvidar, o que tornaria impossvel a prpria d v i d a . " A s mesmas reflexes reocorrem no " D e Civitate D e i " , embora mais concisamente, e com algumas variaes: "E se te enganas?" eis a incessante objeo dos acadmicos. A resposta de Agostinho simples e clara: Se me engano, soa: "Si enim fallor, sum". " Q u e m n o existe no pode enganar-se; por isso, se me engano, existo. L o g o se existo porque me engano, como posso enganar-me, crendo que existo, q u a n d o certo que existo, se me e n g a n o ? Embora me engane, sou eu que me engano e, portanto, em q u a n t o conheo que existo, n o me engano. Seguese tambm que, em quanto conheo que me conheo, n o me engano. Como conheo que existo, assim conheo que c o n h e o " . "

Portanto possibilidade est sempre

no h erro capaz de destruir do erro, a saber: a existncia um passo adiante do erro.

a verdade implcita na do sujeito que erra. A

prpria verdade

c ) A evidncia das verdades lgicas. O mbito d a s verdades evidentes se amplia consideravelmente n o que entramos no d o m n i o d a "disciplina das disciplinas", a Lgica, t a m b m chamada D i a l t i c a . " E m b o r a tambm os cticos se sirvam dela a fim de invalidar com refinada sutileza todos os argumentos dos seus adversrios, a Lgica nos proporciona inmeras evidncias. Antes de mais nada, ela contm muitssimas proposies condicionais que so sempre verdadeiras e nunca podem ser falsas, p o r exemplo: se h q u a t r o elementos no mundo, n o h cinco; se o sol u m s, n o h dois sis. Verdadeiras so tambm todas as proposies em q u e se afirma a impossibilidade de contradio; p o r exemplo: impossvel q u e uma mesma alma seja mortal e imortal, o u : impossvel q u e seja dia e noite ao mesmo tempo e no mesmo lugar. O mesmo vale q u a n t o s proposies disjuntivas conten" " Ibid. 26; 66. Solll. II, 1 , 1 ; 885. De Trinlt. X , 10; 981. De Civit. Dei X I , 26; 551, 6 s. Cf. De Ordine II, 13, 38; 174, 7 S.

SUA EMANCIPAAO

151

do o seu oposto contraditrio, tais c o m o : neste m o m e n t o ou vigio ou d u r m o . Todas estas afirmativas so verdadeiras, e evidentemente tais, sem q u e seja preciso verific-las pela experincia sensvel." d) O ceticismo autodestrutivo e desumano. soluo teortica Agostinho faz seguir um exame dos aspectos prticos d o ceticismo. S e g u n d o os acadmicos, o sbio deve abster-se de assentir levianamente a q u a l q u e r afirmativa, contentando-se com opinies mais ou menos provveis. P o r t a n t o , se quiserem ser conseqentes consigo mesmo, devero concluir que t a m b m a lei moral se reduz a uma questo de simples verossimilhana. D o n d e se segue que os criminosos poderiam justificar seus delitos sob o pretexto de terem agido com uma certeza meramente provvel, e declinar da sentena judicial alegando ser impossvel assentir a simples probabilidades." e) Evoluo histrica do ceticismo. Agostinho finaliza sua refutao com um relato histrico-pragmtico do ceticismo. Sua origem histrica prendese a uma medida pedaggica de Arquesilau, visando impedir o acesso de Zenon Academia. E' que este negava a imortalidade da alma e a existncia de um m u n d o espiritual, e por isso foi reputado indigno de compartilhar os segredos d a Academia. Arquesilau preferiu ocult-los por completo, na esperana de que a l g u m a gerao futura tornasse a descobri-los; p s todo seu empenho em libertar a Zenon e seus adeptos de suas falsas doutrinas, abalando-lhes a certeza. Arquesilau, como vemos, s adotou uma posio aparentemente critica e ctica, e isto por motivos pedaggicos. Tornou-se assim o fundador da Nova Academia. T a m b m Carnades propugnou um ceticismo pedaggico, em oposio a Crisipo, d a n d o origem, assim, Terceira Academia.* 4 Na opinio de Agostinho o ceticismo , pois, em substncia, uma reao do espiritualismo platnico ao materialismo estico. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma reao e de um protesto, que os discpulos, infelizmente, passaram a cultivar como se fossem fins em si mesmos. E assim, reduzido esterilidade, o ceticismo estava condenado a perecer mingua. Seu ltim o representante foi Ccero. Pouco depois dele desapareceu o muro protetor q u e guardara a doutrina de Plato. Doravante a voz de Plato torna a fazer-se ouvir com plena autoridade: "Adeo post illa tmpora non l o n g o intervallo omni pervicacia pertinaciaque demortua, os illud Platonis q u o d in philosophia purgatissimum est et lucidissimum, dimotis nubibus erroris emicuit maxime in Plotino, qui Platonicus philosophus ita eius similis iudicatus est, ut simul eos vixisse, tantum autem interest temporis, ut in hoc ille revixisse putandus sit". **

B. Em busca de Deus. Agostinho jamais pensou em divorciar a teoria da prtica. Sua filosofia uma interpretao de sua prpria vida. E esta se resume numa busca ininterrupta de Deus. De certo, sua busca no foi v, nem lhe faltaram grandes descobertas; ainda assim, no cessou de procurar at o fim de sua vida.Basta ler atentamente os dois textos anexos p a r a se verificar q u e ele encontrou a Deus tanto pela razo como pelo a m o r ; e no entanto, em c a d a linha das Confisses continua a transparecer a s a u d a d e de Deus e a inquie" " " " Contra Acad. III, 13, 29; 68. Ibid. III, 16, 36; 74. Ibid. Ml. 17. 37-39, 42; 75-79. Ibid. 18, 41; 79, 3 .

152

S. AGOSTINHO, MESTRE DO OCIDENTE

tude da sua busca: " N o quero estar onde posso, nem posso estar o n d e quero: de ambos os modos sou miservel. H i c esse valeo nec volo; illic volo nec valeo: miser u t r o b i q u e " . ** Agostinho procura a Deus como quem sabe e a m a o que busca, a i n d a que sem possui-lo. Destarte a inquietude da alma vem a ser uma c o m o smula de toda a sua vida: " T u excitas, ut laudare T e delectet; q u i a fecisti nos ad Te, et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in T e " . ** P o r isso o problema vital de Agostinho no se exprime na pergunta: q u e devo procurar?, e sim nesta outra: de que m o d o devo busc-lo a fim de encontrar repouso na sua posse definitiva? " E n t o , como Vos hei de p r o c u r a r , Senhor? Quando V o s procuro, Deus meu, busco a vida eterna. Procurar-Vosei para que a m i n h a alma v i v a . . . ; como procurar, ento, a vida feliz? N o a alcanarei enquanto n o exclamar: Basta, ei-la a l i l " -

E' luz desta busca incansvel que devemos interpretar a teodicia de Agostinho.

1. A prova da existncia de Deus

Agostinho nunca ps em dvida a existncia de Deus. Nenhuma problemtica, nenhum ceticismo, e nem mesmo o estudo das opinies discordantes dos filsofos p u d e r a m arrancar-lhe a convico de q u e h um Deus. ** Pois a existncia de D e u s conhecida de todos os homens, com a possvel exceo de alguns poucos que tm a natureza inteiramente corrompida; com esta ressalva, a h u m a n i d a d e unnime em reconhecer um D e u s C r i a d o r . " A questo da existncia de Deus no constitua, pois, um problema pessoal para Agostinho. M a s nem por isso deixou de interessar-se por ele, e de resolv-lo de um m o d o inteiramente pessoal. Sua soluo faz parte integrante de sua doutrina d o conhecimento que, por sua vez, resultado de sua experincia pessoal. P r o c u r a r e m o s mostr-lo, expondo primeiro a prova agostiniana da existncia de D e u s ; a seguir, retomaremos o problema a partir da anlise de sua teoria d o conhecimento.

Foi, de certo modo, por casualidade que Agostinho formulou o problema da existncia de Deus. N u m a passagem importante do segundo livro do " D e libero arbtrio" um dos interlocutores pergunta se no teria sido prefervel que Deus no nos tivesse concedido o livre arbtrio, em vista do mau uso que dele fazemos. E' nesse contexto que surge, imprevistamente, a questo da existncia de Deus.

I. Os prembulos

da

prova.

Evdio, o interlocutor de Agostinho n o dilogo " D e libero a r b i t r i o " , declara estar convencido, graas revelao crist, da existncia do livre arbt r i o ; este nos foi d a d o por Deus, e por conseguinte um bem. E v d i o alega, porm, que nada disso lhe conhecido pela razo natural, e, por isso, prope deixar a questo em suspenso, pelo menos provisoriamente, at encontrar-lhe Conf. X, 40, 65 ; 276, 22 " Ibid. I. 1. 1; I , 7 s. " Ibid. X, 20, 29 ; 248, 17 s. " Cf. Conf. VI, 5, 7-8; 121, I I . " In Joh. tract. 105, 17, 4; t. 35, 1910.

A PROVA DA EXISTNCIA DE DEUS

153

a necessria demonstrao. A o que Agostinho lhe pergunta: Ests certo, pelo menos, que existe um D e u s ? Evdio responde, modestamente: " E t i a m hoc non contemplando, sed credendo inconcussum t e n e o " . " E assim j n o h como fugir a uma demonstrao racional, tanto mais q u e existem homens insensatos que dizem no crer na existncia de Deus (cf. SI 52,1). Como se h de proceder para convenc-los? 1. Primeira condio: a boa f.

Suponhamos, diz Agostinho, que o insensato d mostras de boa f e de um desejo sincero de saber a verdade daquilo que Evdio cr; suponhamos, ademais, que no seja pertinaz, m a s disposto a examinar com toda a seriedade as provas propostas: porventura ser possvel convenc-lo? Antes de responder, Evdio insiste, por seu turno, na indispensabilidade das condies arroladas por Agostinho: "Certe enim, quamvis esset absurdissimus, concrederet mihi, cum doloso et pervicaci de nulla o m n i n o et maxime de re tanta, non esse d i s s e r e n d u m " . " Sempre coerente consigo mesmo, Agostinho recusase a formular o problema de m o d o puramente abstrato e independentemente das necessrias pressuposies morais. Como se h de proceder, pois, para convencer um tal indivduo da existncia de D e u s ? 2. S e g u n d a condio: a f.

Evdio, que h pouco insistira na necessidade de argumentos racionais, principia a prova da existncia de Deus com um apelo autoridade. Antes de mais nada, ele se esforaria por convencer o ctico da convenincia de prestar f s pessoas que conviveram com o Filho de Deus e nos relataram por escrito o que viram com seus prprios olhos. Muitas coisas por elas testemunhadas seriam impossveis se Cristo no fsse o Filho de Deus. Se o ctico recusasse tal testemunho, seria o caso de se lhe perguntar com que direito ele mesmo exige que demos crdito s suas palavras. M a s por que, ento, ele se recusa a aceitar a nossa f ? M A pergunta por que ele prprio no se d p o r satisfeito com esta f, Evdio replica: "Sed nos, id quod credimus, nosse et intelligere c u p i m u s " . " E assim volvemos ao ponto de partida. Agostinho d r a z o a Evdio: devemos partir da f. " S e n o crerdes, no compreendereis", diz (saias (7,9), D o n d e decorre uma dupla exigncia: 1', que nosso dever aspirar inteligncia daquilo que cremos, d a d o que o fim ltimo do homem no crer em Deus, e sim conhec-Lo; V , que preciso partir da f para chegar a o conhecimento de Deus: " D e i n d e iam credentibus dicit: Quaerite et invenietis ( M t 7,7): nam neque inventum dici potest, quod incognitum creditur; neque quisquam inveniendo D e o fit idoneus nisi antea crediderit quod est postea c o g n i t u r u s " . "

II. O ponto

de partida

da

prova.

A presena das pressuposies morais, embora indispensvel, no suficiente. Importa, outrossim, assegurar um ponto de partida absolutamente inconcusso. Agostinho vai busc-lo na sua refutao do ceticismo.51

De lib. arb. I I , 2, 5; 1242. Ibid. Ibid. 5: 1242. Ibid.; 1243. 31 Ibid. 6; 1243. A mesma ordem 45 ss.; 141 ss. "

de

idias

vem

exposta

no

"De

vera

rellgione",

24 ss.,

154

S. AGOSTINHO, MESTRE DO OCIDENTE

A fim de apoiar a argumentao em verdades inteiramente seguras, Agostinho pergunta primeiramente a E v d i o se ele sabe que existe; pois se no existisse, ser-lhe-ia impossvel enganar-se: " S i non esses, falli o m n i n o non posses". Evdio concorda. A g o s t i n h o : E' evidente, pois, que existes; ora, tal evidncia seria impossvel se n o vivesses; logo, evidente que vives. Admitido isso, Agostinho conclui: l o g o evidente tambm q u e p e n s a s . " E s t a m o s aqui em face de u m acontecimento de capital importncia na na histria da filosofia. E' pela primeira vez que d e p a r a m o s uma prova da existncia de Deus baseada na m a i s evidente das verdades, a saber: na existncia da conscincia conhecente. N o s isso: A g o s t i n h o funda a evidncia desta verdade na existncia do prprio sujeito q u e duvida, abalando assim o ceticismo pela raiz, isto , pelo mesmo ato que lhe serve de fundamento. Esta primeira certeza implica trs verdades: visto que o sujeito que pensa n o p o d e pensar sem viver, nem viver sem existir, ele sabe que pensa, que vive e que existe.

///. yls fases da prova

da existncia de

Deus.

Agostinho desenvolve a sua prova da existncia de Deus a partir de u m a anlise dos dados imediatos da experincia interna; alm disso, adota as duas regras seguintes: 1', aquilo que inclui certas outras perfeies, sem estar includo nelas, mais perfeito que estas; 2, aquilo que julga de outras coisas mais perfeito que as coisas sujeitas ao seu julgamento. Assim equipado, Agostinho prossegue cautelosamente o seu caminho.1. A ordem ou gradao d o s fatos fundamentais.

G r a a s s verdades bsicas que acabamos de assegurar, at mesmo o sujeito que duvida sabe que existe, vive e pensa. Q u a l destes conceitos ser o supremo ou mais perfeito? A pedra existe, mas n o vive nem pensa. O a n i m a l vive e existe, mas n o pensa. O homem conhece e, conhecendo, vive e existe. D e forma que o pensar envolve os dois outros conceitos, sendo, port a n t o , o mais p e r f e i t o . " 2. A ordem d o conhecimento sensvel.

N o intuito de estabelecer u m a gradao hierrquica na ordem do saber, A g o s t i n h o comea pelo conhecimento mais evidente: o sensvel. C o m o se sabe, cada sentido tem seus objetos exclusivamente prprios: a vista, por exemplo, s apreende as cores, e o ouvido, os sons. Sabe-se, p o r outro lado, que certos objetos n o se limitam a u m nico sentido; a figura ou f o r m a dos corpos perceptvel tanto vista como ao tato. Ademais, sabemos no s o q u e compete a cada sentido em particular, como t a m b m o que pode ser percebido por vrios sentidos em comum. Ora, tal conhecimento n o pode provir dos prprios sentidos externos; pressupe a existncia de u m a fora superior, capaz de julgar os sentidos, a saber, de um sentido interior ("sensus interior")." N o s isso: ns sentimos, e sabemos que sentimos. Este conhecimento, t a m p o u c o , pode proceder dos sentidos externos; tambm ele deve atribuir-se," Ibid. 3, 7; 1243. * Ibid. 3. 7; 1244. Ibid. 8; 1244.

A PROVA DA EXISTNCIA DE DEUS

155

como segunda funo, ao sentido interior. Q u e esta fora superior deva ser um sentido, Agostinho o conclui do fato de a encontrarmos tambm nos animais. " De f o r m a que n o ultrapassamos, ainda, o nvel do reino a n i m a l . 3. A ordem d o conhecimento intelectivo.

J dispomos de u m a regra que nos permite transcender o grau d a animalidade. O que julga de outro, sem ser j u l g a d o por ele, superior e m a i s perfeito q u e este outro. O r a , tal evidentemente o caso da razo h u m a n a ; logo, a r a z o o que h de mais elevado no h o m e m . " Eis-nos, agora, diante do seguinte problema: Ser necessrio ultrapassar tambm a prpria razo? Dever-se- admitir, pois, que a razo julgada ou moderada por algo que no est sujeito ao julgamento dela? Antes de prosseguir Agostinho pergunta o que poderia ser aquele " a l g o " superior r a z o , a cujo julgamento esta se deve submeter. Ser D e u s ? Evdio no cr que se possa identific-lo, desde logo, com D e u s ; pois n o lhe parece conveniente chamar Deus q u i l o a que a sua razo est sujeita, mas quilo que superior a tudo o mais. Agostinho lhe d r a z o ; mas, acrescenta, no fundo indiferente que se responda de um modo ou d e outro, pois se a q u i l o que est acima da razo n o a realidade suprema o u seja, Deus, segue-se que esta realidade, ou Deus, algo mais excelente ainda. Em qualquer caso, basta verificar que existe algo acima d a r a z o , para dispormos de uma prova da existncia de D e u s . "

Acima da razo est a Verdade, que julga e modera a razo. Para melhor compreenso desta proposio convm tornar ao conhecimento sensvel. T o d o sujeito capaz de percepo est como que encerrado em si mesmo e se move dentro de sua prpria subjetividade. As minhas percepes, com efeito, so exclusivamente minhas, vale dizer: essencialmente subjetivas, pois s eu as experimento. O s objetos percebidos, ao contrrio, n o so subjetivos, m a s comuns a todos. "* Poder-se- dizer outro tanto da r a z o ? Haver objetos da razo comuns a todos e participados por cada razo particular, assim como a mesma luz participada pelos olhos de muitos h o m e n s ? T a i s objetos comuns existem certamente no domnio da matemtica. D e fato, todos os espritos esto acordes no que concerne s verdades matemticas. U m a tal concordncia, porm, no pode originar-se nos sentidos. E m b o r a os nmeros provenham d a percepo sensvel, no dela que derivamos as leis que os regem, nem a s relaes eternas que vigoram entre eles. E m outros termos, o objeto d a matemtica transcende os sentidos. Mesmo que n o houvesse dez coisas contveis, no deixaria de ser verdade que 7 mais 3 s o dez. O objeto da matemtica eterno."Pois b e m : segundo o testemunho da Escritura, a sabedoria inseparvel do n m e r o : "Circuivi ego et cor m e u m , ut scirem, et considerarem, et quaererem sapientiam et numerum" (Ecle 7,26). Q u e espcie d e sabedoria esta? E' a verdade que nos permite contemplar e possuir o S u m o Bem. Tal a verdade procurada pelos filsofos das mais diversas escolas. O r a , estes filsofos n o teriam podido procurar a sabedoria, nem a vida eterna, se estas lhes tivessem sido inteiramente desconhecidas. Donde se segue q u e todos os homens devem trazer impressa em sua mente a idia d a sabedoria. Ela est presente em ns maneira de um saber que contm em si as verdades eternas, necessrias e imutveis: " I t a etiam priusquam sapientes simus, sapientiae notionem in mente habemus impressam, per quam unusquisque " > " Ibid. Ibid. Ibid. Ibid. Ibid. 4, 6, 6. 7, 8, 10; 1246. 13; 1248. 14; 1248 s. 15 ss.; 1249 ss. 22 ss.; 1253 s.

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S. AGOSTINHO, MESTRE DO OCIDENTEvelitne esse sapiens, sine ulla caligine se velle

nostrum si interrogetur: respondet". **

Defronta-se-nos aqui, mais uma vez, o problema: como foi possvel que to grande n m e r o de espritos isolados e concentrados em si mesmos viessem a concordar n u m a mesma idia? E' que esta nos concedida de a n t e m o ; n o se origina dos sentidos, tampouco como o s nmeros se o r i g i n a m deles. E ' verdade que o s homens no costumam ter grande apreo pelos n m e r o s ; mas todos estimam a sabedoria. N o fundo, p o r m , trata-se de uma e a mesma c o i s a . " E assim se nos manifesta a transcendncia das verdades eternas, que so transsubjetivas num sentido inteiramente diverso e superior s coisas sensveis, pois a o contrrio destas, aquelas s o verdadeiramente imutveis: "Quapropter nullo m o d o negaveris esse incommutabilem veritatem, h a e c omnia quae incommutabiliter vera sunt continentem; q u a m non possis dicere tuam vel meam, vel cuiusdam hominis, sed o m n i b u s incommutabilia vera cernentibus, tamquam m i r i s modis secretum et publicum lumen, praesto esse ac se praebere c o m m u n i t e r " . "

Com isso chegamos ao termo da nossa jornada. S nos resta decidir se aquilo que comum a todos inferior, ou igual, ou superior nossa razo. J conhecemos a norma segundo a qual aquilo que serve para j u l g a r alguma coisa, sem ser julgado por ela, de ordem mais elevada d o que esta. Pois bem: ser que julgamos aquelas verdades, ou estar o nosso julgamento sujeito a elas? No p o d e haver dvida de que julgamos em dependncia daquelas normas interiores que compartilhamos com outros espritos. N o somos ns que as julgamos. N o somos ns que determinamos que o eterno deve ser preferido ao temporal, ou que sete mais trs so dez; apenas descobrimos que assim : "sed tantum ita esse cognoscens non examinator corrigit, sed tantum laetatur inventor". E' claro, outrossim, que tais verdades no se situam no mesmo plano da razo humana, posto que esta mutvel, ao passo que aquelas so imutveis. A razo progride no saber; elas, ao contrrio, so insuscetveis de progresso. Resplandecem invariavelmente com toda a sua clareza, mesmo que as contemplemos com a vista turvada. Donde se segue que no so inferiores nem iguais razo, mas superiores a e l a . "

Portanto, a razo depara, na conscincia, algo que lhe superior, algo de absoluto, eterno e imutvel. Nessa altura, s nos resta assinalar o resultado final: "Tu autem concesseras, si quid supra mentes nostras esse monstrarem, Deum te esse confessurum, si adhuc nihil esset superius. Si enim aliquid est excellentius, ille potius Deus est: si autem non est iam ipsa veritas Deus est". Pouco importa que aquela realidade ltima seja a verdade, ou algo de mais elevado ainda; o certo que existe algo acima da nossa razo. O que h de mais elevado, porm, deve ser Deus. Com isso fica estabelecida a verdade da existncia de Deus. A dvida acerca desta verdade eliminada, no s pela f, como tambm pela razo. Trata-se de um" " "M

Ibid. Ibid. Ibid. Ibid.

9, 26; 1254 s. I I , 30; 1251 5. 12; 1259. 12, 33 s.; 1259 s.

A PROVA DA EXISTNCIA DE DEUS

157

saber muito dbil, porm seguro ("certa, quamvis adhuc tenuissima, forma cognitionis")."

IV. Caractersticas

da prova

agostiniana.

Para apreender corretamente as caractersticas deste argumento, convm no perder de vista que a inteno primria de Agostinho no apresentar uma prova estritamente dialtica, com sua respectiva concluso lgica, mas, sim, tornar mais ntida a nossa apreenso de um d a d o interior. Agostinho no prova a necessidade da existncia de Deus: contenta-se com chamar a ateno para o fato de sua existncia. No o nosso argumento que torna necessria a existncia de Deus. O mesmo pensamento vem exposto numa carta a Evdio, escrita muitos anos depois: " n o n cogi Deum esse, vel ratiocinando effici, Deum esse debere"." Tambm aqui Agostinho apela para a analogia dos nmeros. Ademais, a inteno primria de Agostinho no estabelecer o fato da existncia de um Deus, e sim, responder pergunta: o que Deus? A verdade, como vimos, algo que transcende a razo, pois esta lhe est sujeita. Deus deve encontrar-se no reino da verdade, ou em algo de que a verdade depende, ou em algo que explica as condies da verdade. E ' por isso que Agostinho no se interessa, por ora, em determinar a realidade exata que se deve atribuir a Deus. Contenta-se com a descoberta de uma realidade que ultrapassa a razo, e que, por conseguinte, deve ser buscada no domnio do espiritual. Torna-se claro, outrossim, que a prova de Agostinho outra coisa no seno o resumo de sua experincia pessoal. As experincias adquiridas no curso de sua libertao filosfica tornam-se outros tantos meios de aproximao a Deus: de racionalista, transforma-se em defensor intransigente da necessidade da f como ponto de partida; de ctico, em paladino da verdade, a ponto de basear seu argumento na verdade que, graas sua evidncia, abala o ceticismo pela prpria base; de adepto do materialismo, em campeo da idia do espirito, inseparvel da verdade absoluta.

2. A doutrina do conhecimento e da iluminao N a filosofia agostiniana, a teoria do conhecimento inseparvel da prova da existncia de Deus. O u , melhor, aquela se identifica praticamente com esta; trata-se, no fundo, de u m a e a mesma coisa, encarada de ngulos diferentes. U m a e outra, com efeito, terminam por conduzir-nos a Deus. " Ibid. 15, 39; 1262. Epist. 162, 2; t. 33, 705.

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S. AGOSTINHO, MESTRE DO OCIDENTE

I. O conhecimento

sensvel.

Abordaremos, em primeiro lugar, o domnio que seduzira o jovem Agostinho ao materialismo: o conhecimento sensvel. Se conseguirmos apontar um fator espiritual na percepo sensvel, estaremos em condies de bater o adversrio em seu prprio campo. 1. O cuidado fundamental de Agostinho destacar o objeto conhecido do conhecimento que temos dele.

nitidamente

A sensao j uma forma de conhecimento espiritual; o objeto sensvel, ao contrrio, algo de corporal. Eis um princpio rico de conseqncias. Antes de mais nada, torna-se claro que o objeto sensvel atingido pela sensao, da qual ele a causa; ele prprio, porm, radicalmente incapaz de sensao: "non quia sentiunt, sed quia sentiuntur, sensibilia nuncupata sunt". Q u a n d o se diz que o mel doce, n o se pretende significar que ele percebe a doura, mas que causa a sensao de d o u r a . A sensao, ao invs, prpria a l m a : seria um erro misturar qualquer coisa de corpreo idia d o conhecimento sensvel. A sensao de dor, p o r exemplo, aparentemente experimentada pelo corpo; na realidade, porm, a alma que sofre atravs d o c o r p o . n E m consonncia com esta doutrina, Agostinho distingue duas espcies de luz: u m a , de natureza corporal e percebida pelos olhos, e outra, espiritual, que os capacita a perceber a luz corporal. Aquela u m objeto de conhecimento, esta um meio de conhecimento. A faculdade sensitiva , pois, uma luz de natureza puramente espiritual: ela provm da p r p r i a alma. Se o cego no v, isso se deve ao fato de ele carecer do r g o corporal indispensvel a l m a ; mas nem por isso lhe falta a luz interior que o capacita a ver se dispusesse do r g o correspondente. n

2. A possibilidade da

sensao.

O conhecimento sensvel nos defronta com um problema espinhoso e de grande alcance para a histria da filosofia. A sensao uma atividade da alma; seu objeto, porm, um corpo. Como se deve entender a influncia deste sobre aquela, suposto que tal influncia seja concebvel? Agostinho jamais deixou de interessar-se por esse problema. A soluo mais elegante encontra-se no " D e Musica" (livro 6 ) .T o m e m o s o verso " D e u s creator o m n i u m " . O que faz com que estas palavras venham a constituir um verso? O ritmo. Este, p o r sua vez, consiste de nmeros ou relaes numricas entre as slabas l o n g a s e breves. O nosso verso consta de quatro j a m b c s , ou seja, de quatro silabas breves seguidas, respectivamente, de quatro slabas longas. D e acordo com as distines estabelecidas nos livros anteriores, os ritmos encontram-se primeiro no ar ou nos sons materiais (1* gnero de nmeros), e a seguir, n o sentido do ouvinte (2 g n e r o ) . Com isso j temos a diferena entre o sensvel material e a sensao espiritual. Convm notar, porm, que o verso n o existe em si, ou absolutamente, seno que depende da maneira como recitado; por isso tam" " De civ. Dei X I , 27; 553, I I . De Genes! ad litt. 3, 5; 67, 14 s. D e O e n . ad litt. imperf. 1, 5; 473, 15 s.

A DOUTRINA DO CONHECIMENTO E DA ILUMINAAO

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bm a voz d o declamador deve ter certa qualidade numrica: deve ser cadenciada e comunicar seu ritmo interno ao ar. Se acaso decidirmos que um verso recitado ccm demasiado vagar 011 com excessiva rapidez, depararemos dois o u t r o s gneros de nmeros; pois n o poderamos emitir tal juzo, se n o tivssemos na memria u m a medida prvia pela q u a l assim julgamos. D e sorte que possumos uma memria numerai e u m a capacidade de juzo n u m e r a i . Isto nos d uma idia da grande complexidade dos atos que entram numa sensao aparentemente to simples. Q u a l ser o mais excelente de todos esses n m e r o s ? Manifestamente o ltimo, pois este que j u l g a o s demais, sem estar sujeito ao julgamento deles, devido sua superioridade. O s nmeros conservados na memria so produzidos pelos outros, devendo por isso situar-se n u m plano inferior. Resta o problema de como se devem graduar os trs outros gneros numricos. E m especial, cumpre examinar se a primazia compete aos "numeri sonantes", isto , materiais, ou a o s nmeros apreendidos pelos sentidos. A resposta est contida na teoria agostiniana da sensao.

O problema gerai que orienta a exposio o seguinte: Pode um processo corporal atuar sobre a alma e provocar uma sensao? Dir-se- que a ao do corpo sobre a alma coisa manifesta; todavia, um exame mais atento da questo parece sugerir a impossibilidade de um tal influxo: "mirare potius, quod facere aliquid in animam corpus p o t e s t " . " Mais ainda: tal influxo parece inteiramente absurdo: "sed perabsurdum est fabricatori corpori materiam q u o q u o modo animam subdere". Logo, a alma no pode sofrer nenhuma influncia da parte do corpo, sob pena de ficar sujeita a ele. Por conseguinte, os nmeros presentes na alma no podem ser produzidos pelo corpo. Donde se segue que, ou o nosso problema insolvel. ou a sensao deve ser produzida pela a l m a . " 3. A a l m a produz a sensao.

E' bvio que a sensao pressupe certas condies corporais. A sensao como tal, porm, s pode ser produzida pela alma. A unio entre corpo e alma no uma relao de reciprocidade; antes, a unio tal que a alma observa o corpo e, ao mesmo tempo, produz alguma coisa independentemente da influncia do corpo. D e forma que, toda a vez que um processo material provoca uma mudana no corpo, a alma percebe-a de maneira ativa e, percebendo-a, produz uma sensao."Est claro, pois, que j no o corpo que atua sobre a a l m a , e sim a alma sobre o corpo. Considerada em si mesma, a alma reside n o s rgos corporais, est presente neles, e de certo modo, est de sentinela neles. A ausncia de sensao indica simplesmente a existncia de relaes normais entre o corpo e o mundo ambiente. M a s basta leve alterao deste estado' " De Musica V I , 2-4, 2-5; 1163 ss. Ibid. 4, 6; 1165 s. Ibid. 4, 7; 1166. Ibid. 5, 8; 1167 s. ibid. 5, 10; 1169.

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S. AGOSTINHO, MESTRE DO OCIDENTE

ile equilbrio p a r a q u e a alma entre em atividade. Longe de se manter passiva, a alma eminentemente ativa, pois ela que dirige sua ateno aos respectivos r g o s corporais afetados; ela que v, que cheira, que prova. C o m o se v, a sensao , na realidade, u m a espcie de explorao d o corpo pela alma. Eis c o m o Agostinho procura descrever esta atividade espontnea da a l m a : "attentiores actiones.. . has operationes passionibus corporis puto a n i m a m exhibere c u m sentit, non easdem passiones recipere. Imagines (corp o r u m ) convolvit, et rapit factas in semetipsa de semetipsa. D a t enim eis formandis q u i d d a m substantiae suae". 4. O processo d a sensao realiza-se d a maneira seguinte. S u p o n h a m o s que o meu o u v i d o seja atingido por u m a vibrao do ar, causando uma modificao n o r g o auditivo. A alma l o g o se volta para esta modificao produzindo a sensao de som, o som ouvido. Este j de natureza espiritual e pertence segunda classe de sons, que superior primeira. A partir daqui, porm, mister proceder com muita cautela, pois j chegamos ao terceiro grau e verificamos que a sensao ato do prprio pensamento. E m b o r a se costume dizer que percebemos u m verso com seu respectivo ritmo, este modo de falar n o corresponde realidade. O que ouvimos n o um verso, e nem m e s m o uma palavra, mas simples sucesso de slabas. E' pela memria que apreendemos o verso em sua integridade. A slaba apenas um som de certa durao e composto de trs elementos: o inicial, o mdio e o final. A o declarar que ouo uma slaba longa no quero dizer seno que no fim d a sensao a minha memria continua a recordar-lhe o comeo, o que a capacita a compor a sensao. Isto vale at mesmo para a mais breve d a s slabas: tambm ela tem uma durao, ou seja, um comeo, um meio e um fim. O r a , indiscutvel que a memria faz parte do pensar puro. T u d o isso nos permite ver, desde j, o grande n m e r o de elementos que a a l m a introduz na sensao, visto que n o somente a mede, como at mesmo a produz. Aludimos, m a i s acima, a certos ritmos retidos na memria, pelos quais podemos j u l g a r sobre a espcie de um ritmo que est sendo recitado. Prosseguindo nesta ordem de idias, devemos dizer: estes ritmos interiores recolhem, de certo modo, os sons materiais no mesmo instante em q u e estes esto prestes a desaparecer no nada, para concaten-los n u m conjunto harmnico. D o mesmo m o d o como os olhos coordenam a multiplicidade dos objetos distribudos n o espao, reunindo-os num s campo visual e enfeixando-os num s ato de viso, assim a memria "esta luz dos espaos temporais" (memria quod q u a s i Iumen est temporalium spatiorum) * procede coordenao de toda u m a seqncia de momentos que de outro modo se dissipariam. O verso " D e u s creator o m n i u m " n o poderia existir como sensao independentemente de um espirito. V-se, pois, que mesmo no g r a u mais nfimo do conhecimento a alma se mostra superior ao c o r p o . "

E' interessante notar que precisamente na anlise do conhecimento sensvel que o maniqueu de outrora, que no lograra sobrelevar-se aos sentidos, encontra uma luz invisvel aos sentidos. Acima daquela nica luz acessvel ao discpulo de Mans, e no mesmo ato em que verifica a existncia dessa luz, Agostinho discerne u m a nova espcie de l u z : "alia enim lux, quae sentitur oculis; alia quae per oculos agitur, ut sentiatur". Esta outra luz promana da prpria a l m a : "haec" De Mus. VI, 5, 10; 1169. ~ n e Trinit. X , 5, 7; 977. 10 De Mus. VI, 8, 21; 1174. " De Gen. ad litt. 12, 16; 402.

A DOUTRINA DO CONHECIMENTO E DA ILUMINAAO lux, qua ista manifesta sunt, utique in anima e s t " . " E assim, das coisas externas, conseguimos retornar ao nosso prprio ao mesmo tempo, vencemos a primeira etapa da prova da cia de Deus. Vejamos agora como o pensamento nos conduz prio Deus.

161 a partir interior; existnao pr-

II.

Pensamento

e

Verdade.

Trata-se de verificar, pela experincia, se o nosso pensar apresenta propriedades inexplicveis por qualquer causa que no seja Deus. Para tanto, basta prosseguir em nossa anlise e investigar o pensamento at sua fonte. J sabemos que as sensaes no so causadas pelos corpos. Ser, ento, a alma a causa de suas prprias idias? 1. A inferioridade d o pensamento. primeira vista as nossas idias parecem proceder de fora. Com efeito, costumamos "trocar" idias uns com os outros, o que seria impossvel se elas no nos fossem comuns e no se deslocassem de mim para ti e de ti para mim. Acaso no as transmitimos aos outros quando nos entretemos com eles? Sem embargo disso, no h, propriamente, nenhum mestre.Suponhamos que um mestre queira explicar aos seus aluncs o sentido de um vocbulo designativo de uma coisa sensvel, por exemplo, da palavra "saraballae", no texto " E t saraballae eorum non sunt immutatae" do livro de Daniel (3,94). O u v i d a a explicao, o aluno ter aprendido que "saraballa" significa "coifa", suposto que saiba o que se deve entender por coifa, ou melhor: o que u m a cabea e o que u m a coifa. M a s o que , exatamente, uma coifa? O nico meio de explic-lo a quem no o sabe mostrarlhe a coisa designada p o r esse termo: uma coifa concreta. N o so pois a s palavras, mas as prprias experincias sensveis que nos levam ao conhecimento das c o i s a s . " As palavras servem apenas p a r a trazer lembrana alguma experincia prvia. Suponhamos, ainda, que no intuito de comunicar certo conhecimento a o aluno, o professor lhe proponha uma proposio de sentido bem determinado, e que ele a compreenda. Poder-se- dizer, nesse caso, que tal saber lhe foi realmente transmitido pelo mestre? E' evidente que o aluno deve ter possudo um conhecimento prvio do significado das palavras empregadas; d o contrrio o sentido da frase lhe ficaria o c u l t o . " P o r meio de perguntas hbilmente formuladas o professor poder verificar se o aluno v resplandecer no seu prprio interior a verdade das proposies que ele apenas lhe pode sugerir com suas palavras. A verdade se encontra, pois, na alma. E esta presena interior d a verdade que capacita o aluno a responder q u a n d o se lhe dirige uma pergunta. O responder no simples repetio daquilo que lhe foi ditado. Responder tirar do interior do esprito o que ali se encontra em estado latente, ou, em outras palavras, reagir positivamente'* De Oen. ad litt. imperf. I , 5; 474, 22 s. *> De Magistro 12,39; 1216. " Ibid. 40; 1217.

162

S. AGOSTINHO, MESTRE DO OCIDENTErecebe, mas age

a u m estimulo externo. Aquele q u e responde n o sofre nem e produz.

Donde a concluso geral e evidente no obstante a sua formulao paradoxal, de que nunca aprendemos: "nusquam igitur discere. Quia et ille qui post verba nostra rem nescit et qui se falsa novit audisse, et qui posset interrogatus eadem respondere quae dieta sunt, nihil verbis meis didicisse convincitur"." N a d a se aprende. O que no quer dizer que o ensino seja intil, mas sim que ele algo inteiramente diverso do que se costuma supor. Esta concluso paradoxal significa que aquilo que o corpo no pode dar ao pensamento, o pensamento no pode d-lo a si mesmo. A experincia pensante adquirida paralelamente experincia sensvel. U m a comparao dos dois exemplos citados nos permite formular a lei da interioridade do pensamento: fora da alma h agentes estimuladores ou admoestadores e sinais; a espontaneidade da alma permanece intacta, pois ela se apropria destes sinais e os interpreta: do seu prprio interior que ela tira a substncia do que aparentemente lhe vem de fora. 2. O mestre interior. Assim a alma Entretanto, ela n o solipsisticamente em ribus ad superiora". lamento, a alma se do pensamento. conduzida de fora para dentro de si mesma. se encastela em seu interior, nem se reconcentra si. Antes, ela se abre para o alto: " a b interioEste o ponto decisivo. A fim de fugir ao isorefugia em Deus, que o termo final da anlise

A alma solitria porque nada pode atingi-la d e fora. Mas porventura ela no est em contacto com outros espritos igualmente solitrios? Caso contrrio, como se explicaria o perfeito acordo q u e reina entre eles no que respeita, por exemplo, s idias matemticas e m o r a i s ? H tantas inteligncias humanas como homens ( " t o t sunt mentes h o m i n u m quot sunt homines"), e ningum pode ver o pensamento do seu p r x i m o : "nec ego de tua mente aliquid c e r n o " . " Logo, se existe a idia de uma sabedoria que tu podes ver sem que eu o saiba, e q u e eu posso ver sem que tu o saibas, e que por isso no p o d e m o s mostrar um ao outro, e contudo idntica em todos, mister admitir que tal idia nos seja igualmente acessvel a t o d o s . "

Existem, pois, certas verdades imutveis e eternas pelas quais nos orientamos e s quais temos de submeter-nos incondicionalmente. Tais verdades devem ser transcendentes, pois independem completamente do nosso entendimento. Pois bem: a Escritura nos atesta a existncia de um mestre transcendente: Cristo, o Filho de Deus, que reina no cu e nos ilumina os coraes." E assim podemos identificar a verdade simplesmente com Deus. O circuito que percorremos" " " " Ibid. 12, 40; 1217 s. De lib. arb. II. 9, 27; 1255. Ibid. 10, 28; 1256. Cf. a admirvel passagem da

Epistola Joan. ad Parthos. tr. IV, 2, 13; t. 35, 2004.

A DOUTRINA DO CONHECIMENTO E DA ILUMINAAO

163

nos fez ver que a verdade outra coisa no seno Aquele que declarou ser o nico Mestre. 3. A doutrina da iluminao.

A gnoseologia agostiniana alcana o seu remate na chamada teoria da iluminao, elaborada sob a influncia do neoplatonismo. No fcil exp-la em forma sistemtica, visto que Agostinho nunca a tratou "ex professo". O seguinte resumo servir para torn-la compreensvel, pelo menos at certo ponto. E' um fato que ns, seres temporais, contingentes e mutveis, podemos conhecer verdades eternas, necessrias e imutveis; ora, s Deus eterno, necessrio e imutvel; logo, tais verdades nos so conhecidas por um contacto imediato com Deus. Ao gnero destas verdades pertencem os objetos ideais da Matemtica, da Esttica e da tica.Ao que parece, no o contedo peculiar destes conhecimentos que se atribui a u m a influncia ou iluminao divina, mas apenas as leis e normas gerais segundo as quais julgamos dos objetos da experincia. Agostinho fala em "leis", "regras", " m e d i d a s " ou " n o r m a s " . J tivemos oportunidade de referir-nos s leis matemticas e morais; no " D e vera religione" Agostinho considera principalmente as leis e os objetos estticos." T a i s so, por exemplo, as idias de beleza, de unidade, de igualdade e de proporo, as quais determinam os nossos juzos estticos.

A teoria platnica da reminiscncia (ou anmnese) no oferece uma explicao satisfatria para o conhecimento dessas verdades.O nobre filsofo grego atribue alma uma existncia prvia do corpo; seus conhecimentos atuais seriam simples recordaes das experincias outrora havidas. Para provar sua teoria, P l a t o chama a ateno para o fato de uma criana, quando habilmente interrogada, ser capaz de resolver corretamente certos problemas matemticos, embora no possua a menor instruo nessa disciplina. Agostinho emprega o mesmo exemplo, mas no se contenta com a explicao. Em primeiro lugar, ela no consegue dar a razo do fato em questo; com efeito, pouco provvel que todos os homens tenham sido matemticos em sua preexistncia celeste, dada a raridade dos peritos nesta disciplina. O que Agostinho quer dizer que a preexistncia no explica, por si s, a maneira em que o esprito toma contacto com as verdades eternas. A verdadeira e nica explicao encontra-se na identidade e continuidade da natureza r a c i o n a l . " Ademais e esta sua objeo principal a doutrina platnica da reminiscncia inseparvel da doutrina da metempsicose, que ele chama de a b s u r d a . " A concepo platnica Agostinho contrape sua prpria doutrina: "sed potius credendum est, mentis intellectualis ita conditam esse naturam, ut rebus intelligibilibus naturali ordine, disponente conditore, subiuncta sic ista videat in quadam luce sui generis incorporea, q u e m a d m o d u m oculus carnis videt quae in hac corporea luce circumiacent, cuius lucis eique capax confruens est creatus". "" 33; 146 s. Cf. tambm: Retract. 1. 7. 2; 35. ' De civil. Dei X , 30; 500. De Trinit. X I I , 15, 24; 101 i.M

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S. AGOSTINHO, MESTRE DO OCIDENTE

Infelizmente Agostinho n o nos oferece uma resposta clara pergunta sobre a maneira como a razo entra em contacto com as verdades eternas.Parece haver rejeitado u m a viso direta dessas verdades em Deus. N o obstante, faz uso constante de imagens que sugerem uma i n t u i o deste tipo. E' de supor-se que o faa a fim de frisar a natureza cognoscitiva desse contacto com as verdades eternas. Estas atuam sobre ns, e at nos so de certo m o d o impressas, m a s sem prejuzo de sua transcendncia. O texto seguinte contm, provavelmente, o que de mais ponderado A g o s t i n h o escreveu sobre o assunto: " E onde ser q u e eles as vem (estas r e g r a s ) ? N o , certamente, em sua prpria natureza; pois no h a menor d v i d a de que s o vistas pela mente; evidente, porm, que as mentes so mutveis, ao passo que tais normas so percebidas como imutveis, como o sabem todos quantos so capazes de ler no eterno. T a m p o u c o (vem-nas) no estado habitual de sua alma, pois so regras de justia, e suas almas so manifestamente injustas. O n d e , ento, se encontram escritas estas regras? O n d e at mesmo o homem injusto conhece o que j u s t o ? O n d e v a necessidade de possuir o que no possui? O n d e ho de estar escritas, seno no livro daquela luz que se chama Verdade? E' dali que toda lei justa transcrita e depositada no corao do homem que pratica a justia, n o maneira de u m a transmigrao, mas por u m a espcie d e impresso, assim como a f i g u r a do anel se imprime na cera sem abandonar o anel. Aquele que no o b r a , embora saiba como deve obrar, aparta-se daquela luz, ainda que no deixe de ser atingido por ela".* 3 P o d e dizer-se, pois, que as leis e normas eternas existem em si mesmas e permanecem no seu lugar, sem contudo deixar de iluminar e de atuar sobre todos quantos possam e queiram perceb-las.

Tal a doutrina da iluminao que Agostinho legou filosofia crist, de cuja tradio ela entrou a fazer parte inseparvel. Agostinho elaborou-a sob o influxo de Plato, de Plotino e Porfrio, no porm sem imprimir-lhe um cunho cristo. Para o nosso mestre, as verdades eternas e imutveis do mundo espiritual platnico tm sua sede em Deus, que a Verdade. N o as conhecemos por meio de uma recordao ou "reminiscncia" de tipo platnico, mas por uma recordao tipicamente agostiniana, isto : mediante um ato consciente de interiorizao, no qual a razo toma conscincia da presena de Deus. E' em virtude desta presena divina que a Verdade, ou Deus, se d a conhecer razo, mediante a "recordao" que lhe d acesso infinidade de Deus.

3. A funo d o amor na busca de D e u s D o exposto se v que a prova agostiniana de Deus um processo gradual de superamento das coisas, tendo por remate o contacto com Deus no mais ntimo da conscincia. Nessa altura defrontamo-nos com uma nova pergunta: por que razo o esprito humano se v obrigado a este longo caminho? O fato da prova da existn" De Trinit. X I V , 15, 21; 1052.

A FUNO DO AMOR NA BUSCA DE DEUS

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cia de Deus se transforma em problema. A teoria do conhecimento reclama uma tica do conhecimento.

/. A inquietao

da alma

em busca

de Deus.

Todo desejo de saber e todo esforo de conhecer uma espcie de amor. M M a s como se h de amar e procurar o desconhecido? 1. O problema da busca.

Agostinho admite que no se pode amar o que se desconhece: "nam quod quisque prorsus ignorat, amare nullo pacto potest". Por outro lado, no se procura seno o que se ama. Mas que espcie de amor este que impulsiona aos que desejam s a b e r ? "Suponhamos que algum queira adquirir certo conhecimento e se esforce sinceramente neste sentido. Trata-se de um processo aparentemente simples; na realidade, porm, defronta-se-nos aqui um grande problema. C o m efeito, o simples desejo de conhecer uma coisa j pressupe algum saber prvio dela: do contrrio nem sequer se pensaria em procur-la. Mas, se j a conhece, por que ainda a procura? P o n h a m o s um exemplo: Algum ouve pela primeira vez a palavra "temetum". Vem-lhe o desejo de saber-lhe o sentido; o que um sinal de que este lhe desconhecido. Entretanto, ele sabe, ou ao menos supe, que aquela palavra um sinal e, conseqentemente, que as trs slabas que a compem tm um sentido. Logo, j dispe de a l g u m saber, pois conhece o significado de "conhecer" e de "sentido"; e o a m o r a este saber o instiga a procurar o sentido da palavra. Portanto, ele procura por amor a um saber que j p o s s u i . " Objeta-se que possvel procurar alguma coisa sem qualquer motivo determinado, pois h homens que buscam pelo simples prazer de procurar. Tais homens s o conduzidos exclusivamente pelo a m o r ao saber: so apenas "curiosos", e n o "estudiosos". Mas nem por isso se h de dizer que a m a m o desconhecido enquanto desconhecido, pois todos os homens aborrecem a ignorncia e aspiram ao saber. Querer saber o que se desconhece n o significa amar o desconhecido, mas querer que este se torne conhecido. N u m a palavra, significa ter amor ao saber: " n o n enim frustra ibi est positum scire: quoniam qui scire amat incgnita, non ipsa incgnita, sed ipsum scire amat. Q u o d nisi haberet cognitum, neque scire se quisquam posset fidenter dicere neque nescire"."

E' claro, pois, que ningum ama o desconhecido. Para poder tender a um objeto necessrio que a alma j possua dele u m a representao prvia, por vaga ou confusa que seja. Ela forja em seu interior uma figura daquilo que deseja atingir. E o que mais: ela tem amor a esta imagem, a ponto de sentir-se desiludida se o objeto for disconforme quela imagem ideal. Portanto, ns amamos o desconhecido no conhecido. Se o objeto corresponder nossa expectatiDe Trinit. IX, 12, 18; 972. Ibid. X, 1; 971 s. " Ibid. I, 2; 972 s. ' Ibid. I , 3; 974.B

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va no dizemos: agora, enfim, quero te amar, e sim: eu j te amava: "iam te a m a b a m " . " 2. E m busca d a alma.

Poder-se- dizer a mesma coisa da nossa alma? A rigor, a alma deveria conhecer-se a si mesma. 0 entendimento, com efeito, est em condies de saber que vive, que busca, que pensa. Sendo a alma um puro esprito e inteiramente simples, ela deve conhecer-se totalmente ao atingir qualquer u m a de suas operaes." Mas, se assim , por que recebemos o preceito de nos conhecermos a ns mesmos? E por que a alma se busca a si mesma?Este preceito n o significa que devamos p r o c u r a r primeiro a nossa a l m a , e sim, que devemos aprender a ajuizar corretamente dela e da nossa natureza, a fim de t o m a r m o s o lugar que nos compete no conjunto das coisas: acima d a s que esto confiadas ao nosso governo e abaixo das que reclamam a nossa sujeio. Infelizmente a m concupiscncia e a soberba levam o esprito a esquecer-se de si mesmo, devido aos seus apetites malsos e desordenados. Contempla interiormente certas coisas belas n u m a essncia m a i s nobre, que Deus, e atribuindo-as a si mesmo, aparta-se de Deus e precipita-se de abismo em abismo, enquanto cr elevar-se m a i s e mais. E, u m a vez iniciado este movimento, ele j no encontra satisfao em coisa a l g u m a . Na sua indigncia entrega-se desordenadamente s suas prprias atividades ( s sensaes) e aos seus deleites inquietos. E assim cai numa espcie de vertigem, lanando-se desenfreadamente sobre as coisas sensveis, com as q u a i s passa a identificar-se. T o grande o poder do amor que, fora de ocuparse por longo tempo e com afeto das coisas temporais, o pensamento acaba por fazer-se uma s coisa com elas: "et q u i a illa corpora sunt, quae foris per sensus carnis a d a m a v i t , eorumque diuturna quadam familiaritate implcita est, nec secum potest introrsum tamquam in regionem incorporeae naturae ipsa corpora inferre, imagines eorum convolvit, et rapit factas in semetipsa de s e m e t i p s a . . . " ** Finalmente a a l m a se esquece inteiramente de si mesma e perde a conscincia do seu eu m a i s nobre; o prprio A g o s t i n h o o experimentara na ingenuidade do seu materialismo. Chega-se ao p o n t o de crer que a alma u m corpo. 101 Assim A g o s t i n h o explica a gnese d o materialismo.

Estamos agora em condies de responder pergunta relativa ao sentido da expresso: a alma busca-se a si mesma. Trata-se antes de uma tarefa da vontade e do amor que do entendimento. E ' necessrio que a vontade comece por desfazer-se da falsa imagem sensvel que se lhe apegou to intimamente: "cum igitur ei praecipitur ut se ipsam cognoscat, non se tamquam sibi detracta sit quaerat, sed id quod sibi addidit d e t r a h a t " . M E' necessrio sofrear a vontade dissipada e orient-la para a prpria a l m a : "ita videbit quod n u m q u a m se non amaverit, numquam nescierit: sed aliud secum amando cum eo se confundit et concrevit quodam m o d o " ." Ibid. 2, 4; 974 s. Ibid. 3-4; 975 s. * De Trinit. X , 5, 7; 977. Ibid. 7, 9; 978 s. * Ibid. 8. 11; 979. > Ibid.; 980.

A FUNO DO AMOR NA BUSCA DE DEUS 3. E m busca de Deus.

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Agora vemos tambm a razo da nossa busca de Deus, embora Ele esteja to prximo de ns. E' a mesma que nos leva a buscar a alma: a dificuldade que temos em nos recolher: " E i s que habit